O Sintoma da \"Pós-política\"

July 24, 2017 | Autor: A. Rodrigues de M... | Categoria: Political Theory, Filosofía Política, Psicología Social, Psicologia Política
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O sintoma da Pós-política:
Os protestos atuais como sinal do esgotamento de um modelo político.

Para espanto de muitos, inclusive os reaça de plantão, o aumento de vinte centavos foi suficiente para desencadear uma onda de protestos contra os gerentes do transporte público. Uma pergunta que talvez muitos estejam fazendo, é: por que no transporte público? Talvez seja porque esse setor e esse direito (transformado em serviço), reúna e sintetiza a vivência de outros aspectos/direitos sociais fundamentais. Em um ônibus lotado, muitas vezes precário, se concentram trabalhadores pobres exaustos (que reclamam de não poder pagar menos para ir e vir repassar a mais-valia ao seu patrão), estudantes, em sua maioria de escola pública, pessoas indo ou voltando da fila do SUS, etc. Essa é a realidade cotidiana e heterogênia que um fato particular demonstra e se articula com um universal de uma totalidade maior. Em um único lugar se agrupam pessoas das mais variadas partes do funcionamento social sucateado. O que parece ser um mero acaso ou vacilo por parte dos empresários e do Estado, no caso, o aumento do valor da passagem, na verdade é uma contingência dentro de uma necessidade estrutural. De uma forma ou de outra em um tempo ou outro as contradições econômicas de mercado irão aparecer e se intensificar e gerar um desequilíbrio maior na política e na sociedade. É o que parece está acontecendo atualmente.
Pois bem, como esses reajustes se articulam na prática? Todo esse transtorno inicia-se em função de um círculo vicioso que envolve o transporte público, ele torna-se cada vez mais controlado pelas máfias empresariais oligopolistas. Círculo perpetuado e negligenciado durante muitos anos. Além do mais, uma série de fatores interdependentes se combinam para resultar toda essa confusão, o aumento da inflação, o custo dos insumos, números de passageiros pagantes, processo de desenvolvimento urbano, e a atratividade do modo de transporte privado, cada vez mais imperioso nas cidades, sobretudo agora pela medida do governo federal de redução do IPI incidente sobre os veículos automotores, isso se confirma quando o Ipea, revela que os subsídios para diretos ao transporte individual são 11 vezes maiores do que os concedidos ao transporte público urbano, desse modo os prefeitos isentam a inspeção veicular e ninguém subsidia os R$ 0,20.

