O tempo e os direitos humanos

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O TEMPO E OS DIREITOS HUMANOS

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O TEMPO E OS DIREITOS HUMANOS

Editora Acesso Vitória

2011

L!1%0 J!"(& Rio de Janeiro

Copyright © 2011 by Livraria e Editora Lumen Juris Ltda. Livraria e Editora Acesso Ltda.

Categoria: Direito Constitucional

Produção Editorial Livraria e Editora Lumen Juris Ltda. Livraria e Editora Acesso Ltda.

A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA. LIVRARIA E EDITORA ACESSO LTDA. não se responsabilizam pela originalidade desta obra.

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art. 184 e §§, e Lei nº 10.695, de 1º/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei nº 9.610/98).

Todos os direitos desta edição reservados à Livraria e Editora Lumen Juris Ltda. Livraria e Editora Acesso Ltda.

Impresso no Brasil Printed in Brazil

Sumário

Prefácio

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O discurso dos direitos humanos sob a ótica da teoria crítica da sociedade ............... Adalberto Antonio Batista Arcelo

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Quem é o pai da criança? Ensaio sobre a (im)possibilidade de realização de exame de DNA “debaixo de vara” ....................................................................................... Adriano Sant’Ana Pedra

17

I diritti umani tra Unione europea e Costituzionali nazionali: il caso del mandato di arresto europeo ......................................................................................................... Alfonso Celotto

35

Do Princípio da Proteção Especial à Doutrina da Proteção Integral: 50 Anos de Avanços na Defesa dos Direitos Humanos das Crianças ......................................... Ana Maria D’Ávila Lopes

41

El Derecho y los Derechos en la Era de la Globalización ............................................ Antonio-Enrique Pérez Luño

53

On witches, fairies and unicorns: Perplexities about an apparently neat idea Are human Rights a dire illusion? ................................................................................... António Manuel Hespanha & Teresa Pizarro Beleza

65

Escrever verde por linhas tortas: o direito ao ambiente na jurisprudência da Corte Europeia dos Direitos do Homem ............................................................................ Carla Amado Gomes

75

Acesso Coletivo à Justiça como Instrumento Para Efetivação dos Direitos Humanos: Por uma Nova Mentalidade...................................................................................... Carlos Henrique Bezerra Leite

105

Constituição e Internacionalização dos Direitos Humanos......................................... Carlos Roberto Siqueira Castro

125

O Brasil Rumo à Sociedade Justa................................................................................. Dalmo de Abreu Dallari

151

Universalità dei Diritti e Guerra Umanitaria............................................................... Danilo Zolo

167

v

Definizione e universalità dei diritti umani: oltre il minimalismo, verso la valorizzazione del contenuto essenziale.................................................................................. Elena Pariotti

183

A Eficácia Erga Omnes das Normas Internacionais que Tenham por Objeto Direitos Humanos .................................................................................................................. Felipe Arady Miranda

199

Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos: Hierarquia e Incorporação à Luz da Constituição Brasileira ......................................................................... Flávia Piovesan

221

Direitos Humanos e Legitimidade Jurídica a Partir do Pensamento de J. Habermas .. Flávio Quinaud Pedron Simone Reissinger

243

A Praça é do Povo? A Liberdade de Reunião e o Direito de Manifestação Popular em Espaços Públicos na Visão dos Tribunais ............................................................ George Marmelstein

265

La Carta de los Derechos Fundamentales de la Union Europea en Una Perspectiva Comparada. Tecnicas de codificación y clausolas de interpretación........................ Giancarlo Rolla

303

O Ministério Público do Trabalho como Instituição Vocacionada à Defesa dos Direitos Humanos dos Trabalhadores....................................................................... Gilsilene Passon P. Francischetto

325

O Controle Jurisdicional das Políticas Públicas para a Concretização dos Direitos Humanos .................................................................................................................. Giovanna Maria Sgaria de Morais

345

Preliminary Reference and Constitutional Courts: Are You in the Mood for Dialogue? ....... Giuseppe Martinico La Dichiarazione Universale dei Diritti Umani sessant’anni dopo Le “promesse mancate” dei diritti umani........................................................................................ Gustavo Gozzi Direitos Humanos, Autodeterminação e Bioética ....................................................... Horst Vilmar Fuchs

361

389 403

Algumas Notas sobre a Dignidade da Pessoa Humana e os Assim Chamados “Novos” Direitos na Constituição Federal de 1988 ................................................................ Ingo Wolfgang Sarlet

429

60 Anos da Promulgação da Grundgesetz Alemã e Proteção Comunitária Européia dos Direitos Humanos: Uma Relação de Complementaridade ................................ Leonardo Martins

455

Die Sicherung der Grundrechte in Deutschland ......................................................... Christian Starck

vi

481

O Pacto de São José e o Direito à Vida Desde a Concepção ....................................... Ives Gandra da Silva Martins Os Imigrantes e a Partilha dos “Benefícios de “Direitos” no Estado de Direito: O Medo Social dos Cidadãos Nacionais a “Compartir” Direito e a Adesão por Parte dos Imigrantes a Relações de “Servidão Voluntária” ........................................................ J. Alberto del Real Alcalá

501

511

O princípio da eficácia jurídica dos direitos fundamentais .......................................... Jorge Miranda

533

O Direito Fundamental ao Aborto no Ordenamento Jurídico Brasileiro ................... José Emílio Medauar Ommati

551

Imigração e Direitos Humanos na União Européia: as contradições do novo Pacto de Imigração e Asilo ................................................................................................. José Luiz Quadros de Magalhães Carolina dos Reis O Tempo é Agora de Quebrar Paradigmas .................................................................. José Renato Nalini

563

581

Mínimo Existencial e o Dever de Pagar Tributos, ou Financiando os Direitos Fundamentais.................................................................................................................. Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira

599

El uso “transnacional” de prueba obtenida por medio de tortura The “transational” use of the proof obtained by torture ......................................................................... Kai Ambos

615

Os Direitos Humanos e a Normatização da Bioética nos Contextos Internacional e Regional ................................................................................................................... Letícia Ludwig Möller

653

A homoafetividade como direito humano ................................................................... Maria Berenice Dias

673

Corti europee e allargamento dell’Europa: evoluzioni giurisprudenziali e riflessi ordinamentali ............................................................................................................... Oreste Pollicino

697

Menschenwürde Rechtsphilosophische Überlegungen Brazilian Academy of Human Rights ................................................................................................................... Otfried Höffe

735

Os Sistemas de Proteção aos Direitos Humanos, sua Internalização no Ordenamento Interno Brasileiro e o Tribunal Penal Internacional............................................. Paulo Velten

755

30 years of CEDAW and criminal justice in Timor-Leste: omission or discrimination?.... Padraig McAuliffe

vii

781

The moral basis of the evolution of rights ................................................................... Raymond Boudon International Law and the Use of Force: an Essay to Honour the 35th Anniversary of the United Nations Definition of Aggression ...................................................... Sergey Sayapin Identidade homossexual, inclusão e igualdade: por uma (re)construção do sujeito constitucional brasileiro adequada ao paradigma do Estado Democrático de Direito........ Silvagner Andrade de Azevedo Alexandre de Castro Coura

809

827

867

La Carta de los derechos fundamentales, el Tratado de Lisboa y las constituciones nacionales ................................................................................................................. Silvio Gambino

881

The Role of Human Rights in the International Domain: a Question of Justice and/or Legitimacy?.................................................................................................... Isabel Trujillo

913

Teoria Geral do Controle de Convencionalidade no Direito Brasileiro ...................... Valerio de Oliveira Mazzuoli

927

Tempo de Cidadania no Brasil ..................................................................................... Willis Santiago Guerra Filho

961

A Defensoria Pública em busca da efetivação do princípio constitucional de acesso à Justiça ................................................................................................................... Gilmar Alves Batista Paulo Roberto Ulhoa

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975

Prefácio

Honra-me o ilustre Presidente da Academia Brasileira de Direitos Humanos, Professor Doutor Daury Fabriz, com o convite para prefaciar esta obra sobre Direitos Humanos. Não quero discutir o mérito da escolha: prefiro acreditar que ao convidar-me pretendeu o querido colega homenagear todos os Professores do Departamento de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo, do qual fazemos parte. Sob essa perspectiva, considero que o convite representa um privilégio e uma honra que estendo aos demais colegas. Quanto à obra, escrita por diversos e laureados autores, não tenho outras palavras senão tecer-lhe rasgados elogios. Sabemos que há aproximadamente três séculos, a noção de direitos humanos não constava da pauta das formulações políticas. Não conhecíamos a figura do cidadão, que não tinha na ordem jurídica quaisquer direitos, mas apenas obrigações e obediência às determinações que lhes eram impostas pelo Estado. Portanto, a sua inserção no mundo social estava atrelada ao cumprimento de deveres, sem que lhes fossem reconhecidos respeito mínimo a direitos, por mais comezinhos que fossem. No entanto, por força da construção de concepções individualistas, resultantes de uma bem engendrada política de afirmação dos direitos, que a civilização ocidental instaurou, o indivíduo passa a ostentar o status de cidadão, perdendo força a concepção autoritária de que a ele somente restaria o cumprimento de deveres. Em conseqüência, com o reforço das garantias constitucionais passou o cidadão, abstratamente, a ser concebido como um igual. De início, a afirmação de direitos do cidadão se situava apenas num plano de especulação filosófica. Graças à tradição jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII, foi possível pensar o homem como portador de direitos naturais inalienáveis. Assim, mesmo que de forma incipiente, começou a ser o homem um centro de imputação, um referencial político moderno, ainda que considerado na figura de cada cidadão isoladamente. Mas foi somente a partir do século XVIII, com as primeiras declarações dos direitos, que o homem assume sua dimensão maior, de forma que os direitos naturais deixam de ser apenas uma aspiração, para constituir-se em formulação juridicamente reconhecida e protegida contra qualquer violação por parte do aparato estatal. A configuração contemporânea dos direitos do homem - que data da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, desconhece entretanto tal formulação. Cada cidadão, por força do que se contém na referida declaração, passa a ser reconhecido pela comunidade internacional como cidadão do mundo, de forma que eventuais violações

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aos seus direitos, deve ser reprimida como forma de restaurar-se a legitimidade violada pelo sistema, como recomenda a tradição ocidental. O que parece importante assinalar é que a defesa dos direitos humanos na atualidade, pode ser feita tanto pelo Estado quanto contra o Estado, havendo, para tanto, mecanismos internacionais que, baseados em pressupostos culturais, são considerados fundamentais, expandindo-se de forma impressionante, sem que se lhes possa opor fronteiras ou limites. A peculiaridade desta transição da era dos deveres para a era dos direitos, como disse Bobbio, reside na pretensão universalizante, foco em que se concentra toda a polêmica em torno da questão dos direitos humanos. Afinal, o que pode ser estendido indiscriminadamente a toda a comunidade humana? Quais são os limites moralmente aceitos face às diversidades culturais? Até que ponto determinadas práticas sociais constituem direitos culturais ou violações aos direitos humanos? A resposta para tais questões implica, invariavelmente, em conflito. Não há consenso possível em torno delas, pois cada uma enuncia verdades culturais próprias, e estas, como já visto, não podem ser confinadas em conclusões apressadas. A contrapartida a este discurso corresponde à defesa da tolerância como estratégia de mediação da diversidade. As noções de alteridade e de etnocentrismo são ferramentas teóricas da antropologia, que contribuem para a consolidação da idéia de que não há possibilidade de eleger, a partir de uma postura de total isenção valorativa, um padrão cultural válido que possa ser adotado em nível universal. Colocadas essas premissas, resulta que o presente trabalho reveste-se de contribuição e importância impar para a compreensão dos fenômenos culturais que envolvem a temática dos direitos humanos. As provocações contidas na obra nos remetem a algumas conclusões importantissimas, entre as quais uma que considero essencial: a de que, embora vivamos em uma era dos direitos, como acentuou Bobbio, as prescrições constitucionais de um moderno Estado de Direito, por si, não garantem a adesão moral da sociedade aos pressupostos culturais dos direitos humanos. Isto porque, em muitas instâncias as proposições humanistas permanecem numa esfera ideal, sem qualquer aplicabilidade na vida cotidiana. Em outras palavras, não decantam no mundo, pairam num plano abstrato, permanecem num universo estritamente formal, uma vez que não são incorporados às ações dos sujeitos. Em conclusão, só me resta parabenizar os idealizadores da obra. Vitória, julho de 2011 Manoel Alves Rabelo Desembargador Presidente do TJES Professor da UFES Doutor e Mestre em Direito

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O discurso dos direitos humanos sob a ótica da teoria crítica da sociedade Adalberto Antonio Batista Arcelo*

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1. Introdução Na década de 1940 Adorno e Horkheimer explicitaram a proposta de uma teoria crítica da sociedade por meio de uma análise dialética do fenômeno do Esclarecimento: “[...] descobrir por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie.” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 11) A teoria crítica que emerge desse propósito pretende levar a sério a complexidade do conceito de Esclarecimento (Aufklärung), conceito que culmina em uma estrutura prático-discursiva – ou sistema de pensamento – marcada(o) pela ambivalência. O Esclarecimento, que desde Kant (2002) foi celebrado como o momento da emancipação humana por meio da razão, também remete a um contexto de racionalização do humano que indica um determinismo quanto às condições de possibilidade do sujeito nas sociedades modernas. Relaciona-se, portanto, a ambivalência do Esclarecimento com a ambivalência de toda a estrutura prático-discursiva que conforma a modernidade. Neste sentido, o discurso dos direitos humanos não foge dessa duplicidade, o que será confirmado por meio de uma atualização da teoria crítica da sociedade. Este empreendimento reconstrutivo, partindo da crítica social de Adorno e de Horkheimer e avançando em direção à crítica social das e nas sociedades hipercomplexas hodiernas, utiliza, para tanto, contribuições de Foucault e de Bauman, que possibilitam uma atualização das ferramentas intelectuais para a teoria crítica da sociedade nas sociedades de hoje. Foucault, com sua história dos sistemas de pensamento, forneceu interessantes pistas para uma análise do sujeito moderno por meio das seguintes indagações: “[...] como nos constituímos como sujeitos de nosso saber; como nos constituímos como sujeitos que 1

Doutor em Filosofia do Direito pela UFMG; Professor Adjunto da PUC Minas

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Adalberto Antonio Batista Arcelo

exercem ou sofrem as relações de poder; como nos constituímos como sujeitos morais de nossas ações.” (FOUCAULT, 2005, p. 350) A proposta foucaultiana de uma ontologia crítica de nós mesmos, enquanto um consistente caminho para a atualização da teoria crítica da sociedade, leva a métodos alternativos de análise científica, aptos à desconstrução crítica do discurso dos direitos humanos. Em um mundo em que as ações políticas, inclusive a política internacional dos direitos humanos, são claramente determinadas por interesses de Estados que se afirmam constitucionais e democráticos, ou seja, comprometidos com os direitos fundamentais e humanos, tem-se, apesar da hegemônica presença do discurso dos direitos humanos, uma série de articulações entre o poder disciplinar e o poder regulamentador que instauram um biopoder, um poder sobre a vida dos sujeitos, exercido pelos Estados e fundado no racismo – enquanto um permanente processo de distinção entre iguais (incluídos) e diferentes (excluídos). (FOUCAULT, 1999) Estes jogos estratégicos de dominação determinam subjetividades e produzem verdades. A história da política internacional de direitos humanos confirma a relevância desses jogos estratégicos de dominação ao mostrar que países econômica e militarmente hegemônicos têm, de maneira pretensiosa e arrogante, violado regras e princípios do Direito Internacional dos Direitos Humanos, além de estarem permanentemente buscando (em boa parte das vezes de maneira bem sucedida) impor interesses localizados como expectativas universais. Bauman (2001), em seu propósito de reciclar a teoria crítica da sociedade para melhor analisar a modernidade líquida – característica das sociedades ocidentais contemporâneas – constata que atualmente os padrões e configurações são tantos e às vezes tão adversos que eles chegam a se chocar e a se contradizer, de forma que esses códigos e regras emergem desprovidos de boa parte de seus poderes de coercitivamente compelir e restringir. Para o autor, “os poderes que liquefazem passaram do ‘sistema’ para a ‘sociedade’, da ‘política’ para as ‘políticas da vida’ – ou desceram do nível ‘macro’ para o nível ‘micro’ do convívio social.” (BAUMAN, 2001, p. 14) A dialética da civilização e da barbárie, serenamente descrita por Adorno e Horkheimer (1985) nos anos de 1940, tem sido reproduzida por mecanismos mais e mais discretos em sua sofisticação. Foucault e Bauman mostram isso muito bem. É neste sentido que se propõe, seguindo a metodologia da história dos sistemas de pensamento (FOUCAULT, 2005), uma tríplice e relacional abordagem do discurso dos direitos humanos, envolvendo os aspectos científico (saber), político (poder) e ético (subjetividade) que ambientam os discursos e as práticas afetas aos direitos humanos na contemporaneidade. Se a força simbólica dos direitos humanos (NEVES, 2008) indica uma ambivalência, no sentido de que os textos (Declarações e Tratados, por exemplo) servem à manutenção do status quo de carência dos direitos humanos, bem como à superação de

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O discurso dos direitos humanos sob a ótica da teoria crítica da sociedade

situações concretas de negação dos direitos, a análise do discurso dos direitos humanos por meio de uma reconstrução da teoria crítica da sociedade aponta para uma interpretação que busca problematizar, transdisciplinarmente, os diferentes ecos do discurso dos direitos humanos na constituição das subjetividades. Segundo Foucault, os processos de subjetivação refletem jogos de poder que, por sua vez, se distinguem entre jogos de liberdade e jogos de dominação. Por tal ótica, a relação sugerida por Kant (2002) entre Esclarecimento e emancipação humana não é mais que uma narrativa historicamente localizada que, para evitar a problematização dos paradoxos da razão, do sujeito e, conseqüentemente, dos direitos humanos, pretendeu universalizar um certo parâmetro para a razão e para a subjetividade. A teoria crítica da sociedade, ao analisar dialeticamente o fenômeno do Esclarecimento, eviscera os paradoxos da razão moderna. Tais paradoxos afloram nos efeitos de saber, de poder e de subjetivação produzidos pela força simbólica do discurso dos direitos humanos. O caminho reconstrutivo adotado para a apresentação da teoria crítica da sociedade mostra uma tendência convergente: a problematização da subjetividade em contextos concretos de vida, visando à superação dos mecanismos de individualização, de massificação e de normalização que produzem subjetividades e verdades. Para Neves (2008, p. 425) o sentido do discurso dos direitos humanos mais afinado com a complexidade contemporânea tem muito pouco a ver com consenso ou condições discursivas ideais para a busca do consenso. O discurso dos direitos humanos, segundo o autor, emerge no contexto do dissenso estrutural que advém da sociedade moderna. Neste panorama os direitos humanos devem promover a convivência nas condições reais de dissenso estrutural. (NEVES, 2008, p. 425) Sustenta-se que a reconstrução da teoria crítica da sociedade indica uma consistente contribuição para a afirmação deste sentido que incorpora a complexidade e a paradoxalidade do discurso dos direitos humanos.

2. Uma análise crítica da racionalidade do discurso dos direitos humanos Busca-se, nesta seção, analisar criticamente os ecos hegemônicos do discurso dos direitos humanos na contemporaneidade. A semântica de tal discurso, em termos amplos, tem se afirmado como “o conjunto de princípios e de normas fundamentadas no reconhecimento da dignidade inerente a todos os seres humanos e que visam a assegurar o seu respeito universal e efetivo.” (ARNAUD et al., 1999, p. 271) Considera-se, por tal perspectiva, que os direitos humanos são direitos subjetivos cujo titular exclusivo é a pessoa humana, sendo tais direitos oponíveis ao Estado e à co-

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Adalberto Antonio Batista Arcelo

munidade internacional, bem como aos outros indivíduos e aos diferentes grupos por eles constituídos. (ARNAUD et tal., 1999). Piovesan (2007, p. 5), tematizando o atual estágio do Direito Internacional dos Direitos Humanos, indica a criação de “parâmetros globais de ação estatal, que compõem um código comum de ação, ao qual os Estados devem se conformar, no que diz respeito à promoção e proteção dos direitos humanos.” Para a autora, assim como para a corrente doutrinária majoritária concernente ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, este consiste em um sistema de normas, procedimentos e instituições internacionais desenvolvidos para implementar esta concepção e promover o respeito dos direitos humanos em todos os países, no âmbito mundial. Contudo, os direitos humanos têm sido confrontados com essas pretensões globalizantes. Isso porque o reconhecimento da universalidade do discurso dos direitos humanos pela comunidade internacional não resolveu o problema dos caminhos a serem percorridos para garantir a efetividade de tal discurso. Santos (2006, p. 433) constata que a forma como os direitos humanos se transformaram na linguagem da política progressista e em quase sinônimo de emancipação social causa alguma perplexidade. Isso se deve ao fato de os direitos humanos terem sido usados como parte integrante da política da guerra-fria. Contudo, a crise aparentemente irreversível dos discursos e práticas de oposição à política liberal consolidaram a pretensão globabizante desta, que se afirma por meio do discurso da universalidade dos direitos humanos. É neste contexto que a “era dos direitos” (BOBBIO, 2004) deve ser analisada criticamente. Para tanto, busca-se, no rastro da metodologia da história dos sistemas de pensamento (FOUCAULT, 2004, p. 235), analisar os jogos de verdade que forjam os modos de subjetivação. Com a história crítica do pensamento, Foucault possibilita uma interessante investigação sobre a relação entre a pretensão de universalidade dos direitos humanos e a sedimentação do que ele chama de sociedade de normalização (FOUCAULT, 1999, p. 302), algo como uma atualização da sociedade massificada pela indústria cultural descrita por Adorno e Horkheimer (1985). Na mesma linha crítica, Douzinas (2009, p. 14) sustenta que o paradoxo é o princípio organizador dos direitos humanos. Segundo o autor, as discussões sobre as maravilhas da globalização, sobre a sujeição da soberania nacional a regras morais e legais e sua substituição por instituições internacionais e leis cosmopolitas abriram caminho para um estado de exceção que se constrói sobre as pretensões de racionalidade e de universalidade do discurso dos direitos humanos. Para o autor, Parte do problema deriva de um senso histórico e de uma consciência política dos liberais deploravelmente inadequados. O mundo em que habitam

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O discurso dos direitos humanos sob a ótica da teoria crítica da sociedade

é um lugar atomocêntrico, constituído por contratos sociais e posturas originais motivados pela cegueira subjetiva dos véus da ignorância, atribuídos a situações de discurso ideais e que retornam a uma certeza pré-moderna de respostas corretas e únicas a conflitos morais e jurídicos. Igualmente, o modelo de pessoa que povoa este mundo é o de um indivíduo autocentrado, racional e reflexivo, um sujeito autônomo kantiano, desvinculado de raça, classe ou gênero, sem experiências inconscientes ou traumáticas e que se encontra no perfeito domínio de si mesmo, pronto para usar os direitos humanos para adequar o mundo aos seus próprios fins. (DOUZINAS, 2009, p. 15) Segundo Douzinas (2009, p. 16), a tentativa de retornar o entendimento dos direitos humanos ao coração da teoria crítica da sociedade passa pela seguinte problematização: existe uma relação interna entre o discurso e a prática dos direitos humanos e as desastrosas guerras recentes conduzidas em seu nome? Os direitos humanos constituem um instrumento de defesa eficaz contra a dominação e a opressão, ou são uma simples ideologia subjacente a um império emergente?

3. A emergência da teoria crítica da sociedade Delacampagne (1997, p. 139) relata que em 1931, quando Horkheimer assume a direção do Instituto de Pesquisas Sociais, vinculado à Universidade de Frankfurt, proclama-se a necessidade de se recorrer a um trabalho interdisciplinar para compreender melhor os fenômenos sociais. É neste contexto que Horkheimer afirma que a velha filosofia está destinada a ser substituída pelo conjunto das ciências sociais, compreendidas em um sentido materialista. O trabalho de pesquisa realizado no Instituto, aqui tido como matriz para a teoria crítica da sociedade, também se caracterizou pela colaboração de intelectuais politicamente engajados. A primeira geração da Escola de Frankfurt, liderada por Horkheimer, sinaliza a emergência da Filosofia Social na contemporaneidade, posto que os acontecimentos – inéditos – que marcaram aquele contexto histórico não se mostravam passíveis de apreensão pelos instrumentos de análise habituais. (DELACAMPAGNE, 1997, p. 174) A dialética do esclarecimento emerge como o momento de maturidade da teoria crítica da sociedade, posto que as reflexões contidas nesta obra problematizam não o fracasso da revolução marxista, mas o fracasso da própria civilização e o triunfo da barbárie. Delacampagne (1997,p. 176) considera que tal tematização do Esclarecimento traz à tona fragmentos de uma história crítica da razão, posto que esta não é sistematicamente construída e nem o que convencionalmente se considera uma obra acabada. Adorno e Horkheimer consideraram que,

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Se a opinião pública atingiu um estado em que o pensamento inevitavelmente se converte em mercadoria e a linguagem, em seu encarecimento, então a tentativa de pôr a nu semelhante depravação tem de recusar lealdade às convenções lingüísticas e conceituais em vigor, antes que suas conseqüências para a história universal frustrem completamente essa tentativa. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 11-12) Os analistas são taxativos: o Esclarecimento, como fenômeno histórico-cultural que conforma a racionalidade das sociedades modernas e contemporâneas, é totalitário. Isso porque “todas as figuras míticas podem se reduzir, segundo o esclarecimento, ao mesmo denominador, a saber, ao sujeito.” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 19). Os autores prosseguem sustentando que “para o esclarecimento, aquilo que não se reduz a números e, por fim, ao uno, passa a ser ilusão.” Contudo, “os mitos que caem vítimas do esclarecimento já eram o produto do próprio esclarecimento.” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 20). Neste contexto “a abstração, que é o instrumento do esclarecimento, comporta-se com seus objetivos do mesmo modo que o destino, cujo conceito é por ele eliminado, ou seja, ela se comporta como um processo de liquidação.” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 24) Os autores se remetem à separação entre ciência e poesia para a tematização da linguagem em sua pretensão de ‘racional e esclarecida’. Para eles a palavra chega à ciência como mero signo: “Enquanto signo, a linguagem deve resignar-se ao cálculo; para conhecer a natureza deve renunciar à pretensão de ser semelhante a ela. Enquanto imagem, deve resignar-se à cópia; para ser totalmente natureza, deve renunciar à pretensão de conhecê-la.” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 27). A análise demonstra que há, por trás da imparcialidade da linguagem científica, um reforço do poder social da linguagem: a linguagem, sob a aparência de neutralidade, conferia às relações de dominação aquela universalidade que ela tinha assumido como veículo de uma sociedade civil. A ênfase metafísica que os autores atribuem à imparcialidade da linguagem científica confirma a unilateralidade de um processo social esclarecido que, sob o discurso dos direitos, reproduz a dominação. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 31) Segundo os autores, diante do Esclarecimento, ou seja, na área de abrangência das estruturas prático-discursivas que sedimentaram a razão moderna, ninguém pode sentir-se seguro. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 31). A desdiferenciação contemporânea entre os fenômenos da civilização e da barbárie exemplifica bem o teor da assertiva. A unilateralidade totalizante do Esclarecimento se faz presente em um determinado processo de subjetivação – enquanto mecanismo de objetivação da subjetividade – que,

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após o extermínio metódico de todos os vestígios naturais como algo de mitológico, não queria mais ser nem corpo, nem sangue, nem alma e nem mesmo um eu natural, constituiu, sublimado num sujeito transcendental ou lógico, o ponto de referência da razão, a instância legisladora da ação. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 36) A conclusão que se prepara é cáustica: O processo técnico, no qual o sujeito se coisificou após sua eliminação da consciência, está livre da plurivocidade do pensamento mítico bem como de toda significação em geral, porque a própria razão se tornou um mero adminículo da aparelhagem econômica que a tudo engloba. Ela é usada como um instrumento universal servindo para a fabricação de todos os demais instrumentos. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 37) Neste cenário “o eu integralmente capturado pela civilização se reduz a um elemento dessa inumanidade, à qual a civilização desde o início procurou escapar.” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 37). Segundo os autores a dominação totalitária empreendida pela razão moderna por meio da reprodução da subjetividade gera um resto tido como supérfluo, mas que constitui a massa imensa da população adestrada “como uma guarda suplementar do sistema, a serviço de seus planos grandiosos para o presente e o futuro.” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 43) Adorno e Horkheimer (1985, p. 43) acusam o absurdo desta situação, em que o poder do sistema sobre os homens cresce na mesma medida em que os subtrai ao poder da natureza, denunciando como obsoleta a razão da sociedade racional. A análise das sociedades contemporâneas empreendida por Bauman confirma o paradoxo estrutural da razão moderna. O autor percebe que “[...] cada espécie de sociedade produz sua própria espécie de estranhos”, de uma maneira inimitável. (BAUMAN,1998, p. 27). As sociedades modernas, ao traçarem suas fronteiras, desenham seus mapas cognitivos, estéticos e morais. Percebe-se, nos estreitos limites de tais mapas, que os estranhos modernos foram “o refugo do zelo de organização do estado”, zelo que “legislou a ordem para a existência e definiu a ordem como a clareza de aglutinar divisões, classificações, distribuições e fronteiras.” (BAUMAN, 1998, p. 28). Assim, “[...] na ordem harmoniosa e racional prestes a ser construída não havia nenhum espaço [...] para os ‘nem uma coisa nem outra’, [...] para os cognitivamente ambivalentes.” (BAUMAN, 1998, p. 28). A expressão mais comum das estratégias modernas de assimilação e de exclusão foi o entrechoque das versões liberal e racista-nacionalista do projeto moderno. (BAUMAN, 1998, p. 29)

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Na sociedade moderna, marcada pelo Estado moderno, “[...] a aniquilação cultural e física dos estranhos e do diferente foi uma destruição criativa, demolindo, mas construindo ao mesmo tempo.” (BAUMAN, 1998, p. 29). A aniquilação, nesta perspectiva, teria sido “[...] parte e parcela da constituição da ordem em curso, da constiuição da nação, do esforço de constituição do estado, sua condição e acompanhamento necessários.” (BAUMAN, 1998, p. 29-30) O autor indica que na modernidade a identidade do indivíduo foi lançada como um projeto – o projeto de vida. Contudo, Bauman (1998a, p. 31) constata que a identidade demandava uma construção sistemática, “[...] seguindo um esquema concluído antes de iniciado o trabalho.” Percebe-se o “[...] vínculo firme e irrevogável entre a ordem social como projeto e a vida individual como projeto, sendo a última impensável sem a primeira.” (BAUMAN, 1998, p. 31) Assim a contemporaneidade sinaliza que “[...] os projetos de vida individuais não encontram nenhum terreno estável em que acomodem uma âncora.” (BAUMAN, 1998, p. 32). Para o autor, “[...] a imagem do mundo diariamente gerada pelas preocupações da vida atual é destituída da genuína ou suposta solidez e continuidade que costumavam ser a marca registrada das ‘estruturas’ modernas.” (BAUMAN, 1998, p. 32) É em meio a tais reflexões que Bauman afirma que, em sua versão presente, “[...] os direitos humanos não trazem consigo a aquisição do direito a um emprego [...], ou [...] o direito ao cuidado e à consideração por causa de méritos passados.” (BAUMAN, 1998, p. 35) Na ambivalência da vida moderna, Bauman (1998, p. 37) considera que “[...] os estranhos de hoje são subprodutos, mas também os meios de produção no incessante, porque jamais conclusivo, processo de construção da identidade.” Tais diagnósticos revelam, contudo, uma genuína oportunidade emancipadora na atualidade. Trata-se do “[...] direito de escolher a identidade de alguém como a única universalidade do cidadão e ser humano, na suprema e inalienável responsabilidade individual pela escolha.” (BAUMAN, 1998, p. 46). Bauman sustenta que a unicidade humana depende dos direitos do “estranho”. Esse ponto de vista emerge como uma reavaliação, uma tarefa filosófica e uma tarefa política, que deve reagir contra a moderna política de exclusão, negadora dos recursos de construção da identidade e, conseqüentemente, de todos os instrumentos da cidadania. Para o autor, “[...] não é meramente renda e riqueza, expectativa de vida e condições de vida, mas também – e talvez mais fundamentalmente – o direito à individualidade, que está sendo crescentemente polarizado.” (BAUMAN, 1998, p. 48). Neste panorama as diferenças são permanentemente anuladas pela exclusão dos estranhos. Douzinas (2009, p. 16) afirma que os direitos humanos possuem não apenas aspectos institucionais, mas também e principalmente subjetivos. Neste contexto, a semântica

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dos direitos humanos se cinde em processos de normalização da subjetividade e em processos de genuína afirmação identitária. O projeto de uma teoria crítica da sociedade se funda neste segundo sentido da força simbólica dos direitos humanos. Evidencia-se tal assertiva ao se colocar em relação a teoria crítica das décadas de 1940 e 1950 com a metodologia da história dos sistemas de pensamento, proposta por Foucault nas décadas de 1970 e 1980.

4. A história dos sistemas de pensamento como ontologia crítica de nós mesmos A metodologia da história dos sistemas de pensamento, aplicada ao discurso dos direitos humanos, deve responder a uma série aberta de questões e se relacionar, transdisciplinarmente, com um número não definido de pesquisas que, embora autônomas, trazem a seguinte sistematização: “[...] como nos constituímos como sujeitos de nosso saber; como nos constituímos como sujeitos que exercem ou sofrem as relações de poder; como nos constituímos como sujeitos morais de nossas ações.” (FOUCAULT, 2005, p. 350) Tal metodologia possibilita a constatação da estrutura paradoxal dos fatos de discurso que, com seus jogos de verdade e seus efeitos de saber e de poder, objetiva (determina) subjetividades por uma dúplice perspectiva: jogos estratégicos entre liberdades e jogos estratégicos de dominação. (FOUCAULT, 2004, p. 285) Foucault propicia uma análise do discurso dos direitos humanos e do sujeito de direitos sob a tríplice perspectiva dos poderes políticos, dos saberes científicos e das relações de si para consigo. Acusa-se, em tal empreendimento, uma retomada dos principais pressupostos da teoria crítica da sociedade: a história dos sistemas de pensamento investiga o que deve ser o sujeito e, também, as condições a que esse sujeito está submetido. (FOUCAULT, 2004). Nesta perspectiva, as tradicionais concepções jurídica e filosófica da sociedade e do sujeito modernos cedem espaço a uma abordagem histórico-política. (FOUCAULT, 1999, p. 322) A história dos sistemas de pensamento, ao retomar o projeto de uma história crítica da razão e da subjetividade modernas, indica que a dinâmica social emerge como um complexo de relações de poder que transcende ao poder político juridicamente institucionalizado. Ao analisar as práticas discursivas em seus efeitos de saber, de poder e de subjetivação, Foucault apresenta um sofisticado método de trabalho que revitaliza as condições de análise da Filosofia Social. Para Foucault (2004, p. 285), as relações sociais, em seu sentido mais amplo, são tecnologias de governo que se concretizam socialmente de duas maneiras: por jogos estratégicos entre liberdades e por jogos estratégicos de dominação. Levando adiante a tematização da força simbólica dos direitos humanos (NEVES, 2008), percebe-se que a ambivalência do discurso dos direitos humanos na contempora-

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neidade remete aos jogos estratégicos entre liberdades quando a estrutura discursiva dos direitos humanos visa a garantir e promover a inclusão jurídica universal e a autonomia discursiva. Contudo, evidencia-se que o discurso dos direitos humanos, enquanto um reflexo de jogos estratégicos de dominação, reproduz um permanente estado de exceção em que as subjetividades são sistematicamente normalizadas, como já ficou demonstrado pelas reflexões estruturais da teoria crítica da sociedade. Sob a história dos sistemas de pensamento, as práticas discursivas indicam jogos de verdade gestados e, simultaneamente, geradores de tecnologias de subjetivação. Segundo Foucault, os jogos de verdade e seus efeitos em sociedade devem ser analisados por uma analítica do poder que atenua drasticamente a relevância dada ao edifício jurídico da soberania, ao aparelho estatal e às ideologias que os acompanham. Tematiza-se, antes, os operadores materiais, as formas de sujeição e de resistência, as conexões e utilizações dos sistemas locais das sujeições e das insurreições no âmbito dos dispositivos de saber. Neste sentido, Foucault (1999, p. 40) acredita poder analisar fatos históricos maciços que demonstram que, assim como as práticas discursivas podem determinar as subjetividades, a permanente busca pela livre afirmação das identidades pode ressignificar as práticas discursivas hegemônicas em uma estrutura social específica. Para Foucault (2004) não há sociedade sem relações de poder. Essa constatação reitera a necessidade de um posicionamento crítico dos atores sociais para que a prática discursiva dos direitos humanos, antes de objetivar subjetividades, preserve e cultive a permanente busca pela livre afirmação identitária. Demanda-se, neste contexto, o que Foucault (2005, p. 342-343) chamou de atitude de modernidade, ou seja, uma ação ética e, conseqüentemente, crítica, em que o eu e o outro buscam se afirmar como um povo livre e responsável. Tal atitude indica uma busca pela afirmação do sentido crítico da racionalidade esclarecida: um mecanismo de resistência contra os jogos estratégicos de dominação que objetivam as subjetividades. Emerge a proposta de uma nova ética fundada nas relações de poder que se exercem com o mínimo de dominação. Tal proposta se materializa na articulação entre a preocupação ética e a luta política pelo respeito dos direitos humanos, entre a reflexão crítica contra as técnicas abusivas de governo e a investigação ética que permite instituir a liberdade individual. Foucault (2004) concebe a ética como prática refletida da liberdade, ou seja, como conseqüência do cuidado de si. A partir desta pista percebe-se que a relação estrutural-pragmática entre a ética do cuidado de si e o sentido inclusivo e democrático do discurso dos direitos humanos pode acarretar uma significativa alteração na dinâmica de uma sociedade específica. Isso porque o governo de si e dos outros, a partir do cuidado de si, densifica a atitude de modernidade em uma atitude de transfiguração por meio de jogos estratégicos entre liberdades, em que o alto valor do presente se mostra indissociável da obstinação de imaginar e transformar. (FOUCAULT, 2005)

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A relevância da história dos sistemas de pensamento para o revigoramento da teoria crítica da sociedade e para uma análise crítica do discurso dos direitos humanos se confirma, mais uma vez, quando o homem moderno deixa de atender a pressupostos racionais a priori para se afirmar como aquele que busca inventar-se a si mesmo, ainda que para tanto seja necessário reinventar a dinâmica social e, conseqüentemente, contar uma outra história dos sujeitos de direito e de si mesmo.

5. A modernidade líquida e a sociedade dos indivíduos Bauman (2001, p. 33) considera que as sociedades (ocidentais) contemporâneas não aceitam bem a crítica como a que os fundadores da teoria crítica da sociedade supunham e à qual endereçaram suas reflexões. Segundo Bauman, há uma substituição da crítica ao estilo do produtor por uma crítica ao estilo do consumidor. As causas dessa mudança estariam enraizadas na profunda transformação do espaço público e no modo como a sociedade moderna opera e se perpetua. (BAUMAN, 2001, p. 33) Para o autor a teoria crítica pretendia desarmar e neutralizar, e de preferência eliminar a tendência totalitária de uma sociedade que se supunha sobrecarregada de inclinações totalitárias (BAUMAN, 2001, p. 34). A teoria crítica, ou seja, a estrutura de pensamento caracterizadora da análise da modernidade sobre si mesma, pretendeu eliminar a tendência totalitária, defendendo a autonomia, a liberdade de escolha e a auto-afirmação humanas como o último estágio da emancipação e o fim do sofrimento humano. (BAUMAN, 2001, p. 34) Para Bauman (2001, p. 36), o tipo de sociedade analisada pelos fundadores da teoria crítica era apenas uma das formas que a sofisticada sociedade moderna assumia. Contudo, o autor pondera que a sociedade que entra no século XXI não é menos moderna que a que entrou no século XX, sendo simplesmente moderna de um modo diferente: “[...] ser moderno passou a significar [...] ser incapaz de parar e ainda menos capaz de ficar parado.” Ser moderno, nesta perspectiva, é “[...] estar sempre à frente de si mesmo, num Estado de constante transgressão”, ou seja, “[...] ter uma identidade que só pode existir como projeto não realizado.” (BAUMAN, 2001, p. 37) O que Bauman chama de modernidade líquida, ou seja, a contemporaneidade, é caracterizada pelo colapso das crenças de que há um estado de perfeição a ser atingido, algum tipo de sociedade justa e sem conflitos. Outra característica específica da contemporaneidade é a desregulamentação e a privatização das tarefas e deveres modernizantes. (BAUMAN, 2001, p. 37-38) Sob esta ótica, a ênfase na auto-afirmação do indivíduo teria realocado o discurso ético-político do quadro da sociedade justa para a perspectiva dos direitos humanos. Quer dizer que atualmente privilegia-se o direito de os indivíduos permanecerem dife-

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rentes e de escolherem seus próprios modelos de felicidade e de modo de vida adequado. (BAUMAN, 2001, p. 38) O diagnóstico da modernidade líquida, cenário em que o indivíduo está em combate com o cidadão, revela uma estrutura de pensamento marcada pela individualização. Para Bauman (2001, p. 40), a individualização consiste em transformar a “identidade” humana de um “dado” em uma “tarefa” e encarregar os atores da responsabilidade de realizar essa tarefa e das conseqüências (assim como dos efeitos colaterais) de sua realização. [...] consiste no estabelecimento de uma autonomia de juri (independentemente de a autonomia de facto também ter sido estabelecida). (BAUMAN, 2001, p.40) Dando prosseguimento ao projeto da teoria crítica da sociedade, Bauman (2001, p. 41) constata que “a modernidade substitui a determinação heterônoma da posição social pela autodeterminação compulsiva e obrigatória.” Assim o fenômeno da individualização se afirma na modernidade como uma fatalidade, não como uma escolha. Bauman (2001, p. 43) indica que o abismo entre a “individualidade como fatalidade” e a “individualidade como capacidade realista e prática de auto-afirmação” está aumentando. O abismo que se abre entre o direito à auto-afirmação e a capacidade de controlar as situações sociais que podem promover ou obstaculizar essa auto-afirmação parece ser a principal contradição da modernidade líquida. Tal contexto, contudo, não pode ser transposto apenas por esforços individuais, pois se o velho objetivo da teoria crítica – a emancipação humana – tem qualquer significado hoje, ele é o de reconectar as duas faces do abismo que se abriu. Isso porque, segundo Bauman (2001, p. 46), “o outro lado da individualização parece ser a corrosão e a lenta desintegração da cidadania.” Neste cenário a individualização anuncia problemas para a cidadania e para a política fundada na cidadania. Para Bauman (2001, p. 46) isso se dá porque “os cuidados e preocupações dos indivíduos enquanto indivíduos enchem o espaço público até o topo, afirmando-se como seus únicos ocupantes legítimos e expulsando tudo mais do discurso público.” A sociedade dos indivíduos explicita a colonização do ‘público’ pelo ‘privado’, horizonte em que “o ‘interesse público’ é reduzido à curiosidade sobre as vidas privadas de figuras públicas e a arte da vida pública é reduzida à exposição pública das questões privadas e a confissões de sentimentos privados.” (BAUMAN, 2001, p. 46) Bauman (2001, p. 47) demonstra que, em tal quadro, o sentido de compartilhamento que aflora na busca pela construção da comunidade emerge fragilizado, “saltando erraticamente de um objetivo a outro na busca sempre inconclusiva de um porto seguro: comunidades de temores, ansiedades e ódios compartilhados.”

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Fica claro que o abismo que se abre entre o direito à auto-afirmação e a capacidade de controlar as situações sociais que podem tornar essa auto-afirmação algo factível é a principal contradição da modernidade fluida. (BAUMAN, 2001, p. 47). É neste contexto que a relevância de uma afirmação semântico-pragmática do discurso dos direitos humanos pode, criticamente, atuar em prol da contenção do abismo que estrutura a sociedade contemporânea dos indivíduos. Bauman (2001, p. 50) considera que o indivíduo de jure não pode se tornar um indivíduo de facto sem antes tornar-se cidadão. O autor sustenta que atualmente a sociedade é a condição para que os indivíduos possam transformar seu status de jure em genuína autonomia e capacidade de auto-afirmação. Neste cenário, a situação que se coloca para a teoria crítica da sociedade é precisamente redesenhar e repovoar o espaço público, a sociedade. É neste sentido que Bauman (2001, p. 51) constata que “se o velho objetivo da teoria crítica – a emancipação humana – tem qualquer significado hoje, ele é o de reconectar as duas faces do abismo que se abriu entre a realidade do indivíduo de jure e as perspectivas do indivíduo de facto.” Para o autor apenas o sentido atribuído à emancipação, sob condições passadas, ficou obsoleto. Há, atualmente, uma nova agenda pública de emancipação, à espera de ser ocupada, emergindo junto com a versão liquefeita da condição humana moderna, no rastro da individualização das tarefas da vida. (BAUMAN, 2001, p. 59) Neste sentido, a história da emancipação moderna desloca-se da liberdade negativa, assegurada pelo individualismo, para a liberdade positiva, ou seja, para o atual desafio do poder político que busca, através do Direito e de outras ferramentas, superar sua tradicional potência opressiva fixando uma potência capacitadora. (BAUMAN, 2001, p. 62) A busca de mecanismos para a garantia da livre afirmação identitária por meio da tematização da força simbólica dos direitos humanos expõe o grande desafio que permeia as sociedades contemporâneas: a necessidade de uma cultura política de direitos humanos, para além da unidimensionalidade dos indivíduos modernos. (MARCUSE, 1982)

6. Conclusão A metodologia foucaultiana mostra que “[...] muitas coisas em nossa experiência nos convencem de que o acontecimento histórico da Aufklärung não nos tornou maiores; e que nós não o somos ainda.” (FOUCAULT, 2005, p. 351). Para Foucault, como já salientado, a ontologia crítica de nós mesmos, subjacente à história dos sistemas de pensamento, não deve ser considerada uma doutrina ou um corpo permanente de saber que se acumula, mas uma atitude, um percurso filosófico em que a crítica dos processos

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de subjetivação emerge como análise histórica dos limites à afirmação identitária e como condição de possibilidade de sua superação. A concepção ética subjacente à ontologia crítica de nós mesmos indica que a prática refletida da liberdade deve preparar o solo da dinâmica social em que as subjetividades se afirmem a partir de jogos estratégicos entre liberdades. Neves (2008, p. 429) considera que os direitos humanos – enquanto expectativas normativas de inclusão jurídica generalizada nas condições de dissenso estrutural da sociedade mundial – estão na fronteira do sistema jurídico, conectando-o com uma ‘moral do dissenso’ relativa à autonomia das esferas discursivas ou sistêmicas e à inclusão social. Assim: A institucionalização dos direitos humanos no plano internacional ou global exige procedimentos seletivos e abertos às diversas perspectivas, dependendo, porém, de uma base consensual a respeito desses procedimentos intermediadores de dissensos. A pretensão de impor uma única política, seja por meio de hard ou soft power, contraria, portanto, uma política conseqüente de proteção aos direitos humanos como direitos à inclusão e direitos ao dissenso. (NEVES, 2008, p. 444) A prentensão de universalidade que subjaz ao discurso do Direito Internacional dos Direitos Humanos parte de uma racionalidade a priori que hoje se percebe como um equívoco da unilateralidade da razão esclarecida. Para o cultivo de uma atitude de modernidade apta a superar os fatos históricos maciços que ecoam de um certo sentido do discurso dos direitos humanos, Foucault (2004, p. 286) mostra que é preciso superar a concepção jurídica do sujeito pela noção de governamentalidade. Se a concepção jurídica do sujeito revela um mecanismo de subjetivação estruturado em estratégias de dominação, a noção de governamentalidade promove e cultiva a liberdade do sujeito e sua relação com os outros, o que constitui a própria matéria da ética. (FOUCAULT, 2004, p. 286) Demonstra-se, assim, a relevância dos pressupostos científicos, políticos e éticos constantes desta reconstrução da teoria crítica da sociedade para a análise do discurso dos direitos humanos na contemporaneidade. Uma ressignificação crítica do discurso dos direitos humanos não deve descartar os paradoxos omitidos pelo sentido excludente e retórico do discurso dos direitos humanos. A alternância de cenários nos planos nacionais e internacionais, no que concerne aos constantes relatos (documentados) de violações flagrantes e maciças aos direitos humanos, depende de uma postura individual que ofereça abertura à dimensão política da existência, a uma cultura política de direitos humanos.

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Referências ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. 223p. ARNAUD, André-Jean et al. [Dir.]. Dicionário enciclopédico de teoria e de sociologia do direito. Tradução Patrice Charles e F. X. Willaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. 954p. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução Mauro Gama, Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 272p. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 258p. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. 232p. DELACAMPAGNE, Christian. História da filosofia no século XX. Tradução Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. 308p. DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. Tradução Luzia Araújo. São Leopoldo: Unisinos, 2009. 417p. FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 382p. FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências humanas e história dos sistemas de pensamento. Organização e seleção de textos Manoel Barros da Motta. Tradução Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. 376p. (Ditos e escritos; II). FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política. Organização e seleção de textos Manoel Barros da Motta. Tradução Elisa Monteiro e Inês Autran Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. 322p. (Ditos e escritos; V). KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: que é o iluminismo? In: A paz perpétua e outros opúsculos. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2002. 179p. MARCUSE, Herbert. Ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1982. NEVES, Marcelo. A força simbólica dos direitos humanos. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (Coords.). Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2008. 1139p. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 8.ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. 533p. SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006. 511p.

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Quem é o pai da criança? Ensaio sobre a (im)possibilidade de realização de exame de DNA “debaixo de vara” Adriano Sant’Ana Pedra*

1. A guisa de introdução Este trabalho visa a examinar a possibilidade de coerção para a realização de exame de DNA como prova na investigação de paternidade. A jurisprudência pátria tem entendido que é impossível a condução coercitiva do suposto pai para efetuar o exame de DNA na investigação de paternidade, e o Superior Tribunal de Justiça chegou a editar a Súmula 301 a respeito do assunto, dispondo que “em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade”1. Esta polêmica questão foi renovada com a introdução do artigo 2º-A2 na Lei nº 8.560/1992, diploma legal que regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento. O estudo aqui desenvolvido permitirá refletir também acerca dos artigos 2313 e 2324 do Código Civil, relacionando-os com o tema específico da recusa feita pela parte em processo de investigação de paternidade a submeter-se a exame de DNA. O estabelecimento da presunção de paternidade pode proteger certos direitos do investigante, em especial aqueles sucessórios, previdenciários e alimentares. Entretanto, não atende ao direito que toda criança tem de conhecer seus pais, inerente ao direito de *

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Doutor em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória – FDV, Professor da Faculdade de Direito de Vitória – FDV (graduação, especialização e mestrado), Procurador Federal. J. 18/10/2004, DJ 22.11.2004, p. 425. Introduzido pela Lei nº 12.004, de 29/07/2009, publicada no DOU de 30/07/2009, in verbis: “Art. 2º-A. Na ação de investigação de paternidade, todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, serão hábeis para provar a verdade dos fatos. Parágrafo único. A recusa do réu em se submeter ao exame de código genético – DNA gerará a presunção de paternidade, a ser apreciada em conjunto com o contexto probatório”. In verbis: Aquele que se nega a submeter-se a exame médico necessário não poderá aproveitar-se de sua recusa. In verbis: A recusa à perícia médica ordenada pelo juiz poderá suprir a prova que se pretendia obter com o exame.

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personalidade, o que está expressamente previsto no artigo 7º da Convenção sobre os Direitos da Criança5, de 1989. Para Norberto Bobbio, com o reconhecimento formal dos direitos do homem, fundados na liberdade, igualdade e fraternidade, passa-se então ao desafio de garantir a efetividade desses direitos, a concretização desses ideais. “O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los”6. O problema a ser analisado neste trabalho diz respeito a como assegurar à criança o conhecimento da verdade acerca da relação de paternidade, quando houver recusa do suposto pai em submeter-se ao exame de DNA. Tal problema merece efetiva solução, que enfrente o cerne da questão, haja vista que o filho encontra-se numa situação juridicamente indeterminada, no aguardo da pronúncia estatal declarando o seu status no seio familiar. É um caso complexo de tensão entre princípios constitucionais, como o da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, e da personalidade, cuja solução merece bastante cautela. Neste contexto, o princípio da proporcionalidade será de fundamental importância para o deslinde constitucional da colisão de direitos fundamentais.

2. Relativismo axiológico e inexistência de hierarquia entre direitos fundamentais Todo grupo social possui uma escala de valores, sendo esta importante para a caracterização das diversas sociedades no espaço e no tempo. Aliás, mesmo dentro de um mesmo grupamento social, haverá posições divergentes no que se refere à escala de valores. A própria democracia expressa valores, que são a maioria, a igualdade e a liberdade, e seu conceito é mais abrangente que o de Estado de Direito7, que surgiu como expressão jurídica da democracia liberal. A preferência por certos valores está relacionada com o reconhecimento da superioridade de um valor em face de outro. Embora, no âmbito do indivíduo, cada um estabeleça suas preferências e forma uma hierarquia subjetiva, no domínio da sociedade, deve ser estabelecida uma hierarquia comum a todos os seus membros para que o Direito possa proteger cada valor de acordo com sua posição nesta escala. 5 6 7

Aprovada pelo Decreto Legislativo n° 28, de 14 de setembro de 1990. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 24. Miguel Reale, dissertando sobre a natureza tridimensional do Estado, assim se manifesta: “Basta concentrarmos nossa atenção sobre qualquer hipótese de Estado possível, que se ofereça ao nosso espírito como dado de observação, para percebermos que em todo Estado há sempre três elementos conjugados ou co-implicados, nenhum deles podendo ser compreendido plenamente sem os outros dois: a) o fato de existir uma relação permanente de Poder, com uma discriminação entre governantes e governados; b) um valor ou um complexo de valores, em virtude do qual o Poder se exerce; c) um complexo de normas que expressa a mediação do Poder na atualização dos valores de convivência”. Cf. REALE, Miguel. Teoria do direito e do Estado. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 374.

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É necessário então que os valores predominantes sejam protegidos e, com isto, seja garantida a pacificação dos interesses dos membros da sociedade, fazendo com que esta possa perpetuar-se. Efetuar esta proteção é função do Direito, resolvendo os conflitos de interesses e coibindo a prática de atos contrários aos valores eleitos por esta sociedade. Daí a afirmação de Miguel Reale de que “o Direito existe porque há a possibilidade de serem violados os valores que a sociedade reconhece como essenciais à convivência”8. Duas características podem ser atribuídas aos valores: a bipolaridade e a hierarquia9. A bipolaridade implica que a um valor sempre se opõe um contra-valor (belo e feio, justo e injusto, etc.), e nessa existência bipolar o homem o reconhece como uma realidade dialética em relação a qual ele é chamado a se posicionar. Esta atitude dá ao valor um sentido, podendo este ser negativo ou positivo. A segunda característica é a da hierarquia, com os valores adquirindo maior ou menor importância quando inter-relacionados. Na análise destas contraposições exerce-se uma preferência por este ou aquele valor. Assim, o indivíduo, ao eleger suas preferências, constrói uma escala de valores, sendo estes, portanto, determinantes de formas de conduta. Gustav Radbruch10 refere-se ao Direito como um “facto ou fenómeno cultural, isto é, um facto referido a valores”, que só pode ser compreendido dentro da atitude que refere as realidades aos valores. Embora Hans Kelsen tenha se preocupado em estudar as normas, sua doutrina não nega a apreciação valorativa e nem reduz o direito à norma. Como afirma Alexandre Travessoni Gomes, “a Teoria Pura do Direito entende o Direito enquanto norma possibilitando considerações sobre os elementos fáticos e valorativos”, pois “Kelsen não nega que o Direito crie determinados valores”11. Para Hans Kelsen, as normas expressam valores, e onde há norma há valor. Dessa forma, de maneira nenhuma Hans Kelsen rejeita a dimensão valorativa do Direito. Assim, a conduta é valorada em face da norma: correspondendo a ela, positivamente, contrária a ela, negativamente. Os valores, entretanto, são relativos, e somente se revestem de objetividade quando instituídos pela norma. Esta posição adotada por Hans Kelsen deriva de sua adesão ao relativismo filosófico, em contraposição ao absolutismo filosófico, que corresponde a uma concepção metafísica da existência de uma realidade absoluta, que independe do conhecimento humano. Para 8 9

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REALE, Miguel. Filosofia do direito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 189. Diversas características podem ser atribuídas, entretanto, aos valores. Para Miguel Reale, por exemplo, estas características são: bipolaridade, implicação, referibilidade, preferibilidade, incomensurabilidade, graduação hierárquica, objetividade, historicidade e inexauribilidade. Cf. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 191. RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. Trad. Cabral de Moncada. 6.ed. Coimbra: Arménio Amado, 1997, p. 45. GOMES, Alexandre Travessoni. O fundamento de Validade do Direito: Kant e Kelsen. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000. p. 193.

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Alexandre Travessoni Gomes “é o relativismo filosófico que governa todas as concepções kelsenianas”12, relativismo este que prega verdade e valores relativos13. O entendimento de Norberto Bobbio é que os direitos do homem, em sua maioria, não são absolutos, e nem constituem uma categoria homogênea. Segundo ele um valor absoluto seria cabível a pouquíssimos direitos do homem, válidos em todas as situações e para todos os homens sem distinção. “Trata-se de um estatuto privilegiado, que depende de uma situação que se verifica muito raramente; é a situação na qual existem direitos fundamentais que não estão em concorrência com outros direitos igualmente fundamentais”14. Miguel Reale analisa a questão dos invariantes axiológicos, “isto é, da existência ou não de valores fundamentais e fundantes que guiem os homens, ou lhes sirvam de referência, em sua faina cotidiana”15. Os riscos de uma ruptura da ordem e as ameaças ou mesmo lesões a direitos fundamentais16 exigem o estabelecimento de valores que se12 13

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GOMES, Alexandre Travessoni. O fundamento de validade do direito: Kant e Kelsen. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p. 192. Segundo Norberto Bobbio, “há três modos de fundar os valores: deduzi-los de um dado objetivo constante, como, por exemplo, a natureza humana; considerá-los como verdades evidentes em si mesmas; e, finalmente, a descoberta de que, num dado período histórico, eles são geralmente aceitos (precisamente a prova do consenso)”. Cf. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 26. Continua explicando Norberto Bobbio que “é preciso partir da afirmação óbvia de que não se pode instituir um direito em favor de uma categoria de pessoas sem suprimir um direito de outras categorias de pessoas. O direito a não ser escravizado implica a eliminação do direito de possuir escravos, assim como o direito de não ser torturado implica a eliminação do direito de torturar. Esses dois direitos podem ser considerados absolutos, já que a ação que é considerada ilícita em conseqüência de sua instituição e proteção é universalmente condenada. [...] Na maioria das situações em que está em causa um direito do homem, ao contrário, ocorre que dois direitos igualmente fundamentais se enfrentem, e não se pode proteger incondicionalmente um deles sem tornar o outro inoperante. Basta pensar, para ficarmos num exemplo, no direito à liberdade de expressão, por um lado, e no direito de não ser enganado, excitado, escandalizado, injuriado, difamado, vilipendiado, por outro. Nesses casos, que são a maioria, deve-se falar de direitos fundamentais não absolutos, mas relativos, no sentido de que a tutela deles encontra, em certo ponto, um limite insuperável na tutela de um direito igualmente fundamental, mas concorrente. E, dado que é sempre uma questão de opinião estabelecer qual o ponto em que um termina e o outro começa, a delimitação do âmbito de um direito fundamental do homem é extremamente variável e não pode ser estabelecida de uma vez por todas. [...] Além disso, há situações em que até mesmo um direito que alguns grupos consideram fundamental não consegue fazer-se reconhecer, pois continua a predominar o direito fundamental que lhe é contraposto, como é o caso da objeção de consciência. O que é mais fundamental: o direito de não matar ou o direito da coletividade em seu conjunto de ser defendida contra uma agressão externa? Com base em que critério de valor uma tal questão pode ser resolvida? Minha consciência, o sistema de valores do grupo a que pertenço, ou a consciência moral da humanidade num dado momento histórico?” Cf. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 42-43. Miguel Reale lembra que “a magnitude do assunto suscita logo uma série de perguntas inquietantes: ‘serão tais valores primordiais inatos? Se não o forem, terão objetividade em si, mas como e quando a constituíram? Ou serão, ao contrário, meras aparências, simples idealizações subjetivas com que nos enganamos a nós mesmos, mascarando a nossa ignorância”. Cf. REALE, Miguel. Filosofia e teoria política: ensaios. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 113. Miguel Reale recorda ainda “que, notadamente no ‘primeiro pós-guerra’, como conseqüência dos riscos a que ficara exposta a espécie humana, o receio de uma nova fratura na civilização levou insignes pensadores, como Max Scheler e Nicolai Hartman a recolocar em pauta o problema das ‘invariantes axiológicas’ mas já então com plena consciência, digamos assim, apesar da aparente repetição, do valor da consciência substancial do valor, ou, por outras palavras, de sua culminante substantivação, o que suscitava a exigência de uma Axiologia autônoma, fora dos quadros da Metafísica, onde persistem alguns a situar, erroneamente a meu ver, assim a

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riam indiscutíveis e, portanto, intangíveis no direito positivo. No mesmo sentido, Cláudia Toledo conceitua invariantes axiológicos como um “conjunto de valores fundantes que, uma vez identificados pela consciência moral subjetiva e intersubjetiva e pela consciência jurídica de um povo, assumem uma objetividade em relação à qual não se consegue retroceder”17. Assim, uma vez conscientizada a respeito da importância de determinados valores indispensáveis para a materialização dos seus ideais de justiça, a sociedade positiva-os na forma de conteúdo de direitos que passam a integrar definitivamente o seu cabedal jurídico. Como afirma Noberto Bobbio18, “os direitos do homem constituem uma classe variável, como a história destes últimos séculos demonstra suficientemente”, e o que é fundamental em um determinado momento histórico e em uma determinada civilização pode não ser fundamental em outras épocas e em outras culturas. Isto ocorre porque a hierarquia de valores, e não de direitos, estabelecida é variável no espaço e no tempo, e acompanha a evolução do direito. Nenhum direito é absoluto pela sua própria natureza, uma vez que o direito só existe em sociedade e implica assim em uma adequação constante.

3. Tensões entre princípios constitucionais Os critérios clássicos para resolução de antinomia – critério cronológico (lex posterior derogat priori), critério hierárquico (lex superior derogat inferior) e critério da especialidade (lex speciallis derogat lex generali) – não são suficientemente aptos à solução de colisão entre princípios constitucionais. A doutrina costuma classificar e descrever inúmeras espécies de antinomias. Em relação ao conteúdo, as antinomias podem ser próprias e impróprias. As antinomias próprias ocorrem quando há incompatibilidade formal entre duas normas, ou seja, quando os modais (obrigatório, proibido e permitido) forem diferentes ou contrários. As antinomias impróprias decorrem da incompatibilidade do conteúdo material da norma. Estas últimas ainda podem ser antinomias valorativas, teleológicas e principiológicas. As antinomias impróprias de princípios ocorrem quando há princípios distintos no mesmo ordenamento jurídico, acolhendo valores contraditórios ou opostos. A sua ocorrência é comum quando o sistema jurídico está alicerçado em um pluralismo ideológico, como é o caso brasileiro. A tensão principiológica constitucional (antinomia imprópria principiológica) aproxima-se, de certa forma, de uma antinomia insolúvel, tendo em vista que a tensão

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Teoria dos Valores como a Teoria do Conhecimento. A Segunda Guerra Mundial veio ainda mais concentrar a atenção dos filósofos e cientistas sobre a problemática dos valores, indagando de seus pressupostos”. REALE, Miguel. Filosofia e teoria política: ensaios. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 121. TOLEDO, Cláudia. Direito adquirido e Estado democrático de direito. São Paulo: Landy, 2003, p. 250. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 18-19.

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principiológica constitucional consiste em um confronto de normas postas sob o mesmo corpo e ao mesmo tempo. Assim, a tensão de princípios constitucionais caracterizar-se-ia pela ausência de critérios clássicos a aplicar (cronológico, hierárquico e especial) e, em última análise, pela inexistência de uma resposta segura do ordenamento jurídico para solução da incompatibilidade. Entretanto, “a colisão entre princípios não constitui necessariamente uma fratura do sistema jurídico, desde que a este seja atribuído um fundamento valorativo – a dignidade da pessoa humana”19. Mas, apesar das dificuldades, o aplicador do direito não pode ficar entregue ao subjetivismo, haja vista que a tensão de princípios constitucionais tem métodos próprios para alcançar as soluções. Dessa forma, no cruzamento de princípios que aparentemente se contradizem, como o que ocorre entre a preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, e da personalidade, deve-se ponderar interesses e bens à luz do princípio da proporcionalidade, não se admitindo subjetivismo do magistrado porque há critério para que a tensão seja solucionada.

4. O princípio da proporcionalidade e a prevalência dos interesses da criança O princípio da proporcionalidade tem sido bastante utilizado hodiernamente na jurisprudência e na doutrina, especialmente no trato das discussões acerca de tensões entre princípios constitucionais e ponderação de valores. Embora o princípio da proporcionalidade não se encontre expressamente definido no texto constitucional, não se pode, por isso, alegar a inexistência deste princípio em nosso sistema jurídico. A Constituição de 1988 trouxe inúmeros dispositivos que tratam da proteção dos direitos fundamentais, assegurando ainda, através da cláusula aberta do seu artigo 5°, §2°, a possibilidade de expansão do rol dos direitos e garantias fundamentais. A lavra de Suzana Barros20 sintetiza muito bem isto: O princípio da proporcionalidade, como uma das várias idéias jurídicas fundantes da Constituição, tem assento justamente aí, nesse contexto normativo no qual estão introduzidos os direitos fundamentais e os mecanismos de respectiva proteção. Sua aparição se dá a título de garantia especial, traduzida na exigência de que toda intervenção estatal nessa esfera se dê por necessidade, de forma 19 20

NEGREIROS, Teresa. A dicotomia público-privado frente ao problema da colisão de princípios. In: TORRES, Ricardo Lobo (org.). Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 355. BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3 ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2003, p. 95.

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adequada e na justa medida, objetivando a máxima eficácia e otimização dos vários direitos fundamentais concorrentes. Além disso, não se pode dissociar o entendimento do conceito de direitos fundamentais como de Estado de Direito, podendo-se ainda inserir a fundamentação do princípio da proporcionalidade no âmbito do Estado de Direito, mais precisamente no Estado Democrático de Direito. Direitos fundamentais são, por conseguinte, dimensões indispensáveis do Estado Brasileiro. Mas um tal Estado, que tenha como função e fim a proteção de direitos dos seus cidadãos, só pode ser implementado sob as bases do Direito. Da mesma forma, dialeticamente, este Estado de Direito só pode ser democrático21. O princípio da proporcionalidade constitui importante instrumento de controle ao arbítrio e ao subjetivismo judicial, reforçando o equilíbrio entre os poderes constituídos e contribuindo para a racionalização da decisão judicial. O estudo do princípio da proporcionalidade exige uma análise de seus aspectos gerais, necessários para a realização da ponderação de valores entre princípios e, mormente, para a diferenciação do indigitado princípio e o princípio da razoabilidade. Deve-se à doutrina alemã os aspectos que serão aqui analisados. Estes critérios não rompem a unidade existente ao redor do princípio da proporcionalidade. Nesse sentido, o seu fracionamento em três aspectos, quais sejam, a adequação, a necessidade e a conformidade, não altera em nada seu desiderato no controle do grau e das limitações impostas pelo Estado de Direito às liberdades individuais22. Dessa forma, deve-se primeiramente verificar se o meio utilizado é adequado, em segundo lugar se ele é necessário e, finalmente, se, na eventual ponderação de valores, por meio do aspecto da conformidade, ocorre a superioridade das vantagens sobre as desvantagens em sua aplicação. A adequação deve ser entendida baseando-se na idoneidade e na conformidade dos meios empregados, adotando-se medidas apropriadas, aptas, adequadas aos objetivos perseguidos para a realização do caso concreto. Paulo Bonavides23, que também nomeia tal aspecto como “pertinência”, afirma que

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BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3 ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2003, p. 99. Cf. PONTES, Helenilson Cunha. O princípio da proporcionalidade e o direito tributário. São Paulo: Dialética, 2000, p. 67: “A concepção do princípio da proporcionalidade como uma norma geral na qual estão albergados três deveres (adequação, necessidade e conformidade) não rompe a unidade epistemológica deste princípio jurídico, que consiste no controle do grau e da natureza das limitações impostas pelo Estado às liberdades individuais, bem como na medida de concretização das pretensões constitucionais”. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 396-397.

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a pertinência ou aptidão (Geeignetheit) que, segundo Zimmerli, nos deve dizer se determinada medida representa “o meio certo para levar a cabo um fim baseado no interesse público”, conforme a linguagem constitucional dos tribunais. Examina-se aí a adequação, a conformidade ou a validade do fim. [...] Com o desígnio de adequar o meio ao fim que se intenta alcançar, faz-se mister, portanto, que “a medida seja suscetível de atingir o objetivo escolhido”, ou, segundo Hans Huber, que mediante seu auxílio se possa alcançar o fim desejado. A pergunta a ser realizada para a aplicabilidade do aspecto aqui analisado se resume da seguinte forma: “o meio escolhido contribui para a obtenção do resultado pretendido?”24 A resposta para esta pergunta supõe que a adequação dos meios aos fins deve se basear em uma exigência de que qualquer atitude restritiva do direito deve ser idônea à realização do escopo perquirido, porquanto, caso seja inapta para tal necessidade, deverá ser considerada inconstitucional. As transformações sociais e inovações técnicas fazem surgir novas exigências, imprevisíveis e inexequíveis antes que essas transformações e inovações tivessem ocorrido. Norberto Bobbio25 exemplifica que jamais haveria a exigência de uma maior proteção dos idosos se não tivesse ocorrido o aumento não apenas do número de idosos, mas também de sua longevidade, duas consequências das transformações ocorridas nas relações sociais e resultantes dos progressos da medicina. Da mesma forma, a conjuntura atual demanda os movimentos ecológicos e as exigências de uma maior proteção da natureza, proteção que impõe a proibição do abuso ou do mau uso dos recursos naturais, ainda que os homens não possam deixar de usá-los. Na área da investigação de paternidade, a descoberta do código genético individual, o DNA, leva a resultados positivos de índices probabilísticos tendentes à certeza. Não há dúvida que o exame de DNA é o meio mais preciso para identificação de paternidade, haja vista que possui uma porcentagem de acerto que varia de 99,99% a 99,9999%, o que, na prática, representa um número absolutamente preciso. Não se pode deixá-lo de lado, preferindo analisar fatos e provas com baixos níveis de relevâncias contidos nos autos da ação de investigação de paternidade. Dessa forma, a imprescindibilidade do meio de prova leva a concluir, parcialmente, sob o prisma da adequação, que se o pretenso pai permanecer inerte ou não se colocar à disposição da Poder Judiciário, poderá ser feito uso da coação para a realização do exame. O princípio da proporcionalidade ainda impõe a observância do aspecto da necessidade, assegurando-se a inexistência de outras medidas menos lesivas do que aquela que 24 25

BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3 ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2003, p. 78. BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3 ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2003, p. 76.

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se propõe, aferindo-se então a exigibilidade ou necessidade da medida. É a chamada proibição do excesso, também conhecida como “princípio da menor ingerência possível”, consistindo no imperativo de que os meios utilizados para alcançar os fins visados sejam os menos onerosos para a pessoa. Nesse sentido, não se deve exceder os limites indispensáveis à conservação do fim legítimo que se almeja. A respeito do aspecto da necessidade, Suzana de Toledo Barros leciona: O pressuposto do princípio da necessidade é o de que a medida restritiva seja indispensável para a conservação do próprio ou de outro direito fundamental e que não possa ser substituída por outra igualmente eficaz, menos gravosa. Assim, explicam-se os dois núcleos (ou subprincípios) a que Lerche referiu-se: o meio mais idôneo e a menor restrição possível26. No mesmo sentido, Helenilson Pontes aduz: A necessidade (Erforderlichkeit), como aspecto do princípio da proporcionalidade, consubstancia a exigência da adoção do meio limitador mais suave, menos deletério para o interesse jurídico que teve o seu exercício limitado; a limitação ao exercício de bens jurídicos constitucionalmente tutelados, imposta por medida estatal, deve ser estritamente necessária ao alcance do interesse público buscado27. Neste contexto, o aludido critério repele a utilização de meios mais gravosos ou menos idôneos que causem reflexo nos direitos fundamentais das pessoas. Dessa forma, ponderando-se dois ou mais meios supostamente adequados para atingir-se determinado fim, deve-se escolher aquele menos gravoso e mais idôneo ao indivíduo. Mais uma vez é trazida a lição da professora Suzana de Toledo Barros28. Na consideração de que uma medida é inexigível ou desnecessária e que, por isso, fere o princípio da proporcionalidade, é importante que se possa indicar outra medida menos gravosa – menor restrição – e concomitantemente apta para lograr o mesmo ou um melhor resultado – meio mais idôneo. Segue-se não se poder formar um juízo de exigência da providência legislativa restritiva, se não se recorrer à ponderação entre meio utilizado e fim a ser atingido. [...] 26 27 28

BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2003, p. 81. PONTES, Helenilson Cunha. O princípio da proporcionalidade e o direito tributário. São Paulo: Dialética, 2000, p. 68. BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2003, p. 82-84.

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A necessidade de uma medida restritiva, bem de ver, traduz-se por um juízo positivo, pois não basta afirmar que o meio escolhido pelo legislador não é o que menor lesividade causa. O juiz há de indicar qual o meio mais idôneo e por que objetivamente produziria menos consequências gravosas, entre os vários meios adequados ao fim colimado. Alexy caracterizou-a da seguinte forma: para a consecução de um fim F, exigido por um direito D1, existem, pelo menos, dois meios, M1 e M2, que são igualmente adequados para promover F. M2 afeta menos intensamente o titular de D1, já que M1 restringe um outro direito seu D2. Para atingir F e realizar D1 é indiferente se eleja M1 ou M2, mas para o titular dos direitos D1 e D2 só M2 é exigível. É forçoso concluir que o princípio da necessidade traz em si o requisito da adequação. Só se fala em exigibilidade se o meio empregado pelo legislador for idôneo à prossecução do fim constitucional. Assim, no que concerne ao aspecto da necessidade, havendo mais de um meio possível, deve se utilizado aquele cuja desvantagem ou prejuízo seja menor possível ao indivíduo, sob pena inconstitucionalidade do meio empregado. Este também é o entendimento de Paulo Ferreira da Cunha: Toda a limitação nesta sede terá de pautar-se por critérios de necessidade e adequação, actuais e teleológicos, procurando o julgador avaliar a imprescindibilidade de qualquer limitação num direito por meio de outro, e antecipar os resultados, efeitos e implicações práticas de várias hipóteses e respostas possíveis, inclinando-se para as que potenciem as mais adequadas soluções, minimizando os custos e os sacrifícios de ambas as partes do jogo (princípio da proporcionalidade). Trata-se, assim, de uma relação de conciliação entre direitos... Há, assim, nesta repartição de limitações, ou até na decisão a favor de uma solução menos irénica, que prefigurar-se o melhor resultado possível na limitação (não só a máxima efectividade, mas também o mínimo dano)29. Muitas vezes é alegada a existência de ofensa a direito fundamental na colheita de material, ainda que minimamente invasiva à integridade física. Por vezes argumenta-se que a cessão forçada de material genético violaria o seu direito à intimidade, pois o material cedido conteria informações do indivíduo, como propensões a doenças ou até mesmo doenças já contraídas, que estariam sendo expostas sem o seu consentimento. Naturalmente que todos os procedimentos envolvidos estariam sob o manto do segredo de justiça, previsto, inclusive, constitucionalmente, não sendo assim motivo para recusa ao exame. Aliás, a existência de doenças transmissíveis aos descen29

CUNHA, Paulo Ferreira da. Teoria da Constituição. Lisboa: Verbo, 2000, p. 284.

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dentes é mais uma razão para que seja abandonada a presunção de paternidade e buscada a certeza da filiação biológica. Também se argumenta o desrespeito ao seu direito à inviolabilidade do seu corpo, com a extração forçada de materiais como sangue, fios de cabelo, ou saliva, por exemplo. Não se consegue, entretanto, vislumbrar que a submissão a tal exame demande sacrifícios corpóreos consideráveis, que sejam legítimos a respaldar uma recusa. Não se deve confundir direito fundamental – aquilo que é essencial – com questões meramente acessórias, sob pena de “inflacionar o conceito de direitos fundamentais” 30 e, com isto, enfraquecê-los. Alega-se ainda que se o indivíduo for forçado a colaborar para a produção de exame médico-pericial, poderia estar sendo forçado a produzir provas contra si, o que não seria admitido no ordenamento jurídico pátrio (artigo 8º, §2º, “g”, do Pacto de São José da Costa Rica). Não se pode admitir que uma prova que vai corroborar uma relação de paternidade, inicialmente suspeita, seja prova produzida contra si, haja vista que o que se busca é a certeza a respeito da existência ou não de um vínculo familiar. Além disso, convém destacar que “ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade” (artigo 339 do Código de Processo Civil). Chega-se a afirmar que a participação na perícia constituiria afronta à sua dignidade pessoal, esquecendo-se que, se deste modo fosse, também assim seria a própria participação na relação jurídica processual. Tais argumentos não são suficientes para afastar a necessidade da realização da perícia médica para que a verdade seja efetivamente conhecida. E o exame de DNA é o meio menos gravoso e mais idôneo para alcançar tal finalidade. Mero inconveniente apontado perde em relevância na busca da verdadeira informação quanto à paternidade de um indivíduo. O terceiro e último critério do princípio da proporcionalidade é o critério da conformidade, também conhecido como critério da proporcionalidade em sentido estrito, que se constitui na escolha do meio que, no caso concreto, mais leve em conta o conjunto de interesses envolvidos. Na sua utilização, está-se diante de uma obrigação – manifesta pelo uso de meios adequados – e uma interdição – referindo-se ao uso de meios desproporcionais. Nesse sentido, o aplicador do direito, ao chegar nesta fase na aplicação do princípio da proporcionalidade, deve ater-se à relação entre custo e benefício da medida, ponderando os danos causados e os resultados obtidos. A proporcionalidade em sentido estrito traz consigo a idéia de conformidade no processo de interpretação-aplicação do Direito, porquanto exige a apreciação concreta dos bens jurídicos em colisão, observadas as peculiaridades da questão submetida à análise. 30

A expressão é utilizada em outro contexto por Cláudio Pereira de Souza Neto. Cf. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Deliberação pública, constitucionalismo e cooperação democrática. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, jan./mar. 2007, p. 126.

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Assim sendo, a relação entre o meio adotado (realização do exame de DNA “debaixo de vara”) e o fim com ele perseguido (alcançar a verdade na relação de paternidade) revela-se proporcional na medida em que a vantagem representada pelo alcance desse fim supera o prejuízo decorrente da limitação concreta imposta a outros interesses igualmente protegidos (o direito à intimidade e o direito à integridade física, por exemplo). Na decisão paradigma proferida no julgamento do Habeas Corpus HC nº 71.373RS, o Supremo Tribunal Federal decidiu, em 10/11/1994, e desde então já decorreu mais de uma década, que não coaduna com as “garantias constitucionais implícitas e explícitas – preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da inexecução específica e direta de obrigação de fazer – provimento judicial que, em ação de investigação de paternidade, implique determinação no sentido de o réu ser conduzido ao laboratório, ‘debaixo de vara’, para coleta do material indispensável à feitura do exame DNA. A recusa resolve-se no plano jurídico instrumental, consideradas a dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que voltadas ao deslinde das questões ligadas à prova dos fatos”31. Ficaram vencidos os Ministros Francisco Rezek, relator originário, Ilmar Galvão, Carlos Velloso e Sepúlveda Pertence. Interessa trazer aqui o voto vencido do Min. Carlos Velloso, que entende que tem o filho, ao que penso, o direito de conhecer o seu pai biológico. Esse direito se insere naquilo que a Constituição assegura à criança e ao adolescente: o direito à dignidade pessoal. Esse interesse não fica apenas no mero interesse patrimonial. A consequência da não submissão do ora impetrante ao exame, apontou o Sr. Ministro Marco Aurélio, seria emprestar a essa resistência o caráter de confissão ficta. Isso, entretanto, se tem importância para a satisfação de meros interesses patrimoniais, não resolve, não é bastante e suficiente quando estamos diante de interesses morais, como o direito à dignidade que a Constituição assegura à criança e ao adolescente (...). Ora, Sr. Presidente, não há no mundo interesse moral maior do que este: o do filho conhecer ou saber quem é o seu pai biológico (...). Registre-se que não presta obséquio à dignidade de uma pessoa, ser esta sustentada por outrem, como se fora seu pai, simplesmente porque esse outrem não quis submeter-se ao exame, ficou sujeito à pena processual de confissão ficta. Isto, vale repetir, resolve a questão patrimonial. Nessas questões, entretanto, não conta apenas a questão patrimonial. Questões como esta demonstram, aliás, que o direito de família não contém apenas disposições privatísticas, que o direito de família é muito mais público do que privado32. 31 32

Rel. Min. Marco Aurélio. DJ de 22/11/1996. VELLOSO, Carlos Mário da Silva. A evolução da interpretação dos direitos fundamentais no Supremo Tribunal Federal. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (org.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 361-362.

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Quem é o pai da criança? Ensaio sobre a (im)possibilidade de realização de exame de DNA “debaixo de vara”

Nesse sentido, deve ser aplicado o princípio da proporcionalidade para a solução dos hard cases. Em sua obra “O Império do Direito”33, Ronald Dworkin concorda que os direitos individuais não são ilimitados, em dois pontos: 1) quando direitos constitucionais concorrem entre si, isto é, onde há conflito entre direitos individuais, hipótese em que o Estado pode limitar um dos dois em favor do mais importante; 2) quando o Estado se encontra em estado de guerra, circunstância que autoriza a censura da liberdade de expressão, desde que haja “autêntica emergência”). Quando projetada no direito civil, a luz constitucional permite a identificação de novos valores em que se (re)funda o direito civil, os quais não mais têm no indivíduo, mas na dignidade da pessoa humana, o seu ponto de convergência, o seu foco. Ilumina-se, nesta perspectiva, a substituição do apoio axiológico das relações de natureza civil, que passam a ser determinadas em função da preservação e da potencialização de valores existenciais, em oposição a valores exclusivamente patrimoniais34. Analisando este HC 71.373-RS, Maria Celina Bodin de Moraes debruça-se sobre as especificidades da situação fática e valora-as à luz da Constituição para concluir que, naquele caso concreto, deveria prevalecer o interesse do investigando, em prejuízo da integridade física do investigado. “A integridade física, nesta hipótese, parece configurar interesse individual se contraposta ao direito à identidade real, o qual, referindo-se diretamente ao estado pessoal e familiar da criança, configura, além de qualquer dúvida, interesse público de toda a coletividade”35. Merece ser destacado que o artigo 227 da Constituição Federal estabelece que é dever do Estado, além da família e da sociedade, assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. O §6º do artigo 227 da Constituição prescreve ainda que os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. 33 34 35

DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. NEGREIROS, Teresa. A dicotomia público-privado frente ao problema da colisão de princípios. In: TORRES, Ricardo Lobo (org.). Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 346. MORAES, Maria Celina Bodin de. Recusa à realização do exame de DNA na investigação da paternidade e direitos da personalidade. Direito, Estado e Sociedade – Revista do Departamento de Direito da PUC-Rio. n. 9. Rio de Janeiro, 1996, p. 97.

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A concepção do desenvolvimento integral da criança a exigir proteção especial e absoluta prioridade também foi acolhida pela Convenção sobre os Direitos da Criança. Esta convenção “destaca-se como o tratado internacional de proteção de direitos humanos com o mais elevado número de ratificações. Em 24 de novembro de 2004, contava com 192 Estados-partes”36. Sobre o tema, estabelece o artigo 7º da Convenção sobre os Direitos da Criança: 1. A criança será registrada imediatamente após seu nascimento e terá direito, desde o momento em que nasce, a um nome, a uma nacionalidade e, na medida do possível, a conhecer seus pais e a ser cuidada por eles. 2. Os Estados Partes zelarão pela aplicação desses direitos de acordo com sua legislação nacional e com as obrigações que tenham assumido em virtude dos instrumentos internacionais pertinentes, sobretudo se, de outro modo, a criança se tornaria apátrida. Como se vê, a criança tem direito de conhecer seus pais, conhecer a sua ascendência biológica, e, por isso, busca a tutela jurisdicional. Havendo meios para alcançar uma certeza, a criança não pode receber do Estado uma resposta com base em uma presunção. Se, por um lado, este tipo de decisão atende a certos interesses patrimoniais, por outro, nega à criança o direito à dignidade pessoal.

5 Considerações finais Este trabalho visou a solucionar uma situação que está constantemente em discussão no direito pátrio e que envolve, diretamente, a colisão de princípios constitucionais de extrema importância. De fato, não se pode admitir a recusa da parte a se submeter ao exame de DNA, com base em argumentos vazios, deixando assim de suprir materialmente o seu filho. Mas, igualmente, não se pode admitir que fique desprotegido o direito do indivíduo ao conhecimento da verdade sobre a relação de paternidade, certo que a satisfação da obrigação patrimonial não basta. Embora o texto constitucional brasileiro proclame de maneira solene direitos fundamentais, estes não são absolutos, uma vez que estão sujeitos a certos limites. Inexistindo uma ordenação hierárquica abstrata e absoluta de direitos fundamentais, é possível, portanto, que existam soluções juridicamente opostas, considerando os princípios em si mesmos, embora visando à proteção da pessoa humana. 36

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 199.

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Quem é o pai da criança? Ensaio sobre a (im)possibilidade de realização de exame de DNA “debaixo de vara”

A referida questão, para ser solucionada, depende de ponderação de valores, instrumento este extremamente útil e necessário para se buscar a resposta mais equânime do conflito analisado, mormente naqueles casos que envolvem a discussão sobre a aplicabilidade de dois ou mais princípios, um favorecendo o investigante, outro oferecendo maior proteção aos direitos do investigado. Ao fazer a ponderação de bens, devemos levar em consideração o princípio da proporcionalidade, sob a égide do qual devem ser realizadas as restrições recíprocas entre os princípios constitucionais envolvidos. Dessa forma, deve-se verificar primeiramente a adequação do exame de DNA como meio a ser utilizado. Deve ser o meio apto a alcançar a finalidade a que se destina, respeitando os ditames do sistema jurídico pátrio. Em seguida, deve ser constatado se este meio a ser utilizado é necessário para se atingir tal escopo. Para isso, deve ser ele o mais idôneo e o menos gravoso ao indivíduo. Por fim, o aspecto mais incisivo diz respeito à proporcionalidade em sentido estrito. Tal aspecto analisa as vantagens e as desvantagens que o meio a ser utilizado trará às partes e, a partir daí, faz-se uma ponderação de valores, a fim de se averiguar qual deles é primordial para o caso em questão. Respeitados estes critérios, é possível o constrangimento do suposto pai para a realização de exame de DNA “debaixo de vara” como prova na investigação de paternidade.

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I diritti umani tra Unione europea e Costituzionali nazionali: il caso del mandato di arresto europeo Alfonso Celotto*

1

1. Fino a che punto il diritto comunitario può erodere la sovranità nazionale degli Stati membri dell’Unione europea? La primautè del diritto comunitario opera anche rispetto alle norme delle Costituzioni nazionali o esiste comunque un nucleo duro di principi (i “controlimiti”) idoneo a resistere? Queste domande sono tra i “punti centrali” del rapporto fra ordinamento comunitario e ordinamenti nazionali, da sempre discussi, mai sufficientemente chiariti. Che divengono ancora più problematici da quando il diritto comunitario tocca anche i diritti della persona umana. Cioè da quando l’Unione europea si è cominciata a interessare anche di Giustizia, Affari interni, Politica di Sicurezza. Sappiamo anzi che la teoria dei “controlimiti” negli anni ha conosciuto diverse formulazioni e diverse ricostruzioni, sulla base delle enunciazioni – quasi sempre solo teoriche - delle Corti costituzionali, soprattutto tedesca e italiana. Alcuni hanno cercato di vedervi una forma di dialogo fra ordinamenti, per consentire una integrazione flessibile a livello dei principi supremi. Altri l’hanno configurata come “extrema ratio”, quale via di fuga eccezionale, per consentire agli Stati nazionali di reagire in caso di violazioni macroscopiche discendenti dal diritto comunitario. Ad ogni modo, i controlimiti sono stati e restano un punto di snodo centrale nei rapporti fra Unione europea e sistemi costituzionali nazionali, individuando il “luogo” di maggior sofferenza di una (illuministica) prevalenza, completa e ineluttabile, del diritto comunitario. 2. Questi interrogativi hanno trovato nuova linfa e hanno alimentato nuovi dubbi nel dibattito sulle applicazioni del mandato d’arresto europeo. Tipico caso di interferenza tra diritto europeo e Costituzioni nazionali in tema di diritti umani. *

Professore ordinario di diritto costituzionale – Università degli studi “Roma tre”.

