O sistema tem que girar - uma leitura do Marketing sob a ótica marxista

June 4, 2017 | Autor: Camila Craveiro | Categoria: Marketing, Publicidade, Marxismo
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O sistema tem que girar – uma leitura do Marketing sob a ótica marxista

Camila Craveiro

Desde que entendemos a função do Marketing no mundo, não nos é possível deslocá-lo do sistema capitalista e, aparentemente, optamos por entender este sistema como algo dado, naturalizado e necessário à manutenção da economia. E, assim, nós, publicitários/profissionais de Marketing, nos colocamos a favor desta manutenção - para nossa própria sobrevivência profissional. Traduzindo, nos termos usados por Marx, atuamos enquanto forma ideológica, escusando a Publicidade para reproduzir as razões pelas quais o mercado não pode parar.

Por isso, talvez seja tão difícil nossa confrontação com a teoria marxista. Primeiramente é relevante pontuar o entendimento de que se trata de uma teoria que é, ao mesmo tempo, um tratado científico e político, onde fica clara a posição do autor, que se compromete com a causa do proletariado.

Importante ressaltar que a perspectiva de classe, em Marx, não se dá a partir da renda, mas da condição do indivíduo, que tem de sobreviver por meio da venda de sua força de trabalho. Os que detém os meios de produção (nomeadamente, a burguesia) opõem-se aos interesses do proletariado, explorando sua força de trabalho de maneira a gerar a acumulação do capital, em uma relação de mais valia. O capital acumulado é reinvestido na produção e o salário pago é sempre inferior ao que o trabalhador produz. Portanto, como afirmado pelo autor, o capitalismo desumaniza as relações, pois sua lógica reside na competição e na exploração.

Aqui é onde se situa a primeira contradição: nosso compromisso é com a burguesia, nossa prestação de serviço (ou a venda da nossa força de trabalho)

serve para aumentar a mais-valia daqueles que detém os meios de produção. Ao colocar um produto em circulação, a burguesia nos contrata a fim de que sejamos capazes de estender a vida útil dessa mercadoria e o alcance dela entre os consumidores. Fazemos isso por meio de um trabalho que une criatividade e planejamento e, ao situarmo-nos muitas vezes no nível estratégico das decisões (uma vez que a Comunicação precisa ser assim entendida), nutrimos a ilusão de estarmos fisicamente distantes do proletariado.

Se, como afirma Marx, a lógica capitalista é a da competição, afirmamos reiteradamente esta noção em nossas criações. Basta ver as relações de poder/status/inveja que orientam a maioria dos nossos argumentos de criação. A linha segue esses exemplos: você terá muito mais sucesso entre seus pares se comprar o carro X; será uma mulher extremamente desejada ao fazer uso dos produtos de beleza da marca Y; seus colegas terão certeza de que você está no topo se adquirir uma casa no condomínio Z....e por aí vai. Como afirma Haug (1997) acerca das estratégias publicitárias, na obra Crítica da estética da mercadoria: “(...) a sua tática consiste em oferecer as respectivas mercadorias aos seus destinatários como meio para tornarem a si mesmo vendáveis” (p. 106).

Voltando a Marx, sua visão é a de que não haveria perspectiva de mobilidade social por parte da classe revolucionária, algo que não seria possível ao analisarmos que o materialismo histórico, método de análise do autor, considera o indivíduo no coletivo, atuando sob circunstâncias legadas e transmitidas. A sociedade transforma o indivíduo e é por ele transformada, em uma relação dialética. Consequentemente, se o indivíduo nasce na classe proletária, muito do seu contexto e das suas possibilidades já lhe foram legados historicamente. Modificar essa realidade é tarefa muito mais coletiva do que pessoal. Entretanto, o marketing opera com esse conceito às avessas: a ascensão social é individual,

plenamente alcançável e a sua fórmula passa, necessariamente, pela capacidade de consumo. Marx entende o trabalho como práxis, atividade humana sensível e, por isso, transformadora. O trabalho é a conjugação do pensamento e da ação. Não é possível que haja relações sociais sem o trabalho. Como já se mencionou, o ponto de partida de suas análises é a classe trabalhadora e o meio que o autor encontra para justificar a manutenção da exploração dessa classe é de que há uma necessidade de manter oculta a relação entre a essência da propriedade privada, o trabalho, que se torna a essência da riqueza. Interessa à classe dominante manter oculta essa relação, afinal é apenas por meio da tomada de consciência por parte da classe proletária que haveria possibilidade de se romper com o sistema capitalista.

Nesse momento é que se inserem as formas ideológicas. Essas formas podem ser do tipo jurídicas, religiosas, estéticas, morais...e constituem-se enquanto ferramentas capazes de manter distante a capacidade que o proletariado teria de modificar a realidade objetiva. A classe dominante e o Estado (que está a seu favor) utilizam-se de normas legais, de argumentos religiosos, morais, para justificar a exploração e naturalizar esse processo – o que torna mais distante a tomada de consciência.

Não nos resta dúvidas de que a Publicidade e o Marketing se inserem enquanto formas ideológicas que buscam manter a situação vigente. Os valores disseminados via comunicação das grandes marcas deixam claro que é apenas por meio do consumo que se consegue alcançar um lugar de destaque na sociedade. O sistema capitalista, ao desumanizar as pessoas, passou a humanizar marcas e produtos, conferindo-lhes características subjetivas (fala-se em “alma”, no “coração” da marca). Há, inclusive, um departamento próprio para gerir esse

conteúdo, o Branding. E o que faz esse setor? Trata de “agregar valor”, de aumentar o capital simbólico da marca. É o fetiche da mercadoria em curso. A esse respeito, Haug (1997) pontua que: “(...) as mercadorias retiram a sua linguagem estética do galanteio amoroso entre os seres humanos. A relação então se inverte, e as pessoas retiram sua expressão estética das mercadorias” (p. 30). O produto ganha vida própria, distancia-se cada vez mais dos traços, dos índices que remontam ao trabalho humano que o fizeram. Por isso, muitas marcas não tem suas vendas abaladas, mesmo tendo sido divulgado que fizeram uso de trabalho escravo (vide Zara, Le lis blanc, Ellus...), por exemplo. Há uma anuência por parte do consumidor, que não vê ou não quer enxergar o trabalho humano que engendrou aquela mercadoria.

Enfim, se optarmos por acreditar fielmente que o sistema tem que girar e que isso é parte de nossa função na lógica capitalista, espreita-nos o risco de nos descobrirmos engrenagem quando esta já não for útil à manutenção do todo, o que, em tempos de crise, se agrava ainda mais.

Referências: HAUG, Wolfang F. Crítica da estética da mercadoria. Trad. Erlon J. Paschoal. São Paulo: Unesp, 1997. MARX, K. O Capital. Crítica da economia política. Vol. 1. Trad. Regis Barbosa e Flavio R. Kothe. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996.

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