É nesse sentido que a população em geral está sentindo o peso de uma inconsistência econômico-política que uma dada hora, apesar da fantasia ideológica que regula nossa realidade, se torna insustentável, incontrolável. É aqui que entra a ideia de sintoma, esse que é o que denuncia o que não anda bem no real, o corpo social, apesar de sua aparente harmonia e perfeição de natureza, chora e revolta com algo defeituoso e faltoso. Desse modo, o sintoma aponta a verdade na falha do saber e da ordem hegemônica, o que existe afirma seu oposto. Assim, se considerarmos o capitalismo como uma negação da humanidade, o sintoma deste, é a mais humana tentativa de posicionamento frente ao mal estar na civilização. Só que, se por um lado o sintoma é a necessidade de uma afirmação do gênero humano, do ponto de vista dos dominadores, a sua aparição implica urgentemente reamarrar uma estrutura que foi abalada. Isso implica necessariamente uma luta por uma superação ou manutenção. Uma questão imprescindível de se pensar nesse momento de agitação.
Ainda sobre o sintoma, seria cabível identifica-lo mediante a uma certa, fissura, de uma assimetria na maquina social da vida cotidiana, esta, para poder funcionar normalmente tem de excluir, ou recalcar uma evidência fundamental. No caso do Universal da ideologia liberal - igualdade, liberdade, propriedade privada, etc.- para ela ser eficiente é necessário relegar ao plano do implícito o fato de que o trabalhador "livre" ao vender sua força de trabalho perde qualquer liberdade possível, aliás, no fundo, ele só vende sua força de trabalho porque não é livre. Com o estabelecimento da sociedade burguesa, as relações de dominação e servidão são recalcadas pelo signo moderno do "sujeito de direito" e livre pra fazer contrato. Nesse aspecto o que é sintomático é o real não incluído na realidade vivida, portanto, ele é a própria luta de classes, o antagonismo fundante que sobredetermina os outros fenômenos sociais. Só que ele não aparece de forma positiva, a sua ausência é pré-condição necessária para a eficácia da ideologia e da realidade concreta. Portanto, uma contradição no plano da economia pode fazer emergir uma gama de comportamentos políticos que venham a negar e explicitar a insuficiência de um modelo de sociabilidade que parece coeso. Um dos imperativos do momento é fazer a transposição do mal estar generalizado na contemporaneidade, que aparece na forma singular de cada sujeito, expresso nas patologias da subjetividade em sofrimento existêncial e psíquico, para o sintoma na forma de multidão indignada a andar pelas ruas. Essa multidão dos indignados, no entanto, pode não ter consciência de si, quer dizer, pode não saber o por que de estar ali na rua, mas isso não desqualifica ou deslegitima os protestos, pois sua condição pode vir a ser consciência para si e passar de uma massa desorganizada para um levante popular organizado com objetivos claros.
Ademais, cabe situar essa revolta sintomática em uma conjuntura de participação política atual. Eu falo aqui da noção de pós-política, caracterizada como uma ausência do político como debate e luta por projetos de modelos sociais mais claros, ao passo que se sobressai uma postura tipicamente administrativa, de gestão das relações sociais e de mercado. Fica claro para nós a falsa participação de um modelo de democracia parlamentar, liberal representativo agravado ainda mais por essa participação no processo político pós-moderno, ilusório. Essa postura por parte do Estado brasileiro reduziu o palco das lutas e dos entraves de classe na medida em que beneficiou uma classe, a saber, a burguesia industrial nacional já abastada e transferiu renda de modo assistencialista para a camada popular. Isso gerou uma pequena mobilidade social extremamente propagandizada, elogiada por muitos, mas que dá sinais de esgotamento, uma vez que o governo atual apenas se serve em gestá-lo como continuísmo, sem um projeto político futuro realmente transformador. E talvez seja por isso, por essas rachaduras no edifício da burocracia administrativa do capital, se é que ele permite isso, os alardes de que a população despertou para a situação crítica que a assolava desde séculos de expoliação. E hoje focos de indignação se levantam consciente ou não, diante de um funcionamento antagônico e insustentável, onde o capital financeiro e especulativo, dita as regras para a política interna, onde os bancos são salvos pelo Estado constantemente depois da farra anárquica de mercado. O resultado disso nada mais é, pra quem acha pouco ainda, a saúde precarizada ao extremo, a educação sucateada e mercadológica e outros tantos direitos sociais inexistentes. Não há violência maior do que essa.
Quanto aos movimentos sociais, responsáveis pela organização dos revoltosos é interessante pensar quem compõe as massas indignas nas ruas, a saber, os jovens em sua grande maioria. Estes com variadas posturas políticas, alguns com clareza de causa, outros não, uns mais progressistas em certos temas, outros ainda conservadores. Uma maioria que não é homogênea, pelo contrário, é uma reunião de vários segmentos, boa parte de estudantes de classe média, os quais tem um maior acesso às produções intelectuais de cunho crítico (embora isso não lhes dê necessariamente o passaporte para fora da ideologia, como alguns pensam). No entanto, elas não tem o potencial político como o das classes exploradas, onde se encontram deveras excluídas do processo educacional, não tendo clareza dos processos políticos nem acesso à crítica ideológica, mas elas tem na prática elementos de recusa, negação e resistência, que mais do nunca necessitam de alianças políticas. Esse é o desafio dos movimentos sociais, travar um diálogo de coalizão cada vez maior com a classe trabalhadora mais pobre. São esses os verdadeiros agentes de qualquer possível transformação estrutural, pois são a maioria esmagodora diante da elite que controla o mercado e Estado.
Esse último tem se manifestado como o leviatã nos últimos protestos, não só hoje, mas como sempre na história. E quando se diz "3,20, é roubo" é um gesto que desloca a cisão legalidades/ilegalidades, a linha demarcatória dessa divisão desaparece e esse binômio é fundante das formas jurídicas consolidadas. Nesse caso é interessante observar a ordem e a norma de passividade para os manifestantes: abandonem a violência! Violência esta, que o Estado jamais renuncia. Por isso e outras coisas mais, é preciso abandonar a sacralização da violência; nada mais de culto ao Estado de Direito; nada mais de sujeição às formas jurídicas que escondem o grande mapa das ilegalidades. O que essas imagens de agressão por parte dos policiais aos manifestantes transmite é a obscenidade da violência bárbara que sustenta a face pública da lei e da ordem. Assim, todo monumento ou apelo à civilização é reflexo da barbárie. Ao se recorrer para atitudes civilizadas demagogas, requer saber, que todo ser civilizado é potencialmente um bárbaro. Nesse sentido, o grande Outro do Estado é falhado e inconsistente, ele necessita de um suplemento violento subjacente, portanto, tem rachaduras e sintomas, e não queiramos consertá-lo, pois é impossível, ele já nasceu não-todo. Nesse momento de efervescência de contestação, há de se emergir espaço e oportunidades para maiores reflexões e construção de ideias para além do conformismo e sermos capazes de fazer uma pergunta ontológica básica, por que o mundo é dessa forma e não de outra? Outra pergunta, agora psicanalítica, também se faz pertinente: o que querem esses jovens? Espero que não seja e queiram como os de 68, de forma histérica apelavam para um novo mestre e tiveram.
Tendo isso em vista, é preciso ir além das micropolíticas reformistas e de lutas fragmentadas, cada grupo a seu modo afirmando sua "identidade historicamente negada", é necessário universalizá-la, generalizar as indignações. E essa luta não é contra indivíduos corruptos reais, mas contra aqueles que estão no poder em geral, contra sua autoridade, contra a ordem global e contra a mistificação ideológica que a sustenta. Engajar nessa luta significa endossar a fórmula de Alan Badiou:"mais vale correr o risco e se envolver em fidelidade num evento-verdade, mesmo que essa fidelidade termine em catástrofe, do que vegetar na sobrevivência "hedonista-utilitária" de um mundo vazio e desumano.

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