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Alfonso Celotto

Il 13 giugno 2002 il Consiglio dell’Unione europea adottava la decisione quadro 2002/584/GAI, relativa al mandato di arresto europeo e alle procedure di consegna tra gli Stati membri. Come è noto, a norma dell’art. 34, co. 2, lett. b) TUE, «le decisioni-quadro sono vincolanti per gli Stati membri quanto al risultato da ottenere, salva restando la competenza delle autorità nazionali in merito alla forma e ai mezzi». Il termine, previsto dalla decisione quadro, per l’attuazione a livello nazionale, era il 31 dicembre 2003. Il secondo rapporto di valutazione sullo stato di avanzamento delle misure di recepimento della decisione quadro attesta che, a luglio 2007, il mandato di arresto europeo è applicabile nei ventisette Stati membri dell’Unione europea, avendo tutti provveduto ad attuare la decisione quadro nei rispettivi ordinamenti nazionali. Tuttavia, il recepimento della decisione quadro nei diversi Stati non ha seguito un percorso lineare. Anzi. L’estrema delicatezza della materia ha causato dubbi, difficoltà applicative, battute di arresto. Molteplici sono state le soluzioni adottate, a livello legislativo e/o giurisprudenziale, per far fronte a tali difficoltà. È quindi opportuno, in primo luogo, ricordare le obiezioni che l’istituzione del mandato di arresto europeo ha sollevato sin dalle origini, per poi verificare se e in che misura gli Stati membri abbiano provveduto a superarle. A livello comunitario, la decisione quadro sul mandato di arresto europeo è stata adottata al fine di abolire, tra gli Stati membri, la procedura formale di estradizione, caratterizzata da una lunga serie di adempimenti di tipo amministrativo e burocratico ed introdurre invece un sistema semplificato di consegna, tra le autorità giudiziarie, delle persone ricercate o condannate. Il mandato di arresto europeo consiste dunque in una decisione emessa da un giudice di uno Stato membro e rivolta alle competenti autorità giudiziarie di altro Stato dell’UE, affinché queste ultime consegnino allo Stato di emissione una persona ricercata o condannata nello Stato che spicca il mandato. Lo scopo è quello di facilitare e rendere più celere la procedura di consegna in uno spazio giuridico comune di libertà, sicurezza e giustizia. A fondamento di tale meccanismo vi è il principio del mutuo riconoscimento delle decisioni giudiziarie emanate nei diversi Stati, basato sulla reciproca fiducia verso i rispettivi sistemi di giustizia penale. Tuttavia, è proprio a cominciare dall’applicazione di tale principio nell’ambito della cooperazione giudiziaria e di polizia in materia penale che sorgono i primi dubbi. Se è vero che il principio del mutuo riconoscimento ha contribuito in maniera significativa alla realizzazione del mercato unico, è doveroso però rilevare che in ambito penale emergono questioni di tutt’altro spessore. A fronte dell’impellente ed improrogabile esigenza comunitaria di introdurre strumenti per combattere la lotta alla criminalità organizzata e transfrontaliera, vi è comunque il dovere di assicurare che la cooperazione giudiziaria in materia penale non

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I diritti umani tra Unione europea e Costituzionali nazionali: il caso del mandato di arresto europeo

implichi un’erosione della sovranità statale e non pregiudichi quindi la tutela dei diritti fondamentali tradizionalmente garantita dai singoli Stati1. A livello nazionale quindi, in sede di attuazione della decisione quadro si è discusso sulla compatibilità della decisione quadro con i principi garantiti dalle Costituzioni degli Stati membri. Si pensi, ad esempio, al principio, statuito in numerose Carte costituzionali, che vieta l’estradizione dei cittadini, o ai principi di legalità e tassatività delle fattispecie penali garantiti a livello nazionale. Constatato che la decisione quadro non prevede tra i motivi di rifiuto del mandato di arresto quello fondato sulla cittadinanza della persona e che all’art. 2, co. 2, esclude il requisito della doppia incriminazione per trentadue categorie di reati, in relazione alle quali tuttavia lascia indeterminata la descrizione delle fattispecie penali e delle relative pene, sono emersi problematici rischi di incostituzionalità delle discipline nazionali di recepimento della decisone quadro. 3. Per superare tali difficoltà, in alcuni Stati − Portogallo, Slovenia e Francia − si è provveduto, preventivamente, vale a dire, in sede di attuazione della decisione quadro, ad un’opportuna revisione costituzionale; in altri, invece, − Polonia, Germania e Cipro − si è intervenuti solo successivamente, sollevando, dinanzi al giudice costituzionale, questioni di legittimità sulle leggi nazionali di attuazione. È stato così, ad esempio, che il Tribunale costituzionale polacco, con sentenza 27 aprile 2005, si è pronunciato sulla conformità a Costituzione dell’art. 607 t cpp., introdotto con legge 16 marzo 2004 ed entrato in vigore in concomitanza con l’adesione della Polonia all’UE. Il Tribunale distrettuale di Danzica, sollevava questione di legittimità costituzionale, in via incidentale, dubitando che la disposizione sopra menzionata, nella parte in cui consente la consegna dei cittadini polacchi ad altri Stati dell’UE, conformemente al mandato di arresto europeo, fosse in contrasto con l’art. 55 della Costituzione che vieta, senza eccezioni, l’estradizione dei cittadini polacchi. Il Tribunale costituzionale, compiuto un lungo excursus sull’istituto dell’estradizione, rilevata la ratio ad essa sottesa e constatata la sostanziale omogeneità di fondo tra estradizione e consegna conforme al mandato di arresto, ha dichiarato l’illegittimità costituzionale della disposizione censurata. Interessante la scelta di ricorrere all’applicazione dell’art. 190 della Costituzione. Si tratta di una disposizione che consente di differire nel tempo (nel caso, diciotto mesi) gli effetti di una declaratoria di incostituzionalità per consentire agli organi competenti di intervenire nel modo più adeguato. Di conseguenza, la norma, benché incostituzionale, continua ad esplicare effetti in attesa dell’auspicata modifica o del decorso del tempo. 1

Sull’argomento, cfr. MERCEDES PISANI, Problemi costituzionali relativi all’applicazione dl mandato di arresto europeo negli Stati membri, in www.federalismi.it. BALBO, Il mandato d’arresto europeo secondo la legge di attuazione italiana, Torino, Giappichelli, 2005;

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Nel caso di specie, dietro tale scelta, apparentemente contraddittoria, si cela l’esigenza di contemperare i diversi interessi in gioco: da un lato, la strenua tutela di valori e principi costituzionali, dall’altro, l’impellente necessità di uno Stato di recente adesione di responsabilizzare le autorità all’uopo preposte al fine di assolvere tempestivamente agli obblighi comunitari2. Nonostante la revisione sia stata poi apportata entro il termine previsto nella sentenza, tale modifica suscita qualche perplessitàĐ. La Polonia attualmente acconsente alla consegna dei propri cittadini, purché però il reato per il quale la consegna venga richiesta sia stato commesso al di fuori del territorio polacco e costituisca reato secondo la legge polacca. Tale condizione non appare conforme a quanto statuito nella decisione quadro che almeno per le trentadue categorie di reato di cui all’art. 2, co. 2, esclude il requisito della doppia incriminazione. Toni più accesi e conseguenze più drastiche contraddistinguono la sentenza successivamente resa dal Tribunale costituzionale tedesco sulla legge nazionale di attuazione della decisione quadro relativa al mandato di arresto europeo e alle procedure di consegna tra Stati membri. A seguito di un ricorso individuale presentato da un cittadino tedesco e siriano, sospetto terrorista, contro l’ordinanza di consegna emessa nei suoi confronti dalla Corte di Amburgo, il Tribunale, con decisione 18 luglio 2005 (2 BvR 2236/04), ha annullato integralmente la legge nazionale di attuazione del mandato di arresto. I giudici di Karlsruhe, se da un lato hanno rilevato l’importanza e l’efficacia del mandato, quale utile strumento di cooperazione giudiziaria europea, dall’altro hanno aspramente criticato il legislatore nazionale non avendo questi rispettato, nel dare attuazione alla decisione quadro, i requisiti previsti dalla riserva di legge rinforzata di cui all’art. 16, co. 2, LF ed, in particolare, i principi dello Stato di diritto. In altre parole, tenuto conto del margine di discrezionalità e flessibilità previsto dalla decisione quadro, il legislatore avrebbe potuto, anzi dovuto, dare attuazione al mandato di arresto ricorrendo a strumenti tali da rispettare maggiormente i principi dello Stato di diritto3. Successivamente a tale decisione, i cittadini tedeschi, detenuti in attesa di consegna in base al mandato di arresto, sono stati scarcerati e i relativi procedimenti sospesi, fino all’entrata in vigore della nuova legge 20 luglio 2006, avvenuta il 2 agosto successivo. Infine, con una decisione resa il 7 novembre 2005, la Corte suprema di Cipro ha dichiarato incostituzionale la legge nazionale di recepimento del mandato di arresto europeo. Indipendentemente dalla natura e dalla sostanziale omogeneità o meno all’estradizione, la Corte ha escluso che l’arresto di un cittadino cipriota, in vista della consegna ad altro Stato, potesse trovare un legittimo fondamento in Costituzione. 2 3

Cfr. SAWICKI, Incostituzionale ma efficace: il mandato di arresto europeo e la Costituzione polacca, in http:// associazionedeicostituzionalisti.it/cronache/estero/arresto_polonia/index.html. Così, PALERMO, Tanto tuonò che (un po’) piovve: la sentenza del Tribunale costituzionale federale tedesco sul mandato d’arresto europeo, in Quad cost., 2005, 897 ss.

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Soltanto a seguito della revisione costituzionale, apportata dopo la declaratoria di incostituzionalità ed entrata in vigore il 28 luglio 2006, è ammessa la consegna dei cittadini ciprioti, conforme al mandato di arresto europeo, purché però si tratti di atti commessi successivamente alla data di adesione di Cipro all’UE, ovvero al 1º maggio 2004. 4. Non tutte le Corti costituzionali degli Stati comunitari hanno però optato per decisioni di strappo. In altri casi, nella tecnica di bilanciamento ha prevalso maggiormente lo spirito comunitario. Va così inquadrato il tenore della sentenza con cui la Corte costituzionale ceca il 3 maggio 2006 ha respinto il ricorso presentato da un gruppo di parlamentari al fine di ottenere l’annullamento delle disposizioni del codice penale (§ 21, co. 2 ) e di procedura penale (§ 403, co. 2, 411, co. 6, lett. e), 411, co. 7 e 412, co. 2), che consentono la consegna dei cittadini conforme al mandato di arresto europeo. Degna di nota l’argomentazione sostenuta dalla Corte per escludere il contrasto delle disposizioni censurate con l’art. 14 della Carta dei diritti e delle libertà fondamentali ceca, nella parte in cui esso tutela il diritto dei cittadini di non essere obbligati a lasciare la propria patria. Ricorrendo ad un’interpretazione sistematica del parametro indicato, ovvero contestualizzandolo in ambito comunitario e quindi tenendo presente l’elevato livello di mobilità dei cittadini comunitari e la consequenziale esigenza di cooperazione giudiziaria in materia penale tra Stati membri, la Corte ha escluso che la consegna di un cittadino ad altro Stato, al fine di perseguirlo penalmente, per un periodo di tempo limitato e con la possibilità di tornare in patria per scontare l’eventuale pena inflitta, risponda alla medesima ratio che ispira il divieto di cui all’art. 14 della Carta. Peraltro, ad avviso della Corte, tale soluzione risulta avvalorata dal principio di interpretazione conforme al diritto comunitario4. Esso opera in presenza di una disciplina nazionale che, formulata in modo generico e ambiguo, o comunque suscettibile di più letture, presenta, almeno in apparenza, profili di contrasto con una normativa comunitaria che ricade nello stesso ambito materiale coperto dalla disposizione nazionale. Al fine di evitare il sorgere dell’antinomia normativa tra diritto interno e comunitario, gli Stati membri sono tenuti, per quanto possibile, ad interpretare il diritto nazionale in modo conforme a quello comunitario. Dal momento che tale criterio ermeneutico si esplica «con riguardo a tutte le fonti dell’ordinamento comunitario, si traducano esse in norme primarie o di diritto derivato, in atti produttivi di effetti giuridici vincolanti o non»5, 4

5

Cfr., ex plurimis, CGCE, 10 aprile 1984, C-14/83, Von Colson, in Racc., 1984, 1891; Id., 13 novembre 1990, C-106/89, Marleasing, ivi, 1990, I-4135; Id., 16 dicembre 1993, C-334/92, Wagner Miret, ivi, 1993, I-6911; Più di recente cfr. CGCE, 5 ottobre 2004, cause riunite da C-397/01 a C-403/01, Pfeiffer e a., ivi, 2004, I-8835; Id., 4 luglio 2006, C-212/04, Adeneler, ivi, 2006, I-6057. Così TIZZANO, nelle conclusioni presentate il 30 giugno 2005, relativamente alla causa C-144/04, Mangold.

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compresi dunque gli atti del terzo pilastro dell’UE6, la Corte ceca, interpretando l’art. 14 della Carta in modo conforme agli obblighi derivanti dal diritto comunitario, ha escluso il contrasto delle disposizioni censurate con il parametro invocato. L’interpretazione conforme, quale criterio guida che deve orientare le autorità giudiziarie degli Stati membri nella lettura delle disposizioni nazionali, ha giocato un ruolo decisivo anche nella sentenza resa dalla House of Lords il 28 febbraio 2007. A seguito di un mandato di arresto spiccato dalla autorità giudiziaria spagnola e accordato dalla competente autorità giudiziaria inglese, in merito alla consegna di un presunto terrorista islamico accusato degli attentati dinamitardi sui treni di Madrid dell’11 marzo 2004, la House of Lord ha respinto l’appello proposto dal presunto terrorista avverso la decisione di consegna. L’interpretazione della legge inglese di attuazione del mandato di arresto alla luce della lettera e dello scopo della decisone quadro ha indotto i giudici a rilevare la conformità del mandato di arresto, spiccato dal giudice spagnolo, alla legge nazionale. 5. Il dibattito Unione europea vs Costituzioni nazionali resta (e resterà ancora) aperto. L’ampliamento delle materie comunitarie fino a ricomprendervi attribuzioni tipiche della sovranità statale come i diritti e le libertà dei cittadini e il parallelo allargamento territoriale dell’Unione a realtà non sempre omogenee rendono sempre più complessa e frastagliata la ricostruzione dei rapporti fra Unione europea e Stati membri. La tradizionale impostazione comunitaria di un progressivo avvicinamento, che portasse a una possibile unificazione, è stata superata dalla inevitabile constatazione che, in un’Europa a 27 Stati, si deve pensare piuttosto ad una “armonia fra diversi” (mi piace richiamare la felice definizione di Valerio Onida). I percorsi di questa armonizzazione sono tortuosi e probabilmente ancora lunghi, come ci mostra l’accidentato processo costituente europeo. Tuttavia, il processo comunitario avanza, inarrestabile. L’esame del mosaico giurisprudenziale sul mandato d’arresto europeo evidenzia sì quanto sia difficile e problematico contemperare esigenze comunitarie di sicurezza e tutela nazionale dei diritti e dei valori fondamentali; ma al tempo stesso fa trasparire, nitidamente, che tutte le Corti costituzionali chiamate a pronunciarsi non hanno mai scelto di porsi in aperta rottura con l’appartenenza comunitaria, ma – articolando bilanciamenti e interpretazioni – hanno comunque cercato e applicato soluzioni ispirate ad una logica di armonizzazione, per quanto “tra diversi”.

6

CGCE, 16 giugno 2005, C-105/03, Pupino, in Racc., 2005, I-5285.

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Do Princípio da Proteção Especial à Doutrina da Proteção Integral: 50 Anos de Avanços na Defesa dos Direitos Humanos das Crianças Ana Maria D’Ávila Lopes * 1

1. Introdução Na história da humanidade é difícil encontrar um período de tempo no qual o tema dos direitos humanos tenha tanto significado teórico e prático como atualmente (GROS ESPIELL, 1991, p. 15). Embora seja possível citar no passado momentos nos quais o tema teve importância crucial, em um Estado ou em uma região, nunca, como hoje, a questão dos direitos humanos tem sido objeto de tantos estudos, discussões e debates, que não se têm circunscrito aos campos da Filosofia ou da História, mas se têm transformado em matéria que interessa política, social e juridicamente a todos os povos do mundo. Esse fenômeno da universalização dos direitos humanos é, nas palavras de Gros Espiell (1991, p. 16), “un proceso no concluído, un asunto abierto al futuro”. Possui raízes e precedentes muito antigas, porém, em sentido estrito, teve início com a entrada em vigor da Carta das Nações Unidas, cujas idéias concretizaram-se três anos após, na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (ONU, 1948). A categórica importância da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (DUDH) reside não apenas na sua condição de marco da universalização dos direitos humanos, mas na sua influência na elaboração de outros documentos internacionais e *

Mestre e Doutora em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Membro Efetivo da Câmara de Assessoramento e Avaliação - Área Ciências Sociais - da FUNCAP. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.

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nacionais de proteção dos mais diversos direitos dos seres humanos, como os relativos aos direitos das crianças. A partir da aprovação e com base na DUDH, diversos documentos sobre os direitos das crianças foram aprovados no plano internacional (Declaração Universal dos Direitos das Crianças de 1959, Convenção dos Direitos das Crianças de 1989, Convenção n.º 182 e Recomendação 190 da OIT sobre a Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e a Ação Imediata para sua Eliminação de 1999, dentre outros), assim como várias legislações internas adaptaram suas normas a essa nova realidade. Cita-se, como exemplo, o ordenamento jurídico brasileiro e a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 (Lei n° 8.069/90). São 50 anos de avanços e transformações conceituais. Nesse contexto, o presente trabalho tem como objetivo evidenciar, a partir da análise do princípio da especial proteção e da doutrina da proteção integral, a mudança paradigmática na defesa dos direitos humanos das crianças e sua influência na legislação brasileira. Para tal, inicialmente será apresentado o marco histórico do surgimento teórico dos direitos humanos até sua concretização na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 para, seguidamente, analisar o princípio da proteção especial e a doutrina da proteção integral acolhidos na Declaração Universal dos Direitos das Crianças de 1959 e na Convenção dos Direitos das Crianças de 1989, respectivamente. Finalmente, a influência desses documentos, nos diferentes ordenamentos jurídicos nacionais, será evidenciada a partir de uma breve explanação sobre a legislação brasileira referente ao tema. Desde a adoção do princípio da especial proteção na Declaração Universal dos Direitos das Crianças em 1959, até a adoção da doutrina da proteção integral na Convenção dos Direitos das Crianças de 1989, muitas conquistas na defesa dos direitos humanos das crianças têm sido alcançadas. No entanto, em pleno século XXI, ainda há muito para ser construído. As corriqueiras notícias sobre o tráfico de crianças para fins de exploração sexual ou trabalho escravo, por exemplo, evidenciam a urgente necessidade de continuar lutando para que os direitos humanos deixem de ser apenas belas palavras estampadas em folhas de papel e alcancem, finalmente, a efetividade que a humanidade espera que tenham. Essa é uma obrigação que compete a todos nós, enquanto membros de uma comunidade universal onde o respeito à dignidade de todos os seres humanos deve ser condição sine qua non de convivência.

2. Do Surgimento da Teoria à Universalização dos Direitos Humanos Não obstante alguns autores afirmem que na Magna Carta de 1215 já se perfilava a preocupação sobre o homem e seus direitos, devemos reconhecer que a teoria dos direitos humanos é moderna (LOPES, 2001).

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Lewandowsky (1984) assinala que a teoria dos direitos humanos teve sua origem no Iluminismo e no Jusnaturalismo desenvolvidos na Europa dos séculos XVII e XVIII, quando se firmou a noção de que o homem tinha direitos inalienáveis e imprescritíveis, decorrentes da própria natureza humana e existentes independentemente do Estado. O pensamento iluminista, com suas idéias sobre a ordem natural, sua exaltação às liberdades e sua crença nos valores individuais do homem acima dos sociais, constitui a gênese dos direitos humanos. No entanto, isso não significa que antes da Modernidade as idéias sobre dignidade, liberdade e igualdade não estavam presentes, mas, o que acontece é que essas idéias não eram formuladas como direitos reivindicáveis por todos os indivíduos. Até mesmo nas chamadas cartas de direitos que precederam as de 1776 na América e a de 1789 na França, desde a Magna Carta até o Bill of Rights de 1689, os direitos ou liberdades não eram reconhecidos como existentes antes do poder do soberano, mas eram concedidos ou concertados, devendo aparecer – mesmo que fossem o resultado de um pacto entre súditos e soberano – como um ato unilateral deste último. (BOBBIO, 1992, p. 101). Na Antigüidade, por exemplo, prevaleceram as normas da cidade como belle totalité, não sendo reconhecidos direitos ao homem individualmente considerado. A organização da cidade não deixava lugar nem ao desenvolvimento do humanismo nem à singularidade do homem. Bobbio (1992, 57-58) refere que os códigos de regras de conduta tinham como principal função proteger mais ao grupo em seu conjunto do que ao indivíduo singular. Mais do que dos direitos do homem, falava-se dos seus deveres, dentre dos quais o principal era o respeito à lei. Além disso, o termo direito não indicava uma prerrogativa ou uma faculdade do indivíduo (direito subjetivo), mas restringia-se à própria norma (direito objetivo). A Filosofia, a Política e o Direito tiveram na Antigüidade e na Idade Média um horizonte cosmo-teológico diferente do da Modernidade. Platão e Aristóteles, por exemplo, estudaram o homem em relação à natureza, enquanto que a doutrina cristã da Idade Média concebeu o ser humano em dependência a Deus (BOBBIO, 1992, 59-60). É apenas no Humanismo, ainda que timidamente, que podem ser encontrados os antecedentes da teoria dos direitos humanos. O Humanismo, que se inicia no século XIV, introduziu uma nova visão do mundo, da natureza, da arte, e da moral, contrária à visão totalizadora da filosofia escolástica e do mundo medieval. O Humanismo caracterizou-se pela exaltação do indivíduo e pela reivindicação da sua liberdade e capacidade de criar com autonomia na arte, na literatura, e na cultura em geral. A afirmação da dignidade e do próprio valor do homem irá se apoiar na filosofia dos sofistas, dos epicureos e dos estóicos, com um grande componente relativista. Essa nova ética, que reconhece a iniciativa humana, foi a que permitiu uma nova organização social, na qual as regras sociais e o Direito alcançaram um papel preponderante, propiciando, assim, o surgimento de uma esfera chamada “liberdade negativa” ou “liberdade como não interferência”, antecedente dos direitos do homem.

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A Reforma Protestante, por outro lado, também contribuiu para reforçar o individualismo e para salientar o papel do homem na sociedade e na história. Os questionamentos sobre a autoridade da Igreja, a tradução e o livre estudo da Bíblia fomentaram, além da iniciativa individual, o pluralismo, o relativismo e a tolerância. A secularização permitiu, também, que se procure não mais em Deus, mas na natureza do homem, a ordem do mundo e as respostas a todas as indagações, dando lugar ao auge da ciência. A confiança na razão diante da autoridade foi fortalecida, tornando, com isso, os homens em autênticos protagonistas da história. Peces-Barba (1993, p. 327 e ss.) encontra, nessa época, três formas iniciais de direitos humanos: as liberdades individuais, os direitos políticos e as garantias processuais, que correspondem à discussão histórica da tolerância, dos limites do poder e da humanização do direito. a) sobre a tolerância, a reforma protestante acabou com a unidade religiosa, propiciando o surgimento de diversas seitas e grupos religiosos heterodoxos. A defesa da tolerância e, mais tarde, a distinção entre Direito e Moral (Thomásio) foram os argumentos utilizados na defesa da liberdade de consciência perante novas imposições religiosas e a interferência do Estado em matéria de fé, “num primeiro momento, durante as guerras de religião, surgiu a exigência da liberdade de consciência contra toda forma de imposição de uma crença” (BOBBIO, 1992, p. 74). Nesse âmbito, é o indivíduo, e só ele, quem tem o poder de decidir; b) referente aos limites do poder, a pressão exercida pelo poder econômico da burguesia contra o absolutismo deflagrou a necessidade de limitar o poder do Estado, provocando a reformulação teórica de sua organização e relação com os cidadãos, além de, especialmente, buscar uma nova fundamentação que justificasse sua existência. Diante da antiga justificação teológica do poder, os novos doutrinadores (Hobbes, Locke e Rousseau) pretenderam encontrar essa fundamentação na origem contratual do Estado, só que, como jusnaturalistas defenderam a existência de direitos anteriores - direitos naturais - que teriam como função proteger os indivíduos contra os abusos do Estado; c) em relação à humanização do Direito, a nova visão do homem como protagonista da história lhe permitiu assumir o lugar principal, passando a conceber o Direito como um instrumento no seu benefício. Essa transformação repercutiu, sobretudo, no direito penal, exigindo-se um processo com garantias para o indivíduo, antecedentes das atuais garantias do devido processo legal. Todas essas constituem reivindicações dos que lutavam contra o dogmatismo da Igreja e contra o autoritarismo do Estado. É justamente nessa época, quando o homem consegue sair do círculo cosmo-teológico que o absorve e passa a ser consciente da sua capacidade criativa e do seu protagonismo, que encontramos os antecedentes da teoria dos direitos humanos.

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Não obstante, a teoria dos direitos humanos não foi apenas produto de uma “inspiração ideal”, senão que foi também o resultado de diversas reivindicações e lutas pelo exercício real desses direitos idealmente concebidos. A realidade de onde nasceram as exigências desses direitos era constituída pelas lutas e pelos movimentos que lhes deram vida e as alimentaram: lutas e movimentos cujas razões, se quisermos compreendê-las, devem ser buscadas não mais na hipótese do estado de natureza, mas na realidade social da época, nas suas contradições, nas mudanças que tais contradições foram produzindo em cada oportunidade concreta (BOBBIO, 1992, p. 74). O período entre os séculos XVI e XVIII foi profundamente transformador. As estruturas econômicas, sociais, culturais e políticas do mundo medieval desapareceram para dar lugar ao mundo moderno. As condições históricas manifestaram-se na contradição entre a existência de um regime de monarquia absoluta e uma nova classe: a burguesia, que buscava a expansão comercial e cultural do mundo. No âmbito social e econômico, o surgimento da burguesia como classe individualista, a contrário dos grêmios e das corporações medievais, deu impulso à iniciativa individual e, com isso, ao protagonismo da pessoa, “el hombre se liberará del status y se relacionará en la sociedad como individuo libre frente a otros hombres libres, comerciantes, profesionales, artistas, con la competencia como criterio” (PECES BARBA, 1993, p. 328). Sob a influência dos humanistas e da reforma, a fé e a religião não serão mais um limite ao poder e aos direitos do homem, que adquirirão uma maior importância. No âmbito político, as estruturas plurais do poder medieval serão substituídas pelo Estado como forma de poder racional, centralizador e burocrático, que não reconhece poder superior e que busca o monopólio do uso da força. A soberania, enquanto conceito identificador desse poder, terá como função a produção do Direito, que se tornará um instrumentum regni para acabar com os poderes medievais. Peces-Barba (1993, p. 328) refere que, nesse contexto, os direitos humanos aparecem como um limite ao poder estatal no intuito de garantir um âmbito de autonomia e liberdade ao burguês. A burguesia irá, inicialmente, apoiar-se nesse novo Estado, ainda absoluto, para se fortalecer e fortalecer o seu sistema econômico contra os grêmios, o feudalismo e todos os obstáculos existentes para o desenvolvimento do comércio e da indústria. Só depois de ter-se valido das idéias do contrato social e dos direitos naturais, é que a burguesia irá se separar deles, os combaterá e, finalmente, destruirá esse Estado absoluto, que antes serviu seus interesses. O jusfilósofo espanhol afirma que, embora possa parecer uma contradição falar ao mesmo tempo de direitos humanos e Estado absoluto, foi justamente o absolutismo o que permitiu o desenvolvimento e a proclamação dos direitos do homem e do cidadão. Foi com a vitória da revolução liberal da França e o movimento pela independência das colônias inglesas na América do Norte do século XVIII, que apareceram os primeiros documentos – na forma de declarações – de direitos humanos. Trata-se da Declaração

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dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 da França e da Declaração do Bom Povo de Virgínia de 1776. Muitos autores afirmam que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foi claramente influenciada pela Declaração do Bom Povo de Virgínia. Na verdade, não foi assim, pois os revolucionários franceses já vinham preparando o advento do Estado Liberal ao longo de todo o século XVIII, com base no pensamento de Rousseau, Locke e Montesquieu. Das declarações de finais do século XVIII à Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (DUDH), o mundo passou por grandes transformações. Se, por um lado, foram muitas as conquistas no plano dos direitos humanos, por outro lado, essas foram conquistas que ficaram no âmbito teórico/legislativo da sua formulação. As atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial evidenciaram a fragilidade e precariedade de deixar a previsão e aplicação dos direitos humanos ao arbítrio de cada Estado, sendo imprescindível a elaboração de um documento com pretensões universais que fosse capaz de estabelecer um mínimo de proteção a todos os seres humanos, independentemente da sua raça, origem, cor, idade, sexo, religião, nacionalidade, etc. em qualquer lugar do mundo. Nesse contexto, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 foi elaborada. A indiscutível importância da Declaração de 1948 vem acompanhada da certeza de que o fenômeno da universalização dos direitos humanos é um processo que ainda não tem terminado, como aponta Gros Espiell (1991, p. 16). Assim, alguns temas que, pelas próprias circunstâncias históricas da evolução da humanidade ficaram de fora desse documento, vêm sendo paulatinamente objeto de discussão no cenário jurídico interno e internacional de proteção do ser humano. Sem uma DUDH que, por exemplo, tivesse firmemente afirmado que a titularidade dos direitos e liberdades ali acolhidos correspondia a todos os seres humanos, independentemente da sua raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião, política ou distinção de qualquer outra índole, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição (art. 2.1), direitos como os hoje reconhecidos a algumas pessoas em situações de vulnerabilidade, como as crianças, teriam, muito possivelmente, sua discussão e previsão ainda mais postergada, além da sua fundamentação questionada.

3. Os Direitos Humanos das Crianças e o Princípio fa Proteção Especial e a Doutrina da Proteção Integral nas Esferas Internacional e Nacional A Declaração Universal dos Direitos das Crianças foi aprovada por unanimidade em 20 de novembro de 1959 pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas

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(ONU, 1959). O documento consta de dez princípios, sendo que no segundo é acolhido o princípio da proteção especial, Princípio II A criança gozará de proteção especial e disporá de oportunidade e serviços, a serem estabelecidos em leu por outros meios, de modo que possa desenvolver-se física, mental, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal, assim como em condições de liberdade e dignidade. Ao promulgar leis com este fim, a consideração fundamental a que se atenderá será o interesse superior da criança (grifo nosso).

Esse princípio foi elaborado com base no art. 25.2 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (ONU, 1948): Art. 25 (...) 2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma proteção social (grifo nosso). O princípio da proteção especial das crianças contido nessas duas declarações evidencia, por sua vez, a adoção da concepção do direito à igualdade no seu sentido material, ou princípio da isonomia, que determina que se deve tratar os iguais como iguais e os desiguais como desiguais. Essa exigência decorre do fato de que, embora enquanto ser humano todo indivíduo é igual a outro, na sociedade nem todos os seres humanos exercem ou cumprem os mesmos papéis, encontrando-se alguns em situação de clara desvantagem em relação aos outros. Diante disso, espera-se do Estado a previsão de normas especiais que objetivem colocar em igualdade de condições os que se encontram em situação de desigualdade. Com tal entendimento é que o princípio da proteção especial das crianças foi acolhido nesses documentos. Reconhece-se, assim, a situação de especial vulnerabilidade em que as crianças se encontram devido a serem pessoas em situação especial de desenvolvimento, exigindo-se, conseqüentemente, a elaboração de normas e adoção de políticas públicas capazes de garantir o exercício pleno dos seus direitos humanos. No entanto, embora a indiscutível importância da adoção do princípio da proteção especial na defesa dos direitos humanos das crianças, a realidade mostrou a necessidade de atribuir uma maior força a essa proteção, o que veio, justamente, com a adoção da doutrina da proteção integral.

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A doutrina da proteção integral teve sua origem nos anos setenta durante os trabalhos de elaboração da Convenção Internacional dos Direitos das Crianças, aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 1989, influenciando não apenas as normas internacionais, mas também as legislações de grande parte dos países do mundo, como o brasileiro (SARAIVA, 2003, p. 56). A doutrina da proteção integral descansa sobre dois princípios fundamentais: o princípio do interesse superior ou do melhor interesse da criança e o princípio da prioridade absoluta. O princípio do interesse superior ou do melhor interesse da criança determina que, sempre que possível, deve-se buscar a solução que melhor possa atender os interesses da criança, respeitando a sua vontade ou ponto de vista, ainda que, certamente, levando sempre em consideração sua idade e grau de maturidade: The possibility of contradiction between what safeguards are required to protect children from harm, and what choices the individual child is entitled to make his/her own right, is resolved in modern jurisprudence by having regard to “best interested” of the child (ECPAT, 2006, p. 13). Diferentemente, o princípio da absoluta prioridade indica que, perante qualquer problema, a criança deve receber atendimento ou tratamento prioritário em relação a quaisquer outras pessoas. No Estado brasileiro, a Constituição de 1998 prevê esse princípio no caput do art. 227: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988, ON LINE). (grifo nosso) O princípio da prioridade absoluta, acolhido na referida norma, evidencia claramente a preocupação do constituinte brasileiro de proteger, de forma especial, um segmento da sociedade que se encontra em uma situação de vulnerabilidade, como é o caso das crianças e dos adolescentes. Infraconstitucionalmente, o princípio da prioridade absoluta foi previsto no parágrafo único do art. 4° do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, onde se estabelece: Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes

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à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (BRASIL, 1990, ON LINE), (grifo nosso). A primazia da proteção das crianças e dos adolescentes deriva do reconhecimento da sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, sem, no entanto, negar-lhes sua condição de sujeitos de direitos, na medida em que os direitos fundamentais são constitucionalmente garantidos a todos os brasileiros e estrangeiros (art. 5°, caput), sem nenhuma forma discriminação (art. 3°, IV). Desse modo, deve-se, superar a tradicional concepção de considerar as crianças e os adolescentes apenas como objetos de proteção, controle, ou repressão, para passar a tratá-los, no seu lugar, como verdadeiros sujeitos de direitos: But children are not only the “objects” of protection. Under international human rights law, especially recognized by and outlined in the Convention on the Rights of the Children, children are recognized as persons having certain inalienable rights of their own (ECPAT, 2006, p. 12). Crianças e adolescentes devem ser tratados como verdadeiros cidadãos, conforme o preconizado no ECA: Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis (BRASIL 1989, ON LINE), (grifo nosso). Nesse sentido, as decisões tomadas e as ações voltadas a combater os atos violadores dos direitos humanos das crianças, como no caso do crime de tráfico, por exemplo, devem pressupor a sua participação na sua elaboração e formulação, “by listening to children, parlamentarians can learn a great deal about how they view traffiking and what vulnerabilities they perceive” (UNICEF, 2005, p. 49). Reconhecer a importância da participação das crianças e dos adolescentes, na elaboração das normas e na implementação de políticas públicas, permitirá que se tome consciência da necessidade de previamente informá-las sobre seus direitos, ou seja, de prepará-las jurídica e politicamente, para que assim possam, não apenas defendê-los, mas participar ativa e diretamente nas decisões políticas que as afetam. A construção da solução dos diversos problemas deve contar com a participação das crianças, respeitando-se sempre seu melhor interesse, o que implica respeitar a sua vontade, na medida do possível e legitimamente cabível:

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Allowing children to express their opinions does not mean simply endorsing their views. It is about engaging them in dialogue and exchange that allows them to learn constructive ways of influencing the world around them. The social give and take off participation encourages children to assume increasing responsibilities as active, tolerant and growing democratic citizens (UNICEF, 2005, p. 49). Em um Estado Democrático de Direito, como o brasileiro, todas as pessoas, sem nenhuma discriminação, devem ser consideradas sujeitos de direitos, garantindo-se, a algumas delas, uma especial proteção com base na sua situação de especial vulnerabilidade, como no caso das crianças enquanto pessoas em desenvolvimento, conferindo-lhes prioridade na sua proteção, sem, por outro lado, esquecer-se de buscar sempre o seu melhor interesse. Essa é, justamente, a mudança paradigmática na defesa dos direitos humanos das crianças. De apenas considerá-las objetos de especial proteção, como na Declaração Universal dos Direitos das Crianças de 1959, tem se avançado no sentido de reconhecê-las como sujeitos de direitos, com prioridade absoluta no atendimento dos seus problemas e a constante busca do seu melhor interesse, que será definido com a sua direta participação, na medida do possível e legitimamente cabível.

4. Conclusão Não há dúvida que a Declaração Universal dos Direitos Humanos constitui um marco na história da humanidade. A proclamação do citado documento representa a universalização política e jurídica dos direitos do ser humano, deixando de ser esse apenas um assunto de interesse histórico ou filosófico, para passar a ser um tema que política, social e juridicamente interessa a toda a Comunidade Internacional. No entanto, em pleno século XXI, ainda há muito por fazer na busca pela efetividade de muitos dos direitos humanos, como os das crianças, especialmente porque a sociedade, em geral, continua tratando-as apenas como objetos de proteção, desconhecendo, assim, a sua potencialidade para a construção de soluções dos problemas que diretamente as afetam. Os princípios da prioridade absoluta e do melhor interesse das crianças, alicerces da doutrina da proteção integral, acolhida recentemente em documentos internacionais e na legislação nacional, evidenciam uma importante mudança de paradigma, na medida em que constituem valiosas bases de fundamentação para o empoderamento jurídico-político desse segmento da sociedade o que, inquestionalvemente, irá contribuir para a efetividade dos seus direitos humanos.

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5. Referências BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n° 8.069/90. Disponível em: www.planalto.gov.br/legislação. Acesso em: 05 de julho de 2009. _____. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm. Acesso em: 05 de julho de 2009. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 57-58. ECPAT. Combating the trafficking in children for sexual purposes. Questions and answers. Bangkok, 2006. GROS ESPIELL, Héctor. Derechos humanos. Lima: Cuzco, 1991, p. 15. LEWANDWOSKY, Ricardo. Proteção dos direitos humanos na ordem interna e internacional. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 1. LOPES, Ana Maria D´Ávila. Os direitos humanos: última tentativa de salvação da teoria do direito subjetivo. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. ano 37, n. 148, p. 127-139, 2001. ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Disponível em: http://www. unicef.org/brazil/pt/resources_10133.htm. Acesso em: 03 de julho de 2009. ____. Convenção Internacional dos Direitos das Crianças de 1989. Disponível em: http:// www.unicef.org/brazil/pt/resources_10120.htm. Acesso em 03 de julho de 2009. _____. Declaração Universal dos Direitos da Crianças de 1959. Disponível em: http:// www.mp.rs.gov.br/infancia/documentos_internacionais/id90.htm. Acesso em 03 de julho de 2009. PECES-BARBA, Gregorio. Derecho y derechos fundamentales. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 327. SARAIVA, João Batista da Costa. Adolescente em Conflito com a Lei: da indiferença à proteção integral. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. UNICEF. Combating child trafficking. Handbook for parlamentarians n° 9. Geneve: UNICEF, 2005.

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El Derecho y los Derechos en la Era de la Globalización Antonio-Enrique Pérez Luño*

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1. Planteamiento: Globalización y Derecho desde un Enfoque Interactivo Se cumplía en el año de 2005 el 50 Aniversario de la muerte de José Ortega y Gasset, el pensador español más destacado e influyente en la cultura contemporánea, dentro y fuera de nuestras fronteras. Ortega publicó en 1923 una obra lúcida y premonitoria como casi todas las suyas, con un título pleno de incitaciones: El tema de nuestro tiempo (Ortega y Gasset, 1923, se cita por 1983, 3, 143 ss.). Estimo, que no es aventurado conjeturar que, de vivir hoy Ortega, convendría en admitir que la globalización, en la multiplicidad de sus proyecciones y acepciones, ha devenido “el tema de nuestro tiempo”. El término “globalización” se ha convertido en una categoría de uso incesante y ubicuo en los más diversos sectores de la experiencia social, económica política y cultural de nuestro tiempo. Advierten los analistas del lenguaje que la extensión en el uso de un término es inversamente proporcional a la precisión de su significado. Esa circunstancia apremia a no dejar a la intemperie el concepto de globalización, sin el abrigo de un esfuerzo dirigido a clarificarlo y a evitar que pueda contraer las significaciones más arbitraries y confusas. A ello, se dirige esta reflexión, que se propone explorar el sentido de la globalización en el ámbito jurídico. A tal efecto, se abordarán, por aproximación sucesiva, tres cuestiones concomitantes: 1ª) El impacto de la globalización en el derecho. No en vano se ha podido afirmar que: “El fenómeno llamado de globalización, que caracteriza el desarrollo actual de las ciencias todas, se acusa sobremanera en el derecho” (Domingo, 2005, 141). *

Catedrático de la Facultad de Derecho de la Universidad de Sevilla (España)

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2ª) Las críticas que esa proyección ha generado en la vida política y en distintos sectores de la experiencia juridical de nuestros días. 3ª) La virtualidad del derecho como factor correctivo de los efectos perversos de la globalización

2. El Impacto de la Globalización en el Derecho El término “globalización” se utilizó, en sus primeras aplicaciones, para dar cuenta de los procesos de interdependencia e interacción que caracterizan los fenómenos económicos actuales: producción, explotación, financiación y comercialización de productos y servicios. Dichos procesos de integración e interdependencia se producen a escala planetaria, rebasando los límites tradicionales establecidos por las fronteras de los Estados (Beck, 1998; Malem Seña,2000; Walter,1996). La globalización invita a contemplar los fenómenos y problemas económicos, culturales y políticos del mundo desde una perspectiva totalizadora, que supere la visión fragmentaria y parcelada de los mismos. La globalización implica un nuevo método y una nueva mentalidad a partir de la idea de que todo interfiere en todo y que todo depende de todo. Se ha utilizado, para ilustrar ese nuevo modo de ver las cosas una metáfora que resulta clarificadora. Para entender la globalización es necesario sustituir una visión tradicional del mundo como un mapa político, en el que los distintos colores, representaban las fronteras de los Estados, rígidas e infranqueables. Esa imagen se ha visto reemplazada por un espacio globalizado que se asemeja a los mapas físicos, en los que los fenómenos económicos socio-culurales y político-jurídicos, como si se tratara de fenómenos atmosféricos, (ciclones, anticiclones, borrascas, vientos del este y del oeste…), se producen y expanden sin que puedan ser limitados o encerrados por fronteras nacionales. Resulta ilustrativa la reflexión propuesta por la profesora norteamericana Martha Nussbaum cuando indica que al aire le traen sin cuidado las fronteras nacionales. Este hecho tan simple puede servir para educar a los ciudadanos de las sociedades actuales, desde la infancia, en la consciencia de que, nos guste o no, vivimos en un mundo en el que los destinos de las naciones están estrechamente relacionados entre sí en cuanto se refiere a las materias primas básicas y a la supervivencia humana. Los esquemas rígidos de interpretación de la realidad política, económica y cultural, basados en fronteras nacionales y en compartimentos explicativos cerrados, son del todo inadecuados e insuficientes para captar los problemas de nuestro tiempo. La contaminación de los Estados del tercer mundo que intentan alcanzar el elevado nivel de vida de los países tecnológicamente avanzados acabará, en algunos casos, depositándose en la atmósfera de estos últimos. Sea cual fuere la explicación que finalmente adoptemos sobre estas cuestiones, cualquier deliberación que se precie de inteligente sobre la ecología (como, también,

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sobre el abastecimiento de alimentos y la población) requiere una planificación global, un conocimiento global y el reconocimiento de un futuro compartido (Nussbaum, 1999). Conviene no resbalar sobre una circunstancia que ha sido, las más de las veces, desatendida por determinados análisis triviales, confusos y confundidores de la globalización. Se trata del papel decisivo que para su génesis y desarrollo le incumben a las TIC (Tecnologías de la Información y la Comunicación). Sin ellas los procesos globalizadores serían impensables. Internet es hoy un vehículo imprescindible y recurrente en todos los procesos globalizadores. La Red ha contribuído incluso a superar y a hacer obsoleta la célebre imagen de McLuhan de “la aldea global” en la medida en que hoy cada cibernauta ha convertido su potencialidad comunicativa, sin límites en el espacio, en los interlocutores y en tiempo real, en un “hogar global”, un “living-room global” o un “estudio global” (Pérez Luño, 1987; 2004; 2006). Esa interdependencia ha producido una paulatina erosión del poder de los Estados para controlar sus problemas y alcanzar sus objetivos, que hoy tienen una dimensión global, que tan sólo puede enfocarse y solucionarse en términos de cooperación internacional. Asimismo, el fenómeno incide en un ámbito de especial significación en el plano de las competencias estatales: el de las fuentes del derecho. En este aspecto, uno de los rasgos peculiares de nuestra época es el de la supraestatalidad normativa, que se manifiesta en la presencia de reglas jurídicas comunes en el ámbito de ordenamientos diferentes, debidas a la incorporación de los Estados a organizaciones internacionales o supranacionales, o bien por la recepción de normas jurídicas fuera del área en la que inicialmente fueron promulgadas (cfr. Pérez Luño, 1993). Este fenómeno se ha expresado con particular eficacia en las experiencias y tentativas dirigidas a establecer un nuevo ius commune (Cappelletti, 1974; Häberle, 1996; Pérez Luño, 1993; Pizzorusso, 1987), o de un ius novum universale (Domingo, 2005; id., 2008). Con esas denominaciones se alude a un derecho común, que, a semejanza del forjado por las universidades medievales, representa una especie de tejido conectivo que une los ordenamientos jurídicos actuales; o un nuevo derecho universal, que encuentra expresión en el plano del derecho positivo en documentos y acuerdos sobre derechos humanos, persecución de organizaciones delictivas internacionales y reglas generales del tráfico económico. Al propio tiempo que se afirma por vía jurisprudencial a través de la presencia en distintos ordenamientos estatales nacionales de modelos jurídicos que tienen un origen cultural común y que aspiran al logro de una eficacia planetaria. En la esfera jurídica la globalización ha potenciado que se difunda la exigencia humanista y cosmopolita de situar los valores y derechos de la persona por encima de la coyuntura de las fronteras nacionales. La erosión de la soberanía de los Estados en la era de la globalización ha favorecidola la defensa del valor de la universalidad de los derechos humanos, que ha tenido, las más de las veces, una de sus quiebras y límites más implacables en el ejercicio de la soberanía estatal (Carrillo Salcedo, 1995 id., 2004). Asimismo,

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la sociedad global constituye un poderoso acicate para establecer marcos normativos e institucionales reguladores de las realaciones jurídicas de personas individuales y empresas a escala planetaria. Pero, como contrapunto de esos logros, la globalización entraña algunos riesgos y peligros que no es lícito soslayar.

3. La Globalización y sus Enemigos En los últimos años se ha producido un auténtico aluvión de actitudes, manifiestos movimientos colectivos y formulaciones doctrinarias que tienen en común su abierta hostilidad al fenómeno globalizador. En no pocas ocasiones, los enemigos de la sociedad globalizada incurren en enfoques en los que la vehemencia del ímpetu no consigue disimular la debilidad de las argumentaciones, que parecen construidas con más fuerza física que intelectual. Conviene, no obstante, advertir que, en esa fronda de teorías y prácticas impugnadoras de la globalización, no faltan motivos para una denuncia y para una revisión crítica del fenómeno. Desde determinados enfoques críticos de la globalización se impugna, y no faltan razones para hacerlo, que cuando, en nombre de ese fenómeno se trata de imponer unos determinados valores o instituciones político-culturales, lo que se está haciendo es eurocentrismo, neoimperialismo o, por más que ello se pretenda disfrazar de retórica globalizadora. Por eso, algunos líderes del Tercer Mundo denuncian que tras la globalización se ha ocultado, en muchas ocasiones, el interés de las multinacionales por crear hábitos “globales” de consumo, tendencias uniformadoras de las modas y/o modos de vida; e incluso se ha llegado a calificar ese fenómeno de “mcdonalización del mundo” (Beck, 1998, 71, aunque este autor cuestiona la tesis de que la globalización cultural esté abocada a producir necesariamente tal fenómeno). Para quienes la rechazan, la globalización supone realizar los esquemas económicos del neo-liberalismo capitalista. Entre sus efectos más importantes, destacan: el desbordamiento de la capacidad de las naciones para realizar políticas y/o controles económicos en favor de poderes internacionales (Fondo Monetario Internacional) o privados (empresas y corporaciones multinacionales); la existencia de grandes redes de comunicación que posibilitan actividades financieras y comerciales a escala planetaria; el desequilibrio y asimetría del protagonismo de los distintos Estados en las redes económicas interconectadas, lo que determina la concentración de beneficios en los países del primer mundo (global-ricos), y el correlativo empobrecimiento de los países del tercer mundo (global-pobres). No deja de resultar paradójico que, coincidiendo con la crisis de sus teorías económicas y el desmoronamiento de los sistemas políticos inspirados en su doctrina, la prognosis de Marx sobre la tendencia inexorable a una división radical entre unos pocos países, cada vez mas ricos, a costa de otros muchos, cada vez más pobres, consecuencia

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del desarrollo del capitalismo internacional, se vea, en cierto modo, confirmada en el mundo global del presente. Los enemigos de la globalización han concienciado y movilizado a importantes colectivos que, en numerosas ocasiones, se manifiestan y actúan de forma airada para denunciar los efectos perversos de la sociedad global. Tratan, de ese modo, de “desenmascarar” las pretendidas virtualidades de justicia distributiva de la globalización; ya que la interdependencia e interconexión productiva no se ha traducido en un reparto equitativo y equilibrador de las desigualdades en el disfrute del bienestar. Desde el punto de vista de la filosofía y la teoría del derecho, determinados enfoques críticos insisten en que la orientación económica neocapitalista y política neoliberal en que se asienta la globalización, ha determinado que se globalicen las garantías políticas formales y los derechos de signo individual. Como consecuencia inevitable de esa tendencia, responsabilizan a la globalización de haber contribuido a la crisis definitiva del Estado social de derecho, en especial, de sus programas emancipatorios más avanzados, así como el consiguiente debilitamiento de los derechos económicos, sociales y culturales. En definitiva, desde estas premisas, se censurará al fenómeno globalizador el haber contribuido a ahondar en las desigualdades económicas y en el bienestar entre los países ricos y pobres y, correlativamente, el haber acentuado la asimetría y la desigualdad en el disfrute de la libertad por parte de los individuos y de los pueblos (Arnaud, 2003; id., 2006; De Sousa Santos, 1995; id., 1998; id.,2003; Faria, 2000; Fariñas Dulce, 2000). A diferencia de los derechos individuales cuya garantía reposa en la limitación del poder estatal, los derechos sociales exigen el compromiso activo de los poderes públicos, realizado a través de serviciós públicos y prestaciones para el logro de su efectividad. Por ello, si la crisis de la soberanía estatal ha tenido una repercusión favorable para el reconocimiento de la universalidad de los derechos, paradójicamente, ha supuesto el debilitamiento de los derechos sociales más inmediatamente ligados a políticas públicas.

4. El Derecho y la Regulación de la Sociedad Global Las reflexiones que anteceden llevan a una doble advertencia: a. La primera, se refiere a que la globalización no es un valor. Se trata de un concepto descriptivo, con el que se pretende dar cuenta de determinadas formas de realizarse los fenómenos económicos, sociales, culturales y jurídicos en el mundo presente. La globalización no es, por tanto, una categoría axiológica o pauta de deber ser, a diferencia de cuanto suponen las ideas de universalidad y cosmopolitismo, con las que ineptamente suele confundirse.

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b. En segundo término, importa precisar que la globalización tampoco constituye un fenómeno cósmico, sujeto a las leyes inexorables de la naturaleza o a la necesidad de un determinismo físico. La globalización es un hecho social, una serie de relaciones de opciones, de prácticas y de comportamientos colectivos. De ahí, que al no ser ni un valor, ni un fenómeno cósmico, sino una categoría social, dependa de decisiones humanas. La globalización es un fenómeno social sometido a los parámetros de valoración que rigen las conductas de los seres humanos. Como es notorio el medio que permite que determinados valores penetren y rijan la conducta humana es, precisamente, el derecho; siempre que ese derecho se halle fundamentado por criterios de legitimidad que hoy se concretan en el parámetro de los derechos humanos. Al explorar los problemas axiológicos que plantea la globalización Eusebio Fernández indica que conviene distinguir los efectos de tal fenómeno, según se evalúen desde el plano de la ética individual y privada, o desde de la ética social y pública. En el primero, no tendría sentido hablar de ética globalizada e incluso atentaría contra valores básicos el intento de globalizar la vida individual. Porque ese designio supondría manipular y/o violar la identidad personal, que es lo mejor que define a la persona humana, ya la responsabilidad individual, ya valores como la diversidad o el pluralismo en las formas de pensamiento, creencias o maneras de vivir, o los derechos de las minorías a la diferencia. En cambio, en la esfera ética de carácter social y público sí cabe hablar de un ética globalizada porque global también es la exigencia de significar esa convivencia con el reconocimiento, respeto y protección de los derechos humanos (Fernández, 2001,85 ss.; vid., también sobre esta cuestión, De Julios Campuzano, 2003). No huelga insistir, para evitar equívocos, que esa ética global en la esfera de las relaciones sociales y públicas, hace referencia al espacio en el que se plantean sus exigencias, no propiamente a su contenido axiológico. Ese contenido hará referencia a los valores de la solidaridad, la universalidad y el cosmopolitismo. El fenómeno globalizador, por el contrario, no entraña, en sí mismo, ningún arquetipo de conducta o pauta preceptiva de deber ser. Se trata, tal como se ha indicado supra, de un concepto que describe determinadas características de funcionamiento de los procesos económicos, sociales, político-jurídicos y culturales del mundo y del tiempo presentes. Corresponde, por eso mismo, a los valores que informan la Comunidad internacional y los Estados de derecho, en concreto, a los derechos y libertades que fundamentan esas instituciones, servir de parámetro orientador y crítico al fenómeno de la globalización. En fecha reciente, el profesor Rafael Domingo, cualificado romanista y Director de la Cátedra Garriges de Derecho Global, ha considerado como uno de los

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retos de nuestro tiempo la formación universitaria de “juristas globales”. Esos nuevos estudiosos del derecho representarán una nueva mentalidad jurídica tendente a superar la aparente contradicción entre los sistemas jurídicos de mayor calado y protagonismo a escala mundial: el civil law, propio de la tradición europea continental, y el common law, es decir, el sistema angloamericano. La raíz común de ambos sistemas cifrada en el Derecho romano, constituye el estímulo más eficaz para esa integración sobre la que se podría fundamentar sólidamente el derecho global. El ejemplo de la experiencia jurídica japonesa es invocado por Rafael Domingo como prueba histórica de la posibilidad de un iuscomparatismo conducente a esa integración (Domingo, 2005, 142 ss). Este planteamiento me suscita dos motivos de acuerdo y una advertencia. Convengo con el profesor Domingo en asumir la raigambre histórica común, basada en el derecho romano, de las dos grandes tradiciones jurídicas, civil law y common law , que conjuntamente aportan el núcleo principal de normas e instituciones jurídicas globales. Estimo, al propio tiempo, una propuesta certera postular como fundamento del derecho global una experiencia histórica y concreta como la que representa la tradición romanista. De este modo, pueden corregirse determinadas visiones ideales, abstractas y carentes de cualquier anclaje real, que han contribuído a tornar imprecisa y difusa la caracterización del derecho global. La advertencia alude a los límites axiológicos de la tradición romanista. La relevancia histórica y presente del ius civile en la conformación y por eso mismo, para la inteligencia de una gran parte de las instituciones que integran los sistemas jurídicos actuales, no debe ocultar las profundas diferencias, e incluso, incompatibilidades existentes entre el ordenamiento jurídico romano y el que es propio de los Estados de Derecho y del orden internacional de nuestro tiempo. No es lícito soslayar el calado de determinadas categorías axiológicas romanas (aequitas, bona fides, fraus legis…), para la hermenéutica de los sistemas normativos actuales. Pero, tampoco es lícito omitir la profunda antítesis que existe entre los postulados éticos de una sociedad patriarcal, en el ámbito privado, y desconocedora de los derechos y libertades individuales, en el público. La autonomía y la libertad personales son conquistas de la modernidad, que constituyen los cimientos axiológicos de las libertades modernas. El derecho global puede y debe contar con los presupuestos normativos e institucionales de la tradición romanista, que sirve de substrato común a los sistemas jurídicos del presente, sobre la que se articula la experiencia comparatista globalizadora. Por eso, se han podido considerar los aforismos y reglas jurídicas romanas como elementos constitutivos de los Principios de Derecho Global (Domingo, Ortega, Rodríguez-Antolín, 2003). Ahora bien, el reconocimiento de

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esta circunstancia estimo que debe cojugarse con la afirmación, expresada con idéntico énfasis, de la necesidad de fundar, criticar y legitimar al derecho global desde los parámetros axiológicos del catálogo de valores, derechos y libertades surgidos del paradigma ilustrado de la modernidad. La decantación histórica de ese catálogo en los sistemas jurídicos democráticos y en el orden internacional constituyen, por tanto, el principal aparato de legitimación y encauzamiento crítico del derecho propio de la era de la globalización.

5. Derechos Emergentes y Sociedad Globalizada La globalización ha suscitado también un importante debate en relación con su incidencia en el ámbito de las libertades. Como ejemplo resulta interesante aludir al Proyecto de Carta de Derechos Humanos Emergentes. Los derechos humanos en un mundo globalizado, elaborado por el Forum Universal de las Culturas en el año 2004. Este documento posee luces y sombras, a las que no resulta ocioso aludir como síntoma de las inquietudes presentes en relación con los valores y derechos humanos en la sociedad globalizada. a) Entre los méritos más destacados de esta Carta se debe mencionar su sensibilidad por situar el significado actual de los derechos ante las nuevas condiciones de interdependencia planetaria que dimanan de la globalización. Así, en la Primera Parte del documento en el que se proclama su Marco General, se afirma que: “Mientras que la Declaración Universal de Derechos Humanos surge de una Asamblea de Estados, la Carta de Derechos Humanos Emergentes se construye desde las diversas experiencias y luchas de la sociedad civil global, recogiendo las reivindicaciones más perfiladas de sus movimientos sociales”. La Declaración Universal de Derechos Humanos fue, en efecto, una resolución adoptada solemnemente por las Naciones Unidas, como documento fundamentador de los valores éticos, jurídicos y políticos humanistas del siglo XX. Fue el “ideal común a alcanzar” desde el designio de los Estados de signo liberal y democrático. Mientras que la Carta de Derechos Humanos Emergentes surge desde la experiencia y las voces de la sociedad civil global en los inicios del siglo XXI. Esta Carta pretende ofrecer una nueva concepción de la participación ciudadana y concibe los derechos emergentes como derechos cívicos. Según sus promotores: “se trata de superar el déficit político y la impotencia entre los cambios deseados y las precarias condiciones actuales para su realización”. Se recuerda certeramente en este texto, que los derechos humanos son el resultado de un proceso inacabado y en permanente transformación. Emergen nuevos compromisos, necesidades y nuevos derechos, pero sobre todo, aparece una toma de conciencia de las sociedades actuales que hacen visibles a pueblos

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y grupos sociales que hoy aparecen con voz a través de la emergencia de una sociedad civil internacional organizada. La Carta de Derechos Humanos Emergentes pretende ser una respuesta a los retos que se derivan de los procesos de globalización cuya naturaleza parcial y desigual excluye de sus beneficios a amplias capas de la población mundial, en particular los países subdesarrollados, pero también en los desarrollados, diseñando como marco de relación global un escenario de pobreza, violencia y exclusión. Se recuerda en la Carta que, en el mundo actual, existen nuevos contextos y mundialización de la economía, grandes transformaciones de la ciencia y la tecnología, la ingeniería médica. Nos hallamos ante fenómenos tales como: “las migraciones mundiales y desplazamientos de grandes núcleos de la población, aumento de la pobreza a nivel mundial y de la extrema pobreza en el tercer mundo, aparición de nuevas formas de esclavitud, agudización del terrorismo y el narcotráfico, pervivencia e intensificación de los conflictos interétnicos y de la hegemonía política de un país ante bloques políticos en construcción en las configuraciones geopolíticas actuales, entre otros grandes desafíos que enfrenta el mundo en la actualidad, surgen también nuevos actores sociales, económicos y políticos que aparecen o se visibilizan en el siglo XXI”. De lo hasta aquí expuesto se desprenden los dos principales aspectos positivos de la Carta: su apertura hacia una concepción “generacional” de los derechos humanos (cfr. Pérez Luño, 2006) y la sensibilidad para trazar un cuadro de las principales necesidades y retos que la sociedad globalizada plantea a la tutela efectiva de los derechos humanos. b) Pero junto a esos méritos, la Carta incurre en algunas inexactitudes y defectos técnico-jurídicos que no deben quedar soslayados. La Carta proclama enfáticamente su designio de representar: “la idea reciente según la cual la humanidad entera formaría una comunidad política con el deber de asumir su destino en forma compartida. Esto es compatible con el respeto de las comunidades políticas estatales existentes. Sin embargo, una nueva combinación se impone entre las comunidades plurales y la comunidad política compartida a la que todos pertenecemos”. Conviene recordar que la idea del cosmopolitismo universalista se remonta a los estoicos y que tras esa formulación pionera en el mundo clásico, fue reelaborada por el humanismo renacentista y constituyó un Leimotiv del pensamiento ilustrado. Por tanto, aducir que todos los hombres y pueblos del orbe se integran en la noción del “genero humano” y que todas las naciones y personas constituyen una gran familia común, no puede ser considerado como un invento del siglo XXI, lo que implicaría un grave desconocimiento de la historia. La idea de la pertenencia común de los hombres y los pueblos al género humano, fue nítidamente expuesta y defendida

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por un relevante elenco de pensadores humanistas cuyo estímulo se remonta desde Cicerón y Marco Aurelio a Vitoria y Kant. También suscita cierta perplejidad la circunstancia de que no se contenga ni una alusión al impacto de las Nuevas Tecnologías (NT) como causa inmediata de la emergencia de nuevos derechos humanos. En el Proyecto se enumeran una serie de derechos presentes en la tradición del Constitucionalismo, así como en las principales Declaraciones, Pactos y Convenios internacionales de derechos humanos. A ellos, se añaden algunos pretendidos derechos nuevos de contenido muy impreciso y ambiguo, que plantearía graves dificultades para su positivación normativa a la técnica jurídica. Como muestra del carácter nebuloso de esos supuestos “derechos emergentes”, pueden citarse los siguientes: “derecho al espacio público y a la monumentalidad” (art.7.7); “derecho a la belleza” (art.7.8); “derecho a la conversión de la ciudad marginal en ciudad de ciudadanía” (art.7.11); “derecho a la verdad” (art.9.3.)…Estas proclamaciones, y otras de similar alcance, se hallan más próximas al enunciado de “buenos deseos e intenciones”, que a la expresión lingüística de derechos humanos. Se consagran, al propio tiempo, como pretendidos derechos, circunstancias o situaciones que contradicen abiertamente la concepción humanista de la libertad. Como ejemplo, puede citarse el siguiente texto: “ El derecho a la elección de los vínculos personales, que se extiende al reconocimiento del derecho individual a la asociación sentimental con la persona elegida, incluyendo el derecho a contraer matrimonio, sin que exista obstáculo alguno al libre y pleno consentimiento para dicho acto. Todo tipo de vínculo personal libremente consentido merece igual protección” (art.6.3). Tomada al pié de la letra, esta declaración admitiría la posibilidad de que una persona pudiera enajenar su libertad y asumir la esclavitud, siempre que consintiera en ello. Lo cual contradice el carácter irrenunciable e inalienable de los derechos humanos y es del todo incompatible con una sociedad democrática organizada bajo la forma del Estado de Derecho. Paradójicamente, no se incluyen en este texto, tal como se ha indicado supra, aquellos derechos emergentes que, por su significado tutelar de la ciudadanía frente a los efectos liberticidas del impacto tecnológico, constituyen el catálogo básico de los derechos de la tercera generación. El carácter heterogéneo de los planteamientos de la Carta, la diversidad disciplinar de quienes más directamente han contribuido a su redacción, así como lo heteróclito de los propósitos y finalidades de la misma se han traducido en un texto puramente programático y cuya incidencia en el ámbito jurídico político interno e internacional exigiría una profunda revisión y depuración técnico-jurídica. En su redacción actual la carta se aproxima más a la prédica de unos teólogos que a un documento normativo de alcance jurídico.

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En definitiva, es responsabilidad de los pueblos y de las personas libres aprovechar los aspectos positivos del fenómeno globalizador (hacer patente la necesaria relación e interdependencia entre todos los sujetos a escala planetaria) y evitar las perversiones que del mismo se desprenden (profundizar en las desigualdades y desequilibrios en el disfrute de la riqueza, la cultura y la libertad).

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Human rights emerged, as an overwhelming topic in legal theory and legal policy, in the aftermaths of the WW II, as one can easily understand. Modernity had so far been hardly confronted with such harsh and systematic aggressions against individuals and communities. The new possibilities of the mass media no longer permitted that such events could remain a secret known only to a few war lords or politicians. The very disclosure of such enormities triggered a much wider public worry concerning the protection of the deepest levels of Human dignity. Dramatic testimonies, like that of Primo Levi1, or Jorge Semprun2 made of the most simple, but also the most pungent, fragments of the everyday life in an extermination camp, exposed how much human life, even if preserved, can be turned into something totally deprived from the most basic features of being Human. These ordinary propositions immediately entail the need for a few remarks, in order to deepen the analysis of what really brew his new sensitivity to the issue of Human Rights. A first remark shall underline that the magnitude of the Shoa, as well as of the extermination of gypsies, homosexuals and other “undesirables”, or even that of the Nazi genetic cleansing of handicapped people, often leads to the oblivion that brutal attacks on Human Rights were of course not new in the very Modernity. Each new tragedy, natural or man-made, tends to efface the immediate memories of what terrible things happened before. Almost equivalent atrocities were already committed, mostly under colonial rule, on non-European native populations. Two of the most notorious examples will be * ** 1 2

Prof. at the Faculdade de Direito, Universidade Nova de Lisboa ([email protected]) – Legal History, Theory of Law. Prof. at the Faculdade de Direito, Universidade Nova de Lisboa ([email protected]) – Criminal Law, Human Rights Law, Gender Law. Se questo è un uomo, Torino, De Silva, 1947. Le grand voyage, Paris, Galimard, 1963; Quel beau dimanche, 1980; L’écriture ou la vie, 1994.

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enough to illustrate our point. The first one is the passivity – to say the least - of British government in India during the outburst of famines in Central India, between 1870 and 1910; then, more than thirty million famine related deaths occurred, in a process where natural factors combined with a seemingly intentional policy of ethnic / eugenic extermination, which deserved recently the denomination of “Late Victorian Holocaust”3. The second one is the German genocidal war against the Herero, in South West Africa, by the end of the 19th century, during which 80 percent of the Herero died or were incarcerated to die in concentration camps; an explicit “order of extermination” (Vernichtungsbefehl) against the Herero people was issued in October 1904, inaugurating a terminology and a practice which announce and prepare what would come true in continental Europe within a few decades4. Even if we leave aside for the moment the reference to Human Rights violations in the particularly callous colonial underworld, we are still left with some other examples of rather gruesome and ruthless treatment of ethnic, religious and cultural groups in the near peripheries of “civilized nations”5. Even in the core of western supposedly decent people (USA, UK, Sweden, Russia), “progressive” policies developed “eugenic” programs and practices which today would surely fall within the concept of serious violations of Human Rights . One need only think of the data on domestic violence and go back to the isolated denunciations of Stuart Mill in the British Parliament in Victorian times to understand that in the core of “civilized” nations basic Human Rights of many people, in particular women and children, were violated as a matter of course under the supposed sanctity of privacy and home. And, of course, the violence continues – but not silenced and accepted as before, when laws and customs shielded the horrors of family and domestic terror. To remember these histories is no merely historical exercise. It can also lively enlighten some current imbalances in the pervasive feelings about Human Rights, their nature, their range and their typical victims and predators. First of all, recent history can unveil the unspoken reasons which lead to differentiate the relevance of these primary rights according to the geographic and ethnic-cultural scenario where their offence takes place. Namely, in differentiating the cogency and urgency of rights of mankind and human beings, as well as in conceiving and implementing systems of protection, respectively either – let us say – in the so called “civilized 3

4 5

Mike Davis, Late Victorian Holocausts: El Nino Famines and the Making of the Third World, London, Verso, 2001. S. other references in Laxman D. Satya, ”The British Empire, Ecology and Famines in Late 19th Century Central India”, Lock Haven University of Pennsylvania (http://www.celdf.org/Portals/0/Docs/NATURE%20 and%20EMPIRE%20-%20LAXMAN%20SATYA%20ARTICLE%20ON%20BRITISH%20EMPIRE%20 ECOLOGY%20FAMINE%20IN%20INDIA.doc). A similar fate struck the Nama population some years later. Even today, Turkish official historiography refuses to classify the massive extermination of Armenian as a genocide.

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countries” or, by contrast, in the “waste lands” of Africa and of some regions of Asia or Latin America. While the former occupy the leading titles and the prime time TV journals, the second latter are almost completely “lost in translation”, trivialized or merely kept out of public memory. One could say that even Human Rights tend to gain a geographical milieu of their own. Secondly, the most recent history seems to demonstrate that the most repulsive violations of Human Rights tend to be committed, not against individuals, but against groups, characterized by their ethnicity, religion, culture, customs, way of life, or gender. It is morally true than Human dignity is not measurable, in the sense that the offense against one person is, ethically speaking, as serious as the offense against very many. However, our moral sensitiveness is also affected by the sheer number of victims of harm, so much so that ordinary language has coined a specific word, genocide which expresses more vehemently the common repugnance towards a massive and collective offense of Human Rights (contrasting with homicide, which ordinarily is not deemed to be, per se, either a crime against humanity, or an autonomous and specific offense of Human Rights, but rather as a “common crime”, however serious). Ordinary moral sensitiveness seems to be rather communitarian than individualistic, evaluating under much darker tones the harm caused to humans - i.e., to a collective of beings belonging to the larger collective of mankind - than that caused to an individual. Thirdly, in some of the more recent historical examples of deep and serious contempt towards Human Rights, the State was involved, as they were either carried out directly by State organs or allowed to happen due to State administration (intentional) carelessness or callous ignorance of a “duty to protect”. However, beyond or behind the State was civil society, or even particularly influential and celebrated groups within it. Namely, scientist, who - from the 1880’s to the 1940’s – created a whole set of theoretical topics legitimating human differentiation, human hierarchies and human divisions along the lines of normality/abnormality, mostly within scientific disciplines like Anthropology and Eugenics6. Occasionally – as it often happened in the colonies – there was a perceptible, although silent, congeniality between “scientific” and economic or political interests. This means that every strategy to protect Human Rights should discard a State-only oriented approach in order to adopt a wide and all-embracing checking and watching strategy, scanning every potential predator of humankind, including possibly well intentioned policies aiming at the bettering of human condition and human life quality. Sum6

S. Edwin Black, War Against the Weak: Eugenics and America’s Campaign to Create a Master Race, Four Walls Eight Windows, 2003; Gina Maranto, Quest for Perfection: The Drive to Breed Better Human Beings, Diane Publishing Co., 1996; Universe.com, 2000; Richard Lynn, Eugenics: a reassessment, Praeger Publishers, 2001. Amartya Sen, “Democracy Isn’t ‘Western’”, in http://online.wsj.com/article/SB114317114522207183. html?mod=opinion_main_commentaries.

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ming up. Narrow, imprudent or group biased utilitarianism can clash with major rights of individuals or communities, even if it is labeled under a humanitarian telos. Fourthly, it must be stressed – as we can learn from the examples above - that almost all human tragedies are the product of active or passive policies and not of mere natural causes. Famine can normally be foreseen, prevented, or at least reduced7; physical or psychic challenges or imbalances can be accepted as normal differences or compensated for through measures compatible with Human dignity; environmental disasters can often be avoided by adequate policies or drastic, but prudent, changes in the way of life. Nature is seldom independent from human political decisions, let alone the everlasting attempt to transform nature into a scapegoat for human errors, carelessness or greed. This consideration is particularly important as we are apparently entering a period of rough environmental changes, which will very likely have devastating effects on human life. A great deal of this imminent danger is the result of human/societal decisions about producing goods and providing services (what, how, how much and at what costs) and, in the end, about keeping or changing living styles. Environmental threats can be anticipated and curtailed by restraining damaging policies and styles of living, by reducing avoidable risks, by subsuming secondary goals to the paramount value of preserving all embracing humankind’s future, by improving solidarity and implementing an ethic of care. “Caring for the Future8” must be a political priority here and now. To imprudently or impudently jeopardize the future can only be described as a threat or a real offense to Human Rights. This dramatic shift in human environment should certainly soon lead to an emergent age of Human Rights protection, which should be more demanding, more global and more thoroughly protective. From now on, amidst the indicted people on judicial cases of Human Rights violations, brutal war lords and dictators will share their notorious arena with greedy or sloppy politicians, tycoons, or other representatives of egoistic (nationalistic, regionalist, sectorial) interests. Finally, we shall address a last question which, can be more clearly perceived today than a century ago. It is now easy enough to understand that all the European world policy along the last decades of the 19th century and the first half of the 20th century was supported by a deep rooted ethnocentrism, if not by an outright, entrenched pervasive racism and sexism. This may help to explain the low sensitivity of both politicians and in general of discourse in the public sphere regarding the atrocities perpetrated against non-European people. Or the subjection and violence against women, which became a public issue only 7 8

Amartya Sen, “Democracy Isn’t ‘Western’”, in http://online.wsj.com/article/SB114317114522207183. html?mod=opinion_main_commentaries. “Caring for the future” is the strategic guideline of a Portugal based Foundation, dealing with strategic issues concerning a sustained well being for the Human generations to come (http://www.fcuidarofuturo.com/ cuidarofuturo.html).

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fifteen years ago 9. Ethnocentrism may also help to explain the absence of an audible critical approach to the values European nations were imposing over “alien” cultures. On the inner front, scientism provided the same dogmatic shield against otherness, be it gender differences, physical or psychic deviance or alternative strategies for organizing communitarian life. The European oriented uniqueness of humankind developed in a twofold way a strangely unidimensional mental model: the uniqueness of culture and the uniqueness of truth, values and mores. On the legal front, this uniqueness of European moral economy was expressed in the uniqueness of political power and the uniqueness of law, as it was theoretically built by both the legalism and the logical deductivism of the German Pandectistic, the two mainstreams of the European-continental legal model. These are in fact much more structurally influential in European legal culture than the episodic albeit long political authoritarianism, pervasive in the 1930’s and 1940’s. If such unidimensional legal thought was deemed to be a core component of the authoritarian regimes which carried out – in the 1930s and in the 1940s – the harshest violations of individual and collective Human Rights to this date10, the fact is that the trend to uniqueness began long before and survived until long after the authoritarian wave. In common law countries this trend to legal uniqueness also had its surrogates, as the combination of Austin’s positivism with a narrow conception of realism, both of which rendered un-problematic either the native constituted legal values or their extension to other cultural environments. Therefore, the very definition of Human Rights was not completely freed from this unidimensional conception of humankind, human values, good government and – as a consequence – the herein derived rights of individuals or of groups. Even if we turn to the kind of jusnaturalism prevailing in southern Europe in the same period, which was deemed to be a better shelter for Human Rights, we have to admit that is was inoculated by the same unidimensionalism. Southern Euro-continental jusnaturalism was actually, mainly rooted in the social doctrine of the Catholic Church, namely in the Encyclic Aeterni Patris, issued in 1879 by Pope Leo XIII, which condemned all the symptoms of modernism (as “a plague of perverse opinions”), amidst them democracy, freedom of conscience, pluralism and Human Rights, insisting on a political society based on the “Authentic first principles”. Even some liberal Catholic thinkers (like Jacques Maritain) stated that the Church’s doctrine was compatible with most of the political regimes known on Earth, even those non democratic or elitist, as far as they respected the Catholic dogmatic understanding of the dignity of the Human Person 11. 9 10 11

The UN Declaration on Violence Against Women dates from 1993… Actually, the assumption of this linkage is a quite problematic the core of the authoritarian legal thought was almost always more dependent of a decisionistic than of a legalistic pattern of law. Kenneth L. Grasso, “Democracy, Modernity and the Catholic Human Rights Revolution: Reflections on Christian Faith and Modern Democracy”, ttp://www.catholicsocialscientists.org/cssrIX/Kraynak%20symposium

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This ethnocentric conception of Human Rights can be read at a double level. On the one side, the offense of Human Rights was narrowly bound to an individualistic conception of rights, which excluded or made difficult the legal condemnation of offenses against groups or communities. “Everyone” and “No one” are systematically the incipit of every article of the Universal Declaration of Human Rights (1948). And it was to a large extent this limited conception of Human Rights that lead the UN to approve successive declarations of group rights, culminating, almost 60 years (!) after the San Francisco’s Charter, in a supplementary Declaration on the Rights of Indigenous Peoples12, where the collective side of the rights of mankind, hidden by the atomistic conception of society, is finally assumed, notwithstanding the predictable obstacles of their practical implementation in strict legal terms. That is corresponds to a specific European cultural element is possibly proven by the fact that the African Charter on Human Rights is less individualistic (rights of “peoples”) than the European Convention on Human Rights. On the other hand, values included in human nature that were recognized as needing protection were solely those embedded in the Western European elitarian culture, now taken as a universal canon13. Not by chance, every right included in the most conspicuous Declarations and Charters was born in the womb of Western culture; notwithstanding the fact that Europeans had already “opened the world” and witnessed both several other ways of life and different sets of communitarian basic values. This ethnocentric concept of Human Rights provoked strong reactions from “exotic” cultures, societies and political entities. On the political arena, arguing and counter-arguing about Human Rights violations, moved from a political to an anthropological level. Mainland China, for example, left the prior arguments based on the “inner” nature of the question and the denegation of legitimacy of third Sates or organizations to interfere in issues depending on each State’s sovereignty, to adopt a brand new defense, anchored on the most influential Western anthropology or philosophy (namely, that of Clifford Geertz or Richard Rorty), when they assess values as “local” and embedded in cultural / political contexts14. On the theoretical arena, the issue of Human Rights and decent government gave origin 12 13

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Adopted by General Assembly Resolution 61/295 on 13 September 2007. On the violence which made possible sush homogeneization of Western European Culture, s. Zygmunt Bauman, Legislators and Interpreters: On Modernity, Post-Modernity and Intellectuals, Ithaca: Cornell University Press, 1987 S., v.g., Julia Ching, “Human Rights: A Valid Chinese Concept?”, on the theoretical background of the Chinese White Paper ion Human Rights, 1991 [http://www.religiousconsultation.org/ching.htm]; also, Wang, Z. , 2009-01-07 “Historical Embeddedness and Endogenous Constraint: Re-examination of Relation between Sovereignty and Human Rights” Paper presented at the annual meeting of the Southern Political Science Association, Hotel Intercontinental, New Orleans, LA . 2009-05-22 from http:// www.allacademic.com/meta/p283489_index.html; Stephen Angle, Human rights and Chinese thought: a cross cultural inquiry, Cambridge Univ. Press, Cambridge, 2002 max., 4/5, describing the evolution in the tone of Chinese White Papers on human rights; a broader panorama of Chinese and Western debate on the theoretical foundation of human rights, Marina Svenssons, Debating Human Rights in China: A Conceptual and Political History, Rowman & Littlefield, 2002.

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to a lively worldwide debate on the peculiarity of local values, from the “Asian values”, which are deemed to frame conviviality from China to Singapore, India and Japan15, to “African values”, which grounded a regional Charter of Human rights for Africa, approved in 198116. In face of this kind of criticism, are we forced to agree with Alistair MacIntyre, when he writes that to count on Human Rights as a source for normative projects is something akin to believe in witches, fairies and unicorns, which nobody has ever seen17? A possible answer is that Human Rights can actually be seen as far as they are vested in ratified charters or enshrined in agreed international declarations. Although this prerequisite could be viewed as a pyrrhic victory, needing as it does the agreement of the States, it still brings a warrant of “local” social and political embeddeness and the resulting feasibility. Conversely, trying to escape from such realistic approach risks to embody, once again, a further attempt at (occasionally well intentioned) cultural colonialism, imposing as Human Rights expectations which are well rooted in our (European) political mores, but totally unexpected and even strongly irritating in different cultural contexts. Even if majorities are not parliamentary ones, however conspicuous enough18 to be clearly distinguished from people’s manipulation, it seems wise to credit their political sensitiveness – at least provisional – a status of legitimacy, which prevent their disruption by an external counter-majoritarian 19 conception of good governance. Once rendered visible by the hegemonic / majoritarian native community, Human Rights should obey the geometry proper to this community. Delicate and extremely controversial issues may arise when locally rooted values damage the rights of particular groups within a local culture. This is typically the case of women in some Islamic communities, in orthodox Jewish groups or even in traditional Mediterranean societies. Often, the proper answer to the troubling question of Susan M. Okin, Is Multiculturalism Bad for Women?20 shall definitely be “yes”. However, wisdom and caution are highly required by the diagnosis and the therapeutics in these critical areas 15 16

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S., v.g., Kishore Mahbubani, Can Asians think, Singapore, Steerforth Press, 2002. Discussing the idea of “Asian” values: Amartya Sen, “Human Rights and Asian Values,” The New Republic, July 14-July 21, 1997 S., v.g., Kishore Mahbubani, Can Asians think, Singapore, Steerforth Press, 2002. Discussing the idea of “Asian” values: Amartya Sen, “Human Rights and Asian Values,” The New Republic, July 14-July 21, 1997 (http://www.mtholyoke.edu/acad/intrel/sen.htm). A SEN: The Argumentative Indian… “Some Consequences of the Failure of the Enlightenment Project”, After Virtue: A Study in Moral Theory. University of Notre Dame Press, 1981. Actually, what MacIntyre was arguing was that it was impossible to demonstrate the existence of Human Rights without a reference to supra-positive levels of belief, like faith. Although under other more or less credible forms of manifestation, like pervasive social consensus. The counter-majoritarian fallacy was originally criticized by Alexander Bickel, The Least Dangerous Branch,1961, to denounce the imposition of pretended truth (or, at least, truthful) values to the values of representative assemblies, claimed as hazardous, self interest-seeking, emotional or populist. The comparison is appealing as “universal human rights” are also deemed to overcome irrationality, lack of cosmopolitism, deficits of civilization, shortage of human sensitiveness, political indecency. Susan Moller Okin, “Is Multiculturalism Bad for Women?” in Joshua Cohen and Matthew Howard, Is Multiculturalism Bad For Women? Princeton University Press, 1999.

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of protecting rights which a rooted / hegemonic / majoritarian local culture does not acknowledge. Actually, the first need is a hermeneutical task, a thick interpretation of local attitudes, in order to uncover their deeply contextualized meaning, instead of hastily give them the meaning they have for us. Sometimes modesty, reserve of intimacy or sense of restraint are read as self-humiliation, serfdom or submission to external constraint; often, in spite of troubling but quite unequivocal signals, we don’t accept easily to consider that, in these uncomfortable cases, what is finally at stake is a different “anatomy of the soul” (as “strange” it may be). Also on the level of social therapeutics, experience is eloquent in telling us that a to hasty imposition of “correct” values and behaviors often triggers a violent social refusal and a consolidation of what would be to erase. Are we proposing a simple surrender of our convictions on Humanity and on its core values and rights ? Or even a seemingly hopeless expectation of spontaneous changes in the uncomfortable otherness ? Surely not. The deference to difference is also a deference for our own feelings of fairness. On the other hand, cultures are mobile and entangled artifacts, made up of conflicting perceptions and senses of belonging and identity. Subaltern groups within a culture do participate in several and often contradictory feelings of fairness, some arising from their unbalanced social position, others imported from external cultural sensitiveness. This intricate network of systems of values, with the inherent triggering of a political dialogue about confronting values, does introduce a real but autonomous dynamism in the group definition of good life and fair governance21. Actually, the problem is similar to that recently raised by Karl-Heinz Ladeur with respect to the weighting (Abwägung) of conflicting legal values within a legal system22; this has to be the outcome of an internal self-adjusting process producing the least irritating solution, instead of the result of an external adjudication jeopardizing generalized expectations. This process of autopoietic adjustment will surely take its time to reach an equilibrium. However, taking time can be more productive than forcing it; also here, indolence could be a wise way of capitalizing and making work social experience 23. A last couple of phrases about the scope and addressees of a legal shelter of Human Rights. Human Rights comprise all the expectations consistent with a conception of well being and well-ordered society – expectations towards the state, but also towards other social groups or individuals. Life is lived in many rooms (State, family, job, gender groups, very primary needs, to basic communicational requisites), each of one inhabited by spe21 22 23

S. Amartya Sen, Identity and Violence: The Illusion of Destiny (Issues of Our Time), New York, W. W. Norton Company, Inc., 2006. Boaventura Sousa Santos, A Crítica da Razão Indolente. Contra o desperdício da experiência, Vol. I, Edições Afrontamento, 2000. K.-H. Ladeur, Kritik der Abwägung in der Grundrechtsdogmatik. Plädoyer für eine Erneuerung der liberalen Grundrechtstheorie, Tübingen, Mohr Siebeck, 2004.

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cific dangers and threats. In some rooms, individual rights are required; in others, what a life worth being lived needs, is probably mutual duties of cooperation, “republican” solicitude and brotherly and sisterly compassion; in many, on the opposite, real public assistance and care are the main needs. Without the protection being afforded in each one of these living rooms, human life can be so severely amputated that it will no more merit the qualification of human, becoming eventually a residual “naked life” (G. Agamben), where the very sense of being human may be lost. Since the appeal to Human Rights is more than a programmatic or rhetorical proposition, it will only make sense where its force is doubled by an institutionalized procedural efficiency that can grant the availability of their implementation or defense to everybody, individuals or groups. This is a crucial issue, because the current legal rules usually design the jurisdiction proper to claim such rights as a highest jurisdiction, frequently dependent on unknown, foreign, far and expensive procedures, therefore almost inaccessible to ordinary people. The rationale seems to be either a symbolic one – the correspondence between the high rank of this kind of rights and the high level jurisdictional institution – or an idea inherited from the prior conception that the normal offender being the State, the jurisdictional control had to be outside the possibility of State control. The result is that Human Rights, whose main feature is their ubiquity and pervasiveness, are only actionable by small elites, well informed, assisted by legal counsel, wealthy enough to afford a rather specialized and least known jurisdictional path. This may mean that some have seen the witches, the fairies and the unicorns; many more may have imagined them; but only a few have had the privilege to come near them and checked for real if they were more than a passing fancy. And yet, the banality of evil and the resistance of goodness might have engendered a denser population of realistic dreams.

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Escrever verde por linhas tortas: o direito ao ambiente na jurisprudência da Corte Europeia dos Direitos do Homem* Carla Amado Gomes**

Comecemos por uma confissão. Para nós, o direito ao ambiente, tal como se encontra plasmado em instrumentos internacionais, leis constitucionais e leis ordinárias, não existe. Isto é, não constitui um direito com um substracto autónomo de outros direitos que lhe dão corpo (vida; integridade física; integridade psíquica; propriedade), antes se dissolvendo em pretensões, procedimentais e processuais, de acesso à informação, participação pública e acesso à justiça com vista à tutela da integridade dos bens ambientais naturais através do mecanismo da legitimidade popular. A par desta dimensão pretensiva, as normas que aludem a esta situação jurídica – que se resume a um interesse de facto na fruição de bens inapropriáveis, imateriais, de utilidades indivisíveis, “comuns do povo”, na terminologia do artigo 225, caput, da Constituição brasileira – albergam uma outra dimensão, impositiva, habitualmente esquecida porque relevando da responsabilidade colectiva pela gestão racional do bem: o dever de protecção do ambiente1. A abordagem da temática do direito ao ambiente por alguém que rejeita a existência de tal “direito” há-de suscitar, à partida, sérias desconfianças. A razão por que decidimos responder ao honroso convite que nos foi dirigido para integrar esta obra colectiva com uma análise da jurisprudência da Corte Europeia dos Direitos do Homem sobre aquilo que alguma doutrina mais entusiasta qualifica como um direito ao ambiente prende-se, * ** 1

Texto escrito para integrar a obra colectiva “O tempo e os direitos humanos: entre a eficácia pretendida e a conquistada”, organizado pela ABDH (Academia Brasileira dos Direitos Humanos). Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Portugal. Para mais desenvolvimentos sobre o nosso pensamento neste ponto, vejam-se Carla AMADO GOMES, O direito ao ambiente no Brasil: um olhar português, in Textos dispersos de Direito do Ambiente, I, reimp., Lisboa, 2008, pp. 271 segs; idem, Constituição e ambiente: errância e simbolismo, in Textos dispersos de Direito do Ambiente (e matérias relacionadas), II, Lisboa, 2008, pp. 21 segs; idem, Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de protecção do ambiente, Coimbra, 2007, pp. 111 segs.

