O silêncio como estratégia do inconsciente

August 6, 2017 | Autor: Clarice P. Paulon | Categoria: Discourse Analysis, Psychoanalysis, Languages and Linguistics
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Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 05 Nº 08 – v. 1– 2009 ISSN 1809-3264

1 Revista Querubim 2009 Ano 05 nº 08 – 177 p. vol. 1 (jun - 2009) Rio de Janeiro: Querubim, 2009 1. Linguagem 2. Ciencias Humanas 3. Ciencias Sociais – Periódicos. I - Titulo: Revista Querubim Digital Conselho Científico Alessio Surian (Universidade de Padova - Itália) Carlos Walter Porto-Gonçalves (UFF - Brasil) Darcília Simões (UERJ - Brasil) Evarina Deulofeu (Universidade de Havana - Cuba) Madalena Mendes (Universidade de Lisboa - Portugal) Vicente Manzano (Universidade de Sevila - Espanha) Virgínia Fontes (UFF - Brasil) Conselho Editorial Presidente e Editor Aroldo Magno de Oliveira Consultores Alice Akemi Yamasaki André Silva Martins Elanir França Carvalho Guilherme Wyllie Janaína Alexandra Capistrano da Costa Janete Silva dos Santos João Carlos de Carvalho José Carlos de Freitas Jussara Bittencourt de Sá Luiza Helena Oliveira da Silva Marcos Pinheiro Barreto Paolo Vittoria Ruth Luz dos Santos Silva Vanderlei Mendes de Oliveira Venício da Cunha Fernandes

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2 SUMÁRIO 1 Herdeiros do mundo antigo: a paidéia e a areté gregas hoje Ailton Pereira Morila e Regina Célia Mendes Senatore

3

2 Identidades fragmentadas em Bebel que a cidade comeu (2001) Aparecida de Castro Pordeus e Mariana Sbaraini Cordeiro

9

3 O silêncio como estratégia do inconsciente Clarice Pimentel Paulon e Leda Verdiani Tfouni

16

4 O estudo do narrador nas notícias sobre o mensalão Cynthia Mara Miranda

24

5 O Deus das mascaradas num concurso de cartas marcadas: uma leitura d’as rãs, de Aristófanes – Eliane Santana Dias Debus

32

6 A literatura infantil com temática africana e afro-brasileira: algumas reflexões - Elika da Silva

38

7 No cenário da escola (re) vemos a disciplina versus indisciplina escolar Ernesto Candeias Martins

46

8 Música nativista e imaginários gauchescos: sobre cantar opinando - Fernanda Marcon

56

9 Uma analise de gênero: o papel da mulher na sociedade da República Rio-grandense (1836-1845) e seus reflexos na educação de meninas Itamaragiba Chaves Xavier e Giana Lange do Amaral

65

10 Professor de língua portuguesa ou educomunicador? reflexões sobre a representação do professor de LM no século XXI - Keity Cassiana Seco Bruning

73

11 Representações da identidade nacional na antologia de ensaios intérpretes do Brasil: um enfoque discursivo - Luciana Cristina Ferreira Dias

82

12 Uma reflexão sobre a violência escolar - Mirian Teresa de Sá Leitão Martins

91

13 À margem em the bluest eye de Toni Morrison: negritude e testemunho Mirna Leisi Lopes

100

14 A teoria da estética da recepção e a arte cinematográfica - Monalisa Pivetta da Silva

108

15 Os gêneros do discurso e as práticas de linguagem em língua portuguesa Nívea Rohling da Silva

116

16 O ensino de história no curso técnico em farmácia: a problematização da medicalização como uma experiência de pesquisa e análise da sociedade Pâmella Passos Deusdará, Clara Dias e Gabriela Aguieiras

130

17 Análise de atividades de leitura e escrita em língua inglesa em contextos de ensino diferenciados - Pricila Gaffuri e Renilson José Menegassi

138

18 A fragmentação da identidade em Midnight’s Children, de Salman Rushdie Shirley de Souza Gomes Carreira

150

19 Cordialidade e nepotismo: uma investigação empírica - Thiago Abreu de Figueiredo

159

20 O funcionamento da memória discursiva em a second life petista Welisson Marques

168

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3 HERDEIROS DO MUNDO ANTIGO: A PAIDÉIA E A ARETÉ GREGAS HOJE Ailton Pereira Morila[1] Regina Celia Mendes Senatore[2] Resumo: A Paidéia é um conceito grego de significações diversas. Utilizamo-lo ainda hoje. Mas podemos mesmo pensar em Paidéia na atualidade? Ou em outras palavras: podemos nos considerar herdeiros desta tradição grega? Na busca de refletir sobre essa questão, o presente trabalho procura resgatar significados da Paidéia grega e sua intrínseca relação com o conceito de areté, e ainda algumas transformações que os mesmos sofreram ao longo da história, para retomarmos a pergunta, reformulada: qual é a areté que queremos? Palavras chave: Paidéia, areté, educação grega. Abstract: Paidéia is a ancien greek concept with diverse meanings. We still use it today. But we can exactly think about Paidéia in the present time? Or in other words: can we consider ourselves heirs from this greek tradition? In the search to reflect on this question, the present work looks for to rescue meanings of the Paidéia Greek and its intrinsic relation with the concept of areté, and still some transformations that the same ones had suffered throughout history, to retake the question, reformulated: which is areté that we want? Key-words: Paideia, areté, ancien greek education. O testamento, dizendo ao herdeiro o que será seu de direito, lega posses do passado para um futuro. Sem testamento, ou, resolvendo a metáfora, sem tradição – que se selecione e nomeie, que transmita e preserve, que indique onde se encontram os tesouros e qual o seu valor – parece não haver nenhuma continuidade consciente no tempo, e portanto, humanamente falando, nem passado nem futuro, mas tão-somente a sempiterna mudança do mundo e o ciclo biológico das criaturas que nele vivem.” Hanna Arendt (1972). Inicialmente Paidéia significa tão somente a educação de meninos. Com o tempo, entretanto a concepção de Paidéia vai se ampliando enormemente, agregando significados bastante diversos, ainda na civilização grega antiga. Ao longo da história ocidental, os pressupostos da Paidéia vão adquirindo ainda outros contornos, de acordo com cada contexto. E atualmente, podemos pensar em Paidéia? Podemos nos considerar herdeiros desta tradição grega? Antes de respondermos a estes questionamentos convém recuperarmos alguns dos fundamentos históricos e filosóficos da Paidéia grega. Da Areté à Paidéia Palas Atenas, a donzela de Zeus, em Diomedes infunde força e coragem sem par,

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4 para que entre os Argivos pudesse sobressair mais que todos e glória imortal conquistasse. Ilíada, canto V 1-3. Enquanto a mim, tenho orgulho de filho chamar-me de Hipóloco, que me mandou para Tróia sagrada, insistindo comigo para ter sempre o primeiro e de todos os mais distinguir-me, sem desonrar a linhagem dos nossos (...) Esse o meu sangue, essa a estirpe, que só de nomear me envaideço. Ilíada, Canto VI-206-211 Os trechos acima demonstram bastante bem um dos ideais gregos: a areté. Segundo Jaeger (2001, p. 23), areté é “o mais alto ideal cavalheiresco, unido a uma conduta seleta e palaciana”. Honra, valor, espírito de luta, sacrifício, sagacidade e capacidade são algumas das proposições da areté grega. E como a areté se manifestava? Menécio fala a Peleu: Em relação ás estirpes, meu filho, supera-te Aquiles; mas és mais velho do que ele. Em vigor ele muito te excede. Dá-lhe, portanto, conselhos prudentes, admoesta-o e o instrui, que, para o bem dele próprio, por ti há de ser conduzido.” (Ilíada, XI: 786-789) Se é pelos atos que Aquiles se sobressaia, Peleu o fazia pela palavra. Pelos atos ou pelas palavras, as mais efêmeras atitudes humanas, a areté se concretizaria. Mas a areté não era inicialmente transmissível. Era uma qualidade inata. Reservada a aristocracia, aos deuses e até mesmo aos cavalos de raça. Segundo Jaeger (2001, p.24) “o homem ordinário não tem areté”. A educação, inicialmente aristocrática, era o reforçamento da areté individual. O exercício da mesma. O objetivo maior desta educação era tornar o nobre um homem heróico[3], a quem: nunca falta o conselho inteligente e que encontra para cada ocasião a palavra adequada. Encontra sua honra em sua habilidade, com o talento de sua inteligência que, na luta pela vida e no retorno a sua casa, ante os inimigos mais poderosos e dos perigos que lhe acercaram, sai sempre triunfante. (JAEGER, 2001, p. 37) O nobre torna-se heróico por suas palavras ou por seus feitos. Pela manifestação da areté, portanto. E esta manifestação torna-o imortal. Seus feitos e palavras serão rememorados e se perpetuarão por gerações. Neste sentido, a areté individual torna-se um bem coletivo e mais ainda, fundante da própria concepção de história grega. Se o homem enquanto gênero é imortal como os deuses e a natureza, é mortal enquanto ser individual. Em sua luta pela sobrevivência o homem expõe sua própria mortalidade. Para sobreviver, o homem necessita seccionar a imortalidade da natureza. Cortar o vento para navegar, matar um animal para seu sustento. Assim mesmo ao tentar se perpetuar através de monumentos, como estátuas e edificações, o homem só está roubando da natureza (pedra, mármore...) a imortalidade. Um estratagema, que antes revela sua

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5 própria mortalidade. A imortalidade, portanto só advém das menos duradouras ações humanas em um paradoxo descrito por Arendt (1972). São as ações e feitos (práksis) e a fala (léksis) que tornam o homem individual em eterno. Sobre este sentido, Félix, preceptor de Aquiles relembra ao mesmo para que foi educado: “para ambas as coisas, para pronunciar palavras e para realizar ações”. (JAEGER, 2001, p. 26) O paradoxo se resolve de forma poética. A poíeseis, ou em outras palavras a “fabricação” da história. Esta (re)imortaliza o homem individual, o torna sempiterno, ao mesmo tempo em que possibilita a existência da história. Assim a areté individual torna-se história, imortalizando o agente, mas imortalizando também toda a sociedade. E é somente com Pitágoras que a areté se torna paidéia. Ao lado de bens não transmissíveis como força, beleza, saúde, e dos transmissíveis como cargo, propriedade em que o doador perde o que transmite, existe um bem que se transmite sem se perder: a educação. Esta interpretação “abre o caminho para a concepção da educação dos jovens como ‘fundamento’ da sociedade” como observou Manacorda (1996, p. 47) Assim com os sofistas a areté torna-se técnhe política, prática, portanto. Para Sócrates a virtude (inseparável do saber, da episteme) era a parte da areté transmissível, não como técnica, mas como dialogo gerador de conhecimento, como possibilidade de relembrar as Formas. Para Aristóteles o fim último da Paidéia é o bem moral e a felicidade. Não individual, mas coletiva, posto que a natureza humana seja a polis. Tornada Paidéia a própria areté se transforma. Para os sofistas a palavra sobrepuja a ação não como conselho, mas como retórica para o convencimento na Ágora. Para Sócrates e Platão o homem deveria deixar de lado as suas pretensões individuais de imortalidade, restringindo-se a imortalização da prole, e o filósofo se sobrelevaria o guerreiro. Na polis aristotélica, o homem “não é capaz de bastar-se a si mesmo e está [em relação à cidade] na mesma situação que uma parte em relação ao todo.” (ARISTÓTELES, 1965, Cap. II) A areté transforma-se, transformando também a Paidéia. A Paidéia adquire também contornos de educação integral, onde ginástica, arte, filosofia, ciências e moral são transmitidas aos jovens fundamentando a sociedade. Neste sentido, Paidéia é também herança que uma geração deixa a outra.

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6 A Paidéia na história É interessante perceber que o ideal de Paidéia deixou marcas na história. Com os humanistas, Paidéia é herança e educação integral. A herança grega deveria ser recuperada, imitada[4] e transmitida. Era também integral no sentido de entendimento profundo e extenso do mundo natural inclusive da religião. Da Vinci era pintor, escultor, anatomista, arquiteto. A Paidéia para ele era o entendimento do homem, “máximo instrumento da natureza”. Para Alberti tratava-se de conhecer as coisas humanas e divinas através das letras. (MANACORDA, 1996, p.183, 185) Para os iluministas Paidéia se multiplicava em significados. Rousseau reinventava o ideal das capacidades inatas em Emílio. Este areté natural transformava-se em Paidéia na praça, na execução do contrato social. Para Kant, a construção coletiva do homem moral era objetivo e natureza (no sentido aristotélico) da humanidade. A Paidéia tornar-se-ia maioridade. Mais recentemente, para Adorno, Paidéia é autodeterminação, autonomia. A Paidéia hoje Transcorridos muitos séculos da origem do termo, a Paidéia grega nos aparenta talvez como um eco distante. Nosso vocabulário não comporta mais um significado único e preciso. Jaeger (2001, p. 9) elucida: Este assunto é, na realidade, difícil de definir; como outros conceitos muito amplos (por exemplo, filosofia ou cultura), resiste a ser colocado numa fórmula abstrata. (...) É impossível se desviar do emprego de formulações modernas tais como civilização, cultura, tradição, literatura ou educação. Mas nenhuma delas coincide realmente com os que os gregos entendiam como paidéia. Cada um destes termos se reduz a expressar um aspecto daquele conceito geral, e para abarcar o campo do conjunto do conceito grego seria necessário empregar todos de uma vez. Apesar disto, o esforço pode ser salutar. A Paidéia como herança, passada de uma geração à outra pode ser o início desta apropriação do termo nos dias atuais. O “salto de tigre” em direção ao passado, a partir do presente, como bem observou Benjamin (1984), é mais do que oportuno. Buscar as raízes histórico-filosóficas da Paidéia grega é necessário para que nos incluamos como legítimos herdeiros. Mas tomemos outros sentidos. A extrema velocidade com que novos conteúdos vão sendo incorporados ao conhecimento, e a fragmentação e a especialização do saber nos remete a uma tentativa de retomar a educação integral. Ciência sem filosofia, história sem

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7 arte, língua e literatura sem homem. Interdisciplinaridade, transdisciplinaridade são tentativas, ainda que tímidas de retomar o homem como centro do conhecimento. Esta educação integral da Paidéia torna-se urgente se pensarmos no muro de Moore (SEVCENKO, 2001). O conhecimento humano vem crescendo exponencialmente. Algo em torno de 10 revoluções tecnológicas ocorreram desde 1975. Longe de ser uma apologia à invenção humana, o muro de Moore aponta para a catástrofe na gestão deste conhecimento. Em um mundo aonde a técnica vem suplantando mais e mais o homem, reificandoo, a Paidéia assume ares ainda mais graves. E talvez seja interessante recuperar a estreita ligação entre Paidéia e areté. A areté grega se apresenta como anacrônica e até mesmo insuportável. A glória e honra guerreiras são no mundo atual arremedos nacionalistas burgueses fatais. A palavra e os conselhos tornaram-se manuais de auto-ajuda ou discursos esvaziados no cenário político institucional. Mesmo as transformações no tempo dos princípios da Paidéia de areté parecem bem distantes ou inócuos. Qual seria a fonte da imitatio na atualidade? Como seria possível desenvolver uma areté “natural” nos moldes rousseaunianos? Qual é a praça do contrato social? Não se trata entretanto de fazer tábula rasa do passado. Adorno é um nosso contemporâneo, e os pressupostos de autodeterminação e autonomia não são ecos, mas gritos. A maioridade proposta por Kant é uma urgência. Os humanistas também tem suas contribuições. E mesmo antes, Platão e Aristóteles tem muito que ensinar, só para citar alguns. Mas afinal, qual a nossa areté, ou melhor, qual a areté que queremos deixar como Paidéia para as gerações vindouras? Solidariedade, razão comunicativa, participação política e social, igualdade, primado da responsabilidade? Ou nos atemos em seus opostos burgueses como individualismo, dogma, representatividade, hierarquia e ética do presentismo? Antes de nos debruçarmos sobre a Paidéia precisamos repensar, portanto esta areté. Só assim poderemos nos tornar herdeiros dela, como nos ensina Arendt (1972). HOMERO. Ilíada. São Paulo: Martin Claret, 2003. ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo, Perspectiva, 1972. BENJAMIN, W. Sobre o conceito de história. In: Magia e técnica, arte e política: ensaio sobre literatura e história da cultura. São Paulo, Brasiliense, 1984. KANT, E. Critica da Razão Pura e outros textos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1974. MANACORDA, M. A. Historia da educação: da antiguidade aos nossos dias. 12 ed. São Paulo:

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8 Cortez, 2006. SEVCENKO, N. A corrida para o século XXl: no loop da montanha-russa. São Paulo: Cia. Das Letras, 2001. JAEGER, W. Paideia: los ideales de la cultura griega. 15ª ed. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. ARISTÓTELES. Política. Rio de Janeiro: Edições de Ouro. 1965. [1] Bacharel em História, mestre e doutor em educação pela FEUSP. Docente do Centro Universitário Central Paulista – UNICEP. E-mail: [email protected] [2] Graduada em Pedagogia, mestre e doutora em educação pela FCLAR – Unesp. Docente da Unesp. E-mail: [email protected] [3] E não propriamente um herói, visto que herói era um semi-deus, ou seja, fruto de um relacionamento de um deus com um mortal. [4] Ressalta-se, como fez Sevcenko (1987) que o ideal de imitação (imitatio) não é mera repetição, mas inspiração.

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9 IDENTIDADES FRAGMENTADAS EM BEBEL QUE A CIDADE COMEU (2001) Aparecida de Castro Pordeus

(Graduanda em Letras/UNICENTRO-Grarapuava - PR)

Mariana Sbaraini Cordeiro

(Mestre em Letras – Docente do Dep. de Letras/UNICENTRO)

Resumo: Em virtude da mudança estrutural por que passou a sociedade moderna no final do século XX: divisão da cultura de classes, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que forneciam sólidas localizações do indivíduo na vida social, verificamos uma mudança nas identidades pessoais, com o abalo da idéia de sujeitos integrados, originando, assim, o sujeito pós-moderno. Pesquisando a presença deste sujeito na narrativa Bebel que a cidade comeu, de Loyola Brandão, na personagem Bebel, confirmamos que a sociedade, assim como a personagem ficcional, encontra-se achatada pela indecisão e falta de perspectivas de vida, debatendo-se em busca do sonho e do amor. Palavras-chaves: sujeito pós-moderno; Bebel que a cidade comeu, identidades. Abstract: Due to the structural change wich the modern society has gone through at the end of XX century: division of culture classes, gender, sexuality, ethnicity, race and nationality, that provided person solid location in the life society, we checked a change the personal identities wich the shock of the integrated subjects ideas, so the pos modern subject. Searching the presence of this subject in the narrative " Bebel que a cidade comeu" by Loyola Brandão in the character "Bebel", we confirmed that the society as well as the fictional character is found flatted by indecision and the lack life prospects, pursuing his dream and love. Keywords: pos modern subject, Bebel que a cidade comeu, identities. 1 – Introdução Assunto complexo, em virtude da crença ou não de sua ruptura com a modernidade, o conceito de identidade do ser humano apresenta diversas transformações ao longo da história. Em vista da discussão sobre tal questão e a colocação de que ela está em declínio, vemos o surgimento de novas identidades e a fragmentação do indivíduo moderno. Esse colapso se dá em virtude da mudança estrutural por que passou a sociedade moderna no final do século XX: estilhaçamento da cultura de classes, gênero, sexualidade, etnia e nacionalidade, que, no passado, forneciam sólidas localizações do indivíduo na vida social. Com isto verifica-se uma mudança nas identidades pessoais, com o abalo da idéia de sujeitos integrados, ocorrendo, dessa maneira, um deslocamento do sujeito de seu lugar no mundo social e cultural e também de si mesmo. A isso nomeamos crise de identidade (HALL, 2006, p. 8-9). Ao empreendermos os estudos relacionados à personagem Bebel da narrativa Bebel que a cidade comeu, podemos perceber que sua identidade apresenta fragmentações ou como

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10 nos diz Hall (2006, p. 9), deslocamentos. Isto também ocorre na sociedade moderna. Nas ruas também encontramos inúmeras identidades fragmentadas, buscando encontrar saídas para seus problemas. Assim como apreciamos na personagem ficcional sofrimentos advindos de contradições, a pessoa humana, no momento atual, encontra-se num imenso labirinto, longe de conseguir alicerçar sua vida em superfícies bem estruturadas. Antes, porém, de apresentarmos a narrativa de Loyola Brandão, traçaremos um pequeno percurso sobre o sujeito pós-moderno, seguiremos para colocações sobre a ruptura interposta ao romance tradicional pelo romance moderno e, por fim, exporemos a identidade pós-moderna observada na narrativa em questão. 2 – Sujeito pós-moderno Ao falarmos sobre fragmentação do sujeito, concebemos um assunto complexo. Buscando esclarecimentos quanto à questão da identidade do ser humano, valemo-nos de Hall (2006) e nos deparamos com as transformações sofridas por ela ao longo da história. Primeiramente o autor nos apresenta as três concepções de identidade: o sujeito do iluminismo “cujo ‘centro’ consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia”; o sociológico, em que o indivíduo interagia com o meio; e, por último o pós-moderno, em que a identidade apresenta-se como algo móvel, moldado e transformado conforme os sistemas culturais que nos rodeiam (HALL, 2006, p. 10-3). O sujeito pós-moderno, foco de nosso interesse, ressalta-se pela percepção de que as identidades modernas estão sendo fragmentadas. Dessa forma, surge a argumentação de que elas encontram-se não somente desagregadas, mas deslocadas. Esse deslocamento seria descrito em “uma série de rupturas nos discursos do conhecimento moderno” (HALL, 2006, p. 34). Portanto, em virtude de não possuir uma identidade fixa, a pós-modernidade apresenta o indivíduo assumindo [...] identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. [...] Somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente (HALL, 2006, p. 13).

Dentro deste contexto, a literatura pós-moderna volta-se para narrativas que exprimem a ruptura com o romance tradicional, bem como a fragmentação do sujeito e do espaço em que ele está inserido. É o caso de Bebel que a cidade comeu, a qual passaremos, de agora em diante, a dar maior ênfase.

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11 3 – O romance pós-moderno em Bebel que a cidade comeu Tomando por base os estudos de Rosenfeld (1996) verificamos reflexões acerca do romance moderno. Fazendo um contraponto com a pintura moderna, o autor observa a “desrealização” operada nesta arte, vista nos movimentos que procuram negar a realidade. Assim como o retrato fragmenta a noção de perspectiva espacial e apresenta-se deformado, uma vez que tal pintura “é expressão de um sentimento de vida ou de uma atitude espiritual que renegam ou pelo menos põem em dúvida a ‘visão’ do mundo’” (ROSENFELD, 1996, p. 79), verificamos este fenômeno também no romance. Como nas telas, o romance utilizou ‘“técnicas’ que acabaram por resultar numa verdadeira desmontagem da pessoa humana e do ‘retrato’ individual” (ROSENFELD, 1996, p. 86). Portanto, servindo-nos da narrativa Bebel que a cidade comeu (2001), de Ignácio de Loyola Brandão, verificaremos algumas modificações ocorridas no romance, procurando enfatizar a ruptura ocorrida com o tempo cronológico e com o narrador. Se por um lado o romance tradicional apresenta a linearidade cronológica da história, por outro o romance pós-modernista exibe uma radicalização no modo de narrar, uma vez que a continuidade do tempo foi abalada. Em cada personagem, presenciamos que a “consciência é uma totalidade que engloba, como atualidade presente, o passado e, além disso, o futuro, como um horizonte de possibilidades e expectativas” (ROSENFELD, 1996, p. 82). Outra questão é que o autor moderno procura, por vezes, omitir o narrador, e este, submergindo na inconsciência da personagem, faz com que o fluxo psíquico o substitua e, consequentemente, a ordem lógica do romance clássico. As situações são mescladas no enredo, sem que tenham um “início, meio e fim” (ROSENFELD, 1996, p. 84), e a abolição do tempo cronológico possibilita a fidelidade do acontecimento. Assim sendo, Loyola Brandão (2001) cria uma estrutura que realça a inserção do passado ao presente e mesmo ao futuro “no monólogo interior da personagem que se debate na sua desesperada angústia, vivendo o tempo do pesadelo” (ROSENFELD, 1996, p. 83). Através desta técnica, as angústias das personagens nos são reveladas. Notamos isto quando Bernardo, junto de Bebel, distancia-se e seu inconsciente rompe na narração, deixando de ser narrado como “ele” e passando “a manifestar-se na sua atualidade imediata, em pleno ato presente, como um EU que ocupa totalmente a tela imaginária do romance” (ROSENFELD, 1996, p. 84, grifo do autor): Você fala e fala, Bebel. Hoje te deu um acesso de papagaio. Não te ouço. Não ouço ninguém. A não ser eu mesmo. Estou o tempo todo pensando em mim. O que posso fazer? Não aprendi a sair de dentro. Sou o resumo de duas coisas: eu e meu livro. Penso nele, durmo com ele. Se preciso, me sacrifico por ele. Tenho que ser alguma coisa. E só através dos livros.

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12 Não sei fazer mais nada. Nem tenho capacidade para ganhar dinheiro. Se te contasse estas coisas, Bebel, ia ser melhor para mim. Saía de dentro (BRANDÃO, 2001, p. 225-6)[1].

Outro assunto interessante que também diz respeito ao narrador pós-moderno encontramos em Santiago (2002), em um ensaio onde ele questiona se quem narra a história “é quem a experimenta, ou quem a vê?” (p. 44). No caso do romance estudado, constatamos que “o narrador pós-moderno é aquele que quer extrair a si da ação narrada, em atitude semelhante à de um repórter ou de um espectador. Ele narra a ação enquanto espetáculo a que assiste” (p. 45). Dessa forma, percebemos o rechaço e distanciamento do narrador clássico, uma vez que no mundo atual a falta de diálogo torna difícil a troca de experiências vividas e as pessoas não conseguem mais “narrar o que experimentaram na própria pele” (p. 45). Em Bebel que a cidade comeu percebemos um narrador que se comporta basicamente interessado no outro e se firma pelo olhar que lança ao seu redor, percebendo, assim, os seres, fatos e incidentes. Sua intenção é levar a personagem a falar de seus anseios, porém, “ao dar a fala ao outro, acaba também por dar fala a si, só que de maneira indireta. A fala própria do narrador que se quer repórter é a fala por interposta pessoa” (SANTIAGO, 2002, p. 50). Além destes apontamentos, Franco (1998), em seu artigo O romance de resistência nos anos 70, comentando sobre Bebel que a cidade comeu, evidencia a estreita relação entre literatura e jornalismo, quando da incorporação de manchetes e notícias de jornais ou da televisão em sua estrutura, assim como panfletos políticos, frases de publicidades, e outras mais. Assim, percebemos que a narrativa, fazendo uso desta inovação, promove, realmente, uma renovação no romance. Após termos verificados alguns pontos estruturais do romance moderno, passaremos a apontar a existência do sujeito pós-modernos no romance de Loyola Brandão, na personagem Bebel. 4 – Bebel: um exemplo de sujeito pós-moderno a.) O início Sabemos que a descoberta do inconsciente por Freud é considerada uma das contribuições para a transformação do pensamento moderno e, dessa maneira, associamos que a personagem Bebel, ainda criança e envolta em um ambiente familiar desestruturado, depara-se com o pensamento que molda sua identidade, uma vez que [...] a imagem do eu como inteiro e unificado é algo que a criança aprende apenas gradualmente, parcialmente, e com grande dificuldade. Ela não se desenvolve naturalmente a partir do interior do núcleo do ser da criança,

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13 mas é formada em relação com os outros; especialmente nas complexas negociações psíquicas inconscientes, na primeira infância, entre a criança e as poderosas fantasias que ela tem de suas figuras paternas e maternas (HALL, 2006, p. 37, grifo do autor).

Dessa maneira Bebel, morena bonita, quer ser famosa. Inserida na sociedade dos anos 60, a personagem encontra-se no início da revolução sexual, que inseriu a mulher no mercado de trabalho e ao sexo livre e também do movimento feminista que, em busca de defesa da cidadania, promoveu um deslocamento radical de perspectiva que contestou “a família, a sexualidade, [...] expandiu-se para incluir a formação das identidades sexuais e de gênero [...] questionou a noção de que os homens e as mulheres eram parte da mesma identidade, a ‘Humanidade’, substituindo-a pela questão da diferença sexual” (HALL, 2006, p. 46-6, grifo do autor). Assim, Bebel ciente de que é dona de suas ações, faz uso do que possui. Como tem, nas palavras de Marcelo, “um corpo que vou te contar” (p. 142), usa-o como moeda para conseguir seus objetivos, seja diante de um simples fotógrafo ou de alguém que lhe possibilite maiores ostentações, como um diretor de TV que, acredita, pode levá-la ao estrelato: “- No programa de hoje, entro na primeira fila. O diretor de TV mete um plano atrás do outro de mim.[...] Na semana que vem, pego programa melhor, em horário nobre” ( p. 40). Sucesso? Segundo Hollanda (1994, p. 14), nas décadas de 60 e 70 várias questões referentes à identidade abriram espaços para a mulher, seja na imprensa, no cinema, etc. Neste contexto encontramos Bebel que, ascendendo através do corpo, assume a identidade de estrela da TV, tornando-se poderosa. Dessa maneira podemos pensar nas relações de gênero, pois, segundo Flax (1992), há dois tipos de pessoas - homem / mulher - e que “as relações de gênero têm sido (mais) definidas e (precariamente) controladas por um de seus aspectos inter-relacionados – o homem” (1992, p. 228). O poder que Bebel aparenta ter possibilita-lhe um confronto entre dominada X dominadora. Se por momentos Bebel sente-se usada, por outros sente a inversão de papéis e tem a sensação de alcançar um endeusamento, dominando todos ao seu redor. Tanto que quanto à liberdade sexual que usufrui, desabafa: “uma mulher não pode ter desejo. Só os homens. Uma mulher não pode querer dormir com quem ela quiser. É isso que eu faço. Se tenho vontade de um cara, vou com ele” (p. 223). Concebida como personagem dentro da pós-modernidade, Bebel sofre com o deslocamento de sua identidade pessoal, o que constitui uma “crise de identidade” (HALL, 2006, p. 9). Sua instabilidade é evidente no momento em que não se prende a homem algum e ao se deixar manipular como se fosse um simples objeto. Neste confronto falta a referencialidade e ela lamenta “Como é terrível não saber nada de uma pessoa, passar dois anos ao lado dela e não conhecer absolutamente nada, acostumar-se e não se importar” (p.

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14 167). Mesmo no momento de optar pela segurança junto de Marcelo ou pela continuação de seus sonhos, acaba por esquivar-se do amor, na desculpa de que gosta “que fiquem em volta de mim.[...] Vivo no meio de um círculo e é quentinho onde estou. Eles [...] fazem tudo que eu quero. [...] Não posso ficar isolada pelo amor de um homem só”(p.72). Assim, neste círculo em que se defronta com várias identidades, conhece Bernardo e distancia-se de Marcelo. No plano afetivo Bebel sempre se mostrou decepcionada, contraditória. Compreende que, com relação ao amor, carrega o esvaziamento, o questionamento sobre o sentido da vida. Conclui que “a vida inteira pensei num homem só. Meu.” E que “agora não há mais remédio” (p. 219). A máscara de Bebel cai quando ela se depara com um casal e confidencia a Bernardo, num misto de inveja e insatisfação: O homem era mais velho, gordo, barbudo e mal arranjado e a mulher usava uns óculos com esparadrapo, meias grossas de varizes e tinha o nariz comprido. Eles estavam abraçados e sorriam. Os rostos bem juntos. E não havia nada no mundo. Nada em torno deles. [...] Eles se amavam e eram bonitos. Tudo feio em volta. [...] Mas eles eram lindos. Por causa daquele olhar de amor. Eu queria uma vez só na vida um olhar assim. Não precisava mais. Só uma, num dia, numa hora, num minuto. Depois eu carregaria aquilo por dentro de mim a vida toda (p. 279-80).

Do seu relacionamento com Marcelo e Bernardo nada resta. Em sua inconstância Bebel procura algo novo. Assim, o relacionamento homossexual com Dina se apresenta como uma fuga da realidade, uma vez que “Dina é diferente. É seca e me trata secamente. Não é melosa, não faz carinho bobo, não diz essas coisas que homem vive dizendo quando quer cantar a gente” (p. 317). Da mesma forma, compartilham o mesmo pensamento, pois, com relação ao seu trabalho, Dina faz “tudo que tiver de fazer. O que interessa, Bebel, [...] é minha pintura. [...] Então por que não vou me servir do corpo para uma utilidade que está relacionada com o que faço?” (p. 210). Isso atrai Bebel. Porém, a conclusão a que chegamos é que tanto uma como a outra vivem num mundo em que nada é certo; não sabem o que querem da vida. Estão fragmentadas diante da desrealização do referencial. A queda O tempo passa e Bebel encontra-se deprimida, ciente de que seu fracasso como estrela de TV está em vias de se concretizar, “Ela começava a ser bagaço e dentro de pouco tudo estaria terminado” (p. 201). Assim, conforme o olhar de Bernardo, ela vai decaindo fisicamente cada vez mais, no “rosto um pouco balofo [...] os olhos não eram mais claros, enormes, brilhantes” (p. 250); “será que [Bebel] consegue ver o próprio rosto? A papada que está nascendo? As duas rugas debaixo dos olhos? Será que ela quer se ver de verdade?” (p. 252); “Bebel estava gorda. Mais alguns anos e se tornaria uma senhora (p. 389) [...] os seios de Bebel estão caídos. Em dez anos será uma bela lavadeira” (p. 390).

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15 O mundo não perdoa e o público exige sempre novos ídolos, por isso Bebel, no final do romance está acuada diante da realidade hostil que a cerca, vencida e sentenciada a viver distante de seus sonhos, contradizendo tudo o que a sua fantasia criou, passando a ser objeto possuído e identificada como um ser excluído da sociedade. Comprovamos que o romance nos coloca a par da efemeridade do corpo, constatada pela morte da beleza da personagem. Como ela mesma admite, “Foi pouco, minha mãe, como durou pouco! Nem dois anos! O que houve, de repente?” (p. 255). Em sua condição de sujeito construindo sua história, Bebel encontrou-se diante das mudanças ocorridas na sociedade moderna, as quais abalaram profundamente as referências dos indivíduos. Em virtude disto, a deteriorização de sua identidade, simbolizada pela sua permissividade sexual, custou-lhe sua significação como ser humano. Bebel sonhou... Ficou sem Bernardo... Ficou sem Marcelo... Ficou sem Dina... Comparada a um avião que procura subir ao ponto mais alto, Bebel varou “o teto em busca do céu e se despedaçara no caminho” (p. 74). Considerações finais Ao empreendermos os estudos relacionados à personagem Bebel percebemos que sua identidade apresenta fragmentações ou, como nos diz Hall (2006, p. 9), deslocamentos. Na sociedade moderna, assim como na narrativa estudada, também encontramos inúmeras identidades fragmentadas, buscando encontrar saídas para seus problemas. Assim como apreciamos na personagem ficcional sofrimentos advindos de contradições, a pessoa humana, no momento atual, encontra-se num imenso labirinto, longe de conseguir alicerçar-se em superfícies bem estruturadas, achatada pela indecisão e falta de perspectivas de vida. Ela debate-se em busca do sonho e do amor, mas a violência percebida em tudo o que a rodeia dá oportunidades aos fortes e suga tudo o que pode dos fracos. Esta é a dura realidade da pós - modernidade. Referências Bibliográficas

BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Bebel que a cidade comeu. 6. ed. São Paulo: Global, 2001. FLAX, Jane. Pós-modernismo e relações de gênero na teoria feminista. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1992, p. 217-50. FRANCO, Renato. O romance de resistência nos anos 70. Disponível em: http:// . Acesso em 04 ago. 2008, 15:31:10. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 11 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org). Introdução: feminismo em tempos pós-modernos. In: ______. Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 7-19. ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: ______. Texto/contexto. São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 75-97. SANTIAGO, Silviano. O narrador pós-moderno. In: ______. Nas malhas da letra: ensaios. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. p. 44-60. [1] Todas as vezes que nos referirmos à obra Bebel que a cidade comeu, usaremos somente o número das páginas, de agora em diante.

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16 O SILÊNCIO COMO ESTRATÉGIA DO INCONSCIENTE Clarice Pimentel Paulon

Graduanda em Psicologia Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto Bolsa de Pesquisa: CNPq/ PIBIC

Leda Verdiani Tfouni

Professora titular e livre-docente Universidade de São Paulo – Ribeirão Preto Pesquisadora do CNPq

RESUMO: A questão do silêncio é um desafio para as ciências não positivistas. Apresentamos aqui um estudo que tratará desse tópico procurando relacionar a tipologia do silêncio proposta por Orlandi (1992) e uma ocorrência especial de silêncio estudada por Freud (1987). Apostamos que há diversas etapas percorridas por Freud durante seu esquecimento, e apresentamos as três versões nas quais o autor tenta explicá-lo. Interpretamos esse percurso em termos dos três tipos propostos por Orlandi. Assim, além de trazer uma contribuição para que se compreenda melhor a questão do silêncio, efetuamos uma conexão possível entre a Análise do Discurso e a Psicanálise. Palavras-chave: silêncio, inconsciente, Análise do Discurso, Psicanálise. ABSTRACT: The question of silence is a challenge for the non-positivist sciences. Here we introduce a study that is trying to relate Orlandi's tipology of silence (1992) to an especial case of silence studied by Freud (1987). We bet that there are various stages covered by Freud during his forgetting, and we introduce here the author´s three versions, wherein he tries to explain the fact. We interpret this trajectory in terms of the three types exposed by Orlandi. In this way, besides contributing to better understand the question of silence, we also stablish a possible connection between Discourse Analysis and Psychoanalyzis. Key - Words: silence, unconscious, Discourse Analysis, Psychoanalyzis. Introdução Neste ensaio, pretendemos topicalizar o silêncio e estudá-lo sob a forma de estratégia do inconsciente, estratégia essa que se prestaria a ocultar/mascarar conteúdos inconscientes indesejáveis, que o sujeito não quer (não pode) dar a conhecer aos outros. Serão apresentadas algumas abordagens sobre o silêncio, mais especificamente a da Análise do Discurso pêcheutiana (AD) e a Psicanálise de Freud e Lacan. Nessas duas abordagens, o silêncio não é visto como um resíduo de linguagem e sim como um continuum significante (Orlandi, 1992). O silêncio é premissa fundamental para que seja dito algo, já que é nele que o múltiplo não-discretizado é encontrado; que o vir-a-sersentido está presente. A partir dessa ampla gama de significações e significados contidos no

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17 silêncio pode-se inferir que ele possui caráter opaco, já que toda a interpretação dele advinda é indireta, podendo-se dizer que os sentidos nele existentes passam por uma espécie de refração para que cheguem a ser materializados linguisticamente. Pensar o silêncio dessa forma é como se lembrar de uma experiência vivida. Ao rememorarmos algo, uma série de sentimentos e significações vêm à tona juntamente com a cena lembrada. A tonalidade que damos ao momento revivido na memória é única e é impossível passar isso para a linguagem verbal sem que se perca algo. É como se, ao tentar simbolizar o que sentimos, alguma coisa fique para trás, perdida na cadeia de significantes. Ao “escolher” as palavras que materializem lingüisticamente os sentimentos (e essa escolha não é totalmente consciente), deixamos de utilizar outras que dariam um sentido diferente ao nosso discurso. Este fato está em concordância com a proposta de Pêcheux sobre os dois esquecimentos, que ele atrela à primeira tópica de Freud (Consciente, Inconsciente, Subconsciente). Para o autor, o esquecimento nº 1 seria da ordem do inconsciente, não podendo ser acessível diretamente ao sujeito. Ele opera fazendo o sujeito pensar que é a origem de seu dizer: que o sentido das palavras, expressões, etc., que ele pensa escolher livremente, “brotam” de sua vontade de dizer. No entanto, é a ideologia que domina esse esquecimento, como um mecanismo que faz parecer natural que se diga de um jeito (x), e não de outro (y), produzindo um processo de naturalização de sentidos, que traz à tona enunciativa, somente aquelas expressões permitidas pela ideologia dominante. As demais ficam apagadas, mas não são silenciadas completamente, podendo eventualmente se manifestar lingüisticamente em determinados contextos. Há, assim, no discurso, estratégias de silenciamento de conteúdos indesejáveis porque podem representar perigo tanto para a ordem social vigente, quanto para o equilíbrio do sujeito. Existe um outro tipo de esquecimento, o nº 2, criado por Pêcheux para dar conta da possibilidade de reformularmos o que dizemos, utilizando outras palavras, ou então corrigirmos um enunciado potencialmente ambíguo. Isto pode ocorrer, como estratégia do sujeito, porque há, ao lado do dizer, uma série de paráfrases com as outras formas pelas quais aquele mesmo conteúdo poderia ter sido dito. Assim, o sujeito tem a ilusão da materialidade de seu pensamento. Por ser de natureza lingüística, o esquecimento nº 2 é semi-consciente, e pode estar acessível ao sujeito sob certas condições. Essas colocações entram, via de regra, em consonância com a máxima da AD: sempre que se diz x, deixa-se de dizer y. A tipologia do silêncio Orlandi (1992) propõe uma tipologia do silêncio a partir da perspectiva acima proposta: o fundador, o constitutivo e o local. O silêncio fundador é aquele onde todos os sentidos, possíveis e impossíveis, se

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18 colocam; é onde o devir se impõe. Nele não há sentidos discretizados. Podemos comparálo ao real lacaniano (2003), já que em ambos encontra-se um impossível. O impossível é o não simbolizável, é todo aquele sentido que não cabe no simbólico e faz com que, devido a isso, exista uma falta permanente no discurso, conforme a máxima lacaniana Não é possível dizer tudo. O contingente (outra face do real lacaniano) relaciona-se, a nosso ver, ao silêncio constitutivo: é um evento que ocorre em detrimento de outros fatores; que se concretizou de alguma forma e não pode mais ser mudado. Milner (1995) exemplifica com o lançar dos dados: antes que estes cheguem à superfície, tudo é possível, mas, a partir do momento em que eles param não há mais como mudar os números que ficaram na face de cima. Deste modo, uma vez produzido um enunciado, é impossível desfazê-lo, voltar atrás a um ponto onde nada havia sido dito. No entanto, ao dizer, outras formas possíveis são abandonadas, mas não cessam de inscrever-se, pela ausência, naquilo que foi enunciado. Assim é que podemos dizer sobre o silêncio constitutivo que ele se manifesta contingencialmente na forma de algo que foi recalcado pelo sujeito, mas mesmo assim está lá, produzindo efeitos. Pode-se inferir, deste modo, que as palavras são carregadas de silêncio, pois, ao dizê-las em determinado contexto, outros sentidos calam-se necessariamente. É possível aplicar a regra sempre que se diz x, deixa-se de dizer y para explicar o silêncio constitutivo porque inúmeros sentidos são calados ao discretizar nosso pensamento em forma de palavras. Isso mostra que o silêncio não pode ser tratado apenas como o que é implícito ou ambíguo. Acreditar nisso seria pensar no discurso priorizando o que foi dito e nem sempre aquilo que foi dito constitui todo o dizer. A mudança de sentidos pela qual passam os discursos no decorrer de épocas e até mesmo de contextos mostra a importância do silêncio constitutivo e como ele age, alterando os sentidos do discurso no decorrer do tempo. O silêncio local implica a interdição histórica do sujeito de movimentar-se por determinadas formações discursivas. Para a Análise do Discurso essa interdição se dá através da censura política imposta pela classe dominante, que controla o movimento de circulação dos discursos no social. Como essa forma de silêncio é imposta através de leis, regras ou simplesmente proibições locais, ela é acessível ao sujeito, que muitas vezes consegue burlá-lo. Impedido pela censura de dizer naquele lugar, o sujeito se desloca (metáfora) para uma outra formação discursiva, onde é possível dizer. Pode-se dizer, a partir da tipologia do silêncio acima mostrada que ele, em todas as suas formas, trabalha os limites das formações discursivas, permitindo a movimentação do sujeito pelos diferentes discursos, afetando assim, a sua subjetividade e todo o seu dizer. É no silêncio que podemos observar a subjetividade inerente ao discurso, vendo os sentidos que o sujeito produziu efetivamente, e quais ele decidiu “apagar”. Dessa forma, podemos ter uma concepção de sujeito mais ampla, que se dá a partir da inserção do dito no nãodito; uma concepção menos restrita à literalidade.

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19 O silêncio em Psicanálise A partir da psicanálise, podemos pensar em diversas formas de silêncio também ligadas ao discurso e utilizadas como estratégia do inconsciente. Nasio (1989) faz uma primeira distinção colocando ao leitor duas formas diferentes de silêncio: sileo e taceo (p.8) Essa categorização é retomada por Hernandez (2004). A autora faz uma breve explanação das diversas concepções do silêncio já colocadas a partir da Psicanálise, da Análise do Discurso e de algumas vertentes filosóficas. Uma das polarizações analisadas pela autora é justamente a de sileo e taceo[1] explorada por Lacan em seu seminário “A lógica do Fantasma” (1967/s.d.). Silere (silenciar) é o silêncio inerente às pulsões, denominado por Nasio (1989) de silêncio estrutural. Pode-se dizer que as pulsões agem silenciosamente em nosso inconsciente, já que elas não são atravessadas pelo simbólico (e, portanto também não o são pela linguagem). Nas pulsões e no inconsciente o sentido é. Ainda segundo Hernandez, sileo seria o silêncio sugestivo da ausência essencial da palavra, do buraco da significação (2004: 130). Deste modo é possível compará-lo ao silêncio fundador descrito por Eni Orlandi já que o inconsciente pode ser visto como matéria significante por excelência, sendo um continuum de significações que não conseguimos apreender em sua totalidade. Taceo (calar-se) é descrito por Nasio como o silêncio da palavra não dita. Ou seja, é aquilo que poderia ser dito, mas não foi enunciado, e que, em geral, provoca um deslocamento do sujeito para outro lugar discursivo, que lhe permite significar aqueles sentidos proibidos. Hernandez (op. cit.), citando Clarice Lispector (1998), chama-o de “pequeno-silêncio”, termo utilizado pela escritora para falar sobre os breves, porém únicos a serem suportáveis à mente humana, contatos com os nossos “si-mesmos”. Lacan, no seminário anteriormente citado (1967), faz uma diferenciação que torna mais claro o “pequeno-silêncio” proposto por Clarice Lispector, e o maior, que a escritora coloca como insuportável: (...) sileo não é taceo. O ato de calar-se não libera o sujeito da linguagem, apesar de que a essência do sujeito culmine nesse ato. (Lacan, 1967/ sd). Em taceo retomamos um conceito importante da teoria psicanalítica: o recalque. Ao calar pensamentos que pareçam inapropriados a determinado contexto ou que pareçam estranhos a nós mesmos, banimo-los de nossa consciência. No entanto, esse pensamento retorna, não de um modo dizível, mas através de um sintoma. Freud estuda como esse silêncio opera em um livro célebre (1987), em um texto que ficou conhecido por “O esquecimento de Signorelli”.Este tópico será abordado mais adiante. Taceo seria, portanto, uma estratégia do inconsciente para impedir que o sujeito circule por certos significados não desejados, ou recalcados. Por não poder circular por aquela zona de sentidos indesejáveis o sujeito se cala, ou “se esquece” do que iria dizer. Podemos considerá-lo dentro da clínica psicanalítica como um mecanismo de defesa, denominado por Freud de “ato falho”.

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20 Uma metáfora muito interessante para exemplificar o que acontece no mecanismo de recalque é utilizada por Theodor Reik (1926; p.18): No Pacífico, perto da ilha de Vancouver, encontra-se um lugar curioso chamado Zona de Silêncio. Foram muitos os navios que se esmagaram contra os rochedos nesse lugar e agora repousam no fundo do mar. Nenhuma sirene é possante o suficiente para avisar os capitães. Nenhum ruído exterior penetra esta zona de silêncio, que se estende por muitas milhas. Neste setor, os ruídos do mundo exterior não alcançam mais o navio. Pode-se comparar o que chamamos de material recalcado a esta “zona de silêncio”. A psicanálise efetuou a primeira penetração neste domínio. Quando o paciente fala de si mesmo, os primeiros sons distantes, apenas perceptíveis alcançam a zona de silêncio. Podemos fazer uma analogia entre o recalque e o processo dos sonhos. Nestes, desejos inconscientes aparecem a partir de outra simbologia, adentrando na memória consciente. Do ponto de vista da AD, podemos entender esse silêncio do recalque, ou taceo, como uma aplicação da regra proposta por Pêcheux (1988): Sempre que se diz x, deixa-se de dizer y. Ou seja: para poder falar de si mesmo (inconsciente), o sujeito precisa operar deslocamentos; entrar em uma outra formação discursiva[2] onde os significantes mobilizados, através de um processo metaforonímico, caminham, na cadeia manifesta, para um lugar de sentido que aloca o sujeito em uma posição onde é lícito falar de seus conteúdos recalcados. A partir dessa breve explanação do silêncio, é possível ver que ele é uma forma diferente da verbal de significar. Segundo Tfouni (1998, p.102) O silêncio, assim como o inconsciente, possui uma opacidade enigmática, que não pode ser controlada nem totalmente discretizada através das palavras. Ao mesmo tempo em que o homem teme o silêncio devido ao enigma que este apresenta, também o utiliza para calar no outro, sentidos que não interessam. Ao longo da história psicanalítica se falou muito sobre o silêncio. Lacan (1985; in TFOUNI, 1998) coloca que antes da entrada no simbólico há a completude, onde nada precisa ser dito, já que o bebê é tomado como objeto de desejo da mãe e por isso sente-se completo. A partir da instauração da metáfora paterna e do ingresso no simbólico, algo se perde para sempre, o que determina a linguagem e a incompletude (tanto no sentido de silere quanto no de tacere). Um caso exemplar: o esquecimento de Freud Nesta seção, pretendemos apresentar um famoso caso de esquecimento, relatado por Freud (1987).O autor denomina esse evento de “Esquecimento de Signorelli”, mas veremos que há muito mais além do esquecimento do nome próprio nesse caso. Aparentemente, este fato se colocava como enigma também para o autor, pois existem três versões do evento escritas por ele em momentos diferentes. Segue-se uma síntese desse caso de esquecimento: Utilizando um exemplo pessoal, Freud disserta sobre um caso de esquecimento de nomes próprios. Ao fazer uma viagem de trem e conversando com um estranho, Freud pergunta a este se conhece os afrescos da Igreja de Orvieto (Itália) denominado “Quatro últimas coisas” (Morte; Juízo; Inferno; Céu), e, por uma ilusão da memória, esquece-se do

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21 nome do pintor do afresco (Signorelli), lembrando-se de nomes substitutos (Botticelli e Boltraffio) tidos de antemão como errados. Quando lembrado pelo estranho do nome correto (Signorelli), Freud rapidamente assimila-o como o nome certo, antes esquecido. Posteriormente, Freud não lembra de nada significativo que possa tê-lo feito esquecer o nome do pintor. Então, retrocedendo aos assuntos anteriores, lembra que ele e o estranho haviam conversado sobre os turcos que moravam na Bósnia e Herzegovina e sobre seus costumes, como a sua extrema credibilidade para com médicos e sua resignação perante a morte. Freud recorda-se, ainda, durante essa conversa, apenas mentalmente, de uma anedota sobre turcos: a contradição que eles vivem entre a resignação perante a morte e a extrema valorização do gozo sexual. Freud chega a lembrar de um médico colega seu que lhe contou certa vez sobre o que um turco lhe disse: “Herr (senhor), quando isso acaba (o gozo sexual), a vida não tem nenhum valor”. Freud recalca esse conteúdo, pois achou que não eram coisas a se comentar com um estranho. Ele lembrou-se também que, quando estava em Trafoi, recebeu a notícia do suicídio de um paciente, devido a distúrbios sexuais, e.ao qual havia se dedicado muito. A partir dessa cadeia associativa refeita conscientemente, através da perlaboração, Freud conseguiu fazer a ligação do esquecimento do nome Signorelli com o surgimento dos nomes substitutos (Boticelli e Boltraffio), através da ocorrência de pistas lingüísticodiscursivas (nomeadas por Lacan ([1957-58], 1999) de metáforas e metonímias), e conclui que o esquecimento do nome foi devido a uma estratégia do inconsciente usada para barrar (silenciar) conteúdos desagradáveis ou negativos associados ao mesmo, no caso, pensamentos de morte e sexo. . Podemos recuperar aqui a noção de “núcleo traumático”, criada por Freud e re-elaborada por Lacan que coloca que o encadeamento de diversos significantes, organizados inconscientemente, chega a um núcleo específico de determinada experiência primária que significa as demais experiências encadeadas a essa posteriormente. Em uma análise de três relatos diferentes sobre este caso escritos por Freud (conforme Billig, 2000), vê-se que há múltiplos silenciamentos e recalques, e que talvez Freud os tenha “escondido” de si próprio e de seus leitores. Apresentaremos abaixo uma breve descrição de cada um dos escritos de Freud a respeito, respeitando a ordem cronológica, que, neste caso, tem importância muito grande para o estudo desse caso. Em carta escrita para Fliess logo após o acontecimento, Freud (1898a) diz que esse esquecimento ocorreu devido a lembranças infantis recalcadas que mobilizaram nele um certo sentimento de angústia, gerado pelo sentimento da perda recente do pai, que o forçou a mudar de assunto, e esse movimento para uma outra formação discursiva gerou o esquecimento. Nessa carta, Freud comenta que quem o acompanhava nessa viagem era sua cunhada e expõe menos detalhes da conversa tida com ela. Ainda segundo Billig (2000), Freud (1898b), numa segunda versão do ocorrido, explica seu lapso de memória a partir de uma perspectiva distinta da exposta a Fliess. De acordo com Billig, o fato de Freud fazer uso de uma linguagem mais formal, por ser um

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22 artigo e não uma carta, possibilitou que fossem introduzidos elementos “literários” nesse texto, como, por exemplo, a insinuação de uma maior distância de tempo entre a publicação do artigo e sua viagem (que na verdade ocorreu 5 dias antes da submissão do artigo). Além da mudança de estilo em sua escrita, Freud substitui sua cunhada (que estava com ele no primeiro relato) por um “acompanhante de viagem” anônimo, relatando questões mais atuais para explicar o esquecimento do nome do pintor. Assim, no artigo, ele remete o esquecimento à lembrança sobre os turcos e a peculiar relação destes com a sexualidade, lembrança essa que lhe ocorreu quando conversava com esse estranho sobre os costumes dos turcos e sua relação com a morte. Em seguida, afirma que afastou a lembrança relacionada à sexualidade porque não julgou apropriado falar desse assunto com um estranho. Nesse mesmo artigo, Freud também cita um evento que ocorreu em Trafoi (a notícia que recebeu sobre o suicídio de seu paciente); no entanto, não especifica o que ocorreu, apenas coloca que recebeu uma notícia que o incomodou. Teríamos aí a regra da AD dizer x para não dizer y, já que Freud explicou seu esquecimento através de outras questões que não as colocadas na carta a Fliess (não que uma exclua a outra). No capítulo do livro “Psicopatologia da Vida Cotidiana” (1987:19-24) Freud dá uma elaboração maior a seu esquecimento, colocando mais dados para a análise do ocorrido. Nesse capítulo, o autor admite o suicídio de seu paciente, relacionado a um caso de impotência sexual e a frustração que sentiu por não ter conseguido impedir que tal ato acontecesse. Além disso, coloca que o próprio tema dos afrescos da capela de Orvieto (Morte, Juízo, Inferno e Céu) estaria relacionado ao esquecimento, já que, na época em que o visitou, estava desenvolvendo sua teoria sobre a sexualidade e seu pai havia falecido recentemente. Pode-se interpretar esses três ensaios como uma tentativa de elaboração dos desejos e fantasmas de Freud com os quais ele se deparou ao re-visitar esse fato em sua memória para escrever os textos. Podemos localizar nesse estudo de caso, os silêncios descritos por Eni Orlandi (1992), comentados no início deste texto, e assimilá-los com os vários “graus de consciência” propostos por Freud na primeira tópica, segundo a qual o psiquismo seria formado por três sistemas: consciente, sub-consciente e inconsciente. Consciente de sua escolha, ao omitir o fato de ser sua cunhada a acompanhante de viagem, estaria o silêncio local, regido pela censura, regida pelos costumes e valores morais da época. No sistema sub-consciente, podemos localizar o silêncio constitutivo, que se materializou pelo estilo literário que utilizou para escrever o artigo, escolhendo palavras que localizassem o acontecimento em um momento longínquo no tempo. O silêncio fundador, totalmente inconsciente, poderia ser encontrado nas próprias questões que Freud retoma para explicar seu esquecimento, descobrindo a cada re-elaboração novas pistas para a totalidade dos fatos que corroboraram para o seu lapso de memória. Isso mostra que devemos interpretar o discurso e o inconsciente humano além dos dados visíveis e empiricamente controláveis, pois, da mesma forma que já foi dito acima, o

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23 discurso não se restringe ao materialmente simbolizado. Referências Bibliográficas BILLIG, M. Freud´s different versions of forgetting “Signorelli”: rhetoric and repression. Int. J. Psychoanal. 2000 (81,483) FREUD; S. O esquecimento de nomes próprios, In: S.FREUD Psicopatologia da Vida Cotidiana, São Paulo: Imago, 1987, p. 19-24 FREUD, S.a Carta a Fliess, 1898 FREUD, S.b The psychical mechanism of forgetfulness, In:Monatsschrift für Psychiatrie und Neurologie; 1985, p. 328 HERNANDEZ, J. O duplo estatuto do silêncio. Psicologia USP,15(1/2), 129-147, 2004 LACAN, J. Seminário 5: As Formações do Inconsciente, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, [1957-58] 1999 LACAN, J. Outros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003 MILNER, J. C. A obra clara. Jorge Zahar, 1995 NASIO; J. D. O silêncio em Psicanálise, São Paulo: Papirus, 1989 ORLANDI, E. As formas de silêncio no movimento dos sentidos. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992 TFOUNI, F. V. O interdito como fundador do discurso. UNICAMP,1992 [1] Estas duas palavras vêm do latim; representam a primeira pessoa do singular dos verbos tacere e silere. [2] Formação discursiva, na teoria da Análise do Discurso, refere-se a um conjunto de enunciados que se definem pela regularidade, e remetem a formações imaginárias, por antagonismo, conflito, contradição, etc.

