O sensível contemporâneo e a questão do espaço no Ambiente das Artes Visuais

July 25, 2017 | Autor: Miguel Gally | Categoria: Arthur Danto, Estética, Artes visuales
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SOULAGES, François [et al], organizadores. O SENSÍVEL CONTEMPORÂNEO. Trabalhos apresentados no VI Colóquio Franco-Brasileiro de Estética (2009). Salvador: UFBA, 2010. 302p. O sensível contemporâneo e a questão do espaço: Reflexões a partir do ambiente das artes visuais Miguel Gally1

Nossa comunicação tem como objetivo central investigar a relação espaço/sensível de modo alargado, ou seja, divergindo da posição corrente que reduz a espacialidade da obra de arte a uma reflexão/significado/pensamento privilegiando a orientação conceitual no mundo das artes visuais. Este trabalho está dividido em duas partes. I) Posicionamento da questão da espacialidade frente à concepção de sensibilidade presente na filosofia da arte tardia de Arthur Danto levando-se em conta como parâmetro a tradição estética, em especial Emmanuel Kant. Como resultado desse percurso constrói-se, segundo os pressupostos de Danto, uma compreensão dupla da espacialidade: uma vinculada à sensibilidade e à estética, mas desvinculada da arte; e outra, vinculada à arte e desvinculada da sensibilidade. Ou seja, espacialidade, na arte, segundo Danto, precisa do pensamento/do significado. II) Questionamento dessa postura a partir de uma visão ampla do espaço nas artes, capaz de incluir o sensível e outras orientações. Esta parte final apóia-se, por um lado, no projeto de arte ambiental (Hélio Oiticica) e seus desenvolvimentos (p. ex., Ernesto Neto) e, por outro, nas ferramentas teóricas apresentadas pelo conceito de ambiente da arte, a partir do qual defendo uma definição de obra de arte visual desde uma atividade criadora que passa por um processo comunicativo especial, no qual espectador e artista coabitam a obra fazendo-a acontecer de acordo com uma pluralidade de orientações.

__________________________________ Le sensible contemporain et la question de l´espace: Réflexions d´après «l´Ambiante des arts visuels» Notre présentation a pour objectif central d’étudier la relation espace/sensible de manière élargie, c'est-àdire, en s’éloignant de la position conventionnelle qui réduit la dimension spatiale de l'œuvre d'art à la « réflexion/signifié/pensée » et en privilégiant notamment l'orientation conceptuelle dans le monde des arts visuels. Ce travail est divisé en deux parties. I) Poser la dimension spatiale en face de la conception de la sensibilité, présente dans la philosophie tardive de l'art d'Arthur Danto prenant notamment comme paramètre la tradition esthétique d’Emmanuel Kant. Ce parcours conduit, selon les présuppositions de Danto à une double compréhension de la dimension de l’espace: l’une attachée à la sensibilité et à l'esthétique mais détachée de l'art; l’autre attachée à l'art mais détachée de la sensibilité. Ainsi, la dimension spatiale dans l'art, selon Danto, a besoin de la pensée, de la signification. II) Questionnement de cette position à partir d'une conception élargie de l'espace pour l´art, capable d’intégrer le sensible et d´autres orientations. Cette seconde partie s’appuiera d’une part sur le projet d'art environnemental (Hélio Oiticica) et ses développements (p. ex., Ernesto Neto), et d’autre part sur des outils théoriques présentés par l´Ambiante de l´art; d’après ce dernier, j’entend l'œuvre d'art visuel comme activité créatrice passant par une procédure communicative où le regardeur/spectateur et l´artiste cohabitent dans l'œuvre, la faisant surgir selon une pluralité d´orientations.

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Pesquisador CNPq/DCR e professor colaborador do Programa de Pós Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Este trabalho faz parte do projeto de pesquisa Apropriações da estética clássica setecentista para a filosofia da arte contemporânea (2008-2010), Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Norte (FAPERN). In SOULAGES, François [et al, Orgs]. O SENSÍVEL CONTEMPORÂNEO.Trabalhos apresentados no VI Colóquio FrancoBrasileiro de Estética (2009). Salvador: UFBA, 2010. 302p.(CDROM). ISBN: 978-85-60667-70-3

SOULAGES, François [et al], organizadores. O SENSÍVEL CONTEMPORÂNEO. Trabalhos apresentados no VI Colóquio Franco-Brasileiro de Estética (2009). Salvador: UFBA, 2010. 302p.