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justamente, com o desejo de demonstrar que, nos casos referenciados, o que a Corte faz é converter clássicos direitos “negativos”2 (direitos à vida; à inviolabilidade do domicílio; à intimidade da vida privada; de liberdade de expressão – artigos 2, 8 e 10 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem = CEDH3) em direitos a pretensões4. Por outras palavras, a Corte aplicou a teoria das “obrigações positivas” do Estado a partir de normas em que o bem tutelado não é, pelo menos directamente, o bem-estar físico e psíquico das pessoas, desenvolvendo a tutela de faculdades de um direito geral de personalidade e integridade através da fórmula do direito ao ambiente – evitando assim invocar expressamente um direito social “clássico” como a saúde. Esta teoria foi pela primeira vez utilizada pela Corte no caso relacionado com certos aspectos relacionados com o ensino linguístico nas escolas belgas (1968)5, e tem continuado a servir de fundamento a várias decisões, embora de forma errática e nem sempre consensual6. O objectivo deste excurso é, assim, duplo: por um lado, chamar a atenção para o pouco préstimo da noção de direito ao ambiente, cujo conteúdo corresponde, em rigor, a direitos de personalidade e, por outro lado, realçar a forma como a Corte Europeia, limitada por um elenco de direitos essencialmente negativo, conseguiu criativamente transformar deveres de abstenção em deveres de protecção do Estado – apelando a uma certa “autonomia conceptual” da Convenção7. A Corte escreve, na verdade, verde por linhas tortas: na ausência de uma norma de protecção do ambiente no catálogo da CEDH, a tutela que esta realidade, enquanto macro-bem, merece, é puramente reflexa ou “por ricochete”, como já foi observado8, uma vez que não dispensa a lesão de um bem jurídico pessoal como fundamento de acesso a juízo. Sublinhe-se, invocando um paralelo próximo, que a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada na Cimeira de Nice, em Dezembro de 2000, tão pouco acolhe a fórmula do direito ao ambiente9, circunscrevendo a norma do artigo 37 à 2

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Sobre o sentido e alcance primário do nº 1 na delimitação do âmbito de protecção dos direitos aí plasmados, Carlo RUSSO, Anotação ao artigo 8/1, in Convention Européenne des droits de l’homme. Commentaire article par article, org. de Louis-Edmond Pettiti, Emmanuel Decaux e Pierre-Henri Imbert, Paris, 2000, pp. 305 segs, 307 segs. Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de Novembro de 1950 no seio do Conselho da Europa e com início de vigência em 3 de Setembro de 1953. Conta neste momento com 47 Estados aderentes (cfr. http://conventions.coe.int, acessado em Junho de 2009). Cfr. Jaume VERNET e Jordi JARIA, El derecho a un medio ambiente sano: su reconocimiento en el constitucionalismo comparado y en el Derecho internacional, in Teoría y Realidad Constitucional, nº 20, 2007, pp. 513 segs, 521. Acórdão de 23 de Julho de 1968, processos conjuntos nos 1474/62; 1677/62; 1691/62; 1769/63; 1994/63; 2126/64. Cfr. Frédéric SUDRE, Les «obligations positives» dans la jurisprudence européenne des droits de l’Homme, in Revue Trimestrielle des Droits de l’Homme, nº 23, 1995, pp. 363 segs (max. 380 segs). Cfr. Manuel António LOPES ROCHA, Direito a um ambiente são e sua caracterização como um direito do homem, in Estudos em homenagem a Francisco José Velozo, Coimbra, 2002, pp. 619 segs, 627. Günther HANDL, Human rights and protection of the environment: a mildly «revisionist» view, in Derechos humanos, desarrollo sustentable y medio ambiente, Brasília, 1992, pp. 117 segs, 128. Cuja ausência é muito criticada por Henri SMETS — Une Charte des droits fondamentaux sans droit à l’environnement, in REDE, 2001/4, pp. 383 segs —, Autor que afirma que a Carta reflecte “assez mal l’état

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tutela objectiva, enquanto tarefa pública e comunitária (anote-se, aliás, a inserção no Capítulo IV – Solidariedade). A disposição inspirou-se nos actuais artigos 2, 6 e 174 do Tratado de Roma, que sustentam a política comunitária de ambiente. Esta preocupação não tem contraponto, todavia, no plano adjectivo, uma vez que inexiste legitimidade popular no contencioso comunitário, facto que deixa os cidadãos europeus impotentes para promover a defesa do ambiente contra medidas adoptadas pelas instituições comunitárias10. Mais longinquamente, no plano mundial, o não acolhimento da actio popularis junto das instâncias jurisdicionais internacionais tão pouco contribui para a tutela do ambiente, sobretudo em zonas fora de qualquer jurisdição. Recorde-se que só Estados podem apresentar-se perante a Corte Internacional de Justiça (artigo 34/1 do Estatuto da Corte) e que o reconhecimento de locus standi depende da verificação de uma ofensa a cidadãos do Estado autor ou a bens nele situados. É por isso grande a expectativa sobre a posição que a Corte irá adoptar na demanda envolvendo o Equador e a Colômbia, apresentada pelo primeiro Estado perante a Corte no passado dia 31 de Março de 2008, na qual o Equador reclama não apenas ressarcimento de danos, morais e patrimoniais, causados pelo lançamento de herbicidas tóxicos sobre o seu território (numa tentativa de pôr cobro ao plantio de droga e ao narcotráfico), mas também de danos ecológicos, actuais e futuros, provocados aos ecossistemas locais11. Passemos, então, a descortinar que potencialidades revela o “direito ao ambiente” na jurisprudência da Corte de Estrasburgo através da descrição de 10 casos emblemáticos12.

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actuel du droit de l’environnement” (p. 383). Sobre este défice, vejam-se Carla AMADO GOMES, A impugnação jurisdicional de actos comunitários lesivos do ambiente nos termos do artigo 230/4 do Tratado de Roma: uma acção nada popular, in Textos dispersos de Direito do Ambiente, I, reimp., Lisboa, 2008, pp. 293 segs; Françoise JARVIS e Ann SHERLOCK, The European Convention on Human Rights and the environment, in European Law Review, 1999, nº especial, pp. 15 segs, 26-27. Já em 1974, no caso Ensaios nucleares I (Estados austrais contra a França), a Corte esteve próxima de proferir uma decisão de fundo que visava quer a protecção de bens estaduais quer a protecção do meio ambiente marinho (mesmo em alto mar) – tendo acabado por absolver a França em razão de esta ter decidido realizar os testes nucleares por debaixo da plataforma continental e não à superfície. Trata-se, ao cabo e ao resto, de saber se é concebível a existência de uma obrigação erga omnes de respeito pela integridade dos bens naturais, onde quer que eles se situem. Ouçam-se as reflexões dos Juízes Onyeama, Dillard, Jimenez de Arechega e Waldock, na sua Joint dissenting opinion aposta à decisão da Corte: “If the materials adduced by Australia were to convince the Court of the existence of a general rule of international law, prohibiting atmospheric nuclear tests, the Court would at the same time have to determine what is the precise character and content of that rule and, in particular, whether it confers a right on every state individually to prosecute a claim to secure respect for the rule. In short, the question of «legal interest» cannot be separated from the substantive legal issue of the existence and scope of the alleged rule of customary international law”. Todos os arestos podem ser consultados em http://www.echr.coe.int/ECHR/FR/Header/Case-Law/Hudoc/Hudoc+database/. Preferiu-se, sempre que disponível, a versão inglesa.

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1. Em recente acórdão da 2ª Secção de 2 de Junho de 2009, a Corte Europeia relembrou que “não existindo embora nenhuma disposição na Convenção destinada a garantir a protecção do ambiente enquanto tal (…), a sociedade hodierna tem nesse desígnio uma preocupação constante. A Corte já por diversas se ocupou de questões ligadas à protecção ambiental e não deixou de sublinhar a relevância da matéria. Reitera que o ambiente constitui um valor cuja protecção é reclamada pela opinião pública e que deve ser assegurada pelos poderes públicos, de forma constante e sustentada”13. Este interesse tem-se revelado de formas díspares, não necessariamente ligadas a extensões de direitos de personalidade e portanto com uma feição mais “objectiva” – ou seja, fazendo despontar a protecção do ambiente quer como fundamento de não ingerência em direitos de liberdade quer como esteio de intervenções restritivas. Exemplo do primeiro tipo é o caso Vides Aizsardzibas Klubs contra a Letónia (2004)14, no qual a Letónia foi condenada a indemnizar uma Associação de defesa do ambiente pela imputação penal a esta de um suposto crime de abuso de liberdade de expressão, na sequência da publicação de um artigo de opinião criticando veementemente os licenciamentos de construções em zonas de dunas litorais. A Corte entendeu que o ambiente é um valor cuja protecção está difundida pela comunidade e que, desde que salvaguardados certos limites, a sua defesa deve poder ser prosseguida sem peias. Em contrapartida, o ambiente surge – no segundo tipo de situações – como arma para “atacar” direitos humanos15. Caso paradigmático é o decidido no Acórdão Buckley contra o Reino Unido16, com argumentação reiterada posteriormente (casos Chapman, Jane Smith, Coster, Lee e Beard contra o Reino Unido, decididos por Acórdão de 18 de Janeiro de 2001), que envolve um conflito entre a vida nómada dos ciganos e a salvaguarda de áreas protegidas. Foi negado aos requerentes a faculdade de estabelecerem “residência” em determinadas zonas por essa prática atentar contra a paisagem e os valores naturais. Apesar da proliferação de decisões com referência ao ambiente, certo é que, ao contrário de outros casos em que a Corte reconheceu, nomeando-os expressamente, novos direitos (v.g., a liberdade de associação negativa; o direito à execução de sentenças), no plano ambiental não há reconhecimento mas antes associação17. A incorporação do valor ambiente na Convenção é meramente indirecta pois o “direito” não está, por ora, consagrado na Convenção, apesar de várias tentativas nesse sentido.

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Caso Hacisalihoglu contra a Turquia, proc. 343/04, §33. Acórdão de 27 de Maio de 2004, proc. 57829/00. Cfr. Jean-Pierre MARGUÉNAUD, Droit de l’Homme à l’environnement et Cour Européenne des Droit de l’Homme, in Revue Juridique de l’Environnement, 2003, nº especial, pp. 15 segs, 16. Acórdão de 25 de Setembro de 1996, Proc. 23/1995/529/615. Jean-Pierre MARGUÉNAUD, Droit de l’Homme…, cit., p. 17.

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1.1. O catálogo de direitos da Convenção Europeia estabilizou em 1984. Desde então, não foram aditados quaisquer novos direitos, apesar de várias recomendações emitidas pela Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, e da pressão dos académicos18. Deve-se, decerto, à imprecisão que rodeia a locução “direito ao ambiente” a resistência dos Estados em a inserir na lista dos direitos protegidos no âmbito da Convenção Europeia dos Direitos do Homem19. Com efeito, desde os anos 1970 — época de emergência da causa ecológica — têm vindo a lume propostas quer no sentido de aditar tal direito à Convenção, pela via dos Protocolos adicionais, quer pugnando pela adopção de uma Convenção especificamente dedicada ao ambiente, na qual se inscreveria o direito ao ambiente, a par de outros direitos e deveres20. Destaque-se mesmo a proposta que, em 1973, foi apresentada pelo Grupo de Trabalho para o Direito do Ambiente no âmbito da Convenção, no sentido da aprovação de um Protocolo adicional dedicado ao direito à saúde, entendido como garantia de um espaço vital saudável21. O protocolo não chegou a ser aprovado, mas na verdade, tal disposição não garantiria mais do que o já consagrado direito à integridade física. Mais recentemente, a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa voltou a tentar infiltrar o direito ao ambiente na Convenção. Por recomendação de 4 de Novembro de 1999, convidava o Comité de Ministros a considerar a viabilidade de tal introdução, através da fórmula do “direito a um ambiente sadio e viável”. O Comité recusou, invocando razões de fragilidade jurídica e conceptual de tal figura. Em 2003, pela mão da Comissão de Ambiente, Agricultura e Território, nova tentativa e novo fracasso22. Esta resistência, também certamente tributária de falta de vontade política relativamente à inserção de direitos a prestações no elenco da Convenção, não se sente noutros instrumentos internacionais. Se é verdade que os Pactos de Direitos da ONU 18 19

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Cfr. Erik MØSE, New rights for a new Court?, in Mélanges à la mémoire de Rolv Ryssdal, Köln/Berlin/Bonn/ München, 2000, pp. 943 segs. Alexandre KISS justifica esta resistência com o argumento da extrema imprecisão do conteúdo do direito ao ambiente – Peut-on définir le droit de l’Homme à l’environnement?, in RJE, 1976/1, pp. 15 segs, 18. O Autor reconhece que tal “direito” não ganha consistência autónoma, quer perante o direito à vida e suas faculdades, quer perante direitos procedimentais – L’évolution du concept de droit à l’environnement, in Protection des droits de l’homme: la perspective européenne, in Mélanges à la mémoire de Rolv Ryssdal, Köln/Berlin/Bonn/ München, 2000, pp. 677 segs, max. 685 segs. Referências mais detalhadas a estas propostas (que não passaram disso) podem ver-se em Maguelonne DÉJEANT-PONS, L’insertion du droit de l’homme à l’environnement dans les systèmes régionaux de protection des droits de l’homme, in Revue Universelle des Droits de l’Homme, 1991/11, pp. 461 segs, 465 segs. “No one should be exposed to intolerable damage or threats to his health or to intolerable impairment of his well-being as a result of adverse changes in the natural conditions of life” (artigo 1/1). O texto integral da proposta pode consultar-se em The right to a humane environment. Proposal for an additional Protocol to the European Human Rights Convention, in Das Recht auf eine menschenwürdige Umwelt. Beiträge zur Umweltgestaltung, Heft 13, Berlin, 1973. Yves WINISDOERFFER e Gérald DUNN, Le Manuel sur les droits de l’homme et l’environnement: ce que les États membres du Conseil de l’Europe retiennent de la jurisprudence «environnementaliste» de la CEDH, in Revue Juridique de l’Environnement, 2007/4, pp. 467 segs, 468.

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não contemplam o “direito ao ambiente”23, diverso cenário se constata no contexto da Carta Africana dos Direitos do Homem (1981), cujo artigo 24 lhe faz referência, ou no da Convenção americana dos Direitos do Homem (1969), graças ao protocolo de São Salvador, de 1988, cujo artigo 11 introduziu o direito a um ambiente sadio. Já para não falar na miscelânea de situações jurídicas, sociais e políticas albergada sob a amplíssima fórmula do princípio 1 da Declaração de Estocolmo de 1972, muitíssimo depurada no princípio 1 da Declaração do Rio, de 1992… Mas nenhum destes instrumentos tem a si associado um sistema de controlo contencioso de carácter vinculativo como a Convenção Europeia, facto que acentua a necessidade de justiciabilidade das posições jurídicas acolhidas sob a capa protectora das suas normas24, e a responsabilização do Estado pelo acatamento das decisões condenatórias25. Até hoje o “direito ao ambiente” permanece “de fora” do elenco de direitos da Convenção, mas espreitando sempre a sua oportunidade, mediatizada pela invocação de direitos pessoais – “pela janela e não pela porta”26. Deve sublinhar-se que, até 1998 (data da entrada em vigor do Protocolo 11), o acesso à Corte de Estrasburgo era restrito aos Estados e à Comissão dos Direitos do Homem (órgão que servia de filtro das queixas e representava os indivíduos junto da Corte quando a queixa apresentava viabilidade)27. Só desde aquela data é admissível a representação directa e imediata do indivíduo perante o Tribunal — observada, claro, a obrigação de exaustão das vias de recurso internas. Todos 23 24

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Pacto de Direitos Económicos, Sociais e Culturais, e Pacto de Direitos Civis e Políticos, ambos assinados em Nova Iorque em 16 de Dezembro de 1966 (em vigor em 3 de Janeiro de 1976). Como nos esclarece Erik MØSE (New rights…, cit., p. 945), os critérios utilizados para a selecção de novos direitos são os seguintes: - o direito tem que ser fundamental: de relevo e estabilidade reconhecidos quanto aos seus reflexos no tecido social; - o direito tem que ser universal: garantido a todos e reconhecido por uma ampla maioria de Estados; - o direito tem que ser justiciável: deve ter um conteúdo suficientemente preciso de modo a poder gerar obrigações para os Estados, não se circunscrevendo a uma mera declaração de princípio. Como frisa Lorenzo MARTÍN-RETORTILLO BAQUER, a implementação de políticas de protecção ambiental tem um custo elevado, facto que pode desincentivar o reconhecimento do “direito ao ambiente”. “La sociedad que se compromete con el medio ambiente asume que tiene que dedicar cuantiosas sumas y muy importantes partidas para funcionar de una forma adecuada y correcta, lo cual hace que los Estados se lo piensan, no tengan todos las mismas disponibilidades ni la misma voluntad” – La defensa cruzada de derechos: la protección del medio ambiente en la jurisprudencia del Tribunal Europeo de Derechos Humanos, in Revista Española de Derecho Administrativo, nº 132, 2006, pp. 727 segs, 735. J.-Pierre MARGÉNAUD, Droit de l’Homme a l’environnement et Cour Européenne des droits de l’Homme, in RJE, nº especial 2003, pp. 15 segs, 17. Com lista de casos levados à Comissão e à CEDH, Michele DE SALVIA, Tutela dell’ambiente e Convenzione europea dei Diritti dell’Uomo: verso una ecologia del diritto?, in RIDU, 1989/3, pp. 432 segs, 434 segs; Maguelonne DÉJEANT-PONS, Le droit de l’Homme à l’environnement, droit fondamental au niveau européen dans le cadre du Conseil de l’Europe, et la Convention Européenne de sauvegarde des droits de l’Homme et des libertés fondamentales, in RJE, 1994/4, pp. 373 segs, 374 segs; Mário de MELO ROCHA, The right to environment as a human right in the European level, in Direito & Justiça, 2000/1, pp. 115 segs, 132 segs.

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os casos que se seguem foram apreciados pela Corte – embora só os mais recentes tenham sido apresentados directamente pelos lesados. 1.2. O primeiro aresto em que a Corte se pronunciou sobre um alegado “direito ao ambiente” foi o caso Powell and Rayner contra o Reino Unido (1990)28. O seu carácter pioneiro merece-nos particular atenção. Este caso envolveu dois residentes nas proximidades do aeroporto de Heathrow (nos arredores de Londres), que pretendiam receber indemnizações pelo incómodo sofrido em virtude do ruído provocado pelas descolagens e aterragens de aviões. Na queixa apresentada à Comissão dos Direitos do Homem, os Srs. Powell e Rayner invocaram violação dos artigos 6/1, 8, 13 da Convenção e 1, §1º, do 1º Protocolo — ou seja, afronta dos direitos à tutela jurisdicional efectiva, à vida privada, de acesso aos meios internos em virtude de violações da Convenção e ainda do direito de propriedade. Este quadro decorria do facto de, junto dos tribunais britânicos, estes cidadãos não terem obtido ressarcimento dos alegados prejuízos à saúde e à propriedade. A Comissão só aceitou prosseguir a queixa junto da Corte com base na presumível infracção do artigo 13 da Convenção. No que mais directamente nos interessa, cumpre sublinhar que a Corte, ao abrigo do princípio jura novit curia, entendeu que poderia estar em causa também o direito à privacidade. Acabou, contudo, por desatender a pretensão dos queixosos, por considerar que o Governo e as autoridades competentes britânicas haviam tomado todas as medidas adequadas para minimizar os incómodos derivados da existência do aeroporto e que não cabia ao Tribunal, em nenhum caso, substituir-se-lhes nessa apreciação. Em discurso directo: “40. “(...) the quality of the applicant’s private life and the scope for enjoying the amenities of his home have been adversely affected by the noise generated by aircraft using Heathrow Airport (...). Article 8 is therefore a material provision in relation to both Mr. Powell and Mr. Rayner. 41. Whether the present case be analysed in terms of a positive duty on the State to take reasonable and appropriate measures to secure the applicants’ rights under paragraph 1 of article 8 or in terms of an «interference by a public authority» to be justified in accordance with paragraph 2, the applicable principles are broadly similar. In both contexts regard must be had to the fair balance that has to be struck between the competing interests of the individual and of the community as a whole; and in both contexts the State enjoys a certain margin of appreciation in determining the steps to be taken to ensure compliance with the Convention (...) 42. As the Comission pointed out in its admissibility decisions, the existence of large international airports, even in densely populated urban areas, and the increasing use 28

Acórdão de 21 de Fevereiro de 1990, proc. 9310/81.

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of jet aircraft have without question become necessary in the interests of a country’s economic well-being (...) 43. A number of measures have been introduced by the responsible authorities to control, abate and compensate for aircraft noise at and around Heathrow Airport (...). These measures, adopted progressively as a result of consultation of the different interests and people concerned, have taken due account of international standards established, developments in aircraft technology, and the varying levels of disturbance suffered by those living around Heathrow Airport. (...) It is certainly not for the Comission or the Court to substitute for the assessment of the national authorities any other assessment of what might be the best policy in this difficult social and technical sphere”. Atente-se, por um lado, na aproximação feita pela Corte entre privacidade e qualidade de vida, a partir do conceito de “ingerência” (interference by a public authority). Apesar de o âmbito de protecção da norma do artigo 8 da Convenção não abranger, pelo menos numa perspectiva tradicional, a defesa contra ruídos, a Corte aceitou a caracterização dos queixosos, adoptando uma visão ampla do direito à reserva da vida privada. Deste patamar lógico, a Corte transitará mais firmemente para a ligação entre privacidade e emissões poluentes “olfactivas” no Caso López Ostra, de que daremos conta em seguida. Por outro lado, sublinhe-se a autocontenção da Corte relativamente à avaliação da ponderação de interesses realizada pelas autoridades britânicas e a sua recusa de a refazer. É uma atitude compreensível, no sentido do respeito pela margem de livre decisão das entidades administrativas, e mais ainda da parte de uma jurisdição internacional, relativamente à qual a questão da soberania sempre se apresentará de forma mais sensível. Mas em breve a Corte se afastaria desta atitude de reserva e inauguraria uma nova fase. O caso López Ostra contra Espanha (1994)29 permaneceu durante muitos anos como o mais paradigmático aresto em sede de pretensa tutela ambiental analisado pela Corte. Os requerentes (a família López Ostra) alegaram a violação dos direitos à integridade física e ao respeito pela vida privada e familiar30, perpetrada sob a forma de emissões poluentes e incómodos vários provenientes de uma estação de tratamento de águas e resíduos na cidade de Lorca. Depois de terem apresentado várias queixas ao Conselho Municipal – só parcialmente atendidas – e de terem esgotado a via-sacra dos recursos internos (que envolveram desde os tribunais superiores ao Tribunal Constitucional), os requerentes, enfrentando a inércia das autoridades administrativas e a indiferença dos tribunais nacionais, resolveram fazer uma última tentativa junto da Corte de Estrasburgo. 29 30

Acórdão de 9 de Dezembro de 1994, proc. 16798/90. Bem como a proibição de infligir a qualquer pessoa tratamentos degradantes ou inumanos, ou de a submeter a tortura (artigo 3). Esta alegação foi desatendida pela Corte.

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As emissões de gás sulfúrico, o ruído repetitivo, os odores intensos, foram factores que levaram a Corte a dar procedência à acção, mesmo que tais agentes poluentes não atentassem gravemente contra a vida dos membros da família López Ostra: “51. Naturally, severe environmental pollution may affect individuals’ well-being and prevent them from enjoying their homes in such a way as to affect their private and family life adversely, without, however, seriously endangering their health. Whether the question is analysed in terms of a positive duty on the State - to take reasonable and appropriate measures to secure the applicant’s rights under paragraph 1 of Article 8 (art. 8-1) -, as the applicant wishes in her case, or in terms of an «interference by a public authority» to be justified in accordance with paragraph 2 (art. 8-2), the applicable principles are broadly similar. In both contexts regard must be had to the fair balance that has to be struck between the competing interests of the individual and of the community as a whole, and in any case the State enjoys a certain margin of appreciation. Furthermore, even in relation to the positive obligations flowing from the first paragraph of Article 8 (art. 8-1), in striking the required balance the aims mentioned in the second paragraph (art. 8-2) may be of a certain relevance (…). (…) 58. Having regard to the foregoing, and despite the margin of appreciation left to the respondent State, the Court considers that the State did not succeed in striking a fair balance between the interest of the town’s economic well-being - that of having a waste-treatment plant - and the applicant’s effective enjoyment of her right to respect for her home and her private and family life. There has accordingly been a violation of Article 8 (art. 8)”. Sublinhe-se a cuidada ponderação de interesses a que a Corte procedeu, conciliando o bem-estar do indivíduo, por um lado, e o interesse comunitário na existência e funcionamento da estação de tratamento de resíduos, que redundou na atribuição de uma indemnização de 4.000.000,00 de pesetas por danos à saúde e à qualidade de vida à família López Ostra. Curiosa é a ambivalente argumentação que a Corte utiliza: quer se trate de demonstrar o défice de cumprimento de um dever de protecção por parte das entidades públicas (não tendo ordenado o encerramento definitivo da estação, ou impondo medidas de minimização dos efeitos poluentes com vista a minorar impactos negativos para a população residente na vizinhança da estação), quer se trate de atestar o excesso de “ingerência” que a poluição provoca na esfera de intimidade da requerente, estará sempre em causa a harmonização de interesses e o conflito entre saúde individual e saúde colectiva (na medida em que a estação contribui para reduzir os resíduos).

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Em 1998, a Corte Europeia confrontou-se com a protecção do ambiente numa outra dimensão. O caso Anna Maria Guerra e outros contra a Itália (1998)31. No caso sub judice, a Corte deteve-se sobre a existência de um dever de informação do Estado relativamente a riscos sanitários decorrentes de emissões gasosas (no caso, trióxido arsénico proveniente de uma fábrica de químicos destinados à agricultura situada em Manfredonia)32. Os autores, um conjunto de residentes nas imediações da fábrica, recorreram à Corte de Estrasburgo depois de terem tentado obter informações (junto das autoridades e inclusive dos tribunais nacionais) sobre os componentes emitidos pela instalação, cuja disseminação já provocara, na sequência de um acidente ocorrido em 1976, a hospitalização de uma centena e meia de pessoas por envenenamento. A disposição da Convenção alegadamente violada foi o artigo 10, cuja invocação foi apoiada (embora não unanimemente) pela Comissão, que considerou que, uma vez que os queixosos residiam numa área de alto risco ambiental, tinham direito a receber informação sobre o teor desse risco. A Corte, valendo-se da sua prerrogativa de requalificação dos factos, aditou à alegada violação do artigo 10 a infracção dos artigos 2 e 8 da Convenção. Tal “pirueta”33 obedeceu ao intuito de dar procedência ao pedido por uma qualquer via34. Com efeito, a Corte rejeitou a aplicação do artigo 10, obtemperando que: “53. (...) The Court reiterates that freedom to receive information, referred to in paragraph 2 of article 10 of the Convention, «basically prohibits a government from restricting a person from receiving information that others wish or may be willing to impart him» (...) That freedom cannot be construed as imposing on a State, in circumstances such as those of the present case, positive obligations to collect and disseminate information of its own”. Esta perspectiva não gerou, sublinhe-se, o acolhimento de todos os juízes35. O Juiz Jambrek, nomeadamente, defendeu a aplicação do artigo 10 da Convenção, com base 31 32

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Acórdão de 19 de Fevereiro de 1998, procs. 116/1996/735/932. Sobre este caso, veja-se Sandrine MALJEAN-DUBOIS, La Convention Européenne des Droits de l’Homme et le droit à l’information en matière d’environnement. A propos de l’arrêt rendu par la CEDH le 19 février 1998 en l’affaire Anna Maria Guerra et 39 autres c. Italie, in RGDIP, 1998/4, pp. 995 segs. Na expressão de Jean-Pierre MARGUÉNAUD, Droit de l’Homme…, cit., p. 18. Num outro caso decidido no mesmo ano (McGinley and Egan contra o Reino Unido), por Acórdão de 9 de Junho de 1998, a Corte não foi tão generosa, desatendendo uma pretensão indemnizatória por alegada falta de informação sobre os efeitos de radiação proveniente de testes nucleares instruída com base na violação do artigo 8 da Convenção. A Corte entendeu que havia um procedimento interno do qual os requerentes se deveriam ter servido para obter tal informação. Só alguns juízes julgaram que o dever de protecção do Estado ia para além da consagração dessa via, impondo-se a publicitação da informação mesmo sem ser solicitada Đ Cfr. Françoise JARVIS e Ann SHERLOCK, The European…, cit., p. 20. Mas é decepcionante que o Tribunal não tenha dado esse “passo de gigante” num contexto tão sensível como o ambiente — Sandrine MALJEAN-DUBOIS, La Convention..., cit., p. 1002.

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na consideração da sua dupla dimensão – negativa, mas também, pelo menos em certas circunstâncias, positiva: “I am therefore of the opinion that such positive obligation should be considered as dependent upon the following condition: that those who are potential victims of the industrial hazard have requested that specific information, evidence, tests, etc., be made public and be communicated to them by a specific government agency. If a government did not comply with such a request, and gave no good reasons for not complying, then such a failure should be considered equivalent to an act of interference by the government, proscribed by article 10 of the Convention”36. A Corte veio a dar acolhimento ao pedido à luz, mais uma vez, do artigo 8, que vê assim confirmada a sua natureza abrangente (elástica, mesmo), surgindo no contexto da Convenção como um macro-conceito aglutinador de um feixe de situações jurídicas, desde a tradicional defesa contra ingerências que possam perturbar a tranquilidade e a reserva da vida privada, até à inovatória defesa contra emissões poluentes — confirmando a linha argumentativa iniciada com o caso López Ostra37. Na síntese da Corte: “60. The Court reiterates that severe environmental pollution may affect individuals’ well-being and prevent them from enjoying their homes in such as to affect their private and family life adversely (see, mutatis mutandis, the López Ostra v. Spain judgement...). In the instant case, the applicants waited, right up until the production of fertilisers ceased in 1994, for essential information that would have enabled them to assess the risks they and their families might run if they continued to live at Manfredonia, a town particularly exposed to danger in the event of an accident at the factory”. Três anos depois, o aeroporto londrino de Heathrow provoca nova contenda junto da Corte Europeia. No caso Hatton e outros contra o Reino-Unido (2001)38, a 3ª Secção da Corte foi confrontada com um pedido de ressarcimento por danos causados à integridade física pelos aviões em voos nocturnos a partir e para o aeroporto de Heathrow (entre as 23H30 e as 6H00). A Corte considerou que os limites de tolerabilidade de ruído estavam a ser excedidos desde 1993, altura em que o limite passou a estabelecer-se, não em fun36

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Embora esta posição seja ainda muito restritiva, sobretudo se pensarmos na obrigação de publicitação de riscos gerados por acidentes ou mesmo por actividades altamente poluentes consagrada, em sede geral, no princípio 19 da Declaração do Rio e, em sede específica, em numerosos instrumentos de protecção ambiental (já para não mencionar o direito à informação ambiental plasmado no princípio 10 daquela Declaração). Na opinião de Sandrine MALJEAN-DUBOIS (La Convention..., cit., p. 1005), «l’arrêt Guerra ne fait finalement que tirer les conséquences de l’arrêt López Ostra: l’obligation d’informer la population n’étant qu’une partie de celle plus large et générale de respecter la vie privée et familiale». Acórdão de 2 de Outubro de 2001, proc. 36022/97.

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ção do número de aterragens e descolagens, mas antes em função do nível de décibeis produzido – e isto apesar de terem sido tomadas algumas medidas de minimização, que a Corte qualificou de insuficientes. Não tendo ficado provado que este acréscimo de ruído fosse justificado por qualquer interesse económico superior do Reino Unido, o sacrifício provocado aos particulares era desproporcionado e reclamava compensação. Mais uma vez se fizeram ouvir ecos da decisão López Ostra, tendo a Corte dado por verificada violação do artigo 8 da Convenção: “102. The Court concludes from the above that whilst it is, at the very least, likely that night flights contribute to a certain extent to the national economy as a whole, the importance of that contribution has never been assessed critically, whether by the Government directly or by independent research on their behalf. (…) 104. In determining the adequacy of the measures to protect the applicants’ Article 8 rights, the Court must also have regard to the specific action which was taken to mitigate night noise nuisance as part of the 1993 Scheme, and to other action which was likely to alleviate the situation. 105. The Court notes that, although the 1993 Scheme did not achieve its stated aim of keeping overall noise levels below those in 1988, it represented an improvement over the proposals made in the 1993 Consultation Paper, in that no aircraft were exempt from the night restrictions (that is, even the quietest aircraft had a rating of 0.5 QC). Further, in the course of the challenges by way of judicial review to the 1993 Scheme, an overall maximum number of aircraft movements was set, and the Government did not accede to calls for large quotas and an earlier end to night quota restrictions. 106. However, the Court does not accept that these modest steps at improving the night noise climate are capable of constituting “the measures necessary” to protect the applicants’ position. In particular, in the absence of any serious attempt to evaluate the extent or impact of the interferences with the applicants’ sleep patterns, and generally in the absence of a prior specific and complete study with the aim of finding the least onerous solution as regards human rights, it is not possible to agree that in weighing the interferences against the economic interest of the country – which itself had not been quantified – the Government struck the right balance in setting up the 1993 Scheme. 107. Having regard to the foregoing, and despite the margin of appreciation left to the respondent State, the Court considers that in implementing the 1993 scheme the State failed to strike a fair balance between the United Kingdom’s economic well-being and the applicants’ effective enjoyment of their right to respect for their homes and their private and family lives. There has accordingly been a violation of Article 8”.

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Como se lê no passo citado, a Corte foi bem arrojada na análise da insuficiência das medidas tomadas pelo Governo no sentido de avaliar o impacto do ruído para os residentes nas áreas circundantes do aeroporto. O reduzido empenho das autoridades perante a salvaguarda do bem-estar dos cidadãos desequilibra a balança da ponderação, pois terá sido dada clara prioridade ao objectivo do desenvolvimento comercial em desfavor intolerável da saúde dos reclamantes. Na verdade, foi a constatação de que não terá existido qualquer sopesar de direitos privados e interesses públicos na criação dos voos nocturnos que encorajou a Corte a proferir a decisão de acolhimento. Este caso, no entanto, não terminou aqui, em razão do recurso interposto da decisão para o Pleno da Corte (Grand Chamber) pelo Governo britânico. Por Acórdão de 8 de Julho de 2003 (Hatton II), a decisão foi revogada, desatendendo-se a pretensão dos requerentes por alegadamente a ponderação de interesses levada a cabo pela 3ª Secção ter sido demasiado sensível à protecção da tranquilidade e insensível à vertente económica da questão. A Corte, na sua composição alargada, entendeu que o acompanhamento a que o Governo britânico procedeu, continuamente elaborando planos de ruído, era suficiente para dar por verificada a obrigação positiva de protecção da reserva de intimidade dos lesados. Este posicionamento mereceu oposição veemente de cinco juízes (Costa, Ress, Türmen, Zupancic e Steiner), que lamentaram a inversão de rumo adoptada pelo Pleno, ao arrepio, como frisaram, da tendência crescente para considerar a saúde como bem supremo. Depois de, a traços largos mas elucidativos, traçarem a evolução da protecção ambiental no plano internacional, os Juízes esforçaram-se por demonstrar como, em concreto, a opinião da Corte contrariou arestos anteriores e subvalorizou a tarefa estadual de salvaguarda da saúde das pessoas: “5. L’arrêt rendu par la Grande Chambre en l’espèce, dans la mesure où il conclut, contrairement à l’arrêt de la chambre du 2 octobre 2001, à la non-violation de l’article 8, nous semble s’écarter de cette évolution de la jurisprudence des organes de la Convention, et même conduire à une régression. Il privilégie les considérations économiques au détriment des conditions sanitaires de base, décrivant la « sensibilité au bruit » des requérants comme étant celle d’une « faible minorité de personnes » (paragraphe 118 de l’arrêt). La tendance à minimiser cette sensibilité – et plus particulièrement les préoccupations relatives au bruit et aux perturbations du sommeil –, va à l’encontre de l’importance croissante attachée à l’environnement, dans toute l’Europe et à travers le monde. La simple comparaison des affaires susmentionnées (…) avec le présent arrêt nous paraît révéler que notre Cour va à contre-courant. 6. La Convention protège l’individu contre les abus de pouvoir directs des autorités de l’Etat. Généralement, l’aspect environnemental des droits fondamentaux de l’individu ne se trouve pas menacé par des ingérences directes de l’Etat. Indirectement, toutefois, la question est souvent celle de savoir si l’Etat a pris ou non les mesures nécessaires

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pour protéger la santé et la vie privée. A supposer même qu’il l’ait fait, il peut y avoir une ingérence directe lorsque, comme en l’espèce, il autorise le fonctionnement d’un aéroport sous certaines conditions. L’ampleur de l’ingérence directe admissible de la part de l’Etat et des obligations positives qui lui incombent est difficile à déterminer dans de telles situations, mais ces difficultés ne doivent pas amoindrir la protection globale que les Etats sont tenus d’assurer en vertu de l’article 8. 7. Ainsi, dans le cadre du droit interne, le pouvoir de régulation de l’Etat entre en jeu dans la protection de l’individu contre les intérêts macro-économiques et commerciaux à l’origine de pollutions. Les changements trompeurs dans cette mise en relation indirecte de l’individu et de l’Etat découlent donc de ce que l’Etat serait tenu d’agir, mais n’en fait rien (ou agit au mépris du principe de proportionnalité). A cet égard, nous sommes loin de la situation examinée par notre Cour dans l’affaire Powell et Rayner (…), dans laquelle la loi sur la réduction du bruit (Noise Abatement Act) excluait explicitement de son champ d’application le bruit provoqué par les avions. Dans le cadre du droit interne, la question est donc celle de savoir si l’Etat a pris ou non des mesures et, dans l’affirmative, si ces mesures sont suffisantes. (…) 12. Nous sommes en désaccord avec le point de vue adopté par la majorité au paragraphe 123 de l’arrêt de la Grande Chambre et, en particulier, avec les phrases décisives de la fin de ce paragraphe où la majorité estime que : « [s]i l’Etat est tenu de prendre dûment en considération les intérêts particuliers dont il a l’obligation d’assurer le respect en vertu de l’article 8, il y a lieu, en principe, de lui laisser le choix des moyens à employer pour remplir cette obligation. Vu le caractère subsidiaire de sa fonction de contrôle, la Cour se bornera à examiner si telle ou telle solution adoptée peut passer ou non pour ménager un juste équilibre ». En présence de situations personnelles aussi intimes que la perturbation constante du sommeil causée par le bruit des aéronefs pendant la nuit, l’Etat a l’obligation positive d’assurer, dans la mesure du possible, des conditions de sommeil normales au simple citoyen. Il n’a pas été démontré que les requérants avaient agi par caprice, et même si leur « sensibilité au bruit » et leur « prédisposition à être incommodés par le bruit » peuvent être qualifiées de « subjectives », la Cour reconnaît que « le plan litigieux [a eu] (...) un effet notable » sur leur possibilité de dormir (…). (…) 17. Nous pourrions certes approuver l’arrêt lorsqu’il précise que « la Cour doit examiner si l’Etat peut passer pour avoir ménagé un juste équilibre entre ces intérêts [c’est-à-dire les intérêts économiques du pays] et ceux, concurrents, des personnes victimes de nuisances sonores » (…), mais le juste équilibre entre les droits des requérants et les intérêts de la communauté dans son ensemble doit être maintenu. La marge d’appréciation de l’Etat se trouve réduite en raison du caractère fondamental

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du droit au sommeil, lequel ne peut passer au second plan que pour des besoins réels et impérieux (sinon urgents) de l’Etat”. A Corte redimiu-se no caso Taskin e outros contra a Turquia (2004)39. O litígio envolveu habitantes de uma localidade próxima de uma mina de ouro (Ovacik) que estava a ser explorada através de um processo de depuração à base de cianeto de sódio, altamente lesivo para a saúde. Foram invocados os direitos à vida e à intimidade da vida privada e, à semelhança do que havia obtemperado no caso López Ostra, a Corte concluiu que, não tendo impedido a exploração da mina mesmo depois de a licença ter sido cassada pelo Conselho de Estado (facto que neutralizava qualquer margem de livre decisão na matéria), o Governo turco havia violado grosseiramente o artigo 8 da Convenção, por se ter abstido de exercer o seu dever de protecção da qualidade de vida dos requerentes: “113. La Cour rappelle que l’article 8 s’applique aux atteintes graves à l’environnement pouvant affecter le bien-être d’une personne et la priver de la jouissance de son domicile de manière à nuire à sa vie privée et familiale, sans pour autant mettre en grave danger la santé de l’intéressée (López Ostra c. Espagne). Il en va de même lorsque les effets dangereux d’une activité auxquels les individus concernés risquent d’être exposés ont été déterminés dans le cadre d’une procédure d’évaluation de l’impact sur l’environnement, de manière à établir un lien suffisamment étroit avec la vie privée et familiale au sens de l’article 8 de la Convention. S’il n’en allait pas ainsi, l’obligation positive de l’Etat – adopter des mesures raisonnables et adéquates pour protéger les droits des individus en vertu du paragraphe 1 de l’article 8 – serait réduite à néant”. O caso Öneryildiz contra a Turquia (2002)40 revela um arrojo crescente da Corte quanto à imposição de obrigações positivas ao Estado41. Os factos são dramáticos: em 1993, em virtude de uma explosão de gás metano numa lixeira nos arredores de Istambul (Ümraniye), 39 pessoas morreram, 9 das quais pertencentes à família do requerente. Tendo encetado uma longa batalha judicial no sentido de responsabilizar as autoridades locais pela perda dos familiares e da barraca onde viviam, o requerente viu sempre negada a sua pretensão de ser ressarcido, a título patrimonial (pela perda da barraca, que considerava – apesar de esse reconhecimento lhe ter sido expressamente recusado em tri39 40 41

Acórdão de 10 de Novembro de 2004, proc. 46117/99. Acórdão de 18 de Junho de 2002, proc. 48939/99. Desta decisão houve recurso para o Pleno da Corte, que confirmou a posição tomada pela 1ª Secção por Acórdão de 30 de Novembro de 2004. Sobre este aresto, v. Catherine LAURENT, Un droit à la vie en matière environnementale reconnu et conforté par une interprétation évolutive du droit des biens pour les habitants de bidonvilles, in Revue Trimestrielle des Droits de l’Homme, nº 53, 2003, pp. 279 segs.

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bunal – de sua “propriedade”) e a título não patrimonial. Exauridos os recursos internos, avançou para a Corte Europeia, invocando violação dos direitos à vida, à intimidade da vida privada, à informação, à propriedade, à tutela jurisdicional efectiva (artigos 2, 8, 10, 1 do Protocolo 1, e 6, respectivamente). Para o que agora mais directamente releva, cumpre sublinhar que a Corte reduziu a questão dos deveres de protecção à tutela da vida, julgando a demanda relativa a danos não patrimoniais procedente com base na violação do artigo 2 da Convenção42. Isto porque, apesar de ter ficado amplamente provado que as autoridades conheciam os riscos inerentes à lixeira e que os tinham transmitido aos “residentes” – ilegais – no sentido de provocar a sua debandada com vista à posterior requalificação da zona, a Corte entendeu que as autoridades não esgotaram as medidas possíveis para prevenir riscos para a vida das pessoas: “87. The Court therefore arrives at the conclusion that in the present case the administrative authorities knew or ought to have known that the inhabitants of certain slum areas of Ümraniye were faced with a real and immediate risk both to their physical integrity and their lives on account of the deficiencies of the municipal rubbish tip. The authorities failed to remedy those deficiencies and cannot, moreover, be deemed to have done everything that could reasonably be expected of them within the scope of their powers under the regulations in force to prevent those risks materialising. Furthermore, they failed to comply with their duty to inform the inhabitants of the Kazım Karabekir area of those risks, which might have enabled the applicant – without diverting State resources to an unrealistic degree – to assess the serious dangers for himself and his family in continuing to live in the vicinity of the Hekimbaşı rubbish tip”. Uma vez mais, a Corte “conferiu uma espécie de efeito transcendental ao direito a um ambiente sadio a partir de um entendimento enviesado do direito à vida”43. Na sequência de recurso interposto pelo Estado Turco, o Pleno da Corte confirmou esta posição, embora sem unanimidade no que toca aos efeitos retirados da violação do artigo 2. Na 42

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Cumpre chamar a atenção para um caso anterior a este, no qual o pedido fora desestimado mas que já abria boas perspectivas argumentativas a partir do direito à vida. Trata-se do caso LCB contra o Reino Unido, decidido pela Corte por Acórdão de 9 de Junho de 1998, no qual se discutiu a responsabilidade do Estado por omissão de medidas de protecção do direito à vida num caso de alegada contaminação de um filho ainda não concebido pelo pai, que sofrera exposição a radiações nucleares na sequência de ensaios realizados pelo Ministério da Defesa. A Corte admitiu a hipótese teórica de fazer derivar do artigo 2 da Convenção deveres de adopção de medidas de informação, salvaguarda e minimização de efeitos, mas afastou a obrigação de indemnizar com base no facto de, em 1960, a informação sobre a transmissão dos efeitos de exposição a radiação a um filho não existir e, subsequentemente, tal exposição não ser sequer considerada um factor de risco. Cfr. Françoise JARVIS e Ann SHERLOCK, The European…, cit., p. 18. Patrick DE FONTBRESSIN, De l’effectivité du droit à l’environnement sain à l’effectivité du droit à un logement décent? (En marge de l’Arrêt Öneryildiz c. Turquie du 30 novembre 2004), in Revue Trimestrielle des Droits de l’Homme, nº 65, 2006, pp. 87 segs, 96.

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verdade, alguns juízes, reiterando argumentos já aduzidos em Opiniões Dissidentes apostas à primeira pronúncia, ressaltaram o facto de a Corte não ter sequer aludido – e muito menos ponderado – o facto de os lesados terem contribuído para o dano. Na verdade, foi a teimosia de não abandonar barracas que julgavam suas – apesar de ilegalmente construídas – que os levou a permanecer num local de alto risco, com total consciência deste. Nas palavras do Juíz Türmen, “(…) the majority do not attach any weight to the fact that the applicant by his own behaviour contributed to the creation of a risk to life and caused the death of nine members of his own family. It is not contested that the applicant (a) built an illegal dwelling on land that did not belong to him, and (b) did so at a very close distance to the rubbish tip. The negligence of the authorities and that of the applicant constitute essential elements of causality. They are both conditions sine qua non of the harm caused. Neither of them alone would have been sufficient to cause the harm. The death of nine people was due to the negligence of both the authorities and the applicant”. A Corte parece ter levado demasiado longe a sua argumentação também no que toca à violação do direito de propriedade, afirmou o Juiz Mularoni. Embora não tenha directa relação com a questão do “direito ao ambiente”, julgamos ser de interesse conceder-lhe a palavra para ilustrar este percurso evolutivo que aqui esboçamos: “In my opinion, neither implicit tolerance nor other humanitarian considerations can suffice to legitimise the applicant’s action under Article 1 of Protocol No. 1. Nor should these factors be used by the Court to justify a conclusion which is tantamount to removing applicants (Mr Öneryıldız in this case, but also any future applicants who have erected buildings illegally) from the ambit of national town-planning and building laws and, to an extent, indirectly condoning the spread of these illegal dwellings. I consider that the majority’s conclusion that Article 1 of Protocol No. 1 is applicable might have paradoxical effects. I am thinking, for example, of the splendid villas and hotels built illegally on the coast or elsewhere which, under national legislation, cannot be acquired by adverse possession; will the mere fact that the relevant authorities have tolerated such buildings for five years now be sufficient to maintain that those who built them in flagrant breach of the law have an arguable claim under Article 1 of Protocol No. 1? Such a conclusion would make it much more difficult for the authorities (at either national or local level) to take any action to ensure compliance with town-planning laws and regulations where, for instance, they have inherited an illegal situation as a result of a period of administration by less scrupulous authorities.

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Lastly, I find it hard to accept that where buildings have been erected in breach of town-planning regulations, States henceforth have a positive obligation to protect a right of property that has never been recognised in domestic law and should not be, since in many cases it could be exercised to the detriment of the rights of others and the general interest. I have therefore concluded that Article 1 of Protocol No. 1 is not applicable and, consequently, has not been breached”. Haverá porventura algum “activismo” social subjacente a este Acórdão, como denota LAURENT44. A Corte terá querido proferir uma decisão exemplar, que incentivasse as autoridades turcas – nomeadamente, das regiões limítrofes de Istambul – a requalificar as áreas degradadas e a realojar a população que tentacularmente ocupa terrenos desocupados, sem quaisquer condições, sob pena de poder sofrer mais condenações. No mesmo ano de 2004, a Corte teria ainda oportunidade de reeditar a aplicação do artigo 8 da Convenção, no caso Moreno Gómez contra Espanha (2004)45. Estava em causa a poluição sonora provocada por uma discoteca instalada, em 1997, no imóvel da requerente, fruto da obtenção de licença ilegal e que veio a ser anulada por um tribunal espanhol em 200146. A zona da cidade de Valência onde residia a requerente havia sido já considerada, em 1996, “zona acústicamente saturada”, em virtude da proliferação de estabelecimentos de diversão nocturna aí concentrados, qualificação que, por um lado, impediu novos licenciamentos e, por outro lado, vinculava as autoridades locais a desenvolver um controlo apertado dos níveis de ruído emitidos pelos estabelecimentos existentes. Ora, nem o controlo nem a proibição de novos licenciamentos eram efectivos; daí a maior indignação da requerente. A Corte, chamada a pronunciar-se, condenou a passividade as autoridades e reconheceu razão à Srª Moreno Gómez, obtemperando como segue: “57. La présente affaire ne porte pas sur une ingérence des autorités publiques dans l’exercice du droit au respect du domicile, mais concerne l’inactivité des autorités s’agissant de faire cesser les atteintes, causées par des tiers, au droit invoqué par la requérante. 58. La Cour constate que l’intéressée habite dans une zone où le tapage nocturne est indéniable et perturbe de toute évidence sa vie quotidienne, surtout le week-end. La 44 45 46

Catherine LAURENT, Un droit à la vie…, cit., p. 297. Acórdão de 16 de Novembro de 2004, proc. 4143/02. Veja-se a anotação de José TIETZMANN E SILVA, L’étendue du verdissement de la jurisprudence de la Cour européenne des droits de l’Homme par l’arrêt Moreno Gómez c/ Espagne, in Revue Européenne du Droit de l’Environnement, 2006/3, pp. 315 segs, 319 segs, e a extensa análise de Lorenzo MARTÍN-RETORTILLO BAQUER, La defensa…, cit., pp. 739 segs.

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Cour doit dès lors déterminer si ces nuisances sonores ont dépassé le seuil minimum de gravité pour constituer une violation de l’article 8. (…) 60. Compte tenu de l’intensité des nuisances sonores – nocturnes et excédant les niveaux autorisés – et du fait que celles-ci se sont répétées durant plusieurs années, la Cour conclut à l’atteinte aux droits protégés par l’article 8. 61. Certes, dans l’exercice de ses compétences en la matière, l’administration municipale de Valence a adopté des mesures (telles que l’arrêté relatif aux bruits et vibrations), qui en principe auraient dû être adéquates, pour assurer le respect des droits garantis ; cependant, durant la période concernée, cette autorité a toléré des entorses répétées à la réglementation qu’elle-même avait établie, et y a même contribué. Une réglementation ayant pour objet la protection des droits garantis constitue une mesure illusoire si elle n’est pas observée de façon constante, et la Cour doit rappeler que la Convention vise à protéger des droits effectifs et non illusoires ou théoriques. Les faits montrent que la requérante a subi une atteinte grave à son droit au respect du domicile, en raison de la passivité de l’administration face au tapage nocturne. 62. Dans ces circonstances, la Cour estime que l’Etat défendeur a failli à son obligation positive de garantir le droit de la requérante au respect de son domicile et de sa vie privée, au mépris de l’article 8 de la Convention”. And now, something completely different? Not quite. O direito à saúde/integridade física, mascarado de “direito ao ambiente” e titulado pelo direito à inviolabilidade do domicílio acolhido no artigo 8 da Convenção constitui identicamente o fundamento da decisão da Corte no complexo caso Fadeïeva contra Rússia (2005)47. A requerente, Srª Fadeïeva, residia em Tcherepovets, a 300 km de Moscovo, vila onde existe um centro siderúrgico desde os anos 1950. O elevado e nocivo nível de emissões poluentes emanado das instalações levou as autoridades centrais, logo em 1965, a estabelecer uma zona tampão de cerca de 5 km em torno da usina. Nesta zona tampão, no entanto, situavam-se centenas de habitações construídas para uso dos trabalhadores da fábrica e suas famílias (ainda hoje a maior da Rússia, empregando cerca de 60.000 pessoas). Aí residia também a requerente. Ao longo dos anos, vários programas de realojamento foram sendo levados a cabo, a fim de deslocar os milhares de pessoas que viviam na área. Em 1992, o município reduziu o perímetro da zona tampão para 1 km e, em 1993, a usina foi privatizada e as casas da zona cedidas à autarquia. Em 1996, a Federação Russa, no contexto de um programa financiado pelo Banco Mundial, identificou a siderurgia Severstal como uma das mais poluentes do país e responsável por 95% das emissões poluentes na zona de Tcherepovets, e 47

Acórdão de 9 de Junho de 2005, proc. 55723/00

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recomendou às autoridades locais o realojamento das cerca de 19.000 pessoas residentes na zona tampão. Desde essa data, vêm decorrendo sucessivas operações de realojamento promovidas pelo município – às quais a empresa proprietária da usina se associou voluntariamente –, obedecendo a diversos formalismos que envolvem, necessariamente, a inscrição numa lista de espera e a disponibilidade de fundos. A requerente intentou em 1995 uma acção contra a empresa por violação do direito à saúde e ao ambiente, que a Constituição da Federação Russa consagra, no artigo 42: “Todos têm direito a viver num ambiente sadio e a receber informação fiável sobre o estado do meio, bem como à reparação de qualquer dano causado à sua saúde ou aos seus bens por uma infracção ecológica”. O tribunal russo entendeu que, apesar de existir um regulamento datado de 1989 que impunha ao proprietário da siderurgia (então, o Estado) o dever de realojar os residentes na zona tampão, esse dever cabia agora (em razão da cedência das habitações ao município na sequência da privatização) às autoridades locais, que enfrentavam constrangimentos financeiros, não podendo realojar de imediato todos os peticionantes. Daí que tenha condenado o município a inscrever a requerente numa lista de espera. Inconformada, a Srª Fadeïeva recorreu da decisão e tentou por várias formas retirar dela algum efeito útil, mas nunca logrou obter o realojamento. Junto da Corte Europeia, apelando fundamentalmente à jurisprudência López Ostra, a requerente conseguiu obter ressarcimento dos danos morais – mas não a afirmação clara do dever de realojamento: “89. La Cour relève que l’Etat défendeur ne possédait, ne contrôlait ni n’exploitait l’aciérie Severstal à l’époque des faits. Elle estime dès lors que la Fédération de Russie ne peut passer pour avoir porté directement atteinte au droit au respect de la vie privée ou du domicile de la requérante. Elle souligne en même temps que, dans les affaires d’environnement, la responsabilité de l’Etat peut être engagée du fait de l’absence de réglementation adéquate de l’industrie privée (affaire Hatton et autres précitée). Elle juge donc que le grief de Mme Fadeïeva doit être examiné sous l’angle de l’obligation positive mise à la charge des Etats d’adopter des mesures raisonnables et adéquates pour protéger les droits garantis par le paragraphe 1 de l’article 8 de la Convention (…). Dans ces conditions, la Cour doit en premier lieu rechercher si l’on pouvait raisonnablement attendre de l’Etat qu’il agît de manière à prévenir la violation alléguée des droits de l’intéressée ou à y mettre un terme. 90. A cet égard, la Cour observe que l’aciérie Severstal a été construite par l’Etat, qui en fut le premier propriétaire. Des anomalies – émissions de fumées, émanations d’odeurs et rejets polluants – sont apparues dès la mise en service de l’usine, provoquant nuisances et troubles de santé chez de nombreux habitants de Tcherepovets (…). Après la priva-

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tisation de l’aciérie intervenue en 1993, l’Etat a continué à exercer un contrôle sur les activités industrielles de l’entreprise en imposant à son nouveau propriétaire des conditions d’exploitation et en en vérifiant la mise en oeuvre. L’aciérie a fait l’objet de nombreuses inspections effectuées par l’agence fédérale de l’environnement et tant son propriétaire que sa direction se sont vu infliger des sanctions administratives (…). La dégradation de l’environnement dont se plaint la requérante n’est pas due à des événements soudains et imprévisibles, mais elle constitue au contraire un phénomène notoire qui dure depuis longtemps (…). Comme dans l’affaire López Ostra (…), les autorités municipales connaissaient en l’espèce les problèmes écologiques persistants affectant le secteur concerné, et elles ont pris diverses sanctions dans l’espoir d’améliorer la situation. 91. La Cour relève également que l’aciérie Severstal était et demeure responsable de près de 95 % du volume total de la pollution atmosphérique de la ville (…). A l’inverse de beaucoup d’autres villes, dans lesquelles la pollution provient d’une multitude de sources polluantes de moindre importance, celle de Tcherepovets a une origine aisément identifiable. Les nuisances environnementales dénoncées sont très spécifiques et entièrement imputables aux activités industrielles d’une entreprise déterminée. Cela est particulièrement vrai en ce qui concerne la situation de ceux qui vivent à proximité immédiate de l’aciérie. 92. La Cour conclut qu’en l’espèce les autorités étaient certainement à même d’apprécier les dangers induits par la pollution et de prendre des mesures propres à les prévenir ou les réduire. Il ressort de la combinaison de l’ensemble des éléments évoqués ci-dessus qu’il existe entre les émissions polluantes et le comportement de l’Etat un lien suffisant pour qu’une question se pose sous l’angle de l’obligation positive découlant de l’article 8 de la Convention. (…) 133. Il serait excessif de considérer que l’Etat ou l’entreprise polluante avaient l’obligation de reloger gratuitement la requérante et, en tout état de cause, il n’appartient pas à la Cour de dicter les mesures précises que les Etats doivent prendre pour remplir les obligations positives qui leur incombent au titre de l’article 8 de la Convention. En l’espèce, toutefois, l’intéressée ne s’est vu proposer par l’Etat aucune solution effective pour favoriser son éloignement de la zone à risques, alors que la situation écologique aux alentours de l’usine imposait de réserver un traitement spécial aux résidents de la zone concernée. En outre, rien n’indique que l’Etat ait conçu ou appliqué des mesures effectives tenant compte des intérêts de la population locale, exposée à la pollution, et propres à ramener le volume des émissions industrielles à des niveaux acceptables, alors pourtant que les activités de l’entreprise en question n’étaient pas conformes aux normes écologiques internes. 134. Même en tenant compte de l’ample marge d’appréciation reconnue à l’Etat défendeur en la matière, la Cour conclut que celui-ci n’a pas su ménager un juste équilibre entre les intérêts de la société et celui de la requérante à pouvoir jouir effectivement de son droit au respect de son domicile et de sa vie privée. Dès lors, il y a eu violation de l’article 8 de la Convention».

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O caso Giacomeli contra Itália (2006)48 não difere muito dos anteriores, mas ilumina um aspecto importante relativo à protecção ambiental: a obrigação de realização de avaliação de impacto ambiental previamente ao licenciamento de instalações que provoquem impacto significativo no meio ambiente. O Sr. Giacomeli questionara a prorrogação de uma autorização de funcionamento de um depósito de sucata e de tratamento de resíduos perigosos na zona de Brescia por ausência de avaliação de impacto ambiental – necessária, em seu entender, dado que a instalação aumentara a sua capacidade produtiva. Durante 10 anos, o requerente litigou nos tribunais italianos, tentando obter a anulação das sucessivas prorrogações que a empresa ia obtendo – sem êxito. Na Corte, o requerente logrou a condenação do Estado italiano no pagamento de uma indemnização por danos morais, em razão da violação da inviolabilidade do domicílio pela permanência de níveis elevados de poluição. A necessidade de proceder a prévia avaliação de impacto foi decisiva no que toca à análise da ponderação de interesses realizada pela Corte: “81. Pour justifier l’octroi à Ecoservizi de l’autorisation d’exploiter l’usine et les décisions de renouveler l’autorisation par la suite, le Gouvernement invoque les intérêts économiques de la région et du pays dans son ensemble et la nécessité de sauvegarder la santé publique des citoyens. 82. Cependant, la Cour doit veiller à ce que les intérêts de la communauté soient mis en balance avec le droit de l’individu au respect de son domicile et de sa vie privée. La Cour rappelle que, selon sa jurisprudence constante, même si l’article 8 ne renferme aucune condition explicite de procédure, il faut que le processus décisionnel débouchant sur des mesures d’ingérence soit équitable et respecte comme il se doit les intérêts de l’individu protégés par l’article 8 (…). (…) 83. Lorsqu’il s’agit pour un Etat de traiter des questions complexes de politique environnementale et économique, le processus décisionnel doit tout d’abord comporter la réalisation des enquêtes et études appropriées, de manière à prévenir et évaluer à l’avance les effets des activités qui peuvent porter atteinte à l’environnement et aux droits des individus, et à permettre ainsi l’établissement d’un juste équilibre entre les divers intérêts concurrents en jeu (…). L’importance de l’accès du public aux conclusions de ces études ainsi qu’à des informations permettant d’évaluer le danger auquel il est exposé ne fait pas de doute (…). Enfin, les individus concernés doivent aussi pouvoir former un recours contre toute décision, tout acte ou toute omission devant les tribunaux, s’ils considèrent que leurs intérêts ou leurs observations n’ont pas été suffisamment pris en compte dans le processus décisionnel (…). (…) 48

Acórdão de 2 de Novembro de 2006, proc. 59909/00.

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96. Pour la Cour, à supposer même qu’après le décret de VIA [valutazione d’impatto ambientale] du 28 avril 2004 les mesures et prescriptions y indiquées aient été mises en place et que les mesures nécessaires pour protéger les droits de la requérante aient été prises, cela n’efface pas le fait que pendant plusieurs années la requérante a subi une atteinte grave à son droit au respect de son domicile en raison de l’activité dangereuse de l’usine, bâtie à trente mètres de son habitation. 97. Au vu de ce qui précède, la Cour estime que, nonobstant la marge d’appréciation reconnue à l’Etat défendeur, celui-ci n’a pas su ménager un juste équilibre entre l’intérêt de la collectivité à disposer d’une usine de traitement de déchets industriels toxiques et la jouissance effective par la requérante du droit au respect de son domicile et de sa vie privée et familiale». Terminaremos esta amostragem com a descrição breve de um caso muito recente, no qual a Corte fez apelo, entre outros argumentos, à lógica da precaução. Falamos do caso Tatar contra a Roménia (2009)49, que em termos factuais se assemelha bastante aos casos Fadeïeva e Giacomeli. Estava em apreciação a presença de efeitos nocivos decorrentes da proximidade da residência do requerente de uma mina de ouro, explorada pela sociedade multinacional S.C. Aurul Baia Mare S.A. desde 1999, na qual é utilizado cianeto de sódio. O local foi considerado em 1990 pela OMS como um “hot spot”, diversos estudos de impacto ambiental foram realizados, foram introduzidas medidas de minimização – mas nunca se revelaram verdadeiramente efectivas. No ano 2000, houve mesmo um acidente ecológico relacionado com uma descarga das instalações da empresa no rio Sasar. Fauna e flora foram severamente afectadas, de acordo com um Relatório elaborado por uma Task Force dirigida pelo PNUA. Em 2001, o requerente processou o Estado por omitir informação relevante no que concerne aos efeitos das emissões produzidas pela Aurul, não publicitação dos termos da licença de exploração e violação do princípio da precaução, e pediu ressarcimento por danos causados à sua saúde (especialmente frágil por sofrer de bronquite asmática). Não tendo logrado que os tribunais romenos lhe reconhecessem razão, o requerente recorreu à Corte Europeia, estribado no artigo 8 da Convenção. A Alta Instância de Estrasburgo concedeu-lhe ganho de causa, considerando que o Estado romeno se furtara aos seus deveres de prevenção e informação sobre os riscos de instalações com significativo impacto ambiental: “109. La Cour rappelle qu’en droit roumain le droit à un environnement sain est un principe ayant valeur constitutionnelle. Ce principe a été repris par la loi no 137/1995 sur la protection de l’environnement, qui était en vigueur à l’époque des faits (…). Par 49

Acórdão de 27 de Janeiro de 2009, proc. 67021/01.

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ailleurs, le principe de précaution recommande aux États de ne pas retarder l’adoption de mesures effectives et proportionnées visant à prévenir un risque de dommages graves et irréversibles à l’environnement en l’absence de certitude scientifique où technique (…). (…) 115. La Cour note que d’après la procédure de réglementation des activités économiques et sociales ayant un impact sur l’environnement élaborée conformément à la loi no 137/1995 sur la protection de l’environnement, telle qu’elle était en vigueur à l’époque des faits, les autorités nationales devaient, dans le cadre d’un débat public, informer les intéressés de l’impact que l’activité industrielle pouvait avoir sur l’environnement (…). De surcroît, le rapport d’impact environnemental devait être rendu public à l’occasion de ce débat (…). La Cour relève notamment que les autorités nationales s’abstinrent de rendre publiques les conclusions de l’étude préliminaire réalisée en 1993, qui est à la base de l’autorisation de fonctionnement de la société Aurul (…). 116. Contrairement aux affaires Hatton et autres, précitée (…), et Taşkin et autres, précitée (…), les participants audit débat n’ont pas eu accès aux conclusions de l’étude ayant servi de base à l’octroi de l’autorisation de fonctionnement de la société, et aucune autre information officielle concernant ce sujet ne leur a été présentée. Il ressort des documents versés par le Gouvernement au dossier que les dispositions internes en matière de débats publics n’ont pas été respectées en l’espèce. Une situation similaire a été sanctionnée dans l’affaire Guerra précitée (…). Compte tenu de ce constat, l’argument du Gouvernement relatif au défaut de participation de la part des requérants ne saurait être retenu (…). (…) 118. Au niveau international, la Cour rappelle que l’accès à l’information, la participation du public au processus décisionnel et l’accès à la justice en matière d’environnement sont consacrés par la Convention d’Aarhus du 25 juin 1998, ratifiée par la Roumanie le 22 mai 2000 (…). Dans le même sens, la Résolution no 1430/2005 de l’Assemblée parlementaire du Conseil de l’Europe sur les risques industriels renforce, entre autres, le devoir pour les États membres d’améliorer la diffusion d’informations dans ce domaine (…). (…) 120. Pour ce qui est des suites de l’accident de janvier 2000, la Cour observe qu’il ressort des éléments du dossier que l’activité industrielle en question n’a pas été arrêtée par les autorités, qui ont continué à utiliser la même technologie (…). En ce sens, la Cour rappelle l’importance du principe de précaution (consacré pour la première fois par la Déclaration de Rio), qui « a vocation à s’appliquer en vue d’assurer

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un niveau de protection élevée de la santé, de la sécurité des consommateurs et de l’environnement, dans l’ensemble des activités de la Communauté ». (…) 122. Étant donné les conséquences sanitaires et environnementales de l’accident écologique, telles que constatées par des études et rapports internationaux, la Cour estime que la population de la ville de Baia Mare, y inclus les requérants, a dû vivre dans un état d’angoisse et d’incertitude accentuées par la passivité des autorités nationales, qui avaient le devoir de fournir des informations suffisantes et détaillées quant aux conséquences passées, présentes et futures de l’accident écologique sur leur santé et l’environnement et aux mesures de prévention et recommandations pour la prise en charge de populations qui seraient soumises à des événements comparables à l’avenir. A cela s’ajoute la crainte due à la continuation de l’activité et à la possible reproduction, dans le futur, du même accident». Sublinhe-se que a invocação da precaução é falaciosa, uma vez que estão mais que demonstrados os perigos associados ao cianeto de sódio, especialmente após o acidente de 2000. O Estado não está aqui perante incógnitas, mas perante certezas. Mais do que violação do direito à informação – ou para além disso –, este caso poderia ter sido analisado do ponto de vista do cumprimento de deveres inexcusáveis de protecção da vida e integridade física das pessoas residentes na vizinhança da usina. Como vimos, todavia, a vis atractiva do artigo 8 é muito forte, acabando a garantia de inviolabilidade do domicílio por consumir – ressalvados casos como o Öneryilidz – os direitos à informação e à vida50. Esta confusão só se compreende na linha da jurisprudência evolutiva da Corte Europeia, que teve de alicerçar obrigações positivas num contexto político-normativo adverso. Em contrapartida, o labor jurisprudencial da Corte demonstra à saciedade a inutilidade da distinção tradicional entre direitos de liberdade e direitos a prestações. 2. A recensão de casos que apresentámos confirma as afirmações iniciais: a Corte Europeia utiliza a fórmula do “direito ao ambiente” para, subtilmente, ir reconhecendo direitos a prestações positivas do Estado no contexto da promoção do bem-estar e da prevenção de riscos sanitários. Como explica SUDRE, este posicionamento contribui para ultrapassar a concepção clássica dos direitos de liberdade como direitos simplesmente negativos51, interpretando evolutivamente direitos como a inviolabilidade do domicílio ou a vida e apontando-os como sustentáculo de pretensões de actuação pública. 50

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Num certo desdobramento em vertentes materiais e procedimentais algo inusitadas – cfr. François TULKENS, Nuisances sonores, droits fondamentaux et constitutionnelles belges: développements récents, in Revue Trimestrielle des droits de l’Homme, nº 61, 2005, pp. 279 segs, 284. Frédéric SUDRE, Les «obligations positives»…, cit., p. 363.

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Note-se que a Corte começou por revelar grande prudência – talvez mesmo excessiva – na “descoberta” desta dimensão positiva do direito à inviolabilidade do domicílio no quadro da defesa contra elementos poluentes (um tanto pelo melindre “político” que tal operação implica, outro tanto pela inadequação formal da norma relativamente a tais elementos). Uma vez ultrapassada tal resistência – e o passo decisivo terá sido seguramente dado graças à inventividade da família López Ostra –, a Corte maneja o artigo 8 (e pontualmente o artigo 2) com grande à-vontade, extraindo da norma efeitos insuspeitados. Na verdade, a Corte tem revelado uma atitude crescentemente interventiva – pontualmente excessiva, mesmo. Com efeito, uma coisa será assinalar défice de implementação de procedimentos de informação, participação e acesso à justiça para defesa de direitos de personalidade, ou mesmo falhas na densificação mínima da posição jussubjectiva. Outra, bem diferente (supomos), avançar para a afirmação da ressarcibilidade de danos morais em situações de clara temeridade do requerente na exposição a factores de risco – o caso Öneryildiz contra a Turquia é “exemplar”. Numa sociedade multiriscos como aquela em que vivemos, imputar ao Estado toda a responsabilidade por todos os riscos, conhecidos e desconhecidos, e isentar a população de todo o ónus de informação e autoprotecção conduz a erigir os poderes públicos em seguradores universais – não havendo, manifestamente, capacidade financeira para tal. Acresce que a asserção de que o Estado tem o dever de prevenção de todo o risco vivencial – de que a Corte se aproximou no Acórdão Tatar, ao invocar, inconsequentemente, a lógica de precaução – é extraordinariamente perigosa, uma vez que o investe em poderes de ingerência máximos com vista à salvaguarda dos cidadãos de um conjunto incalculável de riscos. Na realidade, a Corte tem mantido até aqui uma postura bastante equilibrada – seguindo, de resto, a jurisprudência da Corte Internacional de Justiça no caso Gabcikovo-Nagymaros (1997) –, descartando a abordagem precaucionista. Em casos anteriores – Balmer-Schafroth e outros contra a Suiça (1997)52 e Athanassoglou e outros contra a Suiça (2000)53 –, optou por rejeitar argumentos de suposta nocividade de centrais nucleares por apelo ao risco inerente à exploração deste tipo de instalações. A Corte eximiu-se a condenar o Estado (Suiço) pela manutenção em funcionamento de usinas nucleares que alegadamente põem em risco as populações vizinhas pois não dá por verificada a iminência do dano – nem a sua provável (ainda que, no limite, possível) verificação. Sem embargo de algum excesso, certo é que a Corte tem revelado sempre a preocupação de fundamentar as suas decisões a partir da aplicação dos critérios do nº 2 do artigo 8 – embora esta norma esteja orientada para um controlo de restrições e não de prestações. A aplicação adaptativa dos pólos argumentativos desta disposição (reserva de 52 53

Acórdão de 26 de Agosto de 1997, proc. 67/1996/686/876. Acórdão de 6 de Abril de 2000, proc. 27644/95.

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lei; fim legítimo; ponderação de interesses) pode ver-se resumida num excerto do caso Fadeïeva (realçados nossos): “94. La Cour rappelle que, quelle que soit l’approche choisie pour l’analyse – violation d’une obligation positive incombant à l’Etat ou ingérence directe de celui-ci –, les principes applicables à la justification au regard de l’article 8 § 2 quant à l’équilibre à ménager entre les droits de l’individu et les intérêts de l’ensemble de la société sont comparables (…) 95. Une ingérence directe de l’Etat dans l’exercice de droits reconnus par l’article 8 de la Convention n’est pas compatible avec le second paragraphe de cette disposition si elle n’est pas « prévue par la loi ». En pareil cas, il y a nécessairement constat de violation de la Convention. 96. En revanche, dans les cas où l’Etat est tenu de prendre des mesures positives, le choix de celles-ci relève en principe de sa marge d’appréciation. Etant donné la diversité des moyens propres à garantir le droit au « respect de la vie privée », le fait pour l’Etat concerné de ne pas mettre en œuvre une mesure déterminée prévue par le droit interne ne l’empêche pas de remplir son obligation positive d’une autre manière. En pareilles circonstances, la condition selon laquelle l’atteinte litigieuse n’est pas justifiée si elle n’est pas « prévue par la loi » ne peut s’appliquer de la même manière que dans l’hypothèse où est en cause une ingérence directe de l’Etat. 97. La Cour relève cependant que dans toutes les affaires antérieures où des questions liées à l’environnement ont donné lieu à des constats de violation de la Convention, ceux-ci découlaient de l’inobservation par les autorités nationales de certains aspects de la réglementation interne. Ainsi, dans l’affaire López Ostra précitée, la station d’épuration en cause, qui a finalement été fermée, enfreignait la loi en ce qu’elle fonctionnait sans le permis requis (…). De même, dans l’affaire Guerra et autres, la violation découlait d’un manquement au droit interne, l’Etat n’ayant pas communiqué aux requérants les informations qu’il était légalement tenu de leur fournir (…). 98. Aussi, lorsqu’un requérant dénonce un manquement d’un Etat à l’obligation de garantir ses droits protégés par la Convention, la légalité interne doit-elle être considérée non comme un critère autonome et décisif mais plutôt comme l’un des nombreux éléments à prendre en compte pour apprécier si l’Etat concerné a ménagé un « juste équilibre » au sens de l’article 8 § 2 de la Convention. 99. Dans les cas où l’Etat est tenu de prendre des mesures positives aux fins de ménager un juste équilibre entre les intérêts de l’individu et ceux de l’ensemble de la société, les objectifs énumérés au paragraphe 2 de l’article 8 peuvent jouer un certain rôle, encore que cette disposition parle uniquement des « ingérences » dans l’exercice du droit protégé par le premier paragraphe et vise donc les obligations négatives en découlant (…)».

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Fundamentalmente o que varia no manuseamento do artigo 8 relativamente à sua potencialidade propulsiva prende-se com o facto de ter que ser reconhecida aos Estados uma «larga margem de apreciação» na realização plena de direitos a prestações – dimensão em muito dominada por um princípio de possibilidade financeira e de gestão de recursos escassos. Torna-se necessário realizar a melhor concordância prática entre bem-estar individual e interesse colectivo, tentando chegar ao «justo preço a pagar» pelo sacrifício de um ou de outro54. A Corte leva então a cabo um teste de proporcionalidade que passa pela aferição de um grau suficiente de concretização do direito – é do grau de aferição dessa suficiência que dependerá a qualificação do grau de “activismo” judicial. Certo, este “activismo”, a existir, não gerará, em regra, a condenação do Estado a revogar/implementar medidas legislativas/fácticas com vista à concretização efectiva do direito do requerente. Não só a dimensão compensatória de indemnização do dano moral supre, em larga medida, a pretensão de tutela efectiva do particular, como as decisões da Corte enfrentam, em muitos sistemas, um obstáculo à sua plena exequibilidade decorrente da inexistência de um recurso de revisão que permita afastar o caso julgado contrário à Convenção. No entanto, como realça MARGUÉNAUD, apesar deste “défice”, “o Estado «condenado» terá o maior interesse em promover as alterações que a situação individual revelou para evitar a emergência de novos pedidos similares, que originariam a multiplicação de custos indemnizatórios e políticos”55. Ou seja, a publicidade propiciada pela condenação – que induz uma espécie de efeito erga omnes informal da coisa julgada – constitui um importante elemento de pressão para que o Estado (ou a entidade competente) emende a mão, evitando replicação de demandas. Enfim, por mais interessante que se revele a teoria das obrigações positivas aplicada aos direitos de personalidade, tal originalidade não pode obnubilar que o ambiente enquanto tal (na sua pureza ecológica, dir-se-ia) continua de fora dos objectivos de protecção da Convenção e só um aditamento por Protocolo poderia alterar este cenário. No quadro actual, conforme assinala a doutrina, “Uma vez que apenas as «vítimas» de uma violação da Convenção têm legitimidade para propor uma acção, qualquer litígio desencadeado por grupos ecologistas teria que tomar a forma de uma acção individual, focada nos direitos de alguns sujeitos e não na defesa do interesse (ambiental) geral. É cristalino que o dano ecológico de per se é insusceptível de constituir violação da Convenção. Ele só ganha relevância através da violação de um direito individual consagrado no texto daquela”56. Não é crível, todavia, que tal inclusão venha a ocorrer, uma vez que a Convenção é essencialmente um instrumento de defesa de bens individuais contra o arbítrio do poder 54 55 56

Cfr. Yves WINISDOERFFER, La jurisprudence de la Cour Européenne des Droits de l’Homme et l’environnement, in Revue Juridique de l’Environnement, 2003/2, pp. 213 segs, 219. Jean-Pierre MARGUÉNAUD, Inventaire raisonné des arrêts de la Cour Européenne des droits de l’homme relatifs à l’environnement, in Revue Juridique de l’Environnement, 1998/1, pp. 5 segs, 19, Françoise JARVIS e Ann SHERLOCK, The European…, cit., p. 15.

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público. O ambiente é uma grandeza maior do que o sujeito, não cabendo nestes estreitos parâmetros57. Essa abertura caberá melhor numa realidade como a União Europeia – que já acolhe a protecção ambiental nos seus objectivos. Falta adaptar o contencioso comunitário – enfrentando o temor do aluvião de processos promovidos através de mecanismos de alargamento da legitimidade processual – às características de tutela altruística de um bem que a todos pertence58. Lisboa, Julho de 2009

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Cfr. Pierre LAMBERT, Le droit de l’homme à un environnement sain, in Revue Trimestrielle des Droits de l’Homme, nº 43, 2000, pp. 565 segs, 565 (onde afirma que o conceito de direitos do homem é demasiado estreito para albergar uma realidade como o ambiente). Cfr. Carla AMADO GOMES, A impugnação jurisdicional…, cit., pp. 326 segs.

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1. Acesso à Justiça e sua Moderna Significação O chamado movimento universal de “acesso à justiça” pode ser objeto de pesquisa nos diversos compartimentos das ciências sociais, mas é na ciência do direito e no direito positivo de muitos países que ele assume um novo enfoque teórico,1 com o qual se repudia o formalismo jurídico – enquanto sistema que identifica o direito sob a perspectiva exclusivamente normativa – e se preconiza a inserção de outros componentes reais, como os sujeitos, as instituições e os processos, tudo em sintonia com a realidade e o contexto social.2 Esse novo enfoque teórico do acesso à justiça espelha, portanto, a transmudação de uma concepção unidimensional, calcada no formalismo jurídico, para uma concepção tridimensional do direito, que leva em consideração não apenas a norma jurídica em si, mas também os fatos e os valores que a permeiam.3 *

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Mestre e Doutor em Direito (PUC/SP). Professor Adjunto de Direito Processual do Trabalho e Direitos Humanos (UFES) . Professor de Direitos Metaindividuais do Mestrado em Direitos e Garantias Fundamentais (FDV). Desembargador Federal do Trabalho (TRT/ES). Diretor da Escola de Magistratura do TRT/ES. ExProcurador Regional do Trabalho. Membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho . E-mail do autor: [email protected] Mauro Cappellettti, Os métodos alternativos de solução de conflitos no quadro do movimento universal de acesso à justiça, RF 326, p. 121. Ibid., mesma página. Quanto a esse aspecto, merece destaque a teoria tridimensional de Miguel Reale, para quem é preciso “reconhecer-se a essencialidade dos princípios éticos, o que explica o freqüente apelo que se volta a fazer a idéias como a de eqüidade, probidade, boa-fé etc, a fim de captar-se a vida social na totalidade de suas significações para o homem situado em razão de suas circunstâncias”. “Nesse contexto” – prossegue esse notável jusfilósofo – “parece-me lícito afirmar que o tridimensionalismo jurídico tem o mérito de evitar a redução da Ciência do Direito a uma vaga Axiologia Jurídica, pelo reconhecimento de que não são menos relevantes os aspectos inerentes ao plano dos fatos ou à ordenação das normas, o que implica, penso eu, uma compreensão dialética e complementar dos três fatores operantes na unidade dinâmica da experiência jurídica. Adotada essa

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O problema do acesso à Justiça também pode ser compreendido nos sentidos geral, restrito e integral. No sentido geral, o termo “acesso à Justiça” é concebido como sinônimo de justiça social4, isto é, corresponde à própria concretização do ideal universal de justiça. Atribui-se ao Papa Pio XI a utilização primeira da expressão “justiça social” como “idéia de que todo ser humano tem direito a sua parte nos bens materiais existentes e produzidos, e que sua repetição deve ser pautada pelas normas do bem comum, uma vez que a realidade estava a demonstrar que as riquezas eram inconvenientemente repartidas, pois um pequeno número de ricos concentravam os bens diante de uma multidão de miseráveis.”5 Essa noção passou a ser incorporada, inicialmente, nas Encíclicas Quadragesimo Anno, de 15 de maio de 1931, e Divini Redemporis, de 19 de março de 1937. As demais encíclicas que se seguiram adotaram expressamente a locução “justiça social”. Diversos documentos, livros, teses, programas partidários e, em alguns ordenamentos jurídicos6, leis constitucionais e ordinárias utilizam largamente a expressão “justiça social” como se existisse um consenso semântico e universal. O certo, porém, é que justiça social “é uma categoria jurídico-político-sociológica sobre a qual não há, ainda, um compartilhar comum.”7 De toda sorte, há uma clara e forte relação entre o objeto da justiça social e a questão social. Desde a Rerum Novarum, praticamente em toda doutrina social da Igreja o problema do trabalho humano foi considerado a chave da questão social.8 No sentido restrito, a expressão é utilizada no aspecto dogmático de acesso à tutela jurisidicional, isto é, uma garantia para que todos tenham direito de ajuizar ação perante

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posição, o problema da ‘concreção jurídica’ adquire mais seguros pressupostos metodológicos, permitindonos apreciar, de maneira complementar, a interdisciplinaridade das diversas pesquisas relativas à realidade jurídica, sob os prismas distintos da Filosofia do Direito, da Sociologia Jurídica, da Ciência do Direito, da Etonologia Jurídica etc. A compreensão unitária e orgânica dessas perspectivas implica o reconhecimento de que, não obstante a alta relevância dos estudos lógico-lingüísticos, tudo somado, o que há de essencial no Direito é o problema de seu conteúdo existencial” (REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito, prefácio à 2ª edição, p. XV). Do latim justitia. O adjetivo social surge no séc. XIX, com o recrudescimento das crises sócio-econômicas, marcando bem seu caráter antiindividualista. Na verdade, porém, desde Platão e Aristóteles a idéia de justiça já se confundia com a de justiça social. Os gregos não empregavam o adjetivo social à idéia de justiça, porque aquele era inerente a esta. Josiane Rose Petry Veronese, Interesses difusos e direitos da criança e do adolescente, p. 25-26. O art. 193 da CF dispõe textualmente: “A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”. César Luiz Pasold, Função social do Estado contemporâneo, p. 72. As modificações objetivas que o trabalho humano sofreu ao longo dos tempos, principalmente as anomalias observadas no século passado, deram origem à chamada “questão operária” ou “questão proletária”, o que culminou com o surgimento de um grande movimento de solidariedade entre os trabalhadores, como reação à exploração do homem pelo capital.

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o Poder Judiciário. Sob esse prisma, o acesso à justiça insere-se no universo formalístico e específico do processo, como instrumento de composição de litígios pela via judicial. Finalmente, no sentido integral, acesso à justiça assume caráter mais consentâneo, não apenas com a teoria dos direitos fundamentais, mas, também, com os escopos jurídicos, políticos e sociais do processo. Sob esse enfoque, acesso à justiça é, em derradeira análise, o próprio “acesso ao Direito, vale dizer, a uma ordem jurídica justa (= inimiga dos desequilíbrios e destituída de presunção de igualdade), conhecida (= social e individualmente reconhecida) e implementável (= efetiva), contemplando e combinando, a um só tempo, um rol apropriado de direitos, acesso aos tribunais, acesso aos mecanismos alternativos (principalmente os preventivos), estando os sujeitos titulares plenamente conscientes de seus direitos e habilitados, material e psicologicamente, a exercê-los, mediante superação das barreiras objetivas e subjetivas (...) e, nessa última acepção dilatada que acesso à justiça significa acesso ao poder.”9 Mauro Cappelletti e Bryant Garth,10 em obra que se tornou clássica, esclarecem que o problema do acesso à justiça – no sentido integral, ressaltamos – pode ser visualizado por meio de três “ondas”. A primeira onda cuida de assegurar a assistência judiciária aos pobres; a segunda onda11, também cognominada de coletivização do processo, propugna uma adequada representação dos interesses coletivos lato sensu, que abrangem os interesses difusos, coletivos (stricto sensu) e individuais homogêneos; a terceira onda – também chamada pelos referidos autores de “enfoque do acesso à Justiça” – é mais abrangente, porque nela reside uma enorme gama de fatores a serem analisados para melhor aperfeiçoamento da solução dos conflitos. É nessa última onda que surgem novos mecanismos judiciais que visam, sobretudo, à celeridade do processo, como os juizados especiais de pequenas causas, a antecipação de tutela, o procedimento sumaríssimo; além de outros institutos alternativos extrajudiciais, como a arbitragem, a mediação, a conciliação, o termo de compromisso de ajuste de conduta firmado perante o Ministério Público etc. 9

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Antônio Herman V. Benjamin, A insurreição da aldeia global contra o processo civil clássico - Apontamentos sobre a opressão e a libertação judiciais do meio ambiente e do consumidor, p. 74-75. Cumpre destacar que a expressão acesso ao poder é empregada por esse autor como um dos objetivos do movimento dos consumidores (“consumerismo”) e dos ambientalistas (“ambientalismo”) que, insatisfeitos com sua posição de vulnerabilidade e hipossuficiência no mercado e diante das grandes empresas poluidoras, intentam obter nas chamadas sociedades (supostamente) pluralistas, uma parcela do poder político. Mauro Cappelletti, Briant Garth, Acesso à justiça, passim. Essa segunda onda é também denominada por Mauro Cappelletti de “obstáculo organizacional no movimento de acesso à justiça” (Os métodos alternativos de solução dos conflitos no quadro do movimento universal de acesso à justiça, RF 326, p. 122).