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24 O ESTUDO DO NARRADOR NAS NOTÍCIAS SOBRE O MENSALÃO Cynthia Mara Miranda

Doutoranda em Ciências Sociais Centro de Estudos Comparados sobre as Américas (CEPPAC) Universidade de Brasília (UnB)

Resumo A narrativa está presente na comunicação jornalística como forma lingüística que dá visibilidade e ordena a realidade. Sendo assim, é, pois, composta por vários elementos, dentre eles, o narrador. Este artigo busca, então, identificar o narrador nas notícias sobre o escândalo político brasileiro denominado mensalão, publicadas no jornal Folha de São Paulo, no período de 6 a 12 de junho de 2005. A análise pragmática da narrativa jornalística forneceu o suporte metodológico para a identificação do narrador nas notícias e, desse modo, destacar, como resultados, a relação conflituosa e de disputa existente entre diversos atores para assumir a condição de narrador. Palavras-chave: mensalão, narrativa, narrador. A STUDY OF THE NARRATOR IN NEWS PIECES ABOUT THE MENSALÃO

Abstract The narrative is present in the journalistic communication as a linguistic form that orders and increases the visibility of reality. It is composed of many elements, among which is the narrator. This essay seeks to identify the narrator in the news about the Brazilian political scandal known as the mensalão published in the newspaper Folha de São Paulo between June 6th and 12th, 2005. The pragmatic analysis of the journalistic narrative has provided methodological support for the identification of the narrator in news pieces. The results obtained here highlight the quarrelsome and disputing relationship among many actors in order to assume the condition of narrator. Key words: mensalão, narrative, narrator.

Introdução O presente trabalho tem como objetivo identificar, por meio da análise pragmática da narrativa jornalística, o narrador nas notícias provenientes da imprensa escrita. Para Motta (2007), a análise pragmática da narrativa é o estudo dos princípios que regulam o uso da linguagem na comunicação, ou seja, as condições que determinam tanto o emprego de um enunciado concreto, por parte de um emissor concreto, em uma situação comunicativa concreta, bem como sua interpretação por parte do destinatário. A análise pragmática da narrativa é, portanto, um procedimento que determina o uso da linguagem, especialmente daqueles aspectos que um estudo puramente gramatical

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25 não poderia fazer referências, tais como: noções como emissor, destinatário, intenção comunicativa, contexto verbal, situação ou conhecimento do mundo. Para a presente análise, que tem como foco o narrador nas notícias jornalísticas, utilizamos como objeto de estudo um escândalo político brasileiro que ganhou visibilidade em meados do ano de 2005, e que marcou a história recente da política brasileira, qual seja, o mensalão[1]. A análise foi realizada a partir de um conjunto de notícias referentes ao assunto, 121 ao todo, publicadas no jornal Folha de São Paulo no período de 6 a 12 de junho de 2005. O recorte temporal, que contempla o período de uma semana, acompanhou a trajetória do evento como um desencadeamento que apresentou início, meio e fim. O marco inicial foi a primeira entrevista que o Presidente Nacional e Deputado Federal do PTB, Roberto Jefferson, concedeu a esse veículo de comunicação e, o marco final, a segunda entrevista ao mesmo veículo. A narrativa e o narrador nas notícias sobre o mensalão Roland Barthes (1976) afirma que a narrativa está presente em todos os tempos, lugares, sociedades e que ela começa com a própria história da humanidade. Vivemos, pois, rodeados pelas narrativas, que podem ser encontradas no mito, na fábula, no conto, no romance, na pintura ou no cinema. Na comunicação jornalística não é diferente, a narrativa está aí presente como uma linguagem que confere visibilidade e ordena continuamente a realidade, dotando o contexto social de significados culturais. Os jornalistas, sabe-se, buscam relatar acontecimentos e, assim, fornecem ao(s) leitor(es)/telespectador(es) a sua versão da realidade. Esses profissionais disponibilizam notícias que irão provocar efeitos estéticos como indignação, emoção, surpresa, etc. Com todos esses elementos oferecidos pela comunicação jornalística as pessoas podem construir narrativas para compreender o mundo real. As narrativas dão sentido e significação à vida humana, uma vez que, por meio delas, construímos o passado, presente e futuro. Conforme ressalta Motta (2005), narrar não é contar ingenuamente uma história, é, antes, uma atitude argumentativa, um dispositivo persuasivo de linguagem, posto que, quem narra quer, de fato, produzir certos efeitos de sentido através da narração. A entidade que narra uma história é o narrador, o responsável por construir o enredo, organizar os discursos, apresentar e nomear as vozes. Além deste, ainda estão presentes outras entidades como o autor, leitor e personagens. O leitor e o autor habitam o mundo real. É função do autor, por um lado, criar um mundo alternativo, com cenários e eventos que formem a história. Por outro lado, cabe ao leitor a função de captar a sequência dos acontecimentos e interpretar a história. As personagens são, por seu turno,

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26 imprescindíveis para que a narrativa seja efetivada e habitam o mundo da história e exercem diferentes papéis como: protagonistas, coadjuvantes ou figurantes. Não obstante, no texto jornalístico, a posição do narrador nem sempre é claramente percebida, justamente pela existência de uma relação tensa entre os vários atores da notícia que disputam o papel do narrador. Entre eles pode-se destacar o jornal, o jornalista e as personagens. Ao se propor identificar o narrador no texto jornalístico, por meio da análise pragmática da narrativa jornalística, é preciso que se esteja ciente dessa dificuldade e, por isso, para identificá-lo é fundamental que se observe os seus pontos de vista, retórica e intencionalidades comunicativas implícitas ou explícitas. A análise da narrativa jornalística não é a aplicação da narrativa literária, pretende muito mais, pois, trata-se de uma narrativa fática, o que difere da narrativa literária que é ficcional.. E isso constitui um diferencial. Na narrativa jornalística é preciso levar em consideração o narrador e sua condição de produção, a enunciação, a narrativa em si mesma, a narratividade implícita ou explícita e os processos de interpretação da audiência. Só assim é possível chegar até as intencionalidades e descortinar uma compreensão integral do processo de comunicação narrativo (Motta, 2007). As notícias jornalísticas oferecem mais do que um fato, oferecem tranqüilidade e familiaridade em experiências comunitárias partilhadas, fornecem respostas credíveis a perguntas desconcertantes e explicações prontas dos fenômenos complexos, tais como as relações de poder e os escândalos políticos (Bird & Darlenne apud Traquina, 1999). Para observar quem é o narrador nas notícias jornalísticas é preciso perceber a notícia como narrativa que não pode ser concebida sem conflitos, sem enfrentamentos entre personagens, sem rompimentos e tensões, sem ações. Dessa forma, a narrativa das notícias sobre o mensalão constituiu-se num campo de disputa, permeado de conflitos, onde jornal, jornalista e personagem lutaram pela posição do narrador do acontecimento. A existência de uma tensão contínua entre vários atores nas narrativas viabilizou, pode-se afirmar, a presença de mais de um narrador nas notícias. Necessário observar que as notícias jornalísticas são construídas como forma de exercício e de hegemonia nos distintos lugares e situações comunicativas e, por isso, é natural que o conflito tenha permeado a tessitura das notícias sobre o mensalão. O conflito realçou o papel de destaque dos narradores ao transmitirem uma “versão da realidade”, e foi o pano de fundo das notícias. O episódio do mensalão mostrou a relação de poder entre a mídia e a política na construção do narrador da notícia. A tensão permanente das personagens, “atores políticos”, por uma desejada visibilidade, fez com que eles disputassem o papel do narrador com os jornalistas e jornais, ou seja, os “atores midiáticos”. Essa disputa demonstrou que

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27 assumir uma narrativa traz visibilidade para a figura do narrador. Os narradores do escândalo político Ao observarmos as notícias sobre o mensalão no jornal Folha de São Paulo, levantamos alguns pontos que nos permitiram localizar a figura do narrador nessas notícias, tais como: a identificação do narrador predominante e do narrador secundário e a identificação de cada um deles na enunciação. Entre as técnicas da análise pragmática da narrativa jornalística utilizadas podemos destacar os efeitos de sentido, citações, identificação sistemática dos lugares e das personagens. Numa breve descrição das notícias analisadas, podemos ressaltar que a entrevista do deputado Roberto Jefferson, no dia 6 de junho de 2005, antecedeu ao surgimento das notícias sobre o mensalão. Já as notícias publicadas após a primeira entrevista estiveram imbuídas em desvendar a denúncia, buscar provas e testemunhas, ouvir os envolvidos no escândalo. Para identificar o narrador nas notícias elaboramos uma breve síntese dos assuntos abordados nos respectivos dias, para fornecer uma cronologia do acontecimento após a repercussão da primeira entrevista de Jefferson. O jornal Folha de São Paulo publicou com exclusividade, no dia 6 de junho de 2005, uma entrevista que tornou público o mensalão. Renata Lo Prete foi a jornalista que conduziu a entrevista onde “Roberto Jefferson, presidente nacional do PTB, afirma que o tesoureiro do PT, Delúbio Soares, pagava um “mensalão”a parlamentares em troca de apoio ao Congresso. Eram, diz, R$ 30 mil mensais entregues a representantes do PP e do PL pelo menos até janeiro”. (Folha de São Paulo, 6 jun, p. 1). Além da longa entrevista de Jefferson, esse dia também contou com outras matérias que trançaram, por exemplo, o perfil de Jefferson como “petebista que liderou tropa de choque de Collor”. (Folha de São Paulo, 6 jun, p. 4) bem como o de Delúbio Soares, denunciado por Jefferson como operador do mensalão.“Delúbio Soares tem pretensão eleitoral”, afirmou o jornal (Folha de São Paulo, 6 jun, p. 5). Outras matérias, ainda, destacaram que Jefferson avisou ao presidente Lula sobre o mensalão e, outra, que Jefferson reconhecia a necessidade de uma CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito. O objetivo das notícias do dia 7 de junho foi o de dar desdobramento ao fato, apurar e ouvir os supostos envolvidos (Delúbio Soares e José Dirceu), citados por Jefferson, na entrevista exclusiva concedida no dia de 6 de junho, ao jornal Folha de São Paulo. O conjunto de matérias abordou as personagens que, direta ou indiretamente, sabiam do mensalão, conforme entrevista de Jefferson. (Folha de São Paulo, jun, p. 5 e 6). Essas fazem parte tanto do governo, como Aldo Rebelo e Ciro Gomes, quanto da oposição e, ai, inclui-se Marconi Perillo e César Maia. As notícias também destacaram as estratégias de defesa do governo e dos partidos aliados para conter o escândalo. No dia 8 de junho, a temática das notícias continuou a ser a repercussão da

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28 entrevista concedida por Jefferson no jornal Folha de São Paulo e algumas conseqüências, em decorrência das denúncias, começaram a ser desencadeadas como a mudança na diretoria de algumas estatais como mostrou a matéria de capa “Governo aceita CPI e muda estatais”. (Folha de São Paulo, jun, p.1). Outras matérias, ainda, destacaram a preocupação do presidente Lula com o escândalo dentro do seu governo. Lula ao ser questionado por jornalistas mencionou que iria “cortar na própria carne”, caso necessário. A metáfora fazia uma alusão à punição de possíveis membros do governo envolvidos no escândalo. Destaque-se, em adição, matérias que abordaram o aumento no tom das críticas por parte da oposição, que destacaram o pedido de cassação ao deputado Roberto Jefferson, movido pelo Partido Liberal - PL e, por fim, um destaque a movimentação pela instalação da CPI. As notícias do dia 9 de junho mostraram mais conseqüências do desdobramento das denúncias, no sentido de as tornarem mais concretas. Matérias como: “Senado define nomes e CPI começa hoje” (Folha de São Paulo, jun, p.1) e “Câmara inicia processo para cassar Jefferson” (Folha de São Paulo, jun, p.7), mostraram essas conseqüências. No conjunto das notícias destacam-se os seguintes fatos: dirigentes foram afastados dos cargos dentro das estatais; Jefferson anuncia a existência de 52 gravações em seu domínio e o presidente Lula tenta afastar o foco da mídia no escândalo em seu governo e coloca em pauta o tema da reforma política. As matérias mostram uma crise acentuada que torna visível o conflito do governo com o Partido dos Trabalhadores – PT. No dia 10 de junho as notícias mostraram uma tensão em torno da disputa pelo controle da CPI como mostrou as seguintes matérias: “Disputa por controle paralisa CPI.” (Folha de São Paulo, jun, p.1), “Governo tenta controlar CPI, oposição reage e adia votação.” (Folha de São Paulo, jun, p.4) e “Governo e oposição travam duelo de CPIs”. (Folha de São Paulo, jun, p.5). Outras matérias deram destaque às críticas da oposição ao governo e outras matérias, a resposta do governo às críticas. Jefferson negou a existência das 52 gravações. Observando as matérias foi possível notar que a crise provocada pelo escândalo estremeceu ainda mais as relações entre governo e PT. As notícias do dia 11 de junho destacaram o aparecimento de provas (fitas) que evidenciariam a corrupção dentro do governo, o PTB de Roberto Jefferson foi o alvo da vez. Outras matérias abordaram os efeitos da crise na economia além de mostrar a desistência do governo em colocar a questão da reforma política em discussão e por último um destaque a formação da CPI. No dia 12 de junho o jornal Folha de São Paulo publicou a segunda entrevista exclusiva do deputado Roberto Jefferson após uma semana da primeira entrevista que desencadeou a maior crise política do governo do presidente Lula. Renata Lo Prette mais uma vez entrevista o deputado e destaca na matéria de capa que “o presidente do PTB, deputado Roberto Jefferson (RJ), afirma que o dinheiro do “mensalão” pago pelo PT a deputados de partidos aliados no Congresso vinha de estatais e empresas do setor privado”. (Folha de São Paulo, jun, p.1). As matérias desse dia destacaram que Jefferson não tinha provas além da experiência vivida, mostraram o desentendimento entre PT e o governo na questão de preservar

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29 Delúbio Soares no quadro partidário. Após analisar as 121 notícias não identificamos a presença de um único narrador nos enunciados do mensalão, mas a presença dos três narradores apresentados por Motta (2007) como o narrador-mediador, o narradortestemunha e o narrador-personagem. O narrador-mediador (de fundo): é o que jornal convoca, apresenta e nomeia as vozes (omitindo outras); organiza, ordena, prioriza os discursos (omitindo outros). É difuso, discreto e impessoal. Utiliza linguagem indireta, quase sempre na terceira pessoa. O narrador-testemunha (de superfície): o jornal se personaliza no jornalista. O “eu” narrador torna-se presente, assume uma personalidade ao testemunhar os fatos. É discreto, narra quase sempre na terceira pessoa, mas pode narrar na primeira pessoa. O narrador-personagem (explícito): é a personagem que assume o estatuto da enunciação, confundindo-se com o enunciado. Sua voz pode se autonomizar (até certo ponto) e tensionar a relação com os dois narradores anteriores. As narrativas mostraram que apesar da existência de vários narradores, um dos narradores se destacava entre os demais, ocupando maior espaço na narração dos eventos. As notícias apresentaram um narrador predominante e narradores secundários que em espaços menores assumiram a narrativa jornalística. O narrador que mais predominou nas notícias foi o narrador-testemunha (jornalista) 63 notícias, seguido pelo narrador-mediador (jornal) 37 notícias e o narrador-personagem (personagem) em 21 notícias. As notícias nas quais o narrador-testemunha ocupou maior espaço na transmissão dos acontecimentos foram assinadas pelos jornalistas e isso demonstrou uma responsabilidade sobre a “versão da realidade” transmitida. O jornalista narrou na terceira pessoa do singular, atuou nos bastidores da notícia, apresentando, nomeando as vozes e priorizando discursos. No entanto, a identificação desse narrador não impediu ou coibiu a existência do conflito que gerou a sobre-posição de vozes entre jornal e personagens para assumir o papel do narrador. Vários efeitos de sentido foram induzidos como estratégia narrativa, mas destaco como os mais recorrentes o sentido de indignação e desaprovação aos atos cometidos. O jornalista organizou, ordenou e priorizou os discursos quando, por exemplo, escolheu dar maior destaque ao conflito entre o presidente e seu partido (PT) ou em outros momentos quando destacou a tentativa do presidente de colocar outro assunto em discussão para desviar a atenção exclusiva na crise. Algumas matérias retrataram muito bem esse conflito como: “Acusações não envolvem o governo, mas o PT, diz Aldo.” (Folha de São Paulo, 7 jun, p.5), “PT racha, contraria Lula e decide preservar Delúbio.” (Folha de São Paulo, 9 jun, p.5) e “Crise estremece relações entre o PT e Lula.” (Folha de São Paulo, 10 jun, p.6). As notícias em que o narrador-mediador ocupou maior espaço narrativo mostraram que o jornal, compreendido pela sua linha editorial convocou, apresentou e nomeou as

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30 vozes de acordo com os seus interesses. O jornal organizou e priorizou discursos utilizando uma linguagem indireta, quase sempre na terceira pessoa. A posição do jornal Folha de São Paulo enquanto narrador ocorreu de uma forma difusa, impessoal e discreta o que em muitas vezes dificultou a sua identificação imediata no texto. Essa dificuldade foi superada quando percebemos que as notícias apresentavam uma linguagem indireta e quase sempre na terceira pessoa o que possibilitou o enquadramento do narrador no tipo mediador por conter tais características na linguagem. Mesmo nos momentos que este narrador predominou notamos a presença de várias personagens que em determinados momentos assumiram a narrativa e ganharam autoridade ao conduzir a narrativa jornalística com seu discurso direto. O jornal relatou o episódio do mensalão dentro de critérios previamente estabelecidos de acordo com sua linha editorial, escolheu o espaço da fala dos personagens, omitiu narrativas de assuntos que não eram do seu interesse e com isso transmitiu a sua versão da realidade. A característica das notícias em que o narrador-personagem se sobrepôs aos demais narradores foi que a personagem assumiu a enunciação e em vários momentos se confundiu com o enunciado. A voz das personagens até certo ponto ganhou uma autonomia mesmo com a tensão permanente com os outros narradores. Dentre as personagens que assumiram a enunciação destaco o deputado Roberto Jefferson, o presidente Lula, o ministro Ciro Gomes, o ministro Miro Teixeira, entre outros. As estratégias narrativas induziram efeitos de sentidos diferenciados como surpresa e indignação. As notícias que as personagens ocuparam maior espaço da narrativa apresentaram em muitos trechos uma linguagem direta e em outros uma linguagem indireta. As personagens se posicionaram sobre as denúncias de escândalo do governo Lula como mostrou as seguintes matérias: “Perillo e Maia dizem saber da mesada” (Folha de São Paulo, 7 jun, p.1), “Miro afirma que ministro participou de esquema”, “Governador conta que avisou Lula”, (Folha de São Paulo, 7 jun, p.6) e “Jefferson agora diz que não tem 52 gravações.” Considerações finais As notícias sobre o mensalão foram o palco da disputa entre jornal, jornalista e personagens para assumir a narrativa do acontecimento. As enunciações estiveram, em grande medida, sobre o domínio do jornalista, mas o jornal e as personagens assumiram secundariamente muitos espaços narrativos. Ao colocar em evidência a disputa pela autoria da narrativa entre três narradores (jornal, jornalista e personagens) ficou clara a necessidade de cada um dos narradores em direcionar o evento conforme seus interesses particulares, o que demonstrou que a narrativa de forma alguma foi ingênua.

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31 O jornalista, na condição de narrador predominante, enquadrou lugares, situações e discursos para construir a sua versão da realidade. Porém, sua identificação enquanto narrador não foi imediata e, por isso, para identificá-lo no texto precisamos observar cada detalhe e estratégia narrativa empregada, a fim de validar sua posição. Os narradores utilizaram técnicas de persuasão para fazer com que o leitor aceitasse seus discursos como o mais convincente, dentre os muitos oferecidos, ou seja, a versão da realidade com mais credibilidade. A análise aqui levantada mostrou a relação conflituosa e de disputa pela narrativa entre os diversos atores, colocando em destaque os vários discursos tanto da arena política quanto da arena midiática, o que permitiu lançar linhas de discussão de que a narrativa jornalística é construída por meio de uma pluralidade de vozes. Referencias bibliográficas Barthes, Roland e outros (1971). Análise estrutural da narrativa. Petrópolis: Vozes, 1976. Motta, Luiz G. “A análise pragmática da narrativa jornalística”. In: LAGO, C & BENETTI, M. Metodologia de Pesquisa em Jornalismo. Petrópolis: Vozes, 2007. _____. Narratologia – análise da narrativa jornalística. Brasília: Casa das Musas, 2005. Traquina, Nelson. Jornalismo: questões, teorias, histórias. Lisboa: Veja, 1999. Jornais Folha de São Paulo. São Paulo, 6 de junho de 2005. Ano 85, número 27.823. Folha de São Paulo. São Paulo, 7 de junho de 2005. Ano 85, número 27.824. Folha de São Paulo. São Paulo, 8 de junho de 2005. Ano 85, número 27.825. Folha de São Paulo. São Paulo, 9 de junho de 2005. Ano 85, número 27.826. Folha de São Paulo. São Paulo, 10 de junho de 2005. Ano 85, número 27.827. Folha de São Paulo. São Paulo, 11 de junho de 2005. Ano 85, número 27.828. Folha de São Paulo. São Paulo, 12 de junho de 2005. Ano 85, número 27.829. [1] O mensalão foi um neologismo, popularizado pelo então deputado federal Roberto Jefferson em entrevista que deu ressonância nacional ao escândalo. O mensalão é uma variante da palavra "mensalidade" usada para se referir a uma suposta "mesada" paga a deputados para votarem a favor de projetos de interesse do Poder Executivo. . A palavra "mensalão" foi então adotada pela mídia para se referir ao caso, sua primeira aparição na imprensa escrita foi no dia 6 de junho de 2005, no jornal Folha de São Paulo. Disponível em: [http://pt.wikipedia.org/wiki/Escândalo_do_mensalão]. Acesso em: 22 agosto 2007.

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32 O DEUS DAS MASCARADAS NUM CONCURSO DE CARTAS MARCADAS: UMA LEITURA D’AS RÃS, DE ARISTÓFANES Eliane Santana Dias Debus

Doutora em Teoria Literária Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem Universidade do Sul de Santa Catarina - Unisul

Resumo Este texto apresenta algumas reflexões sobre o discurso do comediógrafo Aristófanes que, na peça As Rãs, combate satiricamente às idéias de Euripedes e Ésquilo, ridicularizando suas ações e pensamentos. Palavras-chave: As rãs, comédia, Aristófanes, Abstract This paper shows some reflections about the discourse of the comediographer Aristophanes who, in the play “As Rãs”, satirically fights Euripedes and Ésquilo’s ideas, ridiculing his actions and thoughts. Keywords: Aristophanes, As Rãs, Literary Criticism. Venham contemplar o poder de duas vozes eloqüentes! Venham ajudá-los e inspirem seus versos! Esta luta de gênios vai começar (ARISTÓFANES, 1996, p.254). Refletir sobre o gênero dramático, em especial a comédia greco-latina, implica adentrar num campo movediço que, historicamente, tem a tragédia e seus principais representantes, Ésquilo, Sófocles e Euripedes, como protagonistas. A movência se deve ao quase silenciamento dessa modalidade de gênero dramático e a um dos seus principais representantes contemporâneos aos tragediógrafos, Aristófanes. A comédia, poesia imitativa norteadora deste processo de reflexão, não vai mais imitar, como a tragédia, as ações de homens superiores - deuses, semideuses e heróis situados no espaço mítico, lendário e de caráter cívico, e, sim, imitar as ações de homens inferiores - homens comuns - situados no tempo presente. Imitados não mais na superioridade de caráter, “mas só quanto àquela parte do torpe que é o ridículo” (ARISTÓTELES, 1973, p.118). Aristófanes, comediógrafo ateniense, teve suas obras encenadas nos palcos atenienses entre 403 e 408 a.C. Uma característica marcante de sua produção é a introdução de fatos e indivíduos historicamente situados, expondo ao ridículo ações que podem ser comparadas com o objeto imitado, levando, desta forma, a platéia ao riso. Entre suas produções podemos citar As nuvens, As Vespas e As rãs, sendo esta última foco de nossa leitura, estreada em Atenas em 405 a.C, período em que os três representantes da tragédia

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33 grega já haviam morrido. Na comédia As rãs, o poeta ridiculariza os políticos (Clêon, Arquédemo, Hipérbolo), os tragediógrafos (Xenoclés, Pitângelo, entre outros), os comediógrafos (Frínico, Lísias, Ameipsias). Outros cidadãos são expostos ao ridículo por sua opção sexual, como Clistenes, ou sua feiúra, como Eríxias. Seu maior foco de atenção, no entanto, recai sobre a figura dos tragediógrafos Euripedes e Ésquilo, e a figura do deus Dioniso que desce ao Hades (Inferno) em busca do primeiro. Ao trazer para a boca de cena as coxias da escritura trágica a partir de seus representantes, o comediógrafo “se lança à indagação sobre o próprio exercício poético dos tragediógrafos atenienses, pactuados sobremaneira com o poder estabelecido” (NUNES, 1996, p.95). No que diz respeito a Dioniso, iniciemos a caracterização de sua indumentária pele de leão, porrete e coturno - utilizada como disfarce de Hércules torna-se cômica, pois a pele de leão é uma referência ao primeiro trabalho de Hércules que, após matar o leão de Neméa, revestiu-se com a sua pele. O coturno fazia parte da indumentária dos atores de qualquer um dos gêneros (comédia ou tragédia), o que os deixavam mais altos; o porrete, podemos dizer, parodia aqui a clava fabricada por Hércules para matar o leão. Aristófanes apresenta, no prólogo, o diálogo entre Dioniso – deus, com Xantias -escravo, uma crítica paródica aos comediógrafos atenienses (Frínico, Lísias e Ameipsias seus contemporâneos), introduzindo clichês, já conhecidos do público, que provocam o riso, como as frases que vêm destacadas entre aspas no diálogo: “Já não posso mais!”; “Estou desancado”; “estou apertado”. O autor aceita como óbvio a presença do elemento risível; contudo, opõe-se às técnicas e aos artífices adotados por seus colegas. Aristófanes, por meio de seu personagem, Dioniso, julga e autoriza os elementos risíveis permitidos e proibidos. Dioniso, ao ler a peça Andrômaca, de Euripedes, é seduzido a descer à morada dos mortos com o intuito de trazer o poeta trágico novamente ao mundo dos vivos. Para isso solicita ajuda a Hércules que já havia percorrido o caminho, quando, para cumprir seu décimo segundo trabalho, descera até lá com o objetivo de trazer o cão Cérbero. Devemos lembrar que os deuses, como recompensa ao heroísmo, permitiam que a alma de alguns homens retornasse do Hades. No canto XI da Odisséia, por exemplo, Homero descreve a passagem de Ulisses/Odisseu pelo Hades em busca de notícias de sua gente. Alceste é outra figura da lenda grega que se oferece para morrer em lugar de seu esposo, Admeto - ato de heroísmo que leva os deuses a premiá-la, libertando-a da morada dos mortos. A Orfeu também foi concedido o retorno quando lá esteve em busca de Eurídice, sua esposa, mas, descumprindo a ordem dos deuses, não conseguiu trazê-la de volta. Por esses motivos, e também por não habitar o Olimpo, sendo, portando, o Hades um habitat ‘quase’ natural para esse deus, não se faz inverossímil a sua atitude.

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34 Contudo, temos como mote da cena a descida de um Deus ao Hades, em busca de um homem comum, Euripedes, despido de poderes míticos e lendários. No discurso de convencimento a Heracles sobre a importância de Eurípedes em relação aos seus predecessores, Dioniso o compara ao seu modelo de bom poeta, daí a sua virtualidade: Eles são frágeis brotos faladores, piando como andorinhas, corruptores da arte, que tombaram vencidos pela fadiga quando compuseram uma peça, obtendo um só voto a favor da Musa trágica. Você pode procurar, mas não encontrará um só poeta fecundo, capaz de engendrar pensamentos másculos (ARISTÓFANES, 1996, p.207).

Dioniso solicita a Hércules conselhos sobre o percurso a tomar em direção ao Hades, pressupondo que a viagem tenha um roteiro de normalidade da vida cotidiana, com paradas obrigatórias em hospedarias e prostíbulos. Hércules lhe sugere vários caminhos a serem tomados para atingir os seus objetivos, como a morte por asfixia, envenenamento, entre outras. O deus, no entanto, busca a rota desenvolvida por Hércules: a travessia do rio com a barca.[1] Hércules descreve o inferno dividido em dois espaços: um pantanoso onde habitam as almas que na terra cometeram faltas, e outro paradisíaco para os bem-aventurados. Na travessia, o barqueiro Cáron não permite a permanência de escravos, e Xantias é levado a seguir a pé pelo pântano. Dioniso, por sua vez, assume o comando do remo, com a promessa de ouvir cantos melodiosos de cisnes e rãs (paródia ao canto das sereias). O deus e o escravo se encontram após a travessia sem que nenhum tenha encontrado os “parricidas e os perjuros” que foram fonte de ameaça de Hércules. Dioniso invoca o desejo de ter algum encontro, algum acontecimento, para “marcar dignamente” a sua viagem. Aristófanes parodia desta forma outras descidas ao Hades, colocando os acontecimentos desejados por Dioniso no plano mundano, sendo ultrajado e levando surras de outros no lugar de seu escravo Xantias. Apresenta o deus em cena escatológica ao pedir para ser limpo por uma esponja, primeiro afirmando ser no coração, mas por fim revela ser no baixo ventre o destino da limpeza - o deus se “borrou” de medo. Criticado por Xantias pela covardia, Dioniso afirma: “Um covarde ficaria sujo, mas eu me virei e me limpei” (ARISTÓFANES, 1996, p.232). O escravo do Hades trava diálogo com Xantias e lhe explica os desentendimentos entre Ésquilo e Euripedes: a disputa pelo lugar ao lado de Hades, já que impera a lei de que cabe ao homem superior aos seus rivais nas artes nobres e engenhosas ocupar este lugar. Hades cria, então, um concurso para julgar o talento dos dois poetas, tendo como árbitro o deus Dioniso. O poeta cômico parodia, desta forma, os festivais públicos que escolhiam a melhor peça através de juízes contratados pelo estado; o poeta que fosse

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35 contra a norma vigente dificilmente sairia vencedor. A disputa no Hades também tem suas prerrogativas, haja vista que o expectador, bem como o leitor, já sabe de antemão que o juiz tem o seu escolhido mesmo antes da exposição. O que parece ser, num primeiro momento, um combate injusto torna-se uma surpresa. Dioniso, para dar início ao concurso, solicita aos participantes que façam suas invocações aos deuses. Destaca-se aqui o lado religioso de Ésquilo que invoca Deméter, ao contrário de Euripedes que vai invocar novos deuses - o “Éter”, a “Volubilidade da Linguagem”, a “Fineza do Espírito” e o “Olfato Sutil”.[2] Os dois tragediógrafos expressam, no embate, um sistema racional de análise poética da sua produção, bem como do adversário; analisando os meios, os objetos e os modos os quais se utilizam no processo imitativo. Senão vejamos: Ésquilo critica o seu rival de intrigante, mentiroso, declamador de tolices. Ressalta, antes de tudo, o gosto de Euripedes pela imitação de ações mundanas - “fabricante de estropiados”, que tenta inspirar piedade já pela aparência desgraçada de seus personagens e não pelos desígnios do destino, e que degrada as ações, transformando em más as boas qualidades. Ésquilo, por sua vez, diz ter enobrecido tudo: criado personagens providos de dignidade em ações elevadas, com linguagem sublime e figurinos adequados a deuses e semideuses. E afirma que tentou incutir o caráter cívico na juventude, apresentando tragédias cheias de espírito marcial, conseguindo manter a ordem e a subordinação; enquanto Euripedes subverteu a ordem, incitando a corrupção juvenil pelo pensamento, aguçando o espírito de insubordinação. Ésquilo critica a artificialidade da linguagem utilizada por Euripedes, pois, retirado o aparato composicional, nada fica do texto, podendo a ele ser acrescentada qualquer coisa, como o faz introduzindo a frase “... perdeu sua garrafinha” aos prólogos de Euripedes. Euripedes acusa Ésquilo de charlatão, enfatizando o uso da linguagem de seu rival que, segundo ele, seria desordenada, empolada e soberba. Uma linguagem deliberadamente obscura, provida de palavras enormes que acabam por “confundir” a inteligência da platéia. Acusa-o de manter o público em expectativa, colocando o personagem esperado em cena, mas encoberto com um véu. Critica o coro e sua repetitividade já que podem ser resumidos em um só. Euripedes dá continuidade a sua defesa afirmando ter utilizado uma linguagem mais humana, sendo popular e agradável ao “povão”. Introduz, logo, no prólogo, os antecedentes da tragédia, fazendo entrar em cena a vida cotidiana, apresentando ao público ações próximas das suas vivências, dando voz e ação a todos os personagens

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36 indiscriminadamente. Ele acredita ter ensinado o povo a falar e a pensar ao introduzir o raciocínio e a reflexão em suas tragédias. Dioniso, por fim, utiliza-se de uma balança, sugerida por Ésquilo, para julgar, pesar literalmente a poesia e as expressões dos dois poetas. Nesta contenda, Ésquilo é o vencedor por colocar coisas pesadas em seus versos (“morte”, “cadáver”, entre outros). Questionados por Dioniso sobre o melhor conselho para a cidade de Atenas, a respeito de Alcibíades, Euripedes tenta vencer pela persuasão, mas Dioniso dá vitória a Ésquilo. O coro adverte o vencedor - Ésquilo- a não travar contato com Sócrates, que desdenha a música e as partes mais importantes da arte trágica: “É loucura perder tempo em conversas ociosas, em sutilezas frívolas”. Esta aversão a Sócrates será desenvolvida por Aristófanes n’As nuvens[3]. Podemos dizer que n’As rãs existem quatro momentos de juízo crítico da produção de Euripedes e Ésquilo, além, é claro, das emitidas por eles no embate. O primeiro momento dá-se no diálogo entre Dioniso e Hércules. O deus, no prólogo, considera Euripedes o modelo exemplar de poeta, astucioso, fecundo, “capaz de engendrar pensamentos másculos” e “capaz de inventar expressões ousadas”. Hércules dá ganho de causa a Ésquilo, considerando Euripedes tagarela, e acusando-o de dizer bobagens e de ser inferior a Ésquilo e Sófocles. O segundo momento dá-se no discurso do coro. A neutralidade presentificada quando o coro denomina a disputa de “luta de gênios”, de “duas vozes eloqüentes”, transforma-se num posicionamento definido em favor de Ésquilo (“contribui com um brilhante adorno para os concursos de tragédias” (ARISTÓFANES, 1996, p.260). / “rei das festas de Dioniso”(IDEM, p.276) / “Cantos líricos superiores”(Idem) e, contra Euripedes, já anunciada (“incontrolável tagarelice”(Idem), “minguado recursos de espírito”(Idem). O terceiro momento acontece na neutralidade de Dioniso, que no momento da disputa coloca-se ora em favor de um, ora de outro. O quarto, e último, momento apresenta-se quando o próprio autor da comédia, Aristófanes, assume uma posição declarada contra os procedimentos de Euripedes, e em favor dos de Ésquilo. Ataca não só Euripedes como também Sócrates ao declarar, na voz do coro, a possível influência do pensador sobre os tragediógrafos. Feliz o homem totalmente sábio! Milhares de provas atestam a veracidade desta afirmação. Este por ter sido sábio, voltará a ver a sua casa, o que é uma vantagem para seus concidadãos, para seus parentes e seus amigos; ele deverá tudo à sua sapiência. É bom então não ficar perto de Sócrates conversando com ele, desdenhando a música e as partes mais importantes da arte trágica. É loucura perder tempo em conversas ociosas, em sutilezas frívolas (IDEM, p.288).

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37 Dioniso foi ao Hades buscar Euripedes, mas sai com Ésquilo e justifica o ato a Euripedes utilizando parte de um verso seu retirado de Hipólito: “Minha língua juro, mas escolho Ésquilo” (IDEM, p.287) que assim poderíamos traduzir “O coração prometeu, mas a língua não prometera”. Podemos entender esta frase como uma sátira à descrença de Euripedes à intervenção milagrosa das divindades presente nos registros épicos, pois ele já deveria saber que não poderia acreditar totalmente no deus das mascaradas neste concurso de cartas marcadas. Referências ARISTÓFANES. As rãs. In: As vespas, As aves, As rãs. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. _____. As nuvens. Trad. Gilda Maria Reale Starzynski. São Paulo: Abril Cultural, 1972. ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1973. DEBUS, Eliane Santana Dias. Os discípulos e o comediógrafo: diálogo entre o bem e o mal das idéias socráticas. In. Revista Querubim, Ano 4, n.06, 2008. (inserir endereço eletrônico) GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e latina. Trad. Victor Jaboville. 2.ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 1993. HOMERO. Odisséia. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1960. NUNES, Carlinda Fragale Patê. A comédia greco-latina: de Aristófanes e Menandro a Plauto e Terêncio. In: SCHÜLLER, Donaldo; GOETTEMS, Miriam Barcellos. Mito: ontem e hoje. Porto Alegre: Ed.UFRGS, 1990. [1] O dramaturgo português Gil Vicente, no século XV, vai retomar o tema mitológico com a sua trilogia das barcas (Auto da barca do inferno, Auto da barca do purgatório e Auto da barca da glória). Na mitologia grega, as almas atravessavam, para chegar ao Hades, o rio Letes na barca de Cáron “o gênio do mundo infernal” que recebia como pagamento pelo serviço uma moeda (um óbolo). [2] Na comédia As nuvens, Aristófanes descreve Sócrates invocando novos deuses, entre eles, o Éter. [3] Tal tema foi desenvolvido por mim no artigo Os discípulos e o comediógrafo: diálogo entre o bem e o mal das idéias socráticas, Revista Querubim, 2008.

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38 A LITERATURA INFANTIL COM TEMÁTICA AFRICANA E AFROBRASILEIRA: ALGUMAS REFLEXÕES[1] Elika da Silva

Graduada em Pedagogia Unisul – Universidade do Sul de Santa Catarina

RESUMO Este artigo tem como objetivo refletir sobre a literatura infantil que tematiza a cultura africana e afro-brasileira levando em conta as demandas da Lei nº 10. 639 MEC, de 09 de janeiro de 2003, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afrobrasileira e africana no currículo escolar do ensino fundamental, e a Lei n. 11.645, que alterou a Lei nº 10.639/2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir, no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Palavras-chave: literatura infantil, cultura afro-brasileira, cultura africana, currículo escolar. ABSTRACT This article aims to reflect on the children's literature that edge to African culture and African-Brazilian taking into consideration the demands of Law No. 10. 639 MEC, from 09th January 2003, which imposed the disciplines of African-Brazilian and African history and culture in elementary school, and the Law 11.645, which amended Law No 10.639/2003 establishing the guidelines and bases for national education, to include in the official curriculum of the school system, "Afro-Brazilian and Indian History and Culture". Key words: Children Literature, African-Brazilian Culture, African Culture, School Curriculum. LITERATURA INFANTIL COM TEMÁTICA AFRICANA E AFROBRASILEIRA EM UMA ESCOLA PÚBLICA DE FLORIANÓPOLIS “PROJETO MALUNGO” 1 – Breve histórico da literatura infantil A literatura infantil brasileira na contemporaneidade vem conquistando mais espaço no mercado editorial, e os autores apresentam novos olhares sobre o que escrever a este público, principalmente os que trazem discussões a respeito de relações étnico-raciais. No período que a literatura infantil e juvenil começou a ser produzida no Brasil, em torno de 1894, a produção era marcada pelo fim recreativo: livros adaptados da literatura européia por Figueredo Pimentel e Carlos Jansen. A partir de 1906, os títulos se direcionam a fins didáticos, utilitários e ufanistas, com os livros de Olavo Bilac, Manuel Bonfim, Júlia Lopes de Almeida, etc. (LAJOLO; ZILBERMAN, 1990).

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39 É importante destacar que a história da literatura infantil e juvenil no Brasil só se constitui a partir das décadas de 1920 e 1930 quando o País se distancia da dependência da cultura de Portugal. Neste período, o país procurou valorizar a criação de sua própria literatura, e começa a preocupação “de abrasileirar a linguagem dos textos escritos para crianças vindos de fora, para torná-los mais atraentes” (PERROTTI, 1986 p. 57). Perrotti afirma também que: Se não temos notícia de circulação de livros destinados às crianças senão depois da vinda da Família Real, a tradição colonial, todavia, pesou sobre o destino das publicações para crianças no Brasil do século XIX. (...) A “condição colonial” significou para nós uma dependência cultural de Portugal que na literatura para crianças perdurou pelo menos até o inicio do século XX, quando uma reação nacionalista tomou corpo e o Brasil começou a produzir livros infantis. (PERROTTI, 1986, p.57).

Foi através de Monteiro Lobato, que a literatura infantil e juvenil realmente começou a ser produzida voltada exclusivamente para este público, “o homem que literalmente deu corpo real à nossa literatura infantil” (PERROTTI, 1986, p.58). A literatura infantil e juvenil vai se transformando, os autores têm a preocupação não só de ensinar, acreditavam que a literatura não seria só utilitária e didática, mas sim uma literatura desinteressada, em busca de prazeres e emoções. Lourenço Filho, em 1943, ao se referir à questão, destaca que a função primeira da obra literária para as crianças, “Como no adulto (ela deve ser) objeto de contemplação ou de função estética, para deleite do espírito, fonte de sugestão, recreação, ou evasão e catarsis”. (Apud: PERROTTI, 1986, p. 70). O período de modernização do Brasil possibilitou que a literatura destinada à criança fosse efetivada, como pondera Gouveia (2000, p.5), (...) a urbanização crescente, a exigir uma população identificada com os códigos citadinos, em que as práticas sociais de leitura se faziam necessárias, as reformas de ensino que tinham como um de seus pressupostos o desenvolvimento na criança do gosto pela leitura, à afirmação de uma família burguesa centrada nos cuidados à infância, em termos gerais, tornaram possível a consolidação de uma literatura voltada para o leitor infantil.

2 – A literatura infantil e a questão étnico-racial O Brasil, ao longo de sua história, desenvolveu práticas excludentes, embora tenha passado pela abolição, ainda permanecia com pensamentos e atitudes escravistas. Apesar de vários autores tentarem trazer em suas narrativas a identidade brasileira através da recuperação de sua gente, suas raízes e culturas, as literaturas construídas, levando em conta a questão racial, quando não era ausente, apresentava os afrodescendentes como parte de cena doméstica, como argumenta Gouveia (2000, p.7) “o negro era personagem mudo,

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40 desprovido de uma caracterização que fosse além da referência racial. Ou então personagens nos contos que relatavam o período escravocrata”. O olhar distorcido sobre a importância da cultura africana na história do país, sofre conseqüências até os dias de hoje, pois vivemos em uma sociedade discriminatória, onde só uma pequena parte da população tem seus direitos garantidos. Os pobres, os negros, os índios e outros sofrem a conseqüência de um país que deveria ser “democrático”, embora todos façam parte de uma só sociedade, poucos têm muito. Monteiro Lobato embora seja o representante de um novo olhar sobre o leitor infantil carrega em seus textos traços preconceituosos, como pode ser destacado através da maneira como Tia Nastácia é apresentada pelas personagens e pelo narrador: “negra beiçuda”, “negra de estimação”, etc. As personagens negras são submissas, se lembrarmos de Tia Nastácia e Tio Barnabé ou a personagem folclórica Saci. Na atualidade existem vários livros infantis e juvenis que mostram a cultura africana como suas danças, costumes, religiões, e outras. Podemos ler hoje histórias de princesas e príncipes negros, assim como contos africanos e vários personagens negros em histórias comuns do dia-a-dia das crianças. Debus (2006b, p.9) afirma que: (...) A obra literária exerce no leitor um ‘poder’, seja negativo, seja positivo. No primeiro caso, ao trazer para o leitor personagens submissas, sem noção de pertencimento, desfiguradas de sua origem étnica, não há ampliação do seu repertório cultural, o que colabora para uma visão deturpada de si e do outro. Por outro lado, a identificação com personagens conscientes de seu papel social, de suas origens, e respeitosos diante da pluralidade cultural acena para uma relação de respeito ao outro.

A literatura infantil hoje ganhou novas características, temos uma variedade de obras e escritores, mas o aparecimento de novos livros e escritores não significa necessariamente que todos têm boa qualidade ou são inovadores esteticamente. 3 – A literatura infantil como possibilidade de emancipação do leitor A função social da literatura só se faz manifesta na sua genuína possibilidade ali onde a experiência literária do leitor entra no horizonte de expectativas da prática de sua vida, pré-forma sua compreensão de mundo e com isto repercute também em suas formas de comportamento social. Hans Robert Jauss

A literatura infantil possibilita a emancipação do leitor, já que ela é um grande caminho para formar leitores, e assim repercutir no comportamento social, a partir de reflexões e não imposições, embora em sua origem teve um fim direcionado, como observa Zilberman (2003, p.71) “a literatura infantil originou-se da valorização que recebeu a

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41 infância a partir do século XVIII e da necessidade de educá-la, o que por sua vez, decorreu da centralização da sociedade em torno da família burguesa”. No século XVIII, houve uma transformação de tratamento e uma nova compreensão de infância. A mudança se deu a uma nova noção de família, segundo Zilberman (2003, p.15) “... inexistia uma consideração especial para com a infância. Essa faixa etária não era percebida como um tempo diferente, nem o mundo da criança como um espaço separado”. Portanto não seria necessária uma literatura específica para esse público, no entanto a noção de família gerou o cuidado e a preocupação com a infância. Daí surgiu a escola e os produtos culturais para a infância, entre eles a literatura infantil, com o intuito de passar valores e controlar o desenvolvimento intelectual das crianças. Neste sentido, Zilberman (2003, p. 34) destaca que: Para conceituar-se a literatura infantil, é preciso proceder a uma consideração de ordem histórica, uma vez que não apenas o gênero tem uma origem determinável cronologicamente, como também seu aparecimento decorreu de exigências próprias da época (...) as ascensões respectivas de uma instituição como a escola, de práticas políticas, como a obrigatoriedade do ensino e a filantropia, e de novos campos epistemológicos, como a pedagogia e a psicologia, não apenas interrelacionadas, mas uma conseqüência do novo posto que a família e respectivamente a criança adquirem na sociedade. É no interior dessa moldura que eclode a literatura infantil.

Os livros de literatura infantil que têm no período a função de propagar valores começam a ser lançados. Entretanto, mesmos nos contos de fadas tradicionais, existe um exemplo de vida familiar a ser seguido, assim como várias outras histórias infantis que trazem valores com seus finais sempre mostrando que o correto é seguir as orientações familiares e não sair deste cerco, que é a família sua melhor estrutura de segurança com o pai provedor do sustento e mãe responsável pelo lar e pela preservação dos filhos. Embora o conceito de infância, hoje tenha novos valores, ainda se encontram livros que perpetuam valores conservadores e de dominação. A questão é que o mercado editorial (escritores, editores, agentes culturais) nem sempre estão comprometidos com a qualidade, mas sim com a quantidade de livros que irão vender. Por isso, a questão da representação dos afrodescendentes na literatura infantil ainda é uma lacuna a ser preenchida, por mais que a literatura infantil brasileira tenha contemplado o tema em suas narrativas, e apesar das editoras e autores estarem mais preocupados com a questão étnica, ainda há muito a ser conquistado, pois o que mais aparece ainda nos livros infantis, são os modelos de famílias européias. Zilberman (2003, p.225) quando escreve sobre a mudança de rumo da literatura infantil brasileira, cita dois autores da modernidade como os principais protagonistas de novos olhares sobre a literatura infantil, Joel Rufino dos Santos[2], com O soldado que não era (1985) e Ana Maria Machado[3] com Do outro lado tem segredo (1985). Com

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42 esses autores “rompem-se necessariamente os laços ideológicos da literatura infanto-juvenil com o aparelho escolar” (p.223), pois nesses títulos os autores destacam heróis populares, homens, mulheres e negros, mostrando que sem o sangue desta gente não haveria vitória, e trazendo também informações mais completas “sobre o aprisionamento e escravização dos negros africanos, suas constantes revoltas, o papel do líder Zumbi...” (ZILBERMAN, p 224); Zilberman (2003, p.226) aponta que: (...) ambos os livros interiorizam o problema, fazendo que as personagens discutam o esquecimento e tratem de preencher esta lacuna com dados verídicos sobre a realidade e tradição. Graças a tais escolhas, a literatura infanto-juvenil também se transforma e modifica a tendência de ser mera parceira dos números oficiais, rumando para sua autonomia artística e valorização estética.

Percebe-se que a literatura infantil percorreu um grande e difícil caminho, entretanto, muito ainda tem que se caminhar principalmente quando nos referimos à literatura infantil que tematiza a cultura africana e afro-brasileira. Pois temos que estar atentos sobre a qualidade dos textos, pois eles devem tornar os leitores infantis, orgulhosos de identificar-se com um povo, seja ele qual for, e assim aprender a respeitar as diferenças e aprender com elas. Infelizmente, nos acervos das escolas públicas essa literatura ainda não é muito presente, apesar de ser instrumento de suma importância na contextualização desta cultura. Existe no mercado editorial uma grande variedade de literatura infantil com essa temática, a escola e o educador podem ter em suas mãos uma variedade de literatura infantil, capaz de proporcionar aos seus alunos um conhecimento e reconhecimento da cultura africana e afro-brasileira. Muniz Sodré (apud THEODORO, 2005, p.85), prefaciando Contos Crioulos da Bahia, de mestre Didi, afirma: “Os mitos, as lendas, os contos populares, sempre foram vias de acesso ao inconsciente de um povo”. Neste contexto, os contos de Didi são excelentes fontes de estudos, pois distinguem abertamente a cultura afro-brasileira. Os contos do Mestre Didi contextualizam a resistência dos escravos ao processo escravista. Existem vários contos africanos, lendas e mitos que mostram a luta dos escravos e sua consciência cultural. Theodoro (2005, p. 86) ressalta que: A representação do povo brasileiro afrodescendente vai ser encontrada na obra dos compositores populares, que fazem uma literatura plena de ethos, de identidade, criando poesia, provando que a reflexão sobre a realidade não é privativa dos letrados ilustres, mas também daqueles capazes de transformar a natureza a partir da prática adquirida por seu trabalho. Essa capacidade de criar e falar do país, de sua gente, de seus

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43 costumes, de sua fé, do cotidiano é a invenção da arte negra, que flui tal e qual magia ritual, transformando o que não se consegue por meio de formas técnicas.

A literatura tem uma participação em nossa vida, invade o nosso imaginário, pois nela conhecemos e reconhecemos lugares e personagens que nos fascinam. Na literatura brasileira, no entanto, o negro, por muito tempo, apareceu discriminado ou inferiorizado. Sabemos que as narrativas para o leitor, principalmente jovens, influenciam muito seu imaginário como um espaço de sonhos, emoções e imaginação. Toda obra literária também transmite mensagens através das imagens ilustradas, imagens que fascinam os leitores e os revelam uma visão de mundos diferentes. Lima 2005 (p. 101-102) argumenta que: E se pensarmos nesse universo literário, imaginado pela criação humana, como um espelho onde me reconheço através das personagens, ambientes, sensações? Nesse processo, eu gosto e desgosto de uns e outros e formo opiniões daquele ambiente ou daquele tipo de pessoa ou sentimento. (...) a literatura é um espaço não apenas de representação neutra, mas de enredos e lógicas, onde ‘ao me representar eu me crio, e ao me criar eu me repito.

Sendo assim torna-se impraticável as crianças afro-brasileiras identificarem-se com o mundo fascinante da leitura e seus personagens, pois, o que elas encontravam e encontram ainda, nos livros são histórias e personagens negros estereotipados.. Sabe-se que por muito tempo a personagem negra recebeu papéis subalternos, desde a sua representação no período da escravidão ao contemporâneo, em que se resume ao papel de empregos de serviçais. Monteiro Lobato, apesar de ser um inovador da literatura infantil brasileira, sempre trouxe em suas narrativas e ilustrações os afrodescendentes em situações inferiorizadas. Lima (2005 p. 103) ao examinar alguns livros em que aparecem personagens negros, descreve que: Geralmente quando personagens negros entram nas histórias aparecem vinculados à escravidão. As abordagens naturalizam o sofrimento e reforçam a associação com a dor. As histórias tristes são mantenedoras da marca da condição de inferiorizados pela qual a humanidade negra passou.

A autora ainda relata que as ilustrações traziam os afrodescendentes em imagens de pessoas passivas à escravidão ou caricaturas com imagens, como destaca a autora “idiotizadas”; reforçando a idéia de pessoas bobas que riem de tudo; as piores imagens são as relacionadas à comparação dos afrodescendentes com animais, como uma ilustração em que Tia Anastácia aparece com os mesmos traços do porco, outra que traz um menino branco urinando em cima do menino negro, constata-se um descaso e uma não preocupação com o outro.

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44 No entanto, este quadro se transformou lentamente, através de muita luta dos movimentos negros e pesquisadores, a questão étnico-racial tem aos poucos alcançado importantes conquistas e influências, uma delas é no ramo editorial. Na atualidade, existem muitos livros que trazem a representação de personagens afro-brasileira em posições de desafios e valorização da cultura africana, proporcionando ao leitor uma noção de apropriação, auxiliando assim a criança leitora na sua construção do conhecimento e compreensão do mundo que a rodeia, com suas diferentes culturas[4]. É pertinente que estejamos atentos ao que vem se produzindo neste sentido, pois não basta integrar os afrodescendentes na literatura. A produção tem que ser de qualidade, em uma sociedade assim como a nossa, na qual o acesso a livros é restrito a poucos tornase fundamental que a escola, muitas vezes sendo o único acesso ao livro que a criança tem, e o educador sejam cautelosos com a seleção e movimentação do acervo de literatura infantil com a temática africana e afro-brasileira, na biblioteca e com a leitura em sala de aula. Para que o livro seja uma obra que esclareça como os afrodescendentes são partes integrantes na formação da nossa sociedade, não basta trazer personagens negras e falar sobre preconceito. É importante levar em consideração como são trabalhados e ilustrados estes livros; se apresentam ilustrações positivas de personagens negros; e se os conteúdos abrangem o universo cultural africano e afro-brasileiro, obras onde habitem reis e rainhas negras, deuses africanos, e outros, cujas leituras possam participar da construção da autoestima das crianças afrodescendentes. Referências DEBUS. Festaria de Brincança, a leitura literária na educação infantil. São Paulo: Paulus. 2006 a. DEBUS, Eliane Santana Dias. A representação do negro na literatura para crianças e jovens: negação ou construção de uma identidade? In: A Criança, a Língua, o Imaginário e o Texto Literário. Centro e Margens na Literatura para Crianças e Jovens. Actas do II Congresso Internacional, Braga: Universidade do Minho - Instituto de Estudos da Criança, 2006 b. GOUVÊA, Maria Cristina Soares de. Imagens do negro na literatura infantil brasileira: análise historiográfica. Texto apresentado no Congresso do ISCHE (International Society Conference of History of Education), 23, 2000, Alcalá de Henares, Espanha. Acessível em http://www.scielo.br LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história & histórias. 6ª ed. São Paulo: Ática, 1990. PERROTTI, Edmir. O texto sedutor na literatura infantil. São Paulo: Ícone, 1986. SISTO, Celso. A pretexto de se escrever, publicar e ler bons textos. In: OLIVEIRA, Ieda (Org.). O que é qualidade em literatura infantil e juvenil? Com a palavra o escritor. São Paulo: DCL, 2005.