No mundo das artes visuais vive-se o predomínio da orientação conceitual. Parodiando Arthur Danto, isso quer dizer que um objeto ordinário transforma-se em arte quando se vincula a ele, de maneira intrínseca/interna, um significado, um pensamento. Tal orientação conceitual assume uma posição de destaque tanto no mundo da produção de arte quanto no da filosofia da arte sendo um ponto de partida decisivo para se compreender a atividade criadora2. Nesta exposição, pretendemos, entretanto, reforçar que o tratamento conceitual dado às artes visuais não precisa minimizar o potencial da orientação imediata ou sensível, seja excluindo-a ou reduzindo-a à orientação conceitual. Para tanto, torna-se de importância crucial levar em conta a vinculação entre o sensível e o espaço, pois as obras de arte que recorrem à espacialidade conduzem a uma reflexão sobre a importância do sensível no mundo da arte contemporâneo. Ao se reduzir a percepção das dimensões e do lugar a uma “sentença sobre o mundo” (Danto, 19973), minimiza-se a própria importância do espaço como algo a ser primariamente ocupado, penetrado e vivido. Assim, tratar o sensível nas artes visuais pode exigir uma investigação sobre o espaço, entendido como o lugar onde a arte acontece. Isso quer dizer não o lugar ou localização de uma performance, instalação ou de uma intervenção (seu endereço), mas o espaço que ela constrói. Aqui, o espaço é sensível, ou seja, é onde há uma presença, virtual ou real, onde se pode interferir nele, tocando, cheirando, estando junto dele e, até mesmo, sendo esse espaço ― quando o artista é a matéria e a ferramenta da sua própria obra ou, ainda, quando o espectador é convidado a ocupar um lugar dentro deste espaço criado pelo artista. Não faremos, portanto, nenhuma diferença entre o espaço virtual e o real, nem exploraremos as implicações e provocações de uma virtualidade do espaço para as artes visuais4, embora seja um caminho de análise possível.

2

Exceções são, por exemplo, Martin Seel (Ästhetik des Erscheinens, Frankfurt: Suhrkamp, 2003) e Thierry de Duve (Au Nom de L´Art, Paris: Ed. Minuit, 1989). 3 DANTO, A. After the End of Art: Contemporary Art and the Pale of History. Princeton: PUPress, 1997, Chap. I e II. 4 VENTURELLI, S. Arte: Espaço, Tempo e Imagem. Brasília: Ed. UNB, 2004, p. 97ss.

SOULAGES, François [et al], organizadores. O SENSÍVEL CONTEMPORÂNEO. Trabalhos apresentados no VI Colóquio Franco-Brasileiro de Estética (2009). Salvador: UFBA, 2010. 302p. I. A associação sugerida acima entre espaço e sensível não é evidente e requer uma introdução. Sem recuar muito na história do pensamento e se remontarmos ao início da história moderna da estética, mais precisamente no século XVIII, quando se começa efetivamente a tentar legitimar a sensibilidade e o sensível como parte da metafísica, ou seja, como centrais para entender alguns de seus temas emergentes como o gosto, a arte, o gênio, o belo, etc., encontraremos em Immanuel Kant uma estreita e fundamental ligação entre espacialidade e sensibilidade. E essa ligação servirá, junto a outros elementos, para indiretamente fundar a própria disciplina Estética como a conhecemos hoje. Tal relação surge no início da Crítica da Razão Pura (1781/1787), mais precisamente na “Estética Transcendental”, que é a ciência da sensibilidade a priori, composta por uma faculdade da sensibilidade e suas formas puras: espaço e tempo. Espaço é aqui uma intuição pura, uma forma de acordo com a qual o múltiplo sensível disforme ganha seus primeiros contornos. Quando intuímos uma cadeira, por exemplo, já é condição para que isso aconteça que tenhamos disponível a capacidade formal de representar não a cadeira propriamente, mas o espaço que ela ocupa como uma representação para nós. Situar a cadeira num espaço determinado (e também, internamente, em um tempo) é o modo inicial de preparar o que se tornará conteúdo do conhecimento. Então, a relação construída inicialmente entre espaço e sensível na obra de Kant é de ordem epistemológica e de acordo com uma objetividade, isto é, acontece do ponto de vista da fundamentação do conhecimento. A sensação objetiva é a matéria do conhecimento e recebe do espaço uma forma preliminar, à qual será efetivamente determinada pelo conceito, cuja origem é a faculdade do entendimento. Mas, vamos nos restringir à faculdade da sensibilidade, que também será tema na Crítica da Faculdade de Julgar (1790). Nessa obra, a primeira parte chama-se “Crítica da Faculdade de Julgar Estética”, cujo objeto principal é a faculdade do gosto e o sentimento do belo. Aqui, aquela relação estabelecida entre