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A bem ver, porém, o problema do acesso à justiça também foi estudado por Enrique Véscovi, para quem: “La moderna teoría general del proceso se plantea toda la problemática derivada de las nuevas condiciones de la sociedad, las cuales, naturalmente, tienen influencía sobre el derecho y la justicia. En nuestra época se ha planteado, quizá com mayor énfasis, el problema de la dificultad del acceso a la justicia para ciertas personas. Decimos con mayor énfasis, por cuanto ese problema es tan viejo como el de la propia sociedad, el derecho y la justicia”.12 Vê-se, assim, que a nova concepção de acesso à justiça passa, a fortiori, pela imperiosa necessidade de se estudar a ciência jurídica processual e seu objeto num contexto político, social e econômico, o que exige do jurista e do operador do direito o recurso constante a outras ciências, inclusive a estatística, que lhe possibilitarão uma melhor reflexão sobre a expansão e complexidade dos novos litígios para, a partir daí, buscar alternativas de solução desses conflitos.13 Como bem observa Francisco Barros Dias, parafraseando Kazuo Watanabe, acesso à Justiça deve significar não apenas o “acesso a um processo justo, o acesso ao devido processo legal”14, mas também a garantia de acesso “a uma Justiça imparcial; a uma Justiça igual, contraditória, dialética, cooperatória, que ponha à disposição das partes todos os instrumentos e os meios necessários que lhes possibilitem, concretamente, sustentarem suas razões, produzirem suas provas, influírem sobre a formação do convencimento do Juiz.”15 No sentido integral, acesso à justiça significa também acesso à informação e à orientação jurídica, e a todos os meios alternativos de composição de conflitos, pois o acesso à ordem jurídica justa é, antes de tudo, uma questão de cidadania. Trata-se da participação de todos na gestão do bem comum através do processo, criando o chamado “paradigma da cidadania responsável. Responsável pela sua história, a do país, a da coletividade. Nascido de uma necessidade que trouxe à consciência da modernidade o sentido democráti12 13

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Teoría general del proceso, p. 319. Luiz Guilherme Marinoni, Novas Linhas do Processo Civil, p. 24-25. No mesmo sentido, Mauro Cappelletti: “O papel da ciência jurídica, aliás, o papel dos operadores do direito em geral, torna-se assim mais complexo, porém igualmente muito mais fascinante e realístico. Para exemplicar, ele não se cinge a descrever as normas, formas e procedimentos aplicáveis aos atos de instauração de um processo judicial ou de interposição de um recurso; deve também levar em consideração os custos a suportar, o tempo necessário, as dificuldades (inclusive as psicológicas) a superar, os benefícios a obter etc.” (Métodos alternativos de solução de conflitos no quadro do movimento universal de acesso à justiça, RF 326, p. 122). Francisco Barros Dias, Processo de conhecimento e acesso à justiça (tutela antecipatória), p. 212. Ibid., mesma página.

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co do discurso, ou seja, o desejo instituinte de tomar a palavra, e ser escutado. É necessário, portanto, que também a jurisdição seja pensada com vários escopos, possibilitando o surgir do processo como instrumento de realização do poder que tem vários fins”16. Revelando a experiência do direito canadense, Nicole L’Heureux17 salienta que uma das soluções preconizadas nos últimos anos foi a de priorizar a melhora de facilidades de acesso ao poder judiciário, mediante duas idéias fundamentais: um sistema que seja acessível a todos e um sistema que produza resultados individual e socialmente justos. Esse autor indica que as ações coletivas e o juizado de pequenas causas foram criados para atingir esses objetivos. Tendo em vista os objetivos específicos deste estudo, interessa-nos o enfoque da “segunda onda” ou “obstáculo organizacional” de acesso à justiça referido por Cappelletti, é dizer, aquele que estuda os sistemas e institutos jurídicos de promoção da defesa judicial coletiva dos interesses ou direitos metaindividuais.

2. Os Sistemas Mundiais de Acesso Coletivo à Justiça O problema do acesso coletivo à justiça tem sido objeto de estudos em diversos países, sendo possível identificar três sistemas que apresentam diferentes soluções:18 a) o publicista, no qual a legitimação para defender os interesses metaindividuais é confiada a órgãos públicos, tais como o Ministério Público francês,19 o Ombudsman dos países escandinavos, a Prokouratoura soviética e o Attorney General norte-americano; b) o privatista, que confere a legitimação para defender tais interesses à iniciativa dos particulares, é dizer, dos próprio indivíduos. É o sistema adotado nas relator actions e nas class actions dos países de common law; c) o associacionista, que é fundado no reconhecimento da capacidade dos grupos sociais ou associações privadas para representar, em juízo, os interesses públicos ou metaindividuais. Tal sistema é o que conta com um número crescente de adeptos e tem sido adotado na maioria dos países do continente europeu e em alguns países latino-americanos. No início, restrito a matérias decorrentes de conflitos de trabalho; atualmente, ampliado para matérias concernentes à proteção do meio ambiente, consumidor, patrimônio social e cultural. 16 17 18 19

Op.cit., mesma página. Acesso eficaz à justiça: juizado de pequenas causas e ações coletivas, p. 6. Enrique Vescovi, La participación de la sociedad civil en el processo. La defensa del interés colectivo y difuso. Las nuevas formas de legitimación, p. 168-175. Segundo Enrique Vescovi (op. cit., p. 169), esta solução é também adotado na maioria dos países latinoamericanos.

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3. O Sistema Brasileiro de Acesso Metaindividual à Justiça O direito brasileiro, segundo nos parece, adotou solução eclética, na medida em que harmonizou os três sistemas já mencionados. E isto porque, no nosso ordenamento, a legitimação ad causam em tema de interesses metaindividuais é conferida: a) aos órgãos públicos (com destaque para o Ministério Público), nas ações civis públicas ou coletivas destinadas a defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos; b) às associações civis, nas mesmas condições conferidas ao Ministério Público para a promoção das ações coletivas; c) ao cidadão, na ação popular que tenha por escopo, principalmente, a defesa do patrimônio público e da moralidade administrativa. A bem ver, o problema do acesso à Justiça ganhou nova dimensão a partir da Constituição Federal de 1988 que, inovando substancialmente em relação à Carta que lhe antecedeu, catalogou os princípios da inafastabilidade do controle jurisdicional20 e do devido processo legal no rol dos direitos e garantias fundamentais, especificamente, no capítulo concernente aos direitos e deveres individuais e coletivos.21 Amplia-se, então, no plano mais elevado do nosso ordenamento, o conceito jurídico de acesso ao Poder Judiciário, não somente para a tutela jurisdicional na hipótese de lesão, mas, também, na de ameaça a direito. E mais, a expressão “direito”, embora esteja gramaticalmente empregada no singular, comporta interpretação extensiva e sistemática, isto é, abarca tanto os “direitos” como os “interesses”22, quer sejam “individuais”, quer sejam “coletivos” lato sensu.23 20

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Também chamado de princípio da proteção judiciária (José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, p. 376), princípio da indeclinabilidade da jurisdição, princípio da demanda ou princípio do direito de ação (Nelson Nery Junior, Código de processo civil comentado, p. 90-91). Diz o art. 5º, inciso XXXV, da CF: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. A Constituição brasileira de 1969, em seu art. 153, § 3º, dispunha: “A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão a direito individual”. É despicienda a distinção entre direito e interesse, como já vimos no item I do capítulo II supra. Mesmo porque, alguns remédios constitucionais têm por objeto a defesa tanto de direitos como de interesses, como é o caso, v. g., do mandado de segurança, que protege direito individual (CF, art. 5º, LXIX) ou interesses coletivos (idem, art. 5º, LXX, b); do mandado de injunção, que protege direitos e liberdades (idem, art. 5º, LXXI); da ação civil pública, que protege interesses difusos e coletivos, além de outros coletivamente considerados (idem, art. 129, III); da legitimação dos sindicatos para defenderem judicialmente direitos e interesses individuais ou coletivos da categoria (idem, art. 8º, III). Cf. José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, p. 178-179. No mesmo sentido, Nelson Nery Junior: “Em redação mais técnica do que a do art. 153, § 4º, da CF de 1969, que dizia lesão de direito ‘individual’, o novo texto consagrou o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, também conhecido como princípio do direito de ação. Isto quer dizer que todos têm acesso à justiça para postular tutela jurisdicional preventiva ou reparatória relativamente a um direito. Estão aqui contemplados não só os direitos individuais,

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4. Os Princípios Constitucionais de Acesso à Justiça Não é incorreto afirmar, pois, que esses dois princípios constitucionais – indeclinabilidade da jurisdição (CF, art. 5º, XXXV) e devido processo legal (CF, art. 5º, incisos LIV e LV) – servem de aporte à temática do efetivo acesso, tanto individual quanto coletivo, ao Poder Judiciário brasileiro. Nesse passo, e considerando a existência de diversas normas constitucionais e infraconstitucionais criadoras de direitos e garantias metaindividuais, bem como a atual tendência legislativa em ampliar e regular a proteção desses “novos direitos”, salta aos olhos que o ortodoxo modelo liberal-individualista, inspirador do CPC e da CLT (Título X, Capítulo III), mostra-se inválido, insuficiente, inadequado e ineficaz para solucionar os novos conflitos civis e trabalhistas de massa, pois como adverte Marcelo Abelha Rodrigues, “tratar-se-ia de, por certo, se assim fosse, uma hedionda forma de inconstitucionalidade, na medida em que impede o acesso efetivo à justiça e fere, em todos os sentidos, o direito processual do devido processo legal. Isto porque, falar-se em devido processo legal, em sede de direitos coletivos lato sensu, é, inexoravelmente, fazer menção ao sistema integrado de tutela processual trazido pelo CDC (Lei 8.078/90) e LACP (Lei 7.347/85).”24 Por outro lado, a enorme gama de direitos sociais criados pela Constituição Federal de 1988 ficariam no limbo se o legislador constituinte tivesse mantido o sistema ortodoxo de acesso individual à jurisdição, tal como previsto na Carta de 1967 (art. 150, § 4º), mantido com a EC n. 1/69 (art. 153, § 4º), que somente permitiam o direito de ação nos seguintes termos: “a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão a direito individual”. Com efeito, a atual Constituição da República que, na verdade, encerra a passagem do Estado Liberal para o Estado Social, rompe definitivamente com a clássica idéia de que apenas os direitos individuais mereceriam proteção estatal. Vê-se, pois, que o novo texto constitucional substituiu propositadamente a expressão “qualquer lesão a direito individual”, por outra que permitisse o alargamento do acesso ao Poder Judiciário aos novos direitos e interesses metaindividuais. Para tanto, o art. 5º, XXXV, da CF/88, em harmonia com o enunciado no seu Título II, Capitulo I (“Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”), prescreve que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.” Está aí consagrado o novo princípio da

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como também os difusos e coletivos” (Princípios do processo civil na constituição federal, p. 91). Marcelo Abelha Rodrigues, Elementos de direito processual civil, v. 1, p. 73.

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inafastabilidade jurisdicional que é destinado tanto para a proteção dos direitos ou interesses individuais quanto para a dos direitos ou interesses metaindividuais.25

5. O Novo Sistema Integrado de Acesso Metaindividual à Justiça Esse moderno sistema integrado de acesso coletivo à justiça é implementado por aplicação direta de normas jurídicas da CF (arts. 5º, XXXV, LIV, LXX, LXXI e LXXIII, 8º, III, 127 e 129, III e § 1º), da LACP (arts. 1º, 5º e 21), do CDC (Título III: arts. 81, 90, 91 a 100, 103 a 104) e, por aplicação subsidiária, das normas do CPC, desde que estas não sejam incompatíveis com aquelas. Alguns processualistas apelidaram esse novo sistema de “jurisdição civil coletiva”,26 o que implica dizer que, atualmente, a “jurisdição civil”27 abrange dois sistemas: o da tutela jurisdicional individual, regido basicamente pelo CPC, e o da tutela jurisdicional coletiva (ou “jurisdição civil coletiva”), disciplinado, em linhas gerais, pelo sistema integrado de normas contidas na CF, na LACP, no CDC e, subsidiariamente, no CPC. Com relação ao direito processual do trabalho, pode-se inferir que, com a promulgação da CF, de 1988, do CDC, de 1990, e, mais tarde, da LOMPU,28 de 1993, a “jurisdição trabalhista” passou a ser constituída de três sistemas: a) o primeiro, que passaremos a chamar de jurisdição trabalhista individual, é destinado aos tradicionais “dissídios individuais” utilizados para solução das re25

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O princípio da inafastabilidade juridicional é também chamado de princípio da proteção judiciária, princípio da indeclinabilidade da jurisdição, princípio da demanda ou princípio do direito de ação (Nelson Nery Junior, Código de processo civil comentado, p. 90-91). Celso Antonio Pacheco Fiorillo, Curso de direito ambiental brasileiro, p. 218, sublinha que “falar em devido processo legal em sede de direitos coletivos lato sensu é fazer menção à aplicação de um outro plexo de normas e não do tradicional Código de Processo Civil, sob pena de assim violarmos a Constituição, impedindo o efetivo acesso à justiça. Esse outro plexo de normas inova o ordenamento jurídico, instituindo o que passaremos a chamar de jurisdição civil coletiva. Esta é formada basicamente por dois diplomas legais: o CDC (Lei n. 8.078/90) e a LACP (Lei n. 7.347/85)”. No mesmo sentido, Marcelo Abelha Rodrigues, op. cit., p. 111-112. Esse autor reconhece, com razão, que embora a jurisdição seja una, é possível distinguir, para fins meramente didáticos, a “jurisdição civil coletiva”, disciplinadora do “conjunto de regras processuais que devem ser aprioristicamente utilizadas na tutela processual coletiva”, da tradicional jurisdição civil individual. Ada Pellegrini Grinover e Antonio Carlos de Araújo Cintra e Cândido Rangel Dinamarco, também exaltam a unidade da jurisdição, mas admitem que devido a problemas relacionados à distribuição da “massa de processos” entre “Justiças”, bem como a critérios para essa distribuição (que são, em rigor, matérias concernentes à problemática da competência) é possível falar em espécies de jurisdição, como a jurisdição civil e penal, a jurisdição comum e especial, jurisdição superior e inferior, jurisdição de direito e de eqüidade etc. (Teoria geral do processo, p. 122-127). Nelson Nery Junior salienta que: “Como lei geral do processo não penal no Brasil, o CPC aplica-se subsidiariamente às ações coletivas. Quando se fala em processo civil coletivo, portanto, deve-se ter em consideração as normas constitucionais sobre o tema (v. g. CF 5º XXI, XXXII, LXX, LXXIII), a LACP, o CDC 81/104 (parte processual) e, por derradeiro, a aplicação subsidiária do CPC.” (O processo do trabalho e os direitos individuais homogêneos – um estudo sobre a ação civil pública trabalhista, Revista LTr 64-02/153). Antes da LOMPU (LC 75/93), cujo art. 83, III, prevê expressamente a competência da Justiça do Trabalho para a ação civil pública trabalhista, havia acirradas discussões sobre o cabimento dessa espécie de ação coletiva no âmbito do processo do trabalho. Daí a inexpressiva utilização do CDC, não obstante o disposto no art. 21 da LACP, nesse ramo especializado do Judiciário pátrio.

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clamações (rectius, ações) individuais ou plúrimas.29 Seu processamento é regulado pelo Título X, Capítulo III, da CLT e, subsidiariamente, pelo CPC, a teor do art. 769 consolidado; b) o segundo, doravante denominado jurisdição trabalhista normativa, é voltado para os dissídios coletivos de interesses, nos quais se busca, por intermédio do Poder Normativo exercido originalmente pelos Tribunais do Trabalho (CF, art. 114, § 2º), a criação de normas trabalhistas aplicáveis às partes figurantes do “dissídio coletivo” e seus representados. Seu processamento é regulado pelo Título X, Capítulo IV, da CLT e, subsidiariamente, o CPC, por força da regra contida no mencionado art. 769 do texto obreiro; c) o terceiro e último sistema30, aqui cognominado de jurisdição trabalhista metaindividual, é vocacionado, basicamente, à tutela preventiva e reparatória dos direitos ou interesses metaindividuais, que são os difusos, os coletivos e os individuais homogêneos. O exercício da jurisdição trabalhista metaindividual é feito, basicamente, pela aplicação direta e simultânea de normas jurídicas da CF (artigos 129, III e IX; 8º, III e 114), da LOMPU (LC n. 75/93, artigos 83, III; 84, caput e 6º, VII, a e b), da LACP (Lei n. 7.347/85) e pelo Título III do CDC (Lei n. 8.078/90), restando à CLT e ao CPC o papel de diplomas legais subsidiários. Na jurisdição trabalhista metaindividual, diferentemente da jurisdição trabalhista normativa, não há criação de normas, e sim aplicação, pela Justiça do Trabalho, do direito (ou interesse) preexistente. A expressão “jurisdição trabalhista metaindividual” é aqui empregada para diferenciá-la do tradicional sistema trabalhista de solução de conflitos coletivos de interesses, consubstanciado no exercício do Poder Normativo e historicamente utilizado, como já apontado, para a criação de normas coletivas de trabalho aplicáveis no âmbito das categorias profissional e econômica. Para tornar efetiva a garantia constitucional do acesso dos trabalhadores a essa nova jurisdição trabalhista metaindividual é condição necessária a aplicação aprio29 30

Ou simplesmente litisconsórcio ativo, segundo alguns. Em outro escrito de nossa autoria, já alertávamos que: “Com a vigência da Constituição de 1988, do CDC, que deu nova redação ao art. 1º, inciso IV da LACP, alargando o espectro tutelar da ação civil pública, e da LOMPU (Lei Complementar n. 75/93, art. 83, III c.c. art. 6º, VII, a e d), que acabou com a antiga polêmica a respeito da competência da Justiça do Trabalho para a referida ação coletiva, não há mais dúvida de que a jurisdição trabalhista passa a abarcar um terceiro sistema, que é o vocacionado à tutela preventiva e reparatória dos direitos ou interesses metaindividuais, a saber: os difusos, os coletivos stricto sensu e os individuais homogêneos. O fundamento desse novo sistema de acesso coletivo ao judiciário trabalhista repousa nos princípios constitucionais da indeclinabilidade da jurisdição (CF, art. 5º, XXXV) e do devido processo legal (idem, incisos LIV e LV)...” (Carlos Henrique Bezerra Leite, Tendências do direito processual do trabalho e a tutela dos interesses difusos, p. 228).

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rística do novo sistema normativo de tutela coletiva integrado pela aplicação direta das normas contidas na CF, LOMPU, LACP e pelo Título III do CDC. Noutro falar, somente na hipótese de lacuna desse novo sistema coletivo de acesso à justiça (CF-LOMPU-LACP-CDC) ou se algumas de suas disposições forem incompatíveis com os princípios peculiares do processo do trabalho, aí, sim, poderá o juiz do trabalho socorrer-se da aplicação subsidiária da CLT, do CPC e de outros diplomas normativos processuais pertinentes.31 Não é exagerado afirmar, portanto, que em tema de proteção a direitos ou interesses metaindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos), à míngua de disciplinamento legislativo próprio e específico no direito processual do trabalho, opera-se uma inversão da regra clássica do art. 769 da CLT32. E isso decorre, como já frisamos alhures, do novo enfoque do acesso coletivo à justiça, consubstanciado nos princípios da indeclinabilidade da jurisdição e do due process of law, que estão desenhados no rol dos direitos e garantias fundamentais na Constituição Federal. Pode até parecer canhestra aos juslaboralistas e aos operadores do direito laboral a aplicação supletória da CLT nos conflitos submetidos à cognição da Justiça do Trabalho. Mas é preciso insistir: em matéria de interesses ou direitos difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos, dada a inexistência de legislação trabalhista específica, principalmente pelo fato de que o “velho” dissídio coletivo de interesses revela-se absolutamente inadequado para tutelar esses “novos direitos”, a jurisdição trabalhista metaindividual é a única capaz de assegurar a adequada e efetiva tutela constitucional a esses novos direitos ou interesses. Mesmo porque, sabe-se que o único dispositivo legal a tratar dos interesses metaindividuais trabalhistas é o art. 83, inciso III, da LOMPU e, ainda assim, ele só cuida da competência e da legitimação do Ministério Público do Trabalho para promover a ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho, o que deixa patente a inadequação, e porque não dizer a invalidade, da atual legislação laboral em tema de proteção judicial aos interesses difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos. Poder-se-ia, por outro lado, objetar a aplicação desse novo sistema integrado (CF, LOMPU, LACP, CDC) no processo do trabalho, com base no próprio CDC que, em seu art. 3º, § 2º, in fine, exclui do conceito de “serviço” as “atividades decorrentes das relações de caráter trabalhista”. Todavia, a finalidade ontológica desse dispositivo é apenas conceituar “serviço” para fins de caracterizar o fornecedor, ou seja, ele diz respeito apenas 31

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Reformulamos, assim, a posição que assumimos anteriormente quando sustentávamos que a aplicação subsidiária, in casu, seria da LACP, do CDC (Título III), da LOMPU, da LONMP (cf. Carlos Henrique Bezerra Leite, Ministério público do trabalho, p. 104). Diz o art. 769 da CLT, in verbis: “Nos casos omissos, o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho, exceto naquilo que for incompatível com as normas deste Título.”

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às relações de caráter material, nada dispondo sobre relações processuais de caráter coletivo previstas no Título III (parte processual) do CDC.33 Aliás, de lege lata, o conceito de interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos só é encontrado no Título III do CDC, especificamente, no parágrafo único do art. 81 deste diploma legal. Ademais, dada a competência da Justiça do Trabalho para conhecer e julgar a ação civil pública, ex vi do disposto no art. 83, III, da LOMPU, implica reconhecer que, à míngua de legislação especial disciplinadora deste tipo de demanda coletiva na “jurisdição trabalhista”, as disposições contidas na LACP e na parte processual do CDC são inteiramente aplicáveis a este tipo de ação coletiva. Tanto é assim que o art. 21 da LACP determina expressamente: “Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, que instituiu o Código de Defesa do Consumidor”.34 E o art. 90 do CDC, por sua vez, manda aplicar “às ações previstas neste Título as normas do Código de Processo Civil e da Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, inclusive no que respeita ao inquérito civil, naquilo que não contrariar suas disposições.” Ora, sé é a própria LACP que, como único diploma legal a dispor sobre o cabimento da ação civil pública na Justiça do Trabalho, determina a aplicação da parte processual do CDC (Título III), é irrecusável que ambos formam, como expõe Kazuo Watanabe: 33

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Segundo Nelson Nery Junior (O processo do trabalho e os direitos individuais homogêneos – um estudo sobre a ação civil pública trabalhista, Revista LTr 64-02/153), “não só o Título III do CDC (arts. 81/104) se aplica às ações coletivas tout court, mas o sistema processual do CDC como um todo, já que lex dixit minus quam voluit. Por exemplo, o princípio da facilitação da defesa dos titulares do direito transindividual (ou dos titulares do direito de ação coletiva) em juízo, do qual a inversão do ônus da prova é espécie (CDC, art. 6º, VIII) é perfeitamente aplicável a toda ação coletiva. Como princípio geral, não se encontra na parte especial do Título III do CDC. É induvidoso, entretanto, que se aplica às ações coletivas”. No mesmo sentido: Rodolfo de Camargo Mancuso, Ação civil pública trabalhista: análise de alguns pontos controvertidos, passim; Jorge Pinheiro Castelo, O direito processual do trabalho na moderna teoria geral do processo, p. 358-360.; Hugo Nigro Mazzilli, A defesa dos interesses difusos em juízo, passim. Nelson Nery Junior, op. cit., mesma página, acentua que a parte processual do CDC tem uma ultra-eficácia dada pelo art. 21 da LACP. A razão lógica dessa ultra-eficácia é explicada pelo fato de a LACP ser insuficiente para sistematizar o processo e o procedimento das ações coletivas para a defesa dos direitos difusos e coletivos em juízo, como, por exemplo, ao tratar da coisa julgada, no art. 16, cuida apenas de um interesse, o difuso, e nada alude aos interesses coletivos e individuais homogêneos. Aliás, os interesses individuais homogêneos somente passaram a ser objeto da ação civil pública por força do art. 117, que acrescentou o art. 21 à LACP. A tutela da obrigação de fazer e não fazer, com execução específica, bem como a ação inibitória (CDC, art. 35 e 84) são outros exemplos de lacuna da LACP.

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“A mais perfeita interação entre o Código e a Lei n. 7.347, de 24.07.85, está estabelecida nos arts. 90 e 110 usque 117, de sorte que estão incorporados ao sistema de defesa do consumidor (e a defesa coletiva do trabalhador, acrescentamos) as inovações introduzidas pela referida lei especial, da mesma forma que todos os avanços do Código são também aplicáveis ao sistema de tutela de direitos criado pela Lei n. 7.347.”35 Daí a observação de Nelson Nery Junior, quando afirma ser “razoável, pois, que a LACP mande aplicar às ações coletivas e individuais a parte processual do CDC, naquilo que for cabível. De conseqüência, não é de estranhar-se a invocação de dispositivos processuais do Código de Defesa do Consumidor em ações trabalhistas, ambientais, tributárias, na defesa de índios, de idosos etc.”36 Por isso, leciona esse consagrado processualista, “é que não se pode ajuizar ação coletiva, nem defender-se em ação coletiva, tampouco decidir ação coletiva sem levar-se em conta todo o complexo normativo do processo civil coletivo.”37 No mesmo sentido é o pensamento de Ada Pellegrini Grinover, para quem “os dispositivos processuais do Código se aplicam, no que couber, a todas as ações em defesa de interesses difusos, coletivos, ou individuais homogêneos, coletivamente tratados.”38 Essa ilustre processualista observa que, em função da coisa julgada coletiva constante do CDC, os dispositivos processuais do CDC, pelo menos até a edição de disposições específicas que venham a disciplinar diversamente a matéria, são aplicáveis a toda e qualquer ação coletiva.39 E exemplifica com a coisa julgada na ação coletiva intentada pelo sindicato (CF, art. 8º, III), ainda sem assento próprio na legislação trabalhista específica, que deverá reger-se pelo estatuído no Cap. IV do Título III do Código; as ações promovidas por associações (CF, art. 5º, XXI); as ações propostas por entidades de proteção aos índios, em prol de seus interesses coletivamente considerados.40 35 36 37 38 39 40

Código brasileiro de defesa do consumidor, p. 616. Nelson Nery Junior, op. cit., p. 153. Ibid., p. 154. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, p. 717. Ada Pellegrini Grinover, op. cit., mesma página. Ibid., mesma página.

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Numa palavra, a não aplicação desse novo sistema integrado para a tutela dos interesses ou direitos metaindividuais trabalhistas importa violação: a) às normas que estabelecem a competência da Justiça do Trabalho e a legitimidade do Ministério Público do Trabalho para a ação civil pública trabalhista41 (LOMPU, art. 83, III, c.c. art. 6º, VII, a e b); b) às disposições processuais da LACP e do Título III do CDC; c) aos princípios constitucionais que asseguram o acesso (metaindividual) dos trabalhadores à Justiça do Trabalho.

6. Considerações Finais: Necessidade de uma Nova Mentalidade É óbvio que a implementação da jurisdição (civil e trabalhista) metaindividual requer uma nova postura de todos os que lidam com a questão da justicialidade dos direitos humanos. É preciso que as inteligências tenham como norte a efetivação do acesso – individual e metaindividual – dos fracos e vulneráveis, como consumidores, trabalhadores, crianças, adolescentes, idosos, os excluídos em geral, não apenas ao aparelho judiciário e à democratização das suas decisões, mas, sobretudo, a uma ordem jurídica justa. Para tanto, é condição necessária a formação de uma nova mentalidade,42 que culmine com uma autêntica transformação cultural não apenas dos juristas, juízes e membros do Ministério Público e demais operadores jurídicos, mas, também dos governantes, dos empresários, dos ambientalistas e sindicalistas. A efetivação do acesso coletivo à justiça exige, sobretudo, um “pensar coletivo”, que seja consentâneo com a nova ordem política, econômica e social implantada em nosso ordenamento jurídico a partir da Carta Magna de 1988. Quanto ao Ministério Público, o 127 da Constituição de 1988 deixa evidente o seu novo papel político no seio da sociedade brasileira, pois a ele foi cometida a nobre missão de promover a defesa não apenas do ordenamento jurídico e dos direitos sociais e individuais indisponíveis, mas também do regime democrático. 41

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Exemplifique-se com o seguinte julgado do Pretório Excelso: “COMPETÊNCIA AÇÃO CIVIL PÚBLICA CONDIÇÕES DE TRABALHO. Tendo a ação civil pública como causas de pedir disposições trabalhistas e pedidos voltados à preservação do meio ambiente do trabalho e, portanto, aos interesses dos empregados, a competência para julgá-la é da Justiça do Trabalho” (STF-RE 206.220/MG, 2ª T., rel. Min. Marco Aurélio, j. 16.3.1999, DJ 17.9.1999, p. 58). No mesmo sentido: “Ação Civil Pública. Justiça do Trabalho. Competência. É competente esta Justiça Especializada para apreciar e julgar ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho, na defesa dos interesses coletivos e difusos do trabalhador menor, na forma estatuída nos artºs. 114, da Constituição Federal e 83, III, da Lei Complementar nº 75/93” (TRT-2ª Reg. - 6ª T., RO. 02980566840, Ac. 200000356616, relª. Juíza Maria Aparecida Duenhas, DOE-PJ 28.7.2000). Kazuo Watanabe, Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, p. 610-611.

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Deixa, pois, o Ministério Público a função de mero custos legis, para se transformar em agente político, cuja função institucional é zelar43 pela soberania e representatividade popular; pelos direitos políticos; pela dignidade da pessoa humana; pela ordem social (valor social do trabalho) e econômica (valor social da livre iniciativa); pelos princípios e objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil; pela independência e harmonia dos Poderes constituídos; pelos princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência relativos à Administração Pública; pelo patrimônio público e social; pelo meio ambiente em todas as suas formas, inclusive o do trabalho etc. É preciso substituir a velha e ultrapassada expressão custos legis pela de custos iuris, pois esta abrange não apenas a lei em sentido estrito, mas, também, os princípios, os valores e os objetivos fundamentais que se encontram no vértice do nosso ordenamento jurídico. Nesse sentido, adverte Ronaldo Porto Macedo Júnior: “O novo perfil institucional traçado pela Constituição Federal de 1988 e as novas funções na tutela dos interesses sociais de natureza transindividual firmaram o novo perfil do Ministério Público enquanto órgão agente, tornando cada vez mais evidente o anacronismo de certas formas de intervenção como custos legis em processos de natureza eminentemente individual e privada (...) Fortalecia-se, assim, a nova identidade do Ministério Público brasileiro enquanto instituição voltada para a tutela dos interesses sociais, uma espécie de ombudsman não eleito da sociedade brasileira”44. As transformações e a complexidade das relações sociais, o aumento da pobreza e do desemprego, a banalização da violência, a generalização do descumprimento da legislação, a flexibilização do Direito do Trabalho, a criação de novos institutos jurídicos e a massificação dos conflitos estão a exigir um aperfeiçoamento técnico multidisciplinar e permanente dos membros do Ministério Público. Não basta, contudo, o aperfeiçoamento técnico. É preciso, paralelamente, que as escolas do Ministério Público incluam entre as suas finalidades, a exemplo do que se dá com o Ministério Público nas modernas democracias sociais, a formação e informação dos futuros promotores e procuradores a respeito dos valores da ética republicana e democrática consagrada na nossa Constituição de 198845. 43 44 45

Ver art. 5º da Lei Complementar n. 75, de 20.5.93. Ronaldo Porto Macedo Júnior, Ministério público brasileiro : um novo ator político, in Ministério Público II : democracia, p. 107. João Francisco Sauwen Filho, Ministério público brasileiro e o estado democrático de direito, p. 230.

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No que concerne aos juízes, decididamente, a Constituição cidadã, como foi batizada por Ulisses Guimarães, também lhes atribui o papel político de agente de transformação social. Não é por outra razão que o art. 93, inciso IV, da CF determina que a lei complementar que disporá sobre o Estatuto da Magistratura nacional deverá observar, como princípio, “a previsão de cursos oficiais de preparação e aperfeiçoamento de magistrados como requisitos para ingresso e promoção na carreira” (grifos nossos). E nem poderia ser diferente, pois a crescente complexidade das relações sociais; as transformações sociais rápidas e profundas; a criação assistemática de leis que privilegiam mais a eficácia de planos econômicos do que a eqüidade e a justiça das relações jurídicas; a crescente administrativização do direito que é utilizado como instrumento de governo, economia de massa a gerar intensa conflituosidade; a configuração coletiva dos conflitos de interesses relativos a relevantes valores da comunidade, como o meio ambiente e outros interesses difusos exigem o recrutamento mais aprimorado de juízes e seu permanente aperfeiçoamento cultural46. Trata-se de aperfeiçoamento multidisciplinar, que abrange não apenas o direito, como também a sociologia, a economia, a psicologia, a política, enfim, “um aperfeiçoamento que propicie a visão global do momento histórico e do contexto sócio-econômico-cultural em que atuam os juízes”47. Somente assim, salienta Kazuo Watanabe, “teremos uma Justiça mais rente à realidade social e a necessária mudança de mentalidade pelos operadores do Direito, que torne factível o acesso à ordem jurídica mais justa”48. A par do aperfeiçoamento dos juízes, faz-se necessário um apoio decisivo aos mesmos pelos órgãos de cúpula do Judiciário, tal como ocorre atualmente no seio do Ministério Público, que vem criando Coordenadorias Especializadas de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos, além de outros órgãos destinados à pesquisa permanente, à orientação e ao apoio material de seus membros. Para implementar a judiciailização dos direitos humanos, em especial os direitos sociais, é condição necessária exigir do Estado, dos corpos intermediários e da sociedade, principalmente dos operadores jurídicos, o respeito aos princípios e objetivos fundamentais da República, o que requer uma postura ética, educativa e democrática. Afinal, enquanto existir um direito humano desrespeitado, não haverá paz, democracia e justiça para todos. 46

47 48

Kazuo Watanabe, Apontamentos sobre tutela jurisdicional dos interesses difusos (necessidade de processo dotado de efetividade e aperfeiçoamento permanente dos juízes e apoio dos órgãos superiores da justiça em termos de infraestrutura material e pessoal), in Ação civil pública – Lei 7.347/85 – reminiscências e reflexões após dez anos de aplicação / coord. Édis Milaré, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1995, p. 327-328. Idem, mesma página. Op. cit., p. 328.

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Constituição e Internacionalização dos Direitos Humanos Carlos Roberto Siqueira Castro*

A trajetória dos direitos humanos iniciou-se por uma compreensão jusnaturalista, expressante do ideário individualista que assinalou as revoluções liberais do século 18, evoluindo no sentido da positivação constitucional dos direitos e garantias considerados fundamentais segundo a escala de valores sublimados pelas constituições da era moderna, culminando por alcançar no presente século um coroamento transcendente das fronteiras do Estado nacional, com a sua inclusão nos tratados, declarações, convenções, protocolos e demais instrumentos que compõem a ordem jurídica internacional. Como assinala NORBERTO BOBBIO - “os direitos do homem nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais. A Declaração Universal contém em germe a síntese de um movimento dialético, que começa pela universalidade abstrata dos direitos naturais, transfigura-se na particularidade concreta dos direitos positivos, e termina na universalidade não mais abstrata, mas também concreta, dos direitos positivos universais”.1 Essa evolução, que percorreu cerca de quatro séculos, até a consagração culminante e universal dos direitos humanos no conserto dos continentes e das nações do planeta, experimentou um estágio preparatório com as normas de caráter humanitário que, já no século 19, buscavam estabelecer limites à soberania do Estado no contexto das guerras, com vistas a garantir uma pauta mínima de proteção da individualidade humana em face das agressões e crueldades ocorrentes nos conflitos armados. O direito de guerra, que constitui um dos mais antigos e veneráveis experimentos do Direito Internacional Público, ensejou * 1

Doutor em Direito. Master of Laws (LL.M.) University of Michigan. Professor Titular de Direito Constitucional da UERJ. Conselheiro Federal da OAB BOBBIO, NORBERTO, A era dos direitos, Ed. Campus, 1992, pág. 30. Com semelhante visão, arremata o Professor RAUL MACHADO HORTA, da conceituada Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais: “Alcançou-se a plenitude jurídica dos Direitos individuais quando, rompendo as resistências da soberania estatal, formulou-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948, incorporando ao Direito Internacional os direitos anteriormente reconhecidos na Constituição do Estado” (HORTA, RAUL MACHADO, em Constituição e Direitos Individuais, na Revista de Direito Constitucional e Ciência Política, do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional Ed. Forense, RJ, Nr. 4, 1985 Pag. 201.

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a formulação do Direito Internacional Humanitário, visto como a primeira grande expressão do internacionalismo no campo dos direitos do homem.2 Conquanto algumas de suas normas e princípios já existissem com certa anterioridade, a doutrina especializada considera o ano de 1864 como a data simbólica de nascimento desse ramo jurídico, em razão da celebração do primeiro documento multilateral do Direito Internacional Humanitário, a saber a Convenção de Genebra de 22 de agosto de 1864.3 A assimilação do Direito Humanitário pelo Direito Internacional Público atinente à tutela dos direitos fundamentais do homem só viria a efetivar-se formalmente no ano de 1968, quando da celebração da Conferência Internacional de Direitos Humanos de Teerã, promovida pela Organização das Nações Unidas. Esse importante conclave internacional representa um ponto de convergência entre os dois sistemas de tutela da pessoa humana, sendo assinalável, nesse sentido, que a Resolução nº. XXIII adotada pela Conferência de Teerã alude expressamente aos direitos humanos no caso de conflito armado. Daí em diante, não obstante respeitadas as peculiaridades históricas e operacionais do chamado direito humanitário, o campo dogmático dos direitos humanos na órbita internacional passou a ser encarado com a abrangência que lhe é própria, de maneira a compreender, além das numerosas e crescentes normas de tutela internacional dos direitos do homem, o conjunto normativo historicamente incluído na circunscrição do direito humanitário surgido com a preocupação dos povos de regular as situações de guerra.4 Também no campo da proteção internacional dos direitos humanos propriamente ditos - mostra-nos CELSO DE ALBUQUERQUE MELLO -, é de reconhecer-se que desde o século 19, portanto muito antes do desfecho do 2º conflito mundial, registram-se eventos e documentos voltados à tutela dos indivíduos em variados contextos, a exemplo do Congresso de Viena, de 1815, condenando o tráfico de escravos provindos do continente africano. Ajunte-se, ainda a Declaração Internacional dos Direitos do Homem, adotada pelo Instituto de Direito Internacional em sua reunião realizada em Nova Iorque no ano de 1929, tomando por base o projeto apresentado por LA PRADELLE, com as alterações sugeridas por MANDELSTAM, a qual, embora de índole doutrinária, exerceu assinalada influência nos textos oficiais que se seguiram. Registre-se, por igual, a 2

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É oportuna, neste passo, a conceituação cunhada pelo douto CELSO ALBUQUERQUE MELLO, que leciona em importante obra especializada: “Direito Humanitário é expressão utilizada para designar as normas consagradas nas convenções e protocolos de Genebra (1864, 1906, 1929, 1949 e 1977), concluídos sob os auspícios do Comitê Internacional da Cruz Vermelha. O direito humanitário não admite a aplicação de represálias a pessoas e bens protegidos. Ele visa a proteger: a) os feridos, doentes e náufragos; b) os prisioneiros de guerra; c) a população civil. O direito humanitário deve ser aplicado por uma parte mesmo que a outra o viole. É o contrário da cláusula ‘si omenes’, em que a convenção só é aplicada se todos os Estados a ratificarem ou ainda se os participantes do conflito são todos partes na convenção” (MELLO, CELSO ALBUQUERQUE, Guerra Interna e Direito Internacional, Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 1985, pág. 104). SWINARSKI, CHRISTOPHE, Direito Internacional Humanitário, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1990, p. 20. Consulte-se, a propósito, o trabalho de BOSKI JAKOVLJEVIC, Human Rights accorded by International Humanitarian Law, publicado no Bulletin of Human Rights 91/1, editado pela Organização das Nações Unidas, New York, 1992, p. 26.

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Conferência Panamericana de Lima, de 1938, que solenemente ressaltou a necessidade da “Defesa dos Direitos do Homem”. Em 1941, o Presidente FRANKLIN ROOSEVELT, em festejada mensagem ao Congresso norte-americano, refere-se às quatro liberdades fundamentais (de expressão, de religião, de estar livre do medo e livre das necessidades materiais), que acabaram consubstanciadas no mesmo ano na Carta do Atlântico, concluída entre os Estados Unidos e a Inglaterra. Já em 1945, na Conferência de Chapultepec, ficou decidida a elaboração de uma Declaração dos Direitos do Homem, afinal preparada pelo Comitê Jurídico Interamericano e aprovada na Conferência de Bogotá.5 Em seguida, a Assembléia Geral da ONU adotou, em 10 de dezembro de 1948, na cidade de Paris, A Declaração Universal dos Direitos do Homem, a qual, no dizer do Ministro FRANCISCO REZEK, e qualquer que seja o valor de obrigatoriedade de seus preceitos, há de ser considerado como um momento crucial no processo de penetração da proteção dos direitos humanos na esfera internacional.6 Nada obstante, foi no âmbito do Conselho da Europa, com a assinatura da Convenção sobre a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, no ano de 1950, instituindo a Comissão Européia dos Direitos do Homem e a Corte Européia de Direitos do Homem que os direitos humanos e a sua proteção mereceram notável desenvolvimento. A retrospectiva da sucessão dos instrumentos internacionais voltados à proteção dos direitos do homem aponta-nos a diversidade de compreensão da matéria e assinala os vários momentos de sua positivação pelo direito das gentes. As primeiras duas décadas que se seguiram após a adoção das Declarações Universal e Americana dos Direitos do Homem, em 1948, retratam a visão atomizada dos dois grandes conjuntos de direitos e garantias, própria do ambiente de confronto ideológico do período da guerra fria, ensejando a dicotomia sistêmica entre os direitos civis e políticos, de um lado, e os direitos econômicos, sociais e culturais, de outro.7 Essa fase marca, contudo, o amadurecimento da postura internacionalista e o esforço de superação, ainda que mitigada, dos princípios da soberania e da auto-determinação dos povos, enraizados quando da consolidação dos Estados nacionais e naturalmente refratários a ingerências da ordem internacional nos assuntos de política interna e de economia doméstica das nações. De fato, é hoje incontroverso que a visão do estatismo conservador, que privilegiava o primado do direito interno, acabou rendendo-se ao fenômeno da universalização do sistema de proteção dos direitos humanos, como sublinha ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE: “O desenvolvimento histórico da proteção internacional dos direitos humanos gradualmente su5 6 7

MELLO, CELSO D. DE ALBUQUERQUE, no artigo Os direitos do homem na ordem jurídica internacional, publicado na Revista de Ciência Política, Ed. FGV, Rio de Janeiro, vol II, no. 3, julho/setembro de 1968. REZEK, JOSÉ FRANCISCO , em A Constituição Brasileira e as normas de Direito Internacional Humanitário, constante da obra Direito Internacional Humanitário, edição do IPRI, Brasília, 1988, p.94. Veja-se, nessa linha de exposição, a monografia de JOSÉ MARIA GÓMES, Racionalidade e Irracionalidade da crise: os direitos humanos ou a outra política, Instituto de Relações Internacionais - IRI, PUC-RJ, pág. 7.

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perou barreiras do passado: compreendeu-se, pouco a pouco, que a proteção dos direitos básicos da pessoa humana não se esgota, como não poderia esgotar-se, na atuação do Estado, na pretensa e indemonstrável ‘competência nacional exclusiva’. Esta última (equiparável ao chamado ‘domínio reservado do Estado) afigura-se como um reflexo, manifestação ou particularização da própria noção de soberania, inteiramente inadequada ao plano das relações internacionais, porquanto originalmente concebida, tendo em mente o Estado ‘in abstracto’ (e não em suas relações com outros Estados), e como expressão de um poder interno, de uma supremacia própria de um ordenamento de subordinação, claramente distinto do ordenamento internacional, de coordenação e cooperação, em que todos os Estados são, ademais de independentes, juridicamente iguais. Nos dias de hoje, não há como sustentar que a proteção dos direitos humanos recairia sob o chamado ‘domínio reservado do Estado’, como pretendiam certos círculos há cerca de três ou quatro décadas atrás”.8 Percorrido, assim, o atribulado caminho de Paris a Teerã, inicia-se a era da globalização dos direitos humanos, com o reconhecimento da complementariedade dos múltiplos instrumentos de proteção, tanto a nível global quanto regional. A adoção pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em l6 de dezembro de 1966, do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que entrou em vigor apenas em 3 de janeiro de 1976, por força das exigências de ratificação constantes do art. 27, deixa translúcida a idéia de que as várias espécies dos direitos humanos são complementares entre si, na perspectiva de que a ausência ou insuficiência de algumas no cenário social, cultural, político e econômico pode entrevar o exercício de outras. Daí enunciar o preâmbulo desse fecundo Pacto Internacional: “Reconhecendo que, de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o ideal do ser humano livre é ver-se protegido do medo e da miséria, o que não pode ser realizado senão em condições que permitam a cada um gozar os seus direitos econômicos, sociais e culturais, tanto como os seus direitos civis e políticos, em que estão investidos.” A partir desse premissa, o instrumento em questão avança no sentido de exigir dos Estados signatários o máximo de empenho com vistas a assegurar progressivamente o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto por todos os meios apropriados, compreendido em especial a adoção de medidas legislativas (art. 2º, item 1º). Em seguida, discrimina o conteúdo dos direitos econômicos, sociais e culturais considerados essenciais, notadamente o direito ao trabalho (art. 6º) e seus consectários, como salário mínimo suficiente, sem distinção de sexo, que permita existência para o trabalhador e sua família, segurança e higiene do trabalho, ascensão profissional e repouso remunerado (art. 7º). Ajunte-se, ainda, o direito de associação sindical e de greve (art. 8º), à segurança social (art. 9º), assistência social às famílias, às mães e às crianças e adolescentes, devendo ser legalmente proibido o trabalho assalariado da mão-de-obra infantil (art. 8

CANÇADO TRINDADE, ANTÔNIO AUGUSTO, A proteção internacional dos direitos humanos, Ed. Saraiva, 1991, págs. 3 e 4.

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10º), à alimentação digna e à equitativa repartição dos alimentos mundiais (art. 11), à saúde física e mental, à educação (art. 13), dentre outros mais nominados. A semente lançada com a visão globalizante dos direitos humanos, sob a premissa da complementariedade entre os seus diversos campos de aplicação, se frutificaria mediante numerosos tratados e instrumentos de proteção, alguns de caráter tutelar geral (como os dois Pactos de Direitos Humanos - o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, do ano de 1966 - e as três Convenções regionais - a Européia, de 1950, a Americana, de 1969, e a Africana, de 1981), outros dedicados a proteções específicas (como a Convenção sobre Abolição do Trabalho Forçado, de 1957, a Convenção sobre Discriminação em Emprego e Profissão, de 1958, a Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino, de 1960, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965, a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e Crimes de Lesa-Humanidade, de 1968, a Convenção Internacional sobre a Eliminação e a Punição do Crime do Apartheid, de 1973, e a Convenção Contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes, de 1984), ou ainda relacionados a condições humanas concretas e de reconhecimento internacional (como a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951, a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas e a Convenção sobre Asilo Diplomático, ambas de 1954, além da Convenção para a Redução dos Casos de Apátrida, de 1961), bem como referentes a determinados grupos sujeitos a proteção especial (como é o caso da Declaração de Direitos do Deficiente Mental, de 1971, da Declaração de Direitos dos Incapacitados, de 1975, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, e da Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989). A partir da Declaração de Teerã, aprovada na Assembléia Geral de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, em 13 de maio de 1968, reunida com o objetivo de examinar os progressos conseguidos nos vinte anos transcorridos desde a aprovação da Declaração Universal de Direitos Humanos e preparar um programa para o futuro, formalizou-se mais um avanço teórico de importante repercussão para o desenvolvimento da proteção internacional dos direitos fundamentais do homem9. Trata-se da adoção solene do princípio da indivisibilidade dos direitos humanos, segundo o qual o diagnóstico e a terapia das violações das múltiplas espécies dos direitos humanos deve forçosamente considerar a íntima e indissociável inter-relação entre essas especificidades, que compõem um quadro estrutural unitário e que não comportam soluções isoladas e parciais. As afirmações solenes constantes dos itens 12 e 13 desse histórico documento revelam a 9

É inconcebível os números que acentuam a desnutrição infantil no mundo. Em Relatório da Unicef, foi confirmado a morte de 6 milhões de crianças, vítimas do abandono social e do Estado. São dados alarmantes que evidenciam a necessidade urgente da tutela dos direitos do homem e da necessária aplicabilidade dos direitos da terceira geração – Direito ao Desenvolvimento (Jornal do Brasil, de 17/12/97).

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justa compreensão do postulado da indivisibilidade, assim expressados: 12 - “a crescente disparidade entre os países economicamente desenvolvidos e os países em desenvolvimento impede a realização dos direitos humanos na comunidade internacional. Levando em consideração que o decênio para o desenvolvimento não alcançou seus modestos objetivos, torna-se ainda mais necessário que cada país, em particular os países desenvolvidos, procure por todos os meios eliminar essa disparidade”; 13 - “como os direitos humanos e as liberdades fundamentais são ‘indivisíveis’, a realização dos direitos civis e políticos sem o gozo dos direitos econômicos sociais e culturais torna-se impossível. A obtenção de um progresso duradouro na aplicação dos direitos humanos depende de boas e eficazes políticas nacionais e internacionais de desenvolvimento econômico e social”. Muito contribuiu para a formulação dessa compreensão unitária dos direitos humanos a atuação dos países emergidos do penoso processo de colonização, que trouxeram para a pauta das discussões a problemática comum da miséria, das doenças endêmicas, das condições desumanas de vida, do apartheid e da discriminação racial.10 Estava, desse modo, definitivamente superada a visão compartimentarizada dos direitos do homem, refletora da velha dicotomia que apartava os direitos civis e políticos dos direitos econômicos, sociais e culturais, pelas conhecidas razões de antagonismo ideológico oriundas da divisão bipolar de forças que vigorou em seguida ao 2º pós-guerra. Todavia, a experiência já acumulada nessa área revelou a necessidade de uma coordenação na implementação dos vários instrumentos de proteção, a fim de aprimorá-los e torná-los mais eficazes. Foi com esse objetivo que a Assembléia Geral das Nações Unidas deliberou convocar a II Conferência Mundial dos Direitos Humanos, realizada em Viena, no mês de junho de 1993, vinte e cinco anos após a Conferência de Teerã, que contou com a participação de 180 países e 4.500 delegados. A Conferência de Viena, realizada no período de 14 a 25 de junho de 1993, segundo amplamente noticiado pela imprensa de todo mundo,11 longe de alcançar uma unanimidade de pensamento em torno das questões estruturais dos direitos humanos, exibiu uma acirrada divisão entre o bloco de nações desenvolvidas do hemisfério, lideradas pelos Estados Unidos e os Estados da Europa Ocidental, e o grande contingente de países do terceiro 10

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A esse respeito, consulte-se outro texto de ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE, A Proteção Internacional dos Direitos Humanos no Limiar do Novo Século e as Perspectivas Brasileiras, constante do volume Temas de Política Externa Brasileira II, IPRI, Ed. Paz e Terra, São Paulo, 1994, p. 168. Dentre os editoriais e artigos publicados na imprensa brasileira, destacamos o de RICHARD H. MELTON, “Direitos Humanos - uma brado por ação, publicado na Folha de São Paulo, Seção Tendência/Debates, edição de 15.6.93, pág. 15; de WILLIAM WAACK, na Seção Internacional do Jornal “O Estado de São Paulo”, edição de 20.6.93, pág. 19; de PAULO SÉRGIO PINHEIRO, sob o título Viena Valeu, na Folha de São Paulo, Seção Tendência/Debate, edição de 26.6.93, p. 14. Veja-se, ainda, a reportagem Direitos Humanos e Soberania, Seção Notas e Informações do Jornal ‘”O Estado de São Paulo”, edição de 17.6.93, p.3; e de GILBERTO DIMENSTEIN, Reunião de Viena aprova texto aguado, na Seção Mundo da Folha de São Paulo, edição de 26.6.1993, p. 13. Ajunte-se, por fim, o artigo de JOSÉ H. FISHEL DE ANDRADE, A Conferência Mundial de Direitos Humanos e seus reflexos para o Brasil, na Revista Pensando o Brasil, vol. 4, setembro-1993, p. 17; e de GILBERTO VERNE SABOIA, Direitos Humanos: Evolução Institucional Brasileira e Política Externa - Perspectivas e Desafios, na obra Temas de Política Externa Brasileira II, organizada pela IPRI, Ed. Paz e Terra, São Paulo, 1994, p.189.

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mundo, cuja principal referência foi a China.12 O grupo primeiro mundista propugnou, com êxito, por inserir no texto da Declaração de Viena o princípio das particularidades regionais, assim como o dos antecedentes históricos, culturais e religiosos, com o óbvio propósito de mitigar, para efeito das políticas econômicas multilaterais, a aplicação do princípio da universalidade dos direitos humanos, consagrado desde a Declaração Universal de 1948. Nesse sentido, estabelece o Parágrafo 3º do Documento Final da Conferência Mundial dos Direitos Humanos reunida em Viena, em sua versão em espanhol: “Todos os derechos humanos son universales, indivisibles e interdependientes y están relacionados entre sí. La comunidad internacional debe tratar los derechos humanos en forma global y de manera justa y equitativa, en pie de igualdad y dándoles a todos el mismo peso. Debe tenerse en cuenta la importancia de las particularidades nacionales y regionales, así como de los diversos patrimonios históricos, culturales y religiosos, pero los Estados tienen el deber, sean cuales fueren sus sistemas políticos, económicos y culturales, de promover y proteger todos los derechos humanos y las libertades fundamentales”. De fato, não há duvidar que as ordens constitucional e internacional se devam conjugar, em bases de harmonia e complementaridade, quando se tratar da tutela dos direitos fundamentais do homem. Tanto assim é que, no âmbito interno, a Constituição brasileira de 1988, na esteira de nossas melhores tradições, não diferencia, para esse efeito, entre nacionais e estrangeiros,13 inaugurando o artigo 5º relativo aos direitos e deveres individuais e coletivos com a afirmação de que - “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”.14 Tudo porque a globalização do humanismo superou a visão 12

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Relembre-se, aqui, na trilha memorialista de PERCY CORBETT, que as grandes nações vencedoras da guerra e fundadoras da ONU, como Inglaterra, Estados Unidos e a antiga União Soviética, desde as primeiras discussões sobre a matéria manifestaram-se contrariamente à institucionalização de mecanismos efetivos de proteção dos direitos humanos, temendo a possibilidade de ingerências externas na consecução de suas políticas de interesses econômicos, a esse tempo ainda fortemente impregnadas dos vícios e deformações colonialistas. Preferiu-se, por esse motivo, não avançar além do plano das declarações abstratas e solenes. Também, por isso, dada a sua repercussão na esfera de interesses das superpotências, os Pactos Internacionais de Direitos Humanos, notadamente o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto de Direitos Civis e Políticos, que se traduzem em tratados multilaterais geradores de obrigações para os Estados signatários, somente se concluíram em 1966, portanto 18 anos após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948 (Cf. CORBETT, PERCY E., Law and Diplomacy, Ed. Peter Smith, Gloucester, 1967, págs. 258 e segs). É oportuno registrar que a questão da nacionalidade é tratada no artigo 12 da Constituição Federal, com a nova redação ditada pela Emenda Constitucional de Revisão no. 3, promulgada em 7 de junho de 1994. A rigor, com exceção da Constituição Imperial de 1824, cujo art. 179 restringia a garantia da - inviolabilidade dos Direitos Civis e Políticos aos Cidadãos Brasileiros, todas as demais que se seguiram, como sejam as de 1891 (art. 72), 1934 (art. 113), 1937 (art. 122), 1946 (art. 141), 1967 (art. 150), Emenda no. 1/69 (art. 153) e 1988 (art. 5º), asseguraram, em regime de paridade, aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos e garantias fundamentais. Em verdade, as distinções vigorantes na atual Constituição da República entre brasileiros e estrangeiros, como ainda entre brasileiros natos e naturalizados, são de pequena monta, a exemplo das vedações específicas quanto à extradição de brasileiros (art. 5º, Inciso LI), dos casos de restrição da acessibilidade a cargos públicos (arts. 12, § 2º; 37, I, 87, 89, 102, 104 e 111), das limitações à elegibilidade para investidura em mandatos eletivos (art. 14, § 3º), da exigência de nacionalidade brasileira para os armadores, os proprietários, os comandantes e dois terços, pelo menos, dos tripulantes de embarcações nacionais (art. 178, parágrafo 2º), das condições para

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isolada e nacionalizada do destino e das vicissitudes humanas, a ponto de alcançar não apenas as relações entre os Estados e entre Estado-indivíduo, mas também as relações privadas tradicionalmente regidas pelo Direito Internacional Privado (DIP), que hoje já experimentam o influxo da publicização e da ideologia dos direitos humanos.15 A idéia da pluralidade externa de ordens jurídicas, a sua vez calcada na premissa da pluralidade de Estados, não pode mais ser vista como impeditiva da harmonização em escala planetária entre os vários sistemas normativos de proteção aos direitos do homem.16 Prevalece hoje uma verdadeira cidadania internacional, cujas prerrogativas e mecanismos de tutela já não encontram limites na geografia das nações.17 A isso se agrega a insurgência, cada vez

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atendimento de requisição de documento ou informação de natureza comercial, feita por autoridade administrativa ou judiciária estrangeira (art.181), das limitações para aquisição ou arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira (art. 190), das restrições relativas à propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens (art. 222 e § 1º). É oportuno registrar que, ainda recentemente, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional no. 6, de 15 de agosto de 1995, alterando o disposto no inciso IX do art. 170 da Constituição Federal, para o efeito de suprimir a regra do “tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte”, e adotar, em seu lugar, o princípio do “tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País”. Além disso foi promulgada a Emenda Constitucional no. 11, de 30 de abril de 1996, acrescentando parágrafos ao art. 207 da Constituição da República, no sentido de permitir a admissão de professores, técnicos e cientistas estrangeiros pelas universidades brasileiras e institutos de pesquisa científica e tecnológica. Merece destaque, a propósito da desprivatização e da publicização das categorias e instrumentos respeitantes aos conflitos de lei (conflicts of laws) peculiares ao Direito Internacional Privado o importante livro do Professor da Universidade de Coimbra, RUI MANUEL GENS DE MOURA RAMOS, onde vislumbra-se a qualificada argumentação do autor com base nas elaborações doutrinárias de BRAINER CURIE, acerca da governmental interest analysis, e de PETER MAX GUTZWILER e de JOERGES, a propósito da teoria alemã da escola política (politishe schule): “O final da guerra e o retomar de um universalismo que marcou a Europa do início dos anos 50 vieram permitir a acentuação da dimensão internacionalista do DIP e a tomada de consciência de uma vocação que o seu objeto tinha por força de situar no quadro de uma certa superação de perspectivas unicamente nacionais... Hoje se assiste à afirmação frontal de que o DIP serve também, ainda que à sua maneira, os mesmíssimos objectivos a que se dirigem os outros setores do jurídico e que a imagem tradicional da nossa disciplina, com a sua indiferença, a sua neutralidade, o seu apoliticismo está viciada desde a base... Ponto comum a todas as contribuições é a acentuação de uma identificação dos fins do DIP às metas da sociedade e do Estado, retirando-o do universo metapolítico em que se situava e responsabilizando-o pelas tarefas de construção e transformação que são as do Estado e do Direito... Perante o exposto parece estarmos bastante longe do direito de aplicação de direito, valorativamente neutro e fundado nos interesses das partes, que era o DIP de SAVIGNY. O longo caminho percorrido no sentido da publicização do DIP leva-nos a pensar se não se inverteu de vez o complexo de inferioridade dos publicistas em face do direito civil, de que fala ROGÉRIO SOARES (RAMOS, RUI MANUEL GENS DE MOURA - Direito Internacional Privado e Constituição - Introdução a uma análise de suas relações, Ed. Coimbra, 1991, págs. 107 e 131-132). Sugere-se, neste passo, pela excelência didática, a leitura da análise de FRANCESCO CARNELUTTI a respeito da pluralidade externa das ordens jurídicas, na obra Teoria Geral do Direito, Ed. Livraria Acadêmica & Saraiva, São Paulo, 1942, págs. 122 e segs. A idéia da cidadania internacional foi exposta em artigo de MICHEL FOUCAULT, onde lê-se: “Existe uma cidadania internacional que tem seus direitos, seus deveres e que se empenha em erguer-se contra todos os abusos do poder, qualquer que seja o autor, quaisquer que sejam as vítimas. Afinal de contas somos todos governados e, a este título, solidários. Porque pretendem se ocupar da felicidade da sociedade, os governos se arrogam o direito de computar entre os lucros e as perdas a infelicidade dos homens que suas decisões provocam e que suas negligências permitem. É um dever desta cidadania internacional insistentemente levar aos olhos e ouvidos dos governos as infelicidades dos homens pelas quais não é verdade que os governos não sejam responsáveis. A infelicidade dos homens não deve jamais ser um resquício mudo da política. Ela fundamenta um direito absoluto de se erguer e se dirigir àqueles que detém o poder” (Cf. FOUCAULT, MICHEL, Diante dos Governos, os Direitos do Homem, publicado originalmente no Jornal Liberation, logo após a morte do autor, em 1º de julho de 1984, reproduzido na Revista Direito, Estado e

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mais fulgurante, das organizações internacionais, tanto aquelas sujeitas ao Direito Internacional por resultarem de deliberações de Estados soberanos em tratados multilaterais, quanto aquelas não governamentais (ONGs), que expressam o proliferante movimento associacionista nas mais diversas áreas de interesses e questões humanitárias (meio ambiente, crianças e adolescentes, portadores de deficiência, direitos humanos em geral etc.).18 Essas entidades, que hoje já se contam aos milhares e que de certo modo eclipsaram a atuação dos Estados nas relações internacionais,19 são hoje responsáveis por grande parte da agitação humanitarista no cenário mundial.20 O homem, enquanto espécie, é hoje um ser planetário, sujeito de direitos e garantias que se universalizaram mercê da natural e paulatina confluência dos sistemas de proteção interno e externo dos direitos humanos.21 Por sinal, a auspiciosa interação entre o direito interno e o direito das gentes de longa data, até mesmo anteriormente à Declaração Universal dos Direitos do Homem

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Sociedade, do Departamento de Ciências Jurídicas, da PUC-RJ, vol. 2, janeiro-julho 1993, pág. 77). Não se pode esquecer, ainda, as instituições nacionais para a promoção e proteção dos direitos humanos, constituídas pelo ordenamento jurídico das nações como instrumentos internos de tutela dos direitos humanos, a exemplo dos Conselhos de Direitos da Pessoa Humana e de órgãos com atribuições fiscalizatórias peculiares às do Ombudsmen na área dos direitos fundamentais do homem, que se generalizaram na maioria dos países. Sobre o assunto, veja-se o documento da Organização das Nações Unidas sob o título National Institutions for the Promotion and Protection of Human Rights, constante da Coleção oficial Human Rights, vol. 19, ano de 1993. Nessa ótica, observa com oportunidade CELSO ALBUQUERQUE MELLO a respeito apenas das organizações instituídas por tratado entre Estados ou subsidiárias de organismos internacionais inter-governamentais: “O Estado continua o seu processo de erosão devido a duas forças que o vão minando gradativamente: as organizações internacionais e as empresas multinacionais. As organizações internacionais surgem em 1919 e proliferam a partir de 1945. Atualmente, são cerca de 150 organizações internacionais inter-governamentais. O nosso século se caracteriza pelo associacionismo internacional. Os Estados só podem utilizar determinados bens com uma administração no plano internacional. Toda a vida hoje é independente. Os fatores econômicos conduzem inelutavelmente a uma integração, que por enquanto é sub-regional, ou regional, mas que tende a se universalizar. Os Estados cedem às organizações internacionais competências que eles zelosamente defendiam como pertencentes a sua soberania. As organizações com personalidade própria tendem a crescer gradativamente ampliando sua área de atuação. A soberania é hoje muito mais uma noção emocional do que uma realidade política” (MELLO, CELSO ALBUQUERQUE, na monografia A Sociedade Internacional: Nacionalismo versus Internacionalismo e a Questão dos Direitos Humanos, publicada na Revista Direito, Estado e Sociedade, do Departamento de Ciências Jurídicas da PUC-RJ, vol. 2, janeiro-julho 1993, p. 34). Dá eloqüente exemplo do vigor institucional das organizações não governamentais (ONGs) no campo dos direitos humanos o seguinte excerto da “Declaración de las Organizaciones No-Gubernamentales de América Latina y El Caribe, aprovada e assinada por representantes de mais de cem organizações na reunião de Quito, no Equador, em 30 de maio de 1993, e apresentada na Conferência Mundial dos Direitos Humanos realizada pela ONU no mesmo ano em Viena: “Las Organizaciones No Gubernamentales de América Latina y el Caribe ponemos a consideración de la Conferencia Mundial de Derechos Humanos (Viena-93) la seguiente Declaración, que es el producto de un consenso regional en el cual participaron organismos de derechos humanos y movimientos sociales de 21 países de la región...La preocupación y la influencia cresciente del tema de los derechos humanos, se expresó en este período en la creación, el desarrollo y la acción de un número cada vez mayor de ONGs, que cumplen un rol decisivo por su labor de defensa y promoción de esos derechos en sus respectivos países, a nivel regional y mundial, y por el valioso aporte de información que realizan, sin el cual la operatividad del sistema internacional sería casi inocua... Las ONGs de Latinoamérica y el Caribe reafirman su compromiso en continuar luchando por el respeto de los derechos humanos. En esta lucha son actores insustituibles los movimientos sociales y populares” (texto oficial editado pela Conferência Mundial dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, Viena, 1993, págs. 1 e 2). A concepção planetarista do homem da atualidade, que a literatura francesa designa de “l’approche planétariste”, tem sido estudada em algumas obras específicas, dentre as quais merecem destaque a de WILFRID DESAN, L’homme planétaire, Editora de Minuit, 1968; e de A. C. KISS, La nation et le patrimoine commun de l’humanité, constante do Recueil des cours de l’Académie du Droit International, ano 1982.

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de 1948 e da Constituição brasileira de 1946, já fora sustentada pelo memorável LEVI CARNEIRO, ao preconizar que as reclamações internacionais em defesa dos direitos humanos, ao contrário de afrontarem o direito constitucional, correspondiam antes às “tendências atuais de sua evolução”, de que resultava “inelutavelmente, antes de tudo, um novo dever do Estado”.22 A opinião abalizada de alguns dos mais respeitáveis pensadores do direito contemporâneo, a exemplo de MAURO CAPPELLETTI,23 HECTOR FIX ZAMUDIO24, VASAK25, HANS KELSEN26 e CHARLES ROUSSEAU,27 reconhece, por igual, o presente descrédito das tradições seculares do estatismo, que erguiam o dogma da soberania como barreira à uma concepção internacional de justiça, em sua acepção mais ampla, ou seja, com abrangência tanto do núcleo substantivo dos direitos tuteláveis quanto dos procedimentos administrativos e jurisdicionais adotáveis para a sua proteção. Não podendo os dramas individuais e coletivos serem confinados aos estreitos e não raro falaciosos limites da jurisdição nacional, já se cogita hoje, como solução institucional para superação definitiva do dogma da soberania, da idéia de um federalismo internacional em matéria de direitos humanos, conforme apregoado por entidades de reconhecido prestígio. Vislumbra-se nessa instância federativa supranacional, em razão do poder de orientação e supervisão sobre as políticas dos Estados Federados constituídos pela individualidade das nações, um mecanismo de melhor salvaguarda e promoção dos direitos fundamentais do homem, liberto das raias de interesses específicos que informam o princípio das nacionalidades.28 Quaisquer que sejam as alternativas institucionais nesse campo, o que importa é que a concepção internacional de justiça a que nos referimos, no legítimo afã de proteger os valores essenciais da vida humana, desconsidera as fronteiras formais da jurisdição nacional e prospera em direção ao homem atingido em seus direitos fundamentais29, aonde quer que se encontre, isto em indispensável reverência 22 23 24 25 26 27 28

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CARNEIRO, LEVI, O Direito Internacional e a Democracia, Ed. A. Coelho Branco, Rio de Janeiro, 1945, págs. 121 e 126. CAPPELLETTI, MAURO, La Justicia Constitucional (Estudios de Derecho Comparado), México, Ed. Facultad de Derecho/UNAM, 1987, págs. 240-245. ZAMUDIO, HECTOR FIX, La Protección Jurídica y Procesal de los Derechos Humanos ante las Jurisdicciones Nacionales, México/Madrid, Ed. UNAM/Civitas, 1982, págs. 56-57. VASAK, K., Les dimensions internationales des droits de l’homme, Paris, edição da UNESCO, 1978. KELSEN, HANS, Principles of International Law, Ed. Rinehart and Company Inc., Nova York, 1959. ROUSSEAU, CHARLES, Droit International Public, Ed. Sirey, Paris, tomo I, 1970. Veja-se, nesse sentido, o Manifesto AD/89, da Association pour la Déclaration de 26 août 1989, criada em França no ano de 1985, onde lê-se: “L’appel au fédéralisme comme moyen de preotection de Droits de l’homme est en réalité parfaitement justifiable... Un tel mode d’organisation politique est particulièrement intéressant lorsqu’il s’agit des Droits de l’homme et de leur application. D’une part, le fédéralisme est un moyen de porter atteinte aux structures opprimantes de l’État. A ce titre, il ne peut que favoriser l’homme et ses droits. D’autre part, puisqu’il est difficile de renier même partielement le principe de la souveraineté nationale, la structure fédérative est l’unique moyen de prendre en compte planétairement la question des droits de l’homme” (Cf. o volume intitulado Manifeste pour une Nouvelle Déclaration - Le réveil des droits de l’homme - AD/89, Editora La Découverte, Paris, 1989, p. 70) Enfatizando, com a sua excelência no assunto, ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE, em sua obra Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos – vol. 1, 1997, Porto Alegre, Ed. Sérgio Antônio Fabris, pelo que se ressalta nesta passagem (pág.53) : “Alcançamos hoje, no presente contexto, um estágio de evolução em que

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aos princípios maiores e supra-nacionais da indivisibilidade dos direitos humanos e da complementaridade de seus instrumentos protetores.30 É de assinalar, todavia, que a vigente Constituição brasileira, seguindo nossa tradição constituinte na matéria, e apartando-se do que preceituam alguns outros estatutos supremos mais antigos e de notório prestígio, não versa, direta e abrangentemente, a questão das relações entre o Direito Internacional e o Direito Interno. Ante a lacuna normativa supralegal, essa inevitável confrontação tem sido há tempos dirimida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e, já agora, com os suprimentos do Superior Tribunal de Justiça, no exercício das competências recursais estatuídas nos artigos 102, III, “b”, e 105, III, “a”, de nossa Lei Maior.31 Como anota CELSO ALBUQUERQUE MELLO em importante e recentíssimo livro, o acervo pretoriano sempre inclinou-se pela primazia do Direito Internacional nas hipóteses de contrariedade entre tratado devidamente celebrado e ratificado pelo governo brasileiro e norma integrante de nosso direito interno, muito embora, e com surpreendente desorientação teórica, tenhamos experimentado um retrocesso jurisprudencial na matéria em fins da década de 70: “No Brasil existem diversos acórdãos consagrando o primado do Direito Internacional, como é o caso da União Federal v. Cia. Rádio Internacional do Brasil (1951), em que o Supremo Tribunal Federal decidiu unanimemente que tratado revoga as lei anteriores (Apelação Cível no. 9.587). Tem sido citado também um acórdão do STF, em 1914, no Pedido de Extradição no. 7, de 1913, em que se declarava estar em vigor e aplicável um tratado, apesar de haver uma lei posterior contrária a ele. O acórdão na Apelação Cível no. 7.872, de 1943, com base no voto de Filadélfio de Azevedo, também afirma que a lei não revoga o tratado. Ainda neste sentido está a Lei

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testemunhamos, no plano substantivo, a busca alentadora de um núcleo comum de direitos fundamentais inderrogáveis, como conquista definitiva da civilização, ao passo que, concomitantemente, no plano processual, continua a prevalecer a ausência de “hierarquia” entre os distintos mecanismos de proteção. Tais mecanismos têm, no entanto, na prática, se reforçado, um ao outro, mutuamente, revelando ou compartilhando uma natureza essencialmente complementar (o que é evidenciado, e.g., pela incidência neste domínio do teste da primazia da norma mais favorável às supostas vítimas). O processo histórico da generalização e expansão da proteção internacional dos direitos humanos tem sido marcado pelo fenômeno da multiplicação dos instrumentos de proteção, os quais se têm feito acompanhar pela identidade básica de propósito e a unidade conceitual (indivisibilidade) dos direitos humanos. Tal fenômeno tem, desse modo, acarretado a extensão ou ampliação da proteção devida, e não o plano ou nível em que é exercida; no presente domínio, como já indicado, tem-se feito uso do direito internacional para aprimorar e fortalecer o grau de proteção dos direitos consagrados.” Tem oportunidade reportarmo-nos, neste tópico, às importantes conclusões constantes do Relatório final do Seminário promovido pelo Centro de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, realizado em Genebra, na Suiça, nos meses de junho e julho de 1993, tendo por objeto “Las experiências de diferentes países en la aplicación de normas internacionales em materia de derechos humanos”, onde se discutiu, dentre os quatro temas da pauta do evento, a) “Los métodos para incorporar en la legislación nacional las normas internacionales sobre derechos humanos”; e b) “La fuerza obligatoria de las normas internacionales sobre derechos humanos ante los tribunales nacionales” (Cf. Publicação oficial das Nações Unidas, 1993, Anexo II, pág. 2). Nesse sentido, dispõe a Carta Política de 1988: Art. 102 - Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: ... III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: ... b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; Art. 105 - Compete ao Superior Tribunal de Justiça: ... III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência.

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no. 5.172, de 25.10.66, que estabelece: ‘Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna e serão observados pela que lhe sobrevenha’. A Convenção Panamericana de 1928 sobre tratados (Havana) estipula no art. 12: ‘Os tratados e as convenções continuarão a produzir os seus efeitos ainda quando se modifique a constituição interna dos contratantes’. É a consagranção do primado do Direito Internacional. Entretanto, houve no Brasil um verdadeiro retrocesso no Recurso Extraordinário no. 80.004, decidido em 1978, em que o STF decidiu que uma lei revoga tratado anterior. Esta decisão viola também a convenção de Viena sobre direito dos tratados (1969) que não admite o término de tratado por mudança de direito superveniente”.32 O acórdão a que alude o ilustre internacionalista brasileiro, adjetivado como um retrocesso em nossa tradição jurisprudencial, é o prolatado no Recurso Extraordinário no. 80.004 - SE, em 1º de junho de 1977, que reconheceu a superioridade jurídico-positiva da legislação interna, respeitante as condições de validade e executividade de notas promissórias, sobre a Convenção de Genebra que institui a chamada Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias.33 Para fixar na matriz supralegal a primazia normativa dos tratados e, desse modo, evitar o suprimento exclusivamente jurisprudencial nesse importante campo das relações jurídicas, não raro cambiante e contraditório, algumas Constituições de reconhecida proeminência estabelecem regras de prestigiamento das normas internacionais, com o que avançam no sentido da constitucionalização do Direito Internacional.34 A insurgência desse Direito Constitucional Internacional deu-se em plúrimas direções, com ênfase contemporânea para a questão dos direitos humanos, segundo bem anotado por HÉCTOR FIX-ZAMUDIO, ao dissertar sobre a primazia do direito internacional nas Constituições da Europa continental: “Ya en la primera posquerra, la Constitución Alemana llamada de Weimar, de 11 de agosto de 1919, estableció en su artículo 4º que: ‘las reglas del derecho internacional que sean generalmente reconocidas obligan como si formaran parte integrante del derecho alemán del Reich’. Esta situación progresó notablemente en la segunda posguerra, en tres direcciones: la primera en cuanto al reconocimiento de la primacía del derecho internacio32

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MELLO, CELSO ALBUQUERQUE, Direito Constitucional Internacional, Ed. Renovar, 1944, págs. 343-344. Vejam-se, ainda, no mesmo diapasão, as considerações aduzidas por JACOB DOLINGER, na obra coletiva sob sua coordenação, DOLINGER, JACOB, A Nova Constituição e o Direito Internacional - propostas e sugestões, Ed. Freitas Bastos, 1987, págs. 12 a 14. Eis a ementa do acórdão no Recurso Extraordinário no. 80.004-SE, de que foi Relator o Ministro CUNHA PEIXOTO: “Convenção de Genebra - Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias - Aval aposto à Nota Promissória não registrada no prazo legal - Impossibilidade de ser o avalista acionado, mesmo pelas vias ordinárias. Validade do Decreto-lei no. 427, de 22.1.1969. Embora a Convenção de Genebra que previu uma lei uniforme sobre letras de câmbio e notas promissórias tenha aplicabilidade no direito interno brasileiro, não se sobrepõe ela às leis do País, disso decorrendo a constitucionalidade e conseqüente validade do Decreto-lei no. 427/1969, que instituiu o registro obrigatório da Nota Promissória em Repartição Fazendária, sob pena de nulidade do título. Sendo o aval um instituto do direito cambiário, inexistente será ele se reconhecida a nulidade do título cambial a que foi aposto. Recurso extraordinário conhecido e provido” (Cf. RTJ 83/809). Sobre esse enfoque, recomenda-se a monografia de CELSO LAFER intitulada Ordem, Poder e Consenso: Caminhos da Constitucionalização do Direito Internacional, constante da obra As tendências atuais do Direito Público - Estudos em homenagem ao Professor Afonso Arinos de Mello Franco, Ed. Forense, 1976, págs. 91 e segs.

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nal general; en segundo término, por medio de la creación del llamado derecho comunitario, y finalmente respecto al derecho internacional de los derechos humanos. Este tecer sector es el relativo a los derechos humanos, que si bien es más reciente en cuanto a su reconocimiento como normas de mayor jerarquía, se ha extendido de manera considerable en los últimos años, inclusive por medio de disposiciones expresas de carácter constitucional, como ocurre con los artículos 16 de la Constitución Portuguesa de 1976-1982 y 10 de la Carta española de 1978, ya que ambos preceptos disponen que la interpretatión de las normas constitucionales internas relativas a los derechos humanos debe hacerse de acuerdo con la Declaración Universal de 1948 y con los tratados y acuerdos tradicionales sobre esta materia ratificados por los gobiernos respectivos”.35 Pode-se mesmo afirmar, com CANÇADO TRINDADE, que - “estas transformações recentes têm, a um tempo, gerado um novo constitucionalismo, assim como uma abertura à internacionalização da proteção dos direitos humanos”.36 Tem-se aí o fenômeno da constitucionalização das normas internacionais protetoras dos direitos fundamentais do homem, que tende a universalizar-se nas ordens jurídicas nacionais e que expressa talvez a mais importante característica da ciência jurídica neste final de século. A insurgência e afirmação desse Direito Constitucional Internacional, com realce no campo da tutela dos direitos humanos, impõe naturalmente um enfoque interdisciplinar, já que o eixo teórico dessa linha de investigação finca raízes na fronteira curricular entre o Direito Constitucional e o Direito Internacional, o que faz com que com os constitucionalistas se tornam cada vez mais internacionalistas, e vice-versa. Trata-se, enfim, de uma promissora aliança - aliança não apenas teórica, mas também pragmática e com visíveis resultados na tutela dos direitos universais dos seres humanos - entre os dois ramos jurídicos que secularmente disputaram o primado da superioridade juspositiva e que assinala o exaurimento das visões bipartidas e estanques acerca da ordem interna e da ordem internacional, calcadas no mito da soberania estatal. A explicação de FLÁVIA PIOVESAN, em recente e importante livro dedicado ao tema, é assaz ilustrativa: “Esta interdisciplinariedade aponta para uma resultante: o chamado Direito Constitucional Internacional. Por Direito Constitucional Internacional subentende-se aquele ramo do direito no qual se verifica a fusão e a interação entre o Direito Constitucional e o Direito Internacional. Esta interação assume um caráter especial quando estes dois campos do Direito buscam resguardar um mesmo valor - o valor da primazia da pessoa humana - concorrendo na mesma direção e sentido. Ao tratar da dinâmica da relação entre a Constituição Brasileira e o sistema internacional de proteção dos direitos humanos objetiva-se não apenas estudar os dispositivos do Direito Constitucional que buscam disciplinar o Direito 35

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ZAMUDIO, HÉCTOR FIX, no artigo La Evolución del Derecho Internacional de los Derechos Humanos en las Constituciones Latioamericanas, no Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, nºs. 84/86, dezembro de 1992-maio de 1993, págs. 38 e 39. CANÇADO TRINDADE, ANTÔNIO AUGUSTO, A interação entre o Direito Internacional e o Direito Interno na Proteção dos Direitos Humanos, no Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, nºs. 84/86, dezembro de 1992-maio de 1993, pág. 48.

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Internacional dos Direitos Humanos, mas também desvendar o modo pelo qual este último reforça os direitos constitucionalmente assegurados, fortalecendo os mecanismos nacionais de proteção dos direitos da pessoa humana”.37 Exemplificam essa tendência já hoje inexorável as Cartas Políticas dos Estados Unidos da América,38 da Itália,39 da Alemanha40, da França41, da Holanda42 e de Portugal.43 Destaca-se, nesse contexto, a singular disposição constante da vetusta Cons37 38

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PIOVESAN, FLÁVIA, Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, Ed. Max Limonad, 1996, págs. 45-46. O artigo VI, item 2, da Constituição aprovada na Convenção de Filadélfia em 1787 contempla a famosa cláusula de supremacia (supremacy clause), nos termos seguintes: “Esta Constituição e as Leis complementares e todos os Tratados já celebrados ou por celebrar constituirão a Lei suprema do País...” Impende registrar, todavia, que a questão da prevalência dos tratados é tormentosa na jurisprudência norte-americana, na medida em que a Suprema Corte reconhece a prerrogativa dos Poderes Políticos (Chefia do Poder Executivo e Congresso) para deixarem de aplicar norma de Direito Internacional, como explica o Professor LOUIS HENKIN: “O direito costumeiro internacional, assim como os tratados, é lei que o Executivo e os tribunais devem aplicar, mas a Constituição não proíbe o Presidente (ou o Congresso) de violar o direito internacional, e os tribunais darão efeito aos atos praticados dentro dos limites dos poderes constitucionais pelos Poderes políticos, sem atentar para o Direito Internacional (Cf. HENKIN, PUGH, SCHACHTER e SMITH, International Law - cases and materials, Ed. West Publishing Co., 1980, pág. 120). A Constituição italiana de 1947 dispõe, em linguagem concisa, no art. 10, que - o ordenamento jurídico italiano adequase às normas do direito internacional geralmente reconhecidas, acrescentando, quanto à condição jurídica do estrangeiro, que a mesma - é regulamentada pela lei em conformidade com as nomas e os acordos internacionais; em seguida, afirma que “o estrangeiro, ao qual seja impedido no seu país o efetivo exercício das liberdades democráticas garantidas pela Constituição Italiana, tem direito de asilo no território da República, segundo as condições estabelecidas pela lei”. A Lei Fundamental de Bonn, de 1949, estabelece solenemente, no art. 25, sob a ementa “Direito Internacional integrado no direito federal, que - “As normas gerais do Direito Internacional Público constituem parte integrante do direito federal. Sobrepõe-se às leis e constituem fonte direta para os habitantes do território federal”. A Constituição francesa de 1958 adota, no art. 55, a seguinte disposição : “Os tratados e acordos devidamente ratificados e aprovados terão, desde a data de sua publicação, autoridade superior a das leis, sob reserva, para cada acordo ou tratado, de sua aplicação pela outra parte”. Nada obstante, em caso de contrariedade entre a Constituição e tratado internacional reconhecida formalmente pelo Conseil Constitutionel, o constituinte francês tornou exigível, como condição de ratificação ou aprovação da norma internacional, a prévia revisão da Constituição no ponto em que se der a discrepância. É o que dispõe o art. 54: “Se o Conselho Constitucional, a quem for encaminhado o assunto pelo Presidente da República, pelo Primeiro-Ministro ou pelo Presidente de qualquer uma das duas Assembléias, tiver declarado que um compromisso internacional contém uma cláusua contrária à Constituição, a autorização de ratificá-lo ou aprová-lo só poderá ser dada depois da revisão da Constituição”. A Constituição do Reino dos Paises Baixos, com a redação resultante da modificação constitucional aprovada em 1972, autoriza, no art. 63, a possibilidade de dissonância entre tratado internacional e o estatuto supremo: “Quando lo exija el desarrollo del orden jurídico internacional, podrá un tratado apartarse de los preceptos de la Constitución. En tal caso la ratificación sólo podrá conferirse de forma expresa, y las Cámaras de los Estados Generales solamente podrán aprobar el correspondiente proyecto de ley por mayoria de los tercios de los votos emitidos” (Cf. A Coleção organizada por MARIANO DARANAS, Las Constituciones Europeas, Editorial Nacional, Madrid, 1979, vol. 1, pág. 1052). Prescreve a Constituição Portuguesa de 1976, na dicção introduzida pelas Leis Constitucionais nos. 1/82 e 1/89: Art. 8º (Direito Internacional): 1. As normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrande do direito português. 2. As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado português. 3. As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram diretamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos. Mencione-se, também, a norma do artigo 277 (2) da Carta Política de Portugal, integrante do Título I da Parte IV, referente à garantia e revisão da Constituição (fiscalização da constitucionalidade), com a seguinte e avançada redação: “A inconstitucionalidade orgânica ou formal de tratados internacionais regularmente ratificados não impede a aplicação das suas normas na ordem jurídica portuguesa, desde que tais normas sejam aplicadas na ordem jurídica da outra parte, salvo se a inconstitucionalidade resultar de violação de uma disposição fundamental”. Ressaltese que essa disposição tem ensejado agudas controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais, principalmente sobre

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tituição da Confederação Suíça de 1874, que admite a realização de referendo popular para a aprovação ou rejeição de determinados atos internacionais, dando mostras da participação da cidadania em área de decisão tradicionalmente circunscrita aos Poderes propriamente políticos do Estado (Legislativo e Executivo): “Os tratados internacionais de duração indeterminada ou por mais de quinze anos serão igualmente submetidos a aprovação ou rejeição do povo sempre que assim o pedirem 30.000 cidadãos ativos ou oito cantões”. Na América Latina, passada a dura experiência do autoritarismo militar que se abateu sobre muitas nações, verifica-se já uma sadia efervescência do chamado Direito Constitucional Internacional voltado à proteção dos direitos fundamentais do homem. As Constituições latino-americanas dessa nova era têm dispensado uma reverência especial aos tratados de direitos humanos e aos preceitos neles consagrados.44 Fizeram-no, muitas delas, mediante a expressa incorporação dos tratados de cunho humanitarista à normatividade nacional, não raro no idêntico nível de positivação jurídica supralegal deferido às normas constitucionais respeitantes aos direitos e garantias individuais e coletivos, e revestindo-os, até mesmo, com o predicativo das cláusulas pétreas. Com isso, esses preceitos oriundos da ordem internacional restaram constitucionalizados e, além disso, tornaram-se imodificáveis pelas vias ordinárias da reforma constitucional. Isto porque, comumente, as regras das Constituições contemporâneas alusivas aos direitos fundamentais se incluem na vedação ou imunidade em face do poder de reforma constitucional, a exemplo da disposição embutida no art. 60, § 4º, IV, da Constituição

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o alcance de seu raio normatizante, ou seja, sobre se a mesma aplica-se, ou não, indistintamente, às várias modalidades de tratados, como sejam os tratados-lei, os tratados-contratos, os tratados bilaterais e os tratados multilaterais. A exposição de ANTÔNIO ARAUJO elucida de certo modo a questão: “Em nossa opinião, uma das múltiplas perspectivas por que pode ser encarada a norma da CRP art. 277 (2), é a perspectiva dos efeitos do juízo de constitucionalidade. A norma em apreço limita o efeito natural de um juízo de inconstitucionalidade: a destruição do acto viciado. Por outro lado, o comando de preservação dos efeitos do acto viciado, decorrendo diretamente da Constituição (daí consubstanciar uma hetero-vinculação), não atribui ao aplicador do Direito a faculdade ou o poder discricionário de livremente poder aplicar ou desaplicar o tratado inconstitucional. Preenchidos os pressupostos de aplicação do art. 277 (2), o aplicador está vinculado a garantir os efeitos do tratado na ordem interna portuguesa. Daí a apertada malha de pressupostos desse preceito (e daí, sobretudo, a referência à não violação de uma disposição fundamental). Trata-se, no fundo, de alcançar o mesmo objetivo dos esforços de auto-limitação empreendidos, por exemplo, nos Estados Unidos e na Alemanha (v.g. ‘political-question doctrine, Völkerrechtfreundlichkeit, Annährungstheorie’ etc.)... Mas se essa hetero-vinculação preclude a possibilidade de o julgador recusar a aplicação de tratados na ordem interna com fundamento em inconstitucionalidade, não diminui a sua capacidade de trilhar os caminhos do ‘self-restraint’. Por outras palavras, a norma do art. 272 (2) da CRP não retira a possibilidade ao juiz português de, noutras ocasiões (v.g. casos de inconstitucionalidade material), adotar uma postura semelhante à dos seus congéneres alemão e americano” (Cf. ARAÚJO, ANTÔNIO, no artigo Relações entre o Direito Internacional e o Direito Interno - Limitações dos Efeitos do Juízo de Constitucionalidade - A norma do art. 277 (2) da CRP, constante da obra coletiva intitulada Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, sob a coordenação do Doutor JOSÉ MANUEL LM. CARDOSO, Presidente do Tribunal Constitucional de Portugal, Ed. Aequitas Editorial Notícias, Lisboa, 1993, p. 35. Vale consultar, ainda, o estudo de JORGE BACELAR GOUVEIA, O valor positivo do acto inconstitucional, Ed. AAFDL, Lisboa, 1992. Veja-se, nessa ótica, o artigo de ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE, A Interação entre o Direito Internacional e o Direito Interno na Proteção dos Direitos Humanos, constante do Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, nºs. 84/86, dezembro 1992/maio 1993, págs. 49 e 50.