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45 THEODORO, Helena. Buscando caminhos nas tradições. In: MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o racismo na escola. 2ª ed. Ver. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 11ª ed. rev. e ampl. – São Paulo: Global, 2003. [1] Este artigo foi construído a partir das reflexões desenvolvidas no Trabalho de Conclusão de Curso “A literatura infantil com temática africana e afro-brasileira em uma escola pública de Florianópolis ‘projeto Malungo’”, apresentado na Universidade do Sul de Santa Catarina, Curso de Pedagogia 2008.1, sob orientação da professora Doutora Eliane Santana Dias Debus [2] Joel Rufino dos Santos é um historiador, professor e escritor brasileiro. É um dos nomes de referência sobre cultura africana no país. No título O soldado que não era, o autor traz a saga de Maria Quitéria, de forma muito rica e interessante, proporcionando uma boa discussão sobre preconceitos. (disponível em: www.pt.wikepedia.org.) [3] Ana Maria Machado é uma conceituada escritora brasileira, ganhadora de vários prêmios da literatura. No livro Do outro lado tem segredos, o menino Bino, vive em uma aldeia de pescadores. Desde pequeno ajuda os pescadores, e aguarda o dia em que poderá ir ao mar junto de todos. Aos poucos, vai descobrindo e aprendendo suas tradições e cultura. Ana Maria Machado em muitas de suas obras nos presenteia com um pouco de nossa diversidade assim como o clássico, Menina bonita do laço de fita. (Ibid) [4] Como exemplo de autores brasileiros que vem trazendo em suas narrativas a questão étnica racial com um novo olhar temos: Joel Rufino dos Santos, Rogério Andrade Barbosa. Ana Maria Machado, Sonia Rosa, Osvaldo Faustino e muitos outros.

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46 NO CENÁRIO DA ESCOLA (RE) VEMOS A DISCIPLINA VERSUS INDISCIPLINA ESCOLAR Ernesto Candeias Martins Instituto Politécnico de Castelo Branco – Portugal Escola Superior de Educação - Dep.tº Ciências Sociais e da Educação Resumo Hoje em dia a violência e a indisciplina adquiriu níveis de preocupação social e para os agentes educativos. A segurança nas escolas e a promoção de relações de convivência (socialização) constituem condições essenciais para a qualidade da educação/formação e para a promoção da educação para a cidadania. O autor aborda em três pontos a temática da indisciplina escolar. Enquanto, no primeiro ponto, se refere à fenomenologia da indisciplina/violência, no contexto escolar, no segundo ponto analisa os modos de prevenção e de construção da disciplina na sala de aula. Por último, propõe um programa educativo de intervenção com estratégias e procedimentos práticos para a sala de aula. Palavras Chaves: ‘bullying’ escolar, indisciplina, prevenção, disciplina na escola, modelos educativos de intervenção. Abstract In the scene of the school disciplines we review it versus pertaining to school indiscipline Nowadays violence and indiscipline acquired levels highly preoccupying to the society and to the educative agents. The security in schools and the promotion of sociability relations constitute essential conditions to the quality of the education/formation and citizenship education. The author approaches in three points the thematic one of the pertaining to school indiscipline. While, the first point, refers to the phenomenology of the indiscipline/violence, in the pertaining to school context, the second point as analyzes the prevention ways and of construction of it disciplines in the classroom. Finally, he considers an educative program of intervention with strategies and practical procedures in the classroom. Key-words: school ‘bullying’; indiscipline; prevention; discipline in school; educative models of intervention. Introdução A disciplina e a violência escolar são na actualidade tema nos distintos meios de comunicação social, o que leva os políticos, a escola e os educadores a reflectirem sobre os meios, as normas, as metodologias e as estratégias para os prevenir (Charlot et Emin, 1997: 12-34). No panorama educativo europeu a violência também adquire níveis altos de preocupação para os governos e agentes educativos. Pedagogicamente a indisciplina e a violência nas escolas são abordados a partir de várias perspectivas teórico-conceptuais, pois são diversos e complexos os factores que as originam, por exemplo: a falta de motivação dos alunos para a aprendizagem, as consequências do consumo exacerbado, as mudanças

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47 nas estruturas da família, o desemprego familiar, as condições económicas, as diferentes condições de acesso aos bens de consumo e outros conflitos oriundos da família, das relações em grupo e da própria (re) inserção social. A escola intenta aplicar em direcções diversas algumas medidas sem ter, na maioria das vezes, sido preparada para desempenhar tal papel. Sabemos que a escola cristaliza algumas tensões da nossa sociedade e, por vezes, desmesuradamente, pois, é fábrica (espaço escolar) e relógio (tempo escolar) do trabalho formativo dos alunos e da disciplina colectiva, mas não é por si mesma um espaço de criação de violência, apesar de a reproduzir, a distintos níveis (Etxeberria Balerdi, 2001: 121-128). O que se verifica em muitas escolas é a indecisão dos responsáveis, em certos casos graves de indisciplina e violência, na aplicação do Código Disciplinar, ou uma certa confusão entre disciplina e autoritarismo ou autoridade e autoritarismo. Efectivamente que a preocupação dos professores nas escolas é o de tornar o ambiente educativo de sala de aula disciplinado sem autoritarismo. A disciplina escolar emana, não apenas da organização curricular e do espaço da sala de aula, mas também, do clima sócio-institucional. Porém, acrescente-se o facto de, na maioria das vezes, os próprios professores não possuirem nem formação (inicial, contínua), nem estrutura e preparo para minimizar e suprimir a indisciplina que lhes surge na sala. É óbvio que, sem a incorporação da autodisciplina (auto-consciencialização), que é uma questão interna de cada aluno, será difícil manter uma disciplina externa (Estrela, 1992, p. 19-27; Lind and Maxwell, 1996, p. 37-46). Pretendemos neste artigo, no contexto do sistema educativo português, provocar a reflexão sobre a indisciplina promovida ao nível escolar. A violência e os comportamentos de inadaptação escolar são provocados, quase sempre, por uma inadequada acção educativa e metodológica aplicada nas escolas. Reconhecemos educativamente, que a discriminação, a intolerância e, até, a avaliação são, por vezes, meios de punição e coacção que podem ser interpretados de maneira diversa pelos alunos, pais e encarregados de educação. No fundo, não propomos soluções mas sim uma reflexão sobre o ‘como’ e os ‘porquês’ desses fenómenos e conflitos gerados na escola. Esta deve ser inclusiva, um espaço sem violência, promotora de programas de intervenção, de modo a que aos professores lhes seja possível combinar os saberes com o ‘saber fazer’ e ‘saber actuar’, o saber com as competências, os valores de cidadania com o exercício democrático. Acreditamos que todos os momentos escolares são bons para ensinar e exercitar a (auto) disciplina, que deverá estar próxima do afecto, da relação pedagógica e da prática dos valores de cidadania (Amado, 2000, p. 11-16). 1 - A interface da (in) disciplina na sala de aula Nos últimos tempos tem surgido uma violência organizacional, com tendência a serem criadas situações de conflito que geram oportunidades para estigmatizar a violência de qualquer oponente. Certas forças da sociedade interagem para darem a impressão que a insegurança cresce na sociedade (aumento da espiral dos crimes) e nas escolas. Os

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48 problemas de indisciplina e violência nas escolas são hoje um ingrediente fundamental da nossa cultura mediática (Olweus, 1993; Smith & Sharpa, 1994). No Simpósio do Conselho da Europa (1998) sobre o tema ‘Violência na escola: sensibilização, prevenção, repressão’, reconheceu-se a complexidade do fenómeno, o qual tem a ver com as características e tendências individuais, com o contexto e modelos de família, com a escola, os ‘mass media’ e com a própria sociedade. De facto, a violência é uma construção social que varia segundo o meio, a cultura e o indivíduo, englobando uma diversidade de realidades e de aspectos muito específicos. Relaciona-se com o conceito de comportamento anti-social, integrando neste sentido certas condutas disruptivas dos sujeitos, que devem ser reprováveis através da escola. Os casos de maior indisciplina e/ou violência escolar ocorrem entre os 10 – 12 anos e os 15 ou 16 anos. Contudo, em Portugal, alguns inquéritos realizados nos últimos anos por diversos sindicatos de professores e pelo próprio Ministério da Educação revelam que no 1.º Ciclo (Ensino Básico) é onde há um certo aumento da indisciplina. Na prática a representação e percepção destes fenómenos é bem patente nas afirmações dos professores, responsáveis dos órgãos executivos e funcionários (Amado, 2001, p. 38-44). É evidente que o clima social na sala de aula constitui uma componente do ambiente que se refere a determinadas características psicossociais que actuam interdependentemente na concretização dos objectivos educativos. Entre essas características, destacamos as interacções entre os alunos, entre o aluno e o professor, as acções dos alunos e do professor na realização das actividades e na melhoria da aprendizagem. Na verdade, as características dos alunos influem no clima social da aula (rendimento, atitudes e grau de participação dos alunos, níveis de satisfação dos professores, na relação ensino-aprendizagem, na relação pedagógica). Tenho insistido, na qualidade de formador, que os professores devem ser bons observadores, reflexivos e criativos dentro das suas aulas, já que nelas se desenvolvem acontecimentos diversificados, enquanto o professor explica, interpela, motiva, orienta os alunos. Neste contexto espacial cabe ao professor implementar procedimentos de controlo da disciplina em relação a certas situações que se passam na sala de aula. De facto, há diversas interacções entre os alunos, entre o professor e os alunos, entre aqueles e a escola. Portanto, a observação, a comunicação e a reflexão estabelecidas nas relações entre os diversos elementos educativos, são importantes na perspectiva de uma pedagogia das relações humanas. Além dessa forma de relacionamento pedagógico na sala de aula, há também questões ligadas aos processos de gestão de conflitos, perfil do professor e processos de liderança (do professor e de alunos), que exercem enorme influência no clima e no ambiente de aprendizagem. Por outro lado, o clima institucional influencia, de várias maneiras, os procedimentos e as formas de convivência no contexto da sala de aula, assim como, o ambiente externo ou envolvente à própria escola e a dinâmica social invadem o espaço escolar e exercem no (s) aluno (s) comportamentos díspares (Olweus, 1993, p. 72-

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49 85; Smith and Sharp, 1994, p. 27-41). A representação de aluno indisciplinado varia de professor, de escola para escola. Perante as variadas situações, acontecimentos e conflitos existentes na sala de aula, compete ao professor introduzir estratégias para os gerir e compreender de forma disciplinada, quer ao nível pessoal, quer ao nível do grupo – turma. Exige-se ao professor, não só uma formação específica, mas também atitudes e comportamentos pro-activos necessários à construção da disciplina, à medida que realiza as suas actividades ou funções educativas. Estas estratégias de prevenção devem visar três dimensões: o ‘momento’ em que surge o acto de indisciplina ou comportamento anti-social; o grupo – turma aos quais se dirige a acção; e o conteúdo da acção preventiva (natureza da intervenção). Prevenir a tempo, de modo a não permitir difundir outras ocorrências de comportamentos irregulares dos alunos. É verdade que a convivência harmoniosa na comunidade escolar é fruto de um processo de formação pessoal e social que torna possível a descoberta da necessidade e valor das normas elementares de convivência social. Cabe à escola introduzir um sistema de estímulos, criando um clima social com um bom nível de satisfação para os alunos, através de actividades motivadoras que lhes favoreçam o desenvolvimento de responsabilidades, a divulgação das normas disciplinares, a promoção do respeito entre iguais, etc. A cooperação entre as escolas e os serviços externos especializados faz todo o sentido no âmbito preventivo e na perspectiva terapêutica (Grotpeter and Crick, 1996, p. 2330-2334). Por conseguinte, as escolas necessitam de bons sistemas de controlo preventivo para ultrapassarem as violações das regras e outros tipos de problemas/conflitos. Contudo, esse controlo não é tudo, haverá que promover as ligações sociais e culturais (Fernández, 1998, p. 28; Vinyamata, 2002, p. 39-50). A prevenção não só deve impedir o aparecimento dos comportamentos anti-sociais e de indisciplina escolar, como deverá proporcionar, num contexto democrático, um ensino criativo, colaborativo e reflexivo, baseado na comunicação, nos valores e na participação activa no Projecto-Escola. Nos casos de alunos mais problemáticos, a escola tem a obrigação de utilizar um plano trifásico de intervenção menos estigmatizante. A ajuda inicial deve ser dada pelo professor (primeira fase), depois pelos serviços (psico) pedagógicos de apoio na escola (segunda fase) e, finalmente, recorrendo aos serviços externos (terceira fase). O professor é a pessoa ideal para detectar os problemas de conflito e se encarregar de dar apoio ao aluno. Para poder intervir, o professor deve ter coerência entre o que diz e o que faz e, ainda, entre os valores que transmite aos alunos e os que ele mesmo vive e partilha. A imagem e a representação social são fundamentais para um adequado ambiente de aprendizagem (Triana y Muñoz, 1997, p. 125-131). Propomos para a escola programas de prevenção da violência e indisciplina escolar que integrem os seguintes dimensões educativas: educação cívica e para a cidadania; educação para a tolerância e para a paz; educação para a diversidade e para a não-violência;

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50 educação para a convivência; educação ambiental, patrimonial e de consumo; educação social e afectiva; voluntariado social; etc. (Vettenburg, 2000, p. 226-231). É conveniente que estas dimensões estejam previstas ao nível curricular e no Projecto-Escola, mas devem envolver mais actores educativos da comunidade. 2 – Prevenir para construir a disciplina A discussão sobre a violência e comportamentos anti-sociais dos alunos nas escolas tem subjacentes questões e desafios com profundas implicações para a comunidade escolar e para a sociedade em geral (Estrela, 1992; Fonseca, 2000, p. 30-49; Fonseca, Simões, Rebelo, Ferreira e Cardoso, 1995, p. 35-71). Interrogamo-nos se a escola poderá continuar a ser um instrumento de coesão social e de integração democrática dos cidadãos. Após um período amplo de democratização educativa manter a inclusão nas escolas parece ser um desafio. As medidas educativas relacionadas com a diversidade, por exemplo, a aprendizagem para a convivência, a educação das atitudes e para os valores, os direitos e a tolerância, são algumas prioridades que devem constar dos projectos educativos, no âmbito de uma educação institucionalizada. É reconhecido por todos que teremos que compreender e construir a disciplina nas nossas escolas, sendo essa uma tarefa de todos os agentes e actores educativos. Não basta servirmo-nos dos estatutos disciplinares para admoestar, suspender ou punir os alunos. A resposta tem que ser pedagógica e ético-moral. Os professores devem antecipar-se aos acontecimentos ou conflitos geradores de indisciplina e violência escolar. De forma proactiva deverão definir uma série de técnicas e estratégias que levem os alunos a estarem activos, ocupados dentro da sala de aula, evitando possíveis situações de disrupção ou de conflito. Trata-se da aplicação de uma pedagogia diferenciada e da convivencialidade relacional na escola. Para tal o professor deverá conhecer bem a turma e os alunos, através de actividades organizadas em grupo e individualmente. A cultura escolar terá de estar em ligação com o exterior, com a comunidade, sempre em sintonia com o projecto da escola. Esse espaço, com o seu respectivo ambiente, tem de ser construído conjuntamente por alunos e professores, com técnicas e estratégias de pedagogia diferenciada. Com tal espaço de liberdade, estaremos a construir a disciplina, conscientemente assumida (processo de consciencialização) e a desenvolver uma aprendizagem colaborativa e/ou participativa. Todos podemos aprender, teremos é de aprender de maneira diferente. Devemos ter bem presente que a disciplina se constrói dentro e fora da sala de aula e da escola. Para tal é fundamental implementar nas escolas uma gestão democrática e participativa, a valorização da opinião e o poder de iniciativa de todos, incluindo as dos alunos, de modo, asentirem-se respeitados e aderirem espontaneamente às normas e valores da escola (Amado, 2000, p. 45-47). Distinguimos dois tipos de situações, que requerem dois tipos de ‘medidas’, perante os comportamentos anti-sociais e/ou de indisciplina dos alunos nas aulas e nas escolas. Por um lado há que tomar uma ‘medida global’ para com aqueles problemas comportamentais

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51 dos alunos, que implicam uma prevenção primária. Trata-se da necessidade de haver uma convivência escolar (relações interpessoais, aprendizagem da convivência) que se converta no núcleo da vida da escola. Deste modo, cada escola deverá analisar as relações de convivência no seio da comunidade escolar (conflitos reais e potenciais) e no contexto do currículo, incluindo todas as decisões curriculares propostas (Cerezo y Esteban, 1992, p. 136-140; Costa e Vale, 1980, p. 37; De Cauter, 1999, p. 13-17). Esta ‘medida globalizadora’ assume a questão da psicologia da convivência e da pedagogia das relações pedagógicas na escola. Por outro lado, aprender para a convivência, desenvolver relações interpessoais de colaboração, estimular a participação nas actividades da escola, praticar hábitos democráticos fundamentais, respeitar os outros, são aspectos importantes que se colocam ao nível do currículo e da estrutura organizativa da escola. Os próprios conflitos de convivência e os desafios quotidianos da vida escolar afectam toda a comunidade e, por isso, espera-se que todos os seus membros se impliquem activamente na sua prevenção e resolução. A resposta educativa ‘global’ aos problemas e conflitos gerados pela indisciplina e violência escolar terá que superar três considerações que erradamente possuímos. A primeira é que a violência não é um problema característico das escolas. Sempre houve violência escolar, só que os meios de comunicação, na actualidade, enfatizam estes fenómenos. Em segundo lugar, a violência escolar ocorre acidentalmente, havendo escolas mais propícias a essa difusão da indisciplina, devido ao meio envolvente. Na verdade, todos os fenómenos de violência e indisciplina escolar estão interrelacionados entre si, associados às variáveis escolares, sociais, culturais e familiares. Em terceiro lugar, estes fenómenos não podem ser eliminados por medidas repressivas e de coacção. Haverá que apostar na gestão democrática da escola para que se desenvolva uma aprendizagem da convivência assumida com responsabilidade por todos. Além daquela ‘medida global’, há uma outra complementar, a ‘medida especializada’. Esta consiste num conjunto de programas específicos destinados a enfrentar os aspectos determinantes dos comportamentos anti-sociais, manifestações de indisciplina ou de violência. Os programas deverão ser implementados pelos professores após uma acção especializada (acções de formação contínua), de modo a aplicarem as metodologias e técnicas necessárias para uma maior participação da comunidade escolar (Martins, 2002; Vettenburg, 1999). 3 – Programa educativo de intervenção escolar: técnicas e estratégias O modelo de intervenção educativa nas escolas deverá partir de uma análise ecológica à abordagem do sistema de regras, normas, valores, sentimentos e comportamentos que denotam a violência e a indisciplina escolar. Esta forma de intervenção requer dos professores uma motivação acrescida na luta entre esta problemática, em sintonia com o ‘design’ do Projecto educativo da escola, debruçando-se

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52 sobre as relações interpessoais, segundo dois planos de análise do ecossistema social da escola: a convivência e as actividades escolares. Ambos os planos estão articulados entre si, dando-nos a perspectiva da realidade social, cultural, educativa e psicológica da escola como uma comunidade de convivência, em que se aprende de modo significativo e criativo e se projecta o currículo explícito, implícito ou oculto. Trata-se de pôr em evidência um ‘modelo comunitário’, importado das áreas científico-pedagógicas e profissionais, como a antropologia, a epistemologia, as ciências médicas, as ciências da educação, a ecologia escolar e a interculturalidade. Este modelo poderá ser o mais idóneo para abordar a prevenção da violência escolar (Ohsako, 1998, 7891). Assim, cada escola apresenta-se como uma unidade de convivência, configurada a partir da articulação de todos os agentes e elementos educativos (professores, alunos, pais e comunidade escolar). A planificação da intervenção implica a elaboração conceptual de programas de trabalho com instrumentos, desde a análise dos sistemas de actividade (ensino ministrado, actividades escolares, tempo livre) à análise dos modelos de convivência (distribuição e exercício do poder, modos de comunicação, normas reguladoras da vida escolar). O ‘design’ de objectivos, acções e sua avaliação fundamentam-se numa lógica de ordenação das iniciativas que cada equipa de professores sugere (intenções práticas). Utilizando a metáfora vigotskiana da ‘caixa de ferramentas’ (conceitos, procedimentos e atitudes), dispomos dos instrumentos úteis para realizar a intervenção (Trianes y Muñoz, 1997, p. 62-66; Vinyamata, 2002, p. 39-53). Para melhorar a convivência escolar propomos programas educativos baseados na dimensão afectiva dos alunos (educação pelos valores): sentimentos, emoções e relações de amizade. Trata-se de um programa de gestão (democrática) e de democratização da convivência (relações humanas), que permita o cumprimento das regras e das normas reguladoras da vida quotidiana na sala de aula e na escola. Exige-se o trabalho cooperativo, em equipa, por parte dos alunos quando executam as tarefas ou as actividades escolares que lhes são sugeridas no âmbito de uma aprendizagem criativa e colaborativa, de modo a que possam (auto) regular a comunicação, as tomadas de decisão e as iniciativas, cumprindo as tarefas propostas. Neste sentido, o professor é considerado um educador criativo que se esforça por estar atento (auto-controlo) a todas as reacções e às relações que tomam os alunos ao longo dos diferentes momentos de aprendizagem (Estrela e Amado, 2000, p. 1529; Vettenburg, 1999, p. 81-93). Efectivamente, o professor terá que ter em conta uma tríade de influxos na sua acção educativa: a gestão da vida quotidiana da aula (democracia vivenciada com normas aceites por todos); análise formativa dos valores nos alunos (vinculação da educação emocional e sentimental com os valores morais); e análise do tipo de ensino-aprendizagem implementado, observando a cooperação, o diálogo, as tomadas de decisão, a discussão e a competitividade positiva dos alunos. Deste modo, o professor expandirá a inovação, a reflexão e terá mais auto-estima na sua intervenção, conhecendo e compreendendo as

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53 necessidades e as expectativas dos seus próprios alunos dentro e fora da aula (Ortega y Mora-Merchán, 2000, p. 11-18). Esta intersecção do plano de convivência escolar (gestão democrática) com o plano de actividades escolares (aprendizagem colaborativa e criativa) e o plano dos sentimentos e emoções da vida escolar só será possível através de uma pedagogia do ‘encontro’ que implica um tipo de relações interpessoais espontâneas (não improvisadas), difusão de amizade entre iguais e uma tolerância para com as diferenças. As linhas programáticas da intervenção exigem a articulação dos programas de gestão democrática da convivência, com o programa de trabalho cooperativo em equipa e o programa de educação pelos valores, da educação de emoções, sentimentos e atitudes (Grotpeter and Crick, 1996, p. 2329-2331; Lassare, 1999, p. 39-45). Por outro lado, o desenvolvimento de um currículo flexível e cooperativo implica a aceitação de certos conteúdos, que deverão ser bem aprendidos pelos alunos. Este modelo cooperativo supõe que o processo comunicativo, implícito na função de ensinar, se insere na actividade de aprender. O trabalho preventivo contra a violência e a indisciplina exigirá modificar a forma de ensino-aprendizagem num modelo cooperativo de aprendizagem, estimulador da comunicação e da consciencialização. Assim, melhoram-se o clima afectivo, as atitudes e os valores positivos (Amado, 2000, p. 67-73; Lind and Maxwell, 1996, p. 56-62). A actividade de ensino-aprendizagem deve apoiar-se nas motivações (estado atitudinal e afectivo) e nos interesses dos alunos e do professor. Será importante, em termos de transversalidade curricular, incluir programas com conteúdos referentes aos sentimentos, às atitudes e aos valores, de maneira a poder trabalhar o conhecimento interpessoal ou psicológico e as relações. Como técnicas a incluir, citamos o jogo, o debate ou discussão em fórum, os contos, a simulação e interpretação de papéis e o estudo de casos específicos com a ajuda de textos ou vídeos. Ainda sugerimos a inclusão das técnicas de mediação de conflitos, a interajuda entre iguais, a metodologia de repartição de responsabilidades, as estratégias de desenvolvimento da empatia e a reciprocidade moral (Amado, 2001, p. 34-39; Cerezo y Esteban, 1992, p. 134-137). Reflexões finais O sistema educativo introduziu o estatuto disciplinar e regras, as mais das vezes exteriores aos professores e aos alunos. Não é fácil esse processo de exigência e de aplicação dessas normativas, pois as actuais gerações de alunos transportam tipos de comportamentos, por vezes difíceis de serem detectados pelos professores e pela escola. Cabe à comunidade escolar construir a disciplina a partir da liberdade e a autoridade educativa, isto é, desde o sentido do ofício do aluno (sentido de responsabilidade, autoconfiança, convivência social democrática). A escola pode evitar os conflitos e as situações de indisciplina e violência escolar. Há muitos exemplos de escolas, de muitos professores, de muitas associações de pais e

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54 encarregados de educação que criam um ambiente de convivência escolar e uma cultura de relações humanas. É bom que compreendamos que nem tudo passa pela escola e que esta não faz milagres se a família e a comunidade não ajudar a evitar essas situações, melhorando o clima e ambiente educativo, criando condições favorecedoras de uma adequada aprendizagem dos alunos. Os programas de prevenção podem proporcionar às escolas e aos professores instrumentos de qualidade para o seu trabalho diário dentro da sala de aula e para atenuar e, se possível, evitar o aparecimento de conflitos, processos de indisciplina oculta e comportamentos anti-sociais. A utilização de qualquer programa na escola terá que inserirse sempre no contexto do Projecto – Escola (ou ao nível do Agrupamento de Escolas) e estar relacionado com a questão da convivência e das relações, mas adaptado às características e às possibilidades de cada escola. De facto, a escola e os professores não possuem nenhuma varinha de condão para suprimir conflitos. Haverá que implicar as relações de parceria da escola com as instituições da comunidade, com a família, num esforço comum para encontrar respostas pedagógicas para esses problemas, de modo a respeitar e atender à diversidade e pluralidade social e cultural dos alunos, adequar as suas propostas educativas e os projectos (de escola e curricular) aos interesses e características dos seus alunos, evitando o abandono e o insucesso escolar. Uma escola capaz de envolver os alunos, de os motivar, de percepcionar os seus problemas e necessidades, construindo conjuntamente as regras e as normas de funcionamento e de convivência escolar, de incentivar a formação dos jovens como cidadãos activos, críticos e participativos. Uma escola capaz de lutar por uma verdadeira autonomia, combatendo os constrangimentos que surgem para construir alternativas pedagógicas, exigindo a afectação de recursos, meios e espaços necessários, criando gabinetes psicopedagógicos e equipas integradas pluridisciplinares de apoio. Enfim, uma escola que permita aos jovens viver a escolaridade como um momento fundamental do desenvolvimento da sua personalidade e de competências, de espírito criativo e crítico, ou seja, que se assuma como um espaço de aprendizagens e de formação ao longo da vida, fomentando uma consciência cívica, solidária e de respeito pelas diferenças. Bibliografia AMADO, J. A construção da disciplina na escola – Suportes teórico-práticos (Cadernos CRIAP n.º 9). Porto: Edições Asa, 2000, p. 381 AMADO, J. Interacção pedagógica e indisciplina na aula. Porto: Edições Asa, 2001, p. 344 CEREZO, F. y ESTEBAN, M. ‘La dinámica bully-victima entre escolares. Diversos enfoques metodológicos’. Revista de Psicología Universitas Tarraconenses, Vol. XIV, 2, 1992, p 131-145 CHARLOT, B. et EMIN, J.C. La violence a l’escole: état des savoirs. Paris: A. Colin, 1997. COSTA, M.; VALE, D. A Violência nas escolas. Lisboa: Instituto de Inovação Educacional,

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55 1980, p. 293 DE CAUTER, F. Methodology for developing projects involving general prevention. Leuven: Onderzoeksgroep Jeugdcriminologie, 1999, p. 375 ESTRELA, M.ª Teresa Relação pedagógica, Disciplina e indisciplina na sala de aula. Porto: Porto Editora, 1992, p. 342 ESTRELA, M.ª Teresa & AMADO, J. da Silva ‘Indisciplina, violência e delinquência na escola: uma perspectiva pedagógica’. Revista Portuguesa de Pedagogia, Ano XXXIV, n.º 1, 2, 3, 2000, pp. 249-274 ETXEBERRIA BALERDI, F. ‘Violencia escolar’. Revista de Educación, 326, 2001, 119-144. FERNÁNDEZ, I. Prevención de la violencia y resolución de conflictos. El clima escolar como factor de calidad. Madrid: Ed. Narcea, 1998, p. 297. FONSECA, A. Castro. ‘Comportamentos anti-sociais: uma introdução’. Revista Portuguesa de Pedagogia, Ano XXXIV, n.º 1, 2, 3, 2000, pp. 9-36 FONSECA, A. C.; SIMÕES; A.; REBELO, J.A.; FERREIRA, J.A.; CARDOSO, F. ‘Comportamentos anti-sociais referidos pelos próprios alunos: novos dados para a população portuguesa do ensino básico’. Psychologica, n.º 14, 1995, pp. 39-57 GROTPETER, J. K. and CRICK, N. R. ‘Relational aggression, overt aggression and friendship’. Child Development, n.º 67, 1996, pp. 2328-2338 LASSARRE, D. Violences scolaires et valeurs: une approche psychologique (Seminaire de Violence Scolaire). Luxemburgo : Federation de Sindicate – CSEE, 1999, p. 236. LIND, J. and MAXWELL, G. Children’s experience of violence at school. Wellington: Office of the Commissioner for Children, 1996, p. 253. MARTINS, Ernesto C. ‘O cenário da indisciplina e violencia escolar. Estratégias de prevenção e intervenção’. In: Actas do VII Congresso da AEPEC – Por uma Escola sem Violência (Évora, 24 a 26 de Outubro). Évora: Universidade de Évora, 2002, Documento policopiado de pág.s 23 OHSAKO, T. Violence at school. Global issues and interventions. Bruxelles: UNESCO, 1998. OLWEUS, D. Bullying at school. What we know and what we can do. Oxford: Blackwell, 1993. ORTEGA, R. Violencia escolar. Mito o realidad. Sevilla: Mergablum, 2000, p. 379. ORTEGA, R. y MORA-MERCHÁN, J. ‘Agresividad y violencia. El problema de la victimización entre escolares’. Revista de Educación (Madrid), 313, 2000, pp. 7-28 SMITH, P. K. and SHARP, S. School Bullying. London Routledge, 1994, p. 265. TRIANES, M. V. y MUÑOZ, A. ‘Prevención de la violencia en la escuela: una línea de intervención’. Revista de Educación (Madrid), n,º 313, 1997, pp. 121-142. VETTENBURG, N.‘Violência nas escolas: uma abordagem centrada na prevenção’. Revista Portuguesa de Pedagogia, Ano XXXIV, n.º 1-2-3, 2000, pp. 223-247. VINYAMATA, E. Manual de prevención y resolución de conflictos. Barcelona: Ariel, 2002.

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56 MÚSICA NATIVISTA E IMAGINÁRIOS GAUCHESCOS: SOBRE CANTAR OPINANDO Fernanda Marcon

Mestranda em Antropologia Social Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Universidade Federal de Santa Catarina

Resumo Podemos entender a música nativista como um caso específico de regionalismo musical dentro das múltiplas expressões da música popular brasileira contemporânea; tratase de um repertório de canções oriundo do estado do Rio Grande do Sul, conhecido como “música nativista gaúcha”. Nota-se a presença de um trânsito musical entre os países do chamado Cone Sul latino-americano, apontando para a constituição de imaginários e audições de mundo acerca do que os sujeitos entendem como “cultura gaúcha”. Assim, o artigo pretende discutir a relação entre este tipo de produção musical no sul do Brasil e a constituição de imaginários gauchescos que perpassam diferentes territórios e sonoridades. Palavras-chave: música nativista, cultura gaúcha, imaginários sociais. Abstract We can understand the nativista music as a specific case of musical regionalism within the multiple expressions contemporary Brazilian popular music; it is a repertoire of songs originating from the state of Rio Grande do Sul, known as música nativista gaúcha.The presence of a kind of musical traffic is noticed amongst the countries of the so-called South Latin-American Cone, leading to what seems to be the constitution of world imaginaries and auditions concerning what subjects understand as "gaucho culture". Being so, the present article intends to discuss the relationship between this type of musical production in the south of Brazil and the constitution of gauchesco imaginaries throughout different territories and sonorities. Key words: nativista music, gaucho culture, social imaginary. Introdução A partir da pesquisa de dissertação de mestrado que desenvolvo a respeito da produção de música nativista no festival “Sapecada da Canção Nativa” em Lages - SC, algumas questões foram surgindo e tornaram-se mais e mais presentes. Em primeiro lugar, o significado deste tipo de musicalidade enquanto catalisador de perspectivas de mundo singulares, ligadas a imaginários específicos sobre o que os sujeitos denominaram de “cultura gaúcha”. Apesar do enfoque sobre as construções imagéticas de meu campo de estudo, é a música que rege o “ouvido etnográfico”. Para além da análise das letras das canções nativistas, a construção da musicalidade torna-se absolutamente central dentro de uma perspectiva etnomusicológica, ou como prefere Menezes Bastos (1995) “para além de

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57 uma antropologia sem música e de uma musicologia sem homem”. Nesse sentido, a música nativista não é tomada aqui como um “exemplo” de como pensam e vivem seus compositores, instrumentistas, intérpretes; mas como agente, soando as vivências dos sujeitos e constituindo modos de sentir o mundo. O artigo compreende três movimentos. No primeiro, o apontamento das construções a respeito do que se entende por “cultura gaúcha/gaucha” – e nesse ponto, tomo o cuidado de diferenciar os termos gaúcha e gaucha não apenas por suas especificidades linguísticas - que configuram a produção de uma musicalidade ancorada, principalmente, na valorização do terrunho, na inovação estética e na projeção folclórica. Dando sequência a esta discussão, o segundo momento pretende dar conta da constituição do movimento dos festivais de música nativista enquanto um importante “móvel de disputas” em torno do que significa “ser gaúcho”. (Oliven, 1992) Por fim, um terceiro movimento indica questionamentos necessários para, longe de um desejo de entendimento pleno, levarnos a uma percepção menos superficial de um repertório musical ancorado em imaginários peculiares sobre as vivências dos sujeitos. De cultura gaúcha/gaucha Ao iniciar minha pesquisa de campo, algumas questões ainda permaneciam em suspenso, principalmente pela presença forte de um senso comum que, por vezes, confundia as personagens presentes no que se conhece por “cultura gaúcha, gaucha” com as facetas imortalizadas pelos movimentos regionalistas sul-rio-grandenses. No entanto, não apenas as muitas leituras, mas um campo repleto de significados em trânsito, apresentaramme um mapa diferenciado deste “Cone Sul” da América Latina, onde os termos gaúcho e gaucho, ao se aproximarem e tomarem distância, constroem algo estrondoso, sonoro e vivo; algo que alguns categorizam como “cultura” – demarcando sua materialidade e imaterialidade numa mesma moeda – e outros preferem simplesmente acreditar na supremacia de um “estado de espírito”. O “ser gaúcho”, “gaucho”, tornou-se uma questão fascinante para a Antropologia. Seja em torno de discussões a respeito da constituição de identidades nacionais (como é o caso marcante da Argentina), como em referência a processos políticos ligados ao federalismo e ao republicanismo no sul do Brasil. O mapa de que falei há pouco, só faz sentido na medida em que os sujeitos destes processos estudados e analisados por diferentes pesquisadores passam a designar um modo, jeito, estilo de vida como sendo o seu - ou pelo menos uma referência sempre almejada – chamando-o de “cultura”. Palavra tão cara à nossa arte, ela esteve presente em meu campo como uma lanterna, às vezes sem pilha, deixando de iluminar qualquer coisa e passando a peso morto, por ser carregado. Irônico, mas nem tanto. A cultura, como um conceito-chave e traiçoeiro, pareceu um mar de calmaria, quando pronunciado por aqueles que se deleitam ao dizer “a nossa cultura é gaúcha!”. Começarei por uma discussão bastante comum aos pesquisadores deste tema, que como mencionado acima, ainda encontram-se em desconforto ao analisar processos tão diferenciados e ao mesmo tempo tão parecidos. Falo da constituição de um ator central,

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58 pelo qual perpassam narrativas de integração, fronteira, guerra, arte, entre outras, e que marca um olhar bastante específico sobre uma região da América Latina: o gaúcho, gaucho. Acentuando esta região geográfica, não pretendo que o leitor interprete apressadamente que a entendo como uma “área cultural” aos moldes do que já foi bastante problematizado na Antropologia. Faço referência a este mapa, pura e simplesmente, por sua dimensão simbólica entre os sujeitos desta pesquisa. Nesse sentido, a intenção de minha menção a esta região geográfica é demonstrar sua intensidade enquanto referencial de uma “origem”, “matriz” de valores que passaram a se descortinar durante minha pesquisa de campo. O primeiro deles, que soava estridentemente aos meus ouvidos, diz respeito à força com que a terra natal, ou o “berço” poderia determinar a constituição de um temperamento específico, um jeito de ser, olhar e ouvir a vida, diferenciado. É o que chamo de caráter terrunho da produção de música nativista. Quero dizer que a terra em que nasce e cresce uma pessoa, e no caso em análise, um músico nativista, lhe reserva uma personalidade ímpar, que o condena a amá-la e projetá-la para onde quer que vá. Dentro dessa perspectiva, encontrar raízes, ou pelo menos, uma “terra sagrada” por se referenciar, é algo bastante valioso e significativo. É preciso anunciar mais uma pausa para explicar que quando coloco os termos gaúcho e gaucho, separados por vírgula e não por uma conjunção, quero dizer com isso que tanto não tento traduzir o segundo pelo primeiro, quanto não pretendo investigá-los como se fossem a mesma palavra e com o mesmo significado. Minha intenção é tentar entendê-los dentro de um universo simbólico - partindo de minha pesquisa de campo – para que nem um nem outro sejam ignorados ou tomados como objetos fechados, cada um em um local específico da análise. Como já afirmei, tratam-se de processos em movimento, categorias em construção por diferentes sujeitos. Alguns autores optaram por entender o fenômeno do gauchismo como uma “ideologia”, a exemplo de Tau Golin (1983). É preciso notar que estamos concentrando a análise em um fenômeno que se desenvolve no Brasil, mas que mantém íntima relação com outros processos vivenciados por países como Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile. Falar de gaúcho, não significa apenas falar da pessoa que nasce no Rio Grande do Sul, mas em diferentes instâncias, confunde-se com os imaginários sobre um personagem paradigmático, presente nos pampas argentinos e uruguaios, e também em parte do campesinato paraguaio. Para tanto, passemos a entender melhor esta confluência de significados, tomando de empréstimo análises literárias e musicais que estiveram ligadas à temática da cultura gaúcha, gaucha, para que se possa ter uma idéia do que representa atualmente. Não pretendo aqui uma reconstituição histórica, mas um apanhado de informações atuais sobre movimentos que se iniciam a partir do século XIX na América Latina. Decido mencionar em primeiro lugar, um personagem bastante conhecido da literatura argentina: o Martín Fierro, de José Hernández (1872; 1879). As datas de publicação não designam nenhum tipo de divisor de águas na constituição de uma “identidade nacional” argentina, mas suscitam muitas questões, investigadas por diferentes intelectuais daquele país, sobretudo no âmbito literário, que utilizo aqui. De acordo com Jorge Luis Borges & Margarita Guerrero (2005), a poesia gauchesca, como é identificada a obra de

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59 Hernández – um poema dividido em dois livros, “El gaucho Martín Fierro” (1872) e “La vuelta de Martín Fierro” (1879) – não deve ser confundida com uma literatura feita por gauchos, uma população eminentemente masculina, desenhada por diferentes autores, cronistas, que concebe um consenso sempre problemático de que se tratavam de pessoas errantes, que andavam pelos pampas e tinham como principal transporte e atividade o cavalo e o gado. Seu caráter eminentemente popular, portanto, está atrelado a uma produção da elite, entendendo-a aqui, como propuseram Borges e Guerrero, como uma parcela letrada de escritores de Buenos Aires e Montevidéu, no Uruguai.[1] Como mencionam os autores, é um equívoco pensar que a poesia gauchesca deriva imediatamente da poesia dos payadores, ou improvisadores profissionais da campanha (como é conhecida a região do pampa). Esta confusão se configura, principalmente, pela coincidência do metro octossílabo e das formas estróficas (sextilha, décima, copla) da poesia gauchesca com as da poesia payadoresca.(Borges & Guerrero, 2006: 11) Como mencionam Borges & Guerrero, em algumas passagens de seu poema, Hernández parece demarcar exatamente de que maneira se diferencia das improvisações dos payadores: [2] Cabe supor que dois fatos foram necessários para a formação da poesia gauchesca. Um, o estilo da vida dos gaúchos[3]; outro, a existência de homens da cidade que se identificaram com ele e cuja linguagem habitual não era demasiado diferente. Se tivesse existido o dialeto gauchesco que alguns filólogos (em geral, espanhóis) estudaram ou inventaram, a poesia de Hernández seria um pastiche artificial e não a coisa autêntica que conhecemos.[4]

Ainda assim, não nos parece claro de quê população gaucha parte a inspiração para a poesia gauchesca de Hernández. Afirmar simplesmente que eram homens que vagavam pelos pampas, a lidar com gado e cavalos, não resolve o problema. De acordo com Élida Lois (2004), a Argentina, em meados do século XIX, apresentava conflitos em torno das terras pertencentes aos povos indígenas. Todo o território que pôde permanecer em poder dos índios livres foi ganhando um enorme valor potencial na medida em que se intensificava a atividade agropecuária. “El desierto”, como eram chamadas as terras dos índios[5], passaram a agregar enorme valor e seus habitantes se tornaram o inimigo número um da “civilização”. Nesse contexto, além das terras indígenas e as cidades e seus campos circundantes, havia ainda um território vagamente definido: la frontera. Seus habitantes, igualmente não definidos, povoaram o imaginário da poesia gauchesca e delimitaram um personagem bastante específico: el gaucho. De acordo com Almeida (2008), este personagem aparece na literatura argentina do final do século XIX com características duais; isto é, como uma espécie de articulação entre a civilização e a selvageria, o índio e o não-índio. Citando o autor de “La Pampa” (1890), Alfredo Ebelot, Almeida identifica uma clara linha evolutiva, onde o gaucho representa um estado intermediário, partindo do indígena, para chegar ao civilizado. (Almeida, 2008: 15) No forjar de um mito sobre a identidade nacional argentina, o espaço da fronteira - física, política, moral, etc – constitui-se como um terreno fértil para redefinição de identidades. Segundo Lois , a linguagem do poema de Hernández - entre a “ida e a volta” de Martín

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60 Fierro – cruza fronteiras entre a oralidade e a escrita, entre a cultura popular e a cultura letrada. Ao apropriar-se da voz do gaucho, mas ao mesmo tempo distanciando-se dela, Hernández anda pelas bordas de um campo de tensões. (Lois, 2004: 39) Nesse sentido, a literatura gauchesca constitui-se como um híbrido que, não livre de conflitos, mostra-se como a “aliança de classes”, algo extremamente interessante dentro de um projeto de consolidação do Estado-Nação. Pois bem, de que maneira a construção deste personagem-chave dentro do contexto literário argentino e também uruguaio passa a fazer algum sentido quando pensamos no nosso “gaúcho brasileiro”? Para Maria Elizabeth Lucas (1990), o regionalismo gaúcho[6] é uma construção intelectual fundada em níveis distintos de percepção (ou visões de mundo) e em uma experiência primordial (ou na falta dela) com a cultura pastoril do Rio Grande do Sul. Nesse sentido, através de uma análise da construção semântica da palavra “gaúcho”, a autora pôde perceber como as imagens e representações da sociedade sulista que produziram o regionalismo gaúcho como uma construção ideológica, mostraram como os intelectuais (tanto do Rio Grande do Sul, quanto de outros estados) traduziram condições sócio-econômicas e interesses de classe específicos em uma herança histórica e uma identidade cultural comum. Assim, a autora identifica três momentos distintos no panorama dos movimentos revitalizadores da cultura gaúcha: num primeiro momento, na virada do século XIX, uma idealização, por parte dos intelectuais locais, de grêmios recreativos para cultivar as tradições gaúchas[7]. A partir da II Guerra Mundial, um novo momento se estrutura com a criação de Centros de Tradições Gaúchas (CTGs) por estudantes secundaristas de Porto Alegre[8]. Por fim, um último momento relaciona-se à emergência, nos anos 1970, do que se chamou de “nativismo” dos festivais de música. Sobre cantar opinando Despontavam os agitados anos 1970, e a “era dos festivais” (Zuza Homem de Mello, 2003) fazia sentir seu peso sobre milhares de expectadores ainda extasiados com o advento televisivo. Também se observava um Brasil que experimentava uma repressão violenta às liberdades civis e individuais: a censura implacável da ditadura militar atuava fortemente, enquanto a sociedade se dividia em críticas diversas ao mesmo regime. Tropicália, jovem-guarda, canção de protesto... muitas idéias musicais fervilhavam quando uma emissora de rádio de Uruguaiana, RS, decide promover um festival de música popular, o “I Festival da Canção Popular da Fronteira”. De acordo com Lucas, a milonga “Abichornado”[9], de Colmar Duarte e Júlio Machado da Silva Filho foi eliminada pelo júri sob o argumento de que se tratava de uma “música gauchesca”. Descontente com tal resultado, Colmar Duarte decide criar um festival que promovesse exclusivamente a música regional. Para além das diferentes versões sobre o fato, o resultado do festival incitou sobremaneira a decisão de criar um evento no mesmo formato (um festival) que pudesse contemplar um estilo de música visto por Colmar Duarte como “discriminado”.[10] É preciso notar que os idealizadores do festival também se posicionavam contra a música regional produzida até então no RS: a chamada música tradicionalista gaúcha, tendo em

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61 Teixeirinha, Zé Mendes e Pedro Raymundo seus principais ícones. Em sua perspectiva, a música regional gaúcha deveria passar por um processo de inovação estética, onde a qualidade musical fosse o principal objetivo. O patamar de “qualidade e inovação estética” almejado pelos idealizadores da Califórnia foi, de fato, reconhecido. Para citar um exemplo de minha pesquisa de campo, ouvi de muitos compositores que antes do advento dos festivais nativistas a música produzida no sul do Brasil era considerada “antiquada”, “brega”; diferente do que se observaria atualmente, onde ela é produzida por bons músicos, que executam de “jazz a MPB”. Segundo Santi, esta busca de qualidade deve ser compreendida também como um “esforço” no sentido de acompanhar as mudanças radicais na própria música popular brasileira, a exemplo da bossa nova, do tropicalismo e da canção de protesto; bem como às transformações tecnológicas introduzidas no país, como a eletrificação dos instrumentos musicais e a evolução das aparelhagens de amplificação e difusão sonora. É na década de 1980, porém, que todo este debate sobre a qualidade estética introduzida pelos festivais nativistas na música regional gaúcha vai consolidar a polarização entre tradicionalismo e nativismo, fazendo da identidade gaúcha um importante “móvel de disputas”. (Oliven, 1992: 108) Isso porque, segundo Oliven, apesar dos contrastes entre os movimentos, havia um substrato comum em jogo: quem teria competência e legitimidade para afirmar o que é e o que não é “cultura gaúcha”. De um lado, o tradicionalismo dos CTGs e sua cartilha bastante consolidada – com regras de composição, figurino e execução - de outro, um movimento pautado em grandes festivais de música, interessado em inserir o seu formato de cultura gaúcha em canções de qualidade – com boas letras (incluindo temas mais “politizados” que falassem do êxodo rural, das questões latino-americanas, etc), bons arranjos, bons instrumentistas e intérpretes. Também estava aí uma intenção de projetar elementos reconhecidos como folclóricos no RS e dar a eles uma feição universal. Em entrevista ao jornal “Folha da Tarde” de Porto Alegre, em 27 de setembro de 1971, Henrique Dias de Freitas Lima (um dos organizadores da primeira Califórnia) faz críticas ferrenhas ao “rumo” que a música gaúcha estaria tomando: “Letras e melodias erradas, com Teixeirinha servindo de exemplo maior. ‘Coração de luto’, dele, ou ‘Pára Pedro’, do Zé Mendes, nunca foram temas gaúchos.” [11] É evidente que a crítica, em busca de uma forte justificativa para a importância da Califórnia, aponta para a tentativa de ruptura com um passado musical que, em sua opinião, teria sido o grande responsável pela falta de reconhecimento da música gaúcha como “boa música” ou “música de qualidade”. Nesse sentido, os organizadores da Califórnia viam neste novo movimento musical a possibilidade de “fazer escola”: fomentar a criação musical do RS a partir de valores contrários ao que entendiam como “música comercial”, pautada em temas como a grossura e o machismo do gaúcho. Entra em cena um “cantar opinando” [12], isto é, uma intenção de romper com uma musicalidade tida como não-comprometida com os “verdadeiros temas gaúchos”. Considerações finais

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62 Os festivais - além de competições acirradas por prêmios altos – representam “uma das arenas na qual têm se travado de modo mais intenso as disputas em torno do que significa ser gaúcho”. (Oliven, 1992: 116) Para definir quais canções podem ser inscritas, cada festival organiza um regulamento onde expõe o que entende por música nativista. No caso da Califórnia, foram criadas “linhas”; isto é, de acordo com a temática da canção, ela poderia ser classificada como de “linha campeira”: a que se identifica com o homem, o meio, os usos e costumes do campo no RS; “linha de manifestação rio-grandense”: a que enfoca outros aspectos sócio culturais e geográficos do RS não limitados estritamente à “linha campeira”; e a “linha de projeção folclórica”: a que, partindo das demais, se projeta com o sentido de universalidade artística em termos de tratamento poético-musical. (Oliven, 1992: 117) Delimitam-se, nesse sentido, os moldes a que as canções devem se encaixar. Não livres de críticas, os regulamentos de festivais variam muito com o tempo, tentando alcançar o máximo de “objetividade” possível. Objetividade no sentido de imparcialidade de julgamento, o que é constantemente questionado pelos compositores. Em um discurso que não parte apenas de comissões organizadoras, a questão das temáticas – mais credenciadas ou menos quanto ao que é ser gaúcho – evidencia, além de uma clara preocupação com a letra em detrimento da música das canções, uma indefinição incômoda sobre a cultura gaúcha. Em minha pesquisa de campo, numa cidade catarinense muito ligada ao tradicionalismo gaúcho, pude perceber o grande desconforto que alguns compositores apresentavam com relação a serem chamados de “cataúchos”[13], ou “gaúchos cansados” [14]. Para estes compositores, a cultura gaúcha não estaria delimitada pelas fronteiras do estado brasileiro do Rio Grande do Sul. Estaria espalhada por onde quer que a “lida de campo” – entendendo-se aqui as atividades pecuárias, principalmente - fosse predominante. Além disso, parece estar presente neste discurso sobre a origem da cultura gaúcha um elemento transcendente: um estado de espírito. Ser gaúcho também está aquém de indumentárias, atividades campeiras e territórios específicos. É também um modo de ser cravado no peito, um ímpeto que transborda da pessoa em determinado momento da vida, seja na infância, seja na vida adulta, quando se olha para uma infinidade de campo verde e se deseja mais do que tudo um cavalo para poder cavalgar sem rumo e pelejar[15] quando for preciso. Dentro dessa perspectiva, também está a vontade de liberdade plena, o caráter bravio e poético. O apreço pela terra natal, pela querência, pelas coisas nativas. Este estado de espírito, aliado a condições geográficas e formas de trabalho parece ancorar o significado de ser gaúcho em Santa Catarina ou no Mato Grosso, por exemplo; ainda que, como apontado anteriormente, o Rio Grande do Sul apareça como principal referência. Retomando a questão apresentada no início deste artigo, parece essencial analisar a importância que a idéia de “cultura” recebe entre os diferentes sujeitos do gauchismo. Ser gaúcho, gaucho, pode representar, primordialmente, um estado de espírito. Mas ele se manifesta em atividades específicas; isto é, pode ser observado dentro de um conjunto de elementos que os sujeitos definem como “cultura gaúcha/gaucha”. De acordo com a discussão apresentada, muitos desses elementos foram interpretados de diferentes maneiras, mesmo que constituindo um imaginário base sobre a vida dos gaúchos, gauchos. Acompanhando o raciocínio de Lucas (1990), podemos compreender esse processo como o resultado da articulação entre sistemas sociais e sistemas simbólico-culturais. Nesse

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63 sentido, as representações coletivas advindas de tal articulação seriam formadas por um conjunto de imagens, símbolos, temas e conceitos – que alguns teóricos denominaram como “imaginação social” – através dos quais categorias de classe, gênero, idade, etnia, identidades regionais e nacionais são construídas. (Lucas, 1990: 43) Contudo, sabemos que elas não são imóveis, mas sim passíveis de mudanças, de acordo com as conjunturas que se apresentam aos sujeitos. Assim, a idéia de cultura parece representar um “elo” entre as diferentes interpretações vigentes, criando uma base referencial, algo que supostamente eliminaria possíveis ambigüidades e desconfortos. Como analisa José Carlos Rodrigues (1989), o conceito de “cultura” é muito útil como rótulo exterior, serve para a observação a partir de um ângulo externo, mas é muito pobre para compreendermos uma sociedade desde dentro, assumindo um ponto de vista interior. (Rodrigues, 1989: 167) Dessa forma, a idéia de uma cultura gaúcha, gaucha se apresenta como “porto seguro”, posto que os próprios sujeitos que dizem vivenciá-la reconhecem sua diversidade e antagonismos internos. Pensar em uma forma abstrata e homogênea torna-se, portanto, uma boa maneira de contar a alguém “de fora” o que é a cultura gaúcha, gaucha – como aconteceu comigo em várias ocasiões durante a pesquisa. Bibliografia: Almeida, Ignácio. 2008. Representaciones sobre la música popular em el proyecto de construcción de la identidad nacional: de cómo fue imaginada y narrada la música popular entre 1870 y 1930. (Artigo) IX Congreso Argentino de Antropología Social. Posadas, Misiones. ISBN: 978-950-579-119-4 Antropología Social CDD 306 Borges, Jorge Luís & Guerreiro, Margarita. 2005. O “Martín Fierro”. Porto Alegre: L&PM. Golin, Tau. 1983. A ideologia do gauchismo. Porto Alegre: Tchê. Hernández, José. 2007. Martín Fierro. La Plata: Terramar. Lois, Élida. 2004. Cruzamento(s) de fronteira(s) em Martín Fierro. In: Chiappini, Ligia; Martins, Maria Helena; Pesavento, Sandra Jatahy (orgs). Pampa e cultura: de Fierro a Netto. Porto Alegre: Editora da UFRGS/ Instituto Estadual do Livro. Lucas, Maria Elizabeth da Silva. 1990. Gauchos on Stage: Regionalism, Social Imagination and Tradition in the Festivals of Musica Nativa, Rio Grande do Sul, Brazil. (Tese de Doutorado) The University of Texas, Austin. Menezes Bastos, Rafael José de. 1995. Esboço de uma teoria da música: para além de uma antropologia sem música e de uma musicologia sem homem. Anuário Antropológico/93. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. Mello, Zuza Homem de. 2003. A era dos festivais: uma parábola. São Paulo: Editora 34. Oliven, Ruben.1992. A parte e o todo: a diversidade cultural no Brasil-Nação. Petrópolis: Vozes. Santi, Álvaro. 2004. Do Partenon à Califórnia: o nativismo e suas origens. Porto Alegre: Editora da UFRGS. [1] Nota-se um processo bastante similar em outros países da América Latina, em que escritores categorizados como “nacionalistas” e “regionalistas” se espelham em personagens populares para compor seus romances. A diferença aqui, talvez, se dê em torno da linguagem utilizada. No caso de Hernández, a voz do gaucho é confundida com a voz do autor, criando um vocabulário próprio, muitas vezes considerado uma maneira de falar generalizadamente gaucha.