representação

e sensibilidade

recebe um

direcionamento subjetivo e a espacialidade perde destaque para a condição interna e temporal da “percepção refletida”, ponto de apoio para a compreensão do belo como sentimento universal. Não mais a sensação, mas o sentimento é que se torna o ponto de partida. A pergunta pelas condições de possibilidade da universalidade desse sentimento estético funda a Estética como Gosto, uma faculdade de recepção (sentimento) e de

SOULAGES, François [et al], organizadores. O SENSÍVEL CONTEMPORÂNEO. Trabalhos apresentados no VI Colóquio Franco-Brasileiro de Estética (2009). Salvador: UFBA, 2010. 302p. ajuizamento (reflexiva) a uma só vez, sem a presença de um conceito como fundamento de determinação.

Contra essa posição originária da Estética como Gosto ou como Transcendental ― que tematiza respectivamente ora os aspectos sentimentais e subjetivos da sensibilidade (belo da natureza e/ou da arte) ora os aspectos perceptivos (objetivos) ― e seus desdobramentos modernistas, Danto concebe a arte a partir do domínio do pensamento. E a descoberta kantiana da “percepção refletida” seria apenas um tipo de sentimento, não de pensamento. Se seguirmos a filosofia da arte desenvolvida por Arthur Danto, temos de transferir o sensível (objetivo ou subjetivo) para a ordem da vida em geral, em contraposição ao mundo do pensamento e da arte, forçando a criação de um abismo entre tais instâncias. Corre-se o risco, com isso, de se transferir também a própria espacialidade para fora do núcleo da arte, caso se associe intrinsecamente o espaço ao sensível. Como, então, desenvolver essa posição que nega a sensibilidade como importante para a compreensão da arte sem recusar, a um só golpe, também a espacialidade? Como o tema do espaço pode ser articulado a partir da filosofia da arte de Danto?

Embora a temática do espaço não tenha recebido um tratamento especial na filosofia da arte de Danto, e veremos o porquê em seguida, o que acontece é que a espacialidade termina por assumir um caráter duplo: a) faz parte do domínio das coisas/realidade, incluindo a vida em geral, a sensibilidade, a ordinariedade (common place) e também a estética; b) faz parte, por outro lado, do domínio do pensamento e da arte. Pode-se, então, dizer que a espacialidade como parte da vida não pertence à arte?! Como então pode Danto pensar nos artistas da Arte da Terra (Land-Art/Earth Art), na Arte Pública ou na arte Site Specific? Afinal, todas elas tematizam justamente a espacialidade e a inclusão do espaço ou do lugar presente enquanto parte integrante da própria obra. Nesses casos, quando se diz que tal arte “tematiza” o espaço, Danto entenderia, eu suponho, como “pensa” sobre o espaço. Danto diria que tais obras, ao tematizar a espacialidade emitem uma sentença sobre aspectos da espacialidade: seu caráter público, sua dimensão, seu lugar na sociedade e na cidade, sendo apropriada ou não para uma idéia, questionando o lugar da sua própria exposição, mas podendo