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brasileira de 1988, ao preceituar que “não será objeto de deliberação. É sobremodo destacável, no âmbito latino-americano, o paradigma da Constituição da Argentina de 1853, com as reformas introduzidas em 1866, 1898, 1957 e, especialmente, em 1994, no qual se atribui por expresso hierarquia constitucional a alguns tratados internacionais sobre direitos humanos, nos termos seguintes: Art. 75 - Corresponde al Congresso: 22. Aprobar o desechar tratados concluidos con las demás naciones y con las organizaciones internacionales y los concordatos con la Santa Sede. Los tratados y concordatos tienen jerarquia superior a las leyes. La Declaración Americana de los Derechos y Deberes del Hombre; La Declaración Universal de Derechos Humanos; La Convención Americana sobre Derechos Humanos; el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales; el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Politicos y su Protocolo Facultativo; la Convención sobre la Prevención y la Sanción del Delito de Genocidio; la Convención Internacional sobre la Eliminación de todas las Formas de Discriminación Racial; la Convención sobre la Eliminación de todas las Formas de Discriminación contra la Mujer; la Convención contra la Tortura y otros Tratos e Penas Crueles, Inhumanos e Degradantes; la Convención sobre los Derechos del Niño; en las condiciones de su vigencia, tienen jerarquia constitucional, no derogan artículo alguno de la primera parte de esta Constitución y deben entenderse complementarios de los derechos y garantías por ella reconocidos. Sólo podrán ser denunciados, en su caso, por el Poder Ejecutivo nacional, previa aprobación de las dos terceras partes de la totalidad de los miembros de cada Cámara. Los demás tratados y convenciones sobre derechos humanos, luego de ser aprobados por el Congreso, requerirán del voto de las dos terceras partes de la totalidad de los miembros de cada Cámara para gozar de jerarquía constitucional. Essas disposições da Constituição argentina traduzem um notável empenho do legislador constituinte no sentido da constitucionalização das normas do Direito Internacional protetoras dos direitos fundamentais do homem. A par disso, e de um modo geral, as Constituições latino-americanas promulgadas nos anos 80 e 90 dedicam disposições reveladoras de uma nova postura diante da discussão clássica em torno da hierarquia normativa dos tratados internacionais, a ponto de estabelecerem, algumas delas, tratamento diferenciado e proeminente aos tratados de direitos humanos. Exemplifica essa tendência o art. 105 da Constituição do Perú, do ano de 1979, dispondo que - “Os preceitos constantes dos tratados relativos a direitos humanos possuem hierarquia constitucional. Não podem ser modificados se não pelo procedimento que rege a reforma da Constituição”. Ajunte-se o art. 46 da Constituição da Guatemala, de 1985, determinando que os tratados de direitos humanos ratificados pela Guatemala “têm preeminência sobre o direito interno”. Assim, também, a reforma constitucional introduzida na Carta Política do Chile de 1989, resultante do plebiscito realizado naquele ano, que acrescentou ao final do art. 5º (II) a disposição seguinte: “É dever dos órgãos de Estado respeitar e promover tais direitos, garantidos por esta Constituição, assim como pelos tratados internacionais ratificados pelo Chile e que se encontrem vigentes”. Com semelhante orientação, a Constituição da Colômbia de 1991 estabelece, no art. 93, que os tratados de direitos humanos ratifica-

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dos pela Colômbia “prevalecem na ordem interna”, e que os direitos humanos constitucionalmente consagrados serão interpretados de conformidade com os tratados de direitos humanos ratificados pela Colômbia. Em dicção mais contundente, a Constituição da Nicarágua promulgada em 1986 incorpora por expresso à normatividade de escala constitucional os direitos humanos consagrados nos tratados internacionais que especifica, nos termos seguintes: “No território nacional toda pessoa goza da proteção estatal e do reconhecimento dos direitos inerentes à pessoa humana, do irrestrito respeito, promoção e proteção dos direitos humanos, e da plena vigência dos direitos consignados na Declaração Universal dos Direitos Humanos; na Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem; no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da Organização das Nações Unidas e na Convenção Americana de Direitos Humanos da Organização de Estados Americanos”. Essa tendência das constituições contemporâneas de índole democrática e humanitária coloca na ordem do dia o fenômeno da “fungibilidade das fontes normativas”, no que respeita à sede normativa da proteção ou da maior proteção dos direitos fundamentais. Pouco importa, nesse contexto que aspira à máxima efetividade da tutela dos direitos humanos, de onde deriva o amparo jurídico, se em fonte do direito interno ou do direito internacional. Um e outro se conjugam e se interagem reciprocamente, livre dos pruridos e contingências que entravam os esquemas de interpretação calcados no princípio da hierarquia entre as regras de direito. O que se busca, agora, é o melhor modelo de proteção, no plano ideal e concreto, sem mais disputas quanto às fontes da proteção jurídica. No Brasil, a Constituição democrática promulgada em 1988, conquanto sem efetuar incorporação específica e nominal de tratados internacionais, em boa hora deixou preceituado em dicção genérica, no parágrafo 2º do art. 5º, que - “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.45 Trata-se de apreciável avanço em face de nossas anteriores Constituições, que nada aduziam com respeito à irradiação e expansividade da ordenação constitucional em direção a direitos outros que sejam objeto de tutela por tratados internacionais aprovados e promulgados pelo Brasil. Basta notar que a Constituição de 1967, com a redação imprimida pela Emenda Constitucional no. 1/69, reproduzindo suas congêneres antecedentes, dispunha, no art. 153, parágrafo 36, que - “a especificação dos direitos e garantias expressos nesta Constituição não exclui outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios que ela adota”. Com efeito, em face da norma do parágrafo 2º do art. 5º, não se cogita 45

É natural que os direitos e garantias decorrentes dos tratados internacionais celebrados pelo Brasil já integram, ipso jure, e com status de primazia, o ordenamento jurídico pátrio, sendo já, independentemente do cogitado parágrafo constitucional, de observância obrigatória. A norma, conforme redigida, incorre em redundância, como, aliás, bem observado por CELSO ALBUQUERQUE MELLO (em Direito Constitucional Internacional, cit., pág. 188).

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mais de buscar, internamente e por via de implicitude, no sistema de normas e princípios constitucionais, outros direitos e garantias além daqueles expressamente contemplados no estatuto supremo. Cuida-se, já agora, de declarar e aplicar, em nível tanto jurisdicional quanto administrativo na ordem jurídica brasileira, outros direitos e garantias que sejam previstos nos tratados internacionais adotados pelo Brasil segundo o procedimento supralegal de celebração e ratificação de tratados estabelecido nos artigos 49, I, e 84, VIII, da nova Constituição Federal. Nesse sentido, bem sustenta FLÁVIA PIOVESAN: “Ao prescrever que ‘os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros direitos decorrentes dos tratados internacionais’, a contrario sensu, a Carta de 1988 está a incluir, no catálogo de direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Este processo de inclusão implica na incorporação pelo texto constitucional destes direitos. Ao efetuar tal incorporação, a Carta está a atribuir aos direitos internacionais uma natureza especial e diferenciada, qual seja a natureza de norma constitucional. Os direitos garantidos nos tratados de direitos humanos de que o Brasil é parte integram, portanto, o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados”.46 É importante ter em conta que essa inovação trazida pela Constituição de 1988 abre dois tipos de perspectiva de estatização de normas internacionais. Em primeiro lugar, faz albergar na ordem constitucional pátria direitos de conteúdo novo e diverso daqueles elencados no art. 5º da atual Constituição, que já tenham sido contemplados em tratados internacionais subscritos anteriormente à promulgação da novel Lei Maior ou que venham a ser previstos em tratados celebrados ou a serem celebrados após o advento da Carta de 1988. Por outro lado, passam a integrar o sistema jurídico brasileiro, com a superior hierarquia das normas constitucionais, quaisquer ampliações ou extensões de direitos irradiados da ordenação internacional. Tal se dá, inclusive, quando a norma internacional introduzir, em face do elenco de direitos fundamentais contemplados na Constituição, uma nova e mais abrangente conceituação ou re-caracterização de direitos ou garantias, desde que de algum modo aumentem o seu arco protetor ou o seu campo de incidência, em benefício de quantos sejam ou possam ser titulares dos mesmos. É dizer, com PEREZ LUÑO, que – “os direitos fundamentais universais devem penetrar na teoria e na prática dos direitos fundamentais nacionais”.47 A título de 46 47

PIOVESAN, FLÁVIA, Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, cit., págs. 82-83. PEREZ LUÑO, Derechos Humanos y Constitucionalismo en la Actualidad. Continuidad o Cambio de Paradigma, na obra coletiva Direchos Humanos y Constitucionalismo ante el Tecer Milenio, Madrid: Marcial Pons Ed. Jurídicas y Sociales S.A.. 1985, pág. 30. Nessa mesma ótica de internacionalização dos direitos humanos constitucionais, observa o nosso mais importante estudioso da matéria, CELSO DE ALBUQUERQUE MELLO, ao comentar a experiência constitucional européia: “Por sua vez, o art. 25 (da Constituição da Alemanha) estabelece que ‘as regras gerais de direito internacional público fazem parte do direito federal’ e se sobrepõem ao direito interno, criando ‘direitos e obrigações para os habitantes do território federal’. Ora, os tratados de direitos humanos são regras gerais do DIP, logo são obrigatórios. Na Holanda, a prática constitucional tem sido muito influenciada pela jurisprudência ca Comunidade Européia. A Corte de Justiça da CE tem afirmado que o direito comunitário é uma nova ordem jurídica em que ocorre a limitação da soberania dos estados. Havendo, assim, ‘a existência de uma ordem constitucional superior à constituição nacional e independente desta. E todo o direito nacional, inclusive a Constituição, tem que se submeter ao direito comunitário. A Corte de Cassação holandesa incorpora ao direito interno, algumas vezes, a

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exemplo, vale mencionar algumas situações recentemente observadas na confrontação entre o nosso diploma constitucional e as regras do Direito Internacional Público. Destacamos, inicialmente, a questão surgida em torno do preceito do art. 5º, inciso LXVII, dispondo que - “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”. Tudo porque as exceções ao aprisionamento em razão de dívida civil ou comercial não encontram similitude no sistema normativo interamericano que, a bem dizer, veda em categórico, e sem qualquer escusa dirimente, a restrição da liberdade com base na inadimplência de obrigações de tal natureza. Nesse sentido, enuncia a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como o Pacto de São José da Costa Rica, do ano de 1969, que - “ninguém pode ser preso por deixar de cumprir obrigações de natureza claramente civil”. Em vista dessa contradição entre a ordem estatal e a ordenação internacional no campo dos direitos fundamentais, é justo reconhecer que o enunciado daquela Convenção Americana, por sua maior abrangência protetora, na medida em que não adiciona qualquer exceção restritiva ao comando proibitório de que se trata, há de prevalecer sobre a disposição constitucional brasileira de menor alcance tutelar, eis que complacente com as apontadas excepcionalidades. Contudo, sabidamente, esse não foi o entendimento do Supremo Tribunal Federal, que recusou-se a emprestar, com a largueza necessária, interpretação ao art. 5º, § 2º, da Constituição da República, que fosse receptora da revitalização e ampliação de enunciado ditadas pela ordem internacional.48 Não se cuida, aqui,

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jurisprudência da Corte Européia de Direitos do Homem. Na França, os direitos fundamentais têm primazia em relação ao direito interno. O próprio direito comunitário, onde existem normas de direitos humanos, acaba por ser superior à Constituição. Esta, em princípio, é a mais alta ‘instância’ jurídica, mas não há procedimento permitindo declarar a regra comunitária contrária à Constituição. Há uma presunção de que os tratados da comunidade tem uma constitucionalidade” (no artigo monográfico O § 2º do art. 5º da Constituição Federal, constante da obra coletiva Teoria dos Direitos Fundamentais, organizada por RICARDO LOBO TORRES, Ed. Renovar, 1999, págs. 14-15). Nesse sentido está o acórdão do STF no julgamento do HC nº 77.631 – SC, sendo Relator o Senhor Ministro CELSO DE MELLO, onde lê-se: “ A circunstância de o Brasil haver aderido ao Pacto de São José da Costa Rica – cuja posição, no plano da hierarquia das fontes jurídicas, situa-se no mesmo nível de eficácia e autoridade das leis ordinárias internas – não impede que o Congresso Nacional, em tema de prisão civil por dívida, aprove legislação comum instituidora desse meio excepcional de coerção processual destinado a compelir o devedor a executar obrigação que lhe foi imposta pelo ordenamento positivo, nos casos expressamente autorizados pela própria Constituição da República. Os tratados internacionais não podem transgredir a normatividade emergente da Constituição, pois, além de não disporem de autoridade para restringir a eficácia jurídica das cláusulas constitucionais, não possuem força para conter ou para delimitar a esfera de abrangência normativa dos preceitos inscritos no texto da Lei Fundamental. Não me parece que o Estado brasileiro deva ter inibida a prerrogativa institucional de legislar sobre prisão (civil) por dívida, sob o fundamento de que o Pacto de São José da Costa Rica teria pré-excluído, em sede convencional, ao menos no que se refere à hipótese de infidelidade depositária, a possibilidade de disciplinação desse mesmo tema pelo Congresso Nacional. É que não se pode perder de perspectiva a relevantíssima circunstância de que existe expressa autorização inscrita no texto da Constituição brasileira, permitindo ao legislador comum a instituição da prisão civil por dívida, ainda que em hipóteses revestidas de absoluta excepcionalidade. Diversa seria a situação, se a Constituição do Brasil – à semelhança do que hoje estabelece a Constituição argentina de 1853, no texto emendado pela Reforma Constitucional de 1994 (art. 75, n. 22) – houvesse outorgado hierarquia constitucional aos tratados celebrados em matéria de direitos humanos. Entendo, por isso mesmo, de jure constituto, que abordagem diversa do tema em questão vulnerará, de modo frontal, o sistema presentemente consagrado pela Lei Fundamental da República.

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porém, de declarar a ineficácia da parte final do pré-falado dispositivo da Constituição de 1988 por razões de incompatibilidade normativa hierárquica. Cuida-se, isto sim, de empreender a re-leitura de seu texto, de molde a compatibilizá-lo com o preceito de fonte internacional, em estrito cumprimento do imperativo que se contém no parágrafo 2º do art. 5º da própria Lei Maior de nosso País, ao estatuir que - “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” Ora bem: se o próprio legislador constituinte sua obra, notadamente o capítulo constitucional referente aos direitos fundamentais, à integração normativa advinda da ordem jurídica supranacionais, não há porque deixar de se proceder a essa integração sistêmica na situação em apreço. A complementariedade entre os dois sistemas se dá não só quando a ordem internacional institua um direito ou garantia inovadora e não prevista em nossa Carta Política, o que representa o mais, como, ainda, quando a fonte normativa externa amplie o arco de proteção de direitos ou garantias já adotados na ordem interna, inclusive suprimindo restrições ou exceções à sua plena fruição, o que representa o menos, conforme se verifica na hipótese focalizada. Outro exemplo ilustrativo dessa inter-relação entre os sistemas nacional e internacional para fins da superutilização da rede normativa de tutela dos direitos humanos apresentou-se, entre nós, com a promulgação da Convenção no. 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), integrante da Organização das Nações Unidas, assinada em Genebra, em 22 de junho de 1982, que estabeleceu, dentre outras disposições, restrições sobre o término da relação de trabalho em defesa dos direitos do empregado. O ponto nevrálgico da questão reside na aplicação do art. 4º, ao ditar que - “não se dará término à relação de trabalho de um trabalhador a menos que exista para isso uma causa justificada relacionada com sua capacidade ou seu comportamento ou baseada nas necessidades de funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço. Tudo porque a Constituição da República não exibe proteção trabalhista com essa extensividade. A rigor, o texto constitucional cinge-se a incluir no art. 7º, dentre os direitos ditos sociais, a “relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos Parece-me irrecusável, no exame da questão concernente à primazia das normas de direito internacional público sobre a legislação interna ou doméstica do Estado brasileiro, que não cabe atribuir, por efeito do que prescreve o art. 5º, § 2º, da Carta Política, um inexistente grau hierárquico das convenções internacionais sobre o direito positivo interno vigente no Brasil, especialmente sobre as prescrições fundadas em texto constitucional, sob pena de essa interpretação inviabilizar, com manifesta ofensa à supremacia da Constituição – que expressamente autoriza a instituição da prisão civil por dívida em duas hipóteses extraordinárias (CF, art. 5º, LXVII)-, o próprio exercício, pelo Congresso Nacional, de sua típica atividade político-jurídica consistente no desempenho da função de legislar.” Com idêntica conclusão, posiciona-se o acórdão de nossa Corte Suprema no RE nº 234.483-SP, sendo Relator o Senhor Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, com a seguinte ementa : “Prisão civil de depositário infiel (CF, art. 5º, LXVII) : validade da que atinge devedor fiduciante, vencido em ação de depósito, que não entregou o bem objeto de alienação fiduciária em garantia: jurisprudência reafirmada pelo Plenário do STF – mesmo na vigência do Pacto de São José da Costa Rica (HC 72.131, 22.11.95, e RE 206.482, de 27.05.98) – à qual se rende, com ressalva, o Relator, convicto da sua inconformidade com a Constituição.”

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termos da lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos” (inciso I),49 como também o “fundo de garantia do tempo de serviço” (inciso III). Além disso, o art. 10, I, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias estabeleceu a determinação seguinte: “Até que seja promulgada a lei complementar a que se refere o art. 7º , I, da Constituição: I - fica limitada a proteção nele referida ao aumento, para quatro vezes, da porcentagem prevista no art. 6º, caput e § 1º, da Lei no. 5.107, de 13 de setembro de 1966; II - fica vedada a dispensa arbitrária ou sem justa causa: a) do empregado eleito para cargo de direção de comissões internas de prevenção de acidentes, desde o registro de sua candidatura até um ano após o final de seu mandato; b) da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto. Percebe-se, assim, a incongruência entre a norma internacional sediada no art. 4º da Convenção 158 da OIT, revestida de hiper abrangência no que toca à vedação injustificada da relação empregatícia, e o regime constitucional pátrio na matéria, que se orienta no sentido de garantir a estabilidade no emprego apenas nas situações especificadas, adotando, para os demais casos, a solução indenizatória. A controvérsia acabou submetida ao superior exame do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade no. 1.480-3, formulada pela Confederação Nacional do Transporte - CNT e Outro, de que foi Relator o eminente Vice-Presidente de nossa Corte Maior, então no exercício da Presidência, Ministro CELSO DE MELLO Sua Exa., em extenso despacho solicitativo de informações regimentais, submeteu ao Plenário do Tribunal o pedido de suspensão cautelar daquele tratado internacional, consoante formulado juntamente com a exordial da ação direta. Nesse decisum O Ministro Relator teceu alentadas considerações, primeiramente acerca do primado da Constituição sobre os tratados e sobre a ordinariedade do controle de constitucionalidade das normas internacionais, e depois sobre a paridade jurídico positiva entre os tratados e a legislação brasileira, com isso reiterando a retrógada visão já antes esposada ao ensejo do julgamento do pré-falado Recurso Extraordinário no. 80.004/78.50 Todavia, em que pese o candente debate que 49

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Vale assinalar que o texto em vigor da Consolidação das Leis do Trabalho apresenta, no art. 482, norma específica acerca das causas justificadoras da rescisão do contrato de trabalho por iniciativa do empregador. Sem embargo de a matéria já haver sido direcionada pelo legislador constituinte para o âmbito da legislação complementar, é certo que alguns dos motivos previstos na CLT para a ruptura do vínculo laboral por justa causa extrapolam o permissivo constante do art. 4º da Convenção 158 da OIT, centrado, como se anotou, na capacidade ou seu comportamento do empregado e nas necessidades de funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço. Eis, com os lastros doutrinários e jurisprudenciais invocados, excertos do aresto em comento: “A Constituição qualifica-se como o estatuto fundamental da República. Nessa condição, todas as leis e tratados celebrados pelo Brasil estão subordinados à autoridade normativa desse instrumento básico. Nenhum valor jurídico terá o tratado internacional, que, incorporado ao sistema de direito positivo interno, transgredir, formal ou materialmente, o texto da Carta Política. É que o sistema jurídico não confere qualquer precedência hierárquico-normativa aos atos internacionais sobre o ordenamento constitucional. É essencial reconhecer, portanto, que a inconstitucionalidade de tratados internacionais impedirá a aplicação de suas normas na ordem jurídica interna brasileira, ao contrário do que prevalece, por exemplo, no sistema normativo vigente em Portugal, cuja Constituição (1976) - com as alterações introduzidas pela Segunda Revisão Constitucional (1989) - excepcionalmente admite a incidência de normas formalmente inconstitucionais constantes de tratados internacionais (art. 277, nº. 2)... PARIDADE NORMATIVA ENTRE ATOS INTERNACIONAIS E NORMAS INFRACONSTITUCIONAIS - Os atos internacionais,

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grassou em torno do assunto, a matéria não alcançou julgamento de mérito no âmbito do Supremo Tribunal Federal, uma vez que o Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, por certo acolhendo pressões advindas das lideranças patronais, acabou por editar o Decreto no. 2.100, de 20 de dezembro de 1996, tornando pública a denúncia, pelo Brasil, da importante Convenção no. 158 da OIT.51 De todo modo, a despeito dos percalços da jurisprudência pátria nessa ordem de questões, essa série de exemplos de constituições contemporâneas, expressam a generalizada tendência em prol da crescente integração entre o Direito Constitucional e o Direito Internacional para a maximização da proteção jurídico-formal dos direitos humanos, a traduzir fenômeno marcante da ciência jurídica neste final de século. Essa linha de julgados de nossa Suprema Corte, que por certo não enaltece a primazia do direito internacional humanitário e a indispensável conjugação das normas internacionais tutelares dos direitos humanos com os comandos constitucionais ou com as regras do direito interno em geral, felizmente vem experimentando uma benéfica mutação constitucional, graças sobretudo ao influxo da promulgação da Emenda Constitucional nº 45, no ano de 2004, destinada a implementar a reforma do Poder Judiciário. Assim é que esse importante ato do poder constituinte derivado, em autêntico revanchismo às referidas e mal inspiradas decisões do Supremo Tribunal Federal, houve por bem acrescentar o § 3º ao artigo 5º da Constituição Federal, com a redação seguinte: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas à Constituição”. Com base nesse novo regramento constitucional, e por considerar que a prisão por dívida civil, excetuada a situação do devedor voluntário de pensão alimentícia, acha-se de todo proscrita pelo Pacto de São José da Costa Rica (art. 7º, § 7º), ratificado pelo Brasil em 1992, o STF, no julgamento do Habeas Corpus nº 87.585 – TO, Relator o Ministro Marco Aurélio, como ainda dos Recursos Extraordinários nºs. 349.703 - RS, Relator para o acórdão Ministro Gilmar Mendes, e 466.343 - SP, Relator o Ministro César Peluso, todos decididos ao final do ano de 2008, nos quais se questionava

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uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se no mesmo plano de validade e eficácia das normas infraconstitucionais. Essa visão do tema foi prestigiada em decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE no. 80.004-Se (RTJ 83/809 - Relator p/acórdão Ministro Cunha Peixoto), quando se consagrou, entre nós, a tese - até hoje prevalecente na jurisprudência da Corte - de que existe, entre tratados internacionais e leis internas brasileiras, mera relação de paridade normativa. A normatividade emergente dos tratados internacionais dentro do sistema jurídico brasileiro, por isso mesmo, permite situar esses atos de direito internacional público, no que concerne à hierarquia das fontes, no mesmo plano e mesmo grau de eficácia em que se posicionam as leis internas... A eventual precedência dos atos internacionais sobre as normas infraconstitucionais de direito interno somente ocorrerá - presente o contexto de eventual situação de antinomia com o ordenamento doméstico -, não em virtude de uma inexistente primazia hierárquica, mas, sempre, em face da aplicação do critério cronológico (lex posterior derogat priori) ou, quando cabível, do critério da especialidade (RTJ 70/333 - RTJ 100/1030 - RTJ 554/434)” (Cf. Diário da Justiça de 2.8.96, págs. 25792-25795). O texto do Decreto no. 2.100/96 está publicado no Diário Oficial da União - Seção 1 - de 23.12.96, pág. 27.860.

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a validade constitucional da prisão civil de alienante fiduciário infiel, proclamou que a mesma não mais se compadece com o disposto no § 3º do art. 5º da Constituição Federal, com a redação ditada pela Emenda Constitucional 45/2004. Com efeito, a Corte Maior sufragou o entendimento de que a prisão por dívida civil, seja no caso do depositário infiel seja na hipótese do alienante fiduciário, não mais encontra guarida no conjunto dos direitos fundamentais sublimados pela Constituição. Assim sendo, só pode a mesma subsistir e ser aplicada ao responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia. E para dar perfeita conseqüência a tal julgado, revogou por expresso o enunciado da Súmula 619 do mesmo tribunal, segundo a qual – “a prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura da ação de depósito”. Não resta dúvida de que trata-se de uma expressiva evolução de nossa jurisprudência constitucional. Conquanto o alcance do § 3º do artigo 5º da Constituição esteja a ensejar disputas exegéticas e doutrinárias, releva salientar que o mesmo foi positivado pela Emenda 45 decididamente em prol da melhor proteção interna dos direitos humanos. Cuida-se, em suma, de uma evolução e não de uma involução na normativa humanitária. Por outro lado, esse ato do poder constituinte derivado não guarda antinomia ou conflito aparente com a norma do § 2º do mesmo artigo 5º, que a sua vez perfaz disposição do poder constituinte originário no campo dos direitos fundamentais, desse modo alçado em cláusula pétrea por força do artigo 60, § 4º, inciso IV, da Constituição da República. A não ser assim, o dispositivo constante do parágrafo acrescentado estaria contagiado de insuperável inconstitucionalidade. A bem dizer, a disposição do art. 5º, § 2º, por si só já constitui um sistema automático de incorporação de tratados e convenções sobre direitos humanos à ordem constitucional brasileira, de molde a ampliar o elenco de direitos supralegais que lá se contém. De tal sorte que os direitos humanos decorrentes dos tratados e convenções internacionais firmados pelo Brasil, sejam eles destinados a introduzir preceito novo ou que visem ampliar ou de algum modo re-caracterizar com maior alcance as disposições originalmente promulgadas pela Assembléia Nacional Constituinte em 5 de outubro de 1988, já integram o elenco de direitos fundamentais da ordenação constitucional de nosso país. Tal significa dizer, em apertada síntese, que os tratados e convenções internacionais com interferência na normativa dos direitos humanos já celebrados pelo Estado brasileiro anteriormente à vigência da Emenda Constitucional 45/2004 não perdem a investidura originária de norma de nível constitucional pela eventual circunstância de não terem sido aprovadas em dois turnos de votação e com o atingimento do quorum qualificado de três quintos dos membros das duas Casas do Congresso Nacional. Até mesmo porque os apontados requisitos procedimentais que condicionam a promulgação da emenda constitucional invariavelmente não se concretizaram ao ensejo da provação de tratados e convenções internacionais pelo Congresso Nacional anteriormente ao advento da Emenda Constitucional 45/2004, eis que sua aprovação se operou por via

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de decreto-legislativo, com supedâneo no artigo 49, I, da Constituição Federal. Bem se sabe que essa modalidade de ato legislativo formal, que encontra disciplina no Regimento Interno do Congresso Nacional, sujeita-se a processo de discussão e votação de todo distinto das emendas constitucionais. De conseguinte, por imperativo do § 2º do art. 5º do estatuto supremo todas as normas de direito internacional no campo dos direitos humanos que contaram com a adesão formal do Estado brasileiro já ostentavam o status juspositivo de norma de direito constitucional e, sem nenhuma razão para ser de outro modo, continuaram a usufruir da mesma investidura suprapositiva quando da promulgação da Emenda Constitucional nº 45, no ano de 2004. Não há, bem por isso, qualquer necessidade da sua ratificação apenas para atender aos moldes do processo legislativo próprio da emenda constitucional, já agora por suposta e inocorrente exigência do novo § 3º do art. 5º da Constituição. Noutra linha explicativa, trata-se, pura e simplesmente, do conhecido fenômeno da recepção das normas jurídicas cujo processo de elaboração, por elementar imprevisão de ordem temporal, não guarde consonância com as regras constitucionais supervenientes. Nessa ordem de convicções, são inúmeros os exemplos colacionáveis no âmbito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. É conhecido, dentre tantos outros, o caso emblemático da recepção do Código Tributário Nacional – a Lei nº 5.172, de outubro de 1966, cuja tramitação legislativa atendeu ao rito próprio da lei ordinária, então ditado pela Constituição de 1946. Posteriormente, com o advento da Constituição de 1967 (art. 18, § 1º), passou-se a exigir a edição de lei complementar para a positivação de normas gerais de direito tributário, bem como sobre conflitos de competência entre os entes federativos em matéria tributária e, ainda, para a regulamentação das limitações constitucionais do poder tributário. Nem por isso houve necessidade de ratificação congressual do Código Tributário Nacional segundo o procedimento aplicável a essa espécie de ato legislativo introduzido pela Carta Política de 1967. Para tanto, entendeu o Supremo Tribunal Federal, com boas razões, que o Código Tributário Nacional, conquanto lei ordinária na origem, foi recepcionado pela então nova Constituição como genuína lei complementar (Cf. RE nº 71.758 – Guanabara, de 1971, Relator Ministro Thompson Flores, e RE 90.551 – Minas Gerais, de 1979, Relator Ministro Cordeiro Guerra). Daí sustentar CELSO LAFER, de forma escorreita, que a regra do § 3º do artigo 5º da Constituição possui natureza meramente interpretativa, ou seja, é superabundante para o efeito de atribuir eficácia juspositiva de norma constitucional às regras de direito internacional que de resto já a possuem, de acordo com o sistema constitucional brasileiro de “constitucionalização” das normas internacionais protetoras ou ampliativas de direitos humanos adotadas pelo Brasil no contexto internacional. Seria o caso de indagar-se, então: para que serve a nova disposição introduzida no § 3º do art. 5º da Constituição Federal pela Emenda 45/2004? Tem-se aí questão séria e de alta indagação jurídica, pois não se pode presumir, no aspecto ora apreciado, a superfluidade do texto da emenda constitucional promulgada pelo Congresso Nacional.

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A meu sentir, uma conseqüência parece nítida e inexorável, qual seja a impossibilidade, doravante, de denúncia a tratado ou convenção internacional referente a direitos humanos. Com efeito, se a aprovação parlamentar do instrumento fonte de direito internacional humanitário tiver cumprido os requisitos peculiares e condicionantes do processo de elaboração de emenda constitucional, seu conteúdo normativo passará a constituir cláusula pétrea, a teor do disposto no art. 60, § 4º, da Constituição da República, como tal insuscetível de revogação ou qualquer alteração reducionista de seu alcance, seja por via de emenda à Constituição, seja por via de denúncia do tratado ou convenção, com ou sem o respaldo do Poder Legislativo. Impende reparar, nesse segmento de idéias, que, anteriormente à promulgação da Emenda Constitucional nº 45, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos de que o Brasil tivesse sido signatário, com ou sem as reservas de estilo, poderiam ao depois ser denunciados pelo Presidente da República, no exercício da prerrogativa de Chefe de Estado de denunciar tratados e convenções. Assim é que a Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), relativa à proibição de despedida arbitrária nas relações de trabalho, acabou denunciada pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, conforme antes reportado, sem que daí resultasse qualquer questionamento capital acerca da validade do ato executivo da denúncia. Quero crer que hoje, em face da disposição insculpida no § 3º do art. 5º da Constituição Federal, que tal não seria mais possível caso o instrumento internacional tivesse sido aprovado em dois turnos de votação sucessivos nas duas Casas do Congresso Nacional e mediante o quorum de três quintos dos respectivos membros. A condição de cláusula pétrea de que se reveste o tratado ou convenção assim aprovado constitui por certo impediente à sua denúncia ulterior pelo Chefe de Estado. Portanto, a nova regra do art. 5º, § 3º, da Lei Maior cuida, no rigor exegético, de processo legislativo alternativo para acréscimo ou ampliação do elenco dos direitos fundamentais, mas com a mesma finalidade daquele específico aplicável à emenda constitucional, regulado no art. 60 da Constituição. Sua missão e funcionalidade consistem, com sustentado, em impedir doravante a denúncia de tratado ou convenção aprovados com observância dos mesmos requisitos de tramitação que são próprios à emenda constitucional. É justo concluir, de todo modo, que a proteção dos direitos fundamentais em nosso país, mercê da alteração de relevo introduzida pela Emenda Constitucional 45/2004, restou ainda mais amplificada e em melhor sintonia com os diplomas constitucionais da atualidade que se esmeram, tanto no plano interno quanto no internacional, para bem garantir a tutela dos direitos humanos.

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O Brasil Rumo à Sociedade Justa Dalmo de Abreu Dallari*

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1. Nova Constituição e novas perspectivas para o Brasil A sociedade brasileira vem revelando, nas últimas décadas, o crescimento de novas forças sociais, nascidas na luta contra a ditadura militar implantada no Brasil em 1964 e influenciadas pelo consenso mundial de que os direitos humanos devem ser os princípios fundamentais de uma sociedade livre, harmônica e justa. A Constituição brasileira de 1988, elaborada logo após o período ditatorial, foi a expressão dos anseios de liberdade e democracia de todo o povo e foi também o instrumento legítimo de consagração, com força jurídica, das aspirações por justiça social e proteção da dignidade humana de grande parte da população brasileira, vítima tradicional de uma ordem injusta que a condenava à exclusão e à marginalidade. Em resposta a tais anseios e aspirações os constituintes de 1988 consignaram no texto da nova Constituição os direitos fundamentais da pessoa humana, prevendo também os meios de garantia desses direitos e fixando responsabilidades por seu respeito e sua promoção. Pode-se afirmar, sem sombra de dúvida, que essa Constituição, pela intensa participação popular assim como pelo conteúdo, é a mais democrática de todas que o Brasil já teve e se inscreve na linha das Constituições democráticas européias elaboradas depois da segunda guerra mundial, das quais, aliás, sofreu bastante influência. Houve condições para dar ao Brasil uma Constituição democrática e comprometida com a supremacia do direito e a promoção da justiça e isso foi feito pelos constituintes. Entretanto, por expressar a vontade de uma sociedade muito heterogênea e cheia de contradições, o texto da Constituição de 1988 revela a existência de novos fatores de influência social que já não podem ser ignorados, mas revela também a permanência parcial de uma herança colonial negativa, preservando-se em pontos substanciais a dominação de elites conservadoras e reacionárias. É bem provável que o século XXI assista, já em suas primeiras décadas, à superação dessas contradições e à implantação de uma *

Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP.

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sociedade livre e justa para todos os brasileiros, apesar das resistências dos segmentos privilegiados. Para conhecimento dos avanços obtidos na constituinte e de seu significado histórico e social, assim como das circunstâncias que envolvem a luta pela implantação da Constituição de 1988, será interessante rememorar, ainda que em largos traços, algumas das principais marcas que a história imprimiu na sociedade brasileira, desde o início da ocupação do território pelos portugueses, no ano de 1500, até os dias de hoje. Em seguida se poderá fazer a síntese dos direitos e garantias consignados na Constituição, ficando, assim, mais fácil sua compreensão.

2. Direitos Fundamentais no Brasil: uma injustiça histórica. Existem no Brasil tantas situações de marginalização e de injustiça social, e isso aparece com tamanha evidência, que se tem a impressão de que nada de positivo pode ser dito relativamente à situação dos Direitos Humanos. O que existe, de fato, é uma acumulação histórica de injustiças, sendo necessário ir até o início do século XIV para perceber e compreender essa trajetória, que teve um mau começo em termos de reconhecimento e respeito dos direitos fundamentais da pessoa humana. Na realidade, desde o início da colonização do território brasileiro pelos portugueses, no ano de 1500, foi estabelecida no Brasil uma sociedade profundamente marcada pela diferenciação entre os novos senhores da terra e os outros. As primeiras vítimas dessa nova sociedade foram os índios, primitivos habitantes da terra brasileira, que o colonizador explorou de várias formas, tentando escravizá-los e roubando suas terras. Acostumado a viver em liberdade, em relação íntima com a natureza, o índio tentou resistir, mas a superioridade de armas e a ambição de riqueza dos colonizadores foram mais fortes. Calculam os historiadores que existiriam no Brasil, no ano de 1500, entre quatro e cinco milhões de índios. Mas eles foram sendo dizimados, ou pelas armas ou por falta do ambiente natural que garantia sua sobrevivência, conseguindo sobreviver apenas as comunidades mais protegidas pela floresta e poucos grupos isolados em alguns pontos do litoral. Hoje restam menos de trezentos mil índios, muitos deles sendo vítimas da espoliação e das pressões da sociedade circundante. Empresários e agentes do governo se mostram impacientes e procuram apressar a eliminação dos grupos tribais remanescentes, considerados obstáculos à plena ocupação do território e à exploração das riquezas do solo e do subsolo. Os índios vão morrendo de fome, porque os brancos estão destruindo as florestas e envenenando os rios, além de morrerem também de doenças levadas pelo branco, sem que o governo cumpra as obrigações legais de proteger os territórios indígenas e de proporcionar assistência médica aos índios. É um genocídio mais ou menos disfarçado, que

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necessita de algum tempo para se consumar, mas é absolutamente certo. Os “civilizados” estão assassinando os “selvagens”. A impossibilidade de escravizar os índios estimulou a escravidão de negros africanos, que começaram a chegar ao Brasil enviados pelos portugueses a partir das colônias que Portugal havia estabelecido na África no final do século XV. A escravidão negra, tragédia humana que vitimava negros nascidos na África, no Brasil e em várias outras partes do mundo, durou oficialmente no território brasileiro até o ano de 1888, quando foi legalmente abolida. Com a abolição da escravatura o Brasil começou a receber grandes levas de trabalhadores europeus, contratados para trabalhar no campo. Os negros libertados, sem dinheiro e sem preparação profissional, foram abandonados à sua própria sorte e passaram a constituir um segmento marginal da sociedade. Vivendo na miséria e, além disso, vítimas de um tratamento preconceituoso, passaram a trabalhar nas atividades mais rudimentares e com menor remuneração, o que arrastou muitos deles para a criminalidade, agravando ainda mais os preconceitos, embora estes sejam sempre negados. Só muito recentemente, com a ampliação das oportunidades por influência da onda democratizante resultante da Segunda Guerra Mundial, começaram a cair as muralhas da marginalização. Os próprios negros foram tomando consciência das injustiças de que eram vítimas e começaram a se organizar para conquistar mais possibilidades de progresso social. O aparecimento dos Estados africanos na década de sessenta, com populações negras, bem como a mobilização política dos negros nos Estados Unidos, exerceram grande influência sobre os negros brasileiros, que começaram a se organizar para a reivindicação do direito à igualdade. Desde então vem aumentando o número de movimentos e associações de negros, muitos deles buscando recuperar seus vínculos culturais com a África, outros mais diretamente influenciados pelos movimentos negros norte-americanos e outros propondo-se, pura e simplesmente, a lutar por meios institucionais para modificar sua condição de brasileiros discriminados por motivo racial. A diversidade de inspirações e métodos impede a unificação desses grupos, que chegam mesmo, algumas vezes, a se hostilizar abertamente. É preciso assinalar também que, ao lado de uma resistência preconceituosa, existem muitas organizações defensoras de Direitos Humanos que denunciam a discriminação contra os negros e apoiam ostensivamente suas reivindicações. Na prática os negros brasileiros, em sua grande maioria, continuam a pertencer às camadas mais pobres da população brasileira. Entretanto, embora com evidente lentidão, os negros vão conquistando lugares nas universidades e nas profissões de mais alta qualificação. A presença do negro nos cargos de representação política também vai aumentando, mas tem contribuído muito pouco para a melhoria da condição social dos negros, pois vários dos eleitos para o Legislativo abandonaram a proposta de luta e preferiram fazer composições com as elites tradicionais, buscando vantagens pessoais.

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É muito forte a presença negra nas áreas do esporte e da música popular, mas, nesses dois casos, aquele que revela melhores qualidades consegue prestígio social e derruba as barreiras do preconceito; daí porém só resultam benefícios de caráter pessoal, sem influir para melhorar a situação dos negros na sociedade brasileira. Um dado significativo é a diminuição constante da porcentagem de negros na população brasileira, em conseqüência das imigrações européia e asiática, desde o final do século passado, como também em decorrência da miscigenação, sendo bem elevado no Brasil o número de mulatos, que é o resultado da união do negro com o branco. Cálculos mais recentes estimam que os negros representam hoje cerca de 6% da população brasileira. A par desses segmentos socialmente inferiorizados, identificados por suas características étnicas e culturais, existem desníveis regionais e sociais muito acentuados no Brasil. Circunstâncias históricas aliadas a fatores políticos, com repercussões na economia, produziram um verdadeiro “arquipélago cultural”, conforme a expressão de Alberto Torres, eminente sociólogo brasileiro da primeira metade do século XX. As formas de ocupação do território, bem como a repercussão de acontecimentos políticos da Europa, além dos interesses econômicos europeus, tudo isso contribuiu para a definição de um tipo de sociedade em que desigualdade de direitos e de acesso à riqueza e aos benefícios proporcionados pela vida social é escandalosamente evidente. Um desnível antigo e persistente é o de caráter regional. Na verdade, existem regiões profundamente diferenciadas entre sí, sendo evidente a existência de uma parte pobre e atrasada, especialmente nas regiões norte e nordeste do país, ao lado de outra mais desenvolvida, moderna e dinâmica, em que há muito mais oportunidades de trabalho e de ascensão social, englobando o sul e o centro-sul do país. Nas regiões norte e nordeste prevalece ainda o latifúndio, parcialmente ocupado por culturas extensivas e com grandes extensões de terra mantidas improdutivas, subsistindo em grande parte dessa região uma organização política e social semifeudal. Existe uma classe social dominante, que detém a propriedade da terra e, a partir dela, o controle do comando político e econômico. Com base numa aliança imoral, que perdura há mais de um século e meio, as lideranças nortistas e nordestinas garantem apoio político ao governo central. Em troca, o governo central lhes fornece dinheiro, em forma de auxílios, ou de empréstimos que geralmente não são pagos pelos tomadores. A par disso o governo da República também fornece serviços, mantendo organismos ditos de planejamento e de desenvolvimento ou de ajuda “às vitimas da seca”. Assim a rara ocorrência de chuvas que caracteriza sobretudo a região nordeste gerou uma prática perversa, que se tornou conhecida como “indústria da seca”. Trata-se de um mecanismo permanente, criado no século XIX, para a concessão de auxílios, que se justificam por objetivos sociais relevantes mas nunca foram usados, entre outras coisas, para construir um bom sistema de irrigação e que jamais chegam até a população mais pobre. A par disso, o governo central concede financiamentos, em condições mui favoráveis, para a

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implantação de projetos agropecuários ou industriais que quase nunca saem do papel, sendo raros os empreendimentos concretizados. Dentro desse mecanismo a presença do Estado é muito forte na região e os serviços públicos proporcionam mais empregos do que a iniciativa privada. E o acesso a tais empregos, assim como o uso dos serviços, depende sempre da concordância das elites dominantes, que assim aparecem com beneméritas e recebem em troca os votos agradecidos dos eleitores pobres, que são a maioria. Montou-se uma eficiente máquina de dominação política, econômica e social, que se completa com o aproveitamento malicioso da mecânica do federalismo brasileiro e do sistema eleitoral e representativo do país. A dominação dessas elites em muitos Estados da Federação é suficiente para assegurar a essa região -e, portanto, a essas oligarquias- a maioria no Parlamento nacional, especialmente no Senado, onde todos os estados têm igual número de representantes. Na região que compreende o sul e o centro-sul do Brasil houve uma evolução diferente desde o século XVIII. Sendo mais distante da Europa, essa região mereceu menos atenção nos primeiros séculos da colonização. Por esse motivo ela ficou mais atrasada, enquanto no nordeste se desenvolvia o plantio da cana-de-açúcar, que foi o primeiro produto brasileiro de exportação em grande escala. Para ocupação do território brasileiro o governo português fez doações de grandes extensões de terras no século XVI. Esse foi o inicio do sistema de latifúndios e se constituiu na base a partir da qual se formaram as grandes famílias de proprietários. Descendentes de donatários ou de aventureiros que através do tempo foram ocupando grandes extensões de terra ainda hoje dominam a região, controlando, inclusive, os meios de comunicação. Estes são utilizados para convencer a população pobre de que as lideranças regionais são competentes e lutam constantemente contra a pobreza, que dizem ser causada pela riqueza do sul. A exploração maliciosa do regionalismo é um artifício político amplamente utilizado pelas elites tradicionais e pelos demagogos, para infundir no povo a crença de que a pobreza regional é conseqüência da acumulação de riqueza no sul, procurando, assim, desviar a atenção de seus privilégios. A desvantagem inicial da parte sul do Brasil acabou sendo benéfica, pois deu possibilidade a outro tipo de exploração das riquezas, gerando uma elite econômica que, embora também insensível às injustiças sociais, não procurou manter a pobreza e o atraso da população como base permanente de sua dominação. O desenvolvimento diferenciado já se faz presente no século XVIII, com a descoberta de ouro e pedras preciosas em Minas Gerais, uma província do centro-sul. Por ser uma região montanhosa essa parte do território não se prestava para culturas extensivas. A par disso, a atividade econômica baseada na mineração não exige a propriedade de grandes extensões de terra para produzir riqueza. Por isso não se teve aí o semifeudalismo, que foi estabelecido nas regiões norte e nordeste do país.

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Foi a partir dessa perspectiva que se desenvolveu a ocupação intensiva da região sul. Embora tenha havido plantio de cana-de-açúcar numa pequena parte do litoral do Rio de Janeiro, a ambição do ouro e das pedras preciosas acabou sendo determinante e inspirou a organização de grupos, chamados “entradas” ou “bandeiras”, para avançar pelo território desconhecido em busca de riquezas. Os “bandeirantes” saídos de São Paulo, que eram os integrantes das bandeiras, foram desbravando as matas e caminhando pelos rios, semeando cidades e fazendas. No extremo sul, caracterizado pela existência de extensas planícies, foi sendo intensificada a criação de gado, mas também sem a figura do donatário explorador da miséria e do atraso. Durante o século XIX cresceram extraordinariamente as plantações de café, sobretudo na província de São Paulo, tendo sido amplamente utilizada a mão-de-obra escrava, de origem africana. Sem a perspectiva da quase auto-suficiência dos semifeudos do nordeste e tendo necessidade de trabalhar ativamente para formar e manter um patrimônio e para obter um alto nível de renda, os proprietários dessa região procuraram, geralmente, agir com dinamismo e criatividade. Esses modos de ocupação do território e de desenvolvimento econômico influíram bastante para a diferença de mentalidades entre o norte e o sul do Brasil, sendo uma das causas do profundo desnível econômico e da diferenciação cultural que hoje são patentes. Mas outros fatores foram sendo adicionados, merecendo especial referência a substituição da mão-de-obra escrava por trabalhadores livres, o que ganhou intensidade na segunda metade do século dezenove, sobretudo a partir de 1888, com a abolição da escravatura. Quando isso ocorreu, a parte norte do país já estava acomodada e a sociedade já havia atingido a estratificação, estando bem definida e consolidada a situação do pequeno número de proprietários dominadores e do restante, que era a grande parcela populacional de dominados. Por isso quase não havia escravos no norte e no nordeste e quando foi abolida a escravatura não houve necessidade de substituição da mão-de-obra nessas regiões. Na parte sul do país, especialmente em São Paulo, o número de escravos ainda era muito grande e para substituí-los foi iniciada a importação de trabalhadores livres europeus, com predominância de italianos, mas incluindo espanhóis, alemães e pequenos contingentes de outras nacionalidades. Um pouco mais tarde viria também um número significativo de japoneses. O final do século XIX e o início do século XX foram muito marcantes na história brasileira. Uma das conseqüências da abolição da escravatura, formalizada em 1888, foi a derrubada da Monarquia e a implantação da República, em 1889. Com isso ficou enfraquecida a posição da antiga nobreza rural, naturalmente conservadora, criando-se ambiente favorável para as mentalidades mais progressistas. Para muitos historiadores e estudiosos da vida econômica brasileira foi na passagem do século que se iniciou, verdadeiramente, a formação de um parque industrial no Brasil, com sua base principal em São Paulo. Muitos dos trabalhadores europeus chegados ao

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Brasil eram operários, emigrados da Europa como refugiados econômicos. Eles só haviam aceitado o trabalho rural por estarem vivendo com extrema dificuldade ou pela perspectiva de se tornarem proprietários de terras, porque se dizia que nesta parte do mundo havia terra de sobra à espera de ocupação. Muitos desses imigrantes ficaram pouco tempo na agricultura e logo procuraram as cidades, levando para as indústrias nascentes sua experiência, mas também sua consciência de direitos e sua prática de reivindicação organizada. Foi por esse meio que as idéias de comunismo e anarquismo chegaram aos trabalhadores brasileiros, tendo sido especialmente significativa a influência de trabalhadores italianos e espanhóis, chegados ao Brasil no final do século dezenove. Logo apareceram as associações operárias, antecessoras dos sindicatos, as reuniões políticas, os fundos de solidariedade e as greves. A primeira greve registrada pelos historiadores brasileiros ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, em 1905. Instala-se então no Brasil, no início do século vinte, a luta clássica entre capital e trabalho, com as características da sociedade industrial. Os empregadores, viciados pela submissão forçada dos escravos e pela docilidade dos trabalhadores rurais brasileiros, reagiram com violência à reivindicação de justiça social. A mentalidade dos grandes proprietários rurais e dos primeiros empresários industriais foi bem sintetizada na expressão “a questão social é uma questão de polícia”. A partir dessa concepção procuraram organizar melhor a polícia nos Estados em que começava a industrialização, para repelir as reivindicações operárias, que consideravam revolucionárias e perigosas para a ordem social. Desse modo, muitas das cenas de exploração e injustiça que marcaram tragicamente o início da revolução industrial européia se repetiram no Brasil até 1930. A grande crise econômica de 1929, que abalou profundamente a Europa e os Estados Unidos, teve imediato reflexo no Brasil. As injustiças acumuladas, o desejo de modernização, a luta entre o campo e a indústria e, finalmente, a queda violenta dos preços do café no mercado internacional, tudo isso se conjugou e levou à deposição armada do presidente da República, Washington Luiz. Assim termina a primeira República e começa um novo período da história brasileira, com Getúlio Vargas assumindo a chefia de um governo provisório, o que lhe daria condições para manobrar politicamente, fazendo concessões aos empregadores mas, ao mesmo tempo, introduzindo no Brasil, formalmente, os direitos dos trabalhadores, tendo por modelo a Carta Del Lavoro, da Itália, conseguindo assim permanecer à frente do governo brasileiro durante quinze anos ininterruptos. Uma das principais características do período Vargas foi o desenvolvimento da legislação trabalhista, assegurando um mínimo de garantias aos trabalhadores. Entretanto, o aperfeiçoamento da legislação não representou, na prática, o efetivo respeito pelos direitos e a eliminação das injustiças. “Obter o maior lucro possível pagando o menor salário possível” continuou sendo o lema dos empresários. No período de restabelecimento da ordem democrática no mundo, a partir de 1945, sob influência dos Estados Unidos, com quem o Brasil se tinha aliado na Segunda Guerra Mundial, toda reivindicação operária

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passou a ser classificada como “subversão comunista” e as Forças Armadas nacionais foram intensamente utilizadas para proteção da ordem, que era, na realidade, a ordem conveniente ao grande capital. Entre 1960 e 1970 ocorreram profundas transformações na sociedade brasileira e certamente os historiadores irão falar dessa década como uma das mais importantes de toda a história do Brasil. Em 1960 a maioria dos brasileiros morava no campo e em 1970 a população urbana já era maior do que a rural. As migrações de nordestinos para o sul do país, especialmente para o Rio de Janeiro e São Paulo, que já haviam aumentado depois de 1930, ganharam extraordinária intensidade. São Paulo é hoje a maior cidade nordestina do Brasil, pois aí vivem e trabalham cerca de três milhões de nordestinos, parte significativa do total de doze milhões de habitantes. Esses migrantes, em sua grande maioria, são pessoas modestas, sem qualificação profissional e, devido ao seu número elevado, não conseguiram habitações razoáveis, além de serem forçados a trabalhar nas atividades mais pesadas e com menor remuneração. Por isso estão concentrados nos bairros distantes da periferia ou moram em favelas, integrando a parte mais carente da população, de onde sai elevado número de crianças e adolescentes que vivem nas ruas em situação de marginalidade social. Fatos que foram muito importantes para o mundo, especialmente a revolução cubana de 1959 e o Concílio Vaticano Segundo, instalado em 1960, tiveram grande repercussão no Brasil. Surpreendentemente, como uma das conseqüências inesperadas dos governos militares que comandaram o Brasil entre 1964 e 1985, teve início uma importante mobilização social, iniciada nas camadas mais pobres, apoiadas pelos setores mais progressistas da Igreja Católica. Os primeiros grupos organizados foram denominados “comunidades eclesiais de base”. Reunidos por iniciativa de bispos e padres católicos, para a realização de trabalhos de interesse comum, como a plantação de subsistência e a construção de moradias rústicas, os membros dessas comunidades passaram a receber ensinamentos sobre a organização social e a respeito do uso de seus direitos. Assim adquiriram consciência política e mesmo sendo pobres passaram a influir sobre os governos, fazendo denúncias, apresentando reivindicações e cobrando dos políticos o cumprimento de suas promessas eleitorais. O exemplo dessas comunidades estimulou a formação de grande número de associações, para defesa de direitos, adoção de providências junto a autoridades, divulgação de situações de marginalidade e denúncias de ofensas a Direitos Humanos. Deste modo surgiram inúmeros grupos organizados, dispostos a trabalhar sistematicamente para a eliminação das situações de injustiça e violência que envolvem milhões de brasileiros. Mas também foram formadas muitas associações voltadas para a promoção de interesses específicos de certos segmentos sociais, como as mulheres, os favelados, os negros, os índios, os aposentados, os deficientes físicos, etc. A partir da década de setenta esse movimento associativo chegou à classe média, intensificando-se a formação de entidades representativas de profissionais de mais alto nível. O exemplo mais expressivo desse movimento,

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por ter ocorrido num segmento tradicionalmente conservador e acomodado, foi o aparecimento de associações de magistrados, com objetivos reivindicatórios. Esse fenômeno associativo tem extraordinária importância, pois representa a superação do ultraindividualismo, tradicional na sociedade brasileira e razão da inexistência de pressões eficientes para a eliminação de privilégios injustos. Pode-se mesmo falar em “mudança qualitativa” da sociedade, estando em fase de superação o individualismo egoísta, para surgir em seu lugar uma convivência solidária, que já produziu efeitos políticos na Assembléia Nacional Constituinte que elaborou a Constituição de 1988. Embora alguns analistas políticos procurem sustentar que houve uma desmobilização do povo depois da Constituinte, o fato é que a partir daí teve início uma nova forma de organização da sociedade brasileira, surgindo grande número de associações, reunindo vizinhos ou pessoas ligadas por algum interesse comum. Vem sendo desenvolvida, nos últimos anos, uma ação política apoiada em direitos e garantias constitucionais, buscando dar ao povo uma influência maior nas decisões políticas. Esse movimento tem sido caracterizado como “democracia participativa” e já vem influindo para que os Direitos Humanos sejam mais respeitados no Brasil. A Constituição de 1988 foi muito importante para dar eficácia jurídica à declaração de direitos, restando ainda um grande desafio para sua integral aplicação.

3. Promessas e negativas da nova Constituição. Se fosse possível aplicar concretamente todos os capítulos e normas constitucionais favoráveis aos Direitos Humanos, sem considerar a existência de barreiras econômicas, seria possível afirmar que a situação dos Direitos Humanos melhorou consideravelmente com a nova Constituição. Do mesmo modo, se houvesse a possibilidade de aplicar inteiramente as normas constitucionais relativas à ordem econômica, sem considerar os artigos que tratam dos Direitos Humanos e de suas garantias, a sociedade brasileira iria manter os privilégios e as injustiças sociais acumulados durante quase quinhentos anos de história. Isso quer dizer que aparentemente existem duas orientações diferentes, dentro da própria Constituição, uma fortalecendo os Direitos Humanos e ampliando suas garantias e outra privilegiando os interesses econômicos. Mas o conflito é apenas aparente, pois no seu conjunto e a partir dos princípios expressamente estabelecidos a Constituição dá prioridade à pessoa humana e subordina as atividades econômicas privadas ao respeito pelos direitos fundamentais do indivíduo e à consideração do interesse social. Um exemplo disso é a norma constitucional que subordina o direito de propriedade ao cumprimento de uma função social. É evidente que a simples existência de uma nova Constituição, ainda que muito avançada, não é suficiente para que os Direitos Humanos sejam efetivamente respeitados e usados. Por vários motivos é previsível a ocorrência de dificuldades, mas sem dúvida alguma é melhor ter uma Constituição mais favorável à promoção e proteção da dignida-

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de humana, pois a partir daí fica mais fácil a mobilização social de sentido democrático e humanista. A atual Constituição brasileira, elaborada em 1988, fixa princípios que deverão condicionar e orientar a aplicação de todas as suas normas, bem como as atividades legislativas, executivas e judiciárias. Esses princípios estão enunciados em diferentes artigos. O Título I se denomina “Dos Princípios Fundamentais” e aí se encontram no art. 4º, entre os princípios que regerão as atividades internacionais do Brasil, os seguintes: II. prevalência dos Direitos Humanos; VIII. repúdio ao terrorismo e ao racismo. No art. 170 estão expressos os princípios da ordem econômica, entre os quais se encontram a função social da propriedade e a redução das desigualdades sociais. Além desse expresso enunciado de princípios, encontram-se na Constituição outros parâmetros para interpretação e aplicação de suas normas, os quais são favoráveis aos Direitos Humanos. No próprio Título I estão expressos “a dignidade da pessoa humana” e “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” (art.1o., incisos III e IV) como fundamentos do Estado brasileiro , que é definido nesse mesmo artigo como Estado Democrático de Direito. É significativa a inclusão no Título VIII da Constituição, referente à Ordem Social, de capítulos que cuidam “Da seguridade Social”, aí incluindo a assistência social, “Da família, da criança, do adolescente e do idoso” e “Dos índios”. Este último capítulo tem especial significação, considerando-se que os índios constituem uma das minorias mais vulneráveis da sociedade brasileira, pois além de não estarem preparados para competir numa sociedade capitalista, muitos deles são analfabetos ou nem mesmo falam a língua portuguesa, que é o idioma do povo brasileiro. A Constituição revela também certa preocupação com a igualdade de acesso aos serviços fundamentais prestados pela sociedade e pelo Estado, quando reconhece a saúde e a educação como direitos de todos e deveres do Estado (artigos 196 e 205). Considerando-se que grande parte da população é muito pobre e não tem meios econômicos para pagar pelos cuidados dc saúde e pela educação, é importante o reconhecimento desses direitos, pois daí pode nascer a atribuição de responsabilidade às autoridades públicas. O enunciado sistemático dos Direitos Humanos está no Título II da Constituição, que trata “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”. O capítulo I refere-se aos direitos e deveres individuais e coletivos, que são enumerados em setenta e sete incisos do art. 5o., incluindo várias garantias formais. E no capítulo II, que vai dos artigos 6º ao 11, está a enumeração dos direitos sociais. Esses dois capítulos refletem, em muitos pontos, a influência dos Pactos de Direitos Humanos aprovados pela Organização das Nações Unidas em 1966, o Pacto de Direitos Civis e Políticos e o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. É interessante observar que a influência desses instrumentos normativos internacionais foi indireta. Na realidade, o Brasil só ratificou em 1992 sua adesão aos Pactos de Direitos Humanos, mas através da Constituição de Portugal, que acolheu esses pactos e influiu sobre muitos constituintes brasileiros, os direitos civis, políticos, sociais e cul-

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turais, como proclamados pela ONU, acabaram chegando à Constituição brasileira em 1988 e desse modo já foram, desde então, inseridos no direito positivo brasileiro com máxima eficácia jurídica.. Os direitos políticos estão expressos nos artigos 14 a 16 da Constituição. A leitura desses artigos revela que foram acolhidos os direitos considerados clássicos na democracia representativa característica do Estado liberal-burguês. As duas inovações mais significativas, em relação às anteriores Constituições brasileiras, foram a concessão do direito de voto aos analfabetos e aos maiores de dezesseis anos. Para os maiores de dezoito anos de ambos os sexos o voto é obrigatório, como já ocorria antes, e para os que tiverem entre dezesseis e dezoito anos o exercício desse direito é facultativo. Um dado muito expressivo e revelador das fortes resistências opostas pelos grupos economicamente fortes é a inexistência de um capítulo relativo aos direitos econômicos. O art. 170, que define os fundamentos da ordem econômica brasileira, tem a seguinte redação: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existências digna, conforme os ditames da justiça social ...”. Não há dúvida de que essa redação é bem expressiva e reflete uma posição teórica até avançada para uma sociedade capitalista. Mas é importante notar que se trata apenas de uma afirmação abstrata, que não foi complementada pela especificação de meios e garantias de caráter prático e objetivo. É bem verdade que foram expressos como princípios da ordem econômica a função social da propriedade e a redução das desigualdades sociais.Mas ao mesmo tempo a Constituição manteve integralmente e sem restrições o direito de herança, por força do qual haverá brasileiros nascendo muito ricos ao lado de outros que já nascerão herdeiros, unicamente, da miséria de seus pais. Assim também a garantia de lucro ilimitado para os empresários e manipuladores de capital, mais a garantia quase absoluta da propriedade, tornando praticamente inviáveis as reformas agrária e urbana, tudo isso torna certo que para mais da metade da população brasileira a pobreza continuará sendo um obstáculo ao uso dos direitos.

4. Garantias formais e obstáculos práticos. Apesar da pobreza e do profundo desequilíbrio social, existem direitos fundamentais que poderão ser gozados por todos, ainda que com desigualdade. Entre esses há direitos referentes às relações de trabalho e outros relativos ao acesso aos serviços essenciais, sendo necessário um esforço constante para a garantia desses direitos a fim de que sejam gradativamente reduzidas as agressões à dignidade humana. Outros direitos são indispensáveis para que as próprias camadas mais pobres da população, com apoio de organizações sociais dedicadas aos Direitos Humanos, possam atuar politicamente e ter acesso aos

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meios judiciais de proteção, visando assegurar todos os direitos reconhecidos pela Constituição e reduzir as desigualdades. De vários modos a Constituição procura assegurar o uso e a defesa dos direitos fundamentais. Assim, pelo § 2º do art. 5º ficou estabelecido que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios constitucionais, ou ainda de tratados internacionais de que o Brasil seja parte. Com base nessa regra poderá ser sustentada a existência de direitos implícitos, desde que não sejam contrários a alguma disposição constitucional. É de extrema importância o § lº do art. 5º, pelo qual “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Na Constituição de Portugal se encontra uma regra muito semelhante a essa, podendo-se dizer que desse modo se garante a aplicação imediata das normas da Constituição referentes a direitos e garantias fundamentais, sem necessidade de aguardar uma lei ordinária regulamentadora. Alguns autores se referem a essas normas como auto-aplicáveis, exatamente por não dependerem da edição de outras. O importante é que essa inovação constitucional anula o argumento, muitas vezes utilizado por advogados e freqüentemente acolhido por juízes e tribunais, segundo o qual as normas constitucionais são apenas programáticas e dependem de regulamentação para serem aplicadas. As principais garantias formais dos direitos estão contidas no art. 5º da Constituição, tendo sido reiteradas algumas que já constavam de Constituições anteriores, além de terem sido criados novos instrumentos de garantia. Assim é que foi mantido o habeas-corpus, para garantia do direito de locomoção. Essa garantia já existe no direito positivo brasileiro desde 1832, tendo sido aperfeiçoada durante mais de um século e meio de experiência, sendo hoje amplamente utilizada, sobretudo para assegurar a liberdade em casos de prisão ilegal ou de sua ameaça. O mandado de segurança é instrumento utilizado desde 1934, para suspender a aplicação de um ato ilegal, de qualquer autoridade, que ofenda direito líqüido e certo de uma pessoa física ou jurídica, Houve uma inovação nesse caso, pois a Constituição de 1988 criou o mandado de segurança coletivo, permitindo que um partido político, uma organização sindical, uma entidade de classe ou uma associação legalmente constituída defendam os direitos de seus membros. São duas garantias com objetivos semelhantes. Outra inovação foi o habeas data, que permite a uma pessoa saber que informações constam a seu respeito em qualquer banco de dados de entidades governamentais ou que tenham caráter público, como, por exemplo, o Serviço de Proteção ao Crédito, que é de natureza privada mas funciona como serviço público. Essa garantia foi inspirada na existência de registros sigilosos mantidos pelos organismos de segurança nacional, muitas vezes com dados errados ou falsos, sobre pessoas que faziam oposição aos governos militares. Através do habeas data foi assegurado o acesso a esse e a outros bancos de dados,

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para conhecimento e eventual correção de erros e falsidades, o que pode ser decisivo para a proteção de direitos individuais. Uma garantia nova, que vem sendo objeto de acesa polêmica, é o mandado de injunção, inspirado no direito norte-americano, mas tendo características próprias no Brasil. De acordo com a Constituição, será concedido mandado de injunção “sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”. Existe divergência doutrinária e jurisprudencial a respeito do objetivo do mandado de injunção. Muitos entendem que através dele pode-se obter do Judiciário a complementação da norma constitucional para um caso concreto que dependa dessa providência. Outros, porém, sustentam que ao conceder o mandado de injunção o juiz ou tribunal se limitará a comunicar ao órgão do Poder Legislativo competente que este deve elaborar a norma complementar. No Supremo Tribunal Federal, órgão máximo do Poder Judiciário, vem prevalecendo esta última interpretação, que é preferida pelos juízes de tendência conservadora. O argumento básico desses magistrados é que o juiz não pode transformar-se em legislador. Contra essa afirmação existe a lembrança de que ao conceder o mandado de injunção o juiz já dispõe de uma norma de direito positivo, que é o artigo da Constituição reconhecedor do direito ou da prerrogativa, devendo apenas complementá-lo para viabilizar a aplicação ao caso que lhe for submetido. Na prática, se prevalecer a interpretação mais restritiva estará anulado o mandado de injunção, pois a comunicação do juiz não garantirá que o Legislativo faça a lei, ou que a faça em tempo curto, nem impedirá que o Chefe do Executivo decida vetar o projeto que for aprovado pelo Legislativo, como permite a Constituição. E se o Legislativo simplesmente ignorar o comunicado do juiz não haverá qualquer conseqüência, como se o habeas data não existisse, o que demonstra o absurdo da tese sustentada pelo Supremo Tribunal Federal. Além dessas garantias existe ainda a ação popular, que foi ampliada na Constituição de 1988, ganhando alcance bem maior do que tinha anteriormente. Por meio de ação popular qualquer cidadão é parte legítima para pedir ao juiz a anulação de ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe. A inovação está na possibilidade de ação popular para anulação de atos que sejam lesivos à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. Finalmente, a Constituição prevê ainda o exercício dos direitos de petição e representação, que permitem a qualquer pessoa dirigir-se a uma autoridade, pedindo providências para a defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder. Há vários aspectos do sistema de garantias que devem ser ressaltados. O primeiro deles é a atribuição de competências ao Poder Judiciário para efetivação das garantias. Embora quase sempre sejam veementes na defesa de sua independência e de suas prerrogativas, muitos juizes temem o excesso de responsabilidade e chegam mesmo a dizer que a Constituição exagerou ao confiar todos esses encargos ao Judiciário. A observação dos

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fatos e o exame da jurisprudência permitem afirmar que os juízes, de modo geral, vêm assumindo seu papel de garantidores de direitos, o que não se verifica, freqüentemente, nos tribunais superiores, inclusive no Supremo Tribunal Federal. Outro dado significativo é a atribuição de competências a associações para a defesa de direitos individuais. Além da legitimidade, já referida, para uso do mandado de segurança coletivo, diz a Constituição, no inciso XXI do art. 5º, que “as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente”. Esta última possibilidade deverá ganhar importância com o passar do tempo. As pessoas mais pobres não têm o hábito de utilizar o Poder Judiciário para defender seus direitos, ou por falta de informações, ou por não conseguirem o auxilio de um advogado ou ainda por terem medo de uma represália. O número de associações cresceu muito no Brasil nos últimos anos e por meio delas será mais fácil e menos perigoso chegar ao juiz para repelir uma agressão a direitos ou para obter a garantia de proteção judicial para um direito negado ou ameaçado.

5. Direitos Humanos no Brasil: entre o sonho e a realidade. Com base no conjunto das situações e na realidade de agora, pode-se dizer que os Direitos Humanos, entre os quais estão aqueles que a Constituição enumerou como direitos fundamentais, ainda não adquiriram existência real para grande número de brasileiros, embora tenham ocorrido avanços muito significativos após a vigência da Constituição de 1988. A marginalização social e os desníveis regionais são imensos e a discriminação econômica e social é favorecida e protegida por aplicações distorcidas de preceitos legais ou simplesmente pela não-aplicação de dispositivos da Constituição. Isso foi agravado na década de noventa pela atitude do governo federal brasileiro, que adotou a linha chamada neoliberal, privilegiando objetivos econômicos e financeiros, inclusive de entidades estrangeiras ou multinacionais, que participavam do mercado financeiro brasileiro ou recebiam auxílio do governo através de financiamentos ou renúncia fiscal, adotando-se essa política para dar maior volume à expressão econômica do Brasil no cenário mundial. Os interesses privados, especialmente os de natureza econômica, tiveram absoluta prioridade, mesmo quando contrários aos interesses do povo brasileiro. Os indicadores sociais, especialmente o Índice de Desenvolvimento Humano publicado pela ONU, deixavam evidente que os governos brasileiros, até há bem pouco tempo, não tinham uma política social e, mesmo autorizados pelo Parlamento a destinar recursos razoáveis às áreas sociais mais carentes, realizavam despesas insignificantes nessas áreas, deixando, inclusive, de cumprir suas obrigações constitucionais. Desse modo, pode-se concluir que, passada mais de uma década da promulgação da Constituição de 1988, grande parte de seus dispositivos, especialmente aqueles relacionados com a garantia de

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efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que se constituem em condição para que haja liberdade real para todos, associando o direito de ser livre ao poder de ser livre, continuavam à espera de aplicação. Persistiam, e ainda persistem, muitas exclusões e marginalizações e injustiças sociais mais do que evidentes continuam a existir. Entretanto, a sociedade brasileira está mudando, as camadas mais pobres da população estão adquirindo consciência de seus direitos e já conseguiram avançar muito no sentido de sua organização. A sociedade ultra-individualista, criada pelos colonizadores europeus e acentuada no século XX pela interferência do capitalismo internacional, está cedendo lugar a uma nova sociedade de indivíduos associados, que começam a descobrir a importância da solidariedade. Nesta circunstância é um dado muito favorável ter uma Constituição que fixa princípios e estabelece normas comprometendo o Brasil, sua sociedade e seu governo com a busca de uma nova forma de organização social, na qual a pessoa humana seja o primeiro dos valores. É importante proteger a Constituição, que em muitos aspectos continua a ser violentada por oligarquias regionais, por latifundiários e mineradoras e por empreendedores econômicos sem escrúpulos, muitas vezes com a cumplicidade de autoridades locais. Persiste, também, o uso de cargos públicos relevantes para dar proteção a grandes violadores de direito. Isso ficou muito evidente quando, recentemente, quatro Senadores foram ao Estado do Pará com o objetivo de impedir que um grupo de fiscalização do Ministério do Trabalho apurasse a denúncia da existência de trabalho escravo em grandes fazendas daquele Estado. Isso é também o que se verifica pelas constantes violações dos direitos constitucionais dos índios e das comunidades indígenas, vítimas de invasores de terras e do assalto às riquezas que legalmente são suas, além de não receberem o apoio governamental que lhes é devido para que tenham protegidos seus direitos fundamentais e sua dignidade. Entretanto, um conjunto de circunstâncias, inclusive levantamentos estatísticos efetuados por entidades não-governamentais, vêm demonstrando que várias ações do governo federal, desencadeadas nos últimos cinco anos, já começaram a produzir efeitos positivos, beneficiando, sobretudo, as camadas mais pobres da população brasileira. A par disso, é importante assinalar o aumento significativo da participação do Poder Judiciário na proteção dos direitos humanos, sendo já bastante freqüente a busca de proteção judicial, por pessoas das camadas sociais tradicionalmente marginalizadas, com apoio do Ministério Público e, mais recentemente, também da Defensoria Pública. Isso demonstra que um número maior de pessoas está acreditando que realmente tem direitos e que, apesar da pobreza e de outros fatores de dependência e fragilidade social, é possível chegar até eles. A utopia de um país de pessoas realmente livres, iguais em direitos e dignidades começou a despontar. As barreiras do egoísmo, da arrogância, da hipocrisia, da insensibilidade moral e da injustiça institucional, que até hoje protegeram os privilegiados, apresentam visíveis rachaduras. Existem ainda fortes resistências, mas os avanços conseguidos

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nos últimos anos permitem concluir que já começou a nascer o Brasil de amanhã, que por vias pacíficas deverá transformar em realidade o sonho, que muitos já ousam sonhar.

Bibliografia BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. Rio de Janeiro: Renovar, 1990. BENEVIDES, Maria Victória, A cidadania ativa, São Paulo : Ática, l991. BONAVIDES, Paulo, A Constituição Aberta, Belo Horizonte, Del Rey, 1993 BURSZTIN, Marcel. O poder dos donos. Petrópolis: Vozes, l984. COMPARATO, Fábio Konder. Para viver a democracia. Sã Paulo: Brasiliense, 1989. COVRE, Maria de Lourdes (org.). A cidadania que não temos. São Paulo: Brasiliense, 1986. FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Interpretação e estudos da Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1990. GRECO FILHO, Vicente, Tutela Constitucional das Liberdades,São Paulo, Saraiva, 1989 MORAES, Alexandre, Direitos Humanos Fundamentais, São Paulo, Atlas, 1997 PRUDENTE, Eunice Aparecida de Jesus. Preconceito racial e igualdade jurídica no Brasil. São Paulo: Julex, 1989. ROCHA, Carmen Lúcia Antunes, O Princípio Constitucional da Igualdade, Belo Horizonte, Editora Lê, 1990 SARLET, Ingo Wolfgang, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais,Porto Alegre, Livraria do Advogado Edit., 2006 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 5ª ed. São Paulo: São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. TAIAR, Rogério, A Dignidade da Pessoa Humana e o Direito Penal, São Paulo, SRS Edit., 2008 TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo Teixeira (Coordenador), Mandados de Segurança e de Injunção, São Paulo, Saraiva, 1990 WHITAKER, Francisco et al. Cidadão constituinte. São Paulo: Paz e Terra, 1989.

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In questo saggio mi propongo di discutere le tesi che nelle sue Tanner Lectures1 Michael Ignatieff ha sostenuto sul tema della “guerra umanitaria”, ovvero della legittimità dell’intervento militare da parte delle grandi potenze occidentali per la protezione dei diritti dell’uomo. Nelle sue Lectures Ignatieff ha sostenuto essenzialmente le seguenti tesi: 1. La dottrina occidentale dei diritti dell’uomo sta riscuotendo un eccezionale successo in tutto il mondo e non soltanto in Occidente. 2. Una concezione rigorosa dei diritti dell’uomo riconosce che essi riguardano non ogni legittima aspettativa dei soggetti umani, ma soltanto l’aspettativa della “libertà negativa”. La tutela dei diritti garantisce a ciascun individuo la capacità di agire liberamente per la realizzazione di obiettivi razionali. Il presupposto della dottrina dei diritti dell’uomo è l’individualismo politico e il connesso primato dei diritti individuali non solo rispetto ai legami di solidarietà sociale e ai doveri di lealtà politica, ma anche rispetto ai cosiddetti “diritti collettivi”, inclusa l’indipendenza dello Stato di cui si è cittadini. 3. La dottrina dei diritti dell’uomo, identificata con la tutela della “libertà negativa”, gode di una sicura universalità umanitaria. Ciò le consente di “valere” oltre l’ambito culturale dell’Occidente e di proporsi legittimamente a tutte le civiltà e culture del pianeta. 4. All’universalità dei diritti dell’uomo non corrisponde oggi l’universalità della loro protezione internazionale, poiché vi si oppone il particolarismo degli Stati nazionali e il principio della inviolabilità delle loro frontiere. Ma la sovranità degli Stati non deve impedire che in determinati casi -- come è legittimamente accaduto per la Bosnia-Erzegovina, per il Kosovo e per l’Iraq -- la forza delle armi venga usata per imporre ad uno Stato di rispettare al suo interno i diritti dell’uomo. * 1

Professore, Facoltà di Giurisprudenza, Università di Firenze, Italia. Ora pubblicate in M. Ignatieff, Human Rights as Politics and Idolatry, Princeton, Princeton University Press, 2001.

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I paragrafi che seguono sono dedicati ad un commento critico di queste quattro tesi.

1. Fondamentalismo umanitario Ignatieff sostiene che la dottrina dei diritti dell’uomo ha successo in tutto il mondo sebbene non disponga di un solido impianto epistemologico e deontologico. Questa tesi è senza dubbio l’elemento originale e interessante delle Lectures di Ignatieff. I documenti internazionali più autorevoli e solenni – si pensi alla recente Carta dei diritti fondamentali dell’Unione Europea – danno per scontato che i cosidetti “diritti fondamentali” godono delle prerogative della “indivisibilità e della universalitàĐ”. Questa formula, coniata alla Conferenza delle Nazioni Unite sui diritti dell’uomo tenutasi a Vienna nel 1993, è stata da allora polemicamente usata in Occidente contro i rappresentanti delle culture non occidentali, in particolare quelle islamica, induista e cinese-confuciana2. Dal punto di vista di queste culture i diritti dell’uomo sono strettamente intrecciati con gli standard di razionalità della cultura occidentale, oltre che con il formalismo giuridico, l’individualismo e il liberalismo occidentali. Sul piano teorico ci sono autori, come Jürgen Habermas e John Rawls ad esempio, che nella scia dell’insegnamento kantiano sostengono che i diritti dell’uomo sono suscettibili di una rigorosa fondazione cognitiva e normativa, cosicché è del tutto ovvio che sia possibile proporli all’umanità intera senza incorrere in alcuna forma di imperialismo culturale. Per Habermas la teoria dei diritti dell’uomo può essere interpretata come un nucleo di intuizioni morali verso il quale convergono le religioni universalistiche e le grandi filosofie metafisiche che si sono affermate nella storia umana: è un nucleo normativo che gode quindi di una universalità trascendentale, ben oltre le vicende storiche e culturali dell’Occidente3. Ignatieff si oppone risolutamente a questa “religione secolare”, a questa vera e propria idolatry autoreferenziale nella quale, egli scrive, l’umanesimo finisce per venerare se stesso. Egli riconosce che la dottrina dei diritti dell’uomo ha radici nella tradizione occidentale e che è emersa in un determinato periodo storico a conclusione di violenti conflitti sociali e politici. I diritti dell’uomo non si sono affermati, come invece sembra2

3

. A Vienna la tesi della indivisibilità e universalità dei diritti è stata usata dai paesi occidentali come un’arma polemica contro un folto gruppo di paesi dell’Asia e dell’America latina che rivendicavano la priorità dei “diritti collettivi” rispetto ai diritti individuali. . Dichiarandosi in sintonia con John Rawls per il quale esiste un overlapping consensus sul quale l’umanità può fondare la sua convivenza pacifica, Habermas dichiara di ritenere che “il contenuto essenziale dei principi morali incarnati nel diritto internazionale è conforme alla sostanza normativa delle grandi dottrine profetiche e delle interpretazioni metafisiche affermatesi nella storia universale” (J. Habermas, Vergangenheit als Zukunft, Zürich, Pendo Verlag, 1990, trad. it. Dopo l’utopia, Venezia, Marsilio, p. 20). Cfr. anche J. Habermas, Kants Idee des ewigen Friedens -- aus dem historischen Abstand von 200 Jahren, “Kritische Justiz”, 28 (1995), p. 307 (ora anche in J. Habermas, Die Einbeziehung des Anderen, Frankfurt a.M., Suhrkamp Verlag, 1996, trad. it. in L’inclusione dell’altro, Milano, Feltrinelli, 1998).

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no pensare i neokantiani, grazie alla ecumenica convergenza di filosofie irenistiche o a processi di sublimazione etica del conflitto politico e dello scontro fra gli interessi sociali. Per Ignatieff non ci sono argomenti razionali che provino l’universalità della dottrina dei diritti dell’uomo se la si intenda come una teoria generale della giustizia e della good life: categorie come il diritto naturale, o i teleologismi della creazione, o la stessa idea dell’intrinseca qualità morale della persona umana sono a suo parere assunzioni “idolatriche” prive di ogni fondamento razionale4. Per di più, secondo Ignatieff è un’illusione pensare al catalogo dei diritti dell’uomo come ad un sistema unitario e coerente di principi normativi: i fervidi attivisti dei diritti dell’uomo che hanno fatto della Dichiarazione universale del ’48 la loro bandiera ideologica non si rendono contro delle profonde tensioni che lacerano le carte dei “diritti fondamentali”. I diritti di libertà e i diritti patrimoniali, ad esempio, sono in contrasto con i diritti sociali, ispirati al valore dell’uguaglianza, mentre il diritto alla sicurezza minaccia sempre di più il diritto alla privacy. E si potrebbe aggiungere che i diritti economici contrastano con la tutela dell’ambiente, mentre la proprietà privata dei mezzi di comunicazione di massa minaccia l’integrità cognitiva dei cittadini, in particolare dei minori. L’idea che i diritti possano operare, come pensa Ronald Dworkin, come trumps, come “assi nella manica” per risolvere i conflitti politici, è ingenua e falsa perchè il riferimento ai diritti spesso irrigidisce e accentua i contrasti, anziché risolverli, in particolare quando i diritti stessi si trovano in un rapporto di reciproca antinomia5. Ignatieff ripropone dunque alcune delle tesi che Norberto Bobbio ha per decenni autorevolmente, anche se solitariamente, sostenuto in Italia. Per Bobbio la teoria dei diritti dell’uomo manca sia di rigore analitico che di fondamento filosofico6. I diritti elencati nei Bills of Rights occidentali sono storicamente esposti a continue revisioni, sono formulati in termini imprecisi e semanticamente ambigui, hanno natura eterogenea e soprattutto sono solcati da antinomie deontiche che frustano qualsiasi tentativo di dar loro una fondazione coerente e unitaria: “diritti fondamentali ma antinomici non possono avere, gli uni e gli altri, un fondamento assoluto, un fondamento che renda un diritto e il suo opposto entrambi inconfutabili e irresistibili”7. A conferma e a ulteriore sostegno sia delle tesi di Ignatieff che di quelle di Bobbio si potrebbe aggiungere che la dottrina dei diritti dell’uomo sembra priva di criteri, per usare un lessico sistemico, di autoregolazione e autoprogrammazione cognitiva. Essa non dispone di griglie concettuali capaci di una precisa individuazione, definizione e catalogazione 4 5 6

7

. Cfr. M. Jgnatieff, op. cit., pp. 53-4. . Cfr. M. Jgnatieff, op. cit., p. 20. . Cfr. N. Bobbio, L’età dei diritti, Torino, Einaudi, 1990, pp. 5-16. Anche Niklas Luhmann assume una posizione scettica circa l’universalità dei diritti dell’uomo; si veda N. Luhmann, Grundrechte als Institution, Berlin, Dunker & Humblot, 1965. Sul tema si veda in generale L. Baccelli, Il particolarismo dei diritti, Roma, Carocci, 1999. . Cfr. N. Bobbio, L’età dei diritti, cit., p. 13

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dei diritti. Anche la celebre tassonomia proposta da Thomas H. Marshall -- diritti civili, diritti politici, diritti sociali -- per quanto utile, è di natura storico-sociologica, ed è per di più strettamente modellata sugli ultimi tre secoli della storia inglese e ignora quindi l’intera tematica dei ‘nuovi diritti’8. Accade perciò che il “catalogo dei diritti” sia incline ad espandersi cumulativamente per successive “generazioni” o per interpolazioni normative legate a pure circostanze di fatto9. E non sono mancati filosofi e giuristi occidentali che hanno proposto un’estensione della teoria dei diritti fondamentali anche agli embrioni umani, agli esseri viventi diversi dall’uomo e persino agli oggetti inanimati. Ma è chiaro che l’espansione anomica del repertorio dei diritti fondamentali solleva un’incontestabile aporia: se tutto è fondamentale, niente è fondamentale. D’altra parte è intuitivo che i diritti fondamentali non possono essere tutti uguali -- di eguale peso normativo --, tanto più quando si trovino in tensione gli uni con gli altri. Alain Laquièze ha giustamente sostenuto che più il predicato “fondamentale” si estende includendo una quantità crescente di diritti diversi, più aumentano i rischi di una collisione fra il carattere fondamentale dei diritti e la necessità di relativizzarli e condizionarli ad altri diritti concorrenti10. La tesi del fondamento filosofico e della universalità normativa dei diritti dell’uomo è dunque un postulato dogmatico del giusnaturalimo e del razionalismo etico che manca di conferme sul piano teorico, e che viene contestato con buoni argomenti sia dalle filosofie occidentali di orientamento storicistico e realistico, sia dalle culture non occidentali. Da questa conclusione Bobbio ha inferito un importante corollario pratico: ciò che è rilevante per l’attuazione concreta dei diritti dell’uomo non è la prova della loro fondatezza e validità universale11. Anzi, questa dimostrazione rischia di rendere intollerante e aggressivo il linguaggio stesso dei diritti. Ciò che realmente conta è che i diritti soggettivi godano di un ampio consenso politico e che si diffonda il “linguaggio dei diritti” come espressione di aspettative e di rivendicazioni sociali. Ma il consenso – Bobbio sembra esserne ben consapevole – è un dato puramente empirico e storicamente contingente, 8 9

10

11

. Cfr. T.H. Marshall, Citizenship and Social Class, in T.H. Marshall, Class, Citizenship, and Social Development, Chicago, The University of Chicago Press, 1964, trad. it. Cittadinanza e classe sociale, Torino, Utet, 1976. . L’espressione “generazioni” è di Bobbio ed è priva di ambizioni teoriche. P. Barile, in Diritti dell’uomo e libertà fondamentali, Bologna, il Mulino, 1984, si limita ad una compilazione di diritto costituzionale positivo. Tentativi di elaborazione teorica di devono ad autori come R. Alexy, Theorie der Grundrechte, Baden-Baden, Nomos Verlagsgesellschaft, 1985; J. Rawls, The Basic Liberties and Their Priorities, in S.M. McMurrin (a cura di), The Tanner Lectures on Human Values, vol. 3, Salt Lake City, University of Utah Press, 1982, pp. 1-87, trad. it. in H.L.A. Hart, J. Rawls, Le libertà fondamentali, Torino, La Rosa Editrice, 1994; G. Peces-Barba Martínez, Curso de derechos fundamentales, Madrid, Eudema, 1991, trad. it. Milano, Giuffrè, 1993; L. Ferrajoli, Diritti fondamentali, Roma-Bari, Laterza, 2001. . Cfr. A. Laquièze, Lo Stato di diritto e la sovranità nazionale in Francia, in P. Costa, D. Zolo (a cura di), Lo Stato di diritto. Storia, teoria, critica, Milano, Feltrinelli, 2002. Laquieze ricorda che in Francia Etienne Picard (L’émergence des droits fondamentaux en France, “Actualité Juridique. Droit Administratif”, 1998, numero speciale su Les Droits fondamentaux, pp. 6 ss.) ha proposto di istituire una “scala di fondamentalità”. . Cfr. N. Bobbio, L’eta dei diritti, cit., pp. 14-6.