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64 [2] De maneira resumida, a payada é um desafio improvisado em versos, quase sempre acompanhado de um violão. O gênero musical executado pelo violão, geralmente, é a milonga. [3] Transcrevo o trecho conforme a tradução de Carmem Vera Cirne Lima, que optou pela palavra gaúcho para traduzir gaucho. [4] Borges & Guerrero (2006, 12). [5] De acordo com Almeida (2008), este território compreende, atualmente, as regiões do Pampa, Patagônia e Chaco. Almeida (2008, 14) [6] De acordo com Santi (2004), no contexto do RS, usa-se habitualmente o termo “regionalismo” com um significado que extrapola a literatura, para designar qualquer aspecto da cultura característico do Estado, da culinária à maneira de vestir. Santi (2004,17) [7] De acordo com Ruben Oliven (1992), em 1868, é fundado em Porto Alegre o “Partenon Literário”, uma sociedade de intelectuais e letrados que tentava unir os modelos culturais vigentes na Europa com a visão positivista da oligarquia sul-rio-grandense através da exaltação da temática regional gaúcha. E em 1898, por iniciativa do republicano e positivista João Cezimbra Jacques, surge a primeira agremiação tradicionalista, o Grêmio Gaúcho de Porto Alegre. Oliven (1992, 71-73) [8] Como é o caso do “35 CTG”, primeiro CTG, fundado em 1948. [9] Segundo Santi, no vocabulário gauchesco o termo significa o mesmo que “triste”, “acabrunhado”. Santi (2002,53) [10] Nasce, em 1971, o festival Califórnia da Canção Nativa, na cidade de Uruguaiana, RS. A partir desse, muitos outros foram criados em todo o RS, assim como em Santa Catarina e no Paraná. Levando em conta os três estados, a pesquisa contabilizou mais de 50 festivais de música nativista por ano. [11] “Em busca de algo novo” – 27/09/1971. Porto Alegre, Folha da Tarde: 13. [12] Referência ao poema de José Hernández, onde o gaucho Martín Fierro sentencia: “Yo he conocido cantores, que era um gusto el escuchar, mas no quieren opinar, y se divierten cantando; pero yo canto opinando, que es mi modo de cantar.” Hernández, José. 2007. Martín Fierro. La Plata: Terra Mar, 54. [13] Da mistura das palavras “catarinense” e “gaúcho”. [14] O apelido “gaúcho cansado”, segundo informações de moradores da cidade, se deve ao fato de a cidade ter sido povoada por tropeiros. Os tropeiros gaúchos que seguiam para São Paulo resolviam “parar” em Lages para descansar e engordar o gado, daí a denominação do lageano como um “gaúcho cansado”. [15] Do vocabulário gauchesco, o mesmo que “lutar”, “guerrear”.

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65 UMA ANALISE DE GÊNERO: O PAPEL DA MULHER NA SOCIEDADE DA REPÚBLICA RIO-GRANDENSE (1836-1845) E SEUS REFLEXOS NA EDUCAÇÃO DE MENINAS Itamaragiba Chaves Xavier

Mestrando do Programa de pós-graduação Faculdade de Educação Universidade Federal de Pelotas(PPGE/FAE/UFPEL) Membro do CEIHE/UFPEL

Giana Lange do Amaral

Profª. Dra. do Programa da Pós graduação em Educação Faculdade de Educação Universidade Federal de Pelotas (PPGE/FAE/UFPEL) Pesquisadora do CEIHE/UFPEL

Resumo Neste trabalho analisaremos como a sociedade Farroupilha, majoritariamente dominada pelos homens, percebe a mulher neste espaço social e quais seus reflexos na educação de meninas. As fontes que utilizamos neste estudo são: a bibliografia referente ao tema, as cartas dos participantes da Revolução Farroupilha, editadas pelo Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul e o jornal O Povo, um dos diários oficiais do Governo da Republica Rio-grandense. Usamos também como fonte de pesquisa o Projeto da Constituição da República Rio-grandense e leis sobre cidadania e Educação. Os nossos referenciais teóricos são: Alves, Le Goff , Louro, e Scott. Palavras-chave: Gênero. República Rio-grandense. Educação. Abstract In this paper we analyze how the Farroupilha society, mostly dominated by men, a realize woman in that social space and its impact on education of girls. The sources we use in this study are: a bibliography on the subject, the letters of the participants of the Farroupilha Revolution, edited by the Historical Archive of Rio Grande do Sul and the newspaper O Povo, one of the official journals of the Government of the Rio-Grandense Republic. We also use as source of research the Project of the Constitution of the RioGrandense Republic and laws about citizenship and education. Our theoretical references are: Alves, Le Goff, Louro, and Scott. Keywords: Gender. Rio-Grandense Republic. Education. Introdução O presente artigo faz parte da pesquisa realizada no Mestrado em Educação na Universidade Federal de Pelotas (FAE/UFPEL), na linha de pesquisa História da Educação, em que é analisada a Instrução Pública na República Rio-grandense (1836-1845). Este é um espaço de tempo em que a Província de São Pedro, atual Rio Grande do Sul, esteve separada do Império brasileiro, inclusive criando a República Rio-grandense, com ideais liberais e modernos, contrapondo no discurso a Monarquia brasileira como opressora e atrasada.

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66 Ao analisarmos as fontes percebemos a necessidade de investigar o papel da mulher na sociedade farroupilha e seus reflexos na educação de meninas, que é o que apresentaremos neste artigo. A nossa concepção de gênero está de acordo com Louro (2007, p. 210) que considera gênero uma “construção histórica, produzida na cultura, cambiante, carregada da possibilidade de instabilidade, multiplicidade e provisoriedade”. Salienta-se que a forma como percebe-se hoje a questão de gênero não foi sempre assim e que pode mudar de acordo com cada cultura. As fontes que utilizamos neste estudo são: a bibliografia referente ao tema, as cartas dos participantes da Revolução Farroupilha, editadas pelo Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, conhecida pela historiografia por Coleção Varela (C.V.) e um dos jornais oficiais do Governo da Republica Rio-grandense, O Povo. Usamos também como fonte de pesquisa o Projeto da Constituição da República Rio-grandense (está em anexo em FLORES, 1985) e leis sobre cidadania e Educação. Torna-se necessário refletir sobre o uso dessas fontes. No que se refere aos jornais, inicialmente, é importante salientar que a produção jornalística não está isenta das perspectivas políticas, sociais, econômicas e culturais de quem a produz. Dessa forma a utilização dos jornais como fonte de pesquisa é fundamental para percebermos a sociedade do século XIX, pois ele se constituía num importante mecanismo de comunicação e com demonstração explícita dos objetivos da classe dominante. Como aponta Alves (2006, p. 351), “o jornalismo desse tempo atuou com tenacidade na formação de hábitos, pensamentos, costumes e opiniões, numa escala que, se não global, ao menos atingiu grande parte das comunidades de então”. Na análise das fontes, inclusive dos jornais, utilizamos a perspectiva de que elas são fruto de um momento histórico, sendo necessário ao pesquisador se interar das forças em luta naquele espaço de tempo, assim como também, a concepção de gênero. Referindo-se às fontes, conforme Le Goff (2003, p. 535-536), o documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. Só a análise do documento enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa.

O presente texto abordará na primeira parte a concepção da função da mulher na sociedade farroupilha; na segunda, seus reflexos nas leis e práticas referentes à educação de meninas.

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67 1 – O papel da mulher na sociedade farroupilha O historiador ao analisar um período deve situá-lo dentro do contexto dos fatos. Por isto iniciaremos pela análise da função da mulher na sociedade da República Riograndense, para depois podermos perceber os efeitos na educação de meninas. Conforme Scott (1990, p. 15), Os historiadores devem antes de tudo examinar as maneiras pelas quais as identidades de gênero são realmente construídas e relacionar seus achados com toda uma série de atividades, de organizações e representações sociais historicamente situadas.

A mulher era preparada para o lar, para ser boa mãe e não para participar da vida política. Conforme consta na lei de 18 de dezembro de 1838 (O Povo, 19/12/1838, n°32), que dava direito ao estrangeiro de cidadania Rio-grandense, não consta a questão da mulher. O único elemento que ressalta, é no artigo 5°, onde é explicitado que o estrangeiro casado com uma Rio-grandense teria cidadania, mas no caso contrário, não. Ao analisarmos as fontes de forma mais atenta, percebemos que no projeto da Constituição da República Rio-grandense a mulher não é considerada cidadã, como podemos observar no Artigo 6°: Artigo 6° - São cidadãos rio-grandenses: I – Todos os homens livres nascidos no território da República; [...] IV – Os filhos de pai ou mãe, natural do país, nascidos fora do Estado, desde o momento em que vierem estabelecer nele seu domicílio.

Deve-se ressaltar que a cultura e a lei estão intimamente ligadas. Conforme Scott (1990, p. 16), “a natureza recíproca do gênero e da sociedade e as maneiras particulares e situadas dentro de contextos específicos, pelas quais a política constrói o gênero e o gênero constrói a política”. Ao analisarmos o jornal O Povo (11/01/1840, nº134 e 25/01/1840, nº137), podemos observar que o dispositivo legal reflete uma concepção cultural, onde a mulher deveria ser preparada para o casamento, ser dócil, submissa e aprender os afazeres domésticos. - A mulher para ser amada deve ter como primeira qualidade, um gênio brando e dócil. - Não há defeito maior do belo sexo do que a loquacidade, e a garrulice, que são de ordinária filha da imprudência. - Uma Senhora de honesto, e sisudo comportamento estranha a consideração e o respeito do homem o mais licencioso (O POVO, 11/01/1840, n°134).

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68 - O recolhimento, a ocupação, o manejo dos negócios domésticos devem ser o habitual emprego de uma senhora virtuosa. - A prudência, a moderação, a docilidade de gênio em uma senhora honesta são as qualidades preferíveis a todas as riquezas da terra: - A mulher deve ser para seu marido um espelho de compostura, e de virtudes, uma consoladora nas aflições, e nos trabalhos da vida. - Não há defeito maior em uma Senhora que deve ser toda amável, atrativa e graciosa do que a ferocidade de gênio, a rudeza de costumes e a grosseria de tratos (O POVO, 25/01/1840, n°137).

É importante constatar que a mulher era, inclusive, vista como a culpada pelos casamentos que não davam certo, sendo que seus descuidos poderiam acarretar a desordem familiar, conforme consta no artigo publicado no jornal O Povo(25/01/1840, nº137): Variedades. - O imprudente ciúme de muitas mulheres envenena a doce união conjugal e produz a desordem da família; -a mulher viciosa é o maior tormento da vida; ela se faz pesada a todos os que a cercam de perto; - grande número de casamentos no mundo e a origem da desgraça de muitas casas de famílias, pela leveza com que se trata este negócio de tanta importância. - Quantas mulheres loucas com suas dissipações têm reduzido seus maridos e filhos à desgraça! - A infelicidade das famílias é muitas vezes originada pela imprudência de uma mulher; - Mulheres loucas que só por interesses se ligam a homens velhos, ou viciosos, ou atacados de enfermidades, que fazem ao depois a ruína de seus inocentes filhos.

No mesmo artigo do jornal, utilizando como exemplo o filósofo Sócrates, o homem é apresentado como prudente e salvador do casamento, e sua mulher como um animal feroz: “se o filósofo Sócrates tivesse o mesmo gênio intratável de sua mulher Xantipe, passaria com ela uma vida desgraçada. Ele soube com sua prudência domesticar aquele animal feroz”( O POVO, 25/01/1840, n° 137). Outros elementos que aparecem são, por exemplo, o fato de que desde a infância deveriam ser inculcados tais princípios e a mulher aparece como educadora da família, - As meninas criadas no ócio e na dissipação não podem ser boas mães de famílias(O POVO, 11/01/1840, n°134). - Se desde a tenra infância não procurarmos adquirir o habito do trabalho empregando o tempo em coisas úteis, nunca possuiremos aquela importante virtude. - O primeiro dever de uma mãe é inspirar a seus filhos o amor à pátria, e das instituições do país( O POVO, 25/01/1840, n° 137).

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69 2 – Educação de meninas A lei imperial de 15 de outubro de 1827, a primeira que sistematiza um sistema de Instrução pública de primeiras letras para todo o Brasil, continuava vigorando na República Rio-grandense. Como podemos observar, quando Bento Gonçalves, presidente da nação Farroupilha, nomeia uma professora ao cargo de uma aula de meninas, referindo-se que ela satisfazia as exigências da referida lei Imperial. Conforme consta em O Povo(14/08/1839, n° 92), E sendo examinado e aprovado pelos examinadores nas matérias designadas no Art. 6° da carta de Lei de 15 de outubro de 1827, hei por bem de prover a dona Ana Francisca Rodrigues Pereira no emprego de professora de primeiras letras da Vila de Cachoeira.

Nesta Lei a uma distinção de conteúdo para meninos e meninas, conforme consta nos Artigos 6° e 12°, Art. 6° Os professores ensinarão a ler, escrever, as quatro operações de aritmética, prática de quebrados, decimais e proporções, as noções mais gerais de geometria prática, a gramática de língua nacional, e os princípios de moral cristã e da doutrina da religião católica e apostólica romana, proporcionados à compreensão dos meninos; preferindo para as leituras a constituição do Império e a História do Brasil. [...] Art. 12° As Mestras, além do declarado no Art. 6°, com exclusão das noções de geometria e limitado a instrução de aritmética só as suas quatro operações, ensinarão também as prendas que servem à economia doméstica; e serão nomeadas pelo Presidentes em Conselho, aquelas mulheres, que sendo brasileiras e de reconhecida honestidade, se mostrarem com mais conhecimento nos exames feitos na forma do Art. 7º.

Como podemos observar os conteúdos destinados às meninas ficou limitado ao ler, escrever, as quatro operações aritméticas, a gramática da língua nacional e a moral cristã e a doutrina da religião Católica e apostólica romana. O conteúdo moral e da religião católica não poderia deixar de constar, pois o objetivo principal da Educação Pública de meninos e meninas, neste período era de moralizar o povo. Para completar a formação feminina, constavam as prendas domésticas, afinal a mulher tinha como papel fundamental ser destinada à procriação, ao cuidado da casa e da família. Nesse período é importante destacar a atuação da professora Ana Francisca Rodrigues Pereira, que após ser nomeada professora de primeiras letras de meninas da cidade de Cachoeira, pelo Método de Lancaster é acusada por um anônimo ao Ministro da República Rio-grandense Domingos José de Almeida, que esta professora propagava em

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70 sua aula, assim como suas alunas, doutrina contraria a República. D.J. de Almeida manda um oficio em 18 de julho de 1839, para o major Antônio Vicente da Fontoura, chefe geral de polícia do município de Cachoeira para que este apure os fatos. A própria professora manda uma carta ao Ministro se defendendo das acusações dizendo ser caluniada, pois não é contrária à causa republicana. Porém D. J. de Almeida, em resposta a mesma, afirma que irá esperar a resposta do chefe de polícia local para se posicionar sobre os fatos. Tudo consta em O Povo de 14 de agosto de 1839, n° 92. Apesar da carta enviada ao Ministro a professora negar as acusações. As conclusões do chefe de polícia mostram que a professora não defendia a causa republicana. Mas agora estaria arrependida e que exerceria a sua função em defesa da causa dos Farroupilhas. Conforme consta em O Povo( 14/08/1839, n° 92), lemos a seguir: Ilmo.exmo.sr. – Em observância ao que me ordena V. Ex. em Oficio de 18 do mês passado, cumpre me informar que D. Francisca Rodrigues Pereira, professora de Primeiras Letras de meninas nesta Vila, consta não ser afeta ao sistema Republicano; porém como é Rio-grandense, e sabendo da informação por V.Exa. pedida se mostrado pesarosa, estou convencido que d`ora em diante se fará digna de exercer o sublime magistério de diretora de suas jovens patrícias, ficando essa corrigida já com o conhecimento de que não é o Exm. Governo da Republica indiferente expectador, para tolerar procedimentos que em menos em regra com o sistema adotado pensão ainda que levemente ofende-lo. Deus guarde a V. Exa. – Comando Geral do Município de Cachoeira 4 de agosto de 1839. – Ilmo. e Exmo. Sr. Domingos José de Almeida, Ministro e Secretário dos Estados dos Negócios da Fazenda, encarregado do expediente do interior. – Antonio Vicente Fontoura.

Podemos observar que esta mulher se posicionou contrária à ordem que estava sendo instituída, como foi reprimida pelo controle do Estado, teve que ceder. Esse fato demonstra que nem todas as mulheres aceitavam sua posição determinada pela sociedade majoritariamente regida pelos homens e que a construção de gênero é num campo de luta. Talvez neste momento histórico em que vivia Ana Francisca a sua capacidade de luta era limitada, mas não nula. Conforme Scott (1990, p. 15), A história posterior é escrita como se estas posições normativas fossem o produto de um consenso social mais do que um conflito[...] Mais ainda: os homens e as mulheres reais não cumprem sempre os termos das prescrições da sua sociedade ou de nossas categorias de análise.

Ao analisarmos as cartas de D. J. de Almeida a sua esposa, observamos que ele distingue a educação dos filhos da educação das filhas. Conforme consta nas cartas:

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71 CV 607. Alegrete, 22 de novembro de 1842. Querida Bernardina, muito estimo teres alugado casa para a ensinança de nossos filhos e para o mestre dedicar-se juntamente na instrução de mais alguns rapazes cujos pais queiram aproveitar a ocasião.

Nesta carta ele se refere à casa alugada por sua esposa para que um professor ensine os filhos, não fazendo menção às filhas, mas na carta de 28 de dezembro fala de ambos: CV 623. Alegrete 28 de dezembro de 1842. Querida Bernardina [...] O mestre pode em casa continuar o ensino de nossas filhas e na escola de nossos filhos; eu espero que ele se esforce no adiantamento de todos.

Nesta, observamos que D. de Almeida distingue a Instrução de seus filhos, na casa alugada para funcionar como escola e a das filhas em sua própria casa, no controle da mãe. Poderíamos dizer de acordo com os valores do século XXI que ele era um homem retrogrado, por separar as filhas dos filhos, mas se colocarmos Almeida a sua época, século XIX, talvez fosse um homem moderno, pois demonstra preocupação com o ensino de suas filhas, ou seja, é um homem de seu tempo. Mas é claro reconhecemos que excluía a mulher de muitos espaços e benefícios que eram resguardados aos homens. 3 – Conclusões preliminares Por enquanto podemos expor que a sociedade Farroupilha percebia a mulher, como sendo aquela que a sua função social era cuidar da casa, do marido e educar os filhos(as). Assim sendo teve reflexo tanto na legislação quanto na Instrução de meninas. Deveriam ter uma educação onde os conteúdos não fossem iguais ao dos meninos, ficando limitado ao ler, escrever, as quatro operações aritméticas, a gramática da língua nacional, a moral cristã e a doutrina da religião Católica e apostólica romana. Sendo acrescentado as prendas domésticas, que preparava as meninas para a sua principal função social. A mulher continuou sendo preparada a ser submissa, dócil e aprender os afazeres domésticos, tornando-se uma boa esposa e mãe. Por outro lado nem todas as mulheres aceitam esta função sem resistência. Sendo assim podemos concluir que a formação da concepção de gênero se constrói num espaço de luta que pode ser observado nos textos impressos da época. 4 – Referências bibliográficas ALVES, Francisco das Neves. A Imprensa. In: BOEIRA, Nelson e GOLIN, Tau (Org.). História Geral do Rio Grande do Sul. Vol. 2 Império. Passo Fundo: Méritos, 2006. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Anais. Porto Alegre, Vol.2 e 3. Flores, Moacyr. Modelo político dos farrapos. 3.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985. LE GOFF. Jacques. História e memória. 5°. ed. Campinas. S.: Editora da UNICAMP, 2003.

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72 LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pós-estruturalista. 7°. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. _____. Gênero, sexualidade e educação: das afinidades políticas às tensões teórico-metodológicas. Educação em Revista. Belo Horizonte. n°46, dez. 2007. O Povo. Piratini, 1839. Edição fac-similada da Livraria do Globo, 1930. SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Vol.16(2), jul/dez. 1990. Tambara, Elomar; ARRIADA, Eduardo. Coletânea de leis sobre o ensino primário e secundário no período imperial brasileiro. Pelotas: Seiva, 2005. _____.Leis, atos e regulamentos sobre educação no Período Imperial na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Brasília-DF. INEP-SBHE, 2004.

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73 PROFESSOR DE LÍNGUA PORTUGUESA OU EDUCOMUNICADOR? REFLEXÕES SOBRE A REPRESENTAÇÃO DO PROFESSOR DE LM NO SÉCULO XXI Keity Cassiana Seco Bruning (PG – UEL)

Doutoranda - Estudos da Linguagem Formação de professor de Língua Portuguesa e outras Linguagens Universidade Estadual de Londrina - PR

Resumo: este artigo analisa os discursos que constituem as Diretrizes Curriculares do Ensino Básico do Estado do Paraná, na área de Língua Portuguesa. O objetivo é mostrar, por meio da teoria semiótica, como o enunciador emite uma determinada representação do professor de LM. Dessa forma, o estudo mostra, pelas marcas lingüísticas presentes na materialidade textual e pelos dados extratextuais, a manipulação emocional e cognitivamente do sujeito-operador professor, feita pelos documentos oficiais. O sujeito é induzido e seduzido, de modo sutil e natural, a querer implantar o multiletramento na escola, bem como pensar que deve, pode e sabe realizar tal ação. Palavras-chave: multiletramento; documentos oficiais; representação do professor. Abstract: this article analizes the Diretrizes Curriculares do Ensino Básico do Estado do Paraná speeches, in Portuguese Language area. The goal is to show, by semiotic, how the enunciator represents LP teacher. So, the present study observes any linguistics marks on officials documents text and any datas of contexts, to prove the sensitive and cognitive manipulation. These direct the teacher by natural way, to want the multiletramento in the school, and makes the teacher to think that he shoud, can and knows to do this. Keywords: multiletramento; oficials documents; teacher representation. Introdução Esta pesquisa visa refletir sobre as questões relacionadas ao multiletramento, na escola pública. Para isso serão investigados, os encaminhamentos oficiais direcionados ao ensino-aprendizagem dos gêneros textuais sincréticos (canção, propagandas, filmes, HQs, novelas, blogs etc.), veiculados principalmente pelos novos recursos tecnológicos como, a TV, o rádio, o computador/internet, o vídeo-game, os celulares etc. Será apresentada uma análise interpretativa, para desvelar os discursos governamentais que fomentam o ensino de outras linguagens nas aulas de Língua Portuguesa. Tentar-se-á identificar assim, como tais prescrições são projetadas aos professores. Reitera-se sobre a importância desse assunto, denominado por alguns especialistas de multiletramento (leitura crítica e produção criativa de textos híbridos, formados a partir da semiose entre a linguagem verbal e outro plano de expressão dentro de um contexto real de produção de sentidos), já que este discurso sinaliza uma mudança profunda na

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74 representação e, conseqüentemente na identidade profissional do professor de Língua Portuguesa. Referencial teórico Para que a proposta apresentada seja efetuada, utilizar-se-á a semiótica e a semiótica das paixões de Greimas (1993) aparato teórico-metodológico usado nas análises interpretativas das representações (Diretrizes Curriculares do Ensino Básico do Paraná). Barbosa (2004, p. 50) explica que, “as representações sociais representam o movimento do sujeito que, diante dos temas e objetos do mundo, analisa, recorta, resume, lê, interpreta e produz significado”. Todos estes procedimentos constituem o que a semiótica denomina de contrato fiduciário, que “põem em jogo um fazer persuasivo de parte do destinador e, em contrapartida, a adesão do destinatário” (GREIMAS e COURTÈS, p. 184, 1979), proposto pelo manipulador ao sujeito operador. Tal negociação de sentidos é realizada por um enunciador-manipulador, o qual projeta uma imagem por meio do texto enunciado, ao seu enunciatário (sujeito-operador), com o intuito de fazer este saber, crer, sentir e executar algo. Desse modo, procurou-se desvelar como o sujeito enunciador projetou seu texto, na tentativa de direcionar o pensamento, os sentimentos e as ações de seu destinatário. Serão usados, concomitantemente, alguns postulados da fenomenologia discursiva e da semiótica da enunciação de J. C. Coquet. Este classifica e caracteriza a personalidade humana como sendo determinada por um lado racional (considerado sujeito) consciente e o lado emocional e instintivo (não-sujeito). Segundo Coquet, “o não-sujeito designa primeiramente o actante que só executa aquilo para o que foi programado [...] aquele que só sabe a sua lição” (apud BERTRAND, 2003, p.364). Este (não-sujeito) pode ser apreendido ainda sob duas perspectivas, um sujeito programado para fazer (somático ou mecânico) sem refletir nem sentir sobre sua ação, motivado pelos instintos, e/ou um sujeito movido pela sensibilidade psíquica, que faz guiado pela paixão. Já o sujeito (pensante, reflexivo) seria competente para julgar tanto a sua própria ação (prática reflexiva) quanto à ação alheia (intérprete/sancionador). Este racionaliza o fazer por meio da observação e da lógica metodológica, deve ser convencido intelectualmente a acreditar (crer) em uma veridicção, para só depois decidir se fará ou não aquilo que lhe é proposto, ou seja, é o “lugar em que o irrefletido é compreendido e conquistado pela reflexão” (COQUET, apud BERTRAND, 2003, p.263). Verifica-se, portanto, que o crer-fazer e o sentir-fazer ou fazer-fazer são modalizações diferentes, mas que se complementam na produção semântico-argumentativa e expressiva em textos verbais, não-verbais e sincréticos. Em cada gênero, de acordo com suas características, sobressairá mais um estilo de persuasão, ora apelando para o sujeito ora para

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75 um dos lados do não-sujeito ou para ambos ao mesmo tempo (sujeito e não-sujeito passional e/ou somático). Também servirão como aporte teórico algumas definições de letramento, postuladas por diversos autores ligados diretamente com a formação docente. Segundo Kleiman (1995, p.19), o letramento seria “um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”. Nesse sentido, letramento seria a utilização do código verbal enquanto prática de interação social. Já a idéia de multiletramento é mais ampla e significa que, “compreender e produzir textos não se restringe ao trato do verbal (oral ou escrito), mas à capacidade de colocar-se em relação às diversas modalidades de linguagem – oral, escrita, imagem em movimento, gráficos, infográficos – para delas tirar sentido (ROJO, 2004, p. 31). Assim, o multiletramento se refere a interação social por meio tanto da linguagem verbal quanto da não-verbal, como por exemplo a canção. O contexto sócio-histórico da implantação do multiletramento nos currículos de LP O discurso sobre o ensino de várias linguagens, como por exemplo, a canção, surgiu explicitamente nos documentos oficiais há pelos menos vinte anos (Currículo Básico do Paraná/1988, LDB/1996, PCNs/1995 - primeira versão etc.). Por isso, já foi bastante lido e relido, geralmente de modo “natural”, por professores do Brasil inteiro. Este é um dos conteúdos, segundo os documentos oficiais, oriundos das transformações sociais, políticas e econômicas, que vem acontecendo no Brasil e no mundo desde o fim da década de 80. O mundo se torna, desde essa época, cada vez mais global, sua cultura é mundializada e os relacionamentos virtuais, isto é, a interação é realizada essencialmente pelos gêneros sincréticos veiculados pelos equipamentos multimídia. A partir desse panorama, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) postulam que: [...] os objetivos do ensino fundamental preconizam que os alunos devem ser capazes de utilizar as diferentes linguagens – verbal, musical, matemática, gráfica, plástica e corporal – como meio para produzir, expressar e comunicar suas idéias, interpretar e usufruir das produções culturais (BRASIL, 1998, p. 7 e 8).

Seguindo esta mesma vertente, foi criada no Paraná, as Diretrizes Curriculares para a Educação Básica, a qual é uma releitura do Currículo Básico de 1990. Este documento estadual vem sendo escrito e reescrito desde 2002, tendo sua última versão lançada em 2008. Este se apresenta como um documento elaborado pelos próprios professores da rede pública, ou seja, nascido da realidade escolar, e refletindo as necessidades e experiências

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76 práticas desta. Segundo o documento, houve um grande diálogo ou intercâmbio entre os docentes, os especialistas e o governo para criar/recriar ou produzir as propostas contidas neste corpus. É destacada, freqüentemente, nesses textos, a participação ativa dos educadores, como se estes é que tivessem idealizado e elaborado tais diretrizes para o ensino. Importa ainda explicitar que, a última edição das Diretrizes Curriculares, distribuídas às escolas e aos professores, chegou em um novo cenário educacional. Isto porque as salas de aulas e as escolas foram equipadas, durante o ano de 2008, com TVs multimídias, aparelhos de DVDs, microsystens, aparelhos de som e áudio, como amplificadores e microfones etc. Os professores “ganharam” pen-drives de presente do governo e as escolas laboratórios de informática (computadores, internet etc.), notebooks, data shows etc. Além disso, o governo criou vários programas educativos, relacionados direta ou indiretamente com a idéia do multiletramento como, a criação da TV Paulo Freire (canal educacional do estado), incentivo à implantação e divulgação de projetos extracurriculares, todos mediados por gêneros sincréticos (bandas, orquestras, corais, grupos de música, dança, teatro, festivais, apresentações culturais, jornais impressos e virtuais etc), desenvolvidos pelas escolas e professores. Há disponível também, para toda a comunidade escolar, o site educacional do governo paranaense, que visa, a interação da comunidade escolar, implantação de cursos de formação de professores à distância (on-line e/ou teleconferência) etc. As Diretrizes então, vem ratificar a mensagem que o governo já havia difundido por meio da instalação dos “novíssimos” aparelhos, que são um dos principais veiculadores e hibridizadores de outras formas de linguagem (música, dança, imagem etc.). Nesse sentido, o discurso de implementação, evolução, modernização, inovação, revolução, informatização, democratização da informação e inclusão digital são visíveis não só no discurso dos documentos, mas também nos significados imanentes aos objetos (materiais e culturais) que cercam os docentes. Tais ideologias são extremamente contagiantes e, parecem, ser realmente transformadoras a qualquer pessoa (alunos, pais, administradores, funcionários etc.) e aos professores de LM. Desse modo tanto os textos norteadores da educação quanto o contexto didático em que se encontram os sujeitos operadores (professores), pelo menos no Paraná, são manipulados a querer e a dever usar os recursos disponíveis em seu dia-a-dia. Com isso, trabalhar com os gêneros amalgamados por duas ou mais linguagens como: e-mails, músicas, blogs, filmes, novelas, clipes, imagens etc. Mas o que se vê, pelo menos na grande maioria das escolas do Paraná e do Brasil, é que tais discursos (inovação, transformação, inclusão, interação, letramento e multiletramento) veiculados a mais de vinte anos (PCNs/1988) pelos textos oficiais, não se efetivaram ainda na prática. No Paraná, observou-se que os novos equipamentos didáticos até são utilizados

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77 durante algumas aulas, geralmente como um recurso motivacional (mudando o texto impresso do LD ou do quadro para a TV), entretenimento e/ou relaxamento (filmes, clipes, shows etc.). Entretanto, a leitura e a produção de sentido, com suas relações discursivas, transmitidas por tais dispositivos, são, na maioria das vezes deixadas de lado de forma natural e lúdica. As pesquisas evidenciam, que depois de vinte anos postulando sobre as práticas de multiletramento, envolvendo os gêneros textuais sincréticos, ainda não ocorreu a reforma pedagógica, divulgada há um bom tempo, por tantos governantes e por tantos documentos. Importa lembrar que nem mesmo o letramento, prática voltada à leitura e a produção significativa de textos verbais impressos, conseguiu se concretizar. Este fator deixa mais distante a implantação eficiente do ensino-aprendizado dos gêneros sincréticos (canção, filmes, propagandas, blogs etc). Mostrar-se-á, em seguida, as representações que os documentos emitem sobre o professor ao próprio professor de LM no Brasil, buscando verificar como o texto é projetado, com intuito de convencer os leitores-docentes a compactuar com seu gestor profissional. A representação do professor de Língua Portuguesa nos documentos oficiais O enunciador do texto oficial manipula textualmente o sujeito professor por meio de todas as formas: tentação, sedução, provocação e intimidação. Estas aparecem correlacionadas e interligadas, para despertar o querer e o dever fazer no sujeito professor. Dentre todas as estratégias, a mais visível e recorrente, no discurso das Diretrizes Curriculares é a sedução, agindo, por meio da vaidade, para convencer e motivar o sujeito professor. Busca despertar a empatia do sujeito, que se sente aceito, respeitado, valorizado, admirado, capacitado, competente, íntegro, ético e comprometido. Desse modo, o sujeito sente vontade/desejo de realizar a ação proposta. Os demais recursos persuasivos, também são utilizados pelo enunciador para influenciar o professor, porém com menos recorrência que a sedução/vaidade. Pela tentação o sujeito é motivado pelo sentimento de recompensa ou troca de Objetos de Valores, apresentados pelo manipulador ao sujeito operador. Esta recompensa pode ser algo material (dinheiro, bens etc) ou cognitiva (reconhecimento, elogios, aceitação, poder etc,). Na provocação o manipulador recorre ao desafio, instigando o sujeito a provar/confirmar que pode ou é capaz de realizar uma determinada performance. A intimidação leva o sujeito ao dever-fazer, pela obrigação, instigado pelo sentimento de medo/necessidade. Salienta-se, que esta estratégia é a menos usada no discurso das diretrizes, já que o enunciador veicula uma imagem dialética, que visa conquistar/empolgar e não ameaçar/amedrontar o professor.

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78 Por meio da investigação destas estratégias argumentativas, presentes no texto, é possível notar a representação ou imagem, que os documentos oficiais projetam sobre o professor. Estas imagens são enviadas ao sujeito professor, para fazê-lo confiar, acreditar e compartilhar as verdades do enunciador. Para a teoria semiótica, o ato de aceitar as verdades textuais significa que o sujeito fechou uma espécie de contrato fiduciário com o enunciador, sendo tentado, posteriormente a realizar uma ação. Assim, a aceitação ideológica é o primeiro passo da persuasão, ou seja, para o enunciador levar o sujeito-operador a fazer o que ele quer, primeiro ocorre a manipulação, depois a capacitação (adquirir as competências modais de saber e/ou poder realizar a performance) ou auto-capacitação do sujeito operador (saber e/ou poder fazer), a performance ou ação prática e finalmente a sanção (o manipulador, interpreta, julga e premia ou castiga a performance do sujeito operador). A seguir apresentaremos alguns excertos do texto governamental, que exemplificam as formas de manipulação apontadas anteriormente. Este documento que traz, em si, o chão da escola...p.5. O professor é seduzido pelo sentimento de valorização de seu trabalho (metáfora acima), suas experiências e seu contexto profissional. Representado como alguém que ajudou a fazer o documento, comparado aos especialistas citados, alguém que faz e tem voz e vez. Assim ele é seduzido a utilizar o seu próprio documento, pois partiu dele e de sua prática. Deverá, logicamente, ser lido e usado continuamente. Também fica implícita a idéia de algo funcional e útil, pois foi um documento construído a partir das necessidades/dificuldades docentes. Há diversos gêneros que podem ser trabalhados em sala de aula ...cartaz...e-mail, blog, orkut...p.33. O professor é provocado a diversificar e a ampliar seu objeto de ensino. Fica inferido, pelo contexto, que é capacitado (sabe) para usar os equipamentos enviados às escolas pelo governo estadual (TV multimídia, computadores, pen-drives, internet etc). É manipulado a provar que pode dominar a língua e as linguagens. É desafiado a manusear os aparelhos, por meio um trabalho com os gêneros sincréticos. Desafiado a ser corajoso, ousado, empreendedor e a provar capaz de explorar outros recursos, códigos e gêneros. O professor pode solicitar que os alunos transcrevam um trecho de novela...p 32. O professor é seduzido pelo reconhecimento de que é uma autoridade, aquele que detém o saber e o poder, pois só irá pedir aquilo que já domina cognitivamente.

É importante contemplar, ainda, na formação do leitor... o ato de ler envolve respostas a muitos textos, em diferentes linguagens...sons, cores, imagens, versos, ritmos, títulos, gestos, vozes...uma leitura profundada p.36 e 37. Os argumentos de causa e conseqüência provocam o professor a conhecer e a trabalhar com gêneros diferentes, além dos verbais convencionais. É importante, também, abrir espaço para as relações discursivas, propostas pelos alunos, como uma notícia, uma música, um filme...p 41. O professor é envocado a ser dialético, receptivo, amigo e moderno, caso ele entenda e compartilhe dos gêneros que fazem parte do contexto dos jovens. A tentação está presente, pois se o professor for altruísta e pensar nos interesses dos alunos, será

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79 reconhecido como um sujeito competente, jovem, moderno, atualizado, além de querido e motivador (já que utiliza gêneros e equipamentos tecnológicos atraentes aos alunos). O sentimento é de aceitação, por parte dos estudantes.

Pensar o ensino/aprendizado de Língua Portuguesa/Literatura...implica...além dos textos escritos e falados, a integração da linguagem verbal com outras linguagens (multiletramento)...as artes visuais, a música, o cinema, a fotografia, a semiologia gráfica, o vídeo, a televisão, o rádio, os quadrinhos, as charges, a multimídia...e suas especificidades (seus diferentes suportes tecnológicos, seus diferentes modos de composição e de geração de significados..) p 17. O professor inteligente e reflexivo utiliza os textos verbais integrados aos não-verbais. Assim o professor é tentado a usar outras linguagens para ser reconhecido/premiado como reflexivo, especialista e inovador, em relação aos demais colegas (além dos) que só trabalham com o código lingüístico. É possível explorar elementos da representação cênica...bem como a estrutura de um texto dramatizado...programas televisivos (jornais, novelas, propagandas), em programas de radiofônicos...nas mais diversas realizações dos discursos p.31. O professor é provocado e encorajado a ousar e a explorar outras linguagens, já que tem a liberdade e a criatividade inerente (e o saber que pode adquirir se quiser, pois é esperto e inteligente) para fazê-lo (sedução pela vaidade). o estudante precisa conhecer e ampliar o uso dos registros socialmente...p 19. A realização profissional é enfatizada com a presença do léxico estudante e socialmente (lembrando de inclusão social). Por isso o professor é motivado a querer fazer algo, movido pela premiação da realização profissional e pessoal (moral e ética). O estudante é o fraco e o excluído e o professor é seduzido pela pressuposição de ser o herói libertador (o professor é levado a querer dever fazer algo pelo estudante, do qual é responsável). a tarefa de ensinar os alunos a expressarem suas idéias com segurança p.32. Manipulação por tentação (sensação de dever cumprido, satisfação, prêmio da realização profissional), não por vontade, mas pelo dever moral e ético (vocação). Ler é familiarizar-se com diferentes textos produzidos em diferentes esferas sociais – jornalística, ...midiática, publicitária etc...propiciar o desenvolvimento de uma atitude crítica que leva o aluno...tomar uma atitude responsiva p 36. O professor é seduzido pelo poder de propiciar o desenvolvimento, o pensamento crítico e a tomada de postura consciente do aluno. É pressuposto, pelo enunciado que o professor de Português já sabe ler dessa maneira, sendo também crítico e formador de cidadãos críticos. os alunos precisam aprender o funcionamento do texto escrito...além disso...tamanho e tipos de letras, cores e formatos, elementos pictórios...gestos, mímicas...p 33. Manipulação por sedução (professor salvador, forte), alunos fracos (necessitados de conhecimento e salvação). Salienta-se a soberania e supremacia do professor que sabe, (além disso, é conhecedor, atualizado, capacitado, empreendedor, à frente dos outros que não ensinam outras linguagens) tanto as especificidades verbais quanto às não-verbais.

As análises acima comprovam que o sujeito professor é manipulado pelo enunciador das Diretrizes Curriculares, principalmente por meio da sedução. O enunciador projeta ao professor, a seguinte imagem/representação, sobre sua identidade profissional: autônomo, capacitado, criativo, inteligente, pesquisador, multiletrado, responsável, ético,

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80 poderoso, transformador, empreendedor, inovador, dinâmico, capaz, disposto, estudioso, aplicado, dedicado, colaborador, altruísta, corajoso, ou seja, projeta a imagem de um super herói-especialista, que pode, sabe e deve transformar/democratizar a educação e libertar a sociedade brasileira do analfabetismo funcional e digital. Assim ele transmite uma imagem ao sujeito professor, construída pelos discursos que envolvem o sentimento de respeito, aceitação, valorização e companheirismo por parte dos gestores. Isso motiva, pois cria empatia e cumplicidade entre o enunciador e o seu enunciatário, o qual é envolvido para se sentir estimulado a trabalhar, obviamente, com a proposta dos gêneros verbais, não-verbais e sincréticos, cada vez que lê e ouve tais textos. O enunciador deixa transparecer, em algumas vezes, por meio do texto, que na realidade percebe que o sujeito professor precisa das competências do saber, e ainda não está apto para realizar as ações esperadas de modo eficiente. Entretanto, as representações relacionadas ao déficit de conhecimento e dependência são silenciadas e apagadas pelo texto, pois comprometeria o enunciador a ajudar o sujeito operador a adquirir o saber necessário para realizar a reforma postulada por aquele. O enunciador não se compromete efetivamente com a forma-ação do professor, mas o incentiva e o manipula a querer/desejar efetuá-la em sua prática. É encorajado a se especializar e/ou auto-formar-se, tornando-se um letrado, multiletrado, que sabe, pode, deve e quer transformar suas ações e libertar a sociedade. Nesse sentido, a superficialidade de todas as propostas, tanto às relacionadas ao letramento quanto ao multiletramento, acontecem pela falta de implantação e viabilização de políticas públicas nesse setor (desde 1988 até hoje). Na aparência, os discursos oficiais projetados apontam para o desenvolvimento, a evolução e a melhoria do ensino-aprendizado, mas os sentidos mais escondidos no texto e ratificados pelos fatos contextuais insistem em evidenciar, infelizmente, outros dados... Considerações finais No cerne deste estudo, está a preocupação em saber até que ponto as novas responsabilidades e especificidades, relacionadas ao multiletramento, requeridas do professor de Língua Portuguesa e emitidas pelos documentos oficiais desde 1988, com o Currículo Básico até os dias atuais, com a divulgação das Diretrizes Curriculares da Educação Básica do Paraná (2008), podem influenciar as auto-representações e, conseqüentemente, as ações docentes desses profissionais. Constatou-se, que muitas exigências profissionais, como o multiletramento, são realmente advindas das inúmeras transformações ocorridas no mundo contemporâneo (globalização), bem como na cultura humana (mundialização) e, conseqüentemente, dos novos recursos tecnológicos e gêneros textuais utilizados no século XXI. Este

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81 multiletramento requerido deveria servir, segundo as prescrições pedagógicas governamentais, para possibilitar a interação social/virtual, a inclusão profissional e a cidadania dos alunos das escolas públicas. Os incríveis avanços técnicos em eletrônica, informática e redes vêm criando um novo campo de ação, novos processos sociais, métodos de trabalho, mudanças culturais profundas, novos modos de aprender e perceber o mundo (e, portanto de intervir nele), com repercussões significativas no campo da educação, a exigir transformações radicais nos métodos de ensino e nos sistemas educacionais (BELLONI, 2002, p.30). Diante do exposto, chega-se a conclusão de que estamos diante de novos impasses, como: O nosso objeto de trabalho é ainda somente a linguagem verbal ou são as múltiplas linguagens e textos sincréticos? O nosso foco é o plano de expressão ou seu conteúdo/discurso? Somos professores de Língua Portuguesa ou educomunicadores? E o que faremos diante de uma realidade cada vez mais virtual, multicultural e sincrética? Referências bibliográficas BARBOSA, M. V. Entre o sim e o não, a permanência – o discurso do graduando em Letras sobre o ensino de língua materna. Dissertação de mestrado – IEL/ Unicamp, (2004). BELLONI, Maria Luiza. Mídia-educação ou comunicação educacional? Campo novo de teoria e de prática. In: _____ (Org.). A formação na sociedade do espetáculo. São Paulo: Loyola, 2002. BERTRAND, D. Caminhos da Semiótica literária. São Paulo: EDUSC, 2003. BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998. GREIMAS, A. J.; COURTÈS, J. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Contexto, 1979. ______, A. J.; FONTANILLE, J. Semiótica das Paixões. São Paulo: Editora Ática, 1993. KLEIMAN, A. O que é letramento, in. KLEIMAN, A. (Org). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas, SP: Mercado das Letras, 1995. PARANÁ, SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÂO. Diretrizes curriculares de Língua Portuguesa para os anos finais do ensino fundamental e ensino médio. Curitiba (2008). Disponível em: . Acesso em: 27 de dez. de 2008. ROJO, R. H. R. Linguagens Códigos e suas tecnologias. In: Brasil. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Departamento de Políticas do Ensino Médio. Orientações curriculares do ensino médio. Brasília, 2004.

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82 REPRESENTAÇÕES DA IDENTIDADE NACIONAL NA ANTOLOGIA DE ENSAIOS INTÉRPRETES DO BRASIL: UM ENFOQUE DISCURSIVO Luciana Cristina Ferreira Dias

Docente do Departamento de Letras Universidade Estadual do Centro-Oeste- UNICENTRO Guarapuava-PR Doutora em Linguística Aplicada UNICAMP - SP

RESUMO: Considerando a problemática acerca da linguagem e da identidade nos estudos de perspectiva discursiva (Pêcheux, 1988; Orlandi 1999), este trabalho busca refletir sobre as representações construídas discursivamente sobre o Brasil na coleção de ensaios Intérpretes do Brasil organizada por Silviano Santiago. Na medida em que a antologia é um gênero que funciona como organizador de saberes sobre o Brasil, mostrou-se necessário enfatizar, no trabalho, a distinção entre memória (arquivo) e interdiscurso. Palavras-chave: antologias de ensaios, análise do discurso, identidade brasileira, ABSTRACT: Dealing with problems on language and identity in discourse studies this current research analyzes discourse-constructed representations on Brazil in the essay collection Silviano Santiago’s Intérpretes do Brasil. Since an anthology is a literary genre that organizes knowledge on Brazil, the distinction between memory (archive) and interdiscourse are highlighted. Keywords: essay anthologies, discourse analysis, brazilian identity. Introdução Este estudo parte de uma preocupação com a construção de sentidos sobre a identidade nacional brasileira, tomando-se como base o funcionamento enunciativodiscursivo de uma antologia de ensaios de múltiplos autores, Intérpretes do Brasil, organizada por Silviano Santiago, em relação aos processos dos quais fala Orlandi (2001) e que constituem as condições de produção e de circulação desta coleção. Ancorado na Análise do discurso de linha francesa (PÊCHEUX, 1998; ORLANDI, 1999; 2001; SERRANI, 1993), o estudo parte do pressuposto de que a antologia é uma construção discursiva que se ancora num eixo norteador (uma área ou uma temática) e coloca em jogo justamente a unidade (da identidade do autor e da unidade do texto) e a dispersão de sentidos (marcada pelas várias posições do sujeito e pela relação do dizer com diferentes formações discursivas no mesmo texto). Neste caso, fez-se necessário trabalhar na confluência dos eixos intra e interdiscursivo (PÊCHEUX, 1988) ou, nos termos de Orlandi (2001), examinar a textualização da memória sócio-cultural brasileira na tessitura da antologia de ensaios, considerando representações dominantes sobre o Brasil e sua cultura.

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83 1 – Análise do discurso: princípios teóricos Estudar uma antologia nos leva a pensar a respeito dos processos de sentidos relacionados aos efeitos que uma dada produção cultural produz em termos de autoria, trabalho intelectual de leitura e circulação por entre instituições e grupos sociais. Em termos de autoria, diferentemente de Foucault que atrela a função-autor a situações enunciativas especiais (em que o texto original de autor se contrapõe ao comentário), isto é, no caso dos autores originais de linguagem, apoio-me em Orlandi (1999) para quem a autoria é vista como função discursiva do sujeito quando esse se representa na origem, produzindo um texto com unidade, coerência, progressão e nãocontradição, no uso corrente da linguagem. Nos termos de Orlandi e Guimarães (1988), considerando que a unidade do texto é um efeito discursivo que deriva do princípio da autoria, a antologia é uma forma de textualização desta pretensa unidade, num processo em que o ensaísta se assume como produtor da linguagem, na escrita de ensaios, que, organizados, novamente exigem outro autor, o organizador das textualidades em seu conjunto. Uma autoria geral na qual o organizador da obra, em meio à variança, aos sentidos múltiplos e aos temas diversos, “administra a dispersão” e procura garantir um efeito de homogeneidade ao conjunto de ensaios reunidos no suporte material do livro. Também, mostra-se válido considerar os três processos dos quais fala Orlandi (2001, p. 9), três momentos inseparáveis, do ponto de vista da significação da linguagem que se relacionam à produção de antologias: constituição, formulação e circulação dos sentidos. Neste sentido, as antologias mobilizam justamente esta relação com uma memória que é convocada para a constituição da coleção, memória que se textualiza na sua formulação da coleção com suas partes ou volumes estruturados, a partir de um dado modo de circulação das antologias em nossa sociedade. Conforme Orlandi (200, 151), “os sentidos são como se constituem, como se formulam e como circulam” Ainda, segundo, Orlandi (2001), a partir desses três momentos igualmente importantes: a constituição dos sentidos se dá “a partir da memória do dizer, fazendo intervir o contexto histórico-ideológico mais amplo”; a formulação se dá “em condições de produção e circunstâncias de enunciação específicas” (ORLANDI, 2001, p. 9). Já a circulação diz respeito aos trajetos dos dizeres que se dão em certas conjunturas. A circulação ocorre por “meios” que nunca são neutros. 2 – Análise de Intérpretes do Brasil: 2.1 – Condições de produção e de circulação da obra: A antologia Intérpretes do Brasil, em termos de construção discursiva, tomando-se o sentido original de antologia, pode ser vista como “bouquet de autores ilustres” na medida

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84 em que se estrutura como uma reunião de compilações de textos originais, postos nos volumes na íntegra[1], textos esses selecionados por Silviano Santiago, organizador da obra, o que configura uma espécie de edição de caráter memoralístico-documental a partir da reunião de onze livros clássicos do pensamento brasileiro. Além disso, o texto fundador (obra clássica) circula juntamente com uma interpretação de um ensaísta legitimado, ou seja, temos ao lado da obra de um grande intérprete um ensaio produzido por professores, pesquisadores, pensadores (os novos intérpretes), convidados a falar tanto da obra quanto de seu autor, concebido como guia de leitura. Intérpretes do Brasil materializa um complexo processo de assunção da autoria, uma vez que, de um lado, há os locutores-convidados que buscam produzir um efeito de unidade para seus textos, que, por sua vez, farão parte de uma obra maior, no caso uma coleção de ensaios e de outro, tem-se a antologia que surge a partir de um duplo efeitoautoria produzido, primeiro pelo Estado Brasileiro que oficializa a antologia, organizando todo o processo de produção do trabalho de Comemoração dos 500 anos, a partir da participação de ministérios, embaixadas e secretarias, e segundo, pelo agenciamento da função-autor a partir da qual o organizador busca garantir o controle da dispersão, se constituindo em um sujeito “calculável, identificável e controlável” (ORLANDI, 1999, p. 76), responsável pelo que diz e neste caso pelo que produz como obra-texto. É o que veremos no fragmento a seguir: SD (1) Neste ano de comemoração dos 500 anos do descobrimento do nosso país, do início da história registrada e registrável dele, entendeu o Ministro das Relações Exteriores patrocinar uma coleção de livros que apresentassem uma visão crítica do Brasil. Foi então que o ministro Luiz Felipe Lampreia, o embaixador Lauro Barbosa Moreira e o secretário Tarcísio Costa, à época presidente e secretário da Comissão Bilateral para as Comemorações do V Centenário do Descobrimento do Brasil- então localizada no Ministério das Relações Exteriores- convidaram o professor Silviano Santiago para elaborar um projeto reunindo textos críticos do Brasil e à Editora Nova Aguilar para publicá-los (Nota editorial) Destaca-se no fragmento, extraído da apresentação da antologia, a configuração de uma dupla autoria que, em parte, é garantida por instituições governamentais (pelo ministro das relações exteriores, o embaixador e o presidente de uma comissão bilateral para a comemoração do V Centenário de Descobrimento do Brasil) e que, em outra parte, emerge pelo esforço produzido por um locutor-editor da seleção de textos, empiricamente a figura de Silviano Santiago, escolhido para elaborar esse projeto. Neste processo de construção de um “arquivo sobre os textos clássicos do Brasil”, tais elementos como as notas do Ministério da Cultura e as referências à publicação são parte dos eventos comemorativos dos 500 anos do Brasil, produzindo como efeito o sentido de uma antologia oficial, a partir da qual o Estado Brasileiro preenche uma função-

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85 autor para a emergência da coleção como obra. Destaca-se também o fato de que os representantes oficiais ocuparem (também) um lugar de intelectuais, como Fernando Henrique Cardoso e Francisco Weffort, o que se relaciona à perspectiva “iluminista” da coleção. Neste caso, no prefácio da antologia, podemos discutir a respeito de uma relação que oficializa a produção de uma antologia e que se materializa no eixo intradiscursivo a partir de marcas que imprimem materialmente a chancela do Ministério da Cultura e a textualização de duas notas, uma assinada pelo Ministro da Cultura, da ocasião Francisco Weffort e a outra assinada pela Editora Nova Aguilar, de modo que o Estado e instituições, em um esforço conjunto, além de oficializar a emergência da coleção de textos, buscam legitimar a escolha por Silviano Santiago, como organizador do projeto e selecionador das obras. Outrossim, a antologia Intérpretes do Brasil, tomada enquanto arquivo, emerge como construção organizada dentro de princípios de identificação de autores clássicos, ensaístas que produziram ensaios-interpretativos, comentários, referências à vida dos autores. Nos termos de Zoppi-Fontana (2005, p. 97): (...) “todo arquivo é resultado do cruzamento de diversos procedimentos de identificação dos documentos que o compõem, seja através de datas, disciplinas, temas e/ou nomes próprios (de lugar, de autor, de instituição) que os alocam dentro de uma ou mais séries arquivísticas”. E, de fato, temos, neste caso, um arquivo que se organiza a partir de um evento comemorativo, visto que a antologia assume contornos de arquivo ou de campo de documentos “pertinentes e disponíveis sobre uma questão”, conforme Pêcheux (1999, p. 56). A antologia Intérpretes do Brasil representa esta possibilidade de institucionalização de uma memória que é arquivo (memória institucional) e interdiscurso, em meio a um jogo no qual as interpretações oficiais e intelectuais se degladiam. Nesta perspectiva, há, de um lado, a memória que, embora apresente contradições e falhas, num gesto de controle e de organização institucional do Estado, precisa surgir como completa e totalizada. Segundo Zoppi-Fontana (2005, p. 97) “todo arquivo responde a estratégias institucionais de organização e conservação de documentos e acervos, e através delas, de gesto de memória de uma sociedade”. Essa relação da memória de arquivo com uma gestão dos sentidos, marcada sobretudo pela presença do Estado, perpassa o trabalho de produção, seleção e organização de textos, na medida em que Intérpretes do Brasil emerge como memória-arquivo que está controlando a memória nacional, materializando-a, fazendo-a circular a partir de um suporte físico em que a autoria do Estado se configura. No caso de Intérpretes do Brasil, considerando-se os itens lexicais tais como programação, comemorações, eventos e as construções sintáticas: (i) comemorações do V Centenário do Descobrimento, (ii) integrante da programação oficial das comemorações do V Centenário do Descobrimento do Brasil e (iii) passados os eventos comemorativos, podemos dizer que a antologia enquanto construção emerge como lugar de memória- um

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86 arquivo para defender o que está ameaçado- de modo que o próprio acontecimento da comemoração é também lugar de memória. Em termos da função-autor, será preciso entender a autoria em Intérpretes do Brasil: como função - que garante coerência, não-contradição, direção argumentativa ao projeto antológico produzido ao mesmo tempo pelo Estado e pelo selecionador de textos clássicos Silviano Santiago, como assunção da autoria, na medida em que os ensaístas convidados a comentar os textos clássicos e o próprio organizador inscrevem o dizer na memória, na rede do já-dito, do interdiscurso e do silêncio. Podemos notar um aspecto contraditório em termos de formulação e circulação dessa obra analisada neste estudo. Com efeito, tal coleção embora se represente como guia seguro ou obra indispensável (farol para iluminar), buscando preencher uma certa lacuna em termos de práticas de leitura, no contexto brasileiro, essa não é de fácil e total acesso, considerando-se outros espaços que não o acadêmico. Intérpretes do Brasil é uma obra que circula em contextos muito restritos: ou está dentre as obras listadas em bibliografias de muitos cursos de graduação ou Pós-Graduação em História, em Ciências Sociais, Estudos Culturais e Antropológicos, Letras, Literatura, espalhados pelo Brasil, ou ainda essa compõe os livros exigidos pelos Exames e Concursos do Instituto Rio Branco. Neste caso, a obra, como projeto, embora pretenda proporcionar a reflexão e a leitura sobre o Brasil, por sua vez, na sua realização efetiva, essa está ainda circunscrita a espaços limitados e constitui um tipo de referência reservada a uma elite de leitores. Também, pensando ainda no papel da circulação da obra, podemos destacar que a coleção Intérpretes do Brasil encontra-se esgotada e não há previsões de uma nova reedição da coleção pela editora Nova Aguilar até o presente momento 2. 2 – Uma tensão entre a produção antológica e a necessidade de reflexão: Num primeiro momento, em relação à capa da antologia, vale frisar que os três volumes mantêm o mesmo padrão nas capas (capa dura) com referências ao título da obra, à editora Nova Aguilar (parte lateral). Na parte interna da antologia, destacam-se a qualidade do papel (papel bíblia), a presença de textos tais como: ensaios-guia de leitura assinado por um especialista, dados biográficos do autor, índices onomásticos e a apresentação na íntegra do texto clássico. Em termos de projeto, é válido estabelecer conexões entre o tom festivo relacionado tanto à primeira nota do Ministro da cultura na época Francisco Welffort quanto à nota editorial da Editora Nova Aguilar (notas oficiais e institucionais) e a posição de Santiago marcada, por sua vez, por uma não-identificação com os festejos (500 anos do Descobrimento do Brasil). SD(3)É com extrema satisfação que o Ministro da cultura participa do projeto de publicação da coleção Intérpretes do Brasil, integrante da programação oficial das