SOULAGES, François [et al], organizadores. O SENSÍVEL CONTEMPORÂNEO. Trabalhos apresentados no VI Colóquio Franco-Brasileiro de Estética (2009). Salvador: UFBA, 2010. 302p. também

estar

carregada

de

significados

que

reflitam

sobre

o

contexto

cultural/político/econômico/social que cerca o lugar onde o trabalho do artista está, seu propósito de desviar a atenção do cotidiano para algo diverso, sendo algo que “abra a cabeça”, provoque idéias, etc., tudo isso sempre em intrínseca conexão com o modo de apresentação desses significados. Enfim, tem-se em mente obras que constroem significados sobre determinados aspectos atrelados ao(s) espaço(s). De acordo com a filosofia da arte de Danto, tanto faz se o espaço é real ou virtual (ciber), porque é a sentença sobre (aboutness) em conexão com seu modo de apresentação que estará em questão como essência da arte. O objeto real/virtual estará incorporando um significado, ― que é o decisivo! ― na medida em que a ele (ao objeto) está associado um pensamento: ARTE = PENSAMENTO + OBJETO5 VIDA = SENSIBILIDADE (+ OBJETO)

A espacialidade articulada a partir do pensamento de Danto faz parte da arte na medida

em

que

o

objeto

vinculado

a

ele

(ao

espaço)

incorpora

um

significado/pensamento. E o espaço é parte da vida quando é mera sensibilidade, quando o espaço é vivido e sentido sem ser pensado. Ou seja, de acordo com essa postura, o espaço não é, definitivamente, decisivo para se entender a arte. E mais: é um material ou um modo de apresentação como qualquer outro que possa vir a ser candidato a obra de arte. Ora, se a espacialidade não exerce mesmo uma função decisiva, é porque ela foi reduzida à orientação conceitual (arte = pensamento + objeto) da produção de artes visuais, essa sim decisiva e essencial.

Nesse caso, se o espectador precisa revelar um significado e o crítico de arte, do lado dos espectadores, precisa mostrar o(s) pensamento(s) embutido(s) na obra6, podese conceber que a orientação conceitual seja vista como uma relação estabelecida entre espectador e artista, na medida em que o artista prepara e sugere um significado 5

DANTO, A. The Abuse of Beauty: Aesthetics and the Concept of Art. Chicago: Open Court, 2003, pp. 94ss. 6 DANTO, A. After the End of Art: Contemporary Art and the Pale of History. Princeton: PUPress, 1997, p. 98, onde o autor explica “significado incorporado” a partir de uma relação de identidade entre conteúdo (significado - meaning/ sobre o que - aboutness) e modo de apresentação.

SOULAGES, François [et al], organizadores. O SENSÍVEL CONTEMPORÂNEO. Trabalhos apresentados no VI Colóquio Franco-Brasileiro de Estética (2009). Salvador: UFBA, 2010. 302p. incorporando a um objeto algo que será tematizado pelo espectador e/ou crítico de arte. Não se trata de forçar uma leitura fenomenológica da teoria de Danto, mas de identificar que há, no exercício de revelar significados incorporados, uma relação pressuposta entre quem faz o trabalho de arte e quem analisa a tal obra. Em alguns casos, mais precisamente naqueles casos/tendências grosso modo definidos como arte Site Specific, Arte da terra e Arte pública, se se recorre apenas à orientação conceitual para penetrar e abarcar o alcance da obra, então se perde algo. Esse é o ponto central. Perde-se, de fato, todo o esforço de situar espacialmente o objeto, cuja relação com o espectador presente passa inicialmente por uma imediatidade tornando-se parte constitutiva da obra. Exemplos: Caminho do macaco (2006) do Ateliê Bow-Won exposta na Bienal SP 2006. Na Expo Paralela 2008 (SP), o trabalho de Ernesto Neto, Eu e minhas partes (2008), é ainda mais sensitivo, pois além de caminhar, isto é, de entrar em uma “tenda” (metaforicamente vista como o “Eu”, p.ex.), explora toda a “espacialidade olfativa”, se assim pudermos dizer, a ocupação pelos cheiros.

Essa relação imediata precisa ser pensada de maneira paralela e complementar à orientação conceitual, de modo a não se ter de necessariamente reduzir esse esforço de tematização da orientação espaço-sensível à orientação conceitual. No exemplo acima, os cheiros do “Eu” como sua existência, poderiam ser reduzidos a uma visão conceitual, na medida em que não como pensamento (numa clara referência ao nascimento da modernidade com Descartes, “penso, logo existo”), mas como sensitividade é que se existe. Observe-se que a “ocupação olfativa” do espaço, para ela mesma existir, precisa ser presenciada e inalada, antes de qualquer construção conceitual, metafórica ou simbólica. Manter esses dois níveis distintos de interação irredutíveis um ao outro e claros no processo de construção da obra é uma das tarefas do que entendo como Ambiente da arte, tendo como intuito final acompanhar no nível teórico uma dinâmica própria da produção das artes visuais. A concepção da “tensão operativa”, desenvolvida por mim como núcleo desse ambiente, ajuda a pensar a arte como um acontecimento comunicativo, ou seja, enquanto base e resultado de uma relação especial entre espectador, artista e um conjunto plural de orientações e/ou direções, dentre elas a conceitual e a sensível, além de outras tantas. Manter tal pluralismo sem reduções também no nível teórico é nosso grande desafio.

SOULAGES, François [et al], organizadores. O SENSÍVEL CONTEMPORÂNEO. Trabalhos apresentados no VI Colóquio Franco-Brasileiro de Estética (2009). Salvador: UFBA, 2010. 302p.

II. Composição do Ambiente da Arte: espaço e a orientação sensível-imediata Em linhas gerais, o ambiente da arte7 é formado por três elementos, dos quais um deles é indeterminado e formado por vários componentes (as orientações ou direções). Os dois outros são determinados: o espectador e o artista. Passo agora a expor como se interconectam esses elementos e qual a dinâmica dessa composição.

Então, espectador e artista precisam, para fazer parte do ambiente da arte, sofrer um processo de exclusão seguido de um processo de inclusão indireta. O espectador nega-se enquanto elemento passivo colocando-se na condição de criador, permanecendo como um espectador diferenciado, pois opera sobre algo que foi elaborado pelo artista. Este, por sua vez, nega-se enquanto meramente criador (como único responsável pela origem da arte) e posiciona-se enquanto espectador, porque quer comunicar/partilhar, mas permanece artista porque tem de elaborar o objeto sobre o qual o espectador (ou interator) trabalhará (irá operar). Paralelamente, as diretrizes ou orientações possíveis do encontro entre espectador e artista formam um conjunto indeterminado, tão plural quanto a própria arte. Antes de ser operado, tal ambiente permanece à espera para entrar em ação. A obra de arte acontece justamente quando esses elementos se reúnem, quando o espectador na condição de artista e o artista tendo elaborado o objeto candidato à obra e se colocado na condição de espectador geram a tensão por causa dessa disposição ansiosa por conduzir à escolha de um ou vários componentes do elemento indeterminado. Tal tensão opera a obra, realiza a obra naquele instante. Essa tensão une momentaneamente os elementos do ambiente da arte, mas, porque se repete na realização de cada obra, une também todas as obras de arte. A dinâmica da produção de arte, a partir do quadro teórico do ambiente da arte, gera uma coesão das obras e aproxima obras de orientações diversas, porque elas passam a ter uma mesma fonte, a tensão operativa. Mas essa tensão, da nossa perspectiva, não existe sozinha, pois é apenas o resultado de um encontro. Ela só acontece por causa da aproximação dos 7

Cf. GALLY, Miguel. O ambiente do belo e o pluralismo nas artes visuais: Inspirações para uma atualização da “Crítica da Faculdade de Julgar Estética” de I. Kant. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007, especialmente o Capítulo VI.

SOULAGES, François [et al], organizadores. O SENSÍVEL CONTEMPORÂNEO. Trabalhos apresentados no VI Colóquio Franco-Brasileiro de Estética (2009). Salvador: UFBA, 2010. 302p. elementos do ambiente da arte, inclusive do conjunto de direções à espera de uma operação.

No ambiente da arte, portanto, a experiência de arte é entendida como um momento, como um acontecimento e não como um objeto propriamente, numa clara recorrência às idéias trazidas pelos Happenings e Performances, e diretamente vinculados ao projeto ambiental de Hélio Oiticica. Esse acontecimento precisa daquele conjunto de orientações possíveis e assume uma importância decisiva, porque sem um acionamento ou operação de uma orientação/direção, não há obra de arte.

A teoria de Arthur Danto mostrou-se interessante para dar conta de uma diversidade de obras. Entretanto, ela remete apenas àquelas que obedecem “primariamente” a uma orientação conceitual ou que podem ser reduzidas a ela, ou seja, àquelas obras que se apóiam sobre a necessidade de dizer algo sobre (aboutness) sendo “um significado incorporado”. Primariamente quer dizer não o primeiro contato com o objeto candidato a obra de arte, já que esse é sempre sensível, fenomênico e nesse sentido a arte é sempre aparência. Primariamente refere-se, aqui, ao modo operativo pelo qual nos relacionamos com o trabalho do artista. Quando essa operação passa pela construção de uma interpretação, pela revelação de um significado, então a obra recebe um direcionamento conceitual ou discursivo. Embora a defesa de uma teoria segundo essa orientação conte com um forte respaldo empírico, já que muitas obras se fundam sobre tal pilar, deparamo-nos também com obras que recorrem a uma orientação mais imediata, menos discursiva e mais sensitiva. Trata-se daquelas obras que necessitam de uma participação menos intelectual do espectador, que requerem um modo diferenciado de interação. Em Mokey Way – Caminho do Macaco (2006)8, do Atelier Bow-Won, Tóquio - exposta na 27ª Bienal de São Paulo (2006) - o espectador, depois de assumir os riscos de participar da obra assinando um termo de responsabilidade, tem a permissão de andar sobre uma trilha ou passarela suspensa por entre as árvores a uma altura de aproximadamente oito metros. Desse modo, ele dá início à experiência artística saindo do prédio da exposição e entrando na obra. A obra, entretanto, também dá muito a

8

Cf. 27a. Bienal de São Paulo: Como viver junto [Guia]. (Eds.) Lisette Lagnado, Adriano Pedrosa. São Paulo: Fundação Bienal, 2006, p.38.

SOULAGES, François [et al], organizadores. O SENSÍVEL CONTEMPORÂNEO. Trabalhos apresentados no VI Colóquio Franco-Brasileiro de Estética (2009). Salvador: UFBA, 2010. 302p. pensar. Por exemplo, a relação que a arte pode manter com a natureza é explorada e favorecida pelo lugar mesmo da exposição, já que o Pavilhão da Bienal fica em um parque. De outra perspectiva, quando se anda sobre a trilha, a experiência artística termina por incluir a intimidade de cada um, seja física ou psíquica (medo, p.ex., quando aquela passarela improvisada balança com o vento). Mas tudo isso só tem início efetivo quando se transpõe a janela e se inicia o caminho. As obras que trabalham com lixo biodegradável e com o processo de putrefação são outros exemplos, demandam o olfato9; nelas, aquela operatividade passa primeiro pelo mau cheiro do que o artista elaborou. As idéias e os significados completam o que está associado ao mau cheiro, como a provocação por uma consciência ecológica, de uma perspectiva mais sociológica, ou ainda, filosoficamente, através das noções de degradação, fim, morte, tempo, etc. Tais modos mais imediatos de interação com o objeto em exposição podem ser, posteriormente ou simultaneamente, objetos de uma interpretação, mas são primariamente objetos à espera de uma manipulação sensível e motora para dar início ao processo de construção da obra.

Observa-se, a partir dos recursos teóricos do ambiente da arte, que há uma irredutibilidade do sensível ao conceitual e uma experimentação do espaço sem a necessidade de uma complementação discursiva que termina se destacando, própria do direcionamento conceitual, que as obras podem assumir e agregar àquela orientação inicial (a sensível). Elencamos aqui, por certa contraposição, a orientação mediataconceitual e a sensível-imediata, mas temos trabalhado também com a orientação mediata-não-conceitual (caso de obras que recorrem à memória e lembranças), a qual não iremos desenvolver neste artigo. O importante é guardar o caráter relacional e comunicativo da arte e ter em mente que tais orientações funcionam como uma paleta, podendo combinar-se infinitamente, estando assim sempre abertas a novas orientações e em sintonia com o pluralismo da produção das artes visuais.

9

Cf. SHINER, L. e KRISKOVETS, Y. “The Aesthetics of Smelly Art”, Journal of Aesthetics and Art Criticism. Vol. 65, N. 3, 2007, pp. 273-286. Os autores tentam mostrar a lacuna na história da estética quanto à tematização dos sentidos do gosto, do tato e do olfato, mais precisamente. Artistas como Ernesto Neto e Peter de Crupere são usados como exemplos. A exposição Poética da Percepção, MAM Rio 2008, explorou essa lacuna reunindo vários artistas. Ver também a EssKunst/EatArt dos anos 60 na Alemanha (Dusseldorf), no Brasil Lygia Pape, Arthur Barrio, entre outros.

SOULAGES, François [et al], organizadores. O SENSÍVEL CONTEMPORÂNEO. Trabalhos apresentados no VI Colóquio Franco-Brasileiro de Estética (2009). Salvador: UFBA, 2010. 302p. A concepção teórica do ambiente da arte, além de uma investigação intensa quanto às orientações primárias possíveis dentro do mundo das artes visuais requer igualmente e na mesma intensidade uma investigação especulativa sobre a especificidade apresentada pela tensão operativa frente a outros modos de comunicação, isso porque partimos da hipótese de que essa tensão operativa se constitui como um tipo especial de comunicação presente na experiência de arte e capaz de funcionar como uma dinâmica comum da atividade criadora.

A peculiaridade da arte visual produzida nos últimos decênios quanto ao tema da criação é, portanto, uma co-dependência para o acontecimento da obra. O artista continua como tal, não há algo como a ditadura do espectador, um radicalismo fruto das idéias revolucionárias da arte chamada participativa ou colaborativa, um extremismo individualista da parte referente ao espectador. O artista precisa dispor o que ele produz de maneira que haja uma comunicação com o espectador, não no sentido de garantir a transmissão de alguma informação, mas de garantir as condições necessárias para a ação do espectador. Por outro lado, não há tampouco uma espécie de processo simultâneo de criação, no qual o artista faz um pouco da obra e o espectador uma outra parte, que, unidas, dão origem à obra. Não se trata da aproximação de duas metades, mas de duas totalidades.

O artista realiza seu trabalho, continua responsável pela criação, mas depende de uma interação. O processo de comunicação/interação, aqui, é especial porque só se realiza quando o que o artista fez é, de algum modo, operado pelo espectador. A tematização desse ponto de equilíbrio se funda sobre um processo de comunicação, no qual um excesso de informação termina por conduzir em demasia o espectador. Por outro lado, uma carência de informação não permite ao espectador reconhecer o trabalho do artista como algo a ser operado. Isso acontece sempre que obras são expostas e ninguém ou poucos percebem que aquilo está na iminência de se tornar parte de uma experiência artística. A criação vista a partir desse processo equilibrado e especial de comunicação põe lado a lado espectador e artista, cada um em seu domínio de jurisdição, criador de um lado, espectador do outro. Entretanto, para que haja um equilíbrio de fato, cada um se nega posicionando-se do outro lado: o artista enquanto

SOULAGES, François [et al], organizadores. O SENSÍVEL CONTEMPORÂNEO. Trabalhos apresentados no VI Colóquio Franco-Brasileiro de Estética (2009). Salvador: UFBA, 2010. 302p. espectador porque quer comunicar/comungar, e o espectador enquanto artista porque tem de operar o trabalho do artista.

A questão passa, assim, a ser orientada pela eficiência do equilíbrio do processo de comunicação presente na experiência artística. Não se trata, portanto, de dizer que a finalidade da obra é comunicar, no sentido de transmitir uma informação. É porque há a possibilidade de comunicação e, sobretudo, de interação, que há várias finalidades da obra, como, por exemplo, a de informar, num direcionamento mais conceitual ou educativo mesmo. Refletindo sobre esse ponto de comunhão e comunicação, no qual autor e espectador co-habitam a obra em função de uma direção/orientação, abre-se a possibilidade para que o sensível/espaço possa ter um lugar assegurado no mundo da produção das artes visuais como irredutível ao conceito. A atividade criadora passa a ser pensada como um processo comunicativo, no qual espaço/sensível é uma orientação tão eficiente quanto a orientação conceitual. Somente assim, enfatizando esse momento ao mesmo tempo frágil e fugaz da criação, como momento de encontro de artista e espectador, é que se estará assegurado também ao sensível contemporâneo um lugar de destaque.

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