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oltre che difficilmente accertabile in termini rigorosi: esso non giustifica alcuna pretesa universalistica e alcuna intrusività missionaria. Meno che mai l’uso della forza. E, per di più, al consenso e alla moltiplicazione dei Bills of Rights non corrisponde, se non molto parzialmente e ambiguamente, l’attuazione concreta dei diritti, anche da parte dei paesi occidentali. Una cosa è la loro rivendicazione, ammonisce Bobbio, altra cosa è la loro effettiva tutela12. Il punto di vista di Ignatieff è assai meno netto di quello di Bobbio e non manca, nonostante la professione di laicità, di pesanti inflessioni moralistiche e paternalistiche. Per Ignatieff la dottrina dei diritti dell’uomo nasce dall’idea dell’unità della specie umana e dall’intuizione morale che ogni membro della specie merita una eguale considerazione morale (an equal moral consideration), e non deve perciò essere umiliato o sottoposto a sofferenze ingiustificate13. Il successo storico di questa idea è il vettore del progresso morale dell’umanità ed è questo progresso a conferire plausiblità e forza alla dottrina occidentale dei diritti dell’uomo. Secondo Ignatieff è infatti empiricamente accertabile, sul piano storico e pragmatico, che là dove gli individui sono titolari di diritti fondamentali è meno probabile che essi vengano discriminati, oppressi, fatti oggetto di violenza. Il linguaggio dei diritti, nato in Occidente, si è diffuso in tutto il mondo perché i diritti soccorrono gli individui più deboli contro i regimi ingiusti e oppressivi14. E’ questa, secondo Ignatieff, la ragione profonda del loro universalismo di fatto, della loro diffusione planetaria che non a caso investe soprattutto i regimi teocratici, tradizionalisti e patriarcali che proliferano nel mondo non occidentale, in modo tutto particolare nell’universo culturale islamico. A mio parere sta qui, in queste ambiguità moralistiche e paternalistiche, il germe di quel “fondamentalismo umanitario” che, come vedremo, finisce per far coincidere l’universalismo pragmatico e secolarizzato di Ignatieff con l’universalimo religioso dei neo-conservatives statunitensi, fautori della “guerra umanitaria”.

2. Individualismo e libertà negativa La tutela dei diritti dell’uomo, secondo Ignatieff, garantisce a ciascun individuo la libera “capacità di agire” (agency) per la realizzazione di scopi razionali15. Il presupposto filosofico-politico della dottrina dei diritti dell’uomo, sostiene Ignatieff, è l’individualismo politico, e il suo contenuto essenziale è la tutela della “libertà negativa”, nel significato che Isaiah Berlin ha attribuito a questa nozione in contrapposizione a quella di “libertà positiva”. 12 13 14 15

. Cfr. N. Bobbio, L’età dei diritti, cit., p. XX. . Cfr. M. Jgnatieff, op. cit., pp. 3-4, 95. . Cfr. M. Jgnatieff, op. cit., p. 7. . Cfr. M. Ignatieff, op. cit., p. 57. (“the capacity of each individual to achieve rational intentions without let or hindrance”).

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Non c’è dubbio che l’individualismo, come è stato ancora una volta Bobbio a sottolineare, è la premessa filosofico-politica generale della dottrina dei diritti dell’uomo16. Agli albori del Rinascimento l’antropologia individualista ha promosso in Europa – e, è bene ricordarlo, soltanto in Europa – un vero e proprio “rovesciamento” del rapporto fra gli individui e l’autorità politica. Superata la concezione organicistica della vita sociale – il modello aristotelico e aristotelico-tomista – che faceva dell’integrazione dell’individuo nel gruppo politico la condizione stessa della sua umanità e razionalità, è emersa la prospettiva giusnaturalistica17. Dalla priorità dei doveri dei sudditi nei confronti dell’autorità politica (e religiosa) si è passati alla priorità dei diritti del cittadino e al dovere dell’autorità pubblica di riconoscerli, di tutelarli e, alla fine, anche di promuoverli. Entro lo Stato moderno europeo (sovrano, nazionale, laico) la figura deontica originaria – il dovere – ha lasciato così il campo ad una nuova, in larga parte opposta, figura deontica, quella della aspettativa o pretesa individuale collettivamente riconosciuta e tutelata nella forma del “diritto soggettivo”. E’ un diritto inteso come jus in opposizione alla lex, in opposizione cioè al comando del sovrano e al “diritto oggettivo” di cui la potestas sovrana è espressione e garanzia. Decade l’idea armonistica e nomologica dell’ordine naturale e della sua strutturazione gerarchica e si consolida il primato metafisico e sociale del soggetto umano e della sua “coscienza” individuale come luogo dell’autonomia morale e della libertà politica, sia pure entro un contesto sociale che si vuole ordinato dalla ragione, dalla morale e dal diritto18. Ignatieff va molto oltre questa che potrebbe essere considerata la koiné filosofico-politica dell’Europa moderna, alla quale solo il marxismo, nelle sue epressioni più “eretiche” e radicali, ha cercato vanamente di opporsi negli ultimi due secoli. Seguendo Berlin, Ignatieff non solo sposa la versione classicamente liberale dell’individualismo politico europeo, ma, come vedremo, pensa di poter costringere l’intero ventaglio dei diritti soggettivi entro lo spazio normativo della “libertà negativa”. Nella tradizione liberale classica, ispirata al primato della libertà individuale e della proprietà privata, la libertà politica è stata intesa essenzialmente come “assenza di costrizione” e come sfera di non interferenza politica. Nel Second Treatise of Government, di John Locke, come nelle altrettanto celebri pagine di On Liberty di Stuart Mill, la libertà si identifica con un complesso di diritti a “non essere impediti” da comportamenti altrui. In questa linea, nel suo celebre contributo, Two Concepts of Liberty, Berlin non solo distingue la “libertà liberale” dall’idea premoderna di libertà come cittadinanza politica, ma la contrappone alla “libertà positiva”, nelle varie accezioni che questa nozione è andata 16 17 18

. Cfr. N. Bobbio, L’età dei diritti, cit., pp. IX, 58 ss. . Sul tema si veda M. Villey, La formation de la pensée juridique moderne, Paris, Montchrestien, 1975, trad. it. Milano, Jaka Book, 1986. . Cfr. E. Santoro, Autonomia individuale, libertà e diritti, Pisa, Ets, 1999, passim.

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assumendo negli ultimi due secoli entro il pensiero liberaldemocratico e democratico-socialista19. Il senso positivo della parola “libertà” deriva dall’aspirazione dell’individuo ad essere “padrone di se stesso’: in altre parole è la volontà non solo di essere libero, ma di essere “autonomo” e cioè dotato di una propria personale identità e di una capacità di progettare la propria vita e di giocare il proprio destino. La “libertà positiva”, in questo senso, implica la libertà dal bisogno come condizione della “libertà di adesione”, e cioè di ricca e intensa partecipazione alla comunicazione e all’interazione sociale. E ciò richiede che il soggetto disponga anche di un certo grado di riflessività cognitiva che gli consenta di analizzare criticamente gli inputs del suo processo di acculturazione e di controllare le spinte verso il conformismo che gli vengono dall’ambiente sociale. E’ chiaro che il complesso delle istanze normative coperte dall’espressione “libertà positiva” comporta che il soggetto sia titolare non solo di diritti di libertà, ma anche di diritti politici e di diritti sociali, per non parlare dei cosiddetti “nuovi diritti” (l’eguaglianza fra i generi, l’ambiente, i diritti degli stranieri e dei migranti, etc.). La garanzia giuridica dei fondamentali diritti di libertà a favore di cittadini che siano dotati di identità incerta e di scarsa autonomia rischia di essere un guscio vuoto: questo è vero in particolare entro le moderne società tecnologico-informatiche. In esse l’esercizio dei diritti rinvia necessariamente a quello che potremmo chiamare il fondamentale “nuovo diritto” dal quale dipende sempre più l’effettività di tutti gli altri diritti: l’habeas mentem, e cioè la capacità del soggetto di controllare, filtrare e interpretare razionalmente il flusso crescente delle comunicazioni multimediali che lo investe. Ma la “libertà positiva” richiede anche, come ha sostenuto Will Kymlicka20, che l’individuo sia tutelato non in quanto astratta monade esistenziale, ma in quanto appartenente ad una comunità culturale, nell’interazione critica con la quale la sua identità si costituisce e la sua capacità di auto-progettazione si alimenta. Ne nasce quella delicata e cruciale dialettica fra i diritti individuali e i “diritti collettivi” – Ignatieff la risolve in poche battute subordinando meccanicamente i “diritti collettivi” a quelli individuali21 che nessuna teoria liberale classica (nessuna teoria della “libertà negativa’) è in grado di impostare e di risolvere. E non è un caso che l’intera teoria dei “diritti collettivi” o “diritti di gruppo” – si pensi in particolare al diritto di parlare la propria lingua o il diritto di praticare la propria religione o il diritto a disporre delle risorse naturali della propria terra – sia ancora oggi gravemente carente all’interno della riflessione giuridica occidentale. E non mancano autori – Jürgen Habermas, fra gli altri – che sostengono l’impossibilità o l’inopportunità di una elaborazione di questi interessi collettivi nella forma positivizzata 19 20 21

. Cfr. I. Berlin, Two Concepts of Liberty, ora in I. Berlin, Four Essays on Liberty, Oxford, Oxford University Press, 1969, trad. it. Milano, Feltrinelli, 1989, pp. 185-245. . Si veda W. Kymlicka, Liberalism, Community and Culture, Oxford, Oxford University Press, 1998. . Cfr. M. Jgnatieff, op. cit., pp. 66-7.

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di diritti azionabili da soggetti individuali e/o collettivi entro giurisdizioni nazionali o internazionali22. Il riconoscimento e la protezione dei “diritti collettivi” – come autori non occidentali vanno ripetendo da decenni, con buona pace di Amartya Sen23 – restano una condizione essenziale dell’affermazione dei diritti individuali e nello stesso tempo sono in tensione con essi: si pensi alla protezione dell’identità e dell’autonomia politica dei gruppi linguistici e culturali minoritari e dei popoli più deboli – la “nazioni senza Stato” –, alla battaglia contro la discriminazione economico-sociale di intere categorie di lavoratori migranti all’interno delle società nazionali, alla lotta contro la povertà e le malattie epidemiche di estese aree continentali, alla liberazione dei paesi economicamente arretrati dall’indebitamento internazionale24. Per il liberale Berlin – e per il liberale Ignatieff, che ne ripete le tesi – questi problemi non hanno connessioni rilevanti né con la libertà delle persone, né con il corredo dei loro diritti. Per loro la “libertà negativa” è invece il solo ideale politico compatibile con una concezione autentica del pluralismo etico e filosofico, e con il riconoscimento del fallibilismo insuperabile delle nostre convinzioni filosofiche e religiose. E’ sostanzialmente per queste ragioni che contro le metafisiche razionalistiche, fautrici di una “libertà positiva” per tutti gli uomini, Ignatieff propone di contenere l’intera gamma dei diritti individuali (e sostanzialmente anche di quelli collettivi) nell’area della libertà di non essere ostacolati da poteri oppressivi nella sfera dell’integrità personale, dell’attività economica e della privacy. Ma, come è stato puntualmente osservato da Amy Gutmann25, per un verso questa proposta trascura, se non addirittura respinge, le aspettative di una larghissima parte degli abitanti del pianeta, per un altro verso disconosce un dato empirico difficilmente contestabile. Disconosce che il linguaggio dei diritti e le rivendicazioni dei diritti trascritte in documenti nazionali e internazionali oggi vanno molto al di là della sfera della semplice libertà di non essere impediti od oppressi. 22

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. Sul tema si veda J. Habermas, Kampf um Anerkennung im demokratischen Rechtsstaat, Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1996, trad. it. in J. Habermas, C. Taylor, Multiculturalismo. Lotte per il riconoscimento, Milano, Feltrinelli, 1998; E. Vitale (a cura di), Diritti umani e diritti delle minoranze, Torino, Rosenberg e Sellier, 2000; A. Facchi, I diritti nell’Europa multiculturale, Roma-Bari, Laterza, 2001, particolarmente alle pp. 21-36. . Ignatieff si richiama all’autorità di Amartya Sen: “nessuna grave carestia si è mai avuta in paesi con una forma democratica di governo ed una stampa relativamente libera” (cfr. M. Jgnatieff, op. cit., pp. 90-91). Si veda A. Sen, Development as Freedom, New York, Anchor Books, 1999, trad. it. Milano, Mondadori, 2000; A. Sen, Human Rights and Asian Values, nel sito . . Su questi temi si veda in particlare la Banjul Charter on Human and People’s Rights, approvata nel 1981 dall’Organizzazione dell’Unità Africana, ove i diritti economico-sociali, concepiti come diritti collettivi dei popoli, hanno una netta prevalenza nei confronti dei diritti civili e politici degli individui; altrettanto si può dire a proposito della Dichiarazione islamica di Tunisi, del 1992; cfr. R.J. Vincent, Human Rights and International Relations, Cambridge, Cambridge University Press, 1986, pp. 39-44. . Cfr. A. Gutmann, Introduction to M. Ignatieff, op. cit., pp. XI-XIV.

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Per quanto riguarda le dichiarazioni dei diritti si può far riferimento, per citare solo i più recenti, a documenti come il “Patto sui diritti civili e politici”, del 1966, il “Patto sui diritti economici, sociali e culturali”, anch’esso del 1966, la “Carta africana sui diritti umani e dei popoli”, del 1981, la “Dichiarazione islamica di Tunisi”, del 1992, e, buon ultima, la “Carta europea dei diritti fondamentali”, del dicembre 2000. E occorrerebbe aggiungere la lunga serie di documenti internazionali che “specificano” le tavole dei diritti individuali e collettivi: la “Convenzione sui diritti politici della donna” (1952), la “Convenzione per la prevenzione e la repressione del genocidio” (1948), “La dichiarazione dei diritti del fanciullo” (1959), la “Dichiarazione della concessione dell’indipendenza ai paesi e ai popoli coloniali” (1960), la “Convenzione contro la discriminazione razziale e l’apartheid” (1963)26. Sostenere che il linguaggio normativo di questi documenti riguarda soltanto, o anche prevalentemente, i diritti di libertà e di resistenza all’oppressione e non comprende invece l’intera gamma dei diritti civili, politici, sociali, culturali, economici, relativi alla bioetica, all’ambiente, alla protezione dei dati personali, non esclusi i cosidetti “diritti collettivi”, sarebbe puramente insensato. Quanto alle rivendicazioni dei diritti, basti ricordare, in merito ai diritti individuali, l’intera epopea della lotta per l’eguaglianza fra i generi condotta dai movimenti femministi, per tacere dei movimenti pacifisti e ambientalisti, le cui rivendicazioni vanno ben oltre la logica protoliberale della “libertà da impedimento”. E per quanto riguarda i “diritti collettivi”, emblematica è la resistenza del popolo palestinese contro l’etnocidio che lo Stato di Israele gli sta da decenni infliggendo con la complicità del mondo occidentale e di parte di quello arabo. In Palestina l’identità e la dignità di un popolo non viene barattata – si pensi alla tragica figura dell’attentatore suicida, ma non soltanto ad essa – con la più agevole soddisfazione di istanze individuali di integrità personale e di benessere privato.

3. L’universalità dei diritti di libertà negativa In chiave berliniana Ignatieff ha spogliato la dottrina dei diritti dell’uomo di ogni proiezione metafisico-religiosa e nello stesso tempo ne ha contratto la portata normativa nell’ambito della “libertà negativa’: è questa duplice operazione che a suo parere soddisfa le condizioni perchè i diritti dell’uomo godano di quel minimalist universalism che li può rendere compatibili con un’ampia varietà di civiltà, culture e religioni. I diritti dell’uomo possono riscuotere un consenso universale in quanto “teoria debole” (thin theory) che riguarda solo ciò che è giuridicamente valido (right), non ciò che è giusto (good) in asso26

. E’ stato Bobbio a mettere in luce la tendenza alla specificazione dei diritti nelle carte internazionali: cfr. N. Bobbio, L’età dei diritti, cit., pp. 29-33.

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luto. Una teoria che si limiti a definire le condizioni minime perché la vita sia degna di essere vissuta può essere accolta e praticata con fervore in ogni angolo della terra27. In questo modo, pensa Ignatieff, i diritti dell’uomo cesseranno di essere percepiti dalle civiltà non occidentali come una intrusione neo-imperialista, come una imposizione dello stile di vita, della visione del mondo e dei valori occidentali. I diritti diventeranno ovunque una forza “locale”, la forza delle persone deboli, delle vittime in lotta contro regimi dispotici e contro pratiche sociali oppressive. Saranno gli oppressi a impugnare con entusiasmo la bandiera dei diritti, non saranno gli occidenatali a doverla imporre con una qualche forma di costrizione. Il linguaggio dei diritti offrirà a tutti buoni argomenti e strumenti efficaci per “aiutarsi da se stessi”, per proteggersi come individui dall’ingiustizia, per rendersi, in quanto individui, titolari del diritto di “scegliersi la vita che si ritiene preferibile per se stessi”28. Ignatieff respinge esplicitamente la critica che può essere rivolta al suo approccio individualistico: quella di voler imporre a tutte le culture del pianeta la concezione occidentale dell’individuo. Ignatieff replica rovesciando tout court la critica: è esattamente l’individualismo morale il primo alleato della diversità culturale perché una filosofia individualistica non può che schierarsi a difesa dei modi diversi con cui ciascun individuo sceglie di vivere la sua vita. E’ dunque esattamente un rigoroso approccio individualistico che può conciliare l’universalismo dei diritti dell’uomo con il pluralismo delle culture e delle morali. In questo senso l’individualismo è secondo Ignatieff la sola replica vincente alle sfide che oggi vengono lanciate all’universalismo dei diritti da parte del mondo islamico e della cultura cinese-confuciana, oltre che da parte di correnti culturali occidentali di orientamento post-modernista e quindi pericolosamente inclini al relativismo etico29. La linea di difesa che Ignatieff si è scelta è a mio parere molto debole. Ha il solo merito di affrontare apertamente le critiche che il mondo non occidentale rivolge, soprattutto a partire dalla celebre Dichiarazione di Bangkok del 1993, alle pretese universalistiche dei valori etico-politici occidentali. Ma le scarne pagine che Ignatieff dedica sia alla cultura politica islamica, sia alla questione degli Asian values provano ancora una volta il pregiudizio etnocentrico dell’universalismo e del globalismo occidentale. Mentre si producono in proposte di unificazione normativa del mondo i Western globalists danno prova immancabilmente del loro limitato interesse – e della loro scarsa informazione – circa le tradizioni culturali, politiche e giuridiche con le quali vorrebbero (o dovrebbero) entrare in dialogo. La critica dell’universalismo occidentale, come è noto, aveva già trovato espressioni molto energiche sia nel mondo islamico – in particolare entro l’esperienza della rivoluzione komeinista –, sia nelle culture africane sub-sahariane. Oggi è l’Asia del Sud-Est e del 27 28 29

. Cfr. M. Jgnatieff, op. cit., p. 56. . Cfr. M. Jgnatieff, op. cit., pp. 7, 57. . Cfr. M. Jgnatieff, op. cit., pp. 57-8.

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Nord-Est l’area di più forte resistenza ideologica alla pressione della strutture giuridiche e politiche occidentali. In paesi come Singapore, la Malesia e la Cina la contrapposizione degli Asian values ai valori occidentali ha acquistato particolare vigore e prestigio grazie a figure di leaders carismatici come il re-filosofo singaporese Lee Kuan Yew e il premier malese Mohammed Mahathir30. Questi autori hanno dichiarato apertamente che i valori politici della modernità occidentale non possono essere accolti dalle culture asiatiche. Il rifiuto riguarda in particolare la tradizione liberaldemocratica e la dottrina dei diritti dell’uomo. Con la sua idea organica della famiglia e della società la tradizione confuciana offre a circa un miliardo e mezzo di persone il quadro ideologico più adatto per contenere gli effetti anomici dell’economia di mercato e per attenuare le spinte disgregatrici dell’individualismo e del liberalismo occidentale31. La tutela dei diritti dell’uomo e il principio dell’uguaglianza giuridica dei cittadini hanno d’altra parte scarso interesse per popolazioni che sono ancora in larga parte oppresse dalla miseria e che fino a poco tempo fa subivano inermi lo strapotere del colonialismo occidentale. Altri autori hanno sottolineato che la stessa idea occidentale di diritto soggettivo è estranea all’ethos confuciano. Il giurista cinese Chung-Schu Lo ha ricordato che nella lingua cinese non è mai esistito alcun lemma che corrisponda alla nozione occidentale di “diritto soggettivo’32. I primi traduttori cinesi di opere politiche e giuridiche occidentali, apparse in Asia nella seconda metà dell’Ottocento, hanno dovuto coniare un vocabolo nuovo, chuan-li (potere-interesse), per tentarne una traduzione concettuale in qualche modo sensata. Nella tradizione confuciano-menciana a dominare non è l’idea di diritto individuale ma lo è, al suo posto, quella di “relazione sociale fondamentale” (sovrano-suddito, genitori-figli, marito-moglie, primogenito-secondogenito, amico-amico). Lo stesso comportamento di sfida fra le parti di una controversia giudiziaria è lontano dalla cultura confuciana33. All’esasperata competizione fra individui nel tentativo 30

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32 33

. Anche i due giovani intellettuali cinesi, Son Qiang e Zhang Xiaobo, un tempo leaders della generazione di piazza Tien An Men, sono autori di un saggio, divenuto rapidamente un best-seller, dal significativo titolo The China that Can Say No. Sul tema si veda M.C. Davis (a cura di), Human Rights and Chinese Values. Legal, Philosophical and Political Perspectives, New York, Columbia University Press, 1995; W.T. de Bary, T. Weiming (a cura di), Confucianism and Human Rights, New York, Columbia University Press, 1998; E. Vitale, ‘Valori asiatici’ e diritti umani, “Teoria politica”, 15 (1999), 2-3, pp. 313-24; M. Bovero, Idiópolis, “Ragion pratica”, 7 (1999), 13, pp. 101-6; F. Monceri, Altre globalizzazioni. Universalismo liberal e valori asiatici, Catanzaro, Rubbettino, 2002. . Il giapponese Shintaro Ishihara, il malese Mahathir Mohammed, e i cinesi Son Qiang e Zhang Xiaobo sono rispettivamente autori dei volumi The Japan that Can Say No; The Asia that Can Say No; The China that Can Say No. Un’ampia bibliografia sul tema dei valori asiatici, a cura di Flavia Monceri, si trova nella rubrica “Diritto e politica nell’Asia postcoloniale” nel sito Jura Gentium, . Si veda anche il contributo critico di A. Ehr-Soon Tay, I ‘valori asiatici’ e il rule of law, in P. Costa, D. Zolo (a cura di), Lo Stato di diritto, cit., pp. 683-707. . L. Chung Sho, Human Rights in the Chinese Tradition, in Unesco, Human Rights: Comments and Interpretations, New York, Columbia University Press, 1949. . Cfr. L. Scillitani, Tra l’Occidente e la Cina: una via antropologica ai diritti dell’uomo, in A. Catania, L. Lombardi Vallauri (a cura di), Concezioni del diritto e diritti umani. Confronti Oriente-Occidente, Napoli, Edizioni

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di “ottenere ragione” e di vincere la causa prevalendo sull’avversario – atteggiamento caratteristico del formalismo giuridico occidentale – la finalità del “procedimento” nella tradizione confuciana è la conciliazione attraverso pratiche di compromesso e di mediazione. F. Jullien ha addirittura sostenuto che nella cultura cinese tra le esigenze della morale e l’imperativo del potere non c’è una mediazione del diritto che sia basata su regole generali e astratte e segua procedure burocratiche prestabilite34. La soluzione transattiva delle controversie si fonda sulla personalizzazione del singolo caso, non sulla sua spersonalizzazione formalistica. Oggi questa cultura giuridica profondamente anti-individualistica e antiformalista si rafforza, anziché estinguersi, in una vasta area di paesi asiatici che sono impegnati a riscattare la proria identità politica mettendo al primo posto l’armonia sociale, la famiglia, il rispetto dell’autorità, il senso di responsabilità dei funzionari pubblici. E un discorso convergente, anche se in termini molto differenziati, potrebbe farsi per una larga parte del mondo islamico e della culture autoctone africane e americane. In questa prospettiva l’Occidente viene percepito come il luogo dove i valori comunitari decadono sotto la spinta di un individualismo sfrenato e di una concezione politica che impone allo Stato il riconoscimento di un numero crescente di diritti individuali cui non corrisponde alcun obbligo, né alcun legame di solidarietà. Per neutralizzare queste critiche Jgnatieff ha a mio parere imboccato una strada senza uscite. Ha anzitutto trascurato le connessioni che la teoria dei diritti dell’uomo presenta con l’intero contesto della visione occidentale del mondo che oggi i processi di globalizzazione tendono a pantografare e a diffondere nel mondo intero sotto l’egida della “modernizzazione’: l’economia di mercato, la volontà di dominio sulla natura, la fede nello sviluppo tecnologico, l’efficientismo produttivo, la deriva acquisitiva e consumista, il culto della velocità. Ha poco senso supporre che la dottrina occidentale dei diritti dell’uomo possa essere accolta universalmente al di fuori del contesto dei processi di occidentalizzazione del mondo con i quali la globalizzazione in larga parte coincide. In secondo luogo Ignatieff ha trascurato l’intera problematica relativa alle modalità interculturali – non unilaterali o “umanitarie” – di una possibile “traduzione” del linguaggio occidentale dei diritti nei linguaggi delle diverse civiltà e culture. Si pensi ad esempio ai tentativi di Raimon Panikkar e di Ottfried Höffe di individuare nelle culture non occi-

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Scientifiche Italiane, 2000, pp. 385-94. . Cfr. F. Jullien, Un usage philosophique de la Cine, “Le debat” , ottobre 1996, p. 191; si veda inoltre: R. Panikkar, La notion des droits de l’homme est-elle un concept occidental?, “Diogène”, (1982), 120; D. Davidson, Asian Values and Human Rights. A Confucian Communitarian Perspective, Cambridge (Mass.), Harvard University Press, 1998; C. Taylor, Conditions of an Unforced Consensus on Human Rights, in J.R. Bauer, D.A. Bell (a cura di), The East Asian Challenge for Human Rights, Cambridge, Cambridge University Press, 1999; D.A. Bell, East meets West: Human Rights and Democracy in East Asia, Princeton, Princeton University Press, 2000.

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dentali degli “equivalenti omeomorfi” al linguaggio dei diritti e di tentare su questa base un “dialogo trascendentale’35. In realtà Ignatieff ha tentato di aprire una via “pragmatica” al fondamentalismo umanitario: ha tentato applicare dei filtri epistemologici e politici ad un tipico prodotto della cultura occidentale per farne una merce di più facile esportazione “umanitaria”. Ha ritenuto che, ridotti alla individualistica “libertà nagativa”, i diritti dell’uomo possano essere offerti (consigliati, raccomandati, imposti con mezzi giudiziari o militari) al mondo intero come un pacchetto sterilizzato, ormai disponibile a qualsiasi uso, perchè senza più stigmate occidentali, perché perfettamente fungibile e avalutativo. Paradossalmnete il risultato ottenuto è di segno opposto. Senza avvedersene -- e qui sta la sua ingenuità etnocentrica -- Ignatieff ha in realtà filtrato la quintessenza occidentale della dottrina dei diritti dell’uomo: la sua costitutiva, indelebile impronta individualistica e il suo nucleo più strettamente liberale, costituito dai diritti di “libertà negativa”. Si potrebbe aggiungere che, sul piano epistemologico, altrettanto ingenua è la pretesa di Ignatieff che una teoria normativa dei diritti dell’uomo possa essere costituita di proposizioni prescrittive così povere di implicazioni assiologiche e valutative da poter essere accolte entro qualsiasi possibile contesto etico-religioso.

4. Universalizzare la guerra umanitaria Nelle sue Lectures Ignatieff dedica molte pagine al tema della tutela coercitiva dei diritti dell’uomo, con riferimento in particolare all’uso della forza militare a fini umanitari, la cosiddetta humanitarian intervention. E non esita a esaltare la funzione repressiva dei Tribunali penali internazionali, in particolare del Tribunale penale interanzionale per la ex-Jugoslavia, di cui nasconde le gravi compromissioni con le autorità politiche e militari della Nato e degli Stati Uniti36. La posizione di Ignatieff su questo punto cruciale -- decisivo per cogliere il senso politico generale della sua proposta teorica -- è in contraddizione con l’intero impianto della sua thin theory in tema di diritti dell’uomo. Per quanto “debole”, per quanto concentrato sul tema della libertà e della integrità di tutti gli esseri umani, nessuno escluso, per quanto retoricamente impegnato a condannare ogni comportamento ostile nei confronti dei singoli individui da parte di poteri autoritari (non occidentali), l’universalismo di Ignatieff si allinea sine glossa con le guerre di aggressione che gli Stati Uniti e i loro alleati europei hanno condotto in questi anni in nome dei diritti dell’uomo, in particolare nei Balcani. Egli ne fa una esplicita apologia37. 35 36 37

. Cfr. L. Baccelli, Il particolarismo dei diritti, cit., pp.147-8, 181-2. . Sul tema mi permetto di rinviare al mio Chi dice umanità. Guerra, diritto e ordine globale, Torino, Einaudi, 2000, pp. 124-68. . Cfr. M. Jgnatieff, op. cit., pp. 37-48. Sulla “guerra umanitaria” per il Kosovo mi permetto di rinviare al mio Chi dice umanità. Guerra, diritto e ordine globale, Torino, Einaudi, 2000.

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Per Ignatieff è del tutto ovvio che quando uno Stato (non occidentale) mette a repentaglio la vita dei suoi cittadini violandone i diritti fondamentali, la sua sovranità non può essere rispettata (dalle potenze occidentali). La cosiddetta comunità internazionale ha il dovere di intervenire applicando sanzioni e, nei casi più gravi, usando lo strumento militare: “quando si ha a che fare con personaggi come Hitler, Stalin, Saddam Hussein o Pol Pot – scrive perentoriamente Ignatieff – nessuna pacifica soluzione diplomatica è possibile”38. La guerra dunque – anche la “guerra umanitaria” decisa illegalmente dalla NATO contro la Repubblica jugoslava – è una guerra legittima, eticamente irreprensibile se ha come motivazione la tutela dei diritti dell’uomo. E’ per antonomasia una “guerra giusta” perché non ha finalità di conquista territoriale, né di definitiva soppressione della sovranità di uno Stato. I paesi occidentali impegnati in interventi umanitari in un determinato paese – sostiene Ignatieff, dimenticando le basi militari che gli Stati Uniti hanno costruito nei paesi “assistiti” per ragioni umanitarie, a cominciare dal Kosovo – hanno sempre usato la forza delle armi per portare pace, democrazia e stabilità e poi si sono prontamente ritirati39. Sorprende che Ignatieff trascuri di dedicare una sola riga al tema della compatibilità dell’uso della armi di sterminio con la finalità della protezione dei diritti fondamentali degli individui umani. Ignatieff non sfiora neppure il problema se, in nome della (pretesa) tutela dei diritti fondamentali di alcuni individui sia lecito sacrificare la vita, l’integrità fisica, i beni, gli affetti, i valori di (migliaia di) persone innocenti, come è avvenuto in particolare nella guerra per il Kosovo. Nè si domanda quale possa essere l’autorità neutrale e imparziale – l’autorità universalistica, come universalistici egli pretende che siano i diritti dell’uomo – investita dell’autorità morale, prima ancora che politica, di decidere il sacrifico di persone innocenti. Ignatieff dimentica – ed è una dimenticanza imperdonabile in un fervido teorico della “libertà negativa” – che la guerra moderna è la più radicale negazione dei diritti degli individui, a cominciare dal diritto alla vita. La guerra moderna, condotta con armi di distruzione di massa sempre più sofisticate e micidiali, è un evento incommensurabile con le categorie dell’etica e del diritto. Essa ha per sua natura la funzione di distruggere – senza proporzioni, senza discriminazione e senza misura – la vita, i beni e i diritti delle persone, prescindendo da una considerazione dei loro comportamenti responsabili. Essa è in sostanza l’esecuzione di una pena capitale collettiva sulla base di una presunzione di responsabilità penale di tutti i cittadini di uno Stato. Dal punto di vista delle sue conseguenze la guerra moderna non è dunque facilmente distinguibile dal terrorismo. Ed è chiaro che questi argomenti sono tanto più stringenti se vengono opposti ai fautori dell’universalità dei diritti dell’uomo. 38 39

. Cfr. M. Jgnatieff, op. cit., p. 42. . Cfr. M. Jgnatieff, op. cit., pp. 38-9.

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Paradossalmente la sola preoccupazione di Ignatieff è che l’uso “umanitario” della guerra sia tempestivo, efficace, coerente e non tardivo e parziale, come – egli sostiene – è accaduto in Rwanda, in Bosnia e nel Kosovo. E’ necessario quindi che l’uso umanitario della forza militare non sia condizionato dagli interessi politico-strategici delle grandi potenze, che non sia neppure subordinato alla tutela della pace internazionale. A questo scopo occorre a suo parere che le Nazioni Unite vengano riformate in modo che il Consiglio di Sicurezza sia autorizzato ad usare sistematicamente la forza per fini umanitari, e non solo per la tutela della pace e dell’ordine internazionale. In questo modo la coincidenza fra l’universalità dei diritti e l’universalità degli interventi armati per la loro protezione renderebbe del tutto legittime, e altrettanto successful, le “guerre umanitarie”. E si eviterebbe così che “coalizioni di volenterosi” si trovino moralmente costrette ad usare la forza senza tener conto dell’autorità delle Nazioni Unite e quindi screditandole. Per quanto thin, l’universalismo etico-giuridico di Ignatieff tende, come ogni universalismo, verso l’intolleranza, l’aggressività, la negazione della diversità culturale e della complessità del mondo. L’intera operazione di “secolarizzazione” pragmatica della dottrina dei diritti dell’uomo proposta da Jgnatieff finisce in una ennesima esaltazione dell’uso della forza internazionale da parte delle grandi potenze. E’ una conclusione in linea con il “fondamentalismo umanitario” che oggi motiva le strategie egemoniche degli Stati Uniti e dei loro alleati europei, e che provoca in tutto il mondo la replica sanguinosa del global terrorism, incluso il terrorismo suicida. Nulla è più “idolatrico” (e tragicamente ingenuo) dell’apologia della guerra di aggressione condotta dalle potenze occidentali in nome dei diritti dell’uomo.

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Definizione e universalità dei diritti umani: oltre il minimalismo, verso la valorizzazione del contenuto essenziale Elena Pariotti*

1. Introduzione Le riflessioni che andrò elaborando in queste pagine considerano la nozione giuridica dei diritti umani e mirano a formulare una proposta relativamente al nesso tra la definizione di tali diritti e la possibilità di attribuire ad essi uno statuto di universalità. Più precisamente, parlando di definizione, intendo riferirmi agli aspetti filosofico-giuridici di essa. Tale proposta intende prendere le distanze dall’approccio minimalista adottato da filosofi quali Michael Ignatieff e John Rawls, ma anche da concezioni e giustificazioni dei diritti che finiscano con il dare sostegno tanto alla proliferazione dei diritti quanto a quella che può indicarsi come una dilatazione del loro contenuto. Sotto il profilo teorico-giuridico, muoverò da una definizione dei diritti umani che non posso qui argomentare1 ma che deve essere esplicitata, giacché ne discorsi intorno ai diritti le questioni lessicali e definitorie sono tra le più controverse e condizionano prese di posizione relative alla giustificazione filosofica dei diritti medesimi. Nella prospettiva da me accolta, i diritti umani sono pretese giustificate da forti ragioni morali ed espresse da norme giuridiche previste dall’ordinamento internazionale (in ciò distinguendosi dai diritti fondamentali, che invece riguardano il piano degli ordinamenti statali). In tale lettura, la dimensione morale giustifica il carattere inviolabile dei diritti; la dimensione giuridica è necessaria per rendere esigibile il loro contenuto e per individuare percorsi di garanzia sul piano dei rapporti civili ed istituzionali. Tenere congiunte le due dimensioni serve ad evitare sia l’appiattimento della forza ideale dei diritti umani sul livello di concretizzazione raggiunto in un dato contesto e in un dato tempo sia la loro * 1

Professore straordinario di Filosofia del diritto presso l’Università di Padova (Italia). E-mail: [email protected] Per la trattazione di questo punto mi sia permesso rinviare a Pariotti, 2008, cap. I.

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liquidazione come ideale astratto, privo di relazioni con la sfera del diritto positivo. In tal modo viene valorizzato, nel concetto di diritti umani, il carattere potenziale e dinamico. Precisamente l’interazione fra componente morale e componente giuridica spiega la costante potenzialità dei diritti, i quali sono sempre soggetti ad evolvere in nuovi modi; le specifiche modalità con cui i diritti si trasformano da ideale morale in concetto giuridico permettono di dar conto, poi, del loro dinamismo. Questa natura dinamica spiega, a sua volta, il carattere spesso parziale della positivizzazione dei diritti, carattere esprimentesi sia nella gradualità con cui la volontà politica è andata realizzando gli input giuridici in materia, sia nella gradualità con cui questi stessi input si sono andati formando, in un processo che vede nei soggetti produttori del diritto gli attori principali, ma nel quale non di rado anche gli organi giurisdizionali hanno svolto un ruolo determinante, essenzialmente rivolto alla concretizzazione dei principi per via interpretativa. I diritti umani sono costantemente a rischio, non solo per il mancato riconoscimento da parte di numerosi Stati, non solo per la carenza dei meccanismi di garanzia riscontrabile nel diritto internazionale, ma anche per ragioni legate alla loro giustificazione. Per un verso assistiamo oggi ad una vera e propria ipertrofia del concetto; dall’altro ciò non impedisce che esso continui ad accendere dibattiti concernenti lo statuto giuridico, il fondamento, la giustificazione, l’universalità2. E, questo, evidentemente, ne facilita gli usi retorici o strumentali. L’elevato grado di ambiguità concettuale che circonda l’idea dei diritti trova talora conferma nelle stesse fonti internazionali: per ragioni in parte legate alla necessità di facilitare l’accesso agli strumenti di tutela, che vengono così moltiplicati, e di effettuare opera di comunicazione e sensibilizzazione in materia, esse spesso adottano un linguaggio non standardizzato e vago. Anche per ciò, riconoscimento e garanzia dei diritti non potrebbero non configurarsi come processi inevitabilmente condizionati dalle concezioni dei diritti di volta in volta prevalenti sotto il profilo culturale.

2. L’universalità dei diritti umani e il minimalismo come teoria dei diritti La domanda relativa all’universalità dei diritti umani risulta concettualmente articolabile secondo tre fondamentali e distinte direttrici: quella della titolarità, quella dell’effettività e quella relativa alla giustificazione. Le domande più specifiche che si nascondono dietro all’interrogativo tendente a stabilire se i diritti umani siano davvero universali, possono essere così articolate: (a) spettano i diritti umani a tutti gli esseri umani in quanto tali? (b) sono i diritti umani effettivamente garantiti a tutti gli esseri umani in quanto tali; (c) sono i diritti umani giustificabili su basi accettate universalmente? 2

Nickel, 2003; Viola, 2006.

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Definizione e universalità dei diritti umani: oltre il minimalismo, verso la valorizzazione del contenuto essenziale

Con riferimento ai primi due profili, va senz’altro riconosciuto il deficit di effettività di cui i diritti umani soffrono, sia rispetto alle misure di tutela internazionale sia rispetto a quelle statali. Il riferimento alla dimensione normativa consente di concludere che le fonti internazionali riconoscono la titolarità dei diritti in senso universale, attribuendola all’essere umano in quanto tale, senza riferimento alla sua appartenenza ad una comunità politica. Ciò vale sia per i diritti civili che per i diritti sociali. La titolarità dei diritti umani può, quindi, dirsi universale. Altro discorso è quello che concerne l’effettività dei diritti. Essa, infatti, dipende dalla messa a punto di concreti meccanismi di garanzia, sia all’interno degli ordinamenti statali che per mezzo degli strumenti di tutela internazionale. Come si è visto, il livello di garanzia interno è legato alla specifica configurazione degli ordinamenti statali ed alla capacità del diritto internazionale di esercitare almeno una vis directiva su di essi e sulla cultura politica interna. Quanto alla tutela internazionale, va evidenziato che essa registra importanti successi ma anche che è contrassegnata da una forte gradualità. Questo spiega perché i diritti umani non siano universali nel senso dell’effettività. Consideriamo ora il profilo della giustificazione, sul quale intendo soffermarmi. È evidente che i diritti umani si presentano come concettualmente universali ma il percorso argomentativo teso a dimostrare tale universalità è costellato di difficoltà. Una strategia teorica per rispondere alle difficoltà dell’universalismo dei diritti umani, sia nel senso della loro effettività sia nel senso della loro giustificazione, è quella adottata da vari filosofi della politica e del diritto, che, su questo punto specifico, hanno dato vita alla c.d. prospettiva del «minimalismo»3. Essa si propone come risposta a diversi problemi che avvolgerebbero, oggi, la giustificazione ma anche la tutela dei diritti: essenzialmente l’«inflazione» dei diritti e la difficoltà di pervenire ad un consenso inter-culturale intorno ad essi. Si intende per «inflazione» dei diritti la loro eccessiva proliferazione, che si raggiunge quando un numero crescente e non sempre sufficientemente fondato di pretese viene ad essere formulato conferendo ad esse la forma di diritti inviolabili ed imprescrittibili, ma senza che sussistano le condizioni per garantirle e lasciando libero gioco alla loro mutua conflittualità4. Nell’intento di risolvere tale impasse, il minimalismo propone: (i) la riduzione del catalogo dei diritti umani ad un nucleo minimo, connesso al valore della libertà negativa (tesi deflazionista); (ii) la concezione dei diritti umani come strumenti di difesa («cassetta degli attrezzi») «che gli attori individuali devono essere liberi di usare se lo ritengono opportuno all’interno del più ampio contesto delle credenze culturali e religiose in cui vivono»5; (iii) l’idea che per la tutela internazionale dei diritti così intesi sia legittimabile 3 4 5

Ignatieff, 2001; Rawls, 1999; Douzinas, 2000. Alston, 1984; Raz, 2007. Ignatieff, 2001, pp. 59-60.

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l’uso della forza6. Sulla base di tali premesse, vengono esclusi dall’elenco dei diritti umani stricto sensu sia i diritti riconducibili alla sfera della libertà positiva sia i diritti sociali. Nella prospettiva rawlsiana, i diritti umani (i) fissano una serie necessaria, sebbene non sufficiente, di standard per la decenza delle istituzioni politiche e sociali; (ii) sono universali, nel senso che sono vincolanti per tutte le società, inclusi gli stati fuorilegge; (iii) non sono da ritenersi giustificabili sulla base di particolari concezioni comprensive (religiose, filosofiche o morali). La lista dei diritti ritenuti idonei a soddisfare questi requisiti è ridotta, nella convinzione che siano così potenziate chance per la giustificazione e l’applicazione, stante la diversità delle società domestiche. Tuttavia, se i rappresentanti delle società decenti devono poter appoggiare una lista di diritti umani che sia ridotta rispetto a quella difendibile nell’ambito delle società liberali (perché questa non sarebbe dalle prime accettata), resta da chiarire su quali basi — seguendo la terminologia rawlsiana — gli stati fuorilegge dovrebbero essere obbligati a rispettare tali diritti, se scaturiscono da principi sui quali società liberali e decenti non sono d’accordo. La scarsa importanza attribuita al momento della definizione del contenuto dei diritti finisce —pare — per rendere ancor più difficile la spiegazione del consenso che può maturare intorno ad essi. Rawls costruisce la concezione dei diritti umani nel tentativo di evitare di selezionare diritti che siano giustificabili solo a partire dalla concezione individualistica che sostiene gli stati liberali. La premessa da cui parte è che non esistano interessi umani non controversi, tali da giustificare una lista di diritti umani. Dunque i diritti umani individuati da Rawls non derivano da bisogni dell’individuo ma dalla struttura di fondo di società e dall’idea di cooperazione. Questa è la conseguenza dell’aver posto in posizione originaria al secondo livello non rappresentanti di individui ma rappresentanti di popoli. il ragionamento di Rawls contiene uno slittamento ingiustificato dall’idea secondo cui bisogna evitare di porre alla base dei diritti degli individui concepiti alla maniera del liberalismo all’idea secondo cui bisogna evitare di fare riferimento agli individui. Ma rinunciando a collegare i diritti umani ad una idea di umanità e di interessi essenziali dell’essere umano, Rawls finisce per proporre un’idea solo funzionale dei diritti: i diritti umani sono quei diritti la cui violazione giustifica l’intervento nelle questioni di un popolo/stato. Risulta inoltre implicitamente accolta e valorizzata, nella prospettiva minimalista, la tesi della potenziale conflittualità tra i diritti, un’idea centrale per due linee di riflessione teorico-giuridica, relative rispettivamente all’inflazione dei diritti ed alla definizione dello statuto giuridico dei diritti sociali. Nel primo caso, il fatto che i diritti possano confliggere è considerato elemento capace di contribuire al processo inflattivo, giacché il conflitto avrebbe un effetto negativo sulla loro esigibilità. Nel secondo caso, il carattere conflittuale dei diritti costituisce il punto focale all’interno di due argomenti distinti, ma orientati 6

Ignatieff, 2001; Rawls, 1999.

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alla medesima conclusione7. In base al primo argomento, la conflittualità viene rilevata nel rapporto tra diritti sociali e diritti civili: i primi veicolerebbero richieste che, per il loro contenuto e per i meccanismi di garanzia implicati, confliggerebbero con la logica sottesa ai diritti civili. L’idea è che l’ampliamento del catalogo dei diritti inevitabilmente depotenzi la garanzia degli stessi, per il venir meno di quell’opposizione tra singolo e Stato che è assunta essere non la base di alcuni diritti, ma l’essenza dei diritti tout court. In base al secondo argomento, la conflittualità è specificatamente rinvenuta all’interno delle richieste veicolate dai diritti sociali, richieste alle quali non sarebbe possibile, per il vincolo delle risorse scarse, dare completa soddisfazione8. Da questo punto di vista, una pretesa che non possa imporsi come inderogabile non sarebbe da considerarsi tale da generare un diritto. Si denuncia, da tale prospettiva, che la retorica dei diritti porta ad assolutizzare qualsiasi richiesta, conferendole la forma propria di un diritto non negoziabile, così riducendo però essenzialmente l’esigibilità dei diritti medesimi. La prospettiva difesa dal minimalismo recupera, così, la versione tradizionale del liberalismo, contro ogni declinazione sia liberal-democratica che liberal-socialista, aventi rispettivamente cura per gli elementi della partecipazione politica e della giustizia sociale. I pericoli che il minimalismo intende contrastare proponendo questa lettura dei diritti sono, da un lato, quello dell’abuso retorico dei diritti e, dall’altro, quello dell’individuazione etnocentrica dei valori soggiacenti alla giustificazione dei diritti ed agli effetti imperialistici di tale attitudine. Nell’analisi fornita dal minimalismo, il riferimento ai diritti umani per mascherare operazioni tendenti ad estendere l’egemonia politica e/o culturale dei Paesi occidentali è una realtà con cui la difesa teorica e pratica dei diritti deve confrontarsi9. La prospettiva ora ricostruita, per gli aspetti considerati, presenta a mio giudizio alcuni problemi. In primo luogo, è contestabile l’idea secondo cui la riduzione del catalogo dei diritti possa in qualche modo contribuire a risolvere i problemi connessi al deficit di consenso transculturale intorno alla loro giustificazione. La riduzione dei diritti non risolve, da sola, i problemi di giustificazione. In secondo luogo, proprio il valore della libertà — e segnatamente della libertà negativa da interferenze esterne — soggiacente ai diritti umani riconosciuti dal minimalismo, si configura come uno dei valori maggiormente controversi in senso transculturale. Infine, va segnalato che l’impostazione teorica del minimalismo veicola un punto di vista sui diritti che appare in controtendenza rispetto ai principi fissati sin dall’inizio del processo di codificazione internazionale, che individua nella democrazia e nella giustizia sociale le condizioni sempre più strutturalmente connesse alla promozione dei diritti umani. La «crisi dell’età dei diritti» non è da ricondursi alla proliferazione dei diritti, ma 7 8 9

Barberis, 2006; Kamm, 2001; Montague, 2001. Eddy, 2006. Algostino, 2005; Baccelli, 1999; Gambino, 2001; Zolo, 2000.

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semmai alla difficoltà di portare alla piena affermazione i principi fissati nel diritto internazionale dal 1945 in avanti, una difficoltà sempre più evidente dopo il 1989, con la fine del bipolarismo, e dopo l’11 settembre 2001, con le questioni aperte dal fenomeno del terrorismo internazionale10. Taluni aspetti della tendenza alla proliferazione dei diritti, pur non essendo la causa delle difficoltà associabili alla garanzia dei diritti, possono però illuminare alcuni nodi nevralgici del percorso di giustificazione. Per fare un esempio, e senza che possiamo addentrarci nella discussione del punto, questo è quanto accade rispetto ai «diritti culturali» intesi come categoria di «nuovi diritti». Essa tende a sintetizzare, infatti, in modo pregnante la persistente tensione, nel processo di giustificazione dei diritti umani, tra elementi universalistici ed elementi particolaristici. Nella misura in cui mira a stabilire se e come il linguaggio dei diritti possa essere usato per proteggere l’identità culturale, come pure se esista o meno una dipendenza dei criteri di giustificazione dei diritti da fattori culturali, il dibattito sviluppatosi intorno ai diritti culturali porta in evidenza alcuni essenziali problemi connessi alla costruzione del consenso transculturale sia all’interno delle singole comunità politiche che in ottica internazionale.

3. Il minimalismo come teoria dell’applicazione dei diritti Una posizione minimalista è rintracciabile anche sul terreno della teoria dell’applicazione dei diritti, in relazione ai problemi di giustificazione cui i diritti umani (e prima ancora i diritti fondamentali) sono esposti nelle comunità politiche sempre più contrassegnate dalla multiculturalità. Qui, i problemi emergenti rispetto alla determinazione del contenuto dei diritti esprimono, spesso, difficoltà relative all’interpretazione dei valori a questi sottesi, spingendo verso l’inclusione di nuovi valori o verso la ridefinizione dei valori espressi da principi costituzionali consolidati. La possibilità che i diritti fondamentali possano essere giustificati a partire da teorie etiche e da orizzonti culturali tra loro diversi, all’interno di società pluralistiche, è stata considerata e difesa da numerose teorie filosofiche contemporanee. Esemplare in tal senso risulta la proposta formulata da John Rawls nell’ambito del suo modello relativo al «liberalismo politico». La teoria del liberalismo politico intende offrire un resoconto dei criteri che garantiscono la stabilità di una società bene ordinata in un contesto pluralistico, ovvero in un contesto in cui non semplicemente esistono molte dottrine religiose, filosofiche e morali ma dove tali dottrine possono essere incompatibili e supposto che la loro esistenza sia un tratto irrinunciabile del tipo di Stato che si intende promuovere, lo Stato liberal-democratico. 10

Mazzarese, 2002c; 2006; Tedesco, 2009, pp. 10-15, 36-37.

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Ciò è possibile, secondo Rawls, adottando una concezione «solo politica» della giustizia, che esuli da qualsiasi riferimento a prospettive religiose, morali, filosofiche (è il c.d. requisito dell’«astinenza epistemica»). L’isolamento dei valori solo politici richiede una specifica procedura, valida nella deliberazione individuale come nella valutazione delle scelte pubbliche ed implicante: (a) la distinzione fra concezioni comprensive ragionevoli e non ragionevoli, a seconda che sia possibile o meno, al loro interno, distinguere gli elementi solo politici da quelli invece derivanti da assunti morali, religiose o filosofiche. La costruzione dei principi di giustizia in una società liberal-democratica richiede che le dottrine comprensive si connotino come ragionevoli, ovvero accettino di mettere tra parentesi gli elementi non politici; (b) il ricorso al consenso per intersezione («overlapping consensus») ed alla «ragione pubblica» nell’argomentazione riguardante le scelte pubbliche; (c) l’«equilibrio riflessivo» come metodo per l’individuazione dei valori utilizzabili nel dibattito pubblico11 (Rawls, 1993). Dato il pluralismo ragionevole, il fine del liberalismo politico è di realizzare le condizioni per creare una base pubblica ragionevole di giustificazione per le questioni politiche fondamentali. Se non v’è nessuna dottrina religiosa, filosofica o morale condivisa da tutti i cittadini, la concezione della giustizia affermata in una società democratica bene ordinata deve essere una concezione limitata a ciò che Rawls chiama il «dominio del politico». Obiettivo del liberalismo politico è di regolare la convivenza tra «diversi morali» alla luce esclusiva dei principi di giustizia, con il raggiungimento del consenso per intersezione ed attraverso lo strumento della ragione pubblica. L’esempio per eccellenza del modus operandi della ragione pubblica è da Rawls ritrovato nelle deliberazioni della Corte suprema. In un regime costituzionale che preveda il judicial review, la ragione pubblica – sostiene Rawls – è la ragione della Corte Suprema12. I giudici, i quali non applicano le loro personali convinzioni morali, ma esprimono le concezioni etico-politiche condivise dalla comunità politica di riferimento, esercitano la ragione pubblica. Nella prospettiva liberale à la Rawls, apprezzabile è l’idea che le concezioni del giusto debbano strutturarsi in vista del loro inserimento all’interno di diverse concezioni del mondo senza generare contraddizioni. Tuttavia, questo non potrà che essere un criterio regolante il confronto tra diverse concezioni politiche, in quel processo di reciproca correzione e di progressivi aggiustamenti che dovrebbe contraddistinguere la formazione del consenso democratico intorno al giusto entro società multiculturali. L’autonomia del politico dalle dottrine comprensive dovrebbe cessare di essere, così, una assunzione da cui dipende il processo di costruzione del consenso per intersezione, per diventare, invece, il risultato del dialogo tra le diversità, le quali — non va dimenticato — riguardano anche la 11 12

Rawls, 1993. Rawls, 1993, p. 198.

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sfera delle concezioni del giusto. Se non si vuole vanificare la funzione dell’uso pubblico della ragione, non si può assumere, come base per il suo esercizio, ciò che deve invece venire da esso convalidato. La difesa di un multiculturalismo «moderato», che non si identifichi con il relativismo richiede il ricorso a modelli di ragionamento pratico finalizzati al raggiungimento dell’accordo intorno al giusto ed all’analisi dei possibili rapporti tra concezioni morali e concezioni politiche Questo difficile equilibrio è oggi spesso la sfida insita nell’argomentazione in rapporto ai diritti. È allora opportuno soffermarsi sul rapporto tra ragione pubblica, diritti e deliberazione delle Corti chiamate ad interpretare la Costituzione. In Rawls il riferimento agli elementi costituzionali essenziali (i diritti e le libertà fondamentali) consente di evidenziare la natura dinamica della ragione pubblica collegata ai diritti. Essa può dirsi dinamica perché i contenuti che di volta in volta individua sono il frutto di attività interpretativa. Diritti fondamentali e diritti umani si configurano come dei candidati ideali a costituire l’orizzonte entro il quale reperire, per via interpretativa e per successive concretizzazioni, i punti di partenza del costante processo dialogico ed argomentativo in cui si manifesta l’uso pubblico della ragione, ma a patto di dare effettivo rilievo, appunto, al momento interpretativo. La formula costruttivistica così utilizzata, al fine di configurare e giustificare l’identità politica in contesti multiculturali, pare più rigorosa rispetto al costruttivismo elaborato all’interno della proposta rawlsiana. Il perimetro al cui interno prende forma il processo di giustificazione delle concezioni etico-politiche è rappresentato dai diritti fondamentali e dai diritti umani, i quali, però, lungi dall’esprimere direttamente ed univocamente una concezione di società e di persona predeterminata, costituiscono degli schemi concettuali il cui contenuto ha da essere costantemente precisato e che invitano a discutere, su basi tendenzialmente universali, le possibili concezioni della persona e della società meglio in grado di esprimere quel contenuto. Anche Rawls riconosce ai diritti fondamentali un ruolo chiave nella configurazione della ragione pubblica. Tuttavia, il modo in cui Rawls opera la connessione tra diritti fondamentali e ragione pubblica risulta compromesso dall’indebolimento, entro la teoria del liberalismo politico, del peso attribuito alla giustificazione dei valori. Affermare che la ragione pubblica consente a più dottrine comprensive di condividere un nucleo di principi politici (i diritti e le libertà fondamentali, la loro priorità nell’agenda politica, la cooperazione e la reciprocità) indipendentemente dalla giustificazione che tali principi possono ricevere all’interno delle varie dottrine comprensive significa ritenere che tali principi siano individuabili prima di ogni comprensione e interpretazione. Ma questa premessa è discutibile. Al contrario, si può sostenere che l’individuazione del contenuto dei

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diritti richieda un costante impegno interpretativo. Interpretazione e giustificazione non sono operazioni estrinseche rispetto alla determinazione del contenuto dei diritti13. Un’ulteriore versione del minimalismo in materia di applicazione dei diritti (fondamentali), denominata «judicial minimalism», difende l’opportunità che i giudici (e in particolare i giudici delle Corti di rango costituzionale), laddove si imbattano in questioni controverse — a causa del carattere indecidibile proprio dei valori in gioco —, si astengano dal prendere posizione sugli aspetti teorici e sui principi. Il loro giudizio deve lasciare le controversie indeterminate per quanto attiene agli aspetti teorici in essi contenuti (shallowness) e affrontare esclusivamente, del caso, gli aspetti più circoscritti (narrowness). Dati questi vincoli, nell’ottica dei fautori di tale approccio, si ottengono due risultati. In primo luogo, si tende a contenere la portata applicativa del principio decisionale adottato per casi analoghi (nei sistemi di common law), così da ridurre l’influenza del giudice sulla concretizzazione dei principi. In secondo luogo, le corti perseguirebbero, nelle proprie decisioni, un consenso che è solo parzialmente sostenuto da ragioni teoriche (si parla, in tal senso, di «incompletely theorized agreements»). Il minimalismo giudiziale viene in questa prospettiva equiparato ad una sorta di «uso costruttivo del silenzio» da parte dei giudici, motivato da ragioni di ordine pragmatico, strategico o per favorire la democrazia, nel senso di favorire la possibilità che le questioni di principio siano discusse nelle sedi rappresentative della volontà del popolo14. Ebbene, se sul terreno della decisione giudiziale le cose stessero in questi termini, se quella offerta dalle tesi del minimalismo giudiziale fosse una descrizione plausibile di ciò che i giudici fanno, allora si potrebbe escludere che tale terreno costituisca — come vorrebbe Rawls — il migliore esempio del funzionamento della ragione pubblica. Per la verità, il rapporto istituibile fra le nozioni di incompletely theorized agreements e overlapping consensus si presta a differenti letture. Da un lato, esse sembrano parimenti rispondere all’esigenza di introdurre stabilità e consenso sociale laddove coesistano differenti concezioni «comprensive». Per altro verso, mentre il modello costruito intorno alla nozione di overlapping consensus parrebbe affermare che, anche in assenza di un consenso su questioni specifiche, si può pervenire ad un accordo sul piano più astratto dei principi, il modello incardinato sulla nozione di incompletely theorized agreements afferma esattamente il contrario, ossia che l’accordo raggiungibile riguardo agli aspetti più concreti delle questioni sia possibile, anche quando manchi una convergenza nella ricostruzione degli aspetti più generali e dei principi in gioco Mi pare che la prospettiva del «judicial minimalism» incorra nella medesima difficoltà individuata rispetto alla prospettiva rawlsiana, una difficoltà che è infatti insita in ogni tentativo di negare una reciproca implicazione tra il momento della teoria ed il 13 14

Viola, 1989, pp. 71-82; 1990, pp. 131-152; 1996; 2000, p. 115. Sunstein, 1996, pp. 35-61; 1999, pp. ix-xi, 4, 5, 9, 10-11; contra Dworkin, 1996.

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momento della pratica. È assai discutibile l’idea che si possano individuare, all’interno di una controversia, delle questioni teoriche legate all’interpretazione dei diritti e dei valori ad essi retrostanti, e che tuttavia si possano lasciare irrisolte. Anche nel momento in cui ritengano o dichiarino di non effettuare alcun theoretical statement, infatti, i giudici implicitamente assumono una posizione e la trasferiscono nella decisione del caso. Parimenti discutibile è l’idea che si possa raggiungere un accordo intorno ai principi senza che la determinazione del loro contenuto implichi un qualche riferimento alla loro giustificazione. Non convince, allora, né la soluzione delle teorie minimaliste dei diritti, fondata sulla riduzione del catalogo e sull’indebolimento (improntato ad un chiaro contestualismo) degli argomenti per la loro giustificazione, né la risposta del minimalismo giudiziale, che punta a neutralizzare il ruolo dei valori etico-politici nell’interpretazione e nell’applicazione dei diritti. La perenne sfida alla giustificazione dei diritti consiste proprio nella ricerca degli argomenti che siano (a) in grado di dimostrare perché i diritti umani meritino di essere tutelati; (b) capaci di guidare nell’individuazione del contenuto di tali diritti nei concreti e mutevoli contesti in cui i soggetti umani vengono a trovarsi; (c) idonei ad orientare nel bilanciamento di tali diritti, quando entrino in reciproco conflitto. Questo significa prendere sul serio la loro universalità.

4. Contro la proliferazione dei diritti e l’eccesso nella giuridificazione dei valori: i diritti umani come diritti caratterizzati dal contenuto essenziale La proliferazione dei diritti, di cui si è più volte parlato in queste pagine, tende ad innestarsi sulla tendenza, tipica del nostro tempo, verso la giuridificazione dei valori etico-politici. Si intende per «giuridificazione dei valori» l’attitudine ad assegnare forma giuridica ai valori, come se ciò potesse costituire una sorta di antidoto nei confronti della frammentazione morale e dare loro una «patente» di oggettività. In una certa misura, la trasposizione in forma giuridica dei valori etico-politici è un processo fisiologico nell’ambito dei diritti fondamentali e dei diritti umani. Tuttavia è necessario domandarsi quali conseguenze questo passaggio determini. Domandarsi questo equivale a chiedersi quale sia la specifica funzione della forma giuridica nella nozione dei diritti. Possiamo escludere che tale funzione consista nel conferire al valore incorporato nella norma giuridica un valore assoluto: benché inviolabili, i diritti umani ammettono limitazioni, nelle forme della restrizione del loro godimento e del bilanciamento. La forma giuridica serve, piuttosto, a creare un percorso per esigere il rispetto del valore o della pretesa rilevanti. E, ancor prima, conferisce ad essi la forza di prevalere su argomenti di

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altro tipo. In questo senso, i diritti sono, per usare l’espressione di Ronald Dworkin, delle «carte vincenti»15. La forza che la forma giuridica pare conferire ai diritti induce alla loro proliferazione. Potersi appellare ad un diritto per rivendicare una certa pretesa o il rispetto di un certo valore significa poter assegnare ad essi un peso almeno prima facie superiore ad argomenti, interessi, preferenze di tipo diverso. Questo può dirsi anche a proposito del ruolo assegnato al diritto (in senso oggettivo). A fronte della crescente complessità delle «forme di vita» diffuse entro le comunità politiche liberal-democratiche, al diritto è sempre più spesso assegnata una funzione di integrazione. A fronte del pluralismo etico si è tentati di trasporre con troppa facilità le visioni del mondo e le concezioni morali in forma giuridica. Ma il risultato può essere solo illusorio. L’integrazione cui si può pervenire grazie al diritto non potrà mai assumere, direttamente, una valenza né sociale né politica: sarà sempre e solo un’integrazione giuridica, un’integrazione, cioè, che, se ben ideata e condotta, può favorire o riflettere l’integrazione sociale e politica, potrà esserne una condizione ma che mai potrà sostituirle. Peraltro, non è da sottovalutare la possibilità che un modello in cui al diritto sia affidato il compito di armonizzare i conflitti sociali, culturali o morali comporti una riduzione della partecipazione al concreto formarsi dei valori politici e, in definitiva, una limitazione del pluralismo. Il diritto è e deve essere anche forza: per questo non andrebbe confuso con la morale, se non si vuole che quest’ultima risulti, in definitiva, imposta16. Questo è il senso profondo della tesi affermante la separazione tra diritto e morale, che è all’origine dello stato liberale. E tuttavia molte sfere del diritto, e quella relativa ai diritti umani o ai diritti fondamentali ne è un importante esempio, non possono recidere il proprio legame con la morale. L’inflazione dei diritti, certo, è in qualche misura un fenomeno connesso al loro dinamismo17, ma è anche ciò che istituisce legami sempre più forti tra contenuto dei diritti e specifici contesti socio-culturali. Così intesi, i diritti perdono la loro connotazione di diritti umani, pongono più raffinati problemi di giustificazione e rischiano di farsi strumenti di imperialismo culturale e morale. L’inflazione dei diritti rappresenta, allora, un fenomeno negativo non solo perché può minacciare la forza del linguaggio dei diritto, ma soprattutto perché porta con sé l’idea che l’intero ambito della giustizia e dei valori possa essere espresso tramite tale linguaggio. E invece la giustizia, i valori etico-politici, non sono circoscrivibili ai diritti, e tantomeno ai diritti intesi come legal rights. Non tutti i valori, le pretese, i bisogni o le preferenze debbono necessariamente essere tradotti nel linguaggio dei diritti morali; non tutti i diritti morali debbono as15 16 17

Dworkin, 1977; 2007, p. 470. Hart, 1963. Alston, 1984, p. 607.

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sumere forma giuridica e positivizzarsi; non tutti i diritti positivi sono da intendersi come diritti umani. La via d’uscita al problema tocca inevitabilmente il tema della definizione dei diritti umani. Se i diritti umani sono concettualmente universali, allora bisognerà quanto meno contenere la loro proliferazione. Se non facciamo questo, rischiamo di inventare diritti che però non potranno tecnicamente valere per tutti né essere garantiti a tutti. Ma non è possibile porre un argine all’inflazione dei diritti senza aprire il capitolo, assai problematico, della loro definizione. Mi riferisco, invece, alla definizione in chiave filosofica, che ha il compito non di stabilire la forma che i diritti debbono avere per qualificarsi come diritti umani, quanto piuttosto di indicare i criteri-chiave per l’individuazione del loro contenuto e per stabilire quali dovrebbero essere i diritti umani, anche a prescindere da ciò che gli ordinamenti giuridici prevedano. Avanzo una proposta: i diritti debbono intendersi come minimi, non tanto rispetto all’elenco, quanto rispetto al contenuto18. La teoria dei diritti deve resistere alla tentazione di includere in essi qualsivoglia aspettativa, obiettivo, pretesa, bisogno19. Deleterio è, invece, che le incertezze e le ambiguità teoriche siano lasciate agire come fattore di moltiplicazione per la mancanza di volontà politica o per le difficoltà tecnico-pratiche rispetto alla garanzia ed all’attuazione di questi ultimi. A ben guardare, il problema non è rappresentato solo dalla proliferazione dei diritti, ma anche dalla loro dilatazione interna, una sorta di ipertrofia del loro contenuto. Il modo migliore per contenere, allora, tanto la proliferazione quanto la dilatazione interna non è quello di stabilire una priorità per questa o quella categoria di diritti, ma quello di individuare come diritti umani solo quei diritti che siano caratterizzabili secondo un contenuto minimo, la cui garanzia appaia indispensabile come condizione per una vita umana degna. Una definizione dei diritti umani che mi pare, nella sua semplicità, accoglibile afferma che essi sono strumenti (morali e giuridici) per garantire ciò la cui privazione costituisce un grave affronto alla giustizia, ciò che è dovuto ad ogni essere umano semplicemente in quanto umano20. Ancora, i diritti umani possono essere, in tal senso, anche definiti come strumenti di difesa dall’oppressione21. Il significato da assegnare all’idea di oppressione è, tuttavia, oggi decisamente più ampio rispetto a quello diffuso nel contesto che accompagnò la genesi concettuale dei diritti umani: l’oppressione assume oggi certamente la forma della privazione o della limitazione arbitraria della libertà da parte del potere politico, ma ha a che vedere anche con nuove forme, spesso più diffuse e più sottili, magari legate al potere acquisito da attori privati (imprese transnazionali, gruppi terroristici), a nuovi scenari costruiti dal mutamento delle attività economiche, dallo sviluppo tecnologico, 18 19 20 21

Cranston, 1973; Nickel, 2003, Miller, 2007. Gearty, 2006, p. 145. Cranston, 1983, p. 36; Griffin, 2001-2, p. 2. Künnermann, 1995, p. 323.

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dal mutare delle relazioni tra gli Stati. Di più: l’oppressione non riguarda solo la libertà, ma anche l’impossibilità di accedere ai mezzi materiali per la sussistenza22. In questo senso, i diritti umani possono essere considerati come connessi ai bisogni essenziali dell’uomo23. Il rapporto tra diritti e bisogni è questione su cui è da tempo in corso un ampio dibattito. Molti negano sia la correttezza che l’opportunità di questo nesso, ritenuto responsabile di introdurre nel linguaggio dei diritti una inaccettabile esposizione al paternalismo, strutturalmente antitetico agli obiettivi di emancipazione tipici dei diritti24. Peraltro, al di là di questa critica, di per sé, il riferimento ai bisogni non agisce necessariamente in senso limitativo rispetto al contenuto che può comunque essere attribuito ai diritti. Tuttavia, tale concetto si presenta come un buon candidato almeno per contenere quel fenomeno di «dilatazione» dei diritti e agisce limitando non tanto il catalogo dei diritti individuabili, quanto piuttosto lo spettro del loro contenuto. Il concetto di bisogno, per quanto non esente da una strutturale vaghezza e senz’altro mutevole, può meglio di altri giustificare i diritti come strumenti per la garanzia di una «vita minimamente decente», che è certamente altro da una «vita fiorente»25, ma insieme anche condizione imprescindibile di quest’ultima26. Il concetto in esame sembra prestarsi ad essere considerato secondo la struttura dei cerchi concentrici, che appare utile quando si abbia a che fare con i problemi legati all’individuazione ed alla garanzia dei diritti. Sotto il profilo della giustificazione, poi, non necessariamente il riferimento ai bisogni legittima forme di ascrizione paternalistica dei diritti. Questo dipende non tanto dal piano concettuale, relativo alla definizione dei diritti, quanto piuttosto al piano delle scelte operative responsabili della loro implementazione. Vi sono, peraltro, alcune ragioni che rendono una definizione di questo tipo apprezzabile e senz’altro preferibile ad altre, che pure mirano a restituire ai diritti umani un carattere universale ed essenziale. Un tentativo condotto in questo senso, e che in parte riprende alcuni elementi discussi nella prospettiva rawlsiana, è quello che connota i diritti umani come «gli unici limiti morali alla sovranità degli Stati»27. In questa prospettiva, i diritti umani nulla hanno a che vedere con la democrazia, con un certo grado di benessere, con valori culturalmente condizionati, in altre parole con una concezione thick dei diritti umani. Per questo essi possono configurarsi come ciò la cui violazione permette una legittima intromissione negli affari di uno Stato da parte di altri Stati28. L’ampio dibattito sviluppatosi intorno a questa tesi si è concentrato a stabilire, ad esempio, se il rispetto dei diritti umani sia una condizione solo necessaria o anche sufficiente per es22 23 24 25 26 27 28

Dworkin, 2007; Pogge, 2001; 2002. Miller, 2007, p. 434. Waldron, 2000, p. 129. Miller, 2007, p. 435. Nickel, 2005. Raz, 2007, p. 258. Rawls, 1999; Raz, 2007.

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cludere la legittimità dell’intervento negli affari di uno Stato29, se i diritti umani possano essere legittimamente imposti con la forza30, le implicazioni che questa idea dei diritti umani può avere per il diritto alla democrazia31. A me pare, tuttavia, che il problema sia innanzitutto un altro e riguardi proprio la possibilità di trovare in questa caratterizzazione funzionale dei diritti la loro stessa definizione o anche solo dei criteri per giungere ad una definizione. Ritengo che, non meglio precisati e — soprattutto —non giustificati sulla base di criteri indipendenti dalla funzione loro affidata, i diritti umani non possono davvero svolgere tale funzione. Scambiare questa caratterizzazione per una vera e propria definizione, peraltro, rende impossibile formulare un punto di vista critico nei confronti del modo in cui, di fatto, ai diritti ci si appella per giustificare le scelte dei governi o della Comunità internazionale. Perché dovrebbero e potrebbero essi costituire dei parametri per una limitazione moralmente legittima alla sovranità statale? Se si può porre questa domanda, significa che (a) quella qui discussa non può ritenersi una definizione dei diritti e (b) ogni definizione rinvia, inevitabilmente, ad una giustificazione. Inoltre, proprio perché il contenuto assegnabile ai diritti tende ad espandersi, non possiamo in realtà essere certi che uno Stato li garantisca tutti e/o pienamente. Tale idea potrebbe rivelarsi, quindi, pericolosa, potendo legittimare con un grande margine di discrezionalità interferenze negli affari interni32. Così davvero la teoria rischia di assegnare ai diritti il ruolo di potenziali elementi di illegalità entro l’ordine internazionale. Preferibile è, allora, andare al punto decisivo della questione e proporre l’idea dei diritti umani come diritti definiti sulla base di un contenuto minimo, connesso a bisogni essenziali dell’essere umano in quanto tale, un contenuto che — certo — può anche essere ampliato, a seconda delle possibilità dello Stato e dei modelli sociali, culturali ed istituzionali, ma che individua un livello al di sotto del quale – questo è ciò che maggiormente conta – non è lecito (in conformità a principi morali e norme giuridiche) scendere. Una definizione di questo tipo consente di mantenere (recuperare?) la forza specifica dei diritti umani, soprattutto quando assumono forma giuridica, consistente nella loro capacità di fungere da risorsa rivoluzionaria, mirante all’emancipazione dell’essere umano. Ciò non implica affatto che il loro contenuto debba farsi sempre più esigente e sofisticato. Le situazioni in cui, oggi, la dignità dell’essere umano è violata e dove l’emancipazione rappresenta l’obiettivo da raggiungere comportano, invece, a mio parere un contenuto essenziale, ma applicato su scala globale. Nel contesto attuale, in cui gli ordinamenti giuridici risultano sempre più aperti e talora anche «porosi», in cui il potere si organizza non solo verticalmente e accentrandosi secondo precise forme istituzionalizzate, ma anche in forma di rete, secondo l’idea della 29 30 31 32

Tinnelvelt, 2002, pp. 261-268. Nickel, 2007. Bernstein, 2007. Nickel, 2003.

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Definizione e universalità dei diritti umani: oltre il minimalismo, verso la valorizzazione del contenuto essenziale

governance globale, lasciando ampi spazi all’iniziativa e all’influenza di attori privati, non è più possibile affermare che i diritti umani siano inutili o addirittura pericolosi perché fondati sulla «astratta nudità dell’essere-nient’altro-che-uomo»33, una condizione avvicinabile a quella del «selvaggio nudo» «poiché soltanto i selvaggi non hanno più nulla da esibire all’infuori del minimo dell’origine umana»34. I diritti umani non sono i diritti di chi è diventato «un essere umano e nient’altro»35. Non possiamo affermare questo perché l’alternativa non può essere vista nel rafforzamento dello Stato e della cittadinanza e perché la lotta per l’affermazione dei diritti umani, soprattutto nel modo in cui risulta strutturata sotto il profilo giuridico, non esclude affatto la protezione di sfere valoriali più ampie, legate a quella che Arendt chiama la condizione «specificatamente umana»36. Promuovere la fioritura umana in senso completo rimane un obiettivo meritevole di essere perseguito, ma nulla toglie all’urgenza reclamata dai diritti umani intesi secondo un profilo “essenziale” e nulla toglie all’importanza dei bisogni che l’essere umano ha solo in quanto tale. In sintesi, i diritti umani sono da intendersi come quei diritti senza i quali la condizione umana diviene insopportabilmente peggiore, ma che non possono e non debbono aspirare ad esprimere tutto ciò che la fioritura della personalità umana può richiedere, in tempi, in luoghi e in culture diversi. Se si è consapevoli che la giustizia ha un contenuto assai più ampio, anche in relazione al pluralismo delle culture, che gli obiettivi della morale, della politica e del diritto non debbono assolutamente essere ricondotti allo spazio, ben più circoscritto, dei diritti, né tantomeno dei soli diritti umani, allora avremo collocato questi ultimi in una posizione che li rende idonei alla loro intrinseca universalità, sul piano del riconoscimento, dell’applicazione e della giustificazione.

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A Eficácia Erga Omnes das Normas Internacionais que Tenham por Objeto Direitos Humanos Felipe Arady Miranda*

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1. Introdução O presente trabalho objetiva analisar as obrigações internacionais que tenham por objeto direitos humanos e que tenham eficácia erga omnes. Ou seja, as normas de direito internacional que impõem obrigações cuja eficácia vinculativa não fique adstrita a uma relação bilateral entre Estados, podendo, no caso de violação de uma dessas obrigações, qualquer Estado que esteja vinculado à norma agir conforme for de direito. Ressaltamos neste momento que o objeto de estudo são as normas internacionais que tratem de direitos humanos e que tenham eficácia erga omnes, e não os tratados internacionais como um todo. Para uma melhor compreensão, analisaremos as normas internacionais que originam obrigações erga omnes, e posteriormente os direitos humanos que mereçam tal proteção a nível internacional, concluindo pela forma de proteção dos direitos humanos através das normas internacionais. Insta destacar ainda que no presente trabalho aborda-se a expressão “Estado”, muitas vezes, para mencionar “pessoa jurídica de direito internacional”, a exemplo das Organizações Internacionais. Optou-se por utilizar a referida expressão por uma questão didática, entretanto, o presente estudo destina-se a análise das obrigações impostas a toda e qualquer pessoa de direito internacional que tenha condições de manter relações jurídicas obrigacionais a nível internacional.

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Especialista e Mestrando em Direitos Fundamentais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Ele também é advogado atuante e tem artigos publicados em revistas internacionais

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2. Aspectos Gerais sobre Normas que Criam Obrigações Internacionais Antes de adentramos a problemática instada no presente trabalho, importante que façamos uma diferenciação e conceituação das espécies de normas internacionais correlatas, para que possamos desenvolver raciocínio coerente à conclusão. Destarte, passamos a análise de algumas espécies de normas:

2.1. Normas Costumeiras E Normas Convencionais As obrigações vigentes no âmbito internacional podem ser costumeiras, oriundas do costume, bem como convencionais, oriundas de acordos entre Estado. As obrigações convencionais implicam na necessidade de no mínimo duas pessoas de direito internacional. Como o próprio nome diz, as obrigações convencionais são resultantes da convenção entre duas ou mais pessoas de direito internacional, sobre determinado assunto, e que, em razão disso, ficam as partes obrigadas a cumprir determinada norma. As obrigações costumeiras gerais estabelecem vínculo com todos os Estados, independente deste ter participado da sua formação, ou de ter expressado seu consentimento à obrigação1. Com relação ao vínculo resultante das normas costumeiras, se a prática internacional determina que o Estado haja de determinada forma, fica este vinculado ao cumprimento. Neste caso não há o que se falar em hipótese de imposição de obrigação de respeito independente da vontade do Estado; o entendimento é o de que o costume trata-se de uma prática geral acompanhada de convicção da sua obrigatoriedade2. O mesmo não incide quando se analisa sob a ótica das normas convencionais, uma vez que estas se constituem em um acordo de vontades, e regra geral só vinculam as partes integrantes do acordo, não havendo assim, como obrigar um terceiro Estado ao cumprimento de determinado preceito que não consentiu.

2.2. Normas Bilaterais e Normas de Eficácia Erga Omnes Nas normas bilaterais o Estado tem uma obrigação para com outro Estado, estabelecendo vínculo tão somente entre estes, não havendo qualquer relação de um Estado terceiro. A violação a uma dessas obrigações convola na responsabilidade internacional do Estado violador para com o Estado que teve o direito violado, e tão somente em relação a este. 1 2

BAPTISTA, Eduardo Correia - Ius Cogens em Direito Internacional, LEX, Lisboa, 1997, pág. 375. BAPTISTA, Eduardo Correia - Direito Internacional Público, Conceitos e Fontes, vol. I, Lex, Lisboa, 1998, pág. 77.

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Entretanto, há certos tipos de obrigações que não tem a natureza bilateral, de um Estado para com o outro, mas sim erga omnes, pois o dever de cumprir a norma não se impõe a um ou outro especificadamente, mas a todos os Estados que se encontrem igualmente obrigados. EDUARDO CORREIA BAPTISTA menciona que a norma de eficácia erga omnes “designa a obrigação internacional que vincula um Estado em relação a todos os outros Estados vinculados pela mesma norma, que por sua vez se encontram na mesma situação jurídica”3. Assim, ao concluir quanto à abrangência dos efeitos da eficácia erga omnes em razão do número de Estados cuja obrigação é imposta, resta por estabelecido que a existência da obrigação está diretamente ligada ao vínculo que estes Estados tenham com a norma, ou seja, a norma de caráter erga omnes terá eficácia em relação a todos os Estados que estejam igualmente vinculados, independentemente que tenha havido prejuízo4. Quando se menciona igualmente obrigado, não se pretende restringir a vinculação a uma existência de um instrumento formal, como é o caso do tratado. Dizer que um Estado está igualmente vinculado ao cumprimento de uma norma de efeito erga omnes é afirmar que por alguma razão, aqueles Estados estão obrigados entre si ao cumprimento de determinada obrigação, seja por convenção, costume, ou etc. Nestes casos, a violação da norma gera não só uma responsabilização internacional exigível por aquele que tenha eventualmente suportado o dano, mas legitima todos os outros Estados a pleitear o que de direito, podendo, cada Estado agir unilateralmente. O principal diferenciador da natureza da obrigação é a identificação de seu interesse: os interesses privados internacionais, ou seja, se os interesses digam respeito tão somente aos Estados envolvidos, as obrigações serão apenas bilaterais, ou, se os interesses forem públicos internacionais, ou seja, comum a todos os Estados5, têm-se as obrigações erga omnes6. Não estamos fazendo uma distinção entre o direito internacional público e o direito internacional privado. Ambas as hipóteses são reguladas pelo Direito Internacional Público, entretanto, os interesses em questão são inerentes, em uma hipótese, tão somente aos Estados afetados pelo descumprimento da norma, e em outra, a todos aqueles que se encontrem igualmente obrigado por aquela norma, independente de ter suportado prejuízo. 3 4

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BAPTISTA, Eduardo Correia - Ius Cogens... op. cit., pág. 289. A respeito do alcance que as normas de eficácia erga omnes podem ter, vide: TELES, Patrícia Galvão Obligations Erga Omnes in international Law, in Revista Jurídica da Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa Nova Série, n.º 20, Nov. 1996, pág. 100, ensina que “O fato de que existem problemas na realização dos direitos de proteção do direito internacional contemporâneo não impede a constatação da existência de obrigações para com a comunidade internacional dos Estados”. Nesta oportunidade afirma-se “todos os Estados” não no sentido de todos os Estados que compõem a Comunidade Internacional, mas sim todos os Estados que se encontrem igualmente vinculados a norma. O interesse público para originar uma obrigação erga omnes não se restringe a um interesse geral (de todos), mas também de alguns, como é o caso de um costume regional, que dentro daquele âmbito de incidência (do costume), o interesse será público e as normas terão efeito erga omnes. BAPTISTA, Eduardo Correia - Direito Internacional Público... op. cit., pág. 167.

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Por fim, cumpre esclarecer que o intuito da atribuição de efeitos erga omnes às normas que sejam de caráter público internacional não é apenas para atribuir legitimidade de agir mediante violação e pleitear responsabilização, mas também de fazer com que todos os Estados as respeitem e exerçam vigilância7.

2.2.1. Normas de Eficácia Erga Omnes Universais e Não Universais É importante ainda diferenciar, dentro do âmbito das obrigações erga omnes, o alcance a nível internacional destas normas. Podemos destacar as normas de eficácia universal e a não universal. As normas de caráter universal são aquelas que vinculam todos os Estados da Comunidade Internacional8. Alguns autores referenciam as normas universais como sendo as normas costumeiras, posto que só estas poderiam ter efeitos absolutos sobre todos os Estados, e asseveram ainda que nada impede que uma norma convencional tenha eficácia universal, a exemplo de um tratado que seja ratificado por todos os entes que compõem a Comunidade Internacional. Entretanto, nenhum exemplo ocorreu até hoje9. PATRÍCIA GALVÃO TELES ao comentar o conceito de obrigação erga omnes explicitado pelo Tribunal Internacional de Justiça no caso Barcelona Traction, menciona que são “‘obrigações de um Estado para com a comunidade internacional como um todo’ e que pela própria natureza da obrigação, constitui a preocupação de todos os Estados. Assim, todos os Estados-Membros, tendo em vista a importância dos direitos envolvidos, podem ser considerados como tendo interesse jurídico na sua proteção”, e menciona ainda que a construção de tal raciocínio se deu da seguinte forma: “Obrigações erga omnes são obrigações devidas por cada Estado para a comunidade internacional como um todo; porque elas são devidas para com a comunidade internacional como um todo, elas são preocupação de todos os Estados; porque elas são preocupação de todos os Estados (e tendo em vista a importância dos direitos envolvidos), todos os Estados podem considerar que têm interesse na sua proteção”10. Portanto, seriam estas, normas de eficácia erga omnes universal. As normas de eficácia erga omnes não universais são normas estabelecidas por convenção das partes ou estabelecidas por um costume regional. Assim sendo, vinculam 7 8

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Sobre as formas e legitimados para efetuarem ações de reação a violações de normas erga omnes, vide TELES, Patrícia Galvão, op. cit., págs. 110 e seguintes. Assevera Eduardo Correia Baptista que: “Não existe uma pessoa colectiva Comunidade Internacional. Esta não passa, reportando-nos ao plano universal, do conjunto dos Estados existentes, cotitulares dos poderes correspondentes a essas obrigações”. Além disso, ressalta em nota que a tese quanto a personalidade da Comunidade Internacional já é sustentada por alguns autores. (BAPTISTA, Eduardo Correia - Ius Cogens... op. cit., pág. 289). Ibidem, pág. 291; MELLO, Celso D. de Albuquerque - Curso de Direito Internacional Público, vol. 1, 15.ª edição, revista e aumentada, Renovar, Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, 2004, pág. 187. TELES, Patrícia Galvão, op. cit., pág. 77.

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somente aqueles que convencionaram sobre o assunto, ou os que se vinculam em razão de uma norma de costume de determinada região11. Estas normas que têm sua eficácia estabelecida por uma relação determinada (não vigora em relação a todos), entretanto, dentro desse âmbito de eficácia, os efeitos obrigacionais impostos entre os Estados é erga omnes. Não podemos confundir as normas de eficácia erga omnes não universais com as normas bilaterais. Naquelas, o interesse é público dentro do limite dos vínculos existentes entre os Estados, e nestas, as normas se limitam a um Estado para com o outro. Note-se que nas normas erga omnes não universais, um Estado que esteja vinculado à norma tem interesse de agir mesmo que não tenha sofrido prejuízo pelo descumprimento. Já nas normas bilaterais, um Estado que esteja vinculado à norma, mas que não tenha sofrido prejuízo, não tem interesse de agir; a relação se restringe àquele Estado violador e o Estado que sofreu o prejuízo.