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87 comemorações do V Centenário do Descobrimento do Brasil que, em três volumes, reúne alguns dos textos fundamentais para a compreensão da evolução do nosso país (nota Ministério da Cultura). SD(4)Dentro do programa de comemorações do V Centenário, destaca-se esta iniciativa, que deverá- passados os eventos comemorativos- permitir aos estudantes e pesquisadores uma melhor avaliação da formação do Brasil (nota Ministério da Cultura). SD (5) Seria preciso também comemorá-la com essa festa de cultura brasileira, esses onze livros da mais pura ciência nacional, acompanhados por estudos introdutórios inéditos de alguns dos maiores nomes da historiografia atual (..) que aqui reunidos pelo professor Silviano Santiago, vê, sem qualquer sombra de dúvida, dar uma dimensão especialmente maior a esta data tão celebrada de tantas outras maneiras (...). A editora agradece a todos os idealizadores e realizadores do projeto por ter tido a gloriosa oportunidade de dele participar e espera firmemente que poder público no Brasil continue apoiando iniciativas como esta, aí, sim carentes de apoio (nota editorial). Em sintonia com Orlandi (1990, p. 106), pensando no papel dessas notas oficiais que procuram significar a antologia, em meio à comemoração dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, “elas são índice de dispersão de sentidos e ao mesmo tempo são instrumentos de definição”. Se as notas marginais à coleção de ensaios dão ênfase à relação da publicação com as esferas oficiais das celebrações do V Centenário, a partir da imagem de um leitor tido como interessado em uma reunião de textos fundamentais para uma melhor avaliação do Brasil ou então mobilizando uma memória de país carente de apoio no que diz respeito a publicações mais alentadas, Santiago, por sua vez, recupera, no ensaio introdutório da coleção, um sentido de antologia como reservatório de luz ou iguarias oferecidas a um leitor ávido de conhecimento e não profere nenhuma palavra sobre a autoria-oficial constituída pelo Estado, no ensaio introdutório. As notas atestam, no caso da antologia Intérpretes do Brasil, justamente, esse caráter contraditório que constitui seu funcionamento. Embora as notas apontem para uma tentativa de controlar a significação, a partir da representação de antologia como parte das festividades, os sentidos de comemoração se desestabilizam pelo silenciamento de Santiago que põe em destaque a reflexão, a promoção do conhecimento e não a possibilidade da festa ou da comemoração. SD(6) Os muitos livros que temos e que envolvem, de maneira descritiva, ensaística ou ficcional, o território chamado Brasil e o povo chamado brasileiro, sempre serviram a nós de farol (e não de espelho, como quer uma teoria mimética apegada à relação estreita entre realidade e discurso). Com sua ajuda e facho de luz é que temos caminhado, pois eles iluminam não só a vasta e multifacetada região em que vivemos, como também a nós, habitantes de ela somos (p.(XV) SD(7) Deverão servir como reservatório infinito de luz para a constituição de

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88 novas interpretações neste momento em que o país comemora quinhentos anos do seu achamento (apud Caminha) pelos navegadores portugueses. (p.XLII) SD(8) Queríamos armar uma festa de aniversário, talvez menos trivial do que uma comemoração onde a pompa e os fogos de artifício podem dominar e inebriar, mas acabam por escamotear o profundo sentimento de amor e esperança por melhores dias que hão de vir para o país que criaram para nós e que continuamos a criar. Mas a festa não é frugal, tal a qualidade de iguarias que estão sendo oferecidas ao leitor ávido de conhecimento (p. XLII) Santiago posiciona-se em relação ao Brasil, à Nação e não em face da Comemoração dos seus 500 anos. Neste caso, falar do Brasil, tentar entendê-lo, isto é, fornecer um reservatório infinito de luz, mobiliza uma posição-sujeito marcada por um sentimento de amor e pertencimento à nação, a partir da construção sintática que irrompe a formulação do ensaio de Santiago “uma comemoração onde a pompa e os fogos de artifício podem dominar e inebriar, mas acabam por escamotear o profundo sentimento de amor e esperança por melhores dias que hão de vir para o país que criaram para nós e que continuamos a criar”. . Essa posição nacionalista está também materializada no recorte do trabalho ou ainda nas escolhas de textos a serem postos em cena. Neste caso, a antologia está centrada em ensaístas que produziram obras clássicas, depois da Independência do país, isto é, é uma antologia que dá voz à produção de um país cuja identidade já assumia um contorno mais preciso. De fato, os sentidos na/pela antologia se movimentam num espaço entre, se, de um lado, as instituições tanto organizam os ritos comemorativos dentre os quais a antologia é parte das festividades quanto marcam a gestão da memória a partir de uma autoria “oficial” quando o Estado imprime uma chancela no corpo da antologia. De outro lado, a funçãoautor também é agenciada pelo organizador da obra e selecionador dos textos de Intérpretes do Brasil em um gesto em que o autor procura apagar este efeito-autor-oficial promovido pelo Estado Brasileiro e marcar uma posição-sujeito caracterizada pelo uso da primeira pessoa do plural, nós, e de formas pronominais correspondentes e se relaciona a sentimentos de patriotismo e de pertencimento à nação. De fato, nos dois breves textos que antecedem o ensaio de Santiago, há referências à comemoração do quinto centenário do Descobrimento do Brasil atrelado ao patrocínio da publicação da coleção Intérpretes do Brasil. Além disso, na nota editorial da Nova Aguilar, Santiago é referido como convidado para o projeto, convite esse que partira de Luiz Felipe Lampreia, o embaixador Lauro Barbosa Moreira e o secretário Tarcísio Costa. Ainda que o autor atualize uma memória de comemoração, esse não materializa qualquer comentário em seu ensaio introdutório a respeito da relação da publicação com as esferas oficiais de comemoração do que eles chamavam à época do V Centenário do Brasil. O que o autor parece destacar diz respeito a uma representação de antologia como reservatório de luz, a partir da imagem de um leitor que é estudante, pesquisador ou

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89 estudioso, para o qual a antologia servirá como luz para uma melhor avaliação do país, sentido que ressoa em diferentes espaços do ensaio introdutório. SD(9) os onze livros não vão colocar o Brasil como algo já sabido, mas como um problema que não se deslinda, como incógnita que atordoa, apesar do esforço inédito de apreensão de seu evoluir histórico. Brasil, o nosso claro enigma (p. XLVIII) Com efeito, o ensaio do prefácio constrói discursivamente uma imagem acerca do saber produzido pelos intelectuais brasileiros, que teriam, sobretudo, o intuito de iluminar uma dada compreensão do país. Assim, ressoam itens lexicais como olhos, luneta e se repetem expressões semanticamente equivalentes como reservatório infinito de luz, organização de obras “iluminadoras”, pensadores tomam emprestado lunetas, o que participa da construção de uma representação de antologia como farol para iluminar as reflexões dos leitores sobre o Brasil. Dessa maneira, se é preciso luz para iluminar, tem-se por conseqüência uma imagem de país-enigma cujo desafio da compreensão, da apreensão e da resolução está relacionado à reflexão sobre os dilemas brasileiros. Neste sentido o Brasil é representado como incógnita para o qual deva haver um esforço do pensamento brasileiro em desvendar esse enigma e torná-lo compreensível e explicável. 3 – Olhar final Em termos de trabalho organizado pelo Estado e gerido por Silviano Santiago, em meio à comemoração dos 500 anos do Brasil, a antologia oferece espaços para que muitos autores injustiçados, ilustres desconhecidos, sejam lembrados, pois foram esquecidos ou então que os autores de renome sejam mais uma vez lembrados e homenageados. Neste jogo entre memória e esquecimento, para que autores sejam lembrados, outros são excluídos do espaço da memória sócio-cultural. Intérpretes do Brasil funciona assim como lugar de uma memória da ensaística brasileira, que precisa ser cultivada, estabilizada, organizada e administrada, no sentido dado por Orlandi (2001) para o conceito de memória institucional, a do arquivo. Ou seja, se entendermos que a idéia de memória de arquivo produz um efeito de perpetuação de um conjunto de discursividades, uma vez que garante um efeito de acúmulo, de completude e de fechamento de um dado “material, a partir do controle das interpretações do texto”, a antologia constrói-se como um controle das interpretações de textos clássicos para o pensamento brasileiro num gesto em que o Estado orquestra parte do projeto. Com efeito, Intérpretes do Brasil constrói-se como conjunto de textos idealizado pelo Estado, como forma de conservação da memória, marcado pela reunião de textos clássicos na íntegra e não na perspectiva dos fragmentos. Contudo, se há essa necessidade de permitir ao leitor um acesso à completude de obras clássicas, em termos de interdiscurso, a memória mobilizada no acontecimento da antologia representa-se a partir de lacunas, de

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90 buracos, tendo em vista uma representação de Brasil que é claro enigma, para o qual faltam tantas respostas e certezas. 4 – Referências Bilbiográficas FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso.São Paulo. Edições Loyola, 1986 ORLANDI, E Análise do discurso: Princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999 ORLANDI, E. Terra à Vista. Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo. São Paulo/Campinas: Cortez/Editora da UNICAMP, 1990 ORLANDI, E. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas: Pontes, 2001 ORLANDI, E. P. & E. GUIMARÃES. “Unidade e dispersão: uma questão do sujeito e do discurso”. In: Discurso e leitura. São Paulo: Cortez, Campinas: Ed. da UNICAMP, 1988 PÊCHEUX, M Semântica e Discurso. Uma Crítica à Afirmação do Óbvio. Trad. Eni P. de Orlandi et alii. Campinas: Editora da UNICAMP, 1988. SERRANI, S. A linguagem na pesquisa sociocultural. Um estudo da repetição na discursividade. Campinas: Editora da UNICAMP, 1983 SERRANI, S. “Identidade e representação do Brasil em antologias poéticas bilíngües”. In: Coracini, M, Grigoleto, M e Magalhães, I. Práticas identitárias em Lingüística Aplicada. São Paulo: Parábola, 2006 ZOPPI- FONTANA, M. G. Cidadãos modernos: discurso e representação política. Campinas: Pontes, 1997. [1] Vale aqui destacar as obras clássicas que compõem a antologia, seguida, por sua vez, de um ensaio interpretativo: O Abolicionismo, de Joaquim Nabuco, Os Sertões, de Euclides da Cunha, América Latina, de Manuel Bomfim, Populações Meridionais do Brasil, de Oliveira Vianna e Vida e morte do bandeirante, de Alcântara Machado. Já no segundo volume, destaca a interpretação de Retrato do Brasil (Paulo Prado) Vidas Secas (Graciliano Ramos) e a tríade Casa grande e senzala, Sobrados e Mucambos e Ordem e progresso (Gilberto Freyre) e por fim, no terceiro volume, Raízes do Brasil (Sérgio Buarque de Holanda), Formação do Brasil contemporâneo (Caio Prado) e A revolução burguesa no Brasil (Florestan Fernandes).

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91 UMA REFLEXÃO SOBRE A VIOLÊNCIA ESCOLAR Mirian Teresa de Sá Leitão Martins Mestre em Ciências Médicas – UERJ

RESUMO Este trabalho propõe refletir o fenômeno da violência escolar, entendendo que a violência é uma situação cotidiana a partir de uma dimensão sociocultural trazendo estudos/conceitos de diferentes autores. Procurou mostrar que as diferentes formas de violência estão imbricadas nos contextos simbólicos e culturais, que a autoridade e o saber dos professores que são impostos aos alunos, reproduzindo nessas relações interpessoais, violências. Gerando a violência simbólica que se manifesta nas mais diferentes formas no interior da escola, comprometendo a sua função social. Palavras chave: cultura, escola e violência. ABSTRACT This paper proposes refletiro phenomenon of school violence, understanding that violence is an everyday situation from a sociocultural dimension bringing studies/concepts of different authors . Sought to show that the different forms of violence are woven in the symbolic and cultural contexts, that the authority and knowledge of teachers that are imposed on students, reproducing violence in interpersonal relationships. Generating the symbolic violence that manifests itself in many different ways within the school, undermining the social function. Keywords: culture, scholl and violence. Introdução Este presente trabalho surgiu do encontro com a temática, a partir de estudos anteriores Martins (2008). O aprofundamento desse tema trazendo novas reflexões, se deu pela magnitude e relevância do tema “violência na escola” e pela dimensão alcançada por ele nos dias atuais. A prática pedagógica na atualidade está envolta em uma série de questões que se apresentam como verdadeiros desafios para os professores. Além de lidar com as inúmeras transformações tecnológicas, econômicas e sociais, o professor tem que administrar inúmeros conflitos no espaço escolar. Conflitos estes que muitas vezes, vêm deflagrar um ambiente de violência, de desrespeito entre os educandos e entre eles e seus professores. Revendo a literatura, encontramos o tema sendo conceituado sob deferentes aspectos. Nessa perspectiva, a violência pode ser definida como um ato físico de uma pessoa ou de um grupo contra a integridade de outra(s) ou de outro (s) grupo(s). Ou ainda, como uma agressão que é premeditada e sistemática (Costa, 2000). Ela pode ser física e se

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92 apresenta na forma de: espancamentos de vários tipos, de estupros, de homicídios, de acidentes que ferem no trânsito, entre outros. Pode ser verbal e é percebida na forma de insultos, gritos e xingamentos e psicológica, caracterizada como a desqualificação das potencialidades de uma pessoa, desejos, emoções e cobrança excessiva de resultados. O fenômeno da violência é gerado pelas questões sociais, como a pobreza, os conflitos entre capital e trabalho, instigou vários pensadores como: Hobbes, Rousseau, Marx e Engels, entre outros. Contudo, autores, como Costa (2000), chamam a atenção no sentido de que a iniciam o processo de divisão social do trabalho, assim como uma concepção da existência de violência precede às sociedades urbanas. Para essa autora, os conflitos humanos ocorrem desde as organizações sociais primitivas. Com o surgimento da agricultura, os homens um espaço (território) comum a eles. No território a eles destinado plantavam e, ao se sentirem ameaçados por outros grupos humanos, começaram a defender as suas terras. Iniciaram-se então, os primeiros conflitos entre os homens e a concepção de guerra, conquista e defesa das propriedades (Costa, op.cit). O desenvolvimento natural da civilização e as formas de produção fizeram surgir também modos de proteção do território, gerando a criação de um poder bélico defensivo. Com o aparecimento dos Estados Nacionais, acirrou-se ainda mais a defesa das fronteiras e a disputa entre as nações. Com isso, cada vez mais os conflitos armados foram se expandindo e com o desenvolvimento tecnológico da era moderna, as formas de agressão e defesa multiplicaram os conflitos entre os homens (Costa, op.cit). O valor econômico da terra, a capacidade de exploração e de produção levaram os homens e os Estados Nacionais a se tornarem cada vez mais violentos em buscas ostensivas por novos territórios e manutenção de seus domínios. Com o intuito de controlar os conflitos internos, em cada sociedade foram expandindo-se instituições/aparelhos de controle jurídico-legal. Esses se expressam na ampliação dos aparelhos policiais e militares em detrimento dos jurídicos-legais. Enfin os conflitos sempre fizeram parte da história da humanidade, porém na atualidade presenciamos formas diferenciadas e particularizadas de violências. Em especial no ambiente escoalr, que é o nosso foco de reflexão, Debarbieux (1999) vai enfatizar em estudo sobre o cotidiano escolar, que a escola exprime as marcas da violência que ocorre na sociedade. Para o autor: Em primeiro lugar, a degradação no ambiente escolar, isto é, a grande dificuldade de gestão das escolas, resultando em estruturas deficientes. Em segundo lugar, a uma violência que começa de fora para dentro das escolas, manifestada pela interferência das gangues, do tráfico de drogas e da visibilidade crescente da exclusão social ao redor da comunidade escolar (1999, p.28).

É inegável que alunos e professores sofrem com a violência urbana. Como sabemos, devido a sua abragência, a violência urbana apresenta algumas especificidades que

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93 a diferencia de outros tipos de violência, pois se desencadeia em conseqüência das condições de vida desiguais, refletindo no convívio no espaço urbano. Suas manifestações se evidenciam quando observamos o alto índice de criminalidade, a infração dos códigos elementares de conduta e convívio civilizados, entre outros. Um pouco do caminhar dos estudos, para a compreensão do fenômeno Para entender a complexidade do fenômeno, a seguir, faremos uma revisão da literatura. Diferentes correntes de pensamento que estudam o problema, apontando os avanços, limites e contradições de modo a tecermos um referencial teórico que de fato nos leve a entender a questão da violência em sua totalidade, e que se expressa no ambiente escolar, sem cair na ingenuidade de vinculá-las meramente aos aspectos circunstanciais, individuais e locais. Os primeiros estudos sobre a violência escolar datam da década de 1950 , nos EUA. A princípio esse tipo de fenômeno na escola era percebido como uma simples questão de indisciplina dos alunos. Mais tarde, com a proliferação nos bairros mais pobres, onde existia a presença das gangues, passou a ser analisada como manifestação de delinqüência juvenil, ou seja, da expressão de um comportamento anti-social juvenil. Em 1978, os debates nos EUA se acirraram e o Instituto Nacional de Educação passou a perceber o fenômeno como um problema nacional. Tal fato levou educadores e sociólogos a buscar a identificação dos fatores que levam à violência na escola. Na França, o fenômeno é alvo de debates desde os anos 80 e já contava com os estudos de Eric Debarbieux . Em 1998 , junto com a socióloga Catherine Blaya fundou o Observatório Europeu de Violência nas Escolas, da Universidade de Bordeaux. Após realizar uma grande pesquisa sobre a temática Debardieux (1999), identificou três tipos de violência escolar: a penal, os crimes e delitos, as incivilidades, conflitos interpessoais e o sentimento de insegurança. Na atualidade para o estudioso, embora exista uma correlação entre violência escolar e exclusão social, houve um aumento de atos de agressão de alunos contra professores. Fato observado também por Blaya (2001), para ela nos últimos anos, verificou-se um aumento da violência “chamada de oposição”, aquela praticada contra instituições, que representam para os alunos, o abuso gerado pela dinâmica social e pela globalização. Um estudo realizado pela Unesco (2003 e 2004), com 13 mil estudantes de 110 escolas públicas de Belém, Salvador, Porto Alegre, Distrito Federal e São Paulo, onde também foram ouvidos 1.768 professores, funcionários e diretores, revela que, as escolas não apenas refletem a violência que acontece fora delas, mas também produzem violência. A pesquisa mostrou que 47% dos professores ou funcionários já foram xingados por alunos e que 51% dos estudantes consideram o clima na escola ruim, péssimo ou mais ou menos. Entre os alunos, os negros são maior alvo de ofensas: 22% deles já foram

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94 insultados por causa da cor da pele, percentual que cai para 6% entre estudantes brancos. Alguns fatores como: pobreza, desemprego, política e aumento do narcotráfico, contribuem para o fortalecimento da violência. Para entendermos melhor a questão apresentaremos a seguir alguns aspectos que envolvem a questão da violência na escola. As instituições educacionais vêem sofrendo mudanças, como foi apresentado pelos estudiosos mencionados. A escola vivencia novos desafios como: problemas de gestão, conflitos internos entre os diversos atores sociais (professores, alunos, corpo técnico/apoio e comunidade), desordem social decorrente da globalização, crise ética e exclusão social. Essas transformações interferem sobremaneira no dia-a-dia da instituição. Houve mudanças na expressão do fenômeno, surgiram as armas e as drogas, proliferou-se nas escolas, as gangues. A instituição escolar deixou de ser uma área protegida, passando a ser vulnerável aos acontecimentos no seu entorno. A violência é uma situação cotidiana e não excepcional, mas um fato diário na vida da população, principalmente nos grandes centros urbanos. A que ocorre nas escolas pode ser vista como uma conseqüência dos atos ocorridos na sociedade ou em casa e traz várias implicações para ambos, professores e alunos. Ocasionando comportamentos anti-sociais, distúrbios de aprendizagem e até problemas de saúde, como a depressão e as fobias. O fenômeno dever ser analisado a partir de uma dimensão sóciocultural. A esse respeito Abromoway (2002) ressalta que a violência é fruto das seguintes variáveis: institucional, compreendendo a escola e a família, social e comportamental. . Entre os tipos mais comuns da violência escolar por parte dos discentes estão: xingamentos, ameaças, descuido com o asseio das áreas comuns dos prédios escolares, danificações das vidraças, agressões verbais, guerra de giz, entre outros. Atitudes dos docentes Os professores, em geral, tem dificuldades de identificar formas de violência geradas por eles próprios, não veem a cultura escolar como fonte de violência, somente a que está do lado de fora das escolas. De acordo com Waiselfisz (op.cit), ocorrem entre professor/aluno diversos conflitos no ambiente escolar. Muitos educadores não sabem lidar com o comportamento violento de seus alunos e acabam tomando atitudes agressivas, ou perdem o próprio controle, aumentando ainda mais as situações conflitantes Os docentes usam a agressão verbal. Muitos gritam com seus alunos, desrespeitando-os como pessoas. Estudos Abramoway (2002) e Assis e Avanci (2005), também consideram como violentas, situações que não envolvem a força e mesmo não sendo consideradas como agressão corporal, são avaliadas como abuso; e por ocasionarem ressentimentos e humilhações, podem e devem ser consideradas como violência psicológica. São casos onde há mágoas e agressões por meio de palavras e atitudes. Alunos relataram situações em que se sentem humilhados e desrespeitados por alguns professores e que são classificados como

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95 “burros” ou indisciplinados e que os docentes os ignoram completamente os seus problemas. Enquanto que outros os tratam mal, com agressões verbais e os expõem ao ridículo quando não entendem a matéria ou não conseguem responder a uma pergunta. São situações que os jovens consideram como “falta de respeito” (Abramoway, 2002). De acordo com Assis e Avanci (2005), as escolas contribuem para a ocorrência de um tipo de violência psicológica sobre crianças e adolescentes, quando admitem a existência de relações interpessoais conflituosas entre os alunos (bullying)2 e os tratamentos humilhantes e desrespeitosos entre o corpo discente e docente. O bullying segundo os pesquisadores, é considerado como fator para o abandono de escola e repetência escolar. Porém os tipos de violência mais presentes no dia-a-dia da escola são as ameaças e as agressões verbais entre os alunos e alunas. As relações entre eles são péssimas, ocorrem também agressões físicas que acabam acarretando em graves conseqüências. Justificam o uso da força física como legítima defesa. Também são habituais os casos contra os professores, que ao se envolverem para dissolverem as brigas são ameaçados até de morte, sofrem agressões verbais o tempo todo, tendo que serem firmes em suas atitudes, impondo-se com rigidez para não demonstrar que aquela ameaça poderá inibi-los. Às vezes ficam em situação desesperadora, pois não sabem quando o aluno está falando a verdade. Alguns docentes recriam também um modelo de violência contra os seus alunos, e admitem serem agressivos por estarem em um meio violento e sofrerem também agressões por parte dos discentes (Abromoway 2002) . As instituições educacionais não são só vitimas da violência, como também favorecem a ocorrência sobre crianças e adolescentes da violência simbólica, ou seja, uma violência que se fundamenta nas disposições modeladas pelas estruturas de dominação e o dominado não se opõe ao seu opressor, já que não se percebe como vítima desse processo (Bourdieu,1979). Pode-se dizer que há uma forma de violência naturalizada, a violência da imposição da cultura dominante que desqualifica a existência nas escolas, da diversidade cultural dos estratos populares. Assim de forma simbólica afeta a formação da identidade, a auto-estima juvenil e a capacidade de projeção do futuro. Para Abramovay (2002) a escola busca homogeneizar o espaço social e ressalta as desigualdades (da posse do Capital Cultural e Social) existentes entre os alunos dos distintos segmentos sociais. Para ela o convívio de alunos com diferentes Capitais seria produtivo por possibilitar a troca de saberes. Enfatiza ela que, por um lado a escola é vista com um lugar para a aprendizagem, como caminho para uma inserção positiva no mercado de trabalho e na sociedade, por outro, muitos alunos consideram a escola como um local de exclusão social. (2002, pp.72-73). A desigualdade de Capital Cultural vai configurar as representações acerca das possibilidades dos alunos, no caso dos segmentos populares, são muitas das vezes negativas. As Representações Sociais são fruto de uma dinâmica relacional e simbólica através da qual os indivíduos entram em contato com o mundo exterior e o reproduzem à sua imagem e semelhança” (Domingos,1998, p.119). São uma forma de conhecimento socialmente

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96 partilhada que, tendo uma visão prática, concorre para a construção de uma realidade comum a um conjunto social. Estas possuem características fundamentais: é sempre uma simbolização de um objeto, possui uma característica de imagem, é um atributo de poder (que pode interferir na percepção e no conceito em questão) e remete a um significante (Jodelet,1989). Enfim, é um modo de conhecimento prático do cotidiano, e refere-se à construção dos saberes sociais. A Teoria das Representações Sociais (TRS) foi criada por Moscovici (1978) e de acordo com o autor, estas possuem uma estrutura e é formada por dois processos: o da ancoragem e o da objetivação. A ancoragem dá suporte ao objeto social. Ancorar é trazer para imagens e categorias conhecidas o que ainda não está classificado, nem rotulado. Já a objetivação reproduz um conceito em uma imagem; refere-se à descoberta da qualidade icônica de uma idéia. Em outras palavras, a objetivação é um processo de concretização para a realidade. A imagem torna-se concreta, física. Nóbrega (1990:15) ressalta que a Teoria das Representações Sociais proporcionou à Psicologia Social a análise da subjetividade do sujeito aliada à sua historicidade, por levar em conta todas as experiências vividas, de onde emergem as idéias do senso comum que, por serem produzidas por meio do mundo simbólico através da palavra comunicada, estão estruturadas em três níveis: (...) do cognitivo-acesso desigual das informações interesses ou implicações dos sujeitos, necessidades de agir em relação aos outros, da formação das representações e da edificação das condutas-opiniões. Atitudes e estereótipo. (Nóbrega, Op.cit: 16).

Toda Representação Social é uma representação de alguém; quem a formula é uma pessoa imersa num mundo real e simbólico, portanto, mergulhado na cultura, em um contexto educacional, institucional e ideológico, fatores estes relevantes na análise da construção das representações sociais. Então, a partir das Representações Sociais podemos compreender aspectos importantes que vão influenciar a interação entre docentes e discentes, suas práticas e levantar as seguintes questões: as diferenças entre o mundo cultural e simbólico dos segmentos populares e as do Campo Educacional se dão em espaços simbólicos diferenciados e por que não dizer em alguns momentos antagônico; fruto das relações socioculturais desiguais, onde aqueles que não pertencem à universos culturais do grupo dominante ( a escola é parte deste) se veem excluídos. Essas diferenças, podem levar alunos dos segmentos populares ao abandono dos estudos (Abramoway, 2002) e a episódios de violência escolar. As representações que muitos docentes tem dos discentes dos segmentos populares como inapropriados para o Campo Educacional, (a não ser que efetivamente reconfigurem seu habitus), são percebidas por alunos como desprezo e preconceito podendo gerar fracasso escolar, desinteresse e atitudes de rebeldia e agressividade. Muitos alunos desistem da escola por não conseguirem sucesso na aprendizagem

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97 ou por não se adaptarem aos códigos impostos pela instituição escolar, já que na quase totalidade, a autoridade e o saber dos professores são impostos aos alunos, legitimados pelas Representações Sociais desse mesmo saber e autoridade . Complementando a discussão sobre a temática cabe lembrar as análises do sociólogo Pierre Bourdieu (1979), sobre o capital cultural. Para o autor, na maioria das práticas pedagógicas, a instituição desconsidera qualquer tipo de bem cultural que não seja o saber instituído, ou seja, o saber das classes dominantes. Na escola não existe uma relação homogênea entre o saber institucionalizado e as vivências dos discentes. Essas práticas favorecem manifestações de violência simbólica que se expressam na autoridade velada do saber do professor, nas avaliações, no fracasso escolar, que atinge muito mais os alunos que pertencem as camadas com menor poder aquisitivo, do que aqueles de outros segmentos. Os alunos dos estratos favorecidos economicamente, estão mais familiarizados com os pressupostos educacionais, por possuírem maior capital econômico e cultural. Destaca-se neste conjunto de conflitos, a questão da avaliação dos resultados escolares e as notas, onde o sentimento de injustiça pode ser encarado como uma agressão à personalidade individual e à possibilidade de se construir uma imagem positiva de si mesmo perante os outros. Este tipo de conflito vem a desencadear reações que podem tanto ser defensiva (isolamento e apatia) quanto ofensiva (agressão, depredação, insultos). Considerações Finais Para a análise que seguem partimos do princípio que o fenômeno da violência tem forte relação com as questões sociais que vão desaguar em ambientes hierarquizados e disciplinadores como as escolas, acabando por exacerbar a autoridade-autoritária do professor pelo fato de que as Reprsentações Sociais de muitos educadores, sobre a cultura do Campo Educacional como a mais correta, além de desencadear uma atitude de desprezo, por qualquer outro tipo de prática social diferente da sua, vai eleger que alunos serão excluídos, contribuindo para a violência escolar. Ao longo do trabalho, fez-se uma relação entre as condições objetivas da violência, suas diferentes formas de expressão e a questão da violência urbana. Assim como a chamada violência simbólica. Esta se revela na autoridade sutil dos professores para com os alunos e no fracasso escolar, já que muitos alunos desistem da escola, por não se adaptarem aos códigos impostos pela instituição. Na busca pela compreensão da violência escolar, assumimos a concepção de que ela é determinada socialmente, da existência de uma relação entre violência/exclusão e de que não devemos ter um único entendimento, mas uma multiplicidade de conceitos na compreensão do fenômeno. Pois estes fatores estão diretamente ligados ao contexto simbólico-social e ao tempo histórico o qual o situam.

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98 A escola ao tentar resolver o problema da violência, na maioria das vezes, não considera a reprodução da ordem cultural das classes dominantes. As ações pensadas para resolver a questão, ocorrem como resposta às situações que se apresentam como limítrofes, ou seja, insustentáveis. Não há realmente, por parte das instituições educacionais, uma análise do problema do ponto de vista sociológico, optando-se, quase sempre, por ações repressivas ou na sua naturalização , por não perceberem que as representações que têm sobre os alunos, muitas das vezes não condiz com o aluno real , essa diferença foram ao longo das décadas sendo exacerbadas na Escola. Na contemporaneidade, muitas das normas que conduzem os códigos de relacionamento institucional e interpessoal são modificados. Percebemos que novas formas de interação que são construídas, nem sempre são pautadas pelos princípios da ética e do respeito mútuo entre os indivíduos, e destes para com as instituições sociais. O próprio Estado, como Estado de direito, trata de forma diferenciada os cidadãos, reservando–lhes tratamento diferenciado, mesmo perante às leis. Sob esse aspecto, vive-se uma crise dos valores humanos acirrada pelas desigualdades, que afeta de sobremaneira a instituição escolar. Tal crise junto com a distancia que os docentes tem do mundo real do aluno, vem produzindo modificações nas relações entre os alunos e os profissionais de ensino. Gerando hostilidades no ambiente escolar. No enfrentamento dessa situação deve-se pensar nas seguintes questões: se o que os jovens esperam do sistema educacional está sendo feito, se existem avaliações descontextualizadas que propiciam o abandono dos estudos (pode ser o começo do fracasso escolar), ou se a escola é produto e produz Representações Sociais homogeneizadoras; e se a função social da escola, de promoção, de cidadania e crítica social está sendo realizada. Estas são questões fundamentais e sem elas não caminharemos ao encontro de uma solução realmente efetiva acerca da problemática da violência. A não ser que queiramos continuar apreciando o problema como expectadores. Entendemos que as práticas da violência passam pela reconstrução da complexidade das relações sociais que estão presentes no espaço social da escola. Ou ainda, como ressalta Bourdieu (2001) A ambição mágica de transformar o mundo social sem conhecer os mecanismos que o movem corre o risco de substituir por uma outra violência, às vezes mais desumana, a “violência inerte” dos mecanismos que a ignorância pretensiosa destruiu (2001, p.36).

No contexto, a “ambição mágica de transformar o mundo” passa pela compreensão de que a expressão do modelo violento de convivência social se acirra à medida que aumentam a intolerância às diferenças. Para enfrentá-la é necessário trabalhamos, na escola e fora dela, por uma cultura que enfatize os valores sociais e humanos, a ética, a solidariedade, o respeito aos direitos humanos como exercício cotidiano.

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99 Referências ABRAMOWAY, Mirian, Violencia nas Escolas. Brasília: UNESCO, MEC, 2002. ASSIS Simone; AVANCI Joviana, Abuso psicológico e desenvolvimento infantil. Brasília: Ministério da Saúde, 2005. p 64BLAYA, Catheryne. Climat Scolaire et violence dans l’enseignement secondaire en France et en Angleterre. In: DEBARBIEUX, Éric e BLAYA Catherine (org) . Violence à l’école et politiques publiques. Paris: ESF, 2001, p. 22-36. BOURDIEU Pierre. La Distinción: criterios y bases sociales del gusto. Madrid: Taurus, 1979. ____________ Lições da aula. São Paulo: Ática. 2001. CANDAU, Vera Maria (org). Escola e Violência. 2ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. COSTA, Cristina. Sociologia: Introdução à ciência da sociedade. São Paulo: Moderna,2000 DEBARBIEUX, Eric. Violência nas escolas e políticas públicas. Brasília: UNESCO, 2002. DOMINGOS, Sobrinho. Habitus e representações sociais: questões para o estudo identidades coletivas. In: MOREIRA, Maria Alice MOREIRA Cláudio Marques (orgs) Estudos interdisciplinares de representação social. Goiânia: AB, 1998; 117-130 JODELET, Denise . As representações sociais. Rio de Janeiro: Livraria Universitária,1989. MARTINS, Mirian Teresa de. Um Estudo sobre a Violência Escolar. Apresentação Oral no Fórum de Políticas Púlicas na Educação. UERJ:Rio de Janeiro, setembro, 2008. NOBREGA, Sueli. O que é representação social? Paris: Ècole de Haites en Sciencies Sociales, 1990. Mimeografado. WAISELFISZ, Julio. (org.) Juventude, violência e cidadania: os jovens de Brasília. São Paulo: Cortez, 1998.

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100 À MARGEM EM THE BLUEST EYE DE TONI MORRISON: NEGRITUDE E TESTEMUNHO Mirna Leisi Lopes Mestranda em Estudos Literários - UFSM “Todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança”. Declaração de independência dos Estados Unidos da América

Resumo: O objetivo desse trabalho é apresentar uma abordagem sobre questões referentes à identidade dos afro-americanos e sobre algumas noções sobre o conceito de negritude veiculada em The Bluest Eye (1970), de Toni Morrison. Um dos interesses nesta análise é a de perceber como a opressão é exercida sobre uma comunidade negra estabelecida no norte dos E.U.A. As questões de negritude e identidade afro-americanas estão estabelecidas no romance através da voz da narradora que constrói um ponto de vista crítico sobre a sociedade norte-americana, no início dos anos 40. Palavras-chave: Negritude, Testemunho, Ficção Afro-Americana, Crítica Social. Abstract: This paper highlights some questions concerning Afro-American identity as well as some notions about the concept of blackness conveyed in Toni Morrison’s The Bluest Eye (1970). One of the interests in this analysis is to investigate the way oppression is imposed on a black community, established in the north of the US. Both blackness and AfroAmerican identity are represented in the novel through the voice of the narrator who builds a critical point of view about the North-American society in the early 40´s. The criticism is established through the voice of the narrator and through the representation of the main character. Key-words: Blackness, Testimony, Afro-American fiction, Social criticism.

Introdução A emergência de uma nova realidade instiga uma série de reflexões sobre o papel do sujeito, seu processo de identificação e criação estética, suas representações e coloca sobre o sujeito moderno a necessidade de rever seus paradigmas e os limites existentes entre a ciência (filosofia) e a arte. As fronteiras estão diluídas e, em função disso, precisamos nos aperceber da necessidade de interrogação delas. A idéia do desenvolvimento de uma nova sensibilidade,

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101 de novas percepções, que são mais rápidas e móveis (ou até voláteis), e que, sendo assim, modificam o modo como olhamos o mundo a nossa volta, ou seja, modificam nossa percepção da realidade, instiga o reconhecimento de que a realidade do mundo se constitui, primeiramente, como um contexto/lugar de múltiplas fabulações da cultura. Nesse contexto, tornou-se necessário centrar as reflexões no sujeito e considerar a reflexão sob o paradigma do questionamento, porque a reflexão é articulada por um indivíduo que ilustra em seus discursos uma fragmentação identitária e, um conhecimento que também é fragmento. Surge dessa condição a necessidade de narrar, contar histórias. Paul Ricouer (1985, p.432) afirma que a “identidade não poderia ter outra forma do que a narrativa, pois é através da narrativa que o indivíduo (s) se define(m)”. Dessa forma, de acordo com esse autor, uma coletividade ou um indivíduo se definiria, portanto, através de histórias que ela narra a si mesma sobre si mesma e, destas narrativas, poder-se-ia extrair a própria essência da definição implícita na qual esta coletividade se encontra. Portanto, a construção da identidade é indissociável da narrativa e conseqüentemente da literatura. Nesse contexto, surgem questões pertinentes: como um sujeito que é fragmento pode narrar a si mesmo? Como dar conta dessa narrativa, visto que as categorias de análise e interpretação já não são suficientes e os paradigmas são outros? Walter Benjamim, em seu ensaio sobre “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, de 1936, já apontava para o fato de as novas condições de produção e fruição artística - “mass media” – modificariam o seu modo de realização na época atual. Na época em que vivemos e que denominamos de (pós) moderno entram em voga, na cena literária, diferentes gêneros textuais que centram sua perspectiva no sujeito, tais como: testemunho, autobiografia, romance confessional. Interessa-nos, por esse viés, observar como essas diluições de fronteiras entre o real e o ficcional se apresentam na narrativa afro-americana contemporânea e como tal “ficção” se apropria da ideia de “verdade” e de vivência para dar voz às classes subalternas. 1 – A narrativa norte-americana contemporânea A ficção contemporânea norte-americana (afro-americana) apresenta preocupações referentes à identidade dos afro-americanos, questões como comunidade, subjetividade feminina e negritude são amplamente consideradas nessa literatura. Há uma necessidade de através do texto literário, estabelecer um diálogo com os mitos históricos e modelos legados pela tradição dos escravos vindos de África. Toni Morrison, negra, mulher, ganhadora do prêmio Nobel de Literatura em 1993 (primeira negra estadunidense a receber o prêmio) e do Pulitzer em 1988 com o romance Amada (Beloved, 1987), uma história sobre uma escrava que mata a própria filha para não vê-la na escravidão,

dramatiza em seus romances a devastação que o desprezo racial pode causar. Mesmo que casual ou arraigado pelo costume – o desprezo racial é desintegrador, ele é agressivo social e domesticamente, algumas vezes monstruoso. Em face de tal realidade, Morrison usa sua obra para dar voz a essas minorias discriminadas, denotando uma preocupação com relação à cultura e a identidade afro-americana marginalizada, a ser preservada.

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102 Em The Bluest Eye, romance publicado em 1970, Toni Morrison representa a agonia de uma comunidade urbana negra marcada por um passado histórico de escravidão e opressão. Apresenta-se no romance uma crise de identidade cultural face à paisagem social - o mundo do homem branco na América do norte -. Essa é a realidade experienciada por muitos afro-americanos que possuem ainda valores tradicionais, legados de seus antepassados africanos. Nesse contexto social, a comunidade negra tenta se moldar aos valores contemporâneos, impostos pela sociedade branca nos Estados Unidos, sem perder, no entanto, a sua própria identidade. A história em The Bluest Eye é ambientada em Lorain, Ohio, norte dos EUA de fins dos anos 40. O romance apresenta cenas do quotidiano de duas famílias de afroamericanos, apresentando seu presente e seu passado, através da voz da narradorapersonagem Claudia. No testemunho de Claudia, a narradora há várias referências a pessoas e eventos do mundo empírico, há também um olhar crítico sobre a sociedade americana que cria, através da mídia, ideais estereotipados de beleza e progresso que excluem todos àqueles que não se adéquam a esses estereótipos, colocando-os em uma situação marginal Frieda e ela conversaram, enternecidas, sobre como a Shirley Temple era lindinha. Eu não podia participar dessa adoração porque odiava a Shirley. [...] o que eu sentia naquela época era ódio puro. Mas antes eu tinha tido um sentimento mais estranho e assustador do que o ódio por todas as Shirley Temples do mundo. (p. 23)

Parece que essas referências têm uma funcionalidade: a de produzir nos leitores a sensação de estar em contato com episódios que realmente ocorreram e foram vivenciados por personagens reais, em lugares conhecidos e num tempo histórico meticulosamente demarcado. Observa-se, nesse sentido, uma freqüente necessidade de registrar fatos e lembranças relacionadas à passagem temporal e ao espaço modificado. Sobre esse espaço social e a realidade imposta aos negros, a narradora comenta: Há uma diferença entre ser posto para fora e ser posto na rua. Se a pessoa é posta para fora, vai para outro lugar; se fica na rua, não tem para onde ir. A distinção é sutil, mas definitiva. Estar na rua era o fim de alguma coisa, um fato físico, irrevogável, definindo e complementando nossa condição metafísica. Sendo uma minoria, tanto em casta quanto em classe, nos movíamos nas bainhas da vida, lutando para consolidar nossa fraqueza e nos agüentar, ou para rastejar, cada um por si, até as dobras maiores do vestuário. Nossa existência periférica, porém, era coisa com que tínhamos aprendido a lidar - provavelmente porque era abstrata. (p.21, 22 )

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103 O fragmento acima expressa de maneira bem objetiva as diferenças sociais presentes na sociedade americana. Os negros denominam-se a si mesmos como “ minoria”, portadora de uma “fraqueza” e de uma “existência periférica”. Nesse contexto de marginalização, a comunidade negra, conforme a narradora comenta, tem fome de propriedade, de se sentir alguém no mundo. A necessidade de registrar essa realidade, denunciando-a, é subjetiva, e estabelece-se a partir da experiência pessoal da narradora personagem Claudia. Assim, pode-se dizer que a natureza quase testemunhal do relato, apresentada através do olhar nada infantil da narradora menina promove uma historicização da ficção e uma sacralização do registro , que parecem indicar o desejo de documentar e refletir acerca dos traços que definem a identidade afro-americana. É nesse ambiente que as personagens, que representam uma comunidade negra, vivenciam sensações de medo e preconceito. Dessa forma, os espaços representados no romance, apresentam a realidade social de algumas famílias negras em face do preconceito racial, inclusive o seu próprio, devido a sua condição marginal no contexto norteamericano. Além disso, os espaços representados no romance possuem a função de delinear o perfil da comunidade afro-americana, a partir da família de Pecola Breedlove - a menina que desesperadamente busca ter os olhos azuis. Ao usar o espaço narrativo para representar e estabelecer um diálogo com a história, Toni Morrison expõe a mazelas que assolam a sociedade norte-americana, e estabelece um discurso que se afirma a partir da margem: é a voz silenciada da mulher, que é negra e pobre. 2 – Toni Morrison e a escritura negra – um breve olhar Em um momento da história norte-americana (década de 60 - 70) repleto de tensões, questionamentos e redefinições vivenciadas pela sociedade, a literatura afroamericana, antes tímida, ganha grande impulso. Ao levantar questões referentes ao preconceito, social, racial e de gênero, os escritores afro-americanos desenvolvem um trabalho que terá papel relevante no processo de construção da identidade cultural dos afro-descendentes. De acordo com a crítica Toni Morrison foi um caso singular de escritor em que a qualidade literária marcou indelevelmente o panorama da ficção afro-americana contemporânea. Gina Wisker pontua a respeito de Morrison, Toni Morrison é demasiadamente talentosa para ser classificada apenas como uma escritora que recorda/rememora em seus romances o lado negro da vida provinciana... Morrison pôde facilmente transcender a precoce e involuntária classificação como ‘escritora negra’ e tomar o seu lugar entre os mais célebres e talentosos novelistas Americanos da contemporaneidade.( WISKER, 1993, p. 79).[1]

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104 De fato, Morrison incorpora em seus romances questões como a confrontação entre racismo e sexismo, dando voz as mulheres negras americanas, ao representar sua realidade, sem desconsiderar o estilo literário que integra referências históricas e ficcionais mais apuradas. A literatura de Morrison conduz ao debate sobre questões raciais que a história e a sociedade buscam apagar ou negar. 3 – Negritude e o movimento black is beautiful De acordo com Hacker (1995, p.3), a questão de “raça” (etnia) tem sido uma obsessão americana desde que os primeiros Europeus chegaram ao continente americano e avistaram aqueles que eles chamaram de selvagens. Os habitantes da América – nativos do continente – foram dominados ou, por outro lado, massacrados pelos brancos europeus. Com o passar do tempo a questão de racismo se acentuou e se tornou objeto de muita perturbação. Stuart Hall em Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais (2003) aborda certos questionamentos acerca da condição do negro, como sujeito, na época contemporânea: a questão que perpassa o estudo de Hall é quem são os negros inseridos na cultura (negra). Andrew Hacker (1995, p. 19) usa o termo unobtrusive para designar a condição do negro em solo norte-americano. Os negros representavam uma grande força motriz, atuavam como classe trabalhadora, mesmo em seus primórdios na condição de escravos, no entanto, eram, e continuam sendo considerados, em certo sentido, pelo menos até 1963, anônimos, invisíveis, embora cidadãos americanos. Os negros americanos, principalmente a partir da década de 60, passam a expressar orgulho com relação às suas origens, e buscam demonstrar isso através da preservação de sua cultura ancestral. Uma cultura de tradição oral. Nesse sentido, a literatura tem/apresenta um papel fundamental, pois é através dessa consciência de preservação, que os muitos aspectos da tradição africana foram transmitidos de geração em geração, desde a chegada dos primeiros escravos africanos ao continente americano. De acordo com Giraudo A ficção afro-americana contemporânea objetiva transmitir os vários aspectos da experiência histórica afro-americana às gerações presentes e futuras de afro-americanos, bem como aos membros de outras etnias nos Estados Unidos. Trata-se de um trabalho de resgate que mergulha fundo na busca da tradição oral e escrita iniciada com a chegada dos primeiros escravos africanos ao continente americano. Trata-se de manter viva uma tradição oral, vernácula, bem como de reapropriar e revisitar uma tradição literária iniciada com as narrativas de ex-escravos do século XIX, uma vez que o escritor afro-americano participa hoje tanto de uma tradição oral quanto de uma tradição escrita. Os escritores afroamericanos, portanto, imergem no passado comunitário de modo a

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105 permitir que o espírito da cultura emerja e reviva na obra literária. A preocupação dos escritores afro-americanos é a de salvar toda uma variedade de manifestações culturais afro-americanas e de organizá-las em conjuntos sistemáticos e orgânicos. (1997, p. 35)

Outro fator a considerar baseia-se na constatação de Hacker de que a história oficial parece renegar os negros a uma condição de apagamento. Nesse sentido a literatura não teria apenas o papel de preservação cultural ancestral, mas também teria a função de contar a história desse grupo oprimido, de apresentar um olhar crítico sobre essa sociedade norteamericana que é muito paradoxal. A história do negro no contexto americano foi muito penosa e sofrida, foi uma história de luta, mesmo que silenciosa, que foi capaz de vencer a própria impossibilidade de ter voz. O termo Black usado por muitos era a denominação branca para definir os negros, e ela estava imbuída de preconceitos e de uma total falta de aceitação do outro. A partir da década de 60, com o movimento pelos direitos civis, estabeleceu-se a conscientização e a auto-afirmação de uma identidade negra (afro-americana). Os Afroamericanos passam a usar o adágio Black is beautiful, em oposição à propaganda branca que vinculava os ideais de beleza à concepção de brancura. A negritude estabelece-se no nível da narrativa a partir da referência a uma cosmogonia afro-americana , que pode ser percebida também no título do romance, através da ambiguidade de significados da palavra blue em inglês – azul e triste – remetendo a tragédia de Pecola, a personagem principal. Personagem que busca a negação (anulação) de sua própria raça, de seus valores culturais negros. Pecola cresce em uma sociedade na qual o padrão de estética é ditado pela figura de crianças brancas, loiras e de olhos claros, em uma sociedade onde é feio ser negro. The Bluest Eye é a história de Pecola, mas poderia ser a história de muitas crianças negras nos EUA. O romance aponta de maneira crítica a vontade de Pecola de ter os olhos azuis como os de Shirley Temple, pois no seu imaginário, contaminado pela ideologia dominante, o belo é a brancura. Pecola quer ser bonita, para ser notada pelas pessoas e para que seu mundo se transforme. O drama da menina de Morrison é, na verdade, a expressão maior da dificuldade de se atingir a individualidade e o senso pleno de humanidade em uma sociedade reificada e manipuladora. A representação de um universo negro e o olhar crítico lançado sobre a sociedade que, ao mesmo tempo, o incorpora e o exclui é uma característica marcante da literatura afro-americana e uma de suas forças. Contar e o re-contar eventos de vida significa, dentro da cultura afro-americana, preservar as histórias de vida dos afro-americanos, quer como denúncia, quer como aviso, quer como troca de experiências. Na verdade parece que esses relatos são essenciais na fundamentação de uma identidade negra, que alguns teóricos chamam de negritude (blackness). Zilá Bernd (1987, p.24-27) relaciona a idéia de negritude diretamente com a literatura. A negritude para a autora merecerá um recorte literário, ao invés de filosófico ou

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106 antropológico. Bernd argumenta que o conceito de negritude é um conceito plural, e que em seu estudo ela pretende tratá-lo como um questionamento, ponto a ser resolvido, problema. Traçando um breve percurso da discussão acerca da negritude, a referida autora aponta que em seus primórdios foi o desejo de reagir frente à idéia de assimilação imposta aos povos colonizados que está na base da negritude: A tendência de povos colonizados, tanto na África quanto nas Américas, de assimilar a cultura européia, alienando-se dos valores da cultura africana, originou a contrapartida da negritude que traz em seu bojo a vontade de reencontrar uma identidade perdida, o desejo de opor ressurreição à assimilação. Este fenômeno da assimilação foi muito bem captado por Frantz Fanon ao criar a metáfora das máscaras brancas referindo-se aos homens de pele negra que acreditam que, para ascender socialmente, devem identificar-se com o branco, assumindo todos os elementos de sua cultura. (1987, p. 24-27)

Como definição, a palavra negritude, aparece pela primeira vez em 1975. Bernd comenta que essa palavra é um neologismo formado a partir do latim. Por definição negritude significa (1) estado ou condição das pessoas de raça negra, (2) ideologia característica da fase de conscientização, pelos povos negros africanos, da opressão colonialista, a qual busca reencontrar a subjetividade negra, observada objetivamente na fase pré-colonial e perdida pela dominação da cultural ocidental. No presente trabalho nos interessa o recorte conceitual que demarca a expressão negritude como etapa de conscientização. Quando analisamos o movimento dos direitos civis norte-americanos e observamos o papel da literatura de produção negra, já na gênese desse movimento, podemos perceber o sentido de negritude para os negros estadunidenses. A tomada de consciência de uma “situação de dominação e de discriminação e a conseqüente reação pela busca de uma identidade negra”[2], é o que caracteriza a produção literária dos Afro-americanos. Na poética de Toni Morrison, a negritude é apresentada e estabelece-se através da voz da narradora e da composição da personagem principal. Pecola Breedlove, personagem principal do romance, sonha em ter os olhos azuis e se integrar totalmente em um padrão sociocultural que, nitidamente, está erigido para excluí-la. A única percepção que Pecola parece demonstrar é que, de fato, não existe espaço para a convivência da diversidade e da tolerância. Em sua mente já perturbada por tanta violência e desprezo, ela somente é capaz de entender que o modo de resolver sua infelicidade é deixar de ser outro ( aliens de acordo com Hacker) e se integrar no padrão (padrão de beleza e de brancura): Já fazia certo tempo que Pecola tinha percebido que se os seus olhos, os olhos que viam as pinturas e conheciam os lugares – se esses olhos seus fossem diferentes, isto é, bonitos, ela mesma seria também diferente. Seus dentes eram bons, e seu nariz não tão grande e chato quanto o das que eram consideradas muito engraçadinhas. Se ela fosse bonita, talvez Cholly (seu pai) ficasse diferente, e até a Srª Breedlove (sua mãe). Talvez eles

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107 dissessem: ” Opa, olha só os lindos olhos de Pecola. Não devemos fazer nada de ruim diante desses lindos olhos.” [...] Toda noite, sem falta, ela rezava e pedia olhos azuis. Com toda fé, ela rezou por um ano. (1970, p. 40)

Considerações finais Parece pertinente considerar que na composição romanesca de Toni Morrison, a presença de traços autobiográficos ou testemunhais são fundamentais para o estabelecimento da denúncia e dos conceitos de negritude. A narradora personagem apresenta de maneira pontual a problemática do negro nos Estados Unidos, a sua condição subalterna e desprivilegiada. Através do relato literário, essa classe minoritária pode ter voz para denunciar e reivindicar seus direitos. Dessa forma a literatura cumpre um papel duplo: estético e ético. O sujeito em Morrison apresenta as inquietações e os questionamentos pertinentes à época em que vive, quase que buscando uma catarse pessoal. BIBLIOGRAFIA BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. BERND, Z. Negritude e Literatura na América Latina. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987. BHABHA, H. K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Ed. Da UFMG, 1998. BOURNEUF, R.; QUELLET, R. O Universo do Romance. (Trad. José Carlos Seabra Pereira). Coimbra: Livraria Almeida, 1976. HALL,S. Que Negro é esse na Cultura Negra? In: HALL, S. Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003. MORRISON, T. The Bluest Eye. New York: Holt, Rinehart and Winston, Inc.:1970. REUTER, Y. A Análise da Narrativa. Rio de Janeiro: Difel, 2002. RICOEUR, P. Tempo e Narrativa. Vol. III. Campinas: Papirus, 1997. WISKER, G. Disremembered and Unaccounted For: Reading Toni Morrison´s Beloved and Alice Walker´s The temple of my familiar. In: BLOOM, C.; WISKER, G. Black Women´s Writing. New York: Editorial Board, Lumière Press Ltda, 1993. [1] Toni Morrison is far too talented to remain only a marvelous recorder of the black side of

provincial life …she might easily transcend that early and unintentionally limiting classification blackwoman writer and take her place among the most serious, important and talented American novelists. As versões do original em inglês são de minha inteira responsabilidade, assim como os equívocos possíveis. [2] Ibidem, p. 27

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108 A TEORIA DA ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E A ARTE CINEMATOGRÁFICA Monalisa Pivetta da Silva

Mestranda em Ciências da Linguagem Universidade do Sul de Santa Catarina UNISUL - Tubarão

Resumo Este artigo apresenta uma reflexão sobre o cinema, a partir do foco do espectador. O objetivo é avaliar o cinema como um ato de leitura no momento em que é assimilado pelo público. Para tanto, optou-se como aporte teórico algumas considerações da Estética da Recepção. Dentro desse campo, o estudo da estética da recepção se revela válido, viabilizando assim uma melhor compreensão do papel desempenhado pelo espectador na obra cinematográfica. Palavras chave: estética da recepção, cinema, leitor / espectador. Abstract: This article presents a reflection about the cinema, from the focus of the viewer. The objective is to evaluate the cinema as an act of reading when it is assimilated by the public. So that, it was chosen as a theoretical support some considerations of the Aesthetics of Reception. Inside this field, the study of aesthetics of reception reveals valid, enabling so a better understanding of the role of spectator in the cinematographic work. Keywords: aesthetics of reception, cinema, reader / viewer. Estética da recepção: algumas reflexões O estudo da estética da recepção contribui para o entendimento da recepção da obra literária, no momento de sua leitura, considerando assim o público (receptor) como elemento constitutivo da mesma, encarando-o não mais como elemento passivo, mas ativo, que participa na elaboração de sentido e na construção final, já que a sua mudança de gosto e preferência influencia a circulação e a produção da obra literária. Sendo assim, a estética da recepção toma como objeto de investigação o receptor. Constrói-se uma concepção de leitor que assume. De acordo com Jauss, “seu papel genuíno, imprescindível tanto para o conhecimento estético quanto para o conhecimento histórico: o papel de destinatário a quem, primordialmente, a obra literária visa”. (JAUSS, 1994 p.23) Sobre a relação entre o leitor e a obra, DEBUS esclarece: Refletir sobre a existência de um texto ou o conjunto de uma produção literária sem levar em conta a concretização do ato da leitura parece

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109 querer condená-la ao limbo, enclausurá-la e privá-la da própria existência, na medida em que cabe o leitor o papel de trazê-la ao mundo. Num primeiro momento essa afirmação pode soar banal e sem força, já que desnecessária. No entanto a figura do leitor no processo de reflexão não é um aspecto que faz parte da tradição dos estudos literários. Durante muito tempo o interesse dos estudiosos ficou restrito à figura do autor ou a análise puramente textual. Escritor, texto e leitor não seriam parte integrante do mesmo processo? (DEBUS 2004 p. 107)

Com sua afirmação de que a unidade do texto não se encontra na origem, mas em sua destinação, Barthes também defendeu o leitor e o crítico como criadores, junto com o autor, do sentido do texto. Na cena do texto não há ribalta: não existe por trás do texto ninguém ativo ( o escritor) e diante dele ninguém passivo ( o leitor), não há um sujeito e um objeto. O texto prescreve as atitudes gramaticais: é o olho indiferenciado de que fala um autor excessivo (Ângelus Silesius) “O olho por onde eu vejo Deus é o mesmo olho por onde ele me vê”. (BARTHES, 2006 p.23) Nesse mesmo campo perspectivo, pode-se acrescentar que o leitor vê o texto pelo mesmo prisma que o texto o vê. A leitura é o resultado de uma interação entre o texto e o leitor; onde o leitor lança um olhar crítico sobre o texto sem alterar a mensagem. É um diálogo em que o texto apresenta sua mensagem, e o leitor lhe atribui significação a partir do seu grau de conhecimento. Trata-se de um processo de construção de significados em o que o leitor recebe a informação e estabelece conexões entre o que diz o texto e seus conhecimentos prévios sobre a temática, o estilo, entre outros. Constata-se assim que o leitor tem um repertório prévio que vai lhe possibilitar ou não o encontro com o livro e leitura, pois como destaca DEBUS: O leitor não é um sujeito a - histórico, ele esta inserido num contexto social e possui uma bagagem de conhecimento definido. Portanto não é um sujeito neutro, desprovido de conhecimento, nem por isso um conhecedor da totalidade; a produção artística aproveita-se do conhecido para ensinar-lhe o desconhecido. (DEBUS, 2004p. 107) A estética da recepção manifesta a importância do leitor na produção do significado do texto, destacando a ativa implicação do indivíduo receptor na atribuição de significados durante o ato de leitura. Portanto ler não é só decodificar os signos, também é construir significados. Hans Robert Jauss propõe uma historia da arte fundada em princípios que incluem a perspectiva do sujeito produtor, a do consumidor e sua interação mútua. Pois esse enfoque deixa de centrar-se somente no texto ou no autor, e passa a preocupar-se também no consumidor da mensagem, o leitor. Essa perspectiva coloca o sujeito produtor (destinador) interagindo com o consumidor (receptor). Diante disso, a arte obedece a uma função dialética: formadora e modificadora de percepção. (ZILBERMAN, 1989, p.32).

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110 Para Jauss, somente na relação dialógica da obra com o leitor concretizam-se o caráter estético e o papel social da arte. Voltado para experiência estética enquanto momento de prazer formula os conceitos de fruição compreensiva e compreensão fruidora- o leitor gosta daquilo que compreende e só poderá compreender aquilo que aprecia- sendo o prazer e a compreensão processos simultâneos. (APUD LIMA, 1979, p.46) A estética da recepção adota como critério de determinação do valor estético da obra literária. Jauss (1994) afirma que o seu poder de decepcionar ou contrariar as expectativas leitoras no momento de sua aparição, isto é, a distancia entre o horizonte de expectativa e a obra, entre o já conhecido da experiência estética anterior e a mudança de horizonte. O autor ainda destaca que: A reconstituição do horizonte de expectativa de criação e recepção da obra literária pode propiciar indicadores de como determinada obra foi recebida pelo publico leitor, permitindo que se desvende a pergunta desse mesmo publico a qual a obra respondeu no momento de sua aparição... (APUD DEBUS 2004 p.111)

Podemos perceber na reflexão de Zilberman que o leitor concretiza o texto literário dentro de possibilidades com base em expectativas internas e externas: As duas possibilidades de concretização do texto literário pelo leitor são assim definidas: uma orientada para o horizonte implícito de expectativa e outra para analise das expectativas externas a obra, relacionadas à vivência do leitor. No primeiro, de cunho intraliterário, o efeito e condicionado pela obra. O leitor implícito, criação ficcional, depende das estruturas objetivas da obra, no segundo de cunho extraliterário, a recepção e condicionada pelo leitor. O leitor explicito depende de fatores externos a obra literária.( ZILBERMAN 1989 p. 65)

No livro “O prazer do texto”, Barthes esclarece que um texto pode elaborar um espaço de puro prazer e criar caminhos para a arte do diálogo, no qual o desejo é o ponto de partida para que o leitor desfrute do que lhe é oferecido pelo autor. “Se leio com prazer essa frase, essa história ou essa palavra, é porque foram escritas no prazer. (...) Escrever no prazer me assegura – a mim escritor- o prazer de meu leitor? De modo algum”... (BARTHES, 2004 p. 9). De acordo com Barthes, o prazer de um texto não pode ser julgado, pois cada leitor o frui de forma distinta: Se aceito julgar um texto segundo o prazer, não posso ser levado a dizer: este é bom, aquele é mau. Não há quadro de honra, não há critica, pois esta implica sempre um objetivo tático, um uso social e muitas vezes uma cobertura imaginária. Não posso dosar, imaginar que o texto seja perfectível, que esta pronto a entrar num jogo de predicados normativos: é demasiado isto, não é bastante aquilo, o texto só pode me arrancar este

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111 juízo, de modo algum adjetivo: é isso! E mais ainda: é isso para mim! (BARTHES, 2004 p.19-20)

O leitor nunca faz uso de uma mesma técnica para ler um texto, pois o que importa quando ele o explora é a liberdade dos seus desejos. O texto toma vida a partir do momento em que o leitor o lê. Barthes defende: Não lemos tudo com a mesma intensidade de leitura, um ritmo se estabelece, desenvolto, pouco respeitoso em relação a integridade do texto, a própria avidez do conhecimento nos leva a sobrevoar ou a passar por cima de certas passagens ( pressentidas como aborrecidas) para encontrarmos o mais depressa possível os pontos picantes da anedota (que são sempre suas articulações- o que faz avançar a revelação do enigma ou do destino: saltamos impunemente (ninguém nos vê) as descrições, as explicações, as considerações, as conversações, tornamonos então semelhantes a um espectador de cabaré que subisse ao palco e apressa-se o strip tease da bailarina, tirando-lhe rapidamente as roupas, mas dentro da ordem, isto é: respeitando, de um lado, e precipitando, de outro, os episódios do rito. (qual um padre engolisse a sua missa). (BARTHES 2004 p 17)

Um texto pode criar um espaço de prazer e criar caminhos para a arte do diálogo, no qual o desejo é o ponto de partida para que o leitor desfrute do que lhe é oferecido pelo autor. O autor não pode prever, ele não pode querer escrever o que não se lerá. No entanto é o próprio ritmo daquilo que se lê e do que não se lê que produz o prazer dos grandes relatos. Quanto mais o texto economiza, mais o leitor dispende, quanto mais vazios no texto, mais o leitor deve preenchê-los. O autor está morto, é o leitor que dá sentido a obra. Através de uma leitura constante que o texto atinge a imortalidade. Porém, para que autor e leitor co-existam nessa jornada através do texto, esta tem de estar repleta de emoções, pois a sua falta afasta, automaticamente, o leitor do seu livro. Pode-se considerar como texto, tudo aquilo que pode ser lido, por possuir em si uma informação. Sendo assim, observam-se como textos possíveis de serem lidos; os sons, as imagens, as palavras, expressões corporais e as realidades sociais, e em conseqüência disso, o cinema. Para o interesse do presente artigo, trata-se o cinema, o filme, como um texto que se apresenta para ser lido e interpretado. Cinema e recepção Poder-se-ia dizer, de modo geral, que as técnicas de reprodução destacam o objeto reproduzido do domínio da tradição. Multiplicando-lhe os exemplares, elas substituem por um fenômeno de massa um evento que não se produziu senão uma vez. Permitindo ao objeto reproduzido oferecer-se a visão ou a audição em qualquer circunstância, elas lhe conferem uma atualidade. Esses dois processos conduzem a um considerável abalo da realidade transmitida: ao abalo da tradição, o que é a contra face da crise que atravessa

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112 atualmente a humanidade e de sua atual renovação. Eles se mostram em estreita correlação com os movimentos de massa que hoje se produzem. Seu mais eficaz agente é o filme. (BENJAMIN, 1985, p 19) O cinema, considerado uma das mídias de massa, é um poderoso recurso de comunicação. A linguagem cinematográfica é a linguagem da imagem, portanto o estudo de sua recepção, acreditamos, pode trazer contribuições para o entendimento do modo como o público (leitor, espectador) recebe essa obra, e como essa prática se realiza. O cinema teve sua origem na França, em 1895 quando os irmãos Lumiére conseguiram gravar imagens em movimento sobre uma película e depois reproduzi-la. Essa possibilidade de ilusão e fantasia, fez com que as imagens se desenvolvessem criando uma forma própria de se expressar; a linguagem cinematográfica. Esta forma de linguagem é um conjunto de técnicas, imagens, sons, cores, luz, movimentos, que afetam as emoções, distraem, confundem e emocionam, transmitindo mensagens e produzindo no espectador o desejo de buscar uma significação. O filme faz apelo à capacidade de o espectador ler a imagem. Para a leitura cinematográfica, supõe-se interpretar o ato de ler como o desejo de dar significação ao conjunto de todas essas técnicas que compõe a linguagem cinematográfica. O processo de leitura requer o conhecimento prévio para o objetivo final, que é a compreensão do conteúdo. Atualmente estamos envolvidos num ambiente de milhares de imagens,e saber ler um filme - fazer a leitura do cinema – pode ser tão fundamental como ler um texto escrito. A literatura como o filme são resultados da visão do autor/diretor que expressa suas concepções, seu modo de ver. Toda a sua subjetividade está inserida dentro desse contexto fílmico. Assim, percebe-se que quando se fala em leitura do cinema, há que se considerar a leitura do texto fílmico, que permite analisar as imagens, a ligação entre elas, a música, a maneira de filmar. - como a cena foi construída, como os personagens são dispostos. Esse é um tipo de texto e ele revela a visão de mundo do autor/diretor, é influenciado pela subjetividade de quem o faz. Além disso, quando falamos de leitura de cinema, devemos ainda considerar a leitura que cada espectador faz da realidade fílmica que vivencia. Um filme não se faz só no momento em que é produzido, ele se completa quando é visto. Cada pessoa que assiste a um filme o completa baseado em sua realidade, suas concepções, suas maneiras de ver o mundo, suas experiências de vida. As leituras do cinema e as visões de mundo se entrelaçam – a do autor/diretor e a do leitor/espectador. O leitor compreende a obra dentro dos limites do seu momento, inserido em seu contexto sócio cultural. É o que normalmente ocorre no cinema nacional.

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113 O filme nacional é oriundo da própria realidade social, humana e geográfica, em que vive o espectador, é um reflexo, uma interpretação dessa realidade. Em decorrência, o filme nacional tem sobre o público um poder de impacto que o estrangeiro não costuma ter. Há quase sempre num filme nacional, independente de sua qualidade, uma provocação que não pode deixar de exigir uma reação do público. Tal reação não resulta somente de uma provocação estética (pode sê-lo também), porque o filme nacional implica o conjunto do espectador, porque aquilo que esta acontecendo na tela é ele ou aspectos dele, suas esperanças, inquietações, pensamentos, modos de vida, deformados ou não. Essa interpretação consciente ou inconsciente ele não pode deixar de aceitar ou rejeitar.(...) a produção nacional pode muito bem ter como finalidade e efeito afastar o publico de sua realidade. Alias é o que amiúde se verifica. Mas o filme nacional refere-se direta ou indiretamente, a realidade em que vive o publico. (BERNARDET, 1967 p15). Assim ao analisar a experiência estética na qual está inserido o público leitor, busca se evidenciar a partir da recepção, reconstruir seu horizonte de expectativas e reconhecer a relevância dessa produção. O que ocorre na teoria da recepção é que a linguagem não cobra significação até ao momento em que é lida. No cinema, também, as imagens, ao serem recebidas, geram significados. A linguagem da mente, com suas imagens oníricas, seus objetos alegóricos, seus roteiros de desejo, suas lembranças congeladas e assim por diante, encontra ressonância na linguagem do cinema. No cinema objetos, gestos, olhares, mise-em-scéne, iluminação, enquadramento, e todos os acessórios do aparato fílmico se materializam numa espécie de linguagem antes ou mesmo para além das palavras. (MULVEY, 1996 p.24-25) Jean Claude Bernardet (1967, p.16) considera que essa experiência, esse diálogo do público com um cinema que o expresse, é fundamental para a constituição de qualquer cinematografia, pois um filme não é somente o trabalho do autor e sua equipe, é também aquilo que dele vai assimilar o espectador, e como vai assimilar. Como arte, o filme precisa ser assistido, e, para tanto, faz-se fundamental a existência do espectador. O processo de reprodução da imagem em movimento, por mais distorcidas que as imagens possam ser, estimula no espectador uma credibilidade ausente em todas as outras formas de produção de imagens. Os fenômenos audiovisuais como luzes, movimentos, ritmos, cores, sons, tamanhos, alturas, profundidades e sentenças, contribuem para que o espectador as assimilem, requerendo uma maior capacidade de percepção no julgamento preliminar. Essa experiência é uma forma de conhecimento através dos sentidos. O espectador poderia, então, preencher o que falta à narrativa. pois a possibilidade de preenchimentos de vazios, ou de interpretações que constituem a condição elementar de comunicação da mensagem, oportunizando ao receptor participar da produção de sentido.

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114 Neste sentido, ao preencher essas “lacunas”, o espectador compartilha da sua imaginação, tornando mais flexível sua subjetividade, essa combinação de fatores fundamenta a obra, criando caminhos para novas interpretações, fazendo assim com que a obra cinematográfica esteja inserida na esfera do estético. Considerações finais O estudo da estética da recepção contribui para o entendimento da recepção da obra, podendo o mesmo ser aplicado a arte cinematográfica, tendo em vista que as imagens podem ser consideradas uma forma de texto, que podem ser lidas e interpretadas. O texto toma vida a partir do momento em que o leitor o lê, portanto, o sentido do filme só se realiza no ato da sua recepção. Essa leitura audiovisual adquire características importantes, uma vez que vivemos em um mundo no qual a importância das imagens ganha cada vez mais força. Um texto pode criar um espaço de prazer e criar caminhos para a arte do diálogo, no qual o desejo é o ponto de partida para que o leitor desfrute do que lhe é oferecido pelo autor. A arte cinematográfica permite ao espectador a interação com a obra, através de sua percepção, colocando- o diante de uma realidade verossímil ou inverossímil. A recepção é mais do que um ato de atribuição de sentido; é uma relação de dialogo entre a obra e espectador, que restabelece o que falta à narrativa, participando da produção de sentido, estabelecendo assim a experiência estética da obra. Sabe-se que para uma análise entre o cinema e o diálogo com o público leitor centrada na estética da recepção é necessária uma pesquisa mais aprofundada, no entanto este não era o objetivo do presente artigo. Mas acreditamos que isso seja possível a partir da coleta de depoimento/informações que podem ser oriundas de comentários de espectadores e viabilizada através de sites da internet. A existência de comentários são exemplos da presença de manifestação de leitura de filmes, e fornecem informações sobre a recepção da obra e apresentam reflexões sobre as reações dos espectadores, verificando até que ponto houve influência na formação do pensamento dos mesmos. Referências Bibliográficas BARTHES, Roland. O prazer do texto. Traduzido por: J. Guinsburg. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006. BENJAMIN, Walter. Estéticas do cinema. Traduzido por: Tereza Coelho. Lisboa: Dom Quixote, 1985. BERNARDET, Jean Claude. Brasil em tempo de cinema: ensaio sobre o cinema brasileiro de 1958 a 1966. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

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115 DEBUS, Eliane. Monteiro Lobato e o leitor, esse conhecido. Florianópolis Ed. UFSC, 2004. JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Traduzido por: Sérgio Tellaroli São Paulo: Ática, 1994. JAUSS, Hans Robert. A estética da recepção: colocações gerais. In: LIMA, Luiz Costa.(org) A literatura e o leitor. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1979. MULVEY, Laura. Cidadão Kane. Rio de Janeiro. Rocco, 1996. ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo. Ática.1989

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116 OS GÊNEROS DO DISCURSO E AS PRÁTICAS DE LINGUAGEM EM LÍNGUA PORTUGUESA Nívea Rohling da Silva

Doutoranda em Linguística – UFSC/CAPES

Resumo Este artigo discute a maneira como a teoria dos gêneros do discurso tem sido interpretada nas elaborações didáticas na disciplina de língua portuguesa (LP), mais precisamente nas aulas centradas nas produções de textos escritos. A fundamentação teórico-medotodológica insere-se na teoria dialógica da linguagem do Círculo de Bakhtin. Os dados de pesquisa são compostos por produções textuais escritas (gênero anúncio classificado) de estudantes de 7ª série do EF e também de observações dos procedimentos didáticos na condução das atividades de linguagem. Os resultados de pesquisa mostram que ainda persistem, no ambiente escolar, práticas embasadas em uma perspectiva de redação escolarizada em contraposição à noção de produção textual proposta pelos PCN’s, que aponta os gêneros do discurso como objeto de ensino das práticas de linguagem. Palavras-chave: Gêneros do discurso; Prática de produção textual; Gênero anúncio classificado. Abstract The article discusses the way the theory of speech genres has been taken into account in the didactic elaborations of written textual production within Portuguese Language (LP), conceived as a school subject. The theoretical-methodological basis inserts itself in the dialogical theory of language of Bakhtin Circle. The research data is composed by written texts (classified ad genre) produced by students of the 7th. year of fundamental school, as well as by notes on the didactic procedures concerning the guidance of the language activities. The results show that it is still noticeable, in the school environment, the persistance of practices based on a perspective of school written composition, in opposition to the notion of textual production, suggested by the PCN’s, which point out the speech genres as an effective didactic-methodological object in the author-subject construction of its saying. Keywords: Speech genres; Textual production practice; Classified ad genre. Introdução A partir da década de 80, iniciou-se um movimento teórico com intuito de perceber a linguagem numa abordagem que privilegie a interação. Nesse contexto, a teoria dos gêneros do discurso na linha teórica do Círculo de Bakhtin passou a ser disseminada no Brasil. Atualmente já existem diversos estudos na área, contudo o que se percebe é que ainda não existe uma articulação adequada entre a teorização produzida na academia e o fazer didático do professor.

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117 Diante das problemáticas imbricadas nas práticas de linguagem em sala de aula, mais precisamente na prática de produção textual, este estudo apresenta uma reflexão acerca da maneira como a teoria dos gêneros tem sido interpretada nas aulas de LP. Para tanto, inicialmente é apresentado brevemente conceitos teóricos que embasam esta pesquisa, a saber: um panorama acerca da concepção de produção textual nas aulas de LP e a noção de gêneros do discurso. Na sequência, o percurso metodológico, seguido dos resultados da pesquisa a partir da análise da articulação entre os procedimentos didáticopedagógicos na disciplina de LP e as produções textuais escritas de estudantes de ensino fundamental. Salienta-se que esta pesquisa não pretende ser totalizante no sentido de apresentar a realidade do ensino de produção textual, contudo pode apresentar indícios das concepções de produção textual (e de gêneros do discurso) inseridas no espaço escolar, como também refletir sobre a elaboração didática dos gêneros no âmbito escolar. Panorama das práticas de produção textual nas aulas de língua portuguesa A disciplina de LP tem passado por acentuadas mudanças, isso se deve, em grande medida, às orientações dos documentos oficiais de ensino em apontar os gêneros do discurso como um novo objeto de ensino-aprendizagem nas práticas de linguagem em sala de aula. Contudo, segundo Rodrigues (1999), as recentes pesquisas em linguística aplicada (LA) têm mostrado que o fracasso escolar no ensino de língua tem girado em torno, principalmente, de um ensino-aprendizagem voltado para a questão da metalinguagem, ou para aspectos formais de leitura e da escrita. Na perspectiva de Rojo (2001), houve um avanço considerável a partir dos estudos da linguística textual e das teorias de cunho cognitivistas de processamento e memória, trazendo para o centro da discussão o texto como unidade de trabalho. Porém, de acordo com a autora, esses estudos ainda se mostram ineficiente no desenvolvimento de cidadãos capazes de interagir criticamente com os discursos alheios e com o próprio discurso. Isso quer dizer tal “virada pragmática” no ensino de língua ainda não é uma realidade. Nesse cenário, os PCN’s de LP surgem em 1997 constituindo-se documento oficial de ensino, trazendo consigo a característica de ser um norte à prática docente, que era até então delineada pelos materiais didáticos, no ensino fundamental e pelas provas de vestibular, no ensino médio. Esse novo direcionamento foi positivo em face à necessidade de tal documento. Os PCN’s priorizam as práticas de leitura, práticas de produção textual e práticas de análise linguística, mais que priorizar, os PCN’s conferem a esses três eixos o estatuto de conteúdo a serem ensinados nas aulas de LP[1]. Bonini (2002), em seu artigo intitulado “Metodologias do ensino de produção textual: a perspectiva da enunciação e o papel da Psicolingüística”, recupera o percurso histórico da produção textual em LP a partir dos anos 60. Em termos das orientações para o ensino de produção textual, o autor aponta a existência na atualidade de duas vertentes:

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118 interacionista – a produção textual com reprodução de um corpo de tradições de uma comunidade e a enunciativista – entendida como trabalho e exercício de subjetividade na linguagem. Esta tem tido maior acolhimento entre os documentos oficiais. No decorrer do texto o autor menciona a problemática envolvida nas práticas de escrita em sala de aula. Segundo Bonini (2002), recentemente, mais precisamente a partir dos anos 80, houve o que se chamou de virada pragmática, ou seja, buscou-se inserir no contexto escolar a perspectiva de entender a linguagem como um meio em o homem existe e age - eliminando o caráter prescritivista. Passou-se a considerar o texto, e sua enunciação, como a unidade básica do ensino deslocando a frase, e sua gramática para segundo plano. Entretanto, como dito anteriormente, esta virada ainda não é uma realidade na concepção de linguagem postulada pela escola, menos ainda nas práticas de produção textual. De acordo com Britto (2002), uma situação bem comum na produção textual observada em aulas de LP constitui-se em: [...] caracterização da redação escolar enquanto um gênero escolar, que se subdivide em dissertação, narração e descrição, desvinculado do exercício efetivo de leitura e escrita, que se realiza no interior de uma disciplina. (...) A concepção subjacente é a de que leitura e escritura são habilidades independentes do domínio dos discursos que portam e que o sujeito pode adquiri-la com treino e assimilação de regras. (BRITTO, 2002, p. 108-109)

Através da questão apontada pelo autor, percebe-se o deslocamento da prática de escrita do aluno do seu contexto social, a caracterização mencionada pelo autor constitui os gêneros escolarizados[2], que têm por objetivo o treino de escrita. A própria terminologia adotada redação escolar traz implícita a idéia de uma escrita para fins de treinamento. Partese do pressuposto de que ao dominar uma determinada estrutura, garantir-se-á ao estudante o domínio de qualquer texto que, supostamente, tenha a mesma estrutura textual. Tal posicionamento pode ser questionado, uma vez que fora dos domínios escolares dificilmente será solicitado ao estudante que faça uma narração ou uma descrição; quanto à dissertação será talvez solicitado em concursos e vestibulares que, por sua vez, já estão adotando em suas propostas os gêneros do discurso. Dentro dessa discussão, Geraldi (1993) estabelece uma dicotomia entre produção textual e o ensino de redação. Segundo o autor, ao trabalhar com redação os textos são produzidos para a escola; já na perspectiva da produção textual produzem-se textos na escola. Em qualquer modalidade, para se produzir um texto é necessário que: se tenha o que dizer, se tenha uma razão para dizer, se tenha um interlocutor desse dizer. Na produção de textos, mesmo em uma simples conversa cotidiana, o projeto discursivo se apresenta, ou seja, o interlocutor tem algo a dizer, tem um discurso a materializar, enquanto que na redação o projeto discursivo inexiste. Dessa maneira, percebe-se nas redações muita escrita e pouco texto (pouco discurso), pois o projeto discursivo não está claro para o estudante (GERALDI, 1993).

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119 Ao propor um texto sem que se tenha um querer-dizer e, principalmente, para quem dizer - interlocutores reais - a atividade se desenvolve mecanicamente. Exercícios de escrita a partir da observação de uma gravura, sem o estabelecimento de uma interação, sem que o estudante tenha algo relevante a dizer constituem atividades de preenchimento. Exercícios de redação que o preparam para um depois, e não para uma relação interdiscursiva, mostram-se artificiais e infrutíferas na construção de sujeitos-autores de seus textos, e produtores de sentidos e discursos. Com relação à idéia de preenchimento, Britto (2002, p. 109) referencia a pesquisa de Lemos (1977) com redações de vestibular: “o vestibulando, premido pela necessidade de escrever, trata de preencher o papel com frases de efeito, noções vagas e de valor absoluto, ao invés de engajar-se em uma linha argumentativa própria”. Esse espaço de escrita restringe o desenvolvimento da subjetividade do estudante, tomando a produção escrita como uma habilidade relacionada ao treino e assimilação de regras. A estratégia do preenchimento está, pois, ancorada na total ausência de um interlocutor definido a quem se tem algo real a dizer. Para Rodrigues (1999, p. 99), “o ensino de produção textual, centrado em uma tipologia textual formal (narração, descrição, dissertação) aponta para a falta de uma prática de aprendizagem centrada nos processos discursivos”. A partir desse panorama teórico-metodológico surge a proposta teórica enunciativista quês aponta os gêneros do discurso como objeto de ensino nas práticas de linguagem na disciplina de LP. Não mais o texto enquanto estrutura tipológica, mas o gênero na perspectiva sócio-discursiva, despontando como um aporte produtivo e significativo para o trabalho com ralação às práticas de linguagem. Algumas pesquisas já têm se desenvolvido, em LA, dentro dessa perspectiva; algumas delas privilegiam as relações discursivas na produção de texto Rossi (2002), Rojo (1996); outros trabalhos propõem a elaboração didática de alguns gêneros Haeser (2005), Bussarelo (2005), enfim abre-se um caminho novo e de grande potencial heurístico para novas abordagens de ensino de língua, sobretudo, da prática de produção textual escrita. Até aqui, buscou-se situar a prática de produção escrita, na sequência, será apresentada a noção de gêneros do discurso que baliza a análise dos dados. Os tipos relativamente estáveis de enunciados: os gêneros do discurso O conceito de gênero é apresentado em muitos textos do Círculo de Bakhtin[3] e a sua terminologia oscila entre formas de discurso social, formas de um todo e tipos de interação verbal (RODRIGUES, 2005). Entretanto, no texto intitulado “Os gêneros do discurso”, onde a questão dos gêneros é detalhada, Bakhtin opta pelo termo ‘gêneros do discurso’, termo este que acabou sendo também o nome mais utilizado nas pesquisas em LA que seguem tal enfoque[4]. No referido texto, Bakhtin (2003) define os gêneros do discurso como “tipos relativamente estáveis de enunciados”, ou seja, através de enunciados individuais, que se movimentam em direção a uma regularidade, surge o gênero, e essa relativa estabilização acontece através de seu uso em interações concretas.

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120 Uma vez definidos como tipos relativamente estáveis de enunciados, os gêneros carregam em si um caráter flexível e plástico. Nessa definição, a palavra relativamente é fundamental; é ela que denota a flexibilidade do gênero, a qual está diretamente ligada às interações sociais. Se as relações humanas são complexas, as mudanças, ininterruptas, e os gêneros constituem-se a partir das atividades humanas, conseqüentemente, eles irão refletir as mudanças histórico-sociais. Uma vez que as interações humanas estão em constante constituição, os gêneros possuem, então, a mesma característica de não-acabamento do enunciado. Ainda sobre a conceituação de gêneros, de acordo com Rodrigues, Bakhtin concebe os gêneros como “tipificação social dos enunciados que apresentam certos traços (regularidades) comuns, que se constituíram historicamente nas atividades humanas, em uma situação de interação relativamente estável” (RODRIGUES, 2005, p. 164). Assim, segundo Rodrigues (2005), é necessário olhar os gêneros a partir de sua historicidade, já que não são unidades convencionais, mas sim, tipos históricos de enunciados, possuindo a mesma natureza do enunciado (natureza social, discursiva e dialógica). De acordo com Bakhtin (2003), a diversidade dos gêneros é infinita porque são inesgotáveis as possibilidades das atividades humanas e cada esfera comporta um repertório de gêneros do discurso que vai se diferenciando e se ampliando à medida que a própria esfera se desenvolve e torna-se mais complexa. Ao estabelecer a noção de gênero, o autor apresenta uma “classificação” dos gêneros como: primários e secundários. Os gêneros primários são aqueles ligados às esferas cotidianas de interação, podendo, muitas vezes, transformar-se e assumir estatuto de gênero secundário, tendo em vista a dinamicidade e plasticidade inerente aos gêneros. Já os gêneros secundários, segundo Bakhtin, “surgem nas condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente desenvolvido e organizado (predominantemente escrito) [...]” (BAKHTIN, 2003, p. 263) e, por sua vez, demandam uma complexidade maior, sendo exemplos, o romance, os gêneros científicos, jornalísticos, entre outros. Já com relação ao surgimento de novos gêneros, pode-se dizer que esse processo se dá a partir das demandas sociais, pois um gênero surge ou desaparece em função das condições sócio-discursivas. Nessa mesma perspectiva, Geraldi (2006) propõe que a emergência de novos gêneros está associada às atividades sociais, e que, quanto mais complexa é uma sociedade, mais complexos e em maior número são os gêneros nela construídos. Na contemporaneidade, tem-se observado o surgimento e o desaparecimento de diversos gêneros; Rodrigues (2005) cita, como exemplo de gêneros que desapareceram de circulação social, as conversas de salão e o romance-folhetim. Já outros gêneros surgem de uma espécie de transmutação, como, por exemplo, gêneros encontrados no suporte digital: o blog[5], que lembra o diário, o e-mail, que possui características da carta, todavia, os novos gêneros não substituem os já estabelecidos: o telefonema não substituiu a conversa, o artigo assinado não excluiu o editorial (RODRIGUES, 2005). Não se trata de uma relação

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121 de substituição, e sim, do aparecimento de gêneros a partir das novas necessidades de interlocução, o que ocorre através das mudanças sócio-históricas, repercutindo nas relações de subjetividade e alteridade dos sujeitos. Após as inferências teóricas sobre a prática de produção escrita escolar e o conceito de gênero sobre o qual se embasa esta pesquisa, será apresentado o percurso metodológico da pesquisa, com vistas à apreensão da maneira como a teoria dos gêneros do discurso tem sido interpretada (e elaborada) nas aulas de LP. Percurso metodológico da pesquisa Buscou-se, nesta pesquisa, apreender a forma como a teoria dos gêneros do discurso tem sido apreendida nas aulas de LP. Assim, como dito antes, este estudo tem como fundamentação teórico-medotodológica a teoria dialógica da linguagem do Círculo de Bakhtin. Os dados de pesquisa são compostos por produções textuais escritas (gênero anúncio classificado) de estudantes de 7ª série do EF e também de relatos de observações dos procedimentos didáticos na condução das atividades de linguagem. Foram observadas as interações pedagógicas ocorridas em 16 aulas de LP durante o mês de outubro/2007. Na análise buscou-se perceber a articulação entre os procedimentos didáticos evidenciados nas interações pedagógicas (e que foram observados pela pesquisadora durante as aulas de LP), configurando a relação estudante/professor e as os textos escritos produzidos pelos alunos nessas aulas observadas. O tratamento didático dos gêneros nas aulas de LP Sobre a observação das interações pedagógicas, observou-se que a maioria das aulas foram dedicadas a exercícios estruturais de gramática. Em uma dessas ocasiões, a professora iniciou a aula a partir de correção de exercício estrutural de colocação pronominal em orações isoladas, solicitou aos alunos que lessem e dissessem a posição do pronome em relação ao verbo e justificassem o uso. Na sequência, a professora disse ao grupo que iriam trabalhar produção textual e solicitou-lhes que abrissem o livro didático (LD). Iniciou-se a leitura do tópico de proposta de produção textual (alguns alunos leram para o grupo). A condução da proposta levou em torno de dez minutos. O que ficou saliente na prática da professora é que a leitura indicada pelo LD serviu de alimentação temática para a proposta que viria a seguir: “Você e a favor do Clone? Com base nos textos lidos escreva um texto dissertativo”. A professora solicitou aos estudantes que fizessem um rascunho no caderno e depois “passassem a limpo”. Observou-se que na condução didática da aula não houve explanação dos diferentes gêneros lidos no LD (charge, entrevista, carta do leitor), não houve discussão da temática, não se observou a presença de material alternativo; assim, o condutor da aula era o LD; a intervenção pedagógica foi mínima. Durante a aula, percebeu-se: 1. o desinteresse

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122 do grupo, alguns perguntavam aos colegas: “- e pra fazer de acordo com o livro ou o que a gente pensa.” Resposta: “- os dois; pega o modelo do livro.” 2. a presença de perguntas recorrentes em aulas de LP: “Vale nota professora? E pra entregar nesta aula? Como começo? Pode mudar o título? Tais questionamentos dos estudantes revelam uma perspectiva de texto perpetuada pela escola: a) escrita de texto com objetivo de correção de erros gramaticais; b) o que os estudantes têm a dizer é irrelevante; c) tem-se um modelo a seguir. A aula de produção textual ocorreu em pouco mais de 30 minutos; não houve discussão por parte dos alunos. Ao questionar os estudantes sobre a frequência com que escrevem textos, foi relatado à pesquisadora que as produções escritas são bem escassas em relação aos conteúdos gramaticais. Ou seja, não e uma prática priorizada. Em outra aula observada, também houve produção textual, contudo, ao invés de um gênero escolarizado, foi trabalhado um gênero discursivo pertencente à esfera jornalística - anúncio classificado. De maneira semelhante à aula de produção de texto relatada anteriormente, a professora solicitou que o grupo abrisse o livro na página em que constava a proposta de produção textual. A abordagem da professora em relação ao gênero anúncio classificado transcorreu da seguinte maneira: a professora, rapidamente, fez a leitura do livro e lançou a proposta: “Vocês serão vendedores irão montar classificados. Ao final da aula entregar em uma folha. Leiam as instruções do livro”; o encaminhamento da proposta de escrita levou aproximadamente dez minutos. Foi interessante observar que o LD apresentava dois exemplos de anúncio classificado, contudo, somente o primeiro foi lido com o grupo. Na sequência do primeiro classificado, o LD propõe uma atividade de exploração do gênero em questão, porém tal atividade foi totalmente desconsiderada pela professora, o que, a nosso ver, constitui-se em perda, pois, a partir dessa atividade, o grupo poderia ter uma caracterização do gênero mais acurada para posterior produção. Em nenhum momento os estudantes foram instigados a refletir sobre as condições de produção e de circulação de um classificado; em outras palavras, quem escreve esse gênero discursivo? Com que finalidade? Onde? Quando? Como? Com base em que informações? Quem lê esse gênero? Como o classificado surgiu? Onde circula? Enfim, questões que levariam os estudantes a refletir sobre as condições de produção do gênero e que os levaria a ter parâmetros para o que escreveriam posteriormente. É interessante ressaltar que nem mesmo as características textuais e verbais dos classificados foram abordadas. Nas práticas de linguagem ancoradas na perspectiva dos gêneros discursivos considera-se relevante apresentar o jornal aos alunos que eles tivessem um contato com o gênero em seu suporte original; dessa maneira, os estudantes poderiam inferir a importância dos classificados no jornal de acordo com sua localização no espaço do jornal, perceber os objetos mais anunciados: o que pode ser alugado, comprado, vendido, enfim percepções oportunizadas somente pelo suporte original. Para que o aluno seja um leitor proficiente na leitura de determinado gênero discursivo e para que, posteriormente, possa produzi-lo em uma situação concreta de enunciação, deve-se oportunizar ao estudante o contato com o gênero. É imprescindível,

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123 para apropriação do gênero, que se façam várias leituras do gênero proposto. Enfim, que seja viabilizado ao grupo de alunos um contato mais efetivo com o gênero, uma vez que a leitura de um modelo a seguir em nada ajudara o estudante no momento da compreender o funcionamento discursivo do gênero. E ainda mais se tratando de classificados, pois não há maiores dificuldades de acesso, principalmente, em um colégio da rede particular que possui laboratório de informática com acesso à Internet. Nesse contexto, o grupo poderia ler anúncios classificados de jornais virtuais, dessa forma, alem de perceber a circulação do gênero em um outro suporte midiático (digital), a tecnologia poderia ser utilizada nas aulas de LP de forma interativa. Outra questão relevante a ser discutida sobre a elaboração didática do gênero e a circulação dessa escrita. Por que não fazer anúncios classificados a partir de objetos pertencentes aos alunos? A professora poderia propor a venda, troca e compra de objetos dos próprios alunos e anexar no mural da escola. A proposta do “faz de conta” não se sustenta mais, tendo em vista as novas orientações didáticas para o tratamento do gênero, conforme explorando na fundamentação teórica desta pesquisa. Com a permanência de procedimentos didáticos como o que foi aqui relatado, a escrita do aluno continua “nos moldes tradicionais da redação escolarizada”, aprisionados, sem interlocutor real e sem uma função discursivo-axiológica que confira ao dizer do aluno um indício de autoria e subjetivação. Então, novamente volta-se à questão, por mais que sejam mencionados nas aulas de LP, os gêneros do discurso estão longe de serem abordados em sua dimensão sócio-discursiva. Nas interações pedagógicas observadas, pode-se dizer que o gênero anúncio classificado foi tomado como uma tipologia de texto distanciando-se da noção de gênero como lugar de interação discursiva. A articulação entre a elaboração didática do gênero e a produção textual escrita dos estudantes Com dito anteriormente, foram analisados textos escritos produzidos pelos estudantes da 7ª série, cujas condições de produção foram relatadas na seção anterior. A partir da elaboração didática dispensada à produção do gênero anúncio classificado, cujos procedimentos didáticos estão ancorados nos moldes da redação escolarizada, as produções escritas, em sua maioria, mostraram-se distante do gênero anúncio classificado. Foram analisados 17 textos do gênero (anúncios classificados) dos quais foram selecionados três para apresentação neste texto. A escolha se deu a partir do critério de aproximação do gênero. Assim, o primeiro texto é o que mais se aproxima do gênero anúncio classificado tanto no que se refere aos aspectos conteúdo temático do gênero e também às características linguístico-textuais do gênero; no segundo texto, tem-se uma aproximação mediana e, por fim, no terceiro texto selecionado, percebe-se um acentuado distanciamento das características do gênero anúncio classificado. Como se pode verificar na análise a seguir. Análise do texto 1

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Figura 1 – Texto produzido pelo aluno A. O primeiro texto, conforme figura 1, mostra-se mais próximo a um anúncio classificado. Tanto do ponto de vista da diagramação como também em relação ao conteúdo temático do texto. O estudante tentou reproduzir as características elementares do gênero, evidenciando o produto que se quer vender, alugar ou comprar, neste caso, um veículo. Na diagramação, o estudante utilizou letras em maiúsculo e negrito, o que confere destaque à finalidade discursiva do gênero anúncio classificado, a saber, a divulgação de um produto (automóvel) que está à venda. Ainda nessa perspectiva, observou-se que o texto se apresenta em boxes, que pode ser interpretada como uma tentativa de reproduzir o padrão do jornal e também do exemplo proposto pelo LD. As demais informações aparecem em forma simplificada, o que é típico do gênero, devido ao espaço reduzido e o custo de se publicar em jornais, geralmente avaliados pelo número de linhas. No que se refere aos aspetos relativos aos conteúdo temático, o texto se mostra adequado ao gênero, pois as informações como cor, ano e preço do veículo anunciado, bem como o telefone de contato da pessoa que está vendendo constam no anúncio, enfim há a inserção de dados fundamentais, presentes nesse gênero, que se constituem como “peças” fundamentais para que se cumpra a finalidade discursiva do gênero. Análise do texto 2

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Figura 2 – Texto produzido pelo aluno B. O texto 2, por sua vez, revela uma aproximação mediana com o gênero trabalhado, pois ao analisar os aspectos discursivos, percebe-se a inserção das informações necessárias para que se cumpra o propósito discursivo do gênero, ou seja, o produto a ser vendido (celular) é apresentado de maneira destacada, bem como o preço e contato da pessoa que vende o produto. Porém, já com relação ao aspecto composicional, o texto está distante das características típicas desse gênero; tanto o desenho de uma flor quanto o excesso de cores não trazem ao leitor a impressão de estar lendo um anúncio classificado. O estudante percebeu as características oriundas do horizonte temático, entretanto, “escapou-lhe” a percepção do aspecto composicional. Pode-se dizer que os estudantes que mais se aproximaram do gênero no aspecto composicional e nas características discursivas (temáticas), o fizeram, primeiramente, por seguir o exemplo do LD e também de leituras prévias do gênero, mas não a partir leituras analíticas realizadas em sala de aula, pois estas, como dito anteriormente, não ocorreram durante as interações pedagógicas.

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126 Análise do texto 3

Figura 3 - Texto produzido pelo aluno B. Por fim, com relação ao texto 3, a primeira questão a ser pontuada é a enorme distância entre um anúncio classificado de real circulação e o texto produzido pelo estudante no que tange ao aspecto da composição. O estudante tenta retratar através de desenho a casa que seria alugada; ao desenhá-la, ele pode estar se referindo as fotografias que alguns anúncios trazem na seção de imóveis, ou até mesmo uma relação com o gênero propaganda publicitária, mas o que fica perceptível é a que a apresentação visual se mostra bastante distante de um anúncio classificado. Já na perspectiva do conteúdo temático, o anúncio se mostra um tanto confuso, pois o objetivo é anunciar uma casa de praia disponível para ser alugada, porém, após caracterização da casa, propõe o serviço de quarto e restaurante, ou seja, características de um hotel e não de uma casa de praia a ser alugada. Isso mostra que o estudante, ao produzir seu texto, não conhece o funcionamento discursivo do gênero e que lhe falta uma leitura mais aprofundada do mesmo, não tendo claro o que de fato quer anunciar e qual o repertório linguístico necessário para fazê-lo. Na produção textual, observa-se que não se tem claro o objetivo discursivo, o que nos leva a pensar que se talvez a proposta partisse de uma situação real como, por exemplo, anexar no

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127 mural do colégio anúncios dos estudantes, em que eles pudessem anunciar objetos que quisessem trocar, vender, comprar (álbuns de figuras, Cd’s, livros, revistas, etc.), os estudantes teriam um objetivo discursivo definido e, dessa maneira, poderiam, de fato, interagir a partir desse gênero. Os três textos selecionados para esta discussão mostram, em certa medida, o conhecimento prévio que os estudantes já possuíam sobre o gênero, uns mais e outros menos, e, principalmente, revelam a intervenção pedagógica realizada em sala de aula, ou melhor, revela a falta de uma abordagem de gênero em sua essência. Ficou evidente a necessidade de levar o grupo a refletir sobre o gênero em sua plenitude, tendo em vista que, a partir de uma leitura crítica do gênero trabalhado, seria possível levar os estudantes a uma percepção da dimensão discursiva (social) do gênero, como também a dimensão verbal do gênero, que envolve os aspectos linguístico-textuais. Segundo Rodrigues (2005, p.9), “o enunciado é composto por duas dimensões inextricáveis: dimensão verbal-textual e a dimensão social”. Ambas as dimensões precisam ser levadas em consideração no trabalho com o gênero. Considerações finais A teoria dos gêneros do discurso tem sido apontada como uma área fértil em pesquisas de LA, entretanto, ainda há lacunas entre as pesquisas publicadas (e discutidas) em espaços acadêmico-científicos e as concepções didático-pedagógicas que circulam na escola. O objetivo desta pesquisa foi justamente pinçar alguns indícios que apontem para a percepção que se tem, no âmbito escolar, sobre o trabalho com os gêneros do discurso. A partir dessa análise, percebeu-se que, não raras vezes, a teoria dos gêneros do discurso tem sido interpretada (e, por isso, didatizada) novamente como uma categoria de textos, priorizando aspectos formais e estruturais do texto em detrimento aos aspectos interacionais e discursivos imbricados na concepção de gênero. Nesse sentido, o trabalho com o gênero na escola ainda não extrapolou a dimensão estrutural, a questão discursiva do gênero é posta de lado, parece ainda um terreno escorregadio e difícil de ser trilhado pelo professor de língua materna. E, ainda, conforme a base teórica deste trabalho (teoria dos gêneros de base bakhtiniana) a noção de gênero só pode ser apreendido dentro de um arcabouço teórico maior que se constituem de conceitos como: dialogismo, enunciado e discurso. Para Bakhtin, não há como descolar a teoria dos gêneros da noção de interação social que se dá por meio das atividades humanas. Muito ainda há para ser trilhado pela LA no trabalho com gênero, segundo Faraco (2001) deve-se reconhecer Bakhtin não somente em sua importância histórica, mas, sobretudo, no poder heurístico de suas idéias. A partir do momento que a teoria dos gêneros for compreendida em sua essência na esfera escolar e suas elaborações forem condizentes com a referida teoria, há a possibilidade de práticas didático-pedagógicas mais frutíferas no campo da linguagem.

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128 Referências Bibliográficas BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução do russo por Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ______.; VOLOSCHINOV, V. N.. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução do francês por Michel Lahud e Yara F.Vieira 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2004. BONINI, Adair. Metodologias do ensino de produção textual: a perspectiva da enunciação e o papel da Psicolingüística. Perspectiva – Revista do Centro de Ciências da Educação da UFSC, Florianópolis, v. 20, n.1, p. 23-47, jan.;jun. 2002. BRASIL, SEF. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998. BRITTO, Luiz Percival Leme. A sombra do caos: ensino de língua x tradição gramatical. Campinas, SP: Mercado de Letras; ALB, 2002. BUSSARELO, Jorge Marcos. O ensino aprendizagem da produção textual escrita na perspectiva dos gêneros do discurso: a crônica. 2005. (Dissertação de mestrado. Universidade Federal de Santa Catarina). FARACO, Carlos Alberto. Bakhtin e os estudos enunciativos no Brasil: algumas perspectivas. In: BRAIT, Beth (Org.). Estudos enunciativos no Brasil: histórias e perspectivas. São Paulo: Fapesp, 2001. GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1993. ______. In: SEMINÁRIO BAKHTIN: linguagem e sujeito, entre a ética e a estética. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2006. HAESER, Márcia Elisa. O ensino aprendizagem da leitura no ensino médio: uma proposta a partir de oficina com o gênero carta do leitor. 2005. (Dissertação de mestrado. Universidade Federal de Santa Catarina). LEMOS-ROSSI, Maria A. G. Gêneros discursivos no ensino de leitura e produção textual. Taubaté: Cabral. Editora Universitária, 2002. RODRIGUES. Rosângela Hammes. As diferentes esferas sócio-discursivas como critério para a elaboração de currículos. Intercâmbio, São Paulo, v. 8, p. 93-100, 1999. ______. Os gêneros do discurso na perspectiva dialógica da linguagem: a abordagem de Bakhtin. In: Meurer, José Luiz; Bonini, Adair; MOTA-ROTH, Désirée. (Orgs.). Gêneros: teorias, métodos e debates. São Paulo: Parábola Editorial, p. 152-183, 2005. ROJO, Roxane. Perspectivas enunciativo-discursivas em produção de textos. In CONGRESSO DE LINGUÍSTICA APLICADA, 4 Anais... Campinas: DLA/IEL/UNICAMP, 1996, p. 285-290. _____. A teoria dos gêneros em Bakhtin: construindo uma perspectiva enunciativa para o ensino de compreensão e produção de textos na escola. In: BRAIT, Beth (Org.). Estudos enunciativos no Brasil: histórias e perspectivas. São Paulo: Fapesp, 2001. [1] Delimitou-se, nesta pesquisa, a reflexão sobre questões teóricas concernentes à prática de produção textual, tendo em vista que a análise dos três eixos (leitura, produção textual e análise linguística) mostra-se demasiado amplo. [2] Os gêneros escolarizados são criados pela escola (narração, descrição, dissertação) distante dos gêneros que circulam socialmente, o termo no presente trabalho traz consigo uma crítica a essa

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129 prática. [3] Círculo de Bakhtin, de acordo com Rodrigues (2005), é o termo utilizado pelos pesquisadores para o grupo de intelectuais russos que se reunia regularmente no período de 1919 a 1929, do qual fizeram parte Bakhtin, Volochínov e Medviédiev e outros. Devido às discussões sobre a autoria de alguns textos do Círculo que foram publicados por estes dois últimos autores, mas que são atribuídos a Bakhtin por alguns pesquisadores, muitos optam pela utilização do termo ‘Círculo de Bakhtin’, ao invés de se referirem a um dos três autores especificamente. Neste estudo, quando nos referirmos a um dos textos “disputados”, citaremos ambos os autores, pois não é nosso objetivo discutir a autoria das obras. [4] Em Rojo (2005), no texto intitulado: “Gêneros do discurso e gêneros textuais: questões teóricas e aplicadas”, há uma discussão sobre a diferença teórico-metodológica envolvida no uso das terminologias: teoria de gêneros do discurso ou discursivos e teoria dos gêneros de texto ou textuais. Para a autora, ambas as leituras estão ancoradas em diferentes leituras bakhtinianas, mas a distinção está no fato de que a primeira centra seu estudo nas situações de produção dos enunciados ou textos e em seus aspectos sócio-históricos, e, a segunda, na descrição da materialidade do texto. [5] Blog pode ser traduzido por diário na rede. Sobre esse assunto ver: Komesu (2005).

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130 O ENSINO DE HISTÓRIA NO CURSO TÉCNICO EM FARMÁCIA: A PROBLEMATIZAÇÃO DA MEDICALIZAÇÃO COMO UMA EXPERIÊNCIA DE PESQUISA E ANÁLISE DA SOCIEDADE Pâmella Passos Deusdará

Professora de História da Educação Básica, Técnica e Tecnológica Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social Universidade Federal Fluminense

Clara Dias

Aluna do Curso Técnico em Farmácia

Gabriela Aguieiras

Aluna do Curso Técnico em Farmácia

Resumo Fruto de experiência realizada numa Escola Técnica Federal, o presente artigo, através da temática da medicalização, propõe uma discussão acerca do diálogo possível entre as disciplinas da base comum e técnicas, contribuindo assim para efetivação de um currículo integrado. A articulação entre os conhecimentos históricos e farmacológicos resultou em debates que primaram pela desnaturalização da medicalização, compreendendo este processo no seio do século XXI em uma sociedade voltada para o consumo. Palavras- Chave: Ensino de História; Educação Técnica; Medicalização Resumen El presente artículo, fruto de una experiencia realizada en una Escuela Técnica Federal, tiene como objetivo traer a la luz una discusión acerca de las posibilidades de diálogo entre las asignaturas técnicas y de base común. La expectativa del mismo yace en aportar una contribución para hacer efectivo un currículo integrado. El vínculo entre los conocimientos históricos y farmacológicos provocó debates a favor de la desnaturalización de la medicalización, fenómeno éste analizado desde el seno del siglo XXI como parte de una sociedad volcada hacia el consumo. Palabras claves: Enseñanza de historia – Educación Técnica – Medicalización. 1 – Considerações iniciais (...) De certo por isso é que os remédios agora são mudos: os pacientes não sabem mais o que tomam: mas são coisas lindas, de todas as cores e feitios, muito ornamentais, como se tivéssemos passado do reino literário para o das artes plásticas e ingeríssemos pequenos quadros modernos, com os quais vamos assegurando essa coisa misteriosa que é a vida. Cecília Meireles

Neste artigo, pretendemos apresentar algumas reflexões que emergiram da pesquisa

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131 “Stress e Depressão, só medicalizar resolve? Uma análise sócio-cultural dos males do século XXI” desenvolvida no atual Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro/ Campus Maracanã. A criação deste projeto de pesquisa teve como foco principal a XVII Semana de Química da Unidade Escolar, momento em que as dimensões de ensino, pesquisa e extensão encontram-se completamente imbricadas, proporcionando a toda a comunidade escolar conhecer o que vem sendo produzido na instituição. Cabe ressaltar que por ocasião da Semana da Química, evento tradicional da instituição, a escola recebe um número expressivo de visitantes da comunidade externa. Visitas guiadas por monitores são organizadas e grupos escolares nos quais alunos e professores de diversas séries, visitam os projetos desenvolvidos e apresentados pelos discentes da instituição. Inserido na categoria Didático-pedagógica o referido projeto de pesquisa, em nossa hipótese, contribuiu para reflexão acerca do ensino de história na educação tecnológica, identificando avanços e desafios para o professor de história. O desenvolvimento desta pesquisa teve como um de seus principais objetivos desnaturalizar a idéia de que a utilização de medicamentos, bem como a emergência de novas patologias, são assuntos restritos à área farmacológica, ou mesmo médica em geral. Assim, partimos da premissa de que compreendendo as mudanças sócio-culturais poderemos também compreender as alterações na saúde humana. Fica patente nossa compreensão holística de saúde e educação, vislumbrando nas diversas disciplinas que compõe o currículo escolar, possibilidades de trabalho que tornem o aprendizado significativo para o público discente. A motivação desta pesquisa tem sua gênese num trabalho desenvolvido anteriormente, no segundo semestre de 2007, quando a turma do 5º período do Técnico em Farmácia, realizou uma série de estudos sobre Trabalho, a fim de realizar uma avaliação de História. Deste trabalho, que como produto final apresentou um documentário intitulado “As perspectivas dos jovens trabalhadores no século XXI”, emergiram questionamentos tais como: quais são as novas doenças do trabalho? Como elas são desenvolvidas? De que maneira a tecnologia que a princípio iria diminuir o trabalho humano não necessariamente o fez? No semestre seguinte, dialogando com o interesse específico de duas alunas, elaboramos um projeto de pesquisa no qual cremos pertinente problematizar a recorrente medicalização nos casos de stress e depressão, questionando a exclusividade de tais procedimentos. A opção em desenvolver esta pesquisa apresentou como principal justificativa a demanda social de uma população mundial na qual os índices de stress e depressão avançam assustadoramente. Tais dados indicam a necessidade de estudos que possam compreender tais “problemas” de maneira mais complexa, procurando não somente “soluções” ou ainda medicamentos para tais efeitos, mas que também se questione acerca das condições de produção de tais patologias.

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132 2 – O avanço tecnológico, a aceleração do tempo e a medicalização: interfaces de um processo Ao longo de sua história, o ser humano vivenciou profundas modificações no que tange a noção de técnica. A idéia de modernização compôs alterações no âmbito do trabalho. Por um lado, evidenciaram-se as leis trabalhistas e o progresso dos direitos do trabalhador. Por outro lado, exige-se, cada vez mais, desse trabalhador, inserindo-o em um contexto de qualificação e agilidade. Durante o século XX, os avanços científicos difundiram-se em velocidade muito acelerada, contribuindo para um discurso que procura consolidar a ciência como uma verdade absoluta e inquestionável. Colocada neste patamar, a ciência passa a atuar como uma nova esfera de julgamento entre o certo e o errado, entre o normal e o anormal. Como decorrência dessas dicotomias, configurou-se a polarização Patológico X São, acompanhada da idéia de exclusão ou contenção do dito anormal. Como mecanismo de exclusão podemos citar o exemplo de manicômios, casas de repouso e afins, reservando a medicalização o grande papel da contenção dessas ditas patologias. Desde o início do século XX, a contemporaneidade foi marcada por avanços científicos e influências de correntes ideológicas estabelecidas no século XIX. O Determinismo Biológico, por exemplo, inseria a herança genética como fator para o comportamento e vida social de um indivíduo. Desse modo, encontrava-se o motivo de desvios comportamentais. Dentre essas teorias, surgiu o movimento Eugenista, que caracterizava-se pela defesa da intercepção no cruzamento de espécies que eles julgavam geneticamente desviadas. Tal movimento condenava o matrimônio entre “raças” diferentes, o que segundo eles evitaria o nascimento de indivíduos, considerados por estes estudiosos, desviados do normal. Sendo assim, já se estabelecia um programa de exclusão do diferente, categorizado como anormal. Na virada para o século XXI, esse discurso assumiu novos contornos, sobretudo, se focalizarmos o mundo do trabalho. Com o advento da Terceira Revolução industrial, a produção atingiu um ritmo cada vez maior, influenciando diretamente na aceleração da noção de tempo. É neste contexto que o trabalhador torna-se um indivíduo multifuncional. A dinâmica exigida do trabalhador coloca-o em uma lógica extremamente pressionadora. Tal lógica atuando paralelamente com o discurso patologizador estabelece uma relação de doença entre o trabalhador e seu estado psicológico. Fruto deste paralelismo, o stress e a depressão emergem como doenças cada vez mais recorrentes. Levando em consideração este encurtamento das distâncias e uma aceleração cada vez mais intensa do tempo, o trabalhador com o intuito de se adequar a esta realidade e manter o seu emprego, acaba por incorporar este discurso de aceleração da produção, em geral denominado de eficiência. Buscando atingir as novas metas impostas, em grande parte

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133 dos casos o trabalhador silencia, através da medicalização, os sinais de esgotamento que o seu corpo apresenta. Ganha espaço assim, a indústria farmacêutica que utilizando um discurso dito conscientizador, acaba por incitar a automedicação da população, aumentando conseqüentemente o uso freqüente de medicamentos que por sua vez deveriam ser extremamente controlados. O uso do medicamento dialoga com a crença de que esta é a solução mais rápida e eficaz, porém nos casos de stress e depressão, o mais recorrente é que esta atitude apenas mascare o problema. Em tese controlados, os medicamentos tarja preta consolidam-se no mercado farmacêutico como sendo a grande solução, porém, estes atuarão como métodos paliativos, produzindo ações calmantes, estimulantes, antidepressivas, antipsicóticas, dentre outras, mas não serão capazes de atingir a origem da suposta doença. Observa-se com isto um sério risco de dependência química e psicológica. Assistimos assim ao comportamento industrial do setor farmacêutico, que trata o medicamento como um produto a ser comercializado e seus usuários apenas como o público-alvo. A recorrente propaganda, além dos grandes investimentos financeiros em pesquisas para o desenvolvimento de novas drogas anti-depressivas e anti-stress demonstram o pouco comprometimento da indústria farmacêutica com a saúde pública. A disputa mercadológica no setor farmacêutico fica patente também na rivalidade entre a filosofia homeopática e o discurso alopático. Embora ambos tenham como suposto objetivo promover ou melhorar a qualidade de vida do sujeito usuário, a disputa entre elas em geral não se baseia em um disputa por promover tais melhorias e sim, uma disputa por mercado consumidor. Dessa forma, a alopatia defende a idéia do discurso científico de comprovação de eficácia e aceleração do tratamento, enquanto a homeopatia colocando-se como uma aparente alternativa também incorporou um discurso de medicalização. 3 – O ensino de história e a demanda do curso técnico em farmácia: entre a demanda geral e específica Num mundo marcado pela ênfase no presente, o Ensino de História para jovens encara novos desafios, exigindo dos professores, uma constante reflexão sobre seus métodos, práticas e conteúdos por eles selecionados. Porém, a ênfase não deve ser dada somente a figura do professor, pois este é apenas um dos lados do processo educativo. Assim, torna-se importante o questionamento acerca de uma juventude que de maneira geral parece não se interessar pelo passado. Ora, para iniciarmos o debate é necessário compreendermos nossos alunos como imersos num mundo cada vez mais acelerado, e sedento por informações, ainda que factuais ou descontextualizadas. Logo, o “desinteresse” pela história não é um problema de uma faixa etária específica, mas de uma sociedade que pouco valoriza o passado.

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134 Cabe então repensar se este afastamento entre o aluno e o conhecimento histórico não emerge de uma falta de sentido através da qual o aluno não encontra significado naquele aprendizado. Para ilustrar nossa perspectiva destacamos uma citação de Ana Maria Monteiro: Perguntadas sobre as aulas de História, as pessoas geralmente se lembram de um/uma professor/a que os fez gostar de História, tendo, em alguns casos, os encaminhado para a profissionalização como historiadores. Certamente este (a) professor (a) os ajudou a dar sentido às situações estudadas e nas quais, provavelmente, a relação passado/presente foi estabelecida de forma significativa. (MONTEIRO,2007:11) Compreendendo-nos como professora de história inserida na Educação Técnica, vislumbramos algumas especificidades de nossa prática docente, sobretudo, no que tange ao aspecto levantado por Monteiro, “o dar sentido às situações estudadas”. Assim, ensinar história em um curso técnico implica uma abordagem específica dos conteúdos selecionados. Destacamos que não defendemos uma história da técnica ou da ciência somente, alijando os alunos de analisar outros processos históricos, mas sim de buscar metodologias e atividades que signifiquem o aprendizado histórico. No caso específico do desenvolvimento da presente pesquisa, realizada com os alunos do curso de farmácia, podemos citar a título de exemplificação, a forma como o conteúdo sobre a Revolta da Vacina foi abordado. Inserindo a Revolta num contexto de políticas públicas caracterizado por segregar os segmentos mais populares da cidade, buscamos analisá-la pensando seus distanciamentos e proximidades com as políticas de saúde pública atualmente, tomando como exemplo as campanhas de vacinação. Percebemos com isto que não existe uma separação estanque entre os conteúdos das disciplinas técnicas e das disciplinas do Ensino Médio, o que de fato persiste é o preconceito e a dificuldade de superar a barreira de compartimentalização de saberes. Sob esse prisma, pensar nossas práticas de ensino no cotidiano escolar implica também em repensar como nós, professores, estamos sendo formados. É somente desconstruindo nossas dificuldades e preconceitos também em nossa formação, que poderemos abrir espaço para novas práticas em nosso dia a dia. 4 – A experimentação enquanto pesquisadoras do social: o desenvolvimento do projeto O desenvolvimento da pesquisa “Stress e Depressão, só medicalizar resolve? Uma análise sócio-cultural dos males do século XXI” dialoga com duas atividades de pesquisa realizadas anteriormente na instituição pelas alunas-pesquisadoras. A primeira diz respeito à investigação acerca da dependência química e psicológica e a segunda explorando a temática do perfil do jovem trabalhador no século XXI, suas novas demandas e doenças de trabalho.

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135 Tais experiências anteriores consolidaram um questionamento acerca da abordagem feita em relação às temáticas de dependência química e psicológica e doenças do trabalho. Assim, refletir acerca da medicalização nos casos de stress e depressão possibilitou aprofundar e interligar as referidas temáticas. Inicialmente, buscou-se formar um arcabouço teórico através de leituras e debates que perpassaram: a história, a psicologia social, a sociologia, a educação entre outras áreas. As leituras tinham como objetivo compreender conceitualmente a sociedade na qual estamos imersos, analisando o processo de medicalização como algo mais amplo que apenas prescrição médica do uso de drogas lícitas. Partimos então para o delineamento de um processo histórico que conduziu as mudanças no mundo do trabalho que hoje assistimos, ao mesmo tempo em que, paralelamente, elaboramos um histórico do discurso científico no que tange aos mecanismos de patologização e uso de medicamentos. Como desdobramento das primeiras leituras e discussões, surgiu a necessidade de definir que estratégias metodológicas seriam adotadas para o desenvolvimento do projeto, foi então que fizemos a opção pela História Oral. Durante o processo de preparação e realização das entrevistas colhemos materiais fundamentais para a pesquisa, ao elaborarmos as perguntas estudávamos a produção científica da entrevistada, o que nos colocou em contato com conceitos bem complexos como Biopolítica e Subjetividade. Como desdobramento, estabelecemos contato ainda que inicial com a obra de autores como Focault, Deleuze e Guatarri, indicando para nós a complexidade que envolve a temática da medicalização. É interessante observar que o desenvolvimento desta pesquisa, possibilitou que duas alunas do Ensino Médio Técnico tivessem um contato intenso com as sistematizações das etapas de um processo de pesquisa, além é claro de demonstrar empiricamente o entrelaçamento de saberes das mais diversas áreas do conhecimento. As duas entrevistas realizadas com professoras de psicologia social da UFF e da Unirio, ambas conduzidas pelas alunas, revelou-se um outro momento de amadurecimento das mesmas como pesquisadoras que deveriam conduzir o processo que resultaria em um material de análise da pesquisa. Cabe retomar que o objetivo da referida pesquisa, inserida na categoria didáticopedagógica, era durante a Semana de Química da escola, conscientizar os participantes do evento, sobre a medicalização nos casos de stress e depressão. Assim as alunas na última fase do projeto, realizaram uma sistematização de todas as informações da pesquisa elaborando dois pôsteres científicos e uma sala temática, na qual seria apresentado o percurso da pesquisa. A fase de exposição da pesquisa pode ser chamada, então, da quarta etapa, em que

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136 foi possível perceber o alcance desta. Durante o tempo de exposição, crianças, adolescentes, jovens e adultos assistiram a explicação e ao final, através de uma dinâmica, era dada a cada um deles a possibilidade de escolha entre o mundo da medicalização excessiva que procura apenas camuflar os sintomas e o mundo do uso consciente do medicamento, buscando a origem do stress e da depressão. Atingindo o objetivo de desnaturalizar a medicalização como única estratégia, cremos que o projeto alcançou sua função didático-pedagógica, contribuindo principalmente na formação dos alunos da escola, futuros profissionais de saúde, como técnicos em farmácia e biotecnologia. Outro fator importante foi comprovar que as patologias possuem origens não somente físicas e orgânicas, mas também sociais, ou seja, a sociedade também produz suas doenças. Assim, o desenvolvimento desta pesquisa atuou na contramão da recorrente separação entre disciplinas técnicas e disciplinas do Ensino Médio, possibilitando a observação dos mesmos conceitos e teorias com outro olhar, ficando patente que a formação de um técnico de Farmácia ou Farmacêutico como um profissional de saúde qualificado, exige a ampliação e diálogo entre as diversas áreas do conhecimento. 5 – Considerações finais Primeiramente, pontuamos o caráter parcial dos resultados por nós apresentados, e que emergem muito mais como síntese de um primeiro momento de reflexão e problematização acerca de uma temática a nosso ver carente de estudos mais críticos, qual seja: a medicalização dos casos de stress e depressão. Procuramos com isto pontuar que, a abordagem de temáticas que afligem os alunos do curso técnico de farmácia, pode ser trabalhada para além das disciplinas técnicas, implicando diretamente na formação holística deste aluno. Acreditamos que nossa principal contribuição está em articular saberes acadêmicos, em grande parte, restritos ao ambiente universitário, principalmente os oriundos da área de psicologia social e os saberes científicos da área Técnica em Farmácia. Fruto desta articulação está o processo de conscientização desses futuros profissionais que em breve estarão trabalhando na indústria farmacêutica, podendo fazer do seu trabalho um meio de reprodução ou não da realidade da medicalização como consumo. Em nossa perspectiva, são experiências como esta que dão sentido ao termo “História Crítica”. Através delas, os alunos realizam um retorno ao passado, compreendendo-o como construtor do presente em que vivemos passando a compreender a tecnologia e a ciência, não como mitos intocáveis, mas como possibilidades de usos para o bem coletivo.

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138 ANÁLISE DE ATIVIDADES DE LEITURA E ESCRITA EM LÍNGUA INGLESA EM CONTEXTOS DE ENSINO DIFERENCIADOS Pricila Gaffuri Acadêmica do 5° ano do curso de Letras Português/Inglês Bolsista de Iniciação Científica - CNPQ/UEM Universidade Estadual de Maringá-PR Renilson José Menegassi[1] Prof. Dr. Letras – UEM Coordenador do Grupo de Pesquisa Interação e Escrita no Ensino e Aprendizagem (UEM/CNPq) RESUMO: Ancorado nos pressupostos de Bakhtin e Vygotsky, o artigo tem por objetivo descrever, analisar e comparar os procedimentos de leitura e as atividades de escrita utilizadas por um aprendiz de língua inglesa em sala de aula, em contextos de ensino regular e especializado da região de Maringá-PR. Os resultados demonstram que ambos os contextos estão centrados no ensino gramatical, embora haja uma pré-disposição para um trabalho interativo. As atividades de leitura não permitem completamente um diálogo entre o leitor e o texto; e as atividades de escrita são vistas como meios para a verificação da aprendizagem de um determinado vocabulário ou de uma determinada estrutura gramatical. PALAVRAS-CHAVE: interação; escrita; língua estrangeira. ABSTRACT: Anchored in Bakhtin´s and Vigotsky´s language theories, this article has the objective to describe, analyze and compare the reading procedures and the writing activities used by an English Language apprentice inside the classroom, in contexts of regular and specialized education, in the region of Maringá – PR. The results show that both contexts are centered on the grammar teaching, although they have a pre-disposition to an interactive work. The reading activities do not completely allow a dialogue between the reader and the text; and the writing activities are seen as a mean to check the learning of a determined vocabulary or a determined grammar structure. KEY-WORDS: interaction; writing; foreign language. 1. Considerações iniciais Almeida Filho (2005), ao fazer um diagnóstico das condições de ensino de língua estrangeira (LE), lista alguns problemas que se repetem por todo o país. São eles: a) ensino desvinculado da realidade do aluno; b) ensino fortemente gramatical, formalista, com pouca ênfase no uso da língua em atividades relevantes; c) ambiente pobre de sala de aula, com poucos materiais e pouco aproveitamento dos materiais existentes. Diante dessa realidade, objetiva-se, com este trabalho, descrever, analisar e comparar os procedimentos de leitura e as atividades de escrita utilizadas por um aprendiz de língua inglesa em sala de aula, em contextos de ensino regular e especializado da região de Maringá-PR. Optou-se pelo trabalho com realidades distintas, - ensino regular, isto é, aquele que compreende o

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139 Ensino Fundamental e o Ensino Médio; e o especializado que abrange as escolas privadas de ensino de inglês como Língua Estrangeira - pelo fato de se querer comparar esses dois contextos de ensinos a fim de verificar de que forma se assemelham e se diferem no tratamento com a LE. O presente trabalho é um recorte do projeto maior “A escrita em língua inglesa em contexto de ensinos diferenciados”, desenvolvido junto ao Grupo de Pesquisa “Interação e Escrita” (UEM/CNPq – www.escrita.uem.br), o qual se encontra ancorado nos pressupostos teóricos de Vygotsky e de Bakhtin e seu Círculo, a partir da Linguística da Enunciação, com fundamentos nos estudos da Linguística Aplicada voltados ao ensino de língua estrangeira. Para tanto, primeiramente é feita uma revisão da literatura no que se refere à concepção de língua adotada para o trabalho, abordando alguns tópicos sobre a aprendizagem em língua estrangeira e algumas características da linguagem escrita. Logo após, realizam-se as devidas descrições, análises e comparações dos registros coletados para, finalmente, chegar às discussões e conclusões obtidas ao longo da pesquisa. 2. Pressupostos teóricos 2.1 O trabalho com a linguagem De acordo com Garcez (1998, p. 47), a partir de sua leitura do Círculo de Bakhtin, “a experiência social, as necessidades e as motivações alimentam a aquisição da língua, e a língua promove uma renovação das experiências, das necessidades e motivações num circulo infinito”. Dessa forma, Baquero (2001, p. 39), ao fazer uma releitura da obra de Vygotsky, afirma que a linguagem “está implicada centralmente na reorganização da própria atividade psicológica”, servindo como um “instrumento para produzir efeitos sobre o meio social”. Assim, se a linguagem produz efeitos sobre o meio social, logo, ela é considerada um produto sócio-histórico. Nesse sentido, torna-se necessário considerar, sob essa perspectiva teórica, que “a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações.” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992, p.123). Ao se tratar de interação verbal, fica evidente que a concepção de língua que deve ser adotada no ensino de língua estrangeira é a interacionista, pois, acredita-se que, ao considerar o sujeito como um ser ativo, ao possibilitar o diálogo entre o texto, o aluno e o professor, ao considerar a linguagem como produto social, a preocupação não fica em apenas levar o aluno ao conhecimento da gramática, mas, sobretudo, “ao desenvolvimento da capacidade de refletir, de maneira crítica, sobre o mundo que o cerca e, em especial, sobre a utilização da língua como instrumento de interação social” (CAZARIN, 1995, p. 05-06). Com isso, torna-se necessário levar em consideração os pressupostos linguísticosfilosóficos do Círculo de Bakhtin para com a palavra. Para ele, a palavra deve ser considerada em situações específicas de uso, pois “falamos por enunciados e não por orações isoladas e, evidentemente não por palavras isoladas” (BAKHTIN, 2003, p. 283).

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140 Além disso, a língua “não chega ao nosso conhecimento a partir de dicionários e gramáticas, mas de enunciações concretas que nós mesmos ouvimos e nós mesmos reproduzimos na comunicação discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam” (BAKHTIN, 2003, p. 283). Dessa forma, “a assimilação ideal de uma língua dá-se quando o sinal é completamente absorvido pelo signo e o reconhecimento pela compreensão” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992, p. 94). No caso da LE, especificamente, uma palavra nova só seria introduzida para o aprendiz mediante uma série de contextos em que ela figure, mesmo que estes sejam produzidos com fins pedagógicos. Entretanto, o que mais se vê no ensino de inglês como língua estrangeira é a consideração do signo como sinal estável e sempre igual, sendo possível sua comprovação nos livros didáticos, que preconizam o estudo da estrutura, ou seja, da palavra fora do seu contexto, em situação artificial, não utilizando a palavra como signo social e ideológico, passível de outras significações, como elemento constitutivo do dialogismo e da interação verbal. 2.2 Aprendizagem e língua estrangeira Para Vygotsky (2003), a boa aprendizagem é caracterizada como aquela que precede o desenvolvimento e permite a sua reprodução. Para que o desenvolvimento ocorra, é preciso que haja um tempo de sedimentação, isto é, um tempo para que o que antes era realizado com um auxílio, um mediador, se torne algo autônomo. Assim, esse tempo de sedimentação é necessário para que o aluno internalize o conhecimento e atinja a metaconsciência, ou seja, quanto mais o aluno tiver a compreensão das palavras dos outros, mais elas vão se tornando suas palavras (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992). Contudo, muitas vezes, em situações de ensino em LE, esse tempo de sedimentação não ocorre, já que o aluno precisa utilizar a estrutura gramatical aprendida e o vocabulário da lição imediatamente depois que aprendeu, sem que esses conteúdos tenham sido acomodados sócio-cognitivamente no aluno. Uma das formas do professor avaliar se o aluno adquiriu ou não certa estrutura gramatical é por meio das compositions[2], as quais são avaliadas, muitas vezes, não pelo seu conteúdo, mas, sim, se o aluno utilizou ou não o que foi aprendido em sala de aula. Dessa forma, o aprendizado pode até ter ocorrido, no entanto, isso não significa que o desenvolvimento também tenha ocorrido de modo sistemático, pois, este só poderá ser verificado posteriormente, quando por necessidade, ou seja, em situações reais de uso da língua, o aluno precise fazer uso dela. Segundo Vygotsky (2003, p. 111), “o aprendizado deve ser combinado de alguma maneira com o nível de desenvolvimento da criança”, assim o autor determinou dois níveis de desenvolvimento: a Zona de Desenvolvimento Real (ZDR) e a Zona de Desenvolvimento Potencial (ZDP). O primeiro é compreendido como a margem da atuação em que o aprendiz obtém sucesso sozinho, são os “ciclos de desenvolvimento já completados” (p.111); e a Zona de Desenvolvimento Proximal pode ser definida como sendo “aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão no processo de maturação” (p.113), que amadurecerão por meio da participação do outro como mediador,

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141 no caso específico do trabalho com a LE em situações de ensino. Portanto, o papel do professor é o de levar o aluno a atingir a ZDP, para que a internalização ocorra e, consequentemente, a aprendizagem se desenvolva, fazendo com o que é ZDP hoje possa ser ZDR amanhã (VYGOTSKY, 2003). Para que o professor auxilie no desenvolvimento da ZDP do aluno, é necessário que ele leve para a sala de aula atividades de leitura, produção escrita, reescrita e análise lingüística, que sejam trabalhadas de acordo com a concepção interacionista de linguagem, tendo em vista objetivos certos, levando em consideração as diferenças dos alunos no trato com a LE. 2.3 A linguagem escrita Vygotsky (2003) considera a escrita como sendo um Processo Psicológico Superior Avançado, pois, “além de implicar o domínio de um instrumento de mediação de maior potencial descontextualizador, implica o desenvolvimento de formas de consciência e vontade superiores no domínio intelectual em jogo” (BAQUERO, 2001, p. 86). Além do mais, seu desenvolvimento depende “essencialmente das situações sociais específicas em que o sujeito participa” (BAQUERO, 2001, p.26). Sobre isso, depreende-se de Bakhtin/Volochinov (1992, p. 123), que a linguagem escrita “constitui igualmente um elemento da comunicação verbal, [...] é objeto de discussões ativas sob a forma de diálogo, e, além disso, é feita para ser aprendida de maneira ativa, para ser estudada a fundo, comentada e criticada no quadro do discurso interior”. Se a escrita é considerada uma forma de diálogo, a concepção de escrita adotada é a que a vê como trabalho, pois a produção surge “de um processo contínuo de ensino/aprendizagem” (SERCUNDES, 1997, p. 83). O texto “passa a ser considerado o próprio lugar da interação e os interlocutores, como sujeitos ativos que – dialogicamente – nele se constroem e são construídos” (KOCH, 2002, p. 17). Assim, o sentido do texto é construído na interação da tríade professor–aluno–texto. Além disso, a “coerência deixa de ser vista como mera propriedade e qualidade do texto, passando a dizer respeito ao modo como os elementos presentes na superfície textual, aliados a todos os elementos do contexto sociocognitivo mobilizados na interlocução, vêm a construir (...) uma configuração veiculadora de sentidos” (KOCH, 2002, p. 17). O papel do professor, nessa concepção, é ajudar os alunos a encontrar estratégias viáveis para dar início à escrita, como: encontrar informações relacionadas ao que será escrito; planejar a estrutura e os procedimentos necessários; considerar as condições de produção – gênero, interlocutor, finalidade e meio de circulação; fazer revisão e dar oportunidade para a reescrita. Nesse sentido, a composição de um texto está ligada à ideia de processo, que deve estar encaixado em um contexto específico. Portanto, autor, leitor, texto e contexto devem estar interligados, dialogando e interagindo.

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142 3. Procedimentos metodológicos da pesquisa O projeto de pesquisa “A escrita em língua inglesa em contextos de ensino diferenciados” tinha por objetivo investigar e comparar os procedimentos de leitura e de produção escrita utilizados por aprendizes de língua inglesa em sala de aula, em contexto de ensino diferenciados, no caso, o ensino regular e o especializado. Para isso, em 2007, escolheram-se duas alunas que se enquadrassem no perfil procurado, isto é, que além de terem aulas de inglês na escola regular, fizessem curso de inglês em uma escola especializada, como atividade extra-curricular. Depois de escolhê-las, foi realizada a coleta do material utilizado em sala de aula pelas professoras (livros, cadernos, composições e material complementar). Essa coleta acabou na metade do mês de outubro com a realização de uma entrevista com todos os participantes da pesquisa: duas alunas e suas respectivas professoras do ensino regular e do ensino especializado, a fim de verificar como os participantes compreendem o processo de ensino e aprendizagem de inglês como LE. São abordados aqui os resultados obtidos com a coleta de uma das alunas. A sua escolha se deve ao fato de ela possuir atividades de escritas mais significativas em sala de aula do que a outra participante da pesquisa. A aluna escolhida estudava no 2º ano do Ensino Médio em um colégio da rede privada de Maringá-PR, na escola especializada, cursava o nível pós-intermediário. Na escola regular, ela tinha duas aulas de Inglês por semana, de 45 minutos cada; já na escola especializada, também contava com duas aulas por semana, com duração de uma hora e trinta minutos cada uma delas. Assim, o contato com a LE era maior na escola especializada. Os instrumentos obtidos para a coleta dos registros da escola regular foram: as folhas fotocopiadas entregues pela professora no decorrer dos estudos; o caderno e o instrumento de avaliação empregado em sala de aula. Já, na escola especializada, os registros obtidos foram: o livro de textos[3], o livro de exercícios, as composições e o caderno. Apresenta-se a seguir a descrição do material coletado, com a análise realizada a partir da teoria já descrita. Por fim, é feito um levantamento de quais são os pontos comuns e os pontos que se diferem entre os dois contextos de ensino, buscando atingir o objetivo deste trabalho. 3.1. Atividades na escola regular Os registros coletados mostram que o trabalho da professora da escola regular se subdividiu em duas partes, sendo que a unidade temática que permeou todo o trabalho tratava sobre o corpo humano: a) vocabulário: partes do corpo humano; algumas doenças relacionadas ao corpo humano; formação de palavras a partir das partes do corpo humano; b) ensino de gramática: simple past e present perfect simple.

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143 O ensino de vocabulário ocorreu de maneira bastante diversificada. Para ensinar as partes que compõem o corpo humano, a professora utilizou-se de: a) palavras cruzadas, para os alunos não ficarem na superficialidade da temática abordada; b) uma folha fotocopiada, contendo 38 questões que faziam interdisciplinaridade com a matéria de Biologia, uma vez que os alunos dependiam do conhecimento da matéria para conseguir obter as respostas, por exemplo: 13) How much blood does an average adult have? - An adult has six liters of blood in their body. 21) What is the name of the little black circle in the centre of your eye? - They are pupils. Já para ensinar as doenças mais comuns relacionadas com o corpo humano, como headache (dor de cabeça), backache (dor nas costas), sore throat (dor de garganta), a docente utilizou figuras que ilustrassem cada doença e exercícios de combinação. Além dessas estratégias, a professora levou para sala de aula um exercício em que as palavras eram formadas a partir de algumas partes do corpo humano, assim, a partir das ilustrações e da palavra do corpo dada, os alunos deveriam completar o que faltava para formar a palavra, como por exemplo, com “hair” e “brush”:

HAIRbrush Os exercícios são bem diferentes dos livros didáticos tradicionais, uma vez que, além de alguns serem interdisciplinar, têm um lado lúdico, não tornando a sua resolução e a aprendizagem do aluno cansativas. Além do mais, a palavra, neste caso, está sendo figurada como sendo um signo social, ou seja, ela está carregada de um conteúdo vivencial dependente de um contexto (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992). Além dos pontos observados, é relevante destacar que, com esses exercícios, os alunos não ficam na mera repetição mecânica, em que, para responder o próximo item, é necessário somente alterar uma classe de palavra. Quanto ao ensino de gramática, a estrutura que estava em estudo era o Present Perfect Tense. No caderno da aluna, estavam registradas as explicações de como ele é utilizado. A sua prática aconteceu, primeiramente, com exercícios do vocabulário aprendido: Ex.: When was the last time you had a bad cold or flu? What were your symptoms? R.:. I catch last month. It was so awful. I have got a headache, I´ve got tired, I´ve got shivering and I´ve got a runny nose sick.

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144 O exercício é um exemplo adequado de como se trabalhar com a análise linguística em sala de aula, pois, a professora partiu do que a classe já estava estudando (as doenças relacionadas ao corpo humano), para iniciar o estudo do novo tópico gramatical, verificando se os alunos já dominavam a estrutura, como também explicando como ela funcionava. Na aula seguinte ao exercício realizado, havia no caderno da aluna algumas explicações e regras de uso do Simple Past. Isto pode ter acontecido pelo fato de a professora ter verificado a dificuldade de alguns alunos confundirem ou não identificarem a diferença entre o Simple Past e o Present Perfect Tense. No primeiro caso, a ação já está concluída, quando há um tempo definido (I stayed at home last night because I was sick. [4]); já o segundo caso representa ações e situações que começam no passado e continuam até o momento (I have been sick since last weekt[5]). Isso comprova que a professora é ajustável, pois procura fazer a medição da atividade escolar de forma condizente ao nível de desenvolvimento dos seus alunos, ao contexto cultural e social, estabelecendo a interação verbal de modo eficaz. Depois, foi entregue outra folha fotocopiada com mais exercícios para que o aprendizado fosse efetivado: Ex: 1. Write positive sentences in Present Perfect Simple. The following people have just completed an action. a) Jimmy / play / on the computer Jimmy has played on the computer. b) Andrew / repair / his bike. Andrew has repaired his bike. 5. Put the verbs into the correct tense (Simple Past or Present Perfect Simple). a) I (just / finish) have just finished my homework. b) Tom (move) moved to his town in 1994. Os dois exercícios eram do mesmo modelo, o único elemento que os diferenciavam era o comando, em que, no primeiro, a aluna teria que formar sentenças afirmativas, já, no segundo e no terceiro, a aluna teria que formar sentenças negativas e interrogativas, respectivamente. Nesse caso não se precisa refletir muito para resolvê-los, uma vez que só era necessário colocar o verbo dado no Presente Perfect Simple; já o exercício número cinco exigia uma reflexão maior, uma vez que o aluno deveria conhecer a regra e em que situações usa-se um modo verbal em detrimento do outro. Esse último exercício é importante, pois a partir da sua resolução, a professora verifica se o seu aluno aprendeu ou não a diferenciar os dois modos verbais, pode-se considerá-lo como uma forma de

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145 comprovação da aprendizagem. Ao ensinar regras e estruturas gramaticais, muitas vezes, os professores acabam por trabalhar com a língua como sendo um sinal estável, isto é, trabalham com a palavra fora de seu contexto, não considerando a palavra como signo social e ideológico, passível de outras significações (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992). Nos exercícios de gramática expostos, está-se trabalhando com a palavra como sendo um sinal estável porque a sentença está fora de um contexto passível de significação. Além disso, o exercício não leva em conta o conhecimento de mundo do aluno e, uma vez entendido como se deve respondê-lo, sua prática se torna mecânica e puramente artificial, pois o aluno nem observa mais o que está escrevendo ou porque está escrevendo daquela maneira, porque sabe que é só seguir o modelo que acertará, conseqüentemente, obterá uma boa nota ao final do bimestre. Contudo, não se pode esquecer que a repetição é importante, pois é uma das formas de auxiliar o aluno a memorizar a estrutura verbal. Quanto à avaliação, ela não foi muito diferente dos exercícios trabalhados em sala de aula, tanto no que se refere ao estudo do vocabulário, quanto à parte gramatical, pois os exercícios que se referiam ao Present Perfect Tense eram do mesmo modelo da folha de exercícios entregue na semana antes da prova. Dessa forma, que no que se refere às atividades de escrita da aluna, pode-se inferir que, apesar de os alunos não terem realizado nenhuma composição, ela foi significativa e pode ser dividida em: exercícios gramaticais, exercícios de respostas pessoais e exercícios para aquisição de vocabulário. Essas significativas estratégias levaram os alunos à interação com a LE trabalhada, em virtude de três aspectos: a) estratégias empregadas pela professora; b) a interdisciplinaridade produzida com a disciplina de Biologia; c) aos exercícios oferecidos para a internalização da LE, a partir da interdisciplinaridade. 3.2. Atividades na escola especializada: Os registros coletados da escola especializada podem ser divididos: a) livro de textos: textos, exercícios de compreensão e interpretação, estruturas gramaticais, atividades orais, atividades de listening e exercícios de escrita. b) livro de exercícios: leitura, gramática, exercícios de compreensão e interpretação e exercícios de gramática. c) caderno: notas de gramática, exercícios gramaticais, primeira versão das composições. No que diz respeito ao livro de textos, as atividades orais e de listening não são descritas, pois o objetivo deste trabalho é identificar as atividades de leitura e de escrita, apesar de essas atividades serem importantes para construir o processo da escrita e para auxiliar nas atividades de leitura. Para melhor compreender como o material é composto, é descrita brevemente uma

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146 unidade cujo título é “Do you want to be young forever?”. O primeiro exercício da unidade era composto de dois listenings que iniciavam a temática desenvolvida na unidade. No segundo exercício, os alunos deveriam formar substantivos a partir dos adjetivos, sendo que todas as palavras da lista estavam relacionadas de alguma forma à temática. O próximo exercício era denominado “Build your vocabulary”, em que os alunos aprenderiam algumas expressões de tempo. Esses exercícios serviram como uma espécie de pré-leitura, uma vez que o que foi visto nos exercícios anteriores estaria apresentado no texto. A pré-leitura é, portanto, uma parte muito importante da leitura, já que ela proporciona ao aluno uma idéia do que o texto vai tratar e, em língua inglesa, auxilia o aluno a compreender melhor o texto, pois algumas palavras, antes desconhecidas, já não soaram tão estranhas ao aluno. Após esse exercício, encontrava-se o texto “Eternal youth: new developments in antiageing research”. Depois da leitura do texto, os alunos deveriam responder três exercícios: no primeiro, o aluno encontraria algumas expressões científicas que estavam presentes no texto e aprenderia como elas podem ser encontradas em uma linguagem mais coloquial. Esse é um típico exercício de variação linguística que, se for bem trabalhado pelo professor, poderá mostrar ao aluno que é o contexto, a situação social em que está inserido que o permitirá fazer uso de uma expressão em detrimento da outra. Ex.: 2- cease to function stop working 4- the ageing process getting old 5- searching for looking for O exercício seguinte é caracterizado como sendo de compreensão textual, não trazendo dificuldades ao aluno, pois além de ser de múltipla escolha, todas as respostas se encontram diretamente no texto. Ex.: 1- When all humans reach a certain age a) they get arthritis or Alzheimer’s. b) their organs start to fail. c) they suffer the effects of bad diet and lifestyle. 4- Scientists researching the oxidation theory have a) made all animals live longer. b) made mice live longer. c) made people live longer. O último exercício (f), caracterizado como um exercício de interpretação textual, exige do aluno certa reflexão para respondê-lo, ele faz um diálogo entre o conteúdo do texto e o próprio aluno: f) How do you fell about the future described in the last line of the article? Would you like to stay

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147 young forever? What problems can you imagine? Observa-se, portanto, que a maioria dos exercícios de compreensão e interpretação textual presentes no livro didático estão de acordo com a perspectiva tradicional de leitura, isto é, a centralização da leitura está no texto, pois, para conseguir a resposta correta para as questões, basta ao aluno recorrer ao texto (MENEGASSI & ANGELO, 2005). Na atividade de leitura descrita ficou bem visível e bem caracterizada essa concepção, uma vez que as atividades não permitiam um diálogo entre aluno e texto, pois, buscando a textualidade somente, alcançava-se a resposta correta, dessa forma, o sentido não era construído, ele já estava pronto no texto, bastava o aluno ir até o texto, recortar e copiar a informação desejada. Dessa maneira, o aluno se transforma em receptáculo de informações do texto, o seu conhecimento de mundo não é valorizado. Contudo, o último exercício (exercício f) permitia um possível diálogo entre o aluno (leitor) e o texto, porém, ele não foi respondido pela aluna, não deixando espaço para uma análise para averiguar se ela havia compreendido o trabalho de leitura, consequentemente produzido sentidos. O próximo tópico da unidade diz respeito às regras gramaticais, o item em estudo era sobre as formas do futuro (future forms). Primeiramente, foram explicadas algumas maneiras de expressar essa forma verbal, por meio de exercícios de múltipla escolha. Depois dos exercícios estruturais, havia um exercício de conversação que envolvia o uso da regra gramatical aprendida. No final da unidade, havia exercícios de pronúncia, de vocabulário e de encontrar os erros existentes em um texto, sendo que todos tinham alguma ligação com o título da unidade: “Do you want to be young forever?”. Quanto ao livro de exercícios, no que se refere à mesma unidade estudada no livro de textos, ele apresentava, primeiramente, uma revisão da regra gramatical já estudada, seguido de vários exercícios. Havia também exercícios sobre o vocabulário aprendido e, por fim, três textos de três pessoas de mesma idade, tratando sobre como se sentem com suas idades; logo após esses textos, seguia-se um exercício de interpretação em que o aluno deveria enumerar as sentenças de acordo com quem fez ou disse tal coisa. Esses exercícios, na maioria das vezes, são feitos como tarefa de casa, como uma forma de auxiliar na internalização do conteúdo aprendido em sala de aula. Ao observar as composições feitas pela aluna, verifica-se que ambas não se relacionam com as unidades temáticas desenvolvidas, mas estão relacionadas, de alguma forma, com algum tópico da unidade, por exemplo, na unidade anterior à descrita, havia um tópico sobre vantagens e desvantagens (advantages and desadvantages / for and against) da saúde pública, então, a professora solicitou que os alunos dissertassem sobre as vantagens e desvantagens de alguma profissão. A aluna optou por dissertar sobre as vantagens e desvantagens de ser Professor. Segue-se o texto: Teachers In my opinion, teacher is the best job although in this job can improve some desadvantages. The main advantage is that the teacher can teach all that they learn all their lifes. What is more

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148 in the same time they can learn more with the students and learn some things good with their because theyre younger than the teachers. On the other hand, the main desadvantage is the salary. Unfortunately the salary is absolutely horrified. In adittion some students don’t respect the teachers. Then the teachers fell so boring with these. In conclusion teachers is a really good job though they have to overcome the desadvantage as you have to do in other jobs. Moreover they want to to do the best for their really good students. A composição da aluna apresenta pouco conteúdo e, além disso, ela não argumenta sobre as informações apresentadas. A possível explicação para isso, já que a aluna se encontra em um nível pós-intermediário de estudo da língua inglesa, é a de não haver uma preparação para a escrita, também, de não ocorrer a reescrita, momento em que a Professora poderia auxiliar a aluna a ampliar as idéias do texto. Evidencia-se dessa maneira que a única finalidade para a produção de texto é a de mostrar para o professor se o aluno aprendeu ou não a regra gramatical, ou se sabe utilizar ou não o vocabulário da lição. Assim, a produção escrita não é vista como sendo um trabalho (SERCUNDES, 2001), pelo contrário, ela é tida como uma consequência de todo o trabalho realizado, além disso, as condições de produção não são levadas em conta e, apesar de o livro didático encaminhar o aluno para no final produzir-se a atividade escrita, a professora descaracterizou esse processo, não havendo, portanto, preparação para a escrita. Além disso, o único interlocutor para a escrita do aluno é a Professora, vista não como leitora, mas como uma mera avaliadora, na posição de atribuidora de nota. 4. Considerações finais: Embora houvesse um trabalho com a leitura e a escrita, é possível observar algumas semelhanças entre os dois contextos de trabalho com a LE. A primeira tem a centralização no ensino na gramática da LE, dessa forma, o aluno não é levado ao desenvolvimento da capacidade de refletir sobre a língua, consequentemente, não lhe é ensinado a olhar criticamente sobre o mundo que o cerca, que é novo e em construção. Logo, a língua deixa de ser vista como um fenômeno social da interação verbal. Além disso, na escola especializada, onde foi possível observar a ocorrência de produções escritas, verificou-se que elas têm por finalidade avaliar a aprendizagem de alguma regra ou estrutura ensinada em sala de aula. Assim, há uma descaracterização das condições de produção, já que o interlocutor se restringe ao professor de LE, o gênero é sempre o mesmo – composition - e a finalidade é a verificação da aprendizagem, não havendo meios de circulação para o texto do aluno, descaracterizando-se o trabalho com os gêneros discursivos (BAKHTIN, 2003). A segunda semelhança, que é consequência da primeira, é que salvo um ou outro exercício em que a palavra é trabalhada como sendo signo social, sempre variável e flexível, houve a predominância do seu trabalho como sinal estável (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992). Dessa forma, a situação comunicativa da enunciação não é caracterizada. Isso pode ser verificado nos exercícios gramaticais apresentados, em que o seu aprendizado se torna mecânico e artificial.

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149 Se o objetivo é formar cidadãos críticos e capazes de utilizar a língua inglesa nas mais diversas situações que podem ser vivenciadas pelos alunos, essas duas semelhanças apresentadas precisam ser repensadas pelos professores de LE, a fim de que se possa melhorar a prática docente. Com relação à escola regular, na questão do uso de estratégias de ensino, ressaltamse os seguintes pontos: trabalho com exercícios interdisciplinares; exercícios de variação e análise linguística; trabalho com a palavra como sendo sinal um signo social; e as estratégias utilizadas pela professora para se trabalhar com a gramática. Já, no que se refere à escola especializada, destacam-se: o trabalho com a pré-leitura; exercícios de variação linguística; trabalho com as atividades do livro de exercício como tarefa de casa a fim de auxiliar a internalização do conteúdo aprendido em sala de aula. Espera-se que, com este trabalho, algumas práticas descritas possam ser levadas para salas de aula, como também outras possam ser repensadas para haver uma melhoria no ensino de inglês como língua estrangeira. 5. Referências ALMEIDA FILHO, J.C. Lingüistica Aplicada: ensino de língua e comunicação. Campinas: Pontes e Arte Língua, 2005. BAKHTIN, M.; VOLOCHINOV, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 1992. BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BAQUERO, Ricardo. Vygotsky e a aprendizagem escolar. Porto Alegre: Artmed, 2001. CAZARIN, E. A. Princípios gerais para uma metodologia do ensino de língua portuguesa. Coleção Cadernos Unijuí, 1995, p. 5-6. GARCEZ, L. H. do C. A escrita e o outro: os modos de participação na construção do texto. Brasília: UNB, 1998. KOCH, I. G. V. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002. MENEGASSI, R. J.; ANGELO, C. M. P Conceitos de Leitura. In: MENEGASSI, R. J. (org) Leitura e Ensino. Maringá: EDUEM, 2005 p.15-43. OXENDEN, C; KOENIG, C. L; SELIGSON, P. New English File. Upper–Intermediate. London: Oxford, 1996. SERCUNDES, M. M. I. Ensinando a escrever. In: CHIAPPINI, Ligia. (org.) Aprender e ensinar com textos de alunos. São Paulo: Cortez, 2001, p. 75-97. VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. [1] Pesquisa desenvolvida junto ao Projeto de Pesquisa “Manifestações de constituição da escrita na formação docente”, junto ao Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá, financiada pela SETI/Fundação Araucária. [2]O termo composition é compreendido e utilizado referindo-se a um texto curto que se assemelha a uma redação escolar, no ensino de língua materna. Seu emprego é comum no trabalho com inglês como LE nas escolas brasileiras. [3] OXENDEN,Clive; KOENIG, Christina Latham; SELIGSON, Paul. New English File. Oxford: 1996. (Upper – Intermediate) [4] Eu fiquei em casa a noite passada porque eu estava doente. [5] Eu tenho estado doente desde a semana passada.

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150 A FRAGMENTAÇÃO DA IDENTIDADE EM MIDNIGHT’S CHILDREN, DE SALMAN RUSHDIE Shirley de Souza Gomes Carreira

Doutora em Literatura Comparada – UNIABEU - RJ

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar o romance Midnight’s Children, de Salman Rushdie, buscando focalizar não só a representação da fragmentação da identidade, mas também o seu diálogo com a História. No romance, Rushdie retoma a questão da identidade, entretecendo-a com a história da Índia, bem como recorre a estratégias do romance mágico Palavras-chave: intertextualidade, História, identidade Abstract: This work aims at analyzing the novel Midnight’s Children, by Salman Rushdie, by focusing not only on the representation of the fragmentation of identity, but also on the its dialogue with History. In the novel, Rushdie retakes the theme of identity, intertwining it with the history of India, as well as he recurs to Magical Realist devices. Keywords: intertextuality, History, identity Salman Rushdie é um dos mais brilhantes e conhecidos autores da literatura póscolonial em língua inglesa. Sendo um dos muitos escritores migrantes contemporâneos, Rushdie transpõe para a sua obra a experiência do exílio, da migração e de uma subjetividade que é, a um só tempo, plural e parcial. Ao fazê-lo, transforma a história de seu país de origem, a Índia, e dos países que o acolheram, o Paquistão, a Inglaterra e os EUA, em matéria-prima para a sua ficção. Quando Salman Rushdie escreveu Midnight’s Children (Os filhos da meia-noite), no fim dos anos setenta do século XX, a Índia não era um assunto relevante no Ocidente. O tema não era considerado interessante para o público em geral e Rushdie encontrou certa resistência antes de conseguir a publicação do romance. No entanto, por ocasião do seu lançamento, em 1981, o sucesso estrondoso da obra abriu caminho para um novo olhar sobre a Índia. Midnight’s Children foi escrito após uma visita do autor à sua terra natal, ao fim de um longo período de ausência. Ao rever seu país, seus costumes, e sentir de perto os conflitos gerados pela política indiana, Rushdie experimentou não só a nostalgia que, normalmente, surge nesses momentos, mas também a indignação ante a realidade com que se deparou, aguçada por um duplo olhar: o de cidadão indiano e o de visitante estrangeiro. O fato de ter vivido muitos anos no exterior permitiu-lhe lançar ao seu país um olhar crítico, com o qual revisitou não apenas a política imperialista britânica, mas também a tradição, os costumes indianos. Midnight’s Children é um romance construído sobre dois pilares distintos: o realismo mágico e a revisão da história. A opção pelo fantástico para reinterpretar os fatos históricos denota a clara intenção de Rushdie de demonstrar a inconfiabilidade dos registros

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151 históricos e autobiográficos, pois ambos são permeados pela “verdade da memória”, conforme o autor afirma no ensaio ‘Errata’: or, Unreliable Narration in Midnight’s Children[1]. No mesmo ensaio, Rushdie afirma que a principio sua intenção era um tanto quanto proustiana, inspirada pela ação do tempo e da migração, e que o formato final do romance deveu-se à sua percepção de que o que realmente lhe interessava era o modo pelo qual somos capazes de refazer o passado para atender os propósitos presentes. A força motriz da obra de Rushdie tem sido a sua percepção de si mesmo como um indivíduo migrante, ou “traduzido”, como ele faz questão de enfatizar. Essa consciência está no âmago da criação de Saleem Sinai, o protagonista de Midnight’s Children. Saleem é uma das crianças que nasceram à meia-noite do dia 15 de agosto de 1947, data da independência da Índia: A luta pela independência da Índia foi conduzida por Mahatma Gandhi, um advogado indiano de formação européia, que tinha por princípio a não-violência. Em 1947 chegou-se a um acordo com a divisão do antigo território em Índia e Paquistão, ficando a Índia no centro do território e o Paquistão Oriental separado do Paquistão Ocidental por mais de 1.700 km. Em 1971, o Paquistão Oriental declarou-se independente em relação ao Ocidental, com apoio da Índia, passando a se chamar Bangladesh. (ARRUDA, 1980, p.376)

A história pessoal de Saleem é uma metáfora da história da nação. Não usamos aqui o conceito de alegoria, buscando a fidelidade à concepção do autor de que a alegoria exige uma correspondência perfeita entre os eventos do plano histórico e os da vida da personagem, o que, de fato, não existe no romance. O romance é narrado em primeira pessoa pelo seu protagonista e se inicia pelas circunstâncias do seu nascimento. Saleem Sinai coloca-se numa posição que evoca a imagem de Sherazade, que, ante a iminência da morte, e para protelá-la, necessita contar histórias. A construção da personagem está subordinada, igualmente, à idéia de fragmentação, cujo símbolo maior é o “lençol perfurado”: E há tantas estórias para contar, tantas, um tal excesso de vidas interligadas, eventos, milagres, lugares, rumores, uma mistura tão densa do improvável com o mundano! Tenho sido um engolidor de vidas; e para conhecer-me, tal como sou, terão de engolir um outro tanto. Multidões consumidas estão se empurrando dentro de mim; e guiado apenas pela memória de um amplo lençol branco com um buraco circular de cerca de sete polegadas de diâmetro exatamente no centro, agarrando-me ao sonho daquele quadrado de tecido mutilado, esburacado, que é o meu talismã, meu “abre-te sésamo”, eu tenho de recomeçar a tarefa de refazer a minha vida do ponto em que ela realmente começou, cerca de trinta e dois anos antes de algo tão óbvio,

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152 quanto o presente, quanto o meu nascimento manchado pelo crime e controlado pelo relógio. (RUSHDIE,2006, 4)

Saleem retrocede no tempo para contar a história de seu avô, Aadam Aziz, tendo como ponto de partida o momento em que este retorna à Índia, após cinco anos de estudo na Alemanha. Ao inclinar-se para beijar o solo indiano e rezar, Aziz bate com o nariz no chão, fazendo-o sangrar, jurando, daí por diante, jamais se curvar novamente, nem para deuses, nem para homens. A caminho de casa, o olhar que ele lança à sua terra é diferente do olhar do jovem que de lá saíra; é o olhar de um homem que perdera o encantamento, muito embora tentasse acreditar que nada mudara. Mas tudo mudara; seu pai tivera um derrame e sua mãe assumira a responsabilidade dos negócios da família. Aziz decide começar a clinicar e é chamado para examinar a filha de um proprietário de terras local. Lá chegando, depara-se com uma cena inusitada: sua cliente está coberta dos pés à cabeça por um lençol branco com um buraco no centro. Pelo buraco, ele pode ver apenas a parte do seu corpo que Ghani, o pai da jovem, julgava ser necessário examinar: o abdome, uma vez que ela sofria de dores de estômago. Nas muitas vezes em que é chamado a examinar Naseem, Aziz vê apenas partes de seu corpo, mas nunca o seu rosto. Assim, pouco a pouco, ele se torna obcecado pela imagem fragmentada daquela mulher. O lençol perfurado é, portanto, o primeiro sinal da fragmentação da identidade que se repete por todo o texto. Três anos depois, ela finalmente apresenta uma dor de cabeça e ele é capaz de ver o rosto com qual sonha todos os dias. Após a morte de seus pais, ele se arma de coragem e pede a jovem em casamento. Nesse ponto, Saleem interrompe a narrativa para dizer que sente que está prestes a se desintegrar em milhões de pedaços e que, quando isso ocorrer, a Índia será verdadeiramente libertada. É evidente a associação que Saleem estabelece entre seu próprio eu e a nação. Seu corpo apresenta rachaduras e ele diz que quer registrar isso, porque a Índia é uma nação de esquecidos. Da união entre o Dr. Aziz e Naseem nascem cinco filhos, Alia, Muntaz, Hanif, Mustapha e Emerald, e Saleem narra como sua mãe, Muntaz, descobre o amor quando seu pai oculta em sua casa o secretário de um líder político que fora assassinado, Nadir Khan. Assistindo-o todos os dias, Muntaz acaba por apaixonar-se por ele. O casamento acontece, muito embora Nadir continue a viver oculto no porão. Dois anos depois, Aziz descobre que a filha permanece virgem e Emerald, quebrando a promessa de manter em segredo a presença de Nadir Khan em sua casa,

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153 revela a verdade ao namorado, Major Zulfikar. Nadir é obrigado a fugir, deixando uma carta de divórcio para Muntaz. Algum tempo mais tarde, esta se casa com Aahmed Sinai, a quem jura aprender a amar “aos pedacinhos”. A imagem do todo que é construído pelas partes é renovada, assim, reiterando a simbologia do lençol perfurado. Muntaz, que a essa altura mudara seu nome para Amina Sinai, grávida do primeiro filho, lê que o jornal Times of Índia anunciara que daria um prêmio a mãe que tivesse seu filho no momento exato da independência da Índia. Quando seu filho nasce, exatamente à meia-noite do dia 15 de agosto, é trocado por outra criança, filho de uma mulher que morrera durante o parto. Somente onze anos depois, consumida pela culpa, a parteira, Mary Pereira, revela que trocara as crianças para agradar ao namorado, o revolucionário Joseph D’ Costa, proporcionando à criança pobre, Saleem, uma vida digna, e relegando a criança rica a uma vida de infortúnios. A obra de Rushdie em geral tem sido abordada pela crítica como um produto do contato do autor com o Realismo Mágico. Em Midnight’s Children, em particular, pode-se dizer que o insólito assume papel preponderante, configurando-se como veículo para a discussão que o autor promove sobre a ambigüidade da História. Em Uso e abuso da história (1873), Nietzsche afirmava que há três maneiras de expressar-se a consciência histórica: a ahistoricidade, ou seja, o poder do esquecimento ou de delimitar o tempo; a historicidade, ou seja a historiografia convencional; e a superhistoricidade, que permite uma visão cultural ampla, abarcando outros aspectos relevantes da vida humana, como a arte e a religião. A presença do insólito em Midnight’s Children evoca o conceito de superhistoricidade formulado por Nietzsche, na medida em que ele considerava tanto a ahistoricidade como a superhistoricidade verdadeiros antídotos contra o poder da historiografia. De certo modo, Saleem narra a sua história pessoal para uma audiência ainda não preparada para enfrentar uma história que está além dos registros historiográficos (Padma, o leitor e seu filho, num futuro próximo): Um dia, talvez, o mundo poderá provar os pickles da história. Poderão ser fortes demais para certo paladares, seu cheiro poderá ser excessivamente intenso, lágrimas talvez aflorem dos olhos; espero, contudo, que deles se possa dizer que possuem o autêntico sabor da verdade. (RUSHDIE, 2006, p.597)

O insólito, revestido da superhistoricidade, dialoga com os fatos reais do período em que a narrativa se insere, criando um mundo ficcional em que o inverossímil não só é possível como também é capaz de guiar o leitor pelos meandros dos questionamentos de Rushdie. As manifestações do insólito em Midnight’s Children assumem diversas faces:

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154 aproximando-se do maravilhoso em alguns momentos, pendendo para o fantástico em outros e, em algumas circunstâncias, revestindo-se da estranheza causada pela diferença cultural. As antecipações narrativas usuais surgem no romance com um caráter mágico. Ao invés de usar o artifício do flashward, Rushdie confere às suas personagens habilidades excepcionais. Naseem, a jovem pela qual o Dr. Aziz se apaixonara, por exemplo, com o passar do tempo, transforma-se em uma matrona conservadora, dotada de uma estranha habilidade: sonhar os sonhos das próprias filhas, a fim de vigiá-las. Dentre outras manifestações do insólito, como o congelamento simultâneo dos bens e dos testículos de Ahmed Sinai, surge aquela que dá titulo ao romance: a existência dos Filhos da Meia-Noite. O primeiro contato de Saleem Sinai com os Filhos da Meia-Noite é inesperado. Aos dez anos, o protagonista e narrador é uma criança marcada pelo peso dos seus traços físicos: olhos estranhamente azuis e um nariz exageradamente grande, que fazia seu rosto lembrar um mapa da Índia. A consciência da própria feiúra, jamais esquecida pelos colegas de escola, leva-o a esconder-se no cesto de roupa suja, único lugar em que consegue paz. Um dia, estando em seu esconderijo habitual, ouve sua mãe atender uma chamada telefônica e, em seguida, ela se tranca no banheiro, murmurando o nome de um homem desconhecido. Um espirro de Saleem revela seu esconderijo e a punição é um dia de completo silêncio. Ao longo desse dia, Saleem ouve, pela primeira vez, um emaranhado de vozes, que parecem vir de dentro de sua cabeça, e acaba por dizer à família que anjos têm vindo conversar com ele. A família considera aquilo uma blasfêmia e seu pai bate tão fortemente em sua cabeça que Saleem perde parte da audição, decidindo, a partir daí, manter o seu dom oculto. Na verdade, aquele dia marca o primeiro contato telepático de Saleem com os outros filhos da meia-noite. O texto revela, mais uma vez, a relação da história pessoal do narrador com a história do país, pois o narrador informa que, em 1956, houve uma sucessão de passeatas dos cidadãos indianos a fim de que a capital pudesse ser dividida de acordo com os dialetos do povo. Assim, as vozes que Saleem ouve, falando em diversos dialetos, sugerem a multiplicidade em um momento histórico em que a Índia buscava a unificação. Telepatia, então: os monólogos interiores de todos os assim chamados milhões fervilhantes, tanto de massas quanto de classes, lutavam por espaço dentro da minha cabeça. No começo, quando eu me contentava em ser platéia – antes que começassem a agir – havia um problema de idioma. As vozes tagarelavam em todos os dialetos, desde os malayalam até os do naga, desde a pureza do urdu de Lucknow até os anasalamentos

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155 meridionais do tâmil. Eu só entendia uma fração das coisas ditas dentro das paredes de meu crânio. Só mais tarde, quando comecei a investigar, foi que aprendi que, abaixo da superfície das transmissões – o material que eu captara originalmente-, a linguagem se desvanecia, sendo substituída por formas mentais universalmente ininteligíveis que transcendiam em muito as palavras. (RUSHDIE, 2006, p.230)

Durante a primeira hora da independência indiana, 1001 crianças nasceram. Quando Saleem estabelece contato com elas, aos dez anos de idade, restam apenas 581, pois as demais haviam morrido. Em seu contato telepático com essas crianças, ele percebe que a intensidade de seus poderes é proporcional à proximidade do horário de seu nascimento com o momento da independência. Entendam o que estou dizendo: durante a primeira hora de 15 de agosto de 1947 – entre meia-noite e uma da manhã – nada menos que mil e uma crianças nasceram dentro das fronteiras daquele incipiente Estado soberano, a Índia (...) o que tornou o nascimento digno de nota foi a natureza dessas crianças, cada uma das quais estava dotada, devido a alguma aberração da natureza, talvez em virtude de alguma força sobrenatural do momento, ou simplesmente por causa da coincidência (muito embora uma sincronia em tamanha escala aturdisse até C. C. Jung), de características, talentos, ou faculdades que só podem ser descritos como miraculosos. Se me permitirem um instante de fantasia neste relato, que em tudo mais será, prometo, o mais sóbrio que eu puder fazer, foi como se a História, alcançando um ponto de suprema significação e promessa, tivesse resolvido semear, naquele momento, os germes de um futuro que diferisse, verdadeiramente, de tudo quanto o mundo já vira até então. (RUSHDIE, 2006, p. 265)

Dentre os filhos da meia-noite havia quem tivesse dons especiais, como, por exemplo, uma memória infinita e o dom de curar com a imposição de mãos. Eram aqueles que tinham nascido a menos da meia hora do raiar do dia da independência. Havia, no entanto, os filhos obscuros da meia-noite, que, por terem nascido nos últimos minutos da primeira hora, tinham recebido características que eram mais um castigo do que uma bênção: gêmeos siameses, com dois corpos e uma única cabeça, que podiam falar alternadamente com voz masculina e feminina; mulheres barbadas; seres desafortunados que teriam de carregar a marca do seu nascimento. Aos que nasceram no primeiro minuto foram legados os melhores dons, como o de produzir riqueza, de viajar no tempo, de fazer profecias e a arte da magia. Mas apenas duas crianças, Saleem e Shiva, a criança cujo lugar ele ocupava, haviam nascido no momento exato da independência. A Saleem coube o dom da telepatia e a Shiva o dom da guerra. A reação dos pais de Saleem ante o seu dom revela a negação do insólito, bem como a tentativa de explicar fato como sendo o produto da imaginação fértil de uma

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156 criança. No entanto, para Saleem, a existência das outras crianças é bem-vinda e aceita com normalidade e ele passa a nomear a profusão de vozes que explodem em sua mente de “Conferência dos filhos da meia-noite”. A experiência telepática revela-se mais ampla e Saleem percebe que tem acesso irrestrito às mentes alheias, inclusive aos segredos de sua mãe. Como o narrador nos permite descobrir, cada fato acontecido em sua vida reflete de alguma maneira na história política da Índia, seja de forma positiva ou negativa. Saleem se considera uma criança especial, por ter seu dom especial, e acredita que sua Aliança com as outras crianças mágicas pode mudar o destino da nação de maneira significativa. Na mesma época, estabelece-se uma rivalidade entre Saleem e Shiva pela liderança dos filhos da meia-noite. A conferência começa a desgastar-se quando seus membros buscam o sentido de sua existência e acabam por adotar o comportamento preconceituoso de seus familiares. A turbulência política que a Índia atravessa encontra eco no rompimento da conferência dos filhos da meia-noite. Por mais mágicos que sejam, os filhos da meia-noite não estão imunes aos seus pais; e, à medida que os preconceitos e as concepções dos adultos passaram a dominar suas mentes, passei a ver crianças de Maharashtra detestando gujarátis, e n ortistas de pele clara injuriando os “pretos” dravídicos; havia rivalidades religiosas; e a idéia de classe entrou em nossos concílios (... ) A Conferência dos Filhos da Meia-Noite cumpriu, assim, a profecia do primeiro-ministro e tornou-se com efeito, um espelho da nação. (RUSHDIE, 2006, p.339)

A idéia de fragmentação que percorre todo o romance é mais uma vez evocada nas dissensões que separam os filhos da meia-noite. Um acidente faz com que Saleem seja levado para o hospital e necessite de sangue. Ao tentar doar sangue para o filho, Amina e Ahmed descobrem que ele não pode ser seu filho biológico. Assombrada pelo fantasma de seu amante, que busca descanso, Mary Pereira decide revelar à família de Saleem que fizera a troca dos bebês. A revelação é o estopim que provoca a separação dos pais de Saleem, que se vê obrigado a mudar para o Paquistão com a mãe e a irmã, só retornando quatro anos depois. A narrativa evolui, em seguida, para o episódio da guerra entre a Índia e o Paquistão e a morte de quase toda a família de Saleem em um bombardeio. Atingido por uma escarradeira de prata que fora de seu avô, Saleem perde a memória e é enviado ao exército paquistanês para lutar na guerra contra a Índia. Sobrevivendo aos combates, e ainda incapaz de lembrar seu nome, Saleem volta à Índia. É durante um desfile de atrações que uma antiga amiga da Conferência dos Filhos da Meia-Noite o reconhece e o chama pelo nome há tanto esquecido. Saleem passa a viver em

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157 Nova Deli, no gueto dos mágicos, junto com a feiticeira Parvati e Singh da Fotografia, depois de passar quatrocentos e vinte dias de luto (quarenta dias para cada pessoa da família que havia morrido) na casa de seu tio Mustapha. Parvati nutre por Saleem um amor não correspondido e decide vingar-se dele tendo um filho de Shiva, seu maior adversário. Abandonada pelo amante, Parvati acaba por ser amparada por Saleem, que sabe ser a criança que ela espera um descendente verdadeiro da família que o acolheu. O trabalho de parto de Parvati é simultâneo às manifestações e crises governamentais, e seu filho, Aadam Sinai, nasce no instante em que é declarado o estado de emergência na Índia. Uma vez mais o insólito é entrelaçado às narrativas da história, sem que, no entanto, o texto sugira as relações paralelas que são comuns às alegorias. Ao contrário, Rushdie cria uma relação de causa-e-efeito, como se os fatos ocorridos em uma das histórias, seja a de Saleem ou a da nação, refletisse de maneira trágica na outra. Nesse ínterim, o gueto é invadido, Parvati é assassinada e seu filho desaparece. Saleem é aprisionado e obrigado a revelar o esconderijo de todos os filhos da meia-noite, que são cruelmente esterilizados. Ao serem esterilizados, os filhos da meia-noite perdem os seus poderes mágicos. Novamente, a ficção dialoga com a história, pois em 1975, Indira Ghandi ordenou a esterilização forçada da população, suspendendo os direitos civis do povo. O filho de Saleem é, finalmente, encontrado. É um bebê com orelhas exageradamente grandes, simbolicamente capaz de ouvir a história narrada por seu pai. A morte persegue Saleem de perto, com a mesma doença que matou seu avô, Aadam Aziz, uma espécie de lepra nos ossos, e o personagem se vê obrigado a escrever para que o filho não corra o risco de crescer sem saber quem foi seu pai e o que lhe aconteceu. Quem ouve atentamente a narrativa de Saleem é Padma, uma funcionária da fábrica de picles, semi-analfabeta, que se apaixona pelo personagem-narrador e sonha com um possível casamento. Padma sofre e se emociona com as desventuras da família Sinai/Aziz, e termina como a platéia de Saleem, antes que seu filho possa sê-lo. A primeira palavra dita pelo filho de Saleem é “Abracadabra”, que vem a ser o título do último capítulo e que sintetiza toda a magia que circunda a narrativa. O romance termina com o narrador afirmando que terá de escrever o futuro, assim como escreveu o passado, com a absoluta certeza de um profeta, e passa a descrever o momento em que, como em um passe de mágica, se desintegrará em milhões de pedaços. Midnight’s Children reflete uma tensão política que sempre esteve associada à história da Índia e à sua diversidade. A constituição indiana reconhece a existência de 22 idiomas oficiais e a prática religiosa é também das mais variadas. A cultura indiana é híbrida e ainda sofre até os dias de hoje as conseqüências da problemática imposta pela partição, que

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158 dividiu o país em Paquistão, nação muçulmana, e a atual Índia, de religião hindu. A divisão política é um exemplo do desejo de suprimir a pluralidade cultural indiana, representada no romance pelos filhos da meia-noite. Tendo nascido no momento da independência, Saleem é, de certo modo, o símbolo da tentativa de unificação de algo que, pela própria natureza, é plural. Sua fragmentação ao final é apoteótica e reveladora. A idéia de fragmentação que perpassa o romance apresenta-se, pois, como uma mensagem subliminar que pode ser depreendida a partir do símbolo em que o lençol perfurado se torna. Se existe a possibilidade de, por meio das partes, visualizar o todo, isto é, se reconhecendo a diversidade cultural indiana pode-se chegar à concepção da Índia enquanto país; também se torna necessário admitir que a unificação não implica a negação dessa diversidade, e sim o seu reconhecimento e aceitação. Em Midnight’s children o insólito aponta para o fato de que a realidade é uma questão de perspectiva. Ao contaminar os dados historiográficos com a fantasia, alterando-os, Rushdie cria um terreno fértil para a aceitação do insólito como verossímil, bem como interroga a historiografia. Para Rushdie, a verdade da memória é licenciosa, “seleciona, elimina, altera, exagera, simplifica, glorifica e também denigre; mas no fim cria sua própria realidade, sua versão heterogênea, mas, em geral, coerente dos acontecimentos” (RUSHDIE, 2006, p. 284). O narrador do romance chega ao fim do seu relato sem cumprir seu propósito de “fidelidade aos fatos”, pois, ao pressupor que sua história tem uma relação intrínseca com a de seu país, ele revela que os acontecimentos empíricos são passíveis de uma visão subjetiva, e que o conceito de verdade é sempre múltiplo e fugaz. Referências bibliográficas ARRUDA, José J. de A. História Moderna e Contemporânea. São Paulo: Ática, 1980. NIETZSCHE, F. Sobre o uso e o abuso da história na vida. 1873 Disponível em: http://www.scribd.com/doc/7183375/Nietzsche-Friedrich-No-Uso-e-Abuso-Da-HistoriaPara-a-Vida Acesso: 29/03/2009 RUSHDIE, Salman. Imaginary Homelands. Essays and criticism 1981-1991.Londres: Granta Books, 1991. ______Os filhos da meia noite. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. [1] RUSHDIE, S. (1991) p. 25.

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159 CORDIALIDADE E NEPOTISMO: UMA INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA Thiago Abreu de Figueiredo

Chefe do Departamento Escolar da Escola de Aprendizes-Marinheiros do Ceará (EAMCE) Pesquisador-colaborador Núcleo de Pesquisas em Ciências Humanas (NUPECH) Universidade de Fortaleza (UNIFOR).

Resumo A teoria da cordialidade brasileira não se explica por si mesma, e essa é uma reflexão marcada, historicamente, pela polêmica. Desenvolvido a partir da noção de “homem cordial”, expressão criada por Rui Ribeiro Couto e utilizada por Sérgio Buarque de Holanda, o conceito necessita de análises acuradas para sua compreensão. Para Holanda, dentre outros aspectos, ela possuiria características transitórias e tenderia a desaparecer das relações formais no país. Porém, os exemplos de cordialidade na sociedade brasileira parecem contrariar as previsões do historiador. Observa-se uma persistente presença desta cordialidade que seria manifestada pela prática do nepotismo. Este trabalho tem o objetivo de lançar luzes sobre a relação entre cordialidade e o nepotismo bem como verificar o nível de aceitação desta prática pela sociedade brasileira. Para tanto, realizou-se uma reflexão sobre o conceito de cordialidade sob as óticas de Ribeiro Couto e a de Holanda. Posteriormente, abordou-se o conceito de nepotismo e foram apresentadas algumas informações coletadas sobre o tema no país. Para então, mostrar e analisar os dados coletados, através de uma pesquisa empírica tendo como público alvo os funcionários da Universidade de Fortaleza. Palavras-chave: cordialidade; nepotismo; Sérgio Buarque de Holanda. Abstratct The theory of brazilian cordiality not explain itself, and this is a reflection marked, historically, by the controversy. Developed from the concept of "cordial man", an expression created by Rui Ribeiro Couto and used by Sérgio Buarque de Holanda, the concept requires accurate analysis for your understanding. For Holanda, among other things, it would have transitional characteristics and tend to disappear from the formal relations in the country. However, examples of cordiality in brazilian society seem counter the predictions of the historian. There is a persistent presence of cordiality that would be manifested by the practice of nepotism. This work aims to throw light on the relationship between cordiality and nepotism as well as ascertain the level of acceptance of this practice by brazilian society. For both, a reflection on the concept of cordiality under the optic of Ribeiro Couto and Holanda. Subsequently, discussed the concept of nepotism and were given some information collected on the subject in the country. To then display and analyze data collected through an empirical research with the target audience of the officials of the University of Fortaleza. Keywords: cordiality; nepotism; Sérgio Buarque de Holanda.

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160 1 – Introdução Engana-se quem pensa que a teoria da cordialidade brasileira, nas ciências humanas, explica-se por si mesma. Ao contrário, essa é uma reflexão marcada pela polêmica e pela própria cordialidade, desde os anos de 1930. Desenvolvido a partir da noção de “homem cordial”, expressão tomada emprestada pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda (19021982) ao poeta e embaixador Rui Ribeiro Couto (1898-1963), o conceito já nasceu polêmico. As dificuldades de interpretação, intrínsecas ao conceito, aqueceram as contendas político-culturais que perduraram na década de 1940 e em meio a debates suscitados pela 2ª edição de sua obra Raízes do Brasil, Holanda publicou em 1948, uma carta na qual ressalta a historicidade da cordialidade: “Por fim quero frisar, ainda uma vez, que a própria cordialidade não me parece virtude definitiva e cabal que tenha de prevalecer independentemente das circunstâncias mutáveis de nossa existência [...]. Com a progressiva urbanização [...] o homem cordial se acha fadado provavelmente a desaparecer, onde ainda não desapareceu de todo." (Holanda, 1990, p.145-146)

Passados sessenta anos, os exemplos de cordialidade na sociedade brasileira parecem persistir e contrariar as previsões do historiador de que tal fenômeno tenderia a desaparecer das relações formais. Observa-se nas esferas da vida pública uma persistente presença desta cordialidade, que seria manifestada, dentre outras formas, pela prática do nepotismo que afronta a afirmação da meritocracia. Mesmo combatida por setores da sociedade a prática estaria consolidada em todos os poderes da República. Esta tese nos remete aos seguintes questionamentos: seria o nepotismo brasileiro uma manifestação da cordialidade conforme descrita por Holanda em Raízes do Brasil? Por que o nepotismo ainda não foi erradicado da vida pública nacional? Seria porque a sociedade, a despeito da grita de algumas vozes esparsas, ainda o referenda? Qual o grau de aceitação pela sociedade brasileira da prática nepotista? Este trabalho tem o objetivo de lançar luzes sobre estas questões. Para tanto, realizar-se-á uma breve comparação entre o conceito de cordialidade sob a ótica de Ribeiro Couto e a de Holanda, a partir dos textos destes autores da década de 1930. Posteriormente, será abordado o conceito de nepotismo e apresentadas informações coletadas sobre o tema no país, para então, mostrar e analisar os dados coletados, através de uma pesquisa empírica, tipo enquête (survey), quantitativa e qualitativa de campo, tendo como público alvo os funcionários da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), cuja finalidade foi apreciar o grau de aceitação à prática do nepotismo. 2 – Metodologia O trabalho foi dividido em duas etapas: inicialmente foi realizada uma pesquisa documental a partir de textos de Rui Ribeiro Couto e Sérgio Buarque Holanda sobre o

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161 conceito de cordialidade e as diferentes abordagens do assunto, com o intuito de se verificar se o nepotismo seria uma das manifestações da cordialidade brasileira. Em um segundo momento realizou-se uma pesquisa documental sobre a história do nepotismo tanto no Brasil quanto em alguns outros países, para se obter alguns parâmetros para comparação sobre esta prática. Finalmente, realizou-se uma pesquisa empírica do tipo enquête, quantitativa e qualitativa de campo, no período de 10 a 28 de abril de 2008, cujo público alvo foram os funcionários da UNIFOR. Pesquisa composta de um questionário com duas perguntas abertas, o qual foi enviado e respondido por e-mail. 3 – Resultados e discussão 3.1 – Cordialidades à brasileira É possível entender a polêmica em torno da teoria da cordialidade brasileira examinando, muito sinteticamente, o sentido dela nos textos que fundam o debate. 3.1.1 – Ribeiro Couto e seu Homem Cordial Ribeiro Couto passou parte de sua vida na França, país no qual exerceu a função de embaixador. Lá, recebeu do amigo Manuel Bandeira os três primeiros números da revista Monterrey: Correo Literario de Alfonso Reyes, editada pelo próprio. Espontaneamente, segundo Élvia Bezerra, ele escreveu a D. Alfonso cumprimentando-o pela revista. Nessa carta surge pela primeira vez a expressão “Homem Cordial”. A carta está em Bezerra (2005, p.125-126, grifo nosso), num elegante artigo intitulado “Ribeiro Couto e o Homem Cordial”. “[...] É da fusão do homem ibérico com a terra nova e as raças primitivas, que deve sair o ‘sentido americano’(latino), a raça nova produto de uma cultura e de uma intuição virgem — o Homem Cordial. Nossa América, a meu ver, está dando ao mundo isto: o Homem Cordial. O egoísmo europeu, batido de perseguições religiosas e catástrofes econômicas, tocado pela intolerância e pela fome, atravessou os mares e fundou ali, no leito das mulheres primitivas e em toda vastidão generosa daquela terra, a Família dos Homens Cordiais, esses que se distinguem do resto da humanidade por duas características essencialmente americanas: o espírito hospitaleiro e a tendência à credulidade. [...] Somos povos que gostam de conversar, de fumar parados, de ouvir viola, de cantar modinhas, de amar com pudor, de convidar o estrangeiro a entrar para tomar café, de exclamar para o luar em noites claras, à janela: — Mas que luar magnífico! Essa atitude de disponibilidade sentimental é toda nossa, é ibero-americana... Observável nos nadas, nas pequeninas insignificâncias da vida de todos os dias, ela toma vulto aos olhos do crítico, pois são índices dessa Civilização Cordial que eu considero a contribuição da América Latina ao mundo.” Marselha, 7 - III – 931 Ribeiro Couto A cordialidade de Ribeiro Couto é uma construção identitária feita de hospitalidade, credulidade e contemplação. Oposta ao que seria uma identidade européia feita de

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162 suspicácia (do lat. suspicace: desconfiança), de egoísmo do lar fechado a quem passa e de intolerância. 3.1.2 – A cordialidade em Sérgio Buarque de Holanda A idéia de “Homem Cordial”, em Holanda, aparece pela primeira vez no ensaio Corpo e Alma do Brasil (1935) publicado na Revista Espelho. Depois, em 1936, assume a forma do capítulo 5 de Raízes do Brasil. A cordialidade é um enunciado que deriva da origem do Estado, ou a institucionalização da ordem pública, em oposição à ordem doméstica, não instituída como um sistema de normas legais. “O Estado não é uma ampliação do círculo familiar. [...] Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição”. Por isso, citando Antígona de Sófocles, escreve: “E todo aquele que acima da Pátria | Coloca seu amigo, eu o terei por nulo”. (HOLANDA, 1995, p. 141). Para o historiador a cordialidade é caracterizada por: “A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria um engano supor que essas virtudes possam significar ‘boas maneiras’, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. [...] Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez”. (HOLANDA, 1995, p.146-147 e p.204-205, grifo nosso).

Holanda não se opõe a Ribeiro Couto. Ele vê na cordialidade uma conseqüência ruim dessa manifestação como a eliminação deliberada dos juízos éticos. A cordialidade brasileira é a primazia da emoção no trato com a esfera pública e privada. Ela passa ao lado o que é certo e justo através dos atalhos das “técnicas de bondade”. “[...] a palavra ‘cordial’ há de ser tomada, neste caso, em seu sentido exato e estritamente etimológico [...] e se antepõe à cordialidade assim entendida o ‘capital sentimento’ dos brasileiros, que será a bondade e até mesmo certa ‘técnica da bondade’, ‘uma bondade mais envolvente, mais política, mais assimiladora’[...] pela expressão ‘cordialidade’, se eliminam aqui, deliberadamente, os juízos éticos e as intenções apologéticas [...] essa cordialidade, estranha, por um lado, a todo formalismo e convencionalismo social, não abrange, por outro, apenas e obrigatoriamente, sentimentos positivos e de concórdia. A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade [...]”.

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163 Para Cardoso (1993, p.28-29), “[...] Sérgio está fazendo uma crítica, e não o endeusamento das ‘virtudes brasileiras’, porque o homem cordial, para ele, é o homem do coração, que se opõem ao homem da razão e cordial não quer dizer ‘bom’, quer dizer da ‘emoção’ e a emoção perturba o estabelecimento das regras gerais, formais, democráticas. [...] Com o conceito, [ele] [...] está mostrando que esta ‘cordialidade’, na verdade, é uma maneira de reter vantagens individuais”.

A cordialidade vislumbrada pelo historiador produz empecilhos à afirmação do formalismo como ferramenta democrática de acesso meritório aos melhores postos. Neste sentido, o nepotismo poderia ser considerado uma manifestação desta cordialidade buarquiana. A questão era atual no Brasil da década 1930 e permanece válida nos primórdios do século XXI. Os casos de nepotismo presentes em todos os poderes da República não nos permitem inferir de forma contrária 3.2 – O nepotismo como sinal da cordialidade O conceito de nepotismo antecede à cordialidade. Para Bellow (2003), o termo tem sua origem no século XIV e foi utilizado para descrever a escolha dos cardeais na Igreja Católica Romana. O cardinalício era reservado, normalmente, a parentes do Papa, muito dos quais seus filhos ilegítimos. Posteriormente, por nepotismo, passou-se a designar a prática, tida como injusta, de dar preferência a parente em detrimento de outrem mais gabaritado. Para Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998, p.291-292), o nepotismo é um dos três tipos de corrupção e caracteriza-se como “[...] concessão de empregos ou contratos públicos baseado não no mérito, mas nas relações de parentela”. Não obstante a longevidade da prática nepotista, poucas pesquisas foram produzidas tendo o nepotismo como objeto. Sabe-se apenas, que a prática estaria presente em todos os níveis e em todas as sociedades, independentemente de suas ideologias ou sistemas políticos. Esta afirmação de Bellow (2003) é verificável, pelo menos no caso das prefeituras municipais brasileiras. De fato, os dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que o nepotismo é vastamente difundido. Nos 5.564 municípios brasileiros trabalhariam um total de 380.629 funcionários em cargos de confiança subordinados ao Poder Executivo. Não existem dados fidedignos sobre estes tipos de cargos nas demais níveis do poder. Apesar disto, órgãos de imprensa, como o jornal O Estado de São Paulo, estimam em até 170 mil, os funcionários nestas condições, nas esferas estadual e federal, em todos os poderes da República. Como fator de comparação, elenca-se o caso dos Estados Unidos, no qual a existência de um número bastante modesto de cargos de confiança no Executivo federal, algo em torno de 2 mil, deixa diminutas as chances à prática de nepotismo. Naquele país, o

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164 denominado US Code, texto que abriga o regimento do serviço público, em seu capítulo 5, determina que um funcionário público não pode nomear, empregar, promover ou defender a nomeação e promoção de parentes na mesma agência em que trabalha ou sobre a qual tem jurisdição. Estas barreiras impostas não impedem, entretanto, que homens públicos empreguem parentes em suas equipes de trabalho. Mas tal prática é realizada, aparentemente, às claras, e sob os olhares atentos da sociedade, diferentemente do que ocorre no Brasil. Por aqui, o nepotismo é utilizado, amplamente, desde os primórdios da República, para fins político-eleitorais. Assim, desde de 1889, assiste-se a uma troca de funcionários públicos quando da permuta dos partidos políticos no poder. Este processo de substituição de mão-de-obra já foi mais radical, até que, a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), em 1938, e a instituição da obrigatoriedade do concurso público, impuseram um freio à prática nepotista, limitando-a aos cargos de confiança. Mesmo assim, o número presumido de funcionários não concursados, nas autarquias federais é considerado, por especialistas, ainda bem elevado. Em toda democracia institucional existem cargos comissionados. A dificuldade é a imposição de limites a eles. A Constituição Federal de 1988, em seu capítulo VII, artigo 37, manteve uma lacuna que é utilizada como mecanismo para burlar a obrigatoriedade do concurso público. Determina-se que as nomeações devam atender a princípios de “[...] impessoalidade, moralidade e competência [...] ressalvadas as nomeações para cargo em comissão [...]”, sem impor limites definidos. Apesar de esforços como o do Supremo Tribunal Federal (STF) que considera, desde agosto de 2008, a prática do nepotismo ofensiva aos princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade, parece-me existir uma indiferença diante do tema, que mesmo exposto, amiúde, pela imprensa nacional, não tem obtido ressonância junto à sociedade. Adiante, procurar-se-á mostrar, através de dados coletados na pesquisa, que um dos motivos deste possível desinteresse e da consequente falta de vontade política de enfrentar o nepotismo, pode advir do fato dele ser referendado pela sociedade brasileira. 3.3 – A pesquisa A pesquisa foi aplicada entre os dias 10 a 28 de abril de 2008. Foi elaborado um questionário, o qual foi enviado, por correio eletrônico, a todos os professores e funcionários da UNIFOR. Desses, a metade é professor com mestrado e/ou doutorado. A outra metade tem curso superior. Neste questionário constavam duas perguntas abertas: 1.Qual sua cidade natal? 2.Se você fosse Prefeito(a) de sua cidade você daria emprego a parentes em sua administração?

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165 Responderam ao questionário 171 professores e funcionários, numa amostra de cerca de 7% do total de funcionários empregados na UNIFOR. Esta amostra probabilística tem um erro de 7% para mais ou para menos. As respostas foram separadas, para melhor análise dos dados coletados, em função dos municípios natais dos respondentes. 3.3.1 – Apresentação de resultados Tabela 1 – Distribuição das respostas por tamanho da pop. dos municípios População SIM NÃO Qte respostas Taxa (%) Qte respostas Taxa (%) De 20.001 a 50.000 10 67 5 33 De 50.001 a 100.000 9 60 6 40 De 100.001 a 500.000 6 55 5 45 Acima de 500.000 68 52 62 48 Fonte: própria pesquisa Observa-se na tabela 1 que dos 171 respondentes, a imensa maioria, ou seja, 130 respostas, informou que possuía como cidade natal municípios acima de 500 mil habitantes. Tal resultado já era esperado pelo fato da universidade, local de aplicação dos questionários, localizar-se na cidade de Fortaleza-CE, a qual possui, segundo dados da Contagem da População 2007 do IBGE, 2.431.415 habitantes. Os demais respondentes (41) dividiram-se, praticamente, na mesma proporção entre as outras faixas municipais. Não houve respondentes de cidades natais menores que 20 mil habitantes. Nota-se que em todas as faixas, a taxa percentual de respostas “SIM” foi superior a correspondente taxa de “NÃO”, aqui consideradas como respostas afirmativas todas as demais que não as explicitamente contrárias à prática do nepotismo. Esta constatação nos leva a inferir que a prática do nepotismo é referendada no universo selecionado, independentemente do município de origem. Apesar da aceitação geral da prática nepótica, é relevante igualmente mostrar o gradual aumento da taxa de respondentes contrários ao nepotismo com o acréscimo da população dos municípios: 33%, 40%, 45% e 48%, o que corroboraria o exposto por HOLANDA (1990) ao afirmar que a progressiva urbanização tenderia a fazer desaparecer as manifestações de cordialidade, tendência que parece existir, apesar dos números não permitirem uma conclusão cabal. Tabela 2 – Distribuição total das respostas Tipo de resposta Qte respostas Taxa (%) Sim 36 21 Sim com justificativa 53 31 Não 74 43 Não sabe ou não respondeu 8 5 Fonte: própria pesquisa

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166 Na tabela 2 o quantitativo de respostas negativas à questão formulada supera o de respostas afirmativas numa proporção de 43% a 21%. A proporção se inverte para 52% a 43%, quando somadas ao “SIM” puro e simples, as respostas afirmativas, porém justificadas. Donde se pode inferir, que na amostra, as pessoas admitem a prática do nepotismo, conforme descrito anteriormente, ainda que ressalvadas algumas condições que serão aprofundadas na tabela 3. É importante ressaltar também, que não houve respostas justificadas para aqueles optaram por responder negativamente à opção pelo nepotismo. De maneira oposta houve uma maioria de respostas “SIM” justificadas, quando comparadas àqueles que optaram por uma resposta afirmativa simples (proporção de 31% a 21%). Pode-se supor, que a prática nepotista, ainda que aceita pela maioria, é recriminada por parcela significativa da sociedade, como os órgãos imprensa, por exemplo, o que poderia ocasionar um certo incômodo aos respondentes ao optar pelo “SIM”, e os conduziria a uma necessária justificativa para sustentar sua opção. Tabela 3 – Distribuição das respostas afirmativas justificadas Tipo de justificativa Sim, desde que houvesse competência para o cargo. Sim, dentro da legalidade. Sim, desde que houvesse confiança. Sim, desde que houvesse competência e dentro da legalidade. Fonte: própria pesquisa

Qte respostas Taxa (%) 36 68 7 13 7 13 3 6

Competência foi citada por 74% dos respondentes como necessária para a concessão do emprego público. Seguida pela legalidade com 19%. O predicado confiança obteve somente 13%. Apesar da primazia da competência sobre os demais predicados, nenhuma das repostas “SIM” justificadas citou outra maneira de verificação da capacidade do candidato diversa da existente por meio do concurso público. Quanto à legalidade, o artigo 37 da Carta Magna não estabelece limites ao número de cargos comissionados, desta forma, a priori, todas as contratações seriam legais, o que não atenuaria a tendência de cada respondente à prática nepotista. O predicado confiança talvez seja, dentre os citados, aquele que mais se aproxime da cordialidade sob a ótica buarquiana. Afinal, como aferir o grau de confiança despertado em outrem? A confiança, ou a falta dela estaria, portanto, ligada, em princípio, a práticas cordiais que prescindem da racionalidade.

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167 4 – Conclusão Realizar um estudo empírico sobre a cordialidade brasileira possui complicações em virtude da dificuldade em mensurá-la. Desta forma, fez-se necessário, para implementar a pesquisa, lançar mão de uma de suas possíveis manifestações: o nepotismo. Tal constatação foi auferida após pesquisa documental (com textos de Ribeiro Couto e Holanda) e empírica (tipo enquête com funcionários da UNIFOR). A primeira parte do trabalho ofertou os elementos para se pensar o nepotismo como uma manifestação desta cordialidade. Portanto, através dele poderíamos determinar se a sociedade brasileira seria ou não cordial tal qual conceituou Holanda. Aspecto constatado na pesquisa de campo, haja vista que no universo selecionado 52% da amostra admitiu a possibilidade de empregar parentes no serviço público, contra 43% que refutaram tal prática, isto, independentemente, do tamanho da população dos municípios de origem dos pesquisados. Portanto, tomando como parâmetro os pesquisados neste estudo, é possível se inferir que a cordialidade ainda se faz presente na sociedade brasileira a despeito das previsões de Holanda em 1948. Referências BELLOW, Adam. In praise of nepotism: a natural history. New York: Doubleday, 2003. BEZERRA, Elvia. Ribeiro Couto e o homem cordial. Revista Brasileira. n.44, p. 123-130.jul-agoset.2005.Disponível em: . Acesso em: 06 abr.2008. BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola, PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política vol 1. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1998. CARDOSO, Fernando Henrique. Os livros que inventaram o Brasil. Novos Estudos CEBRAP n. 37, p. 21-35, nov. 1993. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Disponível em: .Acesso em: 10 abr.2008. FILHO, Gabriel Manzano. País tem 524 mil cargos de confiança, que emperram luta contra nepotismo. O Estado de São Paulo, São Paulo, 26 fev.2006. Seção Nacional. Disponível em: . Acesso em: 04 abr.2008. HOLANDA, Sérgio Buarque de.Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Carta a Cassiano Ricardo. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1990. LINHARES, Juliana. Obrigado, papai. Veja. São Paulo, 20 abr. 2005. Seção Brasil. Disponível em: . Acesso em: 17 abr.2008. PERFIL DOS MUNICÍPIOS BRASILEIROS 2005.Disponível em Acesso em: 04 abr.2008. POPULAÇÕES RESIDENTES SEGUNDO OS MUNICÍPIOS. Disponível em: .Acesso em: 16 abr.2008. US CODE. Disponível em: . Acesso em: 22 abr.2008.

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168 O FUNCIONAMENTO DA MEMÓRIA DISCURSIVA EM A SECOND LIFE PETISTA[1] Welisson Marques[2]

Professor da UFTM – Universidade Federal do Triângulo Mineiro e da Universidade de Uberaba em Língua Inglesa e Lingüística Mestrando em Estudos Lingüísticos – Universidade Federal de Uberlândia - MG

O enunciado circula, serve, se esquiva, permite ou impede a realização de um desejo, é dócil ou rebelde a interesses, entra na ordem das contestações e das lutas, torna-se tema de apropriação ou de rivalidade. (FOUCAULT, 1995) E digam o que disserem, na vida científica os problemas não se formulam de modo espontâneo. É justamente esse sentido do problema que caracteriza o verdadeiro espírito científico. Para o espírito científico, todo conhecimento é resposta a uma pergunta. Se não há pergunta, não pode haver conhecimento científico. Nada é evidente. Nada é gratuito. Tudo é construído. (BACHELARD, 1996, p. 38). Resumo Este artigo, vinculado ao projeto de Pesquisa: “A CONSTITUIÇÃO DO(S) SUJEITO(S) NAS INSCRIÇÕES ENUNCIATIVAS DA REVISTA VEJA NO DISCURSO POLÍTICO AO SIGNIFICAREM O PARTIDO DOS TRABALHADORES”, do Curso de Mestrado em Lingüística da Universidade Federal de Uberlândia, se propõe a fazer uma breve análise de um artigo publicado na revista Veja acerca do Partido dos Trabalhadores em 12/09/2007. Nosso trabalho está pautado no construto teórico da Análise do Discurso de vertente francesa, voltandose principalmente para as noções de sujeito e sentido discursivos propostos por Pêcheux (1997), das noções de heterogeneidade enunciativa segundo Authier-Revuz (2004), dos conceitos de memória e intericonicidade segundo Courtine (2006), utilizando ainda os conceitos de polifonia e dialogismo de Bakhtin. Este trabalho voltar-se-á para uma breve análise, apresentando conclusões parciais. Palavras-chave: Análise do Discurso, Discurso Político, Revista Veja, PT Abstract This paper is connected with the project of research “THE CONSTITUTION OF THE SUBJECT(S) IN VEJA MAGAZINE IN THE POLITICAL DISCOURSE WHEN HE/THEY MEAN(S) THE BRAZILIAN LABOUR PARTY” of the Course of Federal Universtiy of Uberlândia and proposes to make a short analysis of an article published in Veja magazine about the Brazilian Labour Party on 12th September 2007. Our work is based mainly on the authors of French Discourse Analysis, using the notions of subject and discursive meaning proposed by Pêcheux (1997), the concepts of heterogenity according to Authier-Revuz (2004), the concepts of memory and intericonicity following Courtine’s reflections (2006), and also using the concepts of polifony and dialogism in Bakhtin (2002). This work focuses on a brief analysis bringing partial conclusions. Key-words: Discourse Analysis, Political Discourse, Veja Magazine, PT (Labour Party)

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169 1 – À guisa de introdução Tencionamos neste artigo realizar, após uma exposição dos postulados teóricos de base, a análise de alguns recortes de uma reportagem publicada na Revista Veja em 12/09/2007 intitulada A Second-Life Petista - Pelas idéias delirantes e pela tese de que o mensalão não existiu, o congresso do PT parece coisa do mundo virtual, que trata da temática Partido dos Trabalhadores vinculada à nossa Dissertação de Mestrado. 2 – Fundamentação Teórica O primeiro pilar do nosso arcabouço teórico, sobre o qual gostaríamos de refletir, é o de Memória Discursiva. Memória não se refere às lembranças que um indivíduo tem do passado. Segundo Courtine, o termo “memória discursiva” designa algo distinto de qualquer lembrança ou memorização psicológica. Tal noção diz respeito à “existência histórica do enunciado” no interior de práticas discursivas que são reguladas por aparelhos ideológicos. Ou seja, um texto se inscreve em uma Formação Discursiva (FD, doravante) em função de uma memória discursiva que retoma e do qual é parte. Sendo assim, quando uma determinada análise é realizada sob a ótica da Análise do Discurso de vertente francesa e, mais especificamente, nessa perspectiva de memória discursiva courtiniana, necessário é olhar para o aspecto histórico-social, para os elementos constitutivos da materialidade lingüística que se vinculam a FDs específicas: “O domínio de memória é constituído, assim, por um conjunto de seqüências que preexistem a um certo enunciado” (Possenti, 2004). Ou seja, a memória implica uma relação da linguagem com a história e pensá-la requer observar as relações conflituosas dos aspectos de historicidade com os processos da linguagem. Ainda trabalhando as conceituações de memória, Pêcheux (1990) a define como “um conjunto complexo, pré-existente e exterior ao organismo, constituído por uma série de ‘tecidos de índices legíveis’, que constitui um corpo sócio-histórico de traços” (1990, 162). Isto posto, entendemos que realizar uma análise sob tais perspectivas rompe com a tradição de análise de conteúdo. O que importa para a Análise do Discurso (AD) não é simplesmente explicar o que um texto contém ou quais informações o constituem, próprio das teorias da informação, mas sim que os enunciados fazem parte da história, retomam uma memória e que, em uma instância de enunciação específica, o enunciador vincula-se a uma FD específica. Concernente à relação história e memória, podemos sempre afirmar que há uma ligação íntima entre as duas. É impossível desvincular uma da outra, pois a primeira é constitutiva da segunda. Foucault (1995) apresenta a noção de ruptura como forma de compreender como os processos históricos são descontínuos. Essa descontinuidade histórica deslocada para a análise do discurso ajuda-nos a compreender os sentidos dos enunciados que, muitas vezes, são interpretados analisando o sócio-histórico, que não é

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170 linear, mas descontínuo e marcado por rupturas. Segundo esse mesmo autor, ruptura significa instaurar uma problemática nova ou uma mudança epistemológica. A título de exemplificação podemos utilizar as próprias conceituações relativas à AD, que rompem com várias concepções da lingüística, como, por exemplo, a do enunciado como sendo um propósito do autor, ou em relação ao sujeito que é denominado, em algumas lingüísticas textuais emissor, falante, produtor, sujeito empírico, etc. ou mesmo em relação ao sentido proposto pela filologia como sendo único e transparente. A AD rompe com estas e outras concepções. A AD rompe com o conceito de sentido dos enunciados como algo imanente, assim como ele é prescrito pelos dicionários. Para que os compreendamos, é necessário olhar para a história, como afirmado anteriormente, para os acontecimentos e os discursos produzidos na e pela história como forma de compreender suas formações, suas vinculações às entidades e grupos sociais e conseqüentemente às ideologias que interpelam tais discursos. Foucault (1995) propõe o método arqueológico como forma de interpretar os sentidos e podemos, grosso modo, resumir sua tese como uma proposta de explicitar a produção histórica do enunciado. Em relação ao método arqueológico, Gregolin (2004a) elucida o pensamento foucaultiano: [...] por meio da exposição dos conceitos envolvidos na análise arqueológica, Foucault mostra sua compreensão das relações que os discursos estabelecem com os sujeitos, com a História, com as práticas discursivas. Por serem produto dessas práticas, as maneiras de se utilizarem as possibilidades do discurso são reguladas, regulamentadas: não se pode, absolutamente, falar de uma coisa qualquer num lugar e tempo qualquer. Há, sempre, que se submeter à ordem do discurso. (GREGOLIN, 2004a, p. 96, grifos nossos).

Gregolin (2004b), ainda falando de Foucault, pontua que: [...] Foucault parte do primado da relação: as coisas só existem por relação, tudo é histórico, tudo depende de tudo (e não unicamente das relações de produção), explicar um objeto consiste em mostrar de que contexto histórico ele depende. Por isso, o discurso é o que realmente é dito, sem que o sujeito saiba que está dizendo outros sentidos do dizer (...) podemos pensar, com Foucault, que a produção dos sentidos é uma luta discursiva travada na trama tênue do tecido histórico de uma sociedade. (GREGOLIN, 2004b, p. 41).

Foucault (1995) se aproxima muito das concepções da nova história. Na Arqueologia do Saber, ele se afasta das noções de linearidade e continuidade advindas da História tradicional e apresenta os conceitos de descontinuidade, transformação e ruptura, conforme mencionado anteriormente, entre outros conceitos que são basilares em sua proposta para analisar o(s) discurso(s). Mas o que vem a ser essa nova história? Segundo Burke (1992) essa nova história

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171 traz uma transformação (talvez uma ruptura?) no paradigma historiográfico. Há uma mudança de abordagens em analisar a história. A história diz respeito não somente à política, mas a toda atividade humana. “O que era previamente considerado imutável é agora encarado como uma construção cultural sujeita a variações, tanto no tempo quanto no espaço” (BURKE, 1992, p. 11). Nessa nova perspectiva, percebemos uma preocupação em ver a história em sua totalidade e não somente narrativas contadas “de cima para baixo”. Analisar a cultura popular agora é também relevante em oposição à focalização unilateral de grandes feitos. Segundo a perspectiva tradicional os documentos oficiais eram colocados em um patamar acima de outras fontes, agora se busca uma maior variedade de evidências. De uma visão objetiva, volta-se para a heteroglossia. Certeau (2002), ao referir-se aos discursos, os define como históricos porque estão “ligados a operações e definidos por funcionamentos” e ainda que “também não se pode compreender o que dizem independentemente da prática de que resultam”. (CERTEAU, 2002, p. 32). Ora, é justamente essa relação do discurso com a história que são expostas por Foucault em sua Arqueologia e que influenciaram (ou inquietaram?) Michel Pêcheux posteriormente e, conseqüentemente, a AD como um todo. Os discursos nunca mais seriam analisados da maneira anterior. Em suma, é impossível pensarmos o discurso desvinculando-o de suas condições de produção, dos acontecimentos históricos, uma vez que para analisarmos o objeto da AD faz-se necessário olhar para a “a existência histórica do enunciado” como afirma Courtine e para os sentidos que são engendrados externamente e não dentro do próprio texto. Ademais, para trabalhar uma análise, devemos entender que o(s) discurso(s) dialoga(m) com outros, estão ligados a aspectos sociais, políticos e econômicos, são interpelados pela ideologia e que é preciso voltar-se para os aspectos históricos como forma de compreendê-los. Um enunciado consoante com Foucault (1995) será “dócil ou rebelde a interesses” segundo as posições nas quais os sujeitos se inscrevem. Isso é um pressuposto, não uma conclusão. Por fim, em relação à análise dos elementos não-verbais presentes no corpus, vamos analisá-los sob a ótica de Courtine (2006), que apresenta a noção de intericonicidade, que diz respeito às outras imagens que são ressurgidas (mentalmente) ou evocadas quando vemos ou simplesmente imaginamos uma imagem. 3 – Análise A partir dessas considerações, propomo-nos realizar uma breve análise de alguns recortes do artigo supramencionado, intitulado A Second Life do petismo – Pelas idéias delirantes e pela tese de que o mensalão não existiu, o congresso do PT parece coisa do mundo virtual. Nossa proposta é verificar como o sujeito discursivo se constitui ao significar o PT especificamente; embora acreditemos ser impossível desvincular a imagem dos políticos petistas daquela do próprio partido.

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172 Não pretendemos realizar uma análise quantitativa de dados, pois “analisar o maior número de marcas e de dados não significa compreender melhor o processo discursivo em questão” (Orlandi, 1989, p. 32). Dessa forma, focamos nossa análise em uma “exaustividade vertical” como definida por Orlandi, que leva “a conseqüências teóricas relevantes e não trata os dados como meras ilustrações”. Além disso, importa-nos retomar que o discurso político será sempre marcado por conflitos e embates e que através da materialidade lingüística apreendemos o(s) sujeito(s) e como ele(s) se constitui(em) e são interpelados por formações ideológicas específicas. Em primeiro lugar, gostaríamos de analisar a utilização do lexema second-life como forma de colocar os políticos filiados ao partido em questão em um lugar ideologicamente determinado. A escolha deste neologismo em referência ao PT é bastante relevante, uma vez que parece revelar como o sujeito enunciador se constitui em relação ao seu temaobjeto. Second life é um termo advindo da língua inglesa que significa “segunda vida”, lançado em 23 de junho de 2003 e que embora seja recente (ainda não se encontra seu significado em muitos dicionários), já é conhecido por todos aqueles que têm conhecimento das novas tecnologias e tende a crescer rapidamente em todo o mundo. É uma espécie de ambiente virtual em que internautas representam um papel numa espécie de jogo, sendo que esses jogadores criam uma imagem, um novo ícone de si próprios, os quais se denominam avatares. Os usuários criam esses avatares sobre si mesmos com qualidades e poderes que não possuem na vida real, ou seja, é uma brincadeira imaginária em que vale tudo, menos ser verdadeiro. Estima-se que, menos de cinco anos após sua criação, existem atualmente mais de 13 milhões de usuários registrados[3]. Nossa proposta é demonstrar que, com a utilização de tal lexema, o sujeito tenciona, não somente conspurcar a imagem petista, mas também tachá-lo de um partido alienado e descompromissado com as necessidades e problemas relevantes da sociedade. Diante dessa contextualização, lembremo-nos das palavras de Pêcheux ao afirmar que a memória refere-se a “um conjunto complexo, pré-existente e exterior ao organismo, constituído por uma série de ‘tecidos de índices legíveis’, que constitui um corpo sóciohistórico de traços”. Aplicando essa definição ao contexto enunciativo, ao observarmos a utilização deste lexema todo um conjunto complexo, anterior a tal unidade enunciativa é ativada, pois, como vimos, second-life faz alusão a um jogo virtual, embora não haja neste vencedores ou perdedores, cujos participantes assumem papéis virtuais, é uma brincadeira, com fins de diversão, eles estão descompromissados com a realidade, com a verdade, estão ociosos, são virtuais, talvez alienados, as conseqüências de seus atos no jogo não são relevantes, ou seja são inconseqüentes, representam personagens irreais. Isso posto, percebemos que ao utilizar o lexema em análise, todos os demais, grifados e a ele ligados, vinculam-se a toda uma memória que é retomada e constituem um

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173 corpo-sócio histórico de traços. Ao elucidar esses traços, Pêcheux (1990) esclarece que estes são ideológicos e referem-se ao “universo de representações e de crenças”. Ora, se esses traços são ideológicos eles retomam uma multiplicidade de sentidos, heterogêneos, mas que revelam a unidade de uma FD e, conseqüentemente, de formações ideológicas que interpelam o sujeito-enunciador em questão. É relevante explicitar que dentro da AD não poderíamos falar que um sujeitoenunciador é imparcial em relação a outro, embora esta seja uma enunciação típica do senso comum. Cada sujeito ao enunciar revela-se em posições que são marcadas sóciohistorico-ideologicamente. Dito de outra forma, as inscrições lexicais dos dizeres do sujeito discursivo revelarão a inscrição ideológica desse sujeito. Ora, estamos falando de ações e atitudes tomadas pelo Presidente da República e seus aliados. A idéia de estarem em um mundo virtual, como o sujeito-enunciador coloca, é na verdade metafórica, uma vez que significa que eles realmente estão sendo avatares políticos na realidade e não simplesmente cibernéticos. Há um deslocamento de lugares do virtual para o real que produz efeitos de sentido: de um jogo imaginário para um jogo político. Na verdade, os petistas são avatares, jogadores no jogo da vida real. Afinal, eles estão ocupados apenas com um objetivo: conquistar e manter o poder, se preciso à custa de reinventar a realidade. A tese de alienação vinculada ao lexema em análise é reforçada pela seguinte seqüência enunciativa: No campo eleitoral, o mundo virtual petista também colocou em curso uma realidade de faz-de-conta. Estar em uma realidade “de faz-de-conta” é o mesmo que estar alienado das questões que interessam, que realmente importam para a sociedade e o país. Nesses enunciados, há uma correlação clara desses políticos com o descompromisso, a alienação e a inconseqüência. Prova disso é a materialização destes elementos lexicais em toda superfície textual: há reincidência das palavras fantasia e delirante, second-life aparece três vezes, e os lexemas avatar(es) e virtual são utilizados quatro vezes cada um. Cada uma dessas unidades é carregada de ideologias, pois geram efeitos de sentidos negativos à imagem petista. Sendo assim, tomemos o lexema delirante como exemplo. É uma palavra ligada à insanidade mental. “O delírio, traduzido da palavra alemã Wahn ou Wahsinn é uma síndrome constituída por um conjunto de idéias mórbidas que traduzem uma alteração fundamental do juízo, no qual o doente crê com uma convicção inabalável. É freqüente em patologias do foro psiquiátrico, neurológico ou metabólico[4]”. Pesquisando na história, verificamos que este é um termo advindo da psiquiatria e da medicina, como define The Hutchinson Encyclopaedia – The Millenium Editon 2000 (1999, p. 303): O delírio na medicina é um estado de confusão aguda na qual o sujeito fica incoerente, descontrolado, e fora de contato com a realidade. É freqüentemente acompanhado por

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174 desilusões ou alucinações. O delírio pode ocorrer em doenças febris, algumas formas de doenças mentais, doenças cerebrais, e como resultado de intoxicação alcoólica ou de drogas. No alcoolismo crônico, os ataques de delírio são marcados por alucinações, transpiração, tremura, e ansiedade que pode(m) persistir por vários dias[5]. (grifos e tradução nossos). Ainda vinculando nossa análise à memória discursiva, interessa-nos retomar a memória vinculada ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Lula nasceu em Garanhuns no estado do Pernambuco em 1945. Em 1952, ou seja, ainda criança viajou com sua mãe e os seis irmãos para a cidade de São Paulo em um pau-de-arara durante treze dias. Lá estudou e conseguiu concluir o curso de torneiro mecânico pelo Senai, em nível técnico, integrandose ao sindicato dos metalúrgicos posteriormente. Sua vida não foi fácil. Seus pais se separaram pouco depois de chegarem a São Paulo. Morou na periferia e, para sobreviver, vendia tapioca nas ruas. Teve problemas de relacionamento com o pai, o qual foi enterrado como indigente. Diante desta sucinta exposição, deparamo-nos aqui com a personificação de um homem que espelha um sujeito (sob a perspectiva pecheutiana) vítima de preconceito no Brasil e que coloca em funcionamento toda uma memória sócio-histórico-ideológica: a do homem pobre, nordestino, sem curso superior e, portanto incapaz de ocupar o cargo de maior importância do executivo. A própria Revista Veja, em artigo publicado na edição 1775 de 30/10/2002, logo após sua vitória presidencial declarou que o mesmo venceu a lógica que condenou tantos como ele à exclusão como o de ter virado de cabeça para baixo o script da trajetória política convencional. Lula, como todo indivíduo, é a representação de um sujeito sócio-histórico marcado ideologicamente, pois lembremo-nos de que o sujeito (segundo a perspectiva da AD) refere-se a um sujeito inserido em uma conjuntura sócio-histórica-ideológica cuja voz é constituída de um conjunto de vozes sociais. Compreender o sujeito discursivo requer compreender quais são as vozes sociais que se fazem presentes em sua voz. (FERNANDES, 2007, p. 35).

Em busca de compreender como o sujeito-enunciador se constitui ao significar o PT e os políticos a ele filiados, chama-nos atenção outro recorte enunciativo. A afirmação de fantasia travestida de nobreza referindo-se à proposta partidária em abrir mão da candidatura própria à Presidência da República em 2010 ecoa a(s) voz(es) de (um) sujeito(s) que se coloca(m) em oposição ao sujeito descrito no parágrafo anterior, devido às lutas de classes (ou para evitar polêmicas diante do contexto político-social atual preferimos utilizar o termo “lutas pelo poder”): Seria Lula um plebeu desejando ser nobre? Ou será que ele já se colocou como nobre (pois já fora eleito) mas não deveria sê-lo? As seguintes declarações parecem reforçar a tese de que ele não tem capacidade, ou as qualidades reais como descrito pelo sujeito em análise, para ocupar tal lugar (ser Presidente da República) devido a sua posição constituída como sujeito sócio-histórico: O Partido dos Trabalhadores está vivendo um momento, digamos, Second Life, aquela brincadeira da internet em que as pessoas criam para si mesmas avatares com as qualidades que elas não possuem na vida real. Ainda a utilização da locução

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175 adverbial um momento dá a idéia de temporalidade alusiva à temporalidade de um mandato presidencial. Certamente essa idéia de possuir qualidades virtuais é retomada na imagem atrelada à matéria. Há uma imagem dos “avatares” José Dirceu, José Genuíno, do Presidente Lula e de Ciro Gomes que embora não sendo do PT, é aliado político, vestidos com terno e gravata em uma tela de computador. Neste ínterim, o presidente e seus companheiros estão diante de um dos símbolos mais importantes da nossa política, sinônimo de respeito e orgulho nacional: o Palácio do Planalto. É exatamente neste lugar que (somente) o presidente-avatar Lula aparece voando, ou seja, tem poderes e atributos que realmente não possui na vida real. A imagem lembra a tela de um videogame. Courtine (apud MILANEZ, 2006, p. 168) menciona que “toda imagem se inscreve numa cultura visual e essa cultura visual supõe a existência para o indivíduo de uma memória visual, de uma memória das imagens. Toda imagem tem um eco”. Dito de outra forma, nenhuma imagem (ou discurso) é neutra, ela tem uma razão de existir, pois se vincula ao que lhe é exterior, a elementos dispersos no social, ao histórico, está ligada a outras imagens-discursos, sendo assim é ideológica e ecoa sentidos. Essa memória das imagens se chama a história das imagens vistas, mas isso poderia ser também a memória das imagens sugeridas pela percepção exterior de uma imagem. Portanto, a noção de intericonicidade é uma noção complexa, porque ela supõe a relação de uma imagem externa, mas também interna. As imagens de lembranças, as imagens de memória, as imagens de impressão visual, armazenadas pelo indivíduo. Imagens que nos façam ressurgir outras imagens, mesmo que essas imagens sejam apenas vistas ou simplesmente imaginadas. (MILANEZ, 2006, p. 168).

Se, por um lado, os petistas têm poderes e qualidades neste mundo virtual, na prática, segundo o sujeito enunciador isso não acontece. Na verdade, essa imagem é uma auto-imagem petista esboçada sob a ótica do sujeito-enunciador. É uma virtualidade em conseguir grandes feitos, somente em um mundo imaginário, pois no mundo real isso é impossível, não é verdadeiro. Analisando a construção discursiva, compreendemos que os efeitos de sentido são possíveis a partir de toda uma memória que é retomada, a do sujeito-pobre-nordestinosem-curso-superior em uma posição que não é fácil de ser ocupada alguém que não advém de tal conjuntura econômica e sócio-histórica. Segundo Pêcheux (1999, p. 51) a imagem é um operador de memória social, sendo que comporta dentro dela um programa de leitura, um percurso escrito em outro lugar. Há ironia e irreverência no antagonismo criado diante do sujeito-capaz virtual versus o sujeito-incapaz do mundo real. A ironia é possível pela negação do que é afirmado ao colocar tais declarações no plano virtual, na second-life. Essa negação-afirmação perpassada pelo imaginário ao real acontece não somente no plano nãoverbal, mas também no verbal, especialmente quando se utiliza de layout específico com

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176 espaçamento duplo dividindo o texto em duas partes separadas pelo enunciado Enquanto isso na vida real... possibilitando esse efeito de sentido. O tom irônico que, na verdade, é constitutivo de embates ideológicos é revelador da posição-sujeito-enunciador [...] em sua Second Life, o PT é um partido ético, suas lideranças estão acima de qualquer suspeita e suas propostas têm legitimidade para resolver os grandes problemas do país. Dito de outra forma: o PT não é ético, suas lideranças são suspeitas e, por último, suas propostas são pífias, reles, sem legitimidade alguma para resolver os grandes problemas do país. Por fim, quando é colocado que o Brasil esperava que o partido, constrangido, no mínimo anunciasse alguma medida contra a corrupção, percebemos a posição assumida pelo sujeito enunciador com a utilização do verbo esperar no pretérito-imperfeito do indicativo demonstrando uma expectativa frustrada por parte do sujeito-Brasil. Percebe-se a voz do “outro” demonstrando o descentramento do “eu-Veja” e voltando-se para um sujeito coletivo, plural. 4 – Considerações Finais Por fim, percebemos que a partir das análises dos recortes desses enunciados podemos visualizar a posição do sujeito-enunciador e que o mesmo caracteriza-se pela oposição ao Partido dos Trabalhadores e ao governo Lula. Referências Bibliográficas BACHELARD, G. A formação do Espírito Científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. BURKE, Peter. Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro. In: ________. A Escrita da História – novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo, EDUNESP, 1992 (P. 7-37). CERTEAU, Michel de. A Operação Historiográfica. In: _________. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. COURTINE. J. J. O discurso inatingível: Marxismo e Lingüística (1965-1985). Cadernos de Tradução - No 6/jun., 1999. Porto Alegre: 1999, p. 5-18. _________. Os Deslizamentos do Espetáculo Político. In: GREGOLIN, Maria do Rosário (Org). Discurso e Mìdia – A Cultura do Espetáculo. São Carlos: Editora Claraluz, 2003, p. 21-34. LONARDONI, Marines. O Discurso da ascensão, auge e queda de Antônio Palocci, na ótica das capas de Veja. In: NAVARRO, Pedro (org). Estudos do texto e do discurso: mapeando conceitos e métodos. São Carlos: Editora Claraluz, 2006, p. 109-128. FERNANDES, Cleudemar Alves. Análise do Discurso: Reflexões Introdutórias. São Carlos: Editora Claraluz, 2007. FIORIN, José Luiz. Linguagem e Ideologia. São Paulo: Editora Ática, 1997. FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 6a edição. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1995. GREGOLIN, Maria do Rosário Valencise. O Sentido e suas movências. In: ____ (org). Análise do Discurso. Entornos e Sentidos. São Paulo, Araraquara, Unesp, 2001. _________. Foucault e Pêcheux na Análise do Discurso – Diálogos e Duelos. São Carlos, Editora Clara Luz, 2004a.

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