3. Obrigações Impostas a um Terceiro Estado Visto algumas características das normas que impõem obrigações internacionais, passamos a análise das hipóteses em que tais normas poderão vincular Estados terceiros à relação previamente estabelecida. Com relação às normas que são frutos do costume geral, não há o que se falar em terceiro Estado, já que como exposto, todos os Estados encontram-se igualmente obrigados. Entretanto, quando se refere a uma norma de caráter convencional, ou fruto de costume regional, nota-se a existência de Estados terceiros, que não participam das relações existentes em razão de tal vínculo. Desta forma, haveria a possibilidade de se imputar um dever de cumprimento a esses Estados terceiros? Regra geral, pelo princípio da Pacta teriis Nec nocent Nec prosunt, um tratado não impõe deveres nem direitos pra um Estado que não seja parte. Assim tem-se por reconhecido pela doutrina, jurisprudência internacional, e pelas práticas dos Estados12. Parte, conforme a Convenção de Viena é o Estado que consentiu em estar vinculado pelo tratado e em relação ao qual este se encontre em vigor13, ou seja, o Estado é parte no tratado que este tenha consentido em estar vinculado. Um Estado que não esteja vinculado a um tratado é denominado Estado terceiro14. 11 12

13 14

BAPTISTA, Eduardo Correia - Ius Cogens... op. cit., pág. 291. Vide, a respeito, BRITO, Wladimir - Direito Internacional Público, Coimbra Editora, 2008, págs. 261-262. Bem como Acórdão n.° 7, de 25 de Maio de 1926, referente a certos interesses alemães na Alta Silésia polaca, o Tribunal Permanente de Justiça Internacional entendeu que: “Um tratado não constitui direito senão entre Estados que nele sejam partes” (série A, n.° 7, p. 29). O Tribunal Internacional de Justiça confirmou esse princípio na sentença proferida no caso do Incidente aéreo de 27 de Julho de 1955, entre Israel e a Bulgária, declarando que o artigo 26.°, §5, do seu Estatuto não possui “qualquer força jurídica para os Estados não signatários” (Rec. 1959, p. 138). Numerosas sentenças arbitrais decidiram igualmente neste sentido. Artigo 2.°, § 1.°, ““g”, da Convenção de Viena. Artigo 2.°, § 1.°, “h”, da Convenção de Viena.

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As obrigações resultantes de um tratado só são vigentes entre os Estados que o aderiram15, sendo necessário, para que as obrigações sejam impostas a um terceiro Estado, a sua manifestação de concordância por escrito16, e quanto aos direitos, presumem-se consentido enquanto não haja manifestação em contrário por parte do Estado ao qual o foi atribuído17 18. Assim sendo, regra geral, as obrigações vigoram tão somente entre os Estados obrigados, seja pela conduta costumeira (costume regional) ou pelo consentimento na obrigação (norma convencional). Como já mencionado, há autores que defendem que a abrangência das obrigações erga omnes alcança apenas aqueles Estados que estejam igualmente obrigados à norma, por um vínculo direto19. Como seja: Num tratado que tenha A, B, C, e D como signatários e que estabeleça vínculos de obrigações erga omnes entre si (eficácia erga omnes não universal), se A tem uma obrigação perante B, e descumpre, legitima B, C e D para agir e exigir o cumprimento. O interesse erga omnes alcançaria apenas os Estados que estejam igualmente obrigados, por um vínculo direto à norma, quais sejam (A, B, C e D). Destes, C e D, mesmo não sendo afetado diretamente pelo descumprimento, seriam Estados que estariam igualmente vinculados à norma de eficácia erga omnes, e mesmo sendo “terceiros” à relação de descumprimento (de A para com B), estariam legitimados a agir. Nesse entendimento, um Estado Y que não estivesse vinculado à norma estabelecida pelo tratado não teria legitimidade de reclamar cumprimento, e nem mesmo seria passível de responsabilização pelo descumprimento a uma obrigação resultante de uma norma convencionada naquele tratado. Entretanto, a jurisprudência bem como a doutrina sustenta a admissibilidade, em determinados casos, que os tratados emanem obrigações e direitos a terceiros Estados mesmo sem seu consentimento, ainda que se trate de normas convencionais e mesmo que não haja vínculo direito deste terceiro Estado à norma20. Neste caso, usando o exem15 16

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Art. 34 da Convenção de Viena: “Um tratado não cria obrigações nem direitos para um terceiro Estado sem o seu consentimento”. Art. 35 da Convenção de Viena: “Uma obrigação nasce para um terceiro Estado de uma disposição de um tratado se as partes no tratado tiverem a intenção de criar a obrigação por meio dessa disposição e o terceiro Estado aceitar expressamente, por escrito, essa obrigação”. Art. 36 da Convenção de Viena: “Um direito nasce para um terceiro Estado de uma disposição de um tratado se as partes no tratado tiverem a intenção de conferir, por meio dessa disposição, esse direito quer a um terceiro Estado, quer a um grupo de Estados a que pertença, quer a todos os Estados, e o terceiro Estado nisso consentir. Presume-se o seu consentimento até indicação em contrário, a menos que o tratado disponha diversamente”. Vide, sobre o assunto: MIRANDA, Jorge - Direito Internacional Público I, Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1995, págs. 103-104. BAPTISTA, Eduardo Correia - Ius Cogens... op. cit., págs. 288 e seguintes. A exemplo: Tribunal Internacional de Justiça, caso Barcelona Traction, acórdãos de 24 de julho de 1964 e de 05 de fevereiro de 1970; DINH, Nguyen Quoc; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain - Direito Internacional Público, 2.ª Edição, Tradução de Vítor Marques Coelho, Fundação Calouste Gulbenkiana, pág. 253; bem como MELLO, Celso D. de Albuquerque, op. cit., pág. 222.

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plo acima, dependendo da matéria objeto da norma, Y estaria legitimado a reclamar cumprimento à norma, e estaria igualmente obrigado a cumpri-la. Como então explicar como uma norma convencionada entre partes pode obrigar um Estado que não consentiu com isso? A princípio procurou-se sustentar tal possibilidade em eventual transformação do preceito disposto na norma do tratado em uma norma consuetudinária internacional geral21, ou seja, tornaria a norma convencionada em uma norma de costume internacional, tornando-se obrigatória não só em relação aos Estados membros do tratado, mas como também a todos os Estados. Entretanto, a mencionada justificativa muito embora seja “cômoda”, não consegue explicar determinadas situações, como é o caso de determinados tratados onde os direitos e obrigações resultantes são aplicáveis imediatamente a todos os Estados, e não gradativamente como ocorre na formulação de um direito consuetudinário22. Exemplificando: um tratado bilateral que convencione sobre determinada mudança na fronteira destes dois Estados, não gerará efeitos tão somente em relação aos dois, mas impõem um dever de respeito a todos no momento em que ganha eficácia. No caso do entendimento em que o efeito erga omnes se dá pela conversão da norma convencional em norma consuetudinária, no exemplo acima, para que a obrigação gerasse dever de respeito a todos, seria necessário que os demais Estados reconhecessem, em um lapso temporal, o convencionado no tratado como costume geral. Tal entendimento, neste caso, não tem plausibilidade. Como resposta ao questionamento anteriormente formulado, parece-nos mais plausível o fato de que em um mundo globalizado, onde cada vez mais as relações internacionais fazem parte do cotidiano dos Estados, influenciando significativamente na sua atividade, seja impossível, numa Comunidade Internacional, negar a existência de normas de caráter público e valor universal, ou até mesmo, nos termos do artigo 53.°, da Convenção de Viena de 1969, uma norma imperativa23 de Direito Público geral24, mesmo que esta nasça de um acordo entre Estrados. 21

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Com base no artigo 38.° da Convenção de Viena: “O disposto nos artigos 34.º a 37.º não obsta a que uma norma enunciada num tratado se torne vinculativa para um terceiro Estado como norma consuetudinária de direito internacional, reconhecida como tal”. Neste sentido: CAMPOS, Julio D. González; Luis I. Sánchez Rodríguez; Paz Andrés Sáenz de Santa María - Curso de Derecho Internacional Público, 3.ª Edición, Thomson Civitas, Madrid, 2003, pág. 752: “Algunos principios y normas del derecho internacional de los derechos humanos, aun teniendo um origen convencional, han pasado a formar parte del derecho consuetudinario y, por tanto, poseen um alcance general”. DINH, Nguyen Quoc; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain, op. cit., pág. 253. DINH, Nguyen Quoc; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain, op. cit., págs. 207-208: “Norma imperativa no sentido de norma de jus cogens (norma aceite e reconhecida como tal pela Comunidade Internacional dos Estados no seu conjunto). Apesar de opinião contrária de parte da doutrina, a fórmula utilizada pelo artigo 53.° da Convenção de Viena não deixa qualquer dúvida sobre o fato de que o jus congens não constitui uma nova fonte de direito internacional, mas uma qualidade particular (imperativa) de certas normas, que podem ser de origem quer costumeira quer convencional” (grifo nosso). Note-se que os mencionados autores reconhecem como sendo normas de jus cogens também normas convencionais. Artigo 53.°, da Convenção de Viena de 1969: “É nulo todo o tratado que, no momento da sua conclusão, é

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Assim, o cumprimento de tais preceitos não pode estar adstrito a determinado grupos de Estados, mas sim, a todos, posto que não diga respeito tão somente a seus interesses, mas a um interesse geral25. Destarte, quando os Estados dispõem sobre normas de caráter geral, agem ut universi e não ut singuli26. Assim sendo, os Estados têm condições de estabelecer, mesmo por normas convencionais, obrigações que ninguém negará um valor universal e aplicabilidade geral27. Retiramos daí o entendimento de que determinadas normas convencionais, que tenham por objeto direito cujo caráter seja público e cujo valor seja universal, possam receber tratamento de normas imperativas de direito internacional geral, e tenha eficácia de efeitos erga omnes universais, que vinculem todos os Estados, independente de determinado Estado estar vinculado diretamente à norma.

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incompatível com uma norma imperativa de Direito Internacional geral. Para os efeitos da presente Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é a que for aceite e reconhecida pela Comunidade Internacional dos Estados no seu conjunto como norma à qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por uma norma de Direito Internacional geral com a mesma natureza”. Vide, a respeito: DINH, Nguyen Quoc; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain, op. cit., pág. 254, que assim dispõe: “Hoje como ontem, um grupo mais ou menos vasto de Estados está em condições, em nome do interesse geral da comunidade internacional, de estabelecer, por via convencional, regras a que ninguém negará o valor “universal”. Numa sociedade pouco organizada e dominada por alguns grandes Estados, este fenómeno correspondia abertamente a um “Governo Internacional de facto” de tipo oligárquico. Na sociedade internacional actual, em que é difícil opor-se à lei do número e em que os areópagos universais (conferências, organizações internacionais) usam processos “quase legislativos”, o mesmo resultado será procurado, de modo hipócrita ou sincero, em nome da “comunidade internacional”: a técnica dos acordos abertos à quase totalidade dos Estados fornece um aparato jurídico a um consenso efectivamente quase universal ou à vontade das grandes potências”. No mesmo sentido: MELLO, Celso D. de Albuquerque, op. cit., pág. 222: “Enfim, uma grande parcela da sociedade internacional visando ao bem comum pode impor obrigações (respeitando o DI Geral) a terceiros Estados por meio de um tratado”; e ainda TELES, Patrícia Galvão, op. cit., pág. 74: “No entanto, parece haver uma crescente aceitação de que existem certas regras de direito internacional que são de preocupação “de todos os Estados”, posto que eles não servem para proteger os interesses individuais dos Estados, mas um interesse da comunidade internacional como um todo. Quando a comunidade internacional como um todo considera a observância de tais regras essencial, o cumprimento das obrigações que derivam das mesmas, para o benefício comum, é devido a todos os membros desta comunidade e não apenas um ou mais Estados envolvidos em uma determinada relação bilateral”. MELLO, Celso D. de Albuquerque, op. cit., pág. 222. A jurisprudência já consolidou entendimento. Neste sentido, Barcelona Traction, de 5 de Fevereiro de 1970 Đ “Uma distinção essencial deve (...) ser estabelecida entre as obrigações dos Estados para com a comunidade internacional no seu conjunto e as que nascem em relação a outro Estado no quadro da protecção diplomática. Pela sua própria natureza, as primeiras dizem respeito a todos os Estados. Dada a importância dos direitos em causa, todos os Estados podem ser considerados como tendo interesse jurídico em que esses direitos sejam protegidos; as obrigações em causa são obrigações erga ommes” (Rec. P. 32)”, citado por DINH, Nguyen Quoc; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain, op. cit., pág. 206. Os mesmos autores citados mencionam ainda, sobre a possibilidade da Comunidade Internacional reconhecer que determinadas normas têm valor universal, que “O fenómeno não se limita à edição de normas respeitantes às relações interestatais. Podemos observá-lo igualmente no funcionamento das organizações internacionais: é freqüente encontrar, nos seus estatutos, cláusulas de revisão ou de emenda cuja entrada em vigor não exige a unanimidade dos Estados membros (artigos 108.° e 109.° da Carta da O.N.U., artigo XVII dos Estatutos do F.M.I., etc.). Os Estados minoritários só podem escolher entre aceitar ou deixar a organização. A única diferença em relação à hipótese geral é que aqui a excepção ao princípio da relatividade dos tratados é institucionalizada e antecipadamente aceite por todos os Estados membros; mas é difícil falar de um “consentimento” dos Estados minoritários à sorte que lhes está reservada. Seria mais exacto considerar que se presume que o grupo maioritário traduz a vontade da “comunidade internacional”, pág. 254.

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Não afirmamos, contudo, que o Estado terceiro fique totalmente vinculado ao cumprimento do tratado internacional. Pelo contrário, um Estado que não consentiu em obrigar-se ao cumprimento do inteiro teor do tratado não pode estar obrigado a ele. Entretanto, o tratado internacional que contenha norma de proteção a direito público geral, e que assim fique reconhecido pela Comunidade Internacional, obriga Estados terceiros ao cumprimento do disposto na norma, o que lhe confere eficácia erga omnes. Quando se tratar de obrigações erga omnes se está lidando com a situação jurídica subjetiva, em vez de com a norma em si. Tal não equivale a postular a existência de uma obrigação que é independente de qualquer outra fonte identificável de lei, mas apenas que a pessoa deve colocar-se ao nível da obrigação que decorre da norma e não no nível objetivo da norma28. Assim, o conceito de erga omnes refere-se à obrigação imposta por uma norma e não a norma em si29. Nesta linha é que se defende a existência de normas internacionais que tenham eficácia erga omnes e que vincule todos os Estados. Não se afirma que todos os Estados estejam obrigados ao cumprimento da norma propriamente dita, mas sim de que se encontram obrigados ao cumprimento do preceito estabelecido pela norma.

4. Situações Jurídicas Estabelecidas pelas Normas Internacionais Erga Omnes Quando se menciona que o conteúdo da norma jurídica tenha efeito erga omnes, devemos analisar a norma sob a ótica de sua natureza: universal, ou não universal (número de Estados destinatários). Pode-se a princípio, indagar como seria possível que uma norma de caráter erga omnes, onde o próprio significado do termo define ser dirigido “para todos”, vincular apenas alguns, no caso da possibilidade de existência de norma de eficácia erga omnes não universal. Tal questão será abordada adiante. Insta destacar que apenas as normas erga omnes com caráter universal é que criam situações jurídicas absolutas, ou seja, que gera uma obrigatoriedade absoluta de respeito em face de todos os Estados, não podendo haver relativização dos destinatários (restrição dos Estados vinculados)30. 28 29 30

TELES, Patrícia Galvão, op. cit., pág. 99. ANNACKER, C. - The legal regime of erga omnes obligations in International Law, pág. 135, apud TELES, Patrícia Galvão, op. cit., pág. 99. BAPTISTA, Eduardo Correia - Ius Cogens... op. cit., pág. 289: “Uma obrigação erga omnes imposta por uma norma universal implicará naturalmente que todo e qualquer Estado se encontre vinculado em relação a todos os outros. Neste sentido, uma norma que impõe obrigação erga omnes constitui uma situação jurídica absoluta e não meramente relativa.”

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Assim sendo, há alguns autores que entendem que o caráter absoluto da norma e a sua oponibilidade erga omnes universal só podem ser alcançada pelas normas de caráter costumeiro geral. Nas normas convencionais, a eficácia erga omnes, ou seja, a oponibilidade geral não se daria em razão da norma (tratado) em si, mas sim em relação à situação jurídica absoluta que é criada no mundo jurídico em razão da efetividade desta (norma)31. Não se atribui a oponibilidade geral à norma, mas sim à conseqüência que a execução desta vai gerar no cenário internacional. Já outra corrente doutrinária entende que mesmo nos casos de normas de natureza convencional, podem elas estabelecer relações jurídicas absolutas, constituindo uma obrigação erga omnes oponível a todos os Estados, independente deste está diretamente vinculado à norma ou não32. Assim, seria exatamente o efeito da norma (tratado) é que traria o dever de respeito a terceiros Estados, mesmo que extraído da situação subjetiva dela. A obrigação continuaria sendo oriunda da norma, mas é a obrigação dela decorrente que vincula todos os Estados33. Entendemos que o nascimento de uma norma convencional pode sim gerar relação jurídica absoluta com terceiros Estados através de seus efeitos subjetivos, constituindo um dever oponível em relação à própria norma, e não à situação criada em razão da efetividade da norma em relação aos Estados partes. Como defendido, a norma nasce em razão de um acordo convencional entre Estados, e a situação jurídica subjetiva criada pela obrigação de respeito cria uma situação jurídica absoluta oponível a todos os Estados. Neste caso, o fato da efetividade da norma (obrigação de respeito) perante os Estados partes é indiferente para constatar a sua natureza erga omnes universal. Não podemos negar que a situação jurídica absoluta foi criada pelo próprio interesse subjetivo da norma. A fonte da obrigação continua sendo a norma. Ressalta-se que a natureza convencional de determinada norma se dá em razão do seu nascimento ser fruto de uma convenção, ou seja, um acordo de vontades (tratado); mas no caso em espécie, apenas após esse nascimento é que estarão os Estados terceiros 31

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BAPTISTA, Eduardo Correia - Direito Internacional Público... op. cit., pág. 239: “Alguma Doutrina sustenta que tratados que criam situações jurídicas absolutas, também denominados tratados objectivos, constituiriam uma excepção à regra Pacta tertiis. Afirma-se que tratados que estabeleçam fronteiras ou regulem de qualquer forma o estatuto ou utilização, pelo titular ou terceiros, de um determinado território, ou criem sujeitos de DIP como Estados ou Organizações Internacionais vinculam Estados terceiros. // Em rigor, não será assim. É um facto que uma fronteira deve ser respeitada por todos os Estados, isto é, é oponível erga omnes. Se um Estado cede legitimamente a sua soberania sobre um determinado território a um outro, todos os Estados devem respeitar a nova situação jurídica criada. Se a transferência for válida, mesmo um Estado que a não reconheça, se violar a soberania do Estado adquirente, incorre em responsabilidade internacional em relação a este e não em relação ao Estado cedente. // Mas na verdade, tal não se deve já ao tratado, mas à situação jurídica absoluta (no sentido de oponível erga omnes) que a execução deste vai criar (...)”. DINH, Nguyen Quoc; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain, op. cit., pág. 253 e seguintes: “A existência dos tratados que produzem efeitos não só em relação a alguns Estados terceiros, mas também em relação a todos os Estados já não é contestável”. Vide também a respeito, decisão do Tribunal Internacional de Justiça no caso Barcelona Traction, acórdãos de 24 de Julho de 1964 e de 5 de Fevereiro de 1970. TELES, Patrícia Galvão, op. cit., pág. 99.

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obrigados pela situação jurídica subjetiva prevista na norma. Assim, a norma não seria convencional em relação aos terceiros Estados, posto que estes não convencionaram a respeito. Também não poderíamos falar em uma norma costumeira, posto que a incidência da obrigação não se daria em razão de fator consuetudinário. Poderíamos dizer, assim, que a norma que nasceu de forma convencional seria uma norma de cumprimento objetivo em relação ao terceiro Estado (norma convencional que teria eficácia erga omnes universal, obrigando aqueles Estados terceiros), posto que esta geraria efeitos jurídicos absolutos em relação a estes. Sob o conceito de que a norma erga omnes é aquela que impõe dever de cumprimento a todos os Estados que estejam igualmente vinculados, caberia discutir se a necessidade da vinculação para estabelecer uma relação jurídica absoluta deva ser um vínculo direto, ou se poderíamos assumir a existência de um vínculo indireto no caso citado acima. Explicando: As relações existentes entre um Estado e outro em razão da existência de uma norma convencional ou costumeira é, regra geral, uma relação direta, pois é clara a identificação do vínculo existente entre as partes. Agora, ao consentirmos que uma norma convencional possa gerar efeitos perante Estados terceiros (de obrigação objetiva), mesmo sem que este tenha consentido com a norma, estamos criando um vínculo entre este Estado terceiro e a situação criada pela norma, que não é direto, entretanto, não podemos negar o vínculo. Daí optamos por nomear tal vínculo como indireto. Ambos os vínculos tem a mesma força vinculativa, entretanto, um é diretamente identificável e outro não. Desta feita, retomando o raciocínio: As normas de caráter erga omnes têm eficácia em relação aos Estados que se encontrem igualmente vinculados pela norma. Assim, no caso da existência de um vínculo direito, como seja, entre as partes no caso de uma norma convencional, e entre os Estados em geral em relação a um costume geral, não poderíamos questionar a existência de um vínculo, caracterizando facilmente a obrigação erga omnes. No caso de normas de eficácia erga omnes convencionais universais, como defendido, haveria um vínculo direto entre aqueles Estados obrigados pela norma objetiva, e um vínculo indireto criado pela situação jurídica subjetiva à norma, que obrigaria todos os Estados terceiros. Neste sentido admitiríamos a existência de normas convencionais de caráter universal, mesmo que tais normas não fossem ratificadas por todos os Estados. Seriam as normas de caráter público e valor universal inegável (normas convencionais imperativas de direito internacional geral). É claro que tal desiderato não se aplica a qualquer norma de direito internacional que tenha eficácia erga omnes, mas apenas a que o conteúdo da norma justifique um tratamento de tamanha importância.

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Desta feita, qualquer violação a uma obrigação erga omnes estabelecida por uma norma universal, mesmo que convencional, legitimaria qualquer Estado a protestar ou tomar medidas que entenderem cabíveis para pôr termo à violação, independente de haver comprovado prejuízo do Estado requerente34. Assim sendo, se as normas erga omnes vinculam os Estados que se encontrem igualmente obrigados, e na mesma relação jurídica, classificaríamos aqui, então, duas espécies de obrigações erga omnes: 1- As obrigações de caráter erga omnes de natureza universais, que, em razão do conteúdo da norma, vinculem todos os Estados, estabelecendo vínculo entre estes, mesmo que o vínculo seja indireto, podendo abarcar normas costumeiras e convencionais; 2- as obrigações erga omnes de natureza não universais, que estabeleceriam vínculos em relação apenas aos Estados que se encontrem diretamente ligados à norma, seja por uma convenção ou em razão de um costume regional. Consideramos ainda que, regra geral, as normas convencionais de caráter erga omnes são não universais e impõem obrigações apenas àqueles que se encontrem diretamente ligados à norma. Entretanto, excepcionalmente, quando a matéria em causa assim justificar, pode-se atribuir natureza universal a determinadas normas convencionais, pelo seu inegável valor, de forma a obrigar todos os Estados. Note-se que nas obrigações erga omnes convencionais que criam vínculos de natureza universal, inclusive perante Estados terceiros àquela convenção, é a qualificação do objeto da norma como sendo de interesse público geral (pela Comunidade Internacional e não pelos Estados partes do tratado) que a torna absoluta e estende os vínculos estabelecidos inicialmente pelo tratado (vínculos diretos) aos terceiros Estados (vínculo estes que optados por denominar vínculos indiretos). Concluindo, com a classificação das normas de caráter erga omnes em duas vertentes, temos: Nas normas erga omnes universais, todos os Estados que tenham um vínculo, mesmo que indireto com o conteúdo da norma pode agir mediante a violação, mesmo que não tenha suportado prejuízo, e mesmo que seja de forma autônoma; nas normas erga omnes não universais, apenas os que encontrem diretamente ligados à norma é que têm direito de agir quando patente uma violação (diretamente ligados não significa a existência de uma relação apenas bilateral), e têm a faculdade de agir mesmo que não tenham suportado prejuízo, mesmo que de forma autônoma.

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BAPTISTA, Eduardo Correia - Ius Cogens... op. cit., págs. 288-289: “No caso de se tratar de uma obrigação imposta por uma norma universal, o Estado estará vinculado em relação a todos os restantes Estados existentes. Isto significa que, no caso de violar obrigação, praticará um acto ilícito erga omnes. Portanto, terá afectado a esfera jurídica de todos os Estados, mesmo que em concreto apenas um tenha sido efectivamente prejudicado ou o dano tenha sido de uma terceira pessoa ou um indivíduo. Por isso mesmo, nestas situações, todo qualquer Estado tem o direito, ou mesmo o dever, de protestar ou de tomar medidas para pôr termo à violação”.

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5. Direitos Humanos a Nível Internacional Por não se tratar do objeto de estudo do presente trabalho, não abordaremos a questão quanto às origens e desenvolvimento da proteção dos direitos humanos a nível internacional. Apenas para situar a problemática, insta destacar que estes, como sendo a abreviação dos direitos inerentes à pessoa humana, são tutelados não só a nível interno dos Estados, como também a nível internacional35. Instaura-se a dificuldade de determinar quais são os direitos humanos que devem ser protegidos a nível internacional, haja vista seu conceito aberto, não havendo no ordenamento jurídico internacional um diploma que os disponha de forma taxativa. Hoje a proteção dos direitos humanos constitui uma das prioridades da Comunidade Internacional. Busca-se assegurar a proteção de todos os seres humanos, independente de qualquer circunstância ou condição pessoal frente aos atos e omissões dos Estados36. A proteção internacional conferida a tais direitos é de peculiar relevância, posto que não estabelece um vínculo bilateral entre Estados, mas impõe uma relação erga omnes que determina que todos os Estados que se encontrem igualmente vinculados à norma tenham o dever de respeitá-la37-38. É necessário então saber a natureza da norma que trate de determinado direito humano a nível internacional. Se a norma é costumeira geral, temos a universalidade da obrigação, e impõe-se um dever de cumprimento a todos os Estados. Entretanto, se a norma é de cunho convencional, resta-nos saber se esta é uma norma vincula todos os 35

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Vide, a exemplo, os ensinamentos de Cançado Trindade: “As cinco últimas décadas têm testemunhado o processo histórico de gradual formação, consolidação, expansão e aperfeiçoamento da proteção internacional dos direitos humanos, conformando um direito de proteção dotado de especificidade própria. Este processo partiu das premissas de que os direitos humanos são inerentes ao ser humano, e como tais antecedendo a todas as formas de organização política, e de que sua proteção não se esgota na ação do Estado” (CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto - Universalismo e Regionalismo nos direitos humanos: o papel dos organismos internacionais na consolidação e aperfeiçoamento dos mecanismos de proteção internacional, in Anuário Hispano-Luso-Americano de Derecho Internacional, vol. 13, 1997, pág. 99). CAMPOS, Julio D. González; Luis I. Sánchez Rodríguez; Paz Andrés Sáenz de Santa María, op. cit., pág. 751. A respeito, BAPTISTA, Eduardo Correia - Ius Cogens... op. cit., pág. 397: “Julga-se, portanto, que todas as normas internacionais, sejam costumeiras, sejam convencionais, que tutelem direitos humanos, impõem obrigações erga omnes mediatas aos seus destinatários.” Uma noção importante acerca do alcance da proteção das normas erga omnes que versem sobre direitos humanos é o artigo 1 º da Resolução aprovada pelo Instituto de Direito Internacional na Sessão de Santiago de Compostela 1989, que dispõe sobre “A Proteção dos Direitos do Homem e do Princípio da não-intervenção nos assuntos internos dos Estados”, e estabelece que “Os direitos humanos são uma expressão direta da dignidade da pessoa humana. A obrigação dos Estados para assegurar a sua observância deriva do reconhecimento desta dignidade, consagrados na da Carta das Nações Unidas e na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Esta obrigação internacional, tal como expressa pelo Tribunal Internacional de Justiça, é erga omnes, cabe a cada Estado em relação à comunidade internacional como um todo, e cada Estado tem um interesse jurídico na proteção dos direitos humanos. A obrigação adicional implica um dever de solidariedade entre todos os Estados para assegurar o mais rapidamente possível a efetiva proteção dos direitos humanos em todo o mundo”.

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Estados da Comunidade Internacional ou apenas aqueles que se encontram diretamente vinculados à norma39. À margem desta questão, outra problemática ressalta relevância. Há autores que defendem que apenas os direitos humanos fundamentais ou básicos devam receber a proteção atribuída às obrigações erga omnes40 já outra parcela defende que qualquer direito humano merece tal tratamento41. Parece-nos, a princípio, que as normas internacionais costumeiras gerais que tutelem direitos humanos sejam indiscutivelmente erga omnes, independente da qualificação como sendo um direito humano fundamental e básico ou não. Ou seja, um direito humano que é salvaguardado pelo costume geral tem proteção universal e estabelece vínculo de obrigação entre todos os Estados, não havendo o que se discutir quanto ao caráter fundamental desse direito. Entretanto, quando nos referimos às normas convencionais que disponham sobre direitos humanos e que tenham eficácia erga omnes, podendo inclusive obrigar Estados terceiros – que por hipótese não tenham vinculo direto à obrigação –, devemos atentar para determinadas questões que podem ser cruciais para estabelecer se apenas os direitos fundamentais básicos devam receber eficácia erga omnes universal, ou se qualquer direito entendido a nível internacional como sendo inerente à pessoa humana deve receber mencionada proteção. 39

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Apenas recapitulando, retomamos a questão explorada anteriormente acerca da possibilidade de vinculação de Estados terceiros à norma convencional. Defendemos, oportunamente, a possibilidade de em determinados casos, as obrigações erga omnes possam receber eficácia universal, obrigando terceiros Estados que não estejam diretamente vinculados à norma. Indiscutível é que a norma de eficácia erga omnes e natureza convencional estabelece obrigações entre aqueles Estados que estão diretamente vinculados a ela (vínculo estabelecido pelo consentimento). Tribunal Internacional de Justiça, no caso Barcelona Traction (acórdão de 5 de fevereiro de 1970, Rec. 1970) entende pelo caráter erga omnes das obrigações internacionais que versem sobre direitos humanos, mas limita a abrangência desses efeitos a tão somente os direitos humanos fundamentais. MARTINS, Ana Maria Guerra - Direito Internacional dos Direitos Humanos, relatório sobre o Programa, Conteúdo e Métodos de Ensino Teórico e Prático, Lisboa, 2005, pág. 70: “Não se pode, contudo, afirmar, na ausência de uma lista de normas imperativas de DI, que todas as normas internacionais relativas a direitos humanos devem ser consideradas normas jus cogens. O consenso que se verifica na doutrina é mais restrito do que isso, limitando-se à inclusão dos “direitos essenciais” da pessoa humana nas normas de jus cogens”. Ainda neste mesmo sentido GARCIA, Emerson - Proteção Internacional dos Direitos Humanos, Breves Reflexões sobre os Sistemas Convencional e Não-convencional, 2.ª Edição, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2009, pág. 46: “De qualquer modo, além de facilitar a individualização e a compreensão dos direitos humanos, ainda contribuem para sedimentar a existência de um “núcleo duro” ou “standard minimum” desses direitos, que não pode ser subtraído do indivíduo, temporária ou definitivamente, ainda que a adversidade assuma proporções extremas”. E ainda PIOVESAN, Flávia - Globalização e Direitos Humanos: Desafios Contemporâneos, in Globalização, Desafios e Implicações para o Direito Internacional Contemporâneo, Org. Sidney Guerra, Editora Unijuí, 2006, pág. 381: “Acredita-se, de igual modo, que a abertura do diálogo entre as culturas, com respeito à diversidade e com base no reconhecimento do outro, como ser pleno de dignidade e direitos, é condição para a celebração de uma cultura de direitos humanos, inspirada pela observância do “mínimo ético irredutível”, alcançado por um universalismo de confluência”. A respeito, BAPTISTA, Eduardo Correia - Ius Cogens... op. cit., pág. 397: “Julga-se, portanto, que todas as normas internacionais, sejam costumeiras, sejam convencionais, que tutelem direitos humanos, impõem obrigações erga omnes mediatas aos seus destinatários”.

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A Declaração Universal dos Direitos Humanos trouxe a premissa de que não se admite exceções ou diferenciações em relação aos direitos humanos, sendo todos os seres humanos iguais perante àquele documento42. De tal sorte, a Declaração prevê uma igualdade entre todos os seres humanos do planeta no que diz respeito aos direitos fundamentais inerentes à figura do “ser humano”. Teríamos, assim, um princípio máximo, onde determinados direitos inerentes à pessoa humana não seria passível de flexibilização, independente de qualquer razão, seja ela qual for. Ressalta-se, oportunamente, a questão acerca da controvérsia sobre a universalidade, ou relatividade, dos direitos humanos internacionais. Em um mundo multicultural como o nosso, a idéia de universalidade de determinados direitos humanos não é propriamente uma unanimidade43. Tal consideração ganha importância ao passo que se reconhecermos que determinada norma convencional imponha obrigação a terceiros Estados, que a esta não consentiram, flexibilizaríamos a noção de soberania nacional44 e jurisdição doméstica desses Estados, ao consagrar um parâmetro internacional mínimo relativo à proteção dos direitos humanos45. Imagine se qualquer direito humano reconhecido a nível internacional, mesmo que por tratado bilateral, pudesse gerar interesse de agir em toda a Comunidade Internacional mediante violação por parte de um Estado terceiro, sem vínculo àquele instrumento reconhecedor46. 42

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O artigo 2.° da Declaração Universal dos Direitos do Homem dispõe que “Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.” “Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania”. DAUDT, Gabriel Pithan - Reservas aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, O conflito entre a Eficácia e a Promoção dos Direitos Humanos, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2006, pág. 131. Sobre a intervenção das normas internacionais que versem sobre direitos humanos na soberania do Estado, Emerson Garcia, ensina que “a aplicação do rol de atos internacionais de proteção dos direitos humanos não pode ser associada uma ampla e irrestrita derrocada das feições clássicas do conceito de soberania: em regra, as convenções internacionais vinculam unicamente aos Estados partes, o que é reflexo da perspectiva contratualista dos tratados (...) Esse quadro tem exigido dos operadores do Direito Internacional um esforço interpretativo no sentido de identificar aqueles direitos verdadeiramente fundamentais à espécie humana, contribuindo para a sua subtração de uma esfera voluntarista e integralmente sujeita à soberania estatalĐ (GARCIA, Emerson, op. cit., pág. 47). PIOVESAN, Flávia - Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, 10.ª Edição, Editora Saraiva, 2009, pág. 150. Sobre a questão da soberania nacional frente a violação do direitos humanos, DONNELLY, Jack - Universal Human Rights in Theory and Practice, 2.ª Edição, Ithaca, Cornell University Press, 2002, pág. 109, assevera que os direitos humanos são uma legítima e bem estabelecida preocupação internacional. Soberania requer apenas que os Estados se abstenham da ameaça ou uso da força na tentativa de influenciar as práticas de direitos humanos de outros Estados. Com exceção da força, os Estados estão livres para usar os meios mais comuns de política externa em nome dos direitos humanos internacionalmente reconhecidos.

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O processo de desenvolvimento dos direitos humanos foi instado no ocidente, fazendo com que as ideologias predominantes nestas regiões imperassem quando da conceituação destes direitos, e assim convola na contestação do seu caráter universal47. Um exemplo da problemática citada é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que preconiza em seu art. 1.° a liberdade e a igualdade em dignidade e direitos, oriunda dos conceitos do cristianismo do ocidente. No sistema hindu, por exemplo, não há como se afirmar que todos nascem iguais em dignidade e em direitos48. Assim, nasce uma corrente defensora do caráter universal dos direitos humanos, e outra que defende a preservação da cultura com força a relativizar a proteção que os direitos humanos tenham a nível internacional. Para os relativistas, a pretensão de universalidade desses instrumentos simboliza a arrogância do imperialismo cultural do mundo ocidental, que tenta universalizar suas próprias crenças. A noção universal de direitos humanos é identificada como uma noção construída pelo modelo ocidental. O universalismo induz, nessa visão, à destruição da diversidade cultural49. Já os universalistas, rebatem alegando que a posição relativista revela o esforço de justificar graves casos de violações dos direitos humanos que, com base no sofisticado argumento do relativismo cultural, ficariam imunes ao controle da Comunidade Internacional. Argumentam que a existência de normas universais pertinentes ao valor da dignidade humana constitui exigência do mundo contemporâneo, e acrescentam que, se diversos Estados optam por ratificar instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, é porque consentiram em respeitar tais direitos, não podendo isentar-se do controle da Comunidade Internacional na hipótese de violação desses direitos e, portanto, de descumprimento de obrigações internacionais50. Note-se que todos os instrumentos internacionais que consagram direitos humanos são universalistas. Daí a utilização de expressões como “todas as pessoas” (exemplo: todas as pessoas têm direito à vida, liberdade...), “ninguém” (exemplo: ninguém poderá ser submetido à tortura), dentre outras.51 47

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Não se pretende aqui dividir o mundo em dois pólos, o ocidental e o oriental, mas apenas mencionar que a origem dos direitos humanos foi preconizada por determinada cultura, e que em razão disso trouxe na formulação de seu conceito os traços marcantes nesta. Assevera Marco Ruotolo que o universalismo dos direitos humanos seria, na verdade, uma “teoria do bloco dominante”, que busca ver esta “reconhecida como uma ideologia”. Essa ideologia, por sua vez, contrasta com variedade de dimensões axiológicas, vendo amparada pela normatização internacional dos direitos humanos e tendo como meta-valor e ponto de equilíbrio a paz universal. (RUOTOLO, Marco - La funzione ermeneutica delle convenzioni internazionali sui diritti umani nei confronti delle disposizioni costituzionali, Diritto e società, Padova, Nuova Serie, n.° 2, 2000, pág. 318). DAUDT, Gabriel Pithan, op. cit., pág. 136. PIOVESAN, Flávia - Direitos Humanos... op. cit., pág. 153. Ibidem, págs. 153-154. Ibidem, pág. 153.

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Ademais, a Declaração de Viena, adotada em 25 de junho de 1995, em seu § 5.°, dispôs que: “Todos os Direitos Humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve considerar os Direitos Humanos, globalmente, de forma justa e equitativa, no mesmo pé e com igual ênfase. Embora se deva ter sempre presente o significado das especificidades nacionais e regionais e os diversos antecedentes históricos, culturais e religiosos, compete aos Estados, independentemente dos seus sistemas políticos, econômicos e culturais, promover e proteger todos os Direitos Humanos e liberdades fundamentais.” De outra sorte, também não podemos relativizar os valores inerentes aos direitos humanos de forma a fragilizar sua proteção. A Carta Internacional dos Direitos Humanos52 constitui um sistema de proteção dos direitos humanos a nível internacional e, muito embora não seja ratificada por todos os Estados, reflete as diretrizes básicas de respeito a esses direitos a nível internacional. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, concebida como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações, tornou-se precisamente no padrão através do qual se mede o grau de respeito e cumprimento das normas internacionais de direitos humanos. Na Proclamação do Teerão, adotada pela Conferencia Internacional dos Direitos do Homem, reunida no Irão em 1968, reconheceu que a Declaração exprime uma concepção comum dos povos do mundo acerca dos direitos inalienáveis e invioláveis de todos os membros da família humana e constitui uma obrigação para os membros da Comunidade Internacional. A mencionada Conferência afirmou ainda a sua confiança nos princípios estabelecidos pela Declaração e exortou todos os povos e governos ao respeito desses princípios e ao redobrar esforços no sentido de proporcionarem a todos os seres humanos uma vida livre e digna que lhes permita alcançar o bem-estar físico, mental, social e espiritual53. Reconhecemos, portanto, a existência de direitos humanos que aglutinam valores verdadeiramente essenciais a qualquer grupamento, daí derivando a sua fundamentalidade e a correlata necessidade de imperativo respeito pelos Estados, o que convola, por conseqüência, na flexibilização do conceito de soberania54. Entendemos assim quanto a universalidades dos direitos humanos55. 52

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Constituída pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e Pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e seus dois Protocolos Facultativos. Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos - Carta Internacional dos Direitos Humanos, Direitos Humanos, Ficha Informativa, Revista I, n.° 02, Nações Unidas, págs. 09-10. GARCIA, Emerson, op. cit., pág. 46, menciona que “a referida releitura da soberania, diuturnamente proclamada, deve encontrar ressonância no plano de realidade, legitimando a adoção de medidas para salvaguardar aqueles que tenham seus direitos básicos e essenciais violados pelo próprio Estado de que são nacionais”. No mesmo sentido: CAMPOS, Julio D. González; Luis I. Sánchez Rodríguez; Paz Andrés Sáenz de Santa María, op. cit., pág. 751 e seguintes; GARCIA, Emerson, op. cit., pág. 45 e seguintes; PIOVESAN, Flávia Direitos Humanos... op. cit., pág. 150 e seguintes; DONNELLY, Jack, op. cit., pág. 05 e seguintes.

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Contudo, ao defendermos uma universalidade dos direitos humanos, não podemos generalizar ao passo de garantir tutela universal a todos os direitos que sejam inerentes à pessoa humana a nível internacional. Defendemos que todos os direitos humanos tenham efeito erga omnes, entretanto, dado o multiculturalismo, parece-nos mais prudente estabelecer um núcleo irredutível56 que tenha proteção universal internacional, e gere dever de obrigação a todos os Estados57. Não podemos, por outro lado, desprezar o reconhecimento convencional sobre determinados direitos humanos que não constituem valores fundamentais da pessoa humana, mas que foram objeto de proteção por determinada norma e que por isso recebe tratamento erga omnes não universal. Assevera FLÁVIA PIOVESAN que para os universalistas o fundamento dos direitos humanos é a dignidade humana, como valor intrínseco à própria condição humana. Nesse sentido, qualquer afronta ao chamado “mínimo ético irredutível” que comprometa a dignidade humana, ainda que em nome da cultura, importará em violação a direitos humanos58. Portanto, ao afirmarmos que uma norma de eficácia erga omnes possa obrigar Estado terceiro, independente de este ter vínculo direto à norma, no que tange aos direitos humanos, restringimos a aplicação desses ao chamado “mínimo ético irredutível”59, devendo ser estabelecido níveis fundamentais de proteção aos direitos humanos a nível internacional, que sejam capazes de conferir caráter erga omnes universal. A maioria dos direitos humanos tidos por fundamentais já encontram tutelados pelo costume internacional geral, e assim sendo, faz com que este ganhe proteção erga omnes universal. Mesmo que tais direitos sejam objeto de convenção entre os Estados, a eficácia erga omnes universal se daria pela previsão consuetudinária de respeito à determinada norma. 56

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O critério que deve ser utilizado para caracterizar determinado direito humano como fundamental é o reconhecimento pela Comunidade Internacional como tal. Não há a possibilidade de criação de um critério objetivo que diferencie os direitos humanos em fundamentais e não fundamentais. Parece-nos à principio que todos os direitos humanos são fundamentais, entretanto, em razão do multiculturalismo, devemos observar se no contexto da Comunidade Internacional como um todo, podemos defender determinado valor como universal. Sobre a indiscutível caracterização de determinados direitos humanos a nível internacional como sendo um núcleo incontestável na maioria dos países, transcrevemos sábias palavras proferidas no discurso do Secretário de Estado dos Estados Unidos, Warren Christopher, na sessão de abertura da Conferência de Viena, em junho de 1993: “Que cada um de nós venha de diferentes culturas não absolve nenhum de nós da obrigação de cumprir a Declaração Universal. Tortura, estupro, anti-semitismo, detenção arbitrária, limpeza étnica e desaparecimentos políticos – nenhum destes atos é tolerado por qualquer crença, credo ou cultura que respeita a humanidade. Nem mesmo podem ser eles justificados como demandas de um desenvolvimento econômico ou expediente político. Nós respeitamos as características religiosas, socais e culturais que fazem cada país único. Mas nós não podemos deixar com que o relativismo cultural se transforme em refúgio para a repressão. Os princípios universais da Declaração da ONU colocam os indivíduos em primeiro lugar. Nós rejeitamos qualquer tentativa de qualquer Estado de relegar seus cidadãos a um status menor de dignidade humana. Não há contradição entre os princípios universais da Declaração da ONU e as culturas que enriquecem a comunidade internacional. O abismo real repousa entre as cínicas escusas de regimes opressivos e a sincera aspiração de seu povo.”. Citado em nota, PIOVESAN, Flávia - Direitos Humanos... op. cit., pág. 154. Ibidem, pág. 153. Justifica-se citada restrição haja vista até mesmo a concepção aberta de direitos humanos a nível internacional.

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Entretanto, admitimos a possibilidade de, mesmo quando não seja atribuída a determinada norma que verse sobre direitos humanos caráter costumeiro60, em sendo esta objeto de convenção entre Estados, possa ser considerada pela Comunidade Internacional como tendo eficácia erga omnes universal, o que convolará na obrigação de todos os Estados, inclusive aqueles que não consentiram com a convenção internacional. Ao defendermos a existência de um núcleo fundamental de proteção, não afirmamos a possibilidade de violação de determinados direitos humanos não fundamentais por determinados Estados. Um fato importante é que em virtude da autonomia do direito internacional sobre as outras ordens jurídicas, o fato internacionalmente ilícito é uma noção totalmente autônoma em relação ao direito próprio dos sujeitos de direito internacional61, sendo certo que o ato praticado segundo o ordenamento interno, que contrarie as normas internacionais, continuará constituindo ilícito internacional62. O inverso não é necessariamente verdade, ao passo que a constatação de um ilícito com base no ordenamento interno não implica necessariamente na constatação de um ilícito internacional. Assim sendo, o que se afirma é que um Estado não pode com base em ideologias subjetivas entender por direito humano determinado preceito (que não seja relativo ao “mínimo ético irredutível”, e que não encontre tutelado pelo costume e nem mesmo por norma convencional universal) e pleitear a nível internacional responsabilização de outro que não esteja diretamente vinculado, tendo em vista a autonomia que lhe é conferida quando de ilícito internacional de caráter erga omnes. Portanto, retomando a idéia, se existe uma norma de caráter costumeira de eficácia efetivamente universal, não é necessário abordar a problemática quanto à fundamentalidade do direito humano, haja vista que esta norma já vincula todos os Estados, e havendo violação, inconteste o direito de agir de todos. Entretanto, uma norma que verse sobre direitos humanos e nasça de uma convenção entre Estados deve ser analisada segundo o caráter de “mínimo ético irredutível”, oportunidade em que, caso assim seja entendido, será tutelada como norma de eficácia erga omnes universal, obrigando todos os países, independente deste estar diretamente vinculado à norma; ou, se o direito humano não corresponde ao “mínimo ético irredutível”, estabelecerá vínculo de obrigações erga omnes apenas àqueles países que estiverem diretamente vinculados à norma, sendo obrigações erga omnes não universais. 60

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Até porque o reconhecimento de uma norma internacional como sendo costumeira não se dá repentinamente, é um processo que se arrasta por determinado lapso temporal. Flávia Piovesan ensina que “Quanto ao costume internacional, sua existência depende: a) da concordância de um número significativo de Estados em relação a determinada prática e do exercício uniforme dessa prática; b) da continuidade de tal prática por considerável período de tempo – já que o elemento temporal é indicativo da generalidade e consistência de determinada prática; c) da concepção de que tal prática é requerida pela ordem internacional e aceita como lei, ou seja, de que haja o senso de obrigação legal, a opinio juris. (PIOVESAN, Flávia - Direitos Humanos... op. cit., pág. 125). DINH, Nguyen Quoc; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain, op. cit., pág. 782. Tribunal Permanente de Justiça Internacional, 17 de Agosto de 1923, processo de Wimbledon, série A, n.° 1; 4 de Fevereiro de 1932, parecer relativo ao tratamento de nacionais polacos em Dantzig, série A/B, n.° 44, pág. 4.

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Não se pretende neste trabalho definir o que seria direito fundamental inerente à pessoa humana, construindo um conceito fechado do que seria o “mínimo ético irredutível”, a fim de estabelecer quais os direitos humanos seriam passíveis de receber tratamento erga omnes universal63. Entretanto, para situar o leitor acerca de exemplos, citamos a tortura, estupro, anti-semitismo, execução sumária, detenção arbitrária, limpeza étnica e desaparecimentos políticos, que dentre outros64, não podem ser flexibilizados sob argumento da defesa da cultura, no caso de países que não estejam diretamente obrigados a preservação desses direitos65. Apenas a título de reflexão, se a proteção internacional dos direitos humanos surgiu principalmente no pós-guerra, dada as atrocidades cometidas por Hitler, esta deveria desenvolver-se a nível geral. Não podemos admitir que construídos valores inquestionáveis relativos a direitos humanos, possamos admitir que determinado Estado venha cometer atrocidades sob fundamento de não ter ratificado nenhum instrumento convencional de proteção a direitos humanos, e que, portanto, não está obrigado internacionalmente ao seu cumprimento. Assim, admitimos que determinadas normais internacionais convencionais que versem sobre direitos humanos possam persuadir seus efeitos de forma erga omnes universal, inclusive em razão daqueles Estados terceiros que não estejam diretamente vinculados à norma, não imperando mais o conceito de soberania estatal como princípio absoluto66. 63

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Vai-se reconhecendo as normas imperativas de Direito Internacional geral. A exemplo: DINH, Nguyen Quoc; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain, op. cit., pág. 210, que ao mencionar a jurisprudência aduz: “O Tribunal arbitral constituído no caso da Determinação da fronteira marítima entre Guiné-Bissau e o Senegal admite, pelo menos implicitamente, o carácter imperativo do direito a autodeterminação dos povos (sentença de 31 de julho de 1989, R.G.D.I.P., 1990, p. 234-235). Por seu lado, nos seus pareceres n.° 1 (de 29 de Novembro de 1991) e n.° 9 (de 4 de Julho de 1992), a Comissão de arbitragem da Conferência européia para a paz na Jugoslávia classificou, entre as normas imperativas de direito internacional geral, os “direitos da pessoa humana” e os “direitos dos povos e das minorias” (R.G.D.I.P., 1992, p. 265) e, no seu parecer n.° 2 (de 11 de Janeiro de 1992), reafirmou a existência “de normas, agora imperativas de direito internacional geral” impondo “aos Estados que assegurem o respeito dos direitos das minorias”, o que parece implicar o direito de cada ser humano “de reivindicar o pertencerem à comunidade ética, religiosa ou lingüística da sai escolha” e, para estas comunidades, o de beneficiar de um mínimo de protecção (R.G.D.I.P., 1992, p. 266-267)”. Sobre o reconhecimento dos valores “mínimo ético irredutível” de tais questões o Tribunal Permanente de Justiça Internacional em parecer no seu acórdão Furundzija de 10 de Dezembro de 1998, reconheceu que a “interdição da tortura tem doravante valor de jus cogens”. (DINH, Nguyen Quoc; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain, op. cit., pág. 210). Oportunidade em que indagamos: Antes do reconhecimento a tortura não merecia proteção internacional independente de constituir direito costumeiro (para aqueles que entendem que normas convencionais não podem ser jus cogens? Nossa resposta é no sentido de que o mínimo ético irredutível dos direitos humanos merece proteção erga omnes internacional universal, mesmo estando protegido tão somente por norma convencional. Apenas para reforçar, mencionamos que os países que de qualquer forma se obriguem ao respeito de determinados direitos estarão diretamente vinculados à norma. Quando se faz tal alegação diz respeito a Estados que não se encontrem vinculados a normas de proteção de direitos fundamentais dos seres humanos, e que se esquivam do dever de proteção sob argumentos como a preservação da cultura. Ainda sobre a possibilidade da existência de tratados internacionais que tenham eficácia erga omnes universal, citamos GOUVEIA, Jorge Bacelar - Manual de Direito Internacional Público, Uma Nova Perspectiva de Língua Portuguesa, 3.ª Edição, Editora Almedina, 2008, págs. 291-292: “Evidentemente que toda esta

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Como mencionamos, a grande maioria dos direitos humanos encontra-se hoje tutelados pelo costume geral, e por isso ganham proteção universal e estabelecem relações erga omnes a todos os Estados67. Entretanto, dada a dificuldade de se reconhecer como costumeiro determinadas normas68, que podem por hipótese ter natureza de “mínimo ético irredutível”, não podemos deixá-las à margem de proteção. Destarte, plausível que determinadas normas internacionais convencionais tenham capacidade de, ao reconhecerem direitos humanos irredutíveis, imponham dever de respeito mesmo àqueles que não consentiram.

6. Conclusão Desta forma, podemos concluir que as normas costumeiras gerais que tenham por objeto direitos humanos são normas de caráter erga omnes universais, posto que todos os Estados que compõem a Comunidade Internacional devem respeitá-las e qualquer violação legitimará todos a agir. Não resta aqui fazer qualquer diferenciação quanto à natureza do direito humano, posto que, em razão de ser oriundo do costume geral, o direito humano salvaguardado terá sempre eficácia erga omnes universal, independente de ser considerado fundamental ou não. Quanto às normas convencionais que disponham sobre direitos humanos, insta destacar as seguintes hipóteses: 1- Quando a norma de caráter erga omnes tem natureza universal e cria relação jurídica absoluta; 2- quando a norma de caráter erga omnes tem natureza não universal.

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problemática deve ser ainda observada à luz da possibilidade de existirem normas convencionais que, a despeito de apenas formalmente vincularem certo números de entidades que ao conteúdo das mesmas voluntariamente consentiram, acabam por ganhar um tal relevo jurídico-internacional que se mostram obrigatórias para a generalidade dos membros da sociedade internacional, assumindo como normas portadoras de obrigações erga omnes”. Cançado Trindade, ao mencionar a importância da Declaração Universal dos Direitos do Homem, menciona que “O prolongado lapso de tempo – 18 anos – entre a adoção e proclamação da Declaração Universal e a adoção dos Pactos (e Protocolo Facultativo) contribuiu para realçar o impacto da Declaração, e para florescer a tese de que alguns dos seus princípios teriam com o passar dos anos se cristalizado em direito internacional consuetudinário, ou se configurado como expressão dos princípios gerais de direito, invocados em processos nacionais e internacionais” (CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto - Reflexões sobre o valor jurídico das Declarações Universal e Americana de Direitos Humanos de 1948 por ocasião do seu quadragésimo aniversário, in Revista de informação legislativa, Ano 25, n.° 99, Jul.-Set. 1988, pág. 12). Note-se que o reconhecimento, como afirmado pelo autor, só se deu com o passar dos anos. O reconhecimento de uma norma internacional como sendo costumeira não se dá repentinamente, é um processo que se arrasta por determinado lapso temporal. Flávia Piovesan ensina que “Quanto ao costume internacional, sua existência depende: a) da concordância de um número significativo de Estados em relação a determinada prática e do exercício uniforme dessa prática; b) da continuidade de tal prática por considerável período de tempo – já que o elemento temporal é indicativo da generalidade e consistência de determinada prática; c) da concepção de que tal prática é requerida pela ordem internacional e aceita como lei, ou seja, de que haja o senso de obrigação legal, a opinio júris. (PIOVESAN, Flávia - Direitos Humanos... op. cit., pág. 125). De tal sorte, a inexistência de qualquer dos requisitos, ou ainda o preenchimento parcial pode dar margem a atos que violem direitos humanos relativos ao “mínimo ético irredutível”.

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Assim sendo, inicialmente iremos abordar a questão das normas de caráter erga omnes que tenham natureza universal. Tais normas, tomando como base as considerações adrede, impõem obrigações a todos os Estados, inclusive Estados terceiros que não são partes da convenção (acordo), em razão do vínculo indireto de cumprimento que a norma impõe ao Estado. Assim sendo, quando for reconhecido por norma de tratado ou convenção internacional direito humano tido como “mínimo ético irredutível” pela Comunidade Internacional69, receberá este proteção universal pela eficácia erga omnes. Os direitos tidos por um Estado como sendo um direito humano, e que não o seja expressamente tido como um direito humano básico no anseio internacional, não poderá ser objeto de irresignação internacional em face de um terceiro Estado, que não esteja diretamente vinculado à norma. Não podemos excluir ainda a possibilidade de determinados Estados convencionarem sobre a proteção de determinados direitos que sejam por estes entendidos como inerente à pessoa humana, mesmo que tais direitos não encontrem resguardo em preceitos internacionais de proteção universal. Assim, nascem as normas de caráter erga omnes de natureza não universais, ou seja, que são vigentes apenas àqueles Estados que se encontram diretamente ligados à norma, merecendo resguardo mesmo que o direito humano não seja tido como fundamental ou básico, posto que, se foi objeto de convenção pelas partes o dever de cumprimento a determinado direito, não pode qualquer parte descumprir, e, caso haja descumprimento, legitimados estão os Estados que encontrem igualmente vinculados (diretamente) a agir da forma que entender ser de direito, mesmo que não tenham suportado prejuízo. Assim sendo, podemos analisar sob uma ótica inversa da questão. As normas convencionais que disponham sobre direitos básicos ou fundamentais de direitos humanos, ou seja, aqueles entendidos pela Comunidade Internacional como sendo inerente ao “mínimo ético irredutível”, têm eficácia erga omnes universal, e obrigam todos os Estados que compõem o contexto da Comunidade Internacional, ao passo que, caso seja objeto de convenção determinado direito que não é tido como básico ou fundamental, mas que diga respeito à pessoa humana para determinados Estados, esta é uma norma de eficácia erga omnes não universal, pois obriga apenas os Estados que estejam vinculados diretamente à norma, por força da convenção, a cumprirem a obrigação.

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Quanto a capacidade de reconhecimento de um “valor ético irredutível” pela Comunidade Internacional, vejamos as considerações de DINH, Nguyen Quoc; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain, op. cit., pág. 206: “As preocupações morais determinaram em larga medida o voto dos representantes dos Estados reunidos em Viena. Fizeram questão em afirmar, por uma forte maioria, a existência de uma comunidade jurídica universal fundada em valores próprios, que todos os seus membros devem reconhecer”.

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Flávia Piovesan**

A proposta deste artigo é enfocar a hierarquia dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos à luz da Constituição Brasileira de 1988, com destaque à jurisprudência produzida pelo Supremo Tribunal Federal. Neste sentido, primeiramente serão apresentadas as especificidades desses tratados, bem como de sua fonte — o chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos. Em um segundo momento, o destaque será dado à posição do Brasil, em face dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos. Em seqüência, será desenvolvida a avaliação do modo pelo qual a Constituição Brasileira de 1988 tece a incorporação desses tratados, com ênfase na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria.

1. Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos: Gênese e Principiologia Os tratados internacionais de direitos humanos têm como fonte um campo do Direito extremamente recente, denominado “Direito Internacional dos Direitos Huma*

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Um especial agradecimento é feito à Alexander von Humboldt Foundation pela fellowship que tornou possível este estudo e ao Max-Planck Institute for Comparative Public Law and International Law por prover um ambiente acadêmico de extraordinário vigor intelectual. Professora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Professora de Direitos Humanos dos Programas de Pós Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e da Universidade Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha); visiting fellow do Human Rights Program da Harvard Law School (1995 e 2000), visiting fellow do Centre for Brazilian Studies da University of Oxford (2005), visiting fellow do Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law (Heidelberg - 2007 e 2008), sendo atualmente Humboldt Foundation Georg Forster Research Fellow no Max Planck Institute (2009-2011); procuradora do Estado de São Paulo, membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e membro da SUR – Human Rights University Network.

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nos”, que é o Direito do pós-guerra, nascido como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos pelo nazismo.1 Em face do regime de terror, no qual imperava a lógica da destruição e no qual as pessoas eram consideradas descartáveis, ou seja, em face do flagelo da Segunda Guerra Mundial, emerge a necessidade de reconstrução do valor dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional. O “Direito Internacional dos Direitos Humanos” surge, assim, em meados do século XX, em decorrência da Segunda Guerra Mundial e seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas violações de direitos humanos da era Hitler e à crença de que parte dessas violações poderiam ser prevenidas, se um efetivo sistema de proteção internacional de direitos humanos existisse.2 Ao tratar do Direito Internacional dos Direitos Humanos, afirma Richard B. Bilder: “O movimento do direito internacional dos direitos humanos é baseado na concepção de que toda nação tem a obrigação de respeitar os direitos humanos de seus cidadãos e de que todas as nações e a comunidade internacional têm o direito e a responsabilidade de protestar, se um Estado não cumprir suas obrigações. O Direito Internacional dos Direitos Humanos consiste em um sistema de normas internacionais, procedimentos e instituições desenvolvidas para implementar esta concepção e promover o respeito dos direitos humanos em todos os países, no âmbito mundial. (...) Embora a idéia de que os seres humanos têm direitos e liberdades fundamentais que lhe são inerentes tenha há muito tempo surgido no pensamento humano, a concepção de que os direitos humanos são objeto próprio de uma regulação internacional, por sua vez, é bastante recente. (...) Muitos dos direitos que hoje constam do ’Direito Internacional dos Direitos Humanos’ surgiram apenas em 1945, quando, com as implicações do holocausto e de outras violações de direitos humanos cometidas pelo nazismo, as nações do mundo decidiram que 1

2

Como explica Louis Henkin: “Subsequentemente à Segunda Guerra Mundial, os acordos internacionais de direitos humanos têm criado obrigações e responsabilidades para os Estados, com respeito às pessoas sujeitas à sua jurisdição, e um direito costumeiro internacional tem se desenvolvido. O emergente Direito Internacional dos Direitos Humanos institui obrigações aos Estados para com todas as pessoas humanas e não apenas para com estrangeiros. Este Direito reflete a aceitação geral de que todo indivíduo deve ter direitos, os quais todos os Estados devem respeitar e proteger. Logo, a observância dos direitos humanos é não apenas um assunto de interesse particular do Estado (e relacionado à jurisdição doméstica), mas é matéria de interesse internacional e objeto próprio de regulação do Direito Internacional”. (HENKIN, Louis et al. International law: cases and materials. 3. ed. Minnesota: West Publishing, 1993. p. 375-376). Na lição de Thomas Buergenthal: “Este código, como já observei em outros escritos, tem humanizado o direito internacional contemporâneo e internacionalizado os direitos humanos, ao reconhecer que os seres humanos têm direitos protegidos pelo direito internacional e que a denegação desses direitos engaja a responsabilidade internacional dos Estados independentemente da nacionalidade das vítimas de tais violações”. (BUERGENTHAL, Thomas. Prólogo. In: CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. A proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São Paulo: Saraiva, 1991. p. XXXI).

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a promoção de direitos humanos e liberdades fundamentais deve ser um dos principais propósitos da Organizações das Nações Unidas”.3 Neste cenário, fortalece-se a idéia de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio reservado do Estado, isto é, não deve se restringir à competência nacional exclusiva ou à jurisdição doméstica exclusiva, porque revela tema de legítimo interesse internacional. Para Andrew Hurrell: “O aumento significativo das ambições normativas da sociedade internacional é particularmente visível no campo dos direitos humanos e da democracia, com base na idéia de que as relações entre governantes e governados, Estados e cidadãos, passam a ser suscetíveis de legítima preocupação da comunidade internacional; de que os maus-tratos a cidadãos e a inexistência de regimes democráticos devem demandar ação internacional; e que a legitimidade internacional de um Estado passa crescentemente a depender do modo pelo qual as sociedades domésticas são politicamente ordenadas”4. Por sua vez, esta concepção inovadora aponta para duas importantes conseqüências: 1) a revisão da noção tradicional de soberania absoluta do Estado, que passa a sofrer um processo de relativização, na medida em que são admitidas intervenções no plano nacional, em prol da proteção dos direitos humanos; isto é, permitem-se formas de monitoramento e responsabilização internacional, quando os direitos humanos forem violados;5 2) a cristalização da idéia de que o indivíduo deve ter direitos protegidos na esfera internacional, na condição de sujeito de Direito.

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BILDER, Richard B. An overview of international human rights law. In: HANNUM, Hurst (Editor). Guide to international human rights practice. 2. ed. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1992. p. 3-5. Andrew Hurrell, Power, principles and prudence: protecting human rights in a deeply divided world, In: Tim Dunne e Nicholas J. Wheeler, Human Rights in Global Politics, Cambridge, Cambridge University Press, 1999, p.277. A respeito, destaque-se a afirmação do Secretário Geral das Nações Unidas, no final de 1992: “Ainda que o respeito pela soberania e integridade do Estado seja uma questão central, é inegável que a antiga doutrina da soberania exclusiva e absoluta não mais se aplica e que esta soberania jamais foi absoluta, como era então concebida teoricamente. Uma das maiores exigências intelectuais de nosso tempo é a de repensar a questão da soberania (...). Enfatizar os direitos dos indivíduos e os direitos dos povos é uma dimensão da soberania universal, que reside em toda a humanidade e que permite aos povos um envolvimento legítimo em questões que afetam o mundo como um todo. É um movimento que, cada vez mais, encontra expressão na gradual expansão do Direito Internacional”. (BOUTROS-GHALI, Boutros. Empowering the United Nations. Foreign Affairs, v. 89, p. 98-99, 1992/1993, apud HENKIN, Louis, et al, International law: cases and materials, op. cit., p. 18). Transita-se, assim, de uma concepção “hobbesiana” de soberania, centrada no Estado, para uma concepção “kantiana” de soberania, centrada na cidadania universal. Para Celso Lafer, de uma visão ex parte príncipe, fundada nos deveres dos súditos com relação ao Estado, passa-se a uma visão ex parte populi, fundada na promoção da noção de direitos do cidadão. (LAFER, Celso. Comércio, Desarmamento, Direitos Humanos: reflexões sobre uma experiência diplomática, São Paulo, Paz e Terra, 1999, p.145).

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Prenuncia-se, deste modo, o fim da era em que a forma pela qual o Estado tratava seus nacionais era concebida como um problema de jurisdição doméstica, decorrência de sua soberania. Inspirada por estas concepções, surge, a partir do pós-guerra, em 1945, a Organização das Nações Unidas. Em 1948 é adotada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela aprovação unânime de 48 Estados, com 8 abstenções.6 A Declaração consolida a afirmação de uma ética universal,7 ao consagrar um consenso sobre valores de cunho universal, a serem seguidos pelos Estados. A Declaração de 1948 introduz a concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e indivisibilidade desses direitos. Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrínseco à condição humana. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem, assim, uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos com o catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais. A partir da aprovação da Declaração Universal de 1948 e da concepção contemporânea de direitos humanos por ela introduzida, começa a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros tratados internacionais voltados à proteção de direitos fundamentais. Os instrumentos internacionais de proteção refletem, sobretudo, a consciência ética contemporânea compartilhada pelos 6

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A Declaração Universal foi aprovada pela Resolução 217 A (III), da Assembléia Geral, em 10 de dezembro de 1948, por 48 votos a zero e oito abstenções. Os oito Estados que se abstiveram foram: Bielorússia, Checoslováquia, Polônia, Arábia Saudita, Ucrânia, União Soviética, África do Sul e Iugoslávia. Observe-se que em Helsinki, em 1975, no Ato Final da Conferência sobre Seguridade e Cooperação na Europa, os Estados comunistas da Europa expressamente aderiram à Declaração Universal. Sobre o caráter universal da Declaração, observa René Cassin: “Séame permitido, antes de concluir, resumir a grandes rasgos los caracteres de la declaración surgida de nuestros debates de 1947 a 1948. Esta declaración se caracteriza, por una parte, por su amplitud. Comprende el conjunto de derechos y facultades sin los cuales un ser humano no puede desarrolar su personalidad física, moral y intelectual. Su segunda característica es la universalidad: es aplicable a todos los hombres de todos los países, razas, religiones y sexos, sea cual fuere el régimen político de los territorios donde rija. De ahí que al finalizar los trabajos, pese a que hasta entonces se había hablado siempre de declaración “internacional”, la Asamblea General, gracias a mi proposición, proclamó la declaración “Universal”. Al hacerlo conscientemente, subrayó que el individuo es miembro directo de la sociedad humana y que es sujeto directo del derecho de gentes. Naturalmente, es ciudadano de su país, pero también lo es del mundo, por el hecho mismo de la protección que el mundo debe brindarle. Tales son los caracteres esenciales de la declaración.(...) La Declaración, por el hecho de haber sido, como fue el caso, adoptada por unanimidad (pues sólo hubo 8 abstenciones, frente a 48 votos favorables), tuvo inmediatamente una gran repercusión en la moral de las naciones. Los pueblos empezaron a darse cuenta de que el conjunto de la comunidad humana se interesaba por su destino”. (CASSIN, René. El problema de la realización de los derechos humanos en la sociedad universal. In: Viente años de evolucion de los derechos humanos. México: Instituto de Investigaciones Jurídicas, 1974. p. 397). Cf. Eduardo Muylaert Antunes: “A Declaração Universal dos Direitos Humanos se impõe com “o valor da afirmação de uma ética universal” e conservará sempre seu lugar de símbolo e de ideal”. (Natureza jurídica da Declaração Universal de Direitos Humanos. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 446, p. 35, dez. 1972).

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Estados, na medida em que invocam o consenso internacional acerca de temas centrais aos direitos humanos. Neste sentido, cabe destacar que, até 2007, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos contava com 161 Estados-partes; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais contava com 157 Estados-partes; a Convenção contra a Tortura contava com 145 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial contava com 173 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher contava com 185 Estados-partes e a Convenção sobre os Direitos da Criança apresentava a mais ampla adesão, com 193 Estados-partes8. Ao lado do sistema normativo global, surge o sistema normativo regional de proteção, que busca internacionalizar os direitos humanos no plano regional, particularmente na Europa, América e África. Consolida-se, assim, a convivência do sistema global com instrumentos do sistema regional, por sua vez integrado pelos sistemas interamericano, europeu e africano de proteção aos direitos humanos. Os sistemas global e regional não são dicotômicos, mas complementares. Inspirados pelos valores e princípios da Declaração Universal, compõem o universo instrumental de proteção dos direitos humanos no plano internacional. Em face desse complexo universo de instrumentos internacionais, cabe ao indivíduo que sofreu violação de direito a escolha do aparato mais favorável, tendo em vista que, eventualmente, direitos idênticos são tutelados por dois ou mais instrumentos de alcance global ou regional, ou ainda, de alcance geral ou especial. Nesta ótica, os diversos sistemas de proteção de direitos humanos interagem em benefício dos indivíduos protegidos. Ao adotar o valor da primazia da pessoa humana, estes sistemas se complementam, interagindo com o sistema nacional de proteção, a fim de proporcionar a maior efetividade possível na tutela e promoção de direitos fundamentais. Esta é inclusive a lógica e principiologia próprias do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Vale dizer, a lógica do Direito dos Direitos Humanos é, sobretudo, uma lógica material, inspirada no valor da dignidade humana. Feitas essas breves considerações a respeito dos tratados internacionais de direitos humanos, passa-se à análise do modo pelo qual o Brasil se relaciona com o aparato internacional de proteção dos direitos humanos.

2. O Estado Brasileiro em face do Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos No que se refere à posição do Brasil em relação ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos, observa-se que somente a partir do processo de democratiza8

Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas, Status of Ratifications of the Principal International Human Rights Treaties, http://www.unhchr.ch/pdf/report.pdf

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ção do país, deflagrado em 1985, é que o Estado brasileiro passou a ratificar relevantes tratados internacionais de direitos humanos. O marco inicial do processo de incorporação de tratados internacionais de direitos humanos pelo Direito brasileiro foi a ratificação, em 1989, da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes. A partir dessa ratificação, inúmeros outros importantes instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos foram também incorporados pelo Direito Brasileiro, sob a égide da Constituição Federal de 1988. Assim, a partir da Carta de 1988, importantes tratados internacionais de direitos humanos foram ratificados pelo Brasil. Dentre eles, destaque-se a ratificação: a) da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, em 20 de julho de 1989; b) da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, em 28 de setembro de 1989; c) da Convenção sobre os Direitos da Criança, em 24 de setembro de 1990; d) do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em 24 de janeiro de 1992; e) do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em 24 de janeiro de 1992; f) da Convenção Americana de Direitos Humanos, em 25 de setembro de 1992; g) da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, em 27 de novembro de 1995; h) do Protocolo à Convenção Americana referente à Abolição da Pena de Morte, em 13 de agosto de 1996; i) do Protocolo à Convenção Americana referente aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), em 21 de agosto de 1996; j) da Convenção Interamericana para Eliminação de todas as formas de Discriminação contra Pessoas Portadoras de Deficiência, em 15 de agosto de 2001; k) do Estatuto de Roma, que cria o Tribunal Penal Internacional, em 20 de junho de 2002; l) do Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, em 28 de junho de 2002; m) do Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança sobre o Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados, em 27 de janeiro de 2004; n) do Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança sobre Venda, Prostituição e Pornografia Infantis, também em 27 de janeiro de 2004; o) do Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura, em 11 de janeiro de 2007; e p) da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, em 10 de julho de 2008. As inovações introduzidas pela Carta de 1988 — especialmente no que tange ao primado da prevalência dos direitos humanos, como princípio orientador das relações internacionais — foram fundamentais para a ratificação desses importantes instrumentos de proteção dos direitos humanos.9 9

Para J. A. Lindgren Alves: “Com a adesão aos dois Pactos Internacionais da ONU, assim como ao Pacto de São José, no âmbito da OEA, em 1992, e havendo anteriormente ratificado todos os instrumentos jurídicos internacionais significativos sobre a matéria, o Brasil já cumpriu praticamente todas as formalidades externas necessárias à sua integração ao sistema internacional de proteção aos direitos humanos. Internamente, por

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Além das inovações constitucionais, como importante fator para a ratificação desses tratados internacionais, acrescente-se a necessidade do Estado brasileiro de reorganizar sua agenda internacional, de modo mais condizente com as transformações internas decorrentes do processo de democratização. Este esforço se conjuga com o objetivo de compor uma imagem mais positiva do Estado brasileiro no contexto internacional, como país respeitador e garantidor dos direitos humanos. Adicione-se que a subscrição do Brasil aos tratados internacionais de direitos humanos simboliza ainda o aceite do Brasil para com a idéia contemporânea de globalização dos direitos humanos, bem como para com a idéia da legitimidade das preocupações da comunidade internacional, no tocante à matéria. Por fim, há que se acrescer o elevado grau de universalidade desses instrumentos, que contam com significativa adesão dos demais Estados integrantes da ordem internacional. Logo, faz-se clara a relação entre o processo de democratização no Brasil e o processo de incorporação de relevantes instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, tendo em vista que, se o processo de democratização permitiu a ratificação de relevantes tratados de direitos humanos, por sua vez essa ratificação permitiu o fortalecimento do processo democrático, através da ampliação e do reforço do universo de direitos por ele assegurado.

3. A Hierarquia dos Tratados Internacionais de Proteção de Direitos Humanos à luz da Constituição Federal de 1988 e a Jurisprudência do STF Preliminarmente, é necessário frisar que a Constituição Brasileira de 1988 constitui o marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos no Brasil. O texto de 1988, ao simbolizar a ruptura com o regime autoritário, empresta aos direitos e garantias ênfase extraordinária, situando-se como o documento mais avançado, abrangente e pormenorizado sobre a matéria, na história constitucional do país. O valor da dignidade humana — ineditamente elevado a princípio fundamental da Carta, nos termos do art. 1º, III — impõe-se como núcleo básico e informador do ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional instaurado em 1988. A dignidade humana e os direitos fundamentais vêm a constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro. Na ordem de 1988, esses valores passam a ser dotados de uma especial outro lado, as garantias aos amplos direitos entronizados na Constituição de 1988, não passíveis de emendas e, ainda, extensivas a outros decorrentes de tratados de que o país seja parte, asseguram a disposição do Estado democrático brasileiro de conformar-se plenamente às obrigações internacionais por ele contraídas”. (Os direitos humanos como tema global. São Paulo: Perspectiva/Fundação Alexandre de Gusmão, 1994. p. 108).

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força expansiva, projetando-se por todo universo constitucional e servindo como critério interpretativo de todas as normas do ordenamento jurídico nacional. É nesse contexto que há de se interpretar o disposto no art. 5º, § 2º do texto, que tece a interação entre o Direito brasileiro e os tratados internacionais de direitos humanos. Ao fim da extensa Declaração de Direitos enunciada pelo art. 5º, a Carta de 1988 estabelece que os direitos e garantias expressos na Constituição “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. À luz desse dispositivo constitucional, os direitos fundamentais podem ser organizados em três distintos grupos: a) o dos direitos expressos na Constituição; b) o dos direitos implícitos, decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Carta constitucional; e c) o dos direitos expressos nos tratados internacionais subscritos pelo Brasil. A Constituição de 1988 inova, assim, ao incluir, dentre os direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais de que o Brasil seja signatário. Ao efetuar tal incorporação, a Carta está a atribuir aos direitos internacionais uma hierarquia especial e diferenciada, qual seja, a de norma constitucional. Essa conclusão advém de interpretação sistemática e teleológica do texto, especialmente em face da força expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, como parâmetros axiológicos a orientar a compreensão do fenômeno constitucional.10 A esse raciocínio se acrescentam o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais referentes a direitos e garantias fundamentais e a natureza materialmente constitucional dos direitos fundamentais,11 o que justifica estender aos direitos enunciados em tratados o regime constitucional conferido aos demais direitos e garantias fundamentais. Essa conclusão decorre também do processo de globalização, que 10

11

Para José Joaquim Gomes Canotilho: “A legitimidade material da Constituição não se basta com um “dar forma” ou “constituir” de órgãos; exige uma fundamentação substantiva para os actos dos poderes públicos e daí que ela tenha de ser um parâmetro material, directivo e inspirador desses actos. A fundamentação material é hoje essencialmente fornecida pelo catálogo de direitos fundamentais (direitos, liberdades e garantias e direitos econômicos, sociais e culturais)”. (Direito constitucional. 6. ed. rev. Coimbra: Almedina, 1993. p. 74). Sobre o tema, afirma José Joaquim Gomes Canotilho: “Ao apontar para a dimensão material, o critério em análise coloca-nos perante um dos temas mais polêmicos do direito constitucional: qual é o conteúdo ou matéria da Constituição? O conteúdo da Constituição varia de época para época e de país para país e, por isso, é tendencialmente correcto afirmar que não há reserva de Constituição no sentido de que certas matérias têm necessariamente de ser incorporadas na Constituição pelo Poder Constituinte. Registre-se, porém, que, historicamente (na experiência constitucional), foram consideradas matérias constitucionais, par excellence, a organização do poder político (informada pelo princípio da divisão de poderes) e o catálogo dos direitos, liberdades e garantias. Posteriormente, verificou-se o “enriquecimento” da matéria constitucional através da inserção de novos conteúdos, até então considerados de valor jurídico-constitucional irrelevante, de valor administrativo ou de natureza sub-constitucional (direitos econômicos, sociais e culturais, direitos de participação e dos trabalhadores e constituição econômica)”. (Direito constitucional, op. cit., p. 68). Prossegue o mesmo autor: “Um topos caracterizador da modernidade e do constitucionalismo foi sempre o da consideração dos “direitos do homem” como ratio essendi do Estado Constitucional. Quer fossem considerados como “direitos naturais”, “direitos inalienáveis” ou “direitos racionais” do indivíduo, os direitos do homem, constitucionalmente reconhecidos, possuíam uma dimensão projectiva de comensuração universal”. (idem, p. 18).

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propicia e estimula a abertura da Constituição à normação internacional — abertura que resulta na ampliação do “bloco de constitucionalidade”, que passa a incorporar preceitos asseguradores de direitos fundamentais. Adicione-se ainda o fato das Constituições latino-americanas recentes conferirem aos tratados de direitos humanos um status jurídico especial e diferenciado, destacando-se, neste sentido, a Constituição da Argentina que, em seu art. 75, § 22, eleva os principais tratados de direitos humanos à hierarquia de norma constitucional. Logo, por força do art. 5º, §§ 1º e 2º, a Carta de 1988 atribui aos direitos enunciados em tratados internacionais a hierarquia de norma constitucional, incluindo-os no elenco dos direitos constitucionalmente garantidos, que apresentam aplicabilidade imediata. A hierarquia constitucional dos tratados de proteção dos direitos humanos decorre da previsão constitucional do art. 5º, § 2º, à luz de uma interpretação sistemática e teleológica da Carta, particularmente da prioridade que atribui aos direitos fundamentais e ao princípio da dignidade da pessoa humana. Essa opção do constituinte de 1988 se justifica em face do caráter especial dos tratados de direitos humanos e, no entender de parte da doutrina, da superioridade desses tratados no plano internacional, tendo em vista que integrariam o chamado jus cogens (direito cogente e inderrogável). Enfatize-se que, enquanto os demais tratados internacionais têm força hierárquica infraconstitucional, nos termos do art. 102, III, “b” do texto (que admite o cabimento de recurso extraordinário de decisão que declarar a inconstitucionalidade de tratado), os direitos enunciados em tratados internacionais de proteção dos direitos humanos detêm natureza de norma constitucional. Esse tratamento jurídico diferenciado se justifica, na medida em que os tratados internacionais de direitos humanos apresentam um caráter especial, distinguindo-se dos tratados internacionais comuns. Enquanto estes buscam o equilíbrio e a reciprocidade de relações entre Estados-partes, aqueles transcendem os meros compromissos recíprocos entre os Estados pactuantes, tendo em vista que objetivam a salvaguarda dos direitos do ser humano e não das prerrogativas dos Estados. No mesmo sentido, argumenta Juan Antonio Travieso: “Los tratados modernos sobre derechos humanos en general, y, en particular la Convención Americana no son tratados multilaterales del tipo tradicional concluidos en función de un intercambio recíproco de derechos para el beneficio mutuo de los Estados contratantes. Su objeto y fin son la protección de los derechos fundamentales de los seres humanos independientemente de su nacionalidad, tanto frente a su proprio Estado como frente a los otros Estados contratantes. Al aprobar estos tratados sobre derechos humanos, los Estados se someten a un orden legal dentro del cual ellos, por el bién común, asumen varias obligaciones, no en relación con otros Estados, sino hacia los individuos bajo su jurisdicción. Por tanto, la Convención no sólo vincula a los Estados partes, sino que otorga garantías a las personas. Por ese motivo, justificadamente, no puede interpretarse como cualquier otro tratado”.12 Esse caráter especial vem a justificar o status constitucional atri12

TRAVIESO, Juan Antonio. Derechos humanos y derecho internacional. Buenos Aires: Heliasta, 1990. p. 90.

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buído aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos. Observe-se que a hierarquia infraconstitucional dos demais tratados internacionais é extraída do art. 102, III, b, da Constituição Federal de 1988, que confere ao Supremo Tribunal Federal a competência para julgar, mediante recurso extraordinário, “as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal”. Sustenta-se, assim, que os tratados tradicionais têm hierarquia infraconstitucional, mas supralegal. Esse posicionamento se coaduna com o princípio da boa-fé, vigente no direito internacional (o pacta sunt servanda), e que tem como reflexo o art. 27 da Convenção de Viena, segundo o qual não cabe ao Estado invocar disposições de seu direito interno como justificativa para o não-cumprimento de tratado. À luz do mencionado dispositivo constitucional, uma tendência da doutrina brasileira, contudo, passou a acolher a concepção de que os tratados internacionais e as leis federais apresentavam a mesma hierarquia jurídica, sendo portanto aplicável o princípio “lei posterior revoga lei anterior que seja com ela incompatível”. Essa concepção não apenas compromete o princípio da boa-fé, mas constitui afronta à Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. Desde 1977 o Supremo Tribunal Federal, com base nesse raciocínio, acolhe o sistema que equipara juridicamente o tratado internacional à lei federal. Com efeito, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 80.004, em 1977, o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que os tratados internacionais estão em paridade com a lei federal, apresentando a mesma hierarquia que esta. Por conseqüência, concluiu ser aplicável o princípio segundo o qual a norma posterior revoga a norma anterior com ela incompatível. Nesse sentido, pronuncia-se o Ministro Francisco Rezek: “De setembro de 1975 a junho de 1977 estendeu-se, no plenário do Supremo Tribunal Federal, o julgamento do RE 80.004, em que ficou assentada, por maioria, a tese de que, ante a realidade do conflito entre tratado e lei posterior, esta, porque expressão última da vontade do legislador republicano deve ter sua prevalência garantida pela Justiça — sem embargo das conseqüências do descumprimento do tratado, no plano internacional. Admitiram as vozes majoritárias que, faltante na Constituição do Brasil garantia de privilégio hierárquico do tratado internacional sobre as leis do Congresso, era inevitável que a Justiça devesse garantir a autoridade da mais recente das normas, porque paritária sua estatura no ordenamento jurídico”13.

13

Compartilhando do mesmo entendimento, leciona Jorge Reinaldo Vanossi: “La declaración de la Constitución argentina es concordante con as Declaraciones que han adoptado los organismos internacionales, y se refuerza con la ratificación argentina a las convenciones o pactos internacionales de derechos humanos destinados a hacerlos efectivos y brindar protección concreta a las personas a través de instituciones internacionales”. (La Constitución Nacional y los derechos humanos. 3. ed. Buenos Aires: Eudeba, 1988. p. 35). Francisco Rezek, Direito internacional público: curso elementar, p. 106. Na lição crítica de André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros, ao enfocarem o direito brasileiro: “Quanto aos tratados em geral, a doutrina e a jurisprudência têm entendido, não sem hesitações, que o tratado e a lei estão no mesmo nível hierárquico, ou

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A respeito afirma Jacob Dolinger: “Hans Kelsen, que deu ao monismo jurídico sua expressão científica definitiva, advogava a primazia do direito internacional sobre o direito interno por motivos de ordem prática: a primazia do direito interno acarretaria o despedaçamento do direito e, conseqüentemente, sua negação. De acordo com a teoria kelseniana, a ordem jurídica interna deriva da ordem jurídica internacional como sua delegada. Esta foi a posição abraçada pelos internacionalistas brasileiros, tanto os publicistas como os privatistas, e que era geralmente aceita pelos Tribunais brasileiros, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal, até que, em 1977, ao julgar o Recurso Extraordinário n. 80.004, a Suprema Corte modificou seu ponto de vista, admitindo a derrogação de um tratado por lei posterior, posição que vem sendo criticada pela doutrina pátria. Esta nova posição da Excelsa Corte brasileira enraizou-se de tal maneira que o Ministro José Francisco Resek pronunciou-se recentemente de forma assaz contundente, dizendo da ‘prevalência à última palavra do Congresso Nacional, expressa no texto doméstico, não obstante isto importasse o reconhecimento da afronta, pelo país, de um compromisso internacional. Tal seria um fato resultante da culpa dos poderes políticos, a que o Judiciário não teria como dar remédio’.14 Observe-se que, anteriormente a 1977, há diversos acórdãos consagrando o primado do Direito Internacional, como é o caso da União Federal c. Cia. Rádio Internacional do Brasil (1951), em que o Supremo Tribunal Federal decidiu unanimemente que um tratado revogava as leis anteriores (Apelação Cível 9.587). Merece também menção um acórdão do STF, em 1914, no Pedido de Extradição n. 07 de 1913, em que se declarava estar em vigor e aplicável um tratado, apesar de haver uma lei posterior contrária a ele. O acórdão na Apelação Cível n. 7.872 de 1943, com base no voto de Philadelpho de Azevedo, também afirma que a lei não revoga o tratado. Ainda neste sentido está a Lei n. 5.172 de 25/10/66 que estabelece: ‘Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna e serão observados pela que lhe sobrevenha’”15. Contudo, realça Celso D. Albuquerque Mello: “A tendência mais recente no Brasil é a de um verdadeiro retrocesso nesta matéria. No recurso extraordinário n. 80.004, decidido em 1977, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu que uma lei revoga o tratado anterior. Esta decisão viola também a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (1969) que não admite o término de tratado por mudança de direito superveniente”.16 Acredita-se que o entendimento firmado a partir do julgamento do Recurso Extraordinário n. 80.004 enseja, de fato, um aspecto crítico, que é a sua indiferença diante

14 15 16

seja, que entre aquela e este se verifica uma ‘paridade’ — paridade essa que, todavia, funciona a favor da lei. De facto, a lei não pode ser afastada por tratado com ela incompatível; mas se ao tratado se suceder uma lei que bula com ele, essa lei não revoga, em sentido técnico, o tratado, mas ‘afasta sua aplicação’, o que quer dizer que o tratado só se aplicará se e quando aquela lei for revogada” (Manual de direito internacional público, p. 103). Jacob Dolinger, A nova Constituição e o direito internacional, p. 13. Celso D. Albuquerque Mello, Curso de direito internacional público, p. 69. Celso D. Albuquerque Mello, Curso de direito internacional público, p. 70.

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das conseqüências do descumprimento do tratado no plano internacional, na medida em que autoriza o Estado-parte a violar dispositivos da ordem internacional — os quais se comprometeu a cumprir de boa-fé. Essa posição afronta, ademais, o disposto pelo art. 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, que determina não poder o Estado-parte invocar posteriormente disposições de direito interno como justificativa para o não-cumprimento de tratado. Tal dispositivo reitera a importância, na esfera internacional, do princípio da boa-fé, pelo qual cabe ao Estado conferir cumprimento às disposições de tratado, com o qual livremente consentiu. Ora, se o Estado, no livre e pleno exercício de sua soberania, ratifica um tratado, não pode posteriormente obstar seu cumprimento. Além disso, o término de um tratado está submetido à disciplina da denúncia, ato unilateral do Estado pelo qual manifesta seu desejo de deixar de ser parte de um tratado. Vale dizer, em face do regime de Direito Internacional, apenas o ato da denúncia implica a retirada do Estado de determinado tratado internacional. Assim, na hipótese da inexistência do ato da denúncia, persiste a responsabilidade do Estado na ordem internacional. Embora a tese da paridade entre tratado e lei federal tenha sido firmada pelo Supremo Tribunal Federal em 1977, sendo anterior, portanto, à Constituição de 1988, e refira-se ainda a tema comercial (conflito entre a Convenção de Genebra — Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias — e o Decreto-lei n. 427, de 1969), constata-se ter sido ela reiterada pelo Supremo Tribunal Federal em novembro de 1995, quando do julgamento, em grau de habeas corpus, de caso relativo à prisão civil por dívida do depositário infiel. Com efeito, no julgamento do HC 72.131-RJ (22.11.1995), ao enfrentar a questão concernente ao impacto do Pacto de São José da Costa Rica (particularmente do art. 7, VII, que proíbe a prisão civil por dívida, salvo no caso de alimentos) no Direito brasileiro, o Supremo Tribunal Federal, em votação não unânime (vencidos os Ministros Marco Aurélio, Carlos Velloso e Sepúlveda Pertence), afirmou que “inexiste, na perspectiva do modelo constitucional vigente no Brasil, qualquer precedência ou primazia hierárquico-normativa dos tratados ou convenções internacionais sobre o direito positivo interno, sobretudo em face das cláusulas inscritas no texto da Constituição da República, eis que a ordem normativa externa não se superpõe, em hipótese alguma, ao que prescreve a Lei Fundamental da República. (...) a ordem constitucional vigente no Brasil não pode sofrer interpretação que conduza ao reconhecimento de que o Estado brasileiro, mediante convenção internacional, ter-se-ia interditado a possibilidade de exercer, no plano interno, a competência institucional que lhe foi outorgada expressamente pela própria Constituição da República. A circunstância do Brasil haver aderido ao Pacto de São José da Costa Rica — cuja posição, no plano da hierarquia das fontes jurídicas, situa-se no mesmo nível de eficácia e autoridade das leis ordinárias internas — não impede que o Congresso Nacional, em tema de prisão civil por dívida, aprove legislação comum instituidora desse meio excepcional de coerção processual (...). Os tratados internacionais

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não podem transgredir a normatividade emergente da Constituição, pois, além de não disporem de autoridade para restringir a eficácia jurídica das cláusulas constitucionais, não possuem força para conter ou para delimitar a esfera de abrangência normativa dos preceitos inscritos no texto da Lei Fundamental. (...) Diversa seria a situação, se a Constituição do Brasil — à semelhança do que hoje estabelece a Constituição argentina, no texto emendado pela Reforma Constitucional de 1994 (art. 75, n. 22) — houvesse outorgado hierarquia constitucional aos tratados celebrados em matéria de direitos humanos. (...) Parece-me irrecusável, no exame da questão concernente à primazia das normas de direito internacional público sobre a legislação interna ou doméstica do Estado brasileiro, que não cabe atribuir, por efeito do que prescreve o art. 5º, parágrafo 2º, da Carta Política, um inexistente grau hierárquico das convenções internacionais sobre o direito positivo interno vigente no Brasil, especialmente sobre as prescrições fundadas em texto constitucional, sob pena de essa interpretação inviabilizar, com manifesta ofensa à supremacia da Constituição — que expressamente autoriza a instituição da prisão civil por dívida em duas hipóteses extraordinárias (CF, art. 5º, LXVII) — o próprio exercício, pelo Congresso Nacional, de sua típica atividade político-jurídica consistente no desempenho da função de legislar. (...) A indiscutível supremacia da ordem constitucional brasileira sobre os tratados internacionais, além de traduzir um imperativo que decorre de nossa própria Constituição (art. 102, III, b), reflete o sistema que, com algumas poucas exceções, tem prevalecido no plano do direito comparado”.17 Este artigo, no entanto, defende posição diversa. Acredita-se, ao revés, que conferir hierarquia constitucional aos tratados de direitos humanos, com a observância do princípio da prevalência da norma mais favorável, é interpretação que se situa em absoluta consonância com a ordem constitucional de 1988, bem como com sua racionalidade e principiologia. Trata-se de interpretação que está em harmonia com os valores prestigiados pelo sistema jurídico de 1988, em especial com o valor da dignidade humana — que é valor fundante do sistema constitucional. Insiste-se que a teoria da paridade entre o tratado internacional e a legislação federal não se aplica aos tratados internacionais de direitos humanos, tendo em vista que a Constituição de 1988 assegura a estes garantia de privilégio hierárquico, reconhecendo-lhes natureza de norma constitucional. Esse tratamento jurídico diferenciado, conferido pelo art. 5º, § 2º, da Carta de 1988, justifica-se na medida em que os tratados internacionais de direitos humanos apresentam um caráter especial, distinguindo-se dos tratados internacionais comuns. Como esclarece a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em sua Opinião Consultiva n. 2, de setembro de 1982: “Ao aprovar estes tratados sobre direitos humanos, os Estados se submetem a uma ordem legal dentro da qual eles, em 17

Estes trechos foram extraídos do voto do Ministro Celso de Mello no julgamento do HC 72.131-RJ, em 22.11.1995. Note-se que esse entendimento foi posteriormente reiterado nos julgamentos do RE 206.482-SP; HC 76-561-SP, Plenário, 27.5.1998, e RE 243613, 27.4.1999.

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prol do bem comum, assumem várias obrigações, não em relação a outros Estados, mas em relação aos indivíduos que estão sob a sua jurisdição”. O caráter especial vem a justificar o status constitucional atribuído aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos. Esses argumentos sustentam a conclusão de que o direito brasileiro faz opção por um sistema misto disciplinador dos tratados, sistema que se caracteriza por combinar regimes jurídicos diferenciados: um regime aplicável aos tratados de direitos humanos e outro aplicável aos tratados tradicionais. Enquanto os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos — por força do art. 5º, § 2º — apresentam hierarquia constitucional, os demais tratados internacionais apresentam hierarquia infraconstitucional. Acrescente-se que, além da concepção que confere aos tratados de direitos humanos natureza constitucional (concepção defendida por este trabalho) e da concepção, que, ao revés, confere aos tratados status paritário ao da lei federal (posição majoritária do STF), destacam-se outras duas correntes doutrinárias. Uma delas sustenta que os tratados de direitos humanos têm hierarquia supraconstitucional, enquanto a outra corrente defende a hierarquia infra-constitucional, mas supralegal, dos tratados de direitos humanos. No dizer de Agustín Gordillo, para quem os tratados de direitos humanos têm hierarquia supraconstitucional, “a supremacia da ordem supranacional sobre a ordem nacional preexistente não pode ser senão uma supremacia jurídica, normativa, detentora de força coativa e de imperatividade. Estamos, em suma, ante um normativismo supranacional. Concluímos, pois, que as características da Constituição, como ordem jurídica suprema do direito interno, são aplicáveis em um todo às normas da Convenção, enquanto ordem jurídica suprema supranacional. Não duvidamos de que muitos intérpretes resistirão a considerá-la direito supranacional e supraconstitucional, sem prejuízo dos que se negarão a considerá-la sequer direito interno, ou, mesmo, direito”.18 Nessa mesma direção, afirmam André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros: “No Brasil, a Constituição de 1988 não regula a vigência do Direito Internacional na ordem interna, salvo quanto aos tratados internacionais sobre os Direitos do Homem, quanto aos quais o art. 5º, parágrafo 2º, contém uma disposição muito próxima do art. 16, n. 1, da Constituição da República Portuguesa de 1976 que, como demonstraremos adiante, deve ser interpretada como conferindo grau supraconstitucional àqueles tratados. (...) ao estabelecer que ‘os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das regras aplicáveis do Direito Internacional’, o seu art. 16, n. 1, ainda que implicitamente, está a conceder grau supraconstitucional a todo o Direito Internacional dos Direitos do Homem, tanto de fonte consuetudinária, como convencional. De facto, à expressão ‘não excluem’ não pode ser concedido um alcance meramente quantitativo: ela tem de ser interpretada como querendo significar também que, em caso de conflito entre as normas 18

Agustín Gordillo, Derechos humanos, doctrina, casos y materiales: parte general, p. 53 e 55.

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constitucionais e o Direito Internacional em matéria de direitos fundamentais, será este que prevalecerá”.19 Destaca-se, ainda, a corrente doutrinária que defende a hierarquia infraconstitucional, mas supralegal, dos tratados de direitos humanos. A respeito, merece menção o entendimento do Ministro Sepúlveda Pertence por ocasião do julgamento do RHC n. 79.785-RJ, no Supremo Tribunal Federal, em maio de 2000, que envolvia o alcance interpretativo do princípio do duplo grau de jurisdição, previsto pela Convenção Americana de Direitos Humanos. Ressaltou, em seu voto, o referido Ministro: “Desde logo, participo do entendimento unânime do Tribunal que recusa a prevalência sobre a Constituição de qualquer convenção internacional (cf. decisão preliminar sobre o cabimento da ADIn 1.480, cit., Inf. STF 48)”. E prosseguiu: “Na ordem interna, direitos e garantias fundamentais o são, com grande freqüência, precisamente porque — alçados ao texto constitucional — se erigem em limitações positivas ou negativas ao conteúdo das leis futuras, assim como à recepção das anteriores à Constituição (Hans Kelsen, Teoria Geral do Direito e do Estado, trad. M. Fontes, UnB, 1990, p. 255). Se assim é, à primeira vista, parificar às leis ordinárias os tratados a que alude o art. 5º § 2º, da Constituição, seria esvaziar de muito do seu sentido útil a inovação, que, malgrado os termos equívocos do seu enunciado, traduziu uma abertura significativa ao movimento de internacionalização de direitos humanos. Ainda sem certezas suficientemente amadurecidas, tendo assim — aproximando-me, creio, da linha desenvolvida no Brasil por Cançado Trindade (Memorial em prol de uma nova mentalidade quanto à proteção de direitos humanos nos planos internacional e nacional em Arquivos de Direitos Humanos, 2000, 1/3, 43) e pela ilustrada Flávia Piovesan (A Constituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos, em E. Boucault e N. Araújo (org.), Os Direitos Humanos e o Direito Interno) — a aceitar a outorga de força supralegal às convenções de direitos humanos, de modo a dar aplicação direta às suas normas — até, se necessário, contra a lei ordinária — sempre que, sem ferir a Constituição, a complementem, especificando ou ampliando os direitos e garantias dela constantes”. Esse entendimento consagra a hierarquia infraconstitucional, mas supralegal, dos tratados internacionais de direitos humanos, distinguindo-os dos tratados tradicionais. Divorcia-se, dessa forma, da tese majoritária do STF a respeito da paridade entre tratados internacionais e leis federais20. 19

20

André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros, Manual de direito internacional público, p. 103 e 117. Ver ainda Celso de Albuquerque Mello, O parágrafo 2º do art. 5º da Constituição Federal, in Ricardo Lobo Torres, Teoria dos direitos fundamentais, p. 25. Destaca-se, ainda, a posição do então Ministro Carlos Velloso, em favor da hierarquia constitucional dos tratados de proteção dos direitos humanos (vide julgamento do Habeas Corpus n. 82.424/RS, conhecido como o “caso Ellwanger”).

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Em síntese, há quatro correntes acerca da hierarquia dos tratados de proteção dos direitos humanos, que sustentam: a) a hierarquia supraconstitucional de tais tratados; b) a hierarquia constitucional; c) a hierarquia infraconstitucional, mas supralegal e d) a paridade hierárquica entre tratado e lei federal. No sentido de responder à polêmica doutrinária e jurisprudencial concernente à hierarquia dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, a Emenda Constitucional n. 45, de 8 dezembro de 2004, introduziu um § 3º no art. 5º, dispondo: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas à Constituição”. Em face de todos argumentos já expostos, sustenta-se que hierarquia constitucional já se extrai de interpretação conferida ao próprio art. 5º, § 2º, da Constituição de 1988. Vale dizer, seria mais adequado que a redação do aludido § 3º do art. 5º endossasse a hierarquia formalmente constitucional de todos os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados, afirmando — tal como o fez o texto argentino — que os tratados internacionais de proteção de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro têm hierarquia constitucional.21 No entanto, estabelece o § 3º do art. 5º que os tratados internacionais de direitos humanos aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas à Constituição. Desde logo, há que afastar o entendimento segundo o qual, em face do § 3º do art. 5º, todos os tratados de direitos humanos já ratificados seriam recepcionados como lei federal, pois não teriam obtido o quorum qualificado de três quintos, demandado pelo aludido parágrafo. Observe-se que os tratados de proteção dos direitos humanos ratificados anteriormente à Emenda Constitucional n. 45/2004 contaram com ampla maioria na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, excedendo, inclusive, o quorum dos três quintos dos membros em cada Casa. Todavia, não foram aprovados por dois turnos de votação, mas em um único turno de votação em cada Casa, uma vez que o procedimento de dois turnos não era tampouco previsto. Reitere-se que, por força do art. 5º, § 2º, todos os tratados de direitos humanos, independentemente do quorum de sua aprovação, são materialmente constitucionais, compondo o bloco de constitucionalidade. O quorum qualificado está tão-somente a reforçar tal natureza, ao adicionar um lastro formalmente constitucional aos tratados ratificados, propiciando a “constitucionalização formal” dos tratados de direitos humanos no âmbito jurídico interno. Como já defendido por este trabalho, na hermenêutica emancipatória 21

Defendi essa posição em parecer sobre o tema, aprovado em sessão do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, em março de 2004.

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dos direitos há que imperar uma lógica material e não formal, orientada por valores, a celebrar o valor fundante da prevalência da dignidade humana. À hierarquia de valores deve corresponder uma hierarquia de normas22, e não o oposto. Vale dizer, a preponderância material de um bem jurídico, como é o caso de um direito fundamental, deve condicionar a forma no plano jurídico-normativo, e não ser condicionado por ela. Não seria razoável sustentar que os tratados de direitos humanos já ratificados fossem recepcionados como lei federal, enquanto os demais adquirissem hierarquia constitucional exclusivamente em virtude de seu quorum de aprovação. A título de exemplo, A título de exemplo, destaque-se que o Brasil é parte do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais desde 1992. Por hipótese, se vier a ratificar – como se espera -- o Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, adotado pela ONU em 10 de dezembro de 2008, não haveria qualquer razoabilidade a conferir se a este último — um tratado complementar e subsidiário ao principal — hierarquia constitucional e ao instrumento principal hieraquia meramente legal. Tal situação importaria em agudo anacronismo do sistema jurídico, afrontando, ainda, a teoria geral da recepção acolhida no direito brasileiro.23 Ademais, como realça Celso Lafer, “o novo parágrafo 3º do art. 5º pode ser considerado como uma lei interpretativa destinada a encerrar as controvérsias jurisprudenciais e doutrinárias suscitadas pelo parágrafo 2º do art. 5º. De acordo com a opinião doutrinária tradicional, uma lei interpretativa nada mais faz do que declarar o que pré-existe, ao clarificar a lei existente”24. Uma vez mais, corrobora-se o entendimento de que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados anteriormente ao mencionado parágrafo, ou seja, anteriormente à Emenda Constitucional n. 45/2004, têm hierarquia constitucional, situando-se como normas material e formalmente constitucionais. Esse entendimento decorre de quatro argumentos: a) a interpretação sistemática da Constituição, de forma a dialogar os §§ 2º e 3º do art. 5º, já que o último não revogou o primeiro, mas deve, ao revés, ser interpretado à luz do sistema constitucional; b) a lógica e racionalidade material que devem orientar a hermenêutica dos direitos humanos; c) a necessidade de evitar interpretações que apontem a agudos anacronismos da ordem jurídica; e d) a teoria geral da recepção do Direito brasileiro. Sustenta-se que esta interpretação é absolutamente compatível com o princípio da interpretação conforme a Constituição. Isto é, se a interpretação do § 3º do art. 5º aponta a uma abertura envolvendo várias possibilidades interpretativas, acredita-se que a interpretação mais consonante e harmoniosa com a racionalidade e teleologia 22 23 24

Celso de Albuquerque Mello, O parágrafo 2º do art. 5º da Constituição Federal, in Teoria dos direitos fundamentais, p. 25. A título de exemplo, cite-se o Código Tributário Nacional (Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966), que, embora seja lei ordinária, foi recepcionado como lei complementar, nos termos do artigo 146 da Constituição Federal. Celso Lafer, A internacionalização dos direitos humanos: Constituição, racismo e relações internacionais, p. 16.

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constitucional é a que confere ao § 3º do art. 5º, fruto da atividade do Poder Constituinte Reformador, o efeito de permitir a “constitucionalização formal” dos tratados de proteção de direitos humanos ratificados pelo Brasil. A respeito do impacto art. 5º, § 3º, destaca-se decisão do Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do RHC 18799, tendo como relator o Ministro José Delgado, em maio de 2006: “(...) o §3º do art. 5º da CF/88, acrescido pela EC n.45, é taxativo ao enunciar que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Ora, apesar de à época o referido Pacto ter sido aprovado com quórum de lei ordinária, é de se ressaltar que ele nunca foi revogado ou retirado do mundo jurídico, não obstante a sua rejeição decantada por decisões judiciais. De acordo com o citado §3º, a Convenção continua em vigor, desta feita com força de emenda constitucional. A regra emanada pelo dispositivo em apreço é clara no sentido de que os tratados internacionais concernentes a direitos humanos nos quais o Brasil seja parte devem ser assimilados pela ordem jurídica do país como normas de hierarquia constitucional. Não se pode escantear que o §1º supra determina, peremptoriamente, que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Na espécie, devem ser aplicados, imediatamente, os tratados internacionais em que o Brasil seja parte. O Pacto de São José da Costa Rica foi resgatado pela nova disposição (§3º do art. 5º ), a qual possui eficácia retroativa. A tramitação de lei ordinária conferida à aprovação da mencionada Convenção (...) não constituirá óbice formal de relevância superior ao conteúdo material do novo direito aclamado, não impedindo a sua retroatividade, por se tratar de acordo internacional pertinente a direitos humanos”25. Este julgado revela a hermenêutica adequada a ser aplicada aos direitos humanos, inspirada por uma lógica e racionalidade material, ao afirmar o primado da substância sob a forma26. O impacto da inovação introduzida pelo art. 5º, § 3º e a necessidade de evolução e atualização jurisprudencial foram também realçadas no Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do RE 466.34327, em 22 de novembro de 2006, em emblemático voto 25 26

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RHC 18799, Recurso Ordinário em Habeas Corpus, data do julgamento: 09/05/2006, DJ 08.06.2006. Em sentido contrário, destaca-se o RHC 19087, Recurso Ordinário em Habeas Corpus, data do julgamento: 18/05/2006, DJ 29.05.2006, julgado proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, tendo como relator o Ministro Albino Zavascki. A argumentação do referido julgado, ao revés, inspirou-se por uma lógica e racionalidade formal, afirmando o primado da forma sob a substância. A respeito, destaca-se o seguinte trecho: “Quanto aos tratados de direitos humanos preexistentes à EC 45/2004, a transformação de sua força normativa – de lei ordinária para constitucional – também supõe a observância do requisito formal de ratificação pelas Casas do Congresso, por quórum qualificado de três quintos. Tal requisito não foi atendido, até a presente data, em relação ao Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos)”. Ver Recurso Extraordinário 466.343-1, São Paulo, relator Ministro Cezar Peluso, recorrente Banco Bradesco S/A e recorrido Luciano Cardoso Santos. Note-se que o julgamento envolvia a temática da prisão civil por

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proferido pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes, ao destacar: “(...) a reforma acabou por ressaltar o caráter especial dos tratados de direitos humanos em relação aos demais tratados de reciprocidade entre Estados pactuantes, conferindo-lhes lugar privilegiado no ordenamento jurídico. (...) a mudança constitucional ao menos acena para a insuficiência da tese da legalidade ordinária dos tratados já ratificados pelo Brasil, a qual tem sido preconizada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal desde o remoto julgamento do RE n. 80.004/SE, de relatoria do Ministro Xavier de Albuquerque (julgado em 1.6.1977; DJ 29.12.1977) e encontra respaldo em largo repertório de casos julgados após o advento da Constituição de 1988. (...) Tudo indica, portanto, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, sem sombra de dúvidas, tem de ser revisitada criticamente. (...) Assim, a premente necessidade de se dar efetividade à proteção dos direitos humanos nos planos interno e internacional torna imperiosa uma mudança de posição quanto ao papel dos tratados internacionais sobre direitos na odem jurídica nacional. É necessário assumir uma postura jurisdicional mais adequada às realidades emergentes em âmbitos supranacionais, voltadas primordialmente à proteção do ser humano. (...) Deixo acentuado, também, que a evolução jurisprudencial sempre foi uma marca de qualquer jurisdição constitucional. (...) Tenho certeza de que o espírito desta Corte, hoje, mais que que nunca, está preparado para essa atualização jurisprudencial”. Por fim, concluiu o Ministro pela supralegalidade dos tratados de direitos humanos. Ao avançar no enfrentamento do tema, merece ênfase o primoroso voto do Ministro Celso de Mello a respeito do impacto do art. 5º, § 3º e da necessidade de atualização jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do HC 87.585-8, em 12 de março de 2008, envolvendo a problemática da prisão civil do depositário infiel. À luz do princípio da máxima efetividade constitucional, advertiu o Ministro Celso de Mello que “o Poder Judiciário constitui o instrumento concretizador das liberdades constitucionais e dos direitos fundamentais assegurados pelos tratados e convenções internacionais subscritos pelo Brasil. Essa alta missão, que foi confiada aos juízes e Tribunais, qualifica-se como uma das mais expressivas funções políticas do Poder Judiciário. (...) É dever dos órgãos do Poder Público -- e notadamente dos juízes e Tribunais -- respeitar e promover a efetivação dos direitos humanos garantidos pelas Constituições dos Estados nacionais e assegurados pelas declarações internacionais, em ordem a permitir a prática de um constitucionalismo democrático aberto ao processo de crescente internacionalização dos direitos básicos da pessoa humana”. dívida e a aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos. Em 03 de dezembro de 2008, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, negou provimento ao Recurso Extraordinário 466.343, estendendo a proibição da prisão civil por dívida à hipótese de alienação fiduciária em garantia, com fundamento na Convenção Americana de Direitos Humanos (art.7§ 7o). Em 1995, diversamente, no julgamento do HC 72.131-RJ, o Supremo Tribunal Federal, ao enfrentar a mesma temática, sustentou a paridade hierárquica entre tratado e lei federal, admitindo a possibilidade da prisão civil por dívida, pelo voto de oito dos onze Ministros.

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É sob esta perspectiva, inspirada na lente “ex parte populi” e no valor ético fundamental da pessoa humana, que o Ministro Celso de Mello reavaliou seu próprio entendimento sobre a hierarquia dos tratados de direitos humanos, para sustentar a existência de um regime jurídico misto, baseado na distinção entre os tratados tradicionais e os tratados de direitos humanos, conferindo aos últimos hierarquia constitucional. Neste sentido, argumentou: “Após longa reflexão sobre o tema, (...), julguei necessário reavaliar certas formulações e premissas teóricas que me conduziram a conferir aos tratados internacionais em geral (qualquer que fosse a matéria neles veiculadas), posição juridicamente equivalente à das leis ordinárias. As razões invocadas neste julgamento, no entanto, convencem-me da necessidade de se distinguir, para efeito de definição de sua posição hierárquica em face do ordenamento positivo interno, entre as convenções internacionais sobre direitos humanos (revestidas de “supralegalidade”, como sustenta o eminente Ministro Gilmar Mendes, ou impregnadas de natureza constitucional, como me inclino a reconhecer) e tratados internacionais sobre as demais matérias (compreendidos estes numa estrita perspectiva de paridade normativa com as leis ordinárias). (...) Tenho para mim que uma abordagem hermenêutica fundada em premissas axiológicas que dão significativo realce e expressão ao valor ético-jurídico -- constitucionalmente consagrado (CF, art.4º, II) -- da “prevalência dos direitos humanos” permitirá, a esta Suprema Corte, rever a sua posição jurisprudencial quanto ao relevantíssimo papel, à influência e à eficácia (derrogatória e inibitória) das convenções internacionais sobre direitos humanos no plano doméstico e infraconstitucional do ordenamento positivo do Estado brasileiro. (...) Em decorrência dessa reforma constitucional, e ressalvadas as hipóteses a ela anteriores (considerado, quanto a estas, o disposto no parágrafo 2o do art.5o da Constituição), tornou-se possível, agora, atribuir, formal e materialmente, às convenções internacionais sobre direitos humanos, hierarquia jurídico-constitucional, desde que observado, quanto ao processo de incorporação de tais convenções, o ’iter’ procedimental concernente ao rito de apreciação e de aprovação das propostas de Emenda à Constituição, consoante prescreve o parágrafo 3o do art.5o da Constituição (...). É preciso ressalvar, no entanto, como precedentemente já enfatizado, as convenções internacionais de direitos humanos celebradas antes do advento da EC n.45/2004, pois, quanto a elas, incide o parágrafo 2o do art.5o da Constituição, que lhes confere natureza materialmente constitucional, promovendo sua integração e fazendo com que se subsumam à noção mesma de bloco de constitucionalidade”. Em 03 de dezembro de 2008, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, negou provimento ao Recurso Extraordinário 466.343, estendendo a proibição da prisão civil por dívida à hipótese de alienação fiduciária em garantia, com fundamento na Convenção Americana de Direitos Humanos (art.7§ 7o). Tal dispositivo proíbe a prisão civil por dívida, salvo no caso de inadimplemento de obrigação alimentícia. Diversamente, a Constituição Federal de 1988, no artigo 5º, LXVII, embora estabeleça a proibição da

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prisão civil por dívida, excepciona as hipóteses do depositário infiel e do devedor de alimentos. O entendimento unânime do Supremo Tribunal Federal foi no sentido de conferir prevalência ao valor da liberdade, em detrimento do valor da propriedade, em se tratando de prisão civil do depositário infiel, com ênfase na importância do respeito aos direitos humanos. O Supremo firmou, assim, orientação no sentido de que a prisão civil por dívida no Brasil está restrita à hipótese de inadimplemento voluntário e inescusável de prestação alimentícia. Convergiu, ainda, o Supremo Tribunal Federal em conferir aos tratados de direitos humanos um regime especial e diferenciado, distinto do regime jurídico aplicável aos tratados tradicionais. Todavia, divergiu no que se refere especificamente à hierarquia a ser atribuída aos tratados de direitos humanos, remanescendo dividido entre a tese da supra-legalidade e a tese da constitucionalidade dos tratados de direitos humanos, sendo a primeira tese a majoritária, vencidos os Ministros Celso de Mello, Cesar Peluso, Ellen Grace e Eros Grau, que conferiam aos tratados de direitos humanos status constitucional. A decisão proferida no Recurso Extraordinário 466.343 constitui uma decisão paradigmática, tendo a força catalizadora de impactar a jurisprudência nacional, a fim de assegurar aos tratados de direitos humanos um regime privilegiado no sistema jurídico brasileiro, propiciando a incorporação de parâmetros protetivos internacionais no âmbito doméstico. Vale realçar que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal pertinente à hierarquia dos tratados de direitos humanos tem se relevado marcadamente oscilante, cabendo destaque a quatro relevantes precedentes jurisprudenciais: a) ao entendimento jurisprudencial até 1997, que consagrava o primado do Direito Internacional; b) à decisão do Recurso Extraordinário 80.004, em 1977, que equiparou juridicamente tratado e lei federal; c) à decisão do Habeas Corpus 72.131, em 2005, que manteve, à luz da Constituição de 1988, a teoria da paridade hierárquica entre tratado e lei federal; e finalmente d) à decisão do Recurso Extraordinário 466.343, em 2008, que conferiu aos tratados de direitos humanos uma hierarquia especial e privilegiada, com realce às teses da supra-legalidade e da constitucionalidade destes tratados, sendo a primeira a majoritária. Este trabalho insiste na tese de que o novo dispositivo do art. 5º, § 3º, vem a reconhecer de modo explícito a natureza materialmente constitucional dos tratados de direitos humanos, reforçando, desse modo, a existência de um regime jurídico misto, que distingue os tratados de direitos humanos dos tratados tradicionais de cunho comercial. Note-se que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo foram os primeiros tratados internacionais de direitos humanos aprovados nos termos do § 3º do art. 5º , por meio do Decreto Legislativo n.186, de 10 de julho de 2008.

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4. Conclusão A partir da Constituição de 1988 intensifica-se a interação e a conjugação do Direito internacional e do Direito interno, que fortalecem a sistemática de proteção dos direitos fundamentais, com uma principiologia e lógica próprias, fundadas no princípio da primazia dos direitos humanos. Testemunha-se o processo de internacionalização do Direito Constitucional somado ao processo de constitucionalização do Direito Internacional. A inovação introduzida pelo § 3º do art. 5o vem a ampliar e a fortalecer o debate a respeito da hierarquia e do impacto da normatividade internacional de direitos humanos no âmbito interno. Apresenta a força catalizadora de demandar do Supremo Tribunal Federal seja revisitada a jurisprudência desenvolvida sobre o tema, que parificava os tratados de direitos humanos às leis ordinárias, não efetuando qualquer distinção entre aqueles e os tratados tradicionais de natureza comercial. A necessidade em transformar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria tem sido realçada na voz de seus próprios Ministros. Reitere-se a advertência do Ministro Gilmar Mendes: “Tudo indica, portanto, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, sem sombra de dúvidas, tem de ser revisitada criticamente. (...) Assim, a premente necessidade de se dar efetividade à proteção dos direitos humanos nos planos interno e internacional torna imperiosa uma mudança de posição quanto ao papel dos tratados internacionais sobre direitos na ordem jurídica nacional. É necessário assumir uma postura jurisdicional mais adequada às realidades emergentes em âmbitos supranacionais, voltadas primordialmente à proteção do ser humano”. No mesmo sentido, posiciona-se o Ministro Celso de Mello, quando reavalia sua interpretação acerca do tema na defesa da hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos, endossando ser o poder Judiciário instrumento concretizador dos direitos assegurados pelos tratados internacionais, tendo a responsabilidade de respeitar e promover os direitos humanos nacional e internacionalmente assegurados. Impõe-se na agenda do Supremo Tribunal Federal a urgência de reconstruir um entendimento interpretativo mais adequado e consonante com o crescente processo de internacionalização dos direitos humanos, na pavimentação de um constitucionalismo democrático aberto à realização de direitos. Consolida-se, gradativamente, o reconhecimento do regime jurídico misto, que distingue os tratados de direitos humanos e os tratados tradicionais, conferindo àqueles um status privilegiado no sistema jurídico, de forma a expandir o próprio bloco de constitucionalidade. Cabe, portanto, ao Supremo Tribunal Federal o desafio de reafirmar sua vocação de guardião da Constituição, e, a partir de uma interpretação evolutiva, avançar na defesa da força normativa constitucional dos tratados de direitos humanos, conferindo máxima efetividade à dimensão material mais preciosa da Constituição – a dos direitos fundamentais.

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1. Ponto de Partida: O Discurso Dominante sobre Direitos Humanos 1.1. Os Múltiplos Significados da Expressão “Direitos Humanos” O termo “direitos humanos” pode levar a variados entendimentos, tais como “direitos naturais”, “direitos fundamentais”, “direitos individuais”, “direitos subjetivos”, “direitos públicos subjetivos”, “liberdades públicas” (PÉREZ LUÑO, 1986:30). Além disso, é comum encontrarmos a utilização indistinta das expressões “direitos humanos” e “direitos fundamentais”. Dessa forma, um primeiro passo é clarear essa confusão lingüístico-semântica que assume o discurso dominante. O curioso, todavia, é que este parece ser não apenas o ponto central da discussão da dogmática tradicional, como ainda, o seu limite, de modo que parecem ser incapazes de ampliar a discussão para além da proposta de um horizonte liguístico-pragmático, como é o caso da proposta habermasiana que será apresentada mais a frente. Nesta perspectiva clássica, a expressão “direitos humanos” ora está fundada na manifestação de um suposto “direito natural”,1 ora está relacionada com os documentos de direito

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Mestre em Direito Constitucional e doutorando pela UFMG. Professor de Teoria Geral do Processo e Direito Processual na PUC-Minas. Coordenador dos cursos de pós-graduação (especialização) em Direito Processual no IEC/PUC-Minas (Campus Serro) e em Direito Processual pelo CEAJUFE. Advogado. Dedico este texto em agradecimento a Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira pela interlocução amiga e constante. Mestre em Direito Público pela PUC-Minas. Professora de Direito Civil na PUC-Minas. Professora nos cursos de pós-graduação (especialização) em Direito Processual no IEC/PUC-Minas (Campus Serro) e em Direito Processual pelo CEAJUFE. Advogada. Assim se manifesta Gilmar Ferreira Mendes: “A expressão direitos humanos, ou direitos do homem, é reservada para aquelas reivindicações de perene respeito a certas posições essenciais ao homem. São direitos postulados

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internacional – por se referir aos direitos reconhecidos ao ser humano como tal em um plano pós-nacional – não necessitando de qualquer vinculação a uma determinada ordem constitucional. Nessa última ótica, por sua vez, o termo “direitos fundamentais” se relaciona aos direitos do ser humano, reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado.2 Ingo Sarlet, seguindo tal posição, esclarece que os direitos fundamentais são também direitos humanos, pois o “seu titular sempre será o ser humano” (2003:33). Dessa forma, os direitos fundamentais, como direitos humanos positivados na ordem constitucional de um Estado, passam a conduzir todo o ordenamento jurídico, legitimando-o enquanto padrão material ou substância constitucional. Ricardo Lobo Torres (2006), por sua vez, vem trazer uma posição diferenciada, já que trata como sinônimos os direitos fundamentais, humanos, civis, naturais, da liberdade e individuais, considerando-os como aqueles “direitos preexistentes ao ordenamento jurídico, inalienáveis, imprescritíveis e dotados de eficácia erga omnes”. Para o citado autor, a distinção ocorre apenas entre direitos fundamentais, direitos econômicos e sociais e os direitos fundamentais sociais. Direitos econômicos e sociais é a expressão comumente utilizada nos EUA. Já no Brasil, Alemanha e Espanha a expressão é substituída por direitos fundamentais sociais. Ora, se por um lado, há de se destacar que o que parece ser uma perda de rigor para uma concepção mais tradicionalista – afeita a classificações como sinônimo de cientificidade, como parece ainda ser lamentavelmente o gosto da dogmática tradicional brasileira – a posição do autor carioca abre-se para uma perspectiva quase pragmática do direito. O que falta ainda a esta corrente, entretanto, é compreender que numa dimensão teórica que esteja disposta a levar a linguagem jurídica a sério, todas essas classificações somente se sustentam a partir da reconstrução discursivo-argumentativa levada a cabo á luz de um caso concreto no instante do discurso de aplicação normativa.3

2.2. Fundamentação dos “Direitos Humanos” A fundamentação dos direitos humanos, conforme Perez Luño (1986), pode ser classificada em três formas: objetiva, subjetiva e intersubjetiva.

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em bases jusnaturalistas, contém índole filosófica e não possuem como característica básica a positivação numa ordem jurídica particular” (MENDES, 2007:234). “(...) o termo “direitos fundamentais” se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão “direitos humanos” guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional)”. (SARLET, 2003, p. 33-34). Escaparia ao escopo do presente trabalho estabelecer maiores esclarecimentos e críticas a essas teorias semânticas que ainda gozam de prestígio no interior da dogmática tradicional, de modo que apenas remetese a leitura de pesquisa anteriormente publicada: QUINAUD PEDRON, Flávio. Direitos e Interesses: (re) pensando a relação para além de uma compreensão semântica. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, a. 16, n. 64, out./dez. 2008.

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A fundamentação objetiva entende que a origem dos direitos humanos está ligada à existência de regras e princípios independentes da experiência e da cultura dos indivíduos, conferindo-lhes validade objetiva, absoluta e universal (PEREZ LUÑO, 1986), todavia, abstratas em seu conteúdo. Outra corrente irá fundamentar os direitos humanos em concepções subjetivas, isto é, na autonomia de cada sujeito (PEREZ LUÑO, 1986). De acordo com essa perspectiva, todo homem é livre para fazer suas escolhas valorativas, não podendo questionar a desigualdade de condições na sociedade. Percebe-se nas teorias que fundamentam a corrente subjetiva uma importância demasiada de ideais individualistas. José Luiz Quadros de Magalhães (2002), através de um regresso histórico, afirma que desde o pensamento grego é possível encontrar a idéia da existência do direito natural, isto é, “um Direito baseado no mais íntimo da natureza humana, como ser individual ou coletivo” (MAGALHÃES, 2002:23). Há, neste momento, a busca por princípios gerais que sejam válidos para todos os povos, em todos os tempos, ou seja, universais. Sob essa ótica, o reconhecimento do Direito Natural não pressupõe um Estado, nem um consenso entre os indivíduos de uma sociedade (DIAS, 2006:246), ou seja, são direitos originários e anteriores à formação do Estado.4 Não se pode esquecer da influência que concepções individualistas tiveram na construção dos direitos humanos, culminando na elaboração do conceito de direito subjetivo. A fundamentação intersubjetiva, por sua vez, trata de uma alternativa às fundamentações objetiva e subjetiva. Conforme Perez Luño (1986), a fundamentação intersubjetiva dos direitos humanos busca, frente à fundamentação objetiva, uma revalorização do papel do ser humano no processo de identificação e de justificação racional dos valores ético-jurídicos; 5 em contrapartida, frente à fundamentação subjetiva, busca postular a possibilidade de uma objetividade intersubjetiva de tais valores, baseada na comunicação dos dados antropológicos que lhes servem de base. Além das formas trazidas por Perez Luño, é comum – ainda que bizarra, dado todo o processo de secularização e de destrancendentalização pelo que passou a Modernidade – a relação entre direitos humanos e direitos naturais. Para os jusnaturalistas, os direitos humanos são lidos como uma prolongação dos direitos naturais, o que é negado pelos positivistas, de forma que há, na verdade, uma ruptura entre eles (PEREZ LUÑO, 1986). Desta forma, à luz de uma leitura cultural, o conteúdo desses direitos varia em distintas épocas, norteando-se pelas concepções moral e política. Por essa perspectiva, 4

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Para a tradição de pensamento que remonta a Locke, trata-se de direitos que todo homem possui no estado de natureza, anterior à formação dos Estados. No estado de natureza todos os homens são iguais e independentes. Os primeiros direitos naturais são o direito à vida, à liberdade e à propriedade. A grande dificuldade, hoje, é determinar, nas sociedades modernas complexas, quais são esses valores. Por isso, a melhor fundamentação é desvincular os direitos humanos dos valores. A tentação em atribuir uma justificação axiológica aos direitos humanos, como quer parte, então, dessa dogmática tradicional, é muito cômoda e sedutora; todavia, aqui se olvida a necessária distinção entre normas e valores. Esta preocupação é parte central e distintiva do projeto habermasiano e será resgatada mais a frente nesse trabalho.

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há um ideal que busca ser compartilhado pela humanidade, reconhecendo o respeito ao ser humano através da satisfação de condições mínimas para uma existência digna, ou seja, pelo menos em tese, todos os homens as desejam e as defendem, o que justifica moralmente os direitos humanos. Pode-se afirmar que esse ideal de existência digna está expresso historicamente na Declaração da Independência dos Estados Unidos (1776), na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948). De acordo com Dias (2006), a liberdade é o aspecto determinante para a realização da pessoa humana. Assim, “a liberdade entendida como autonomia, tem sido o núcleo privilegiado das considerações acerca do conteúdo dos direitos humanos.” (DIAS, 2006:247). Desta forma, outros conteúdos também foram reconhecidos como direitos humanos, uma vez que estão relacionados com o exercício da autonomia. É o que ocorre com os chamados direitos sociais básicos (alimentação, moradia, saúde, educação e emprego).6 Para Canotilho, a expressão direitos humanos só pode ser bem compreendida de segmentada em dois grupos menores que comporiam os direitos do homem e os direitos do cidadão. No primeiro grupo teríamos os direitos pertencentes ao homem como tal, ao passo que no segundo agrupamento seriam encontrados os direitos pertencentes ao homem como ser social.7 Marcelo Neves (2003:144), por sua vez, traz uma crítica reveladora: os “direitos humanos” são uma invenção da Modernidade e qualquer tentativa de relê-los sob as luzes de um direito natural ahistórico é ignorar o processo de dessacralização (perda do sentido religioso/mítico) do mundo moderno como conquista do Estado de Direito. Se de um lado, os direitos naturais estão atados a uma expressão ética de valores coletivos particulares (válido para um grupo que divida a mesma cultura), os direito humanos se diferem por se relacionarem com um discurso com pretensão normativa de universalidade (válido para todos, incondicionalmente), abrangendo, desse modo, qualquer pessoa numa perspectiva inclusive internacional, mas sem pressupor uma homogeneidade de valores e interesses. O termo “direitos fundamentais”, por sua vez, aparece na França do século 6

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Neste ponto há divergências na aceitação de direitos de ordem social e econômica, pois se trata de direitos considerados como positivos, ou seja, que exigem uma prestação do Estado e, por conseguinte, um custo financeiro, o que poderia inviabilizar a implementação dos direitos humanos tradicionais (vida, liberdade, propriedade), os quais são classificados como negativos, isto é, limitam o poder do Estado perante o indivíduo, sem custos. Tal classificação pressupõe uma separação, realizada por Jellinek, entre status negativus (direito individual) e status activus (direito político). Isto porque Jellineck identifica em sua teoria quatro status (situações jurídicas), nas quais o membro de uma comunidade, ao se vincular ao Estado, adquire personalidade e estabelece relações ora como sujeito de deveres, ora como titular de direitos. No primeiro, o status subjectionis (ou status passivo), o indivíduo se subordina ao poder estatal, assumindo deveres ao invés de direitos, e assumindo vínculos jurídicos com o Estado na forma de acatamento às ordens e às proibições. No status negativus (ou status libertatis), é reconhecido ao sujeito – em razão de sua personalidade – uma esfera de liberdade individual que se mostra imune às ações do Estado. Aqui, a ação do Estado somente se torna autorizada para garantia do exercício do próprio direito. Pelo status positivus (ou status civitatis), o indivíduo tem acesso às instituições estatais a fim de que possa exigir do Estado prestações positivas satisfativas de suas necessidades. E por fim, no status activus, o indivíduo titulariza condições de participação na formação da vontade política da sua comunidade, principalmente por meio de direitos políticos.

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XVIII, no curso do movimento político-cultural que levou à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789. Em seguida, dissipou-se pelo pensamento jurídico alemão, que cunhou a expressão Grundrechte, como um sistema de relações entre indivíduo e o Estado, como fundamento de toda a ordem jurídica liberal. E ainda deve-se fazer um alerta: afirmar que os direitos fundamentais são os direitos humanos que passaram por um processo de legislação, é, então, tomar os direitos humanos apenas no plano abstrato/ ideal, despidos de qualquer normatividade, uma vez que os mesmos não trariam em si as exigências de cumprimento (sanção), como toda e qualquer norma jurídica. Nesse diapasão, Marcelo Galuppo (2003:233) sintetiza que os direitos fundamentais são produtos de um processo de constitucionalização dos direitos humanos, entendidos estes últimos como elementos de discursos morais justificados ao longo da História. Assim, os direitos fundamentais não podem ser tomados como verdades morais dadas previamente, mas como elementos em constante processo de (re)construção, haja vista que sua justificação e normatividade decorrem do fato de uma Constituição positiva, igualmente mutável. Por isso mesmo, falar em direitos humanos – mas o mesmo se aplica aos direitos fundamentais – é falar em condições para a construção e o exercício de todos os direitos previstos no Ordenamento Jurídico, e não apenas em uma leitura reducionista, como direito oponíveis contra o Estado. A proposta habermasiana parte, então, dessa ótica mais abrangente e através de um complexo processo de reconstrução do direito, procurará dar outro significado aos direitos humanos, como pode-se ver na sequência.

2. A (Re)Leitura Habermasiana Acerca dos Direitos Humanos 2.1. Um Novo Olhar Sobre a Questão da Racionalidade: A Racionalidade Comunicativa Como elemento de discussão preliminar, tem-se a necessidade de pensar a racionalidade humana para além da filosofia da consciência; para tanto, os estudos sobre a linguagem conduziram a um movimento que ficou conhecido na História da Filosofia como o giro linguístico; que teve como principais responsáveis os pensamentos de Wittgenstein (giro pragmático) e Gadamer (giro hermenêutico). Todavia, o movimento do giro não se esgota na figura desses autores, vindo a ser continuado, até os dias atuais, por uma infinidade de novos personagens. Dentre eles, pode-se mencionar o filósofo e sociólogo alemão Jurgen Habermas,8 que ganhou renome mundial ao apresentar uma nova proposta de compreensão da ra8

É normal encontrar autores traçando comparações entre o pensamento de Habermas e as teorias de filósofos monumentais, como Kant e Hegel, por exemplo. Entretanto, não se deve tanto ao intuito de constatar um

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cionalidade, fornecendo um novo impulso e direção ao movimento. Levando a sério a linguagem, esse pensador colocará em xeque a racionalidade instrumental destacada, principalmente, nos estudos de Max Weber, para contrapô-la a uma nova compreensão: a racionalidade não apenas está dirigida a execução de tarefas – isto é, a busca dos meios para se alcançar um fim pré-determinado – mas envolve também a busca por um entendimento mútuo entre indivíduos. Essa busca por entendimento, contudo, não representa um aspecto isolado do fenômeno linguístico, mas situa a linguagem no centro do problema da integração social. Através de uma apropriação da teoria dos atos de fala, originalmente desenvolvida por Austin (1971) e Searle,9 é possível compreender uma função fundamental existente na linguagem: a comunicação. Todavia, além dos proferimento constatativos – isto é, que constatam algo, caracterizando-se por serem verdadeiros ou falsos – existem os proferimentos performativos, com os quais se realiza uma ação pelo simples fato de serem proferidos (GALUPPO, 2002:111). Em verdade, eles agem de maneira dúplice: primeiro, comunicam uma idéia e, em seguida, realizam uma ação diferente da ação de comunicar. Pelos aspectos seguintes, os atos de fala distinguem-se das interações não linguísticas: (1) através da feição reflexiva da auto-interpretação – isto é, são compreendidos pelos falantes, quando esses tomam consciência do contexto em que a interação linguística se desenvolve; e (2) pelo tipo de fins que podem ser visados, isto é, fins ilocucionários – voltados para o mútuo entendimento e que, para serem atingidos, dependem do assentimento racionalmente motivado do ouvinte,10 ou seja, do reconhecimento por parte do outro falante de que o proferimento pode ser tido como válido (isto é verdadeiro, correto ou sincero, dependendo da situação).11

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suposto impacto causado pela teoria do primeiro no pensamento dos filósofos de seu tempo, mas talvez – e até de certa maneira jocosa – em razão da dificuldade de se iniciar um estudo sobre seu conteúdo; isso se deve mais pela dificuldade – e, quem sabe, até por uma rejeição – de apreender os pressupostos da teoria do que necessariamente pela impenetrabilidade da mesma. Dessa forma, Freitag (2002) ilustra bem a questão, quando justificando sua opção pelo autor, através do exemplo dos campos da moral e da ética, demonstra que o pensamento habermasiano busca abrir-se para um discurso não restrito aos filósofos, sendo mais abrangente em seu conteúdo, a ponto de adentrar em discussões próprias da, da História, da Psicologia, do Direito, entre outras áreas, de modo que os autores por ele mencionados não são apenas referências bibliográficas, mas antes assumem o papel de verdadeiros interlocutores. Oliveira (2001:172-179) e Bahia (2003:219-220) lembram que Searle difere-se de Austin por procurar analisar a linguagem a partir de um caso neutro, “puro”, o que conduz à afirmação de que seus estudos adquirem um caráter expressamente formal. Sua preocupação é a tematização das “regras de uso” da linguagem, visando à construção de uma linguagem “idealizada”, capaz de servir como ferramenta metodológica a ser aplicada em uma linguagem ordinária. Torna-se, então, possível traçar uma distinção entre as ações direcionadas ao entendimento, de um lado, e as ações orientadas à concretização de um fim, de outro – mesmo que, grosso modo, todas as ações sejam orientadas a um fim, ainda que seja o entendimento. “Em geral, cada ação de fala pode ser criticada reiteradamente como inválida sob três aspectos: como inverídica, em relação a uma asserção feita (ou seja, pressupostos em relação à existência do conteúdo da asserção); como incorreta, em relação a contextos normativos existentes (ou em relação à legitimidade das normas pressupostas); e como não-sincera, em relação à intenção do falante” (HABERMAS, 1990:80). Como esclarece Galuppo (2002:118): a pretensão de verdade corresponde ao mundo objetivo, que é compartilhado

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O entendimento, então, pode ser compreendido como uma busca cooperada, haja vista não poder ser atingido de maneira individual. E mais, para que se possa chegar ao significado de um ato de fala, faz-se necessário avaliá-lo à luz da pretensão de validade correspondente que ele levanta. É por isso, que Habermas irá diferenciar o uso da linguagem como meio de transmissão de informação de como forma de buscar-se o entendimento – no primeiro caso, tem-se o que o autor denomina de ação estratégica; no outro, a ação comunicativa. O agir comunicativo compreende a ação de uma pessoa para convencer outra da validade de suas pretensões. É uma ação que somente pode dar-se por um único meio: a fala, e pressupõe a produção de um entendimento (HABERMAS,1987:1:367). Seu fim é, portanto, a produção de um consenso intersubjetivamente reconhecido acerca da validade de uma pretensão criticável. Na ação estratégica (HABERMAS,1987:1:367), tem-se uma forma de ação linguística – porém, semelhante à ação instrumental12 – na qual o falante faz uso de outro indivíduo como meio (instrumento) para a realização de um fim (seu sucesso pessoal). Dessa forma, o falante não se coloca na condição de participante da interação, nem busca saber sobre o reconhecimento da pretensão levantada por parte do ouvinte; o que está em jogo é apenas a concretização de seu próprio sucesso pessoal.13 A partir desse prisma, pode-se entender uma nova proposta de compreensão da racionalidade: enquanto para Weber, toda ação humana seria racional apenas se pudesse ser justificada à luz da seleção dos melhores meios para a realização de um fim (HABERMAS, 1987:1:361); além dessa dimensão instrumental da racionalidade, há um nível comunicativo voltado para o entendimento entre os atores sociais. Como toda ação social, que requer uma forma de interação linguística, a racionalidade comunicativa estaria na base da sociedade, permitindo a interação entre os atores e, consequentemente, sua integração. Uma compreensão adequada da racionalidade comunicativa fornece outra consequência importante: a suplantação da racionalidade prática típica da filosofia da consciência. Mais do que uma simples troca de etiquetas, a proposta habermasiana afirma que

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por todos os seres, é o mundo da ciência, referindo-se à adequação do enunciado linguístico para a descrição da realidade fática; a pretensão de veracidade corresponde ao mundo subjetivo, absolutamente individual, mundo esse representado pela arte ou pelos sentimentos e emoções, de modo que se refere à adequação entre aquilo que expressamos e aquilo que sentimos; por fim, a pretensão de correção está ligada ao mundo intersubjetivo, que congloba a Moral e o Direito, e refere-se à correspondência entre normas elaboradas para condução da ação humana em sociedade e para a solução dos conflitos práticos existentes. Segundo Baxter (2002:495): “Both instrumental action and strategic action are oriented toward success rather than mutual understanding. They differ, however, along the lines of Habermas’s second distinction. Instrumental action is essentially the solitary performance of a task, according to ‘technical rules’. As such, instrumental action is ‘nonsocial’, in Habermas’s typology. Strategic action, by contrast, is designed to ‘influenc[e] the decisions of a rational opponent,’ according to ‘rules of rational choice.’ Instrumental actions may be elements of a pattern of social action – either communicative or strategic – but they do not themselves comprise a distinct type of social actions”. A ação estratégica, portanto, vive de maneira parasitária, pois depende, para seu sucesso, de que, pelo menos uma das partes, tome como ponto de partida o fato de que a linguagem está sendo usada como forma de busca do entendimento (HABERMAS, 1990:73).

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a razão comunicativa distingue-se da razão prática, porque não está restrita a um ator particular – ou mesmo a um macrosujeito (Estado ou Sociedade). Ela é possibilitada pelo medium da linguagem, que concatena interações e estrutura as formas de vida, de modo que, ao buscar um entendimento, os usuários da linguagem ordinária devem pressupor, entre outras coisas, que os participantes buscam seus fins ilocucionários sem reservas, que eles vinculam seu acordo ao reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validade criticáveis e que eles estão prontos a assumir as obrigações resultantes de um consenso, relevantes para as interações seguintes. O que, dessa forma, infiltra-se na base de validade do discurso também se comunica às formas de vida reproduzidas através da ação comunicativa. A racionalidade comunicativa, portanto, expressa-se em um complexo descentralizado de condições transcendentalmente configurativas, mas ela não é uma faculdade subjetiva que diz aos atores o que devem fazer (HABERMAS, 1998:65-66); os indivíduos que atuam comunicativamente comprometem-se com pressupostos pragmáticos, assumindo certas idealizações, de modo que serão os próprios atores sociais que, por meio da busca pelo entendimento comum, chegarão a um consenso sobre as normas de ação válidas. A assunção dessas idealizações como pressupostos contrafáticos revela que a separação rígida – de referência platônica – entre o que seja “real” e o que seja “idealidade” é posta em xeque. Cattoni de Oliveira (2002:37) esclarece que Habermas refere-se, em substituição, a uma tensão entre realidade e idealidade: “[...] a realidade já é plena de idealidade, em razão dos próprios pressupostos linguísticos contrafactuais presentes em toda interação comunicativa” (2002:37). Logo, é através da reconstrução da noção de racionalidade que se encontra o fio condutor para pensar o problema da integração da sociedade. Mas uma advertência deve ser feita: pensar a sociedade atual é pensar o problema da diferença, é pensar o pluralismo; dessa forma, a ação social voltada para o entendimento adquire relevância, buscando coordenar diversos planos de ação individuais. Por isso, o modelo de que Habermas se serve não é o da comunicação entre uma comunidade de cientistas e especialistas, como fizera Pierce, mas o da própria comunicação existente no interior da sociedade. Sempre que falantes dispostos ao entendimento engajam-se numa interação, eles encontram duas possibilidades: (1) concordarem mutuamente sobre as pretensões de validade de seus atos de fala; ou (2) levantarem pontos em que haja discordância, problematizando-os. Novamente, retorna-se à tensão entre realidade e idealidade: como já afirmado, para que se atinja o sucesso na busca por entendimento, uma série de idealizações deverão ser feitas. Essas idealizações tomam lugar no que Habermas denomina de mundo da vida (Lebenswelt) – conceito chave no pensamento desse autor – que representa “[...] uma espécie de pano de fundo compartilhado intersubjetivamente, que está sempre presente para todos os atores linguisticamente competentes, e que se estrutura através de tradições, instituições e identidades criadas a partir dos processos de socialização” (FERREIRA, 2000:95). Uma vez que a maior parte das proposições não são – nem poderiam ser –problematizadas na prática comunicativa, acabam por fugir da experiência crítica, condensando-se

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nas certezas existentes no mundo da vida. Esse pano de fundo de silêncio implícito no discurso é capaz de estabilizar a pressão problematizadora das experiências comunicativas (HABERMAS, 1990:91), de modo que o risco de dissenso14 possa ser, pelo menos em parte, contornado, fornecendo: (1) certeza imediata; (2) força totalizadora, por possuir um ponto central, mas limites indeterminados; (3) natureza holística, pois trata-se de um saber intransparente, no qual seus conteúdos encontram-se liquefeitos. Destarte, a sociedade forma-se e reproduz-se por meio do agir comunicativo que tem como pressuposto um mundo da vida simbolicamente compartilhado. Mas deve ser lembrado que as sociedades modernas apresentam uma pluralização das formas de vida, além de uma individualização das biografias, fenômeno esse que faz com que se diminuam as zonas de convergência do mundo da vida. Após o rompimento das amarras tradicionais (ligadas à religião e à obediência consuetudinária), tudo pode ser alvo de questionamento. Mas isso não pode ser compreendido apenas por um prisma negativo: “[...] só se produz consenso a partir do dissenso, ao mesmo tempo em que todo consenso é apenas o primeiro passo para um dissenso futuro” (BAHIA, 2003:228). Duas são as saídas apontadas por Habermas: (1) uma limitação do campo de problematização dado aos participantes; ou (2) reconhecer que, em sociedades complexas, a ação comunicativa pode – e deve – desempenhar um importante papel de integração social, para tanto, ela tem de se valer de seus próprios recursos para “domesticar” o risco de dissenso. Logo, o mundo da vida e a ação comunicativa representam duas noções fundamentais. É, diante desse quadro, que Habermas compreenderá a crescente importância atribuída ao Direito: de maneira dúplice, o Direito moderno é capaz de limitar o campo de ações estratégicas por meio da imposição de sanções – de modo que essas se adaptem ao padrão de comportamento socialmente aceito, revelando a tensão entre coerção factual e validade legitimadora – e de organizar o sistema econômico e o sistema administrativo, equilibrando-os com a racionalidade comunicativa (HABERMAS, 1998:102) de forma a conferir legitimidade aos seus imperativos funcionais e a integrá-los nos processos de manutenção da ordem social. Mas, para que o Direito cumpra essa função, primeiro ele deve passar por um complexo processo de reconstrução.

2.2. O Direito como Um dos Mecanismos de Garantia da Integração Social A obra de 1994, Faktizität und Geltung, representa um marco no pensamento habermasiano no que se refere à compreensão do Direito. Aqui a análise do Direito passa para 14

Bahia (2003:226-227) explica que o risco de dissenso é gerado pela tensão decorrente do posicionamento de afirmações e negações frente às pretensões de validade e da própria instabilidade gerada pelo caráter contrafático dos pressupostos da comunicação.

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a discussão acerca das condições, possibilidade e legitimidade do Direito nas sociedades contemporâneas pós-tradicionais, nas quais o Direito se tornou positivo – isto é, tem-se um Direito escrito, histórico, contingente, modificável e coercitivo, mas que também é garantidor de liberdade (CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:174). O Direito positivo, então, apresentaria duas propriedades importantes: ele atua como fator de limitação, uma vez que estabiliza expectativas de comportamento generalizáveis, podendo, para isso, fazer uso de sanções; e como fator de deslimitação, já que abre a possibilidade de que todas as normas sejam criticáveis – seja no processo legislativo, seja nos processos de aplicação de normas. Assim, o Direito moderno consegue artificialmente garantir a integração social, sem necessidade de apoiar-se em algum vínculo ético. A solidariedade social está baseada, em um nível pós-tradicional, numa fundamentação procedimental: na afirmação de que o destinatário da norma é também seu criador (HABERMAS, 1998:96). Além do mais, o Direito adquiriu a capacidade de funcionar como dobradiça entre sistemas sociais e o mundo da vida (HABERMAS, 1998:120). Uma vez que os sistemas sociais desenvolveram linguagens próprias e especializadas, carecem de meios para receber os influxos comunicativos provindo do mundo da vida; todavia este por ater-se a uma linguagem ordinária e reflexiva, continua capaz de compreender aqueles, mas o inverso não ocorre. O Direito, então, fornece essa ligação através de seu próprio código (HABERMAS, 1998:120). O Direito, portanto, é capaz de substituir o lugar das garantias metassociais que – em sociedades tradicionais de tipo medieval – eram derivadas de uma amálgama que estabilizava a tensão entre facticidade e validade das pretensões, “na medida em que o ‘sagrado’ não só significava uma autoridade, como também limitava o campo de problematização” (CHAMON JUNIOR, 2005:227). As práticas passadas ao longo de cada geração seriam dotadas de uma natureza sagrada, imutável, o que as imunizaria de críticas, de modo que sua observância seria garantida pelo medo da sanção; isso acabaria por fundir facticidade (coerção/ameaça) e validade (força vinculante). Todavia, uma saída que encontre forças de coesão social em um elemento considerado sagrado ou em qualquer outra forma de justificação metassocial, não está disponível para uma sociedade pós-tradicional e pluralista, como é a sociedade contemporânea. As antigas instituições fortes não mais conseguem dar cabo da tarefa de compensação ou atenuação dos déficits de estabilidade social; as certezas, que antes eram postas como inquestionáveis pela tradição, não são mais suficientes, a questão da integração social desloca-se, agora, para os processos de entendimento mútuo, regidos pela ação comunicativa (HABERMAS, 1998:87; CHAMON JUNIOR, 2005:230). Dessa forma, o Direito também ganha importância ímpar: já que é aberta a possibilidade de os indivíduos buscarem seus próprios interesses, lançando mão, inclusive, da ação estratégica – em vez da ação comunicativa. O Direito é capaz de apresentar um freio normativo, regulando e limitando a ação estratégica; são os próprios atores sociais que – por meio de um acordo ou entendimento a partir de pretensões de validade inter-

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subjetivamente reconhecidas – fixam os espaços e condições nos quais essa racionalidade estratégica seria aceitável (HABERMAS, 1998:88-89). O Direito moderno, ainda, acaba por aliviar os sujeitos do fardo da integração social: os conflitos que trazem um alto grau de dissenso – principalmente porque os envolvidos deixam de estar submetidos à busca por um entendimento mútuo – podem ser resolvidos a partir da própria tensão entre facticidade (coerção) e validade (aceitabilidade), garantindo uma resposta adequada e legítima; o mesmo, todavia, não pode ser constatado na posição decisionista assumida pela tradição positivista, que vira as costas para as pretensões de legitimidade jurídica (HABERMAS, 1998:101).

2.3. A Formação do Sistema de Direitos a Partir de Uma Compreensão de Equiprimordialidade entre Direitos Humanos e Soberania Popular Uma vez que foi possível compreender o papel que é posto ao Direito positivo moderno no processo de integração social deve-se passar a um olhar mais aprofundado sobre a construção do sistema de direitos à luz de uma compreensão equiprimordial entre autonomia pública e autonomia privada. Com o processo de desencantamento, o Direito moderno se configura como parte de um sistema de normas positivas e obrigatórias; todavia essa positividade vem associada a uma pretensão de legitimidade, de modo que normas expressam uma expectativa no sentido de preservar equitativamente a autonomia de todos os sujeitos de direito (HABERMAS, 2002:286; CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:174). Segundo Habermas (2002:286), o processo legislativo deve ser suficiente para atender a essa exigência. Há uma relação entre o caráter coercitivo e a modificabilidade do Direito positivo, por um lado, e o processo de positivação ou de estabelecimento desse Direito capaz de gerar legitimidade, por outro – isto é, uma relação entre Estado de Direito e democracia; contudo essa relação não é meramente fruto de uma histórica causal, mas uma relação conceitual que está alicerçada nas pressuposições da práxis jurídica cotidiana. A validade de uma norma jurídica pode ser considerada, portanto, como equivalente da explicação para o fato de o Estado garantir simultaneamente a efetiva imposição jurídica e a institucionalização legítima do Direito. Daí decorre a pergunta: como se deve fundamentar a legitimidade de normas que podem, a qualquer momento, ser alteradas pelo legislador? Enquanto era possível recorrer a um Direito Natural – quer de cunho religioso, quer metafísico – podia-se tentar conter o “turbilhão da temporalidade” que o Direito positivo atraía para si; mas, aliado à crescente dessacralização das imagens de mundo e à desintegração de eticidades ou formas de vida tradicionais com o processo de modernização social e cultural, o Direito moderno, dotado de um caráter formal, exime-se da ingerência direta advinda de uma “consciência moral remanescente” (HABERMAS, 2002:288; CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:176). O conceito de direitos subjetivos, então, apresenta um papel importante na compreensão moderna do Direito: desligados dos mandamentos morais de origem religiosa ou do

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Direito Natural, eles estão ligados ao conceito de liberdade subjetiva de ação (HABERMAS, 1998:147), uma vez que fixam os limites dentro dos quais um sujeito está legitimado para afirmar livremente sua vontade. Esses direitos fixam iguais liberdades subjetivas para todos os indivíduos, que passam a se considerar sujeitos de direito, ou seja, garantem aos sujeitos um espaço de ação de acordo com sua própria preferência (HABERMAS, 2002:288; 1999:330), bem como de acordo com a máxima de que “tudo o que não está proibido está permitido” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:176). Na tradição da dogmática do direito civil alemão, que vai de Savigny a Puchta, os direitos subjetivos são direitos negativos, pois protegem os espaços da ação individual, na medida em que fundamentam pretensões, reclamáveis judicialmente, contra intervenções ilícitas na liberdade, na vida e na propriedade. Todavia, o século XIX demonstra que o direito subjetivo, estritamente de ordem privada, depende, para legitimar-se, de uma autonomia privada do sujeito, que estava apoiada em uma autonomia moral da pessoa. Na Introdução à Metafísica dos Costumes, Kant (1980) apresenta uma lei moral de liberdade e dela retira as leis jurídicas. O Direito, portanto, não estaria conectado à vontade livre do indivíduo, mas ao seu arbítrio, estendendo-se às relações externas e abrindo espaço para que seja exercitada uma coação no caso de intromissão na esfera alheia. Nessa construção, Habermas (1998:171) identifica uma herança platônica no sentido de compreender a ordem jurídica senão como ligada ao mundo fenomenológico e ao “reino dos fins”. Ao compreender o Direito não mais a partir de uma racionalidade instrumental, a relação entre Direito e Moral adquire novos contornos. Aqui Habermas inova ao apresentar uma proposta de substituição da teoria da subordinação por uma visão de complementaridade entre Direito e Moral. Empreendendo um olhar sociológico, Direito, Moral e Ética sofrem uma separação simultânea da antiga amálgama que os prendia em uma sociedade pré-moderna. Tanto o Direito quanto a Moral ainda buscam, sob ângulos diferenciados, respostas para as mesmas questões.15 Uma primeira diferença fundamental é o fato de que uma Moral pós-tradicional representa apenas uma forma de saber cultural, enquanto o Direito apresenta-se também no nível institucional – o Direito é também um sistema de ação. Ao passo que na Moral, encontra-se uma simetria entre direitos e deveres; no Direito, as obrigações resultam somente da restrição de liberdades subjetivas. Essa atribuição de privilégio aos direitos em face dos deveres pode ser explicado através dos conceitos de sujeitos de direto e de comunidade jurídica. Em contrapartida, o universo moral não apresenta limites espaço-temporais, estendendo-se a todas as pessoas em sua complexidade biográfica, plenamente individuadas. Por isso mesmo, as matérias jurídicas são, ao mesmo tempo, mais restritivas do que as questões morais e mais amplas, uma vez que o Direito, como meio de organização, não se refere exclusivamente à regulação de 15

Como é possível ordenar legitimamente relações interpessoais e coordenar entre si ações servindo-se de normas justificadas? E como é possível solucionar consensualmente conflitos de ação na base de regras e princípios normativos reconhecidos intersubjetivamente?

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conflitos interpessoais, mas também ao cumprimento de programas políticos e demarcações políticas de objetivos. Logo, as “regulamentações jurídicas tangenciam não apenas questões morais em sentido estrito, mas também questões pragmáticas e éticas, como o estabelecimento de acordos entre interesses conflitantes” (HABERMAS, 2002:289). Isso faz com que a praxis legislativa dependa não só de discussões morais, mas de uma rede ramificada de discursos abertos a razões de outras ordens, bem como a negociações. Uma vez que o Direito positivamente válido pode tirar das pessoas o ônus causado pelas grandes exigências (cognitivas, motivacionais e organizacionais) impostas por uma Moral ajustada segundo a consciência subjetiva; ele é capaz de compensar as fraquezas de uma moral exigente. Isso não libera os participantes de uma prática legislativa ou jurisdicional da preocupação de que o Direito permaneça em consonância com a Moral (HABERMAS, 2002:289; CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:177); todavia as regulamentações jurídicas são complexas demais para serem legitimadas por princípios morais. A Moral e o Direito devem defender a autonomia de todos os envolvidos e atingidos por suas normas; essas devem ser analisadas pelo prisma do princípio do discurso (D) – que é neutro em relação ao Direito e à Moral, uma vez que sua referência se assenta em toda e qualquer norma de ação, sem qualquer especificação (LEITE ARAÚJO, 2003:167). Outro ponto de destaque fica a cargo da questão da aceitabilidade racional;16 isso que dizer que o consenso acerca de pretensões de validade é obtido através do uso de razões.17 O princípio discursivo moral (U) refere-se a normas de ação que exigem, para ser justificadas, a consideração simétrica de todos os interesses; é, portanto, regulador dos argumentos – uma regra de argumentação (SALCEDO REPOLÊS, 2003:99) – que pergunta sobre a possibilidade de universalização de um determinado interesse, de modo que sua pretensão possa ser passível de aceitação e reconhecimento pelos seus afetados em qualquer tempo e contexto espacial. Diferentemente, o princípio discursivo democrático (De) visa a explicar o sentido performativo da prática da autodeterminação dos membros de uma comunidade jurídica – estabelecida livremente – que reconhece seus membros como parceiros livres e iguais (HABERMAS, 1998:175). Seu objetivo, então, é a “institucionalização de um procedimento legislativo legítimo, produzido discursivamente com a potencial participação de todos [os afetados]” (BAHIA, 2003:235).18 Quando vistos 16

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Essa afirmação, no campo dos discursos práticos sobre normas, atesta que o importante é o reconhecimento de que a argumentação ser racionalmente motivada: “A proposta de Habermas, ao formular o princípio D, é que só se pode distinguir o ‘bom’ motivo, ou o melhor motivo, para validade uma norma, ao se apresentarem razões, em favor da aceitação das mesmas. Assim, uma norma de ação torna-se válida se as pretensões de validade por ela levantadas podem ser reconhecidas pelos possíveis atingidos (intersubjetivamente) na medida em que esses levantam razões; ou seja, pelo reconhecimento motivado racionalmente e que a todo momento pode ser problematizado” (SALCEDO REPOLÊS, 2003:98). Por essas características, o princípio do discurso consegue evitar tanto uma interpretação moralizante do Direito quanto o seu confinamento em afirmações comunitárias de valores compartilhados. Deve ser destacado que o princípio democrático não busca um conteúdo a priori às questões quando as mesmas são propostas, “mas apenas diz como podem a formação da opinião e da vontade serem institucionalizados por

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em paralelo, fica possível compreender que o princípio democrático está situado em um plano diferente do princípio moral. Assim, enquanto o princípio moral está correlacionado ao procedimento de validação de normas e discursos morais, o princípio democrático mostra-se mais amplo, aberto a outros tipos de razões. Com o processo de modernização, emerge a questão do pluralismo ideológico na sociedade; a religião e o ethos nela enraizado se decompõem como fundamento público de validade de uma moral que pode ser compartilhada por todos. As regras morais passam a designar o que é obrigatório para todos e, por conseguinte, universalizável; ao passo que os pontos de vista éticos estão ligados a orientações axiológicas (de valor) pertencentes a pessoas ou grupos.19

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um sistema de direitos que assegura participação no processo legislativo em condições de igualdade” (BAHIA, 2003:236). Assim, aceita o risco de que qualquer tema ou contribuição, informação ou razão, sejam ventilados no espaço público (HABERMAS, 1998:646). Essa formação da vontade é dependente de pressupostos comunicativos que asseguram aos melhores argumentos a prevalência. Questões éticas estão relacionadas ao ponto de vista da primeira pessoa do plural (nós), de modo que vinculamse ao que os membros de uma determinada comunidade entendem como critérios (ou valores) que devem orientar suas vidas, isto é, o que pode ser considerado como o melhor para nós (HABERMAS, 2002:38) – questões acerca das concepções de vida boa ou, pelo menos, de uma vida que não seja mal sucedida. Nesse sentido, as questões éticas não demandam um descentramento do sujeito, que permanece ligado ao telos de uma vida comum da sociedade (HABERMAS, 2000b:106). Por isso mesmo, questões que demandam uma busca sobre o que seja do interesse de todos apontam para mais além do que seja melhor para nós (Ética). Aqui, Habermas lembra as afirmações de Rawls e de Dworkin acerca da diferença entre o justo (moral) e o bom (ético) e da supremacia do primeiro sobre o segundo (HABERMAS, 2002:41). O bom é aquilo almejado por um grupo de pessoas, a partir de um valor compartilhado; a noção de justo, bem como a de direitos, por outro lado, traz uma compreensão normativa da questão. Normas e valores, então, apresentam diferenças: (1) normas obrigam seus destinatários por igual e não apresentam exceções, enquanto valores exprimem concepções que são tidas como almejáveis e, por essa razão, podem ser compreendidas à luz de uma ordem de preferência; (2) normas, portanto, somente podem ser obedecidas – cumprindo sua função de estabilizar expectativas de comportamentos generalizados – a partir de uma aplicação universalmente integral e binária, isto é, algo é válido ou não é válido, sem uma terceira opção; ao passo que valores, representando uma ação direcionada, podem ser realizados de maneira gradual, a partir do quadro de preferências daquela comunidade. Dito de outra forma, normas, segundo Habermas (1998:328, 2004:291), são justificadas a partir de uma pretensão de correção (referência ao justo), devendo poder contar com a aceitação racional daqueles que serão seus afetados (1998:172). Dessa forma, diante de uma pretensão normativa, os atores sociais podem tomar dois caminhos diversos: concordarem mutuamente sobre as pretensões de validade de seus atos de linguagem, ou levantarem pontos em que haja discordância, problematizando-os; instala-se, assim, a possibilidade de avaliação através de uma ação comunicativa. De maneira diferente, os valores apontam para uma concepção ética – ligada ao que seja o bem – que não apresenta esse potencial de universalização, contido nos discursos sobre a correção das normas, uma vez que se encontra enraizada sob valores pré-reflexivos, isto é, concepções culturais partilhadas intersubjetivamente por uma determinada forma de vida concreta. Portanto, a noção de bem liga-se à idéia de um nós, uma comunidade determinada assentada sob uma mesma concepção de vida boa. Desse modo, as referências para as ações oriundas dessa comunidade apenas podem ser compreendidas como respostas a fins específicos (caráter instrumental) julgados a partir das preferências comuns de seus membros, perdendo-se de vista a ação comunicativa em favor de uma ação instrumental; e (3) diferentes normas pretendem manter sua validade para o mesmo conjunto de destinatários, não podendo contradizer-se mutuamente, sob pena de deixarem de representar referenciais para a ação humana; logo devem constituir um sistema. A questão sobre qual norma é adequadamente aplicável a um determinado caso, todavia, constitui uma pergunta diferente da indagação sobre sua validade, devido a isso, como será visto no próximo tópico, discursos de justificação diferem-se da lógica dos discursos de aplicação. Contrariamente, os valores naturalmente concorrem entre si pela primazia, por isso são passiveis de flexibilizações a partir de critérios utilitários.

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As normas jurídicas são dotadas de um caráter artificial – no sentido de que “elas são produzidas intencionalmente e de modo reflexivo, aplicando-se a si mesmas” (SALCEDO REPOLÊS, 2003:102). Como consequência, não basta ao princípio democrático a tarefa de fixação dos procedimentos de normatização legítima do Direito, deve ainda pressupor a criação de um comunidade jurídica que institucionalize os direitos de participação de todos os seus membros no processo de instauração dessas normas. Logo, segundo Habermas (1998:177), a distinção entre o princípio moral e o princípio democrático acaba apontando as duas tarefas que deverão ser enfrentadas pelo sistema de direitos: (1) institucionalizar uma formação racional da vontade política; e (2) garantir o próprio medium no qual essa vontade pode ser expressa – como vontade comum dos membros de uma comunidade jurídica capaz de se autocompreender como uma associação livre. Dessa forma, mesmo que o processo de legislação democrática seja poroso a uma série de argumentos – como visto, argumentos de ordem moral, ético-políticos e pragmáticos – a fim de que o Direito não ceda lugar à política, é preciso que as normas jurídicas sejam formuladas a partir da linguagem jurídica – utilizando-se, para tanto, do código do Direito – e do princípio da soberania popular (SOUZA CRUZ, 2004:220). O Direito moderno, não mais subordinado à moral – mas sim funcionando de maneira complementar – passa a se organizar a partir de um código próprio, partindo de dois elementos restantes da dissolução da amálgama pré-moderna: soberania popular – relacionada com a noção de autonomia pública – e direitos humanos – ligados à noção de autonomia privada. Desse modo, tanto uma quanto outro representam uma mediação pelo Direito no tocante à autodeterminação moral (direitos humanos) e autodeterminação ética (soberania popular), de modo a falar-se em uma co-originariedade.20 Assim, Habermas pretende superar a disputa entre liberais e republicanos acerca de qual das duas deveria ter prevalência.21 Contudo, a opção habermasiana não é a de endossar uma 20

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“A relação interna entre soberania popular e direitos humanos está no modo como é alcançada a formação da opinião e da vontade pública: nem a autonomia pública deve se subordinar a pretensos direitos racionalmente universais (como em Kant), nem os direitos humanos ficam à mercê de uma ‘vontade geral ética’ (como em Rousseau)” (BAHIA, 2003:238). Segundo Cattoni de Oliveira (2000:54), a tradição republicana remete-se a Aristóteles, desenvolvendo-se pela Filosofia romana republicana e pelo Humanismo Cívico do pensamento político italiano do Renascimento, vindo a ser recepcionada por Harrington – influenciando os debates da Convenção de Filadélfia – e por Rousseau – lançando luzes sobre o movimento da Revolução Francesa (CATTONI DE OLIVEIRA, 2000:5455). Contemporaneamente, assumem-se como republicanos diversos pensadores, como: Taylor, Walzer, Sandel, McIntyre, Perry e Michelman. Já na tradição liberal, encontram-se pensadores a partir do movimento iluminista, como Locke, Kant, Sièyes, Paine, Constant e Stuart Mill. Contemporaneamente, a tradição é disseminada a partir diferentes leituras feitas pelas obras de Berlin, Rawls, Nozick e Dworkin – sendo Rawls o seu maior expoente. Em comum a ambas, tem-se a defesa da liberdade e da igualdade dos cidadãos, da existência de uma Constituição, de um regime democrático e da constitucionalização dos direitos fundamentais – o que, todavia, não significa que esses pontos recebem a mesma interpretação. Para os republicanos, a Constituição é tomada como uma ordem concreta de valores, que materializa uma identidade ético-cultural de uma sociedade política que tem a pretensão de ser, na medida do possível, homogênea (HABERMAS, 2002:270); por sua vez, a Democracia é compreendida como forma política de plena realização dessa identidade coletiva, de sua felicidade pública e de seu bem-estar coletivo. A ênfase é dada para as chamadas liberdades positivas,

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ou outra tradição, mas a de apresentar uma (re)construção da relação entre soberania popular e direitos humanos, superando as tradições anteriores, uma vez que leva em conta a identificação de uma relação interna entre ambos os conceitos, constitutiva do que chamará de sistema de direitos: o conjunto de direitos (fundamentais) que os membros de uma comunidade atribuem-se reciprocamente quando decidem regular legitimamente sua convivência através do Direito Positivo (HABERMAS, 2003:162). E, para tanto, a modernidade aponta que a fundação desse sistema deve-se dar através de um importante meio institucional – a Constituição. O sistema de direitos, então, é responsável por garantir aos indivíduos determinadas liberdades subjetivas de ação a partir das quais podem agir em conformidade com seus próprios interesses – é o que se chama de autonomia privada – “liberando” esses indivíduos da pressão inerente à ação comunicativa (HABERMAS, 1998:186). Habermas conclui que o Direito não é – nem pode ser – capaz de obrigar os indivíduos a permanecer o tempo todo na esfera pública, devendo abrir a eles a possibilidade de escolha do uso de sua liberdade comunicativa. Em contrapartida, o princípio discursivo democrático compreende a autonomia pública a partir da ótica da garantia de legitimidade do procedimento legislativo através de iguais direitos de comunicação e de participação (HABERMAS, 2002:290); trata-se do fato de que os sujeitos de direito têm de se reconhecer como autores das normas às quais se submetem. Explicando melhor essa noção, tem-se que a reconstrução da noção de autonomia leva Habermas a afirmar que os indivíduos, como sujeitos de direito, devem ao mesmo tempo sempre ser autores e destinatários do Direito por eles produzidos. Dessa forma, conferir uma fundamentação estritamente moral aos direitos humanos acabaria por afirmar que o poder constituinte democrático simplesmente encontra esses direitos a priori, ou seja, como fatos morais prévios, para ter sua atividade limitada a uma positivação. Essa noção contraria o princípio democrático. Por outro lado, deve-se reconhecer que os cidadãos, no papel de co-legisladores, não podem mais escolher o medium pelo qual eles tornam efetiva sua autonomia; é apenas na condição de sujeitos de direito que eles podem tomar parte do processo legislativo; por isso uma autolegislação democrática apenas se pode valer do medium do Direito.22

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visando a assegurar a participação política autônoma. Para os liberais, o processo democrático tem uma tarefa básica: programar o Estado segundo o interesse da sociedade a partir de um sistema de negociações estruturado ao modo do Mercado – entre pessoas privadas – (HABERMAS, 2002:270). A Democracia é, então, compreendida de maneira reduzida, como um processo de eleição regido conforme o mecanismo formal da regra da maioria que confere legitimidade às decisões (GALUPPO, 2004:344). Direitos fundamentais, por sua vez, transformam-se em garantias de proteção da esfera privada contra intervenções estatais, de modo a possibilitar que cada indivíduo possa participar no cenário político defendendo seus próprios interesses (HABERMAS, 2005:1; 2002:271). “Quando da institucionalização das condições para um processo legislativo democrático, sob a forma de direitos políticos, é necessário que o código do direito já esteja à disposição. Para a criação desse código ou forma jurídica moderna, é necessário criar o status de sujeitos de direito que pertençam, enquanto titulares de direitos subjetivos, a uma comunidade jurídica” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:182).

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Logo, para que haja o Direito, deve haver a autonomia privada dos sujeitos de direito; de modo que, sem os direitos fundamentais que assegurem essa autonomia, faltaria o próprio medium para institucionalização jurídica das condições necessárias a que os sujeitos de direito possam fazer uso da autonomia pública ao atuarem no papel de cidadãos do Estado (HABERMAS, 2002:293; CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:182). Como consequência: “a autonomia privada e a pública pressupõem-se mutuamente, sem que os direitos humanos possam reivindicar um primado sobre a soberania popular, nem essa sobre aquele” (HABERMAS, 2002:293). É, então, a partir dessa consciência de co-originalidade entre autonomias público e privada que os cidadãos, ao constituírem seu sistema de direitos, devem criar uma “ordem” que preveja a qualquer membro (seja atual, seja futuro) dessa comunidade uma série de direitos subjetivos, iniciando por três categorias: (i) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do direito, que prevê a maior medida possível de liberdades subjetivas de ação para cada um. (ii) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do status de membro de uma associação livre de parceiros do direito. (iii) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do igual direito de proteção individual, portanto da reclamabilidade de direitos subjetivos (HABERMAS, 2003:169, grifo no original). Essas três categorias decorrem de um resultado direto da aplicação do princípio do discurso ao meio do Direito; estão associadas às condições de “socialização horizontal” produzidas pelo Direito. Assim, não podem ser compreendidas como os clássicos direitos liberais de defesa, uma vez que regulam apenas relações entre co-cidadãos livremente associados, anteriormente a qualquer organização estatal. A função básica, então, desses direitos é a garantia da autonomia privada dos sujeitos de direito, mas apenas à medida que se reconhecem mutuamente como destinatários das leis, levantando um status que lhes possibilita a pretensão de obter direitos e de fazê-los valer reciprocamente (HABERMAS, 1998:188). Somente no passo seguinte, é que esses sujeitos de direito assumem o papel de autores de sua ordem jurídica.23 Nessa quarta categoria, encontram-se os “(iv) 23

“Uma vez que pretendem fundar uma associação de cidadãos que se dão a si mesmos suas leis, eles tomam consciência de que necessitam de uma quarta categoria de direitos que lhes permita reconhecerem-se mutuamente, não somente como autores desses diretos, mas também como autores do direito em geral. Se quiserem continuar mantendo um aspecto importante de sua prática atual, a autonomia, eles têm que se autotransformar, pelo caminho da introdução de direitos fundamentais políticos, em legisladores políticos. Se, as primeiras três categorias de direitos fundamentais, não poderiam existir nada parecido com o direito, porém, sem uma configuração política dessas categorias, o direito não poderia adquirir conteúdos concretos” (HABERMAS, 2003:169).

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Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do direito para uma participação, em igualdade de condições, na legislação política” (HABERMAS, 2003:169). Assim, para que os membros de uma dada comunidade possam atribuir reciprocamente direitos subjetivos de maneira legítima, necessitam da institucionalização de procedimentos de produção desse Direito, que pressupõe o reconhecimento mútuo como pessoas livres e iguais. Resta, todavia, mais um categoria de direitos, que são: (v) Direitos fundamentais [...] ao provimento do bem-estar e da segurança sociais, à proteção contra riscos sociais e tecnológicos, bem como ao provimento de condições ecologicamente não danificadas de vida e, quando necessário, sob as condições prevalecentes, o direito de igual oportunidade de exercício dos outros direitos elencados (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:72). Esse sistema de direitos ainda necessita de um meio de institucionalização: o Estado de Direito, que possui, desde seu surgimento, o propósito de garantir institucionalmente à co-originalidade das autonomias pública e privada, buscando para tanto a legitimidade de suas decisões no Direito (HABERMAS, 1998:199), cumpre sua função a partir dos princípios que o informam. Um desses princípios é a soberania popular,24 que funcionaria como ponto de unificação entre as noções de Direito e Estado de Direito, já que fundamenta a participação popular em condições de igualdade na formação da vontade estatal. Todavia, a leitura habermasiana é feita a partir de uma concepção procedimental (HABERMAS, 1998:238; 1998:612; 1999:333) – ou seja, ela não se encontra ligada a um ethos ou a um povo determinado, seja ele presente, passado ou futuro, revelando-se uma soberania popular sem sujeito. Uma vez que o poder político é derivado do Poder Comunicativo, as questões políticas, para serem tratadas de forma racional, necessitam ser institucionalizadas, passando por uma rede de formas de comunicação que, em tese, destina-se a assegurar que todas as questões, tema e contribuições relevantes sejam ouvidas e elaboradas na forma de discursos e negociações, que, por sua vez, estão pautados na busca pelo melhor argumento (HABERMAS, 1998:238; 1999:333). É justamente essa institucionalização jurídica de determinados procedimentos e condições de comunicação que faz possível o uso e o emprego efetivos de iguais liberdades comunicativas, uma vez que obriga, além de estimular: o uso pragmático, ético e moral da razão prática; e a busca por um equilíbrio de interesses através de um resultado equitativo (HABERMAS, 1998:238). 24

Outros princípios são derivados do princípio da soberania popular. São eles: (1) princípio da proteção abrangente dos direitos individuais, que se refere ao Judiciário (HABERMAS, 1998:240); (2) princípio da legalidade da Administração Pública (HABERMAS, 1998:241); e (3) princípio da separação entre Estado e Sociedade (HABERMAS, 1998:243).

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Lembra Bahia (2003:242) que Habermas escapa do extremismo de Rousseau em sua busca por uma democracia direta, não representativa; ele irá apostar na defesa de um modelo democrático deliberativo que combine – mesmo defendendo que decisões políticas sejam tomadas em interações simples – o princípio da soberania popular com o princípio parlamentar, que, em termos de uma Teoria do Discurso, “deve garantir um procedimento que leve em conta as condições comunicativas, de forma que discursos éticos, pragmáticos, morais e negociações fair tenham lugar” (BAHIA, 2003:242, grifo no original).25 Nessa ótica, o Estado de Direito acaba por garantir tanto a institucionalização do uso público das liberdades comunicativas, como por regular a transformação do Poder Comunicativo em Poder Administrativo (HABERMAS, 1988:245). Não é sem razão que se pode reconhecer que a arena pública atrai e converte-se em um meio de aprendizado democrático, como lembra Bahia (2003:243).

3. O Futuro dos Direitos Humanos em Uma Ordem Pós-Nacional Como visto no tópico anterior, a reconstrução levada a cabo pelo pensamento de Habermas, passa a conceber a idéia de direitos humanos desligada que de uma perspectiva exclusivamente moral, quer de uma ordem ética (axiológica). Habermas (2001:149) faz uso da metáfora mitológica de Janus – deus grego dotado de dois rostos contrapostos – para explicar a dupla ligação como ordem normas morais e como normas jurídicas, o que marca uma tensão entre o sentido universal dos direitos humanos e as suas condições locais de efetivação na forma dos direitos fundamentais – isto porque, juridicamente, a proteção aos direitos humanos se dá na forma de normas jurídicas àqueles que pertencem a uma determinada comunidade jurídica. Uma forma de coordenar essa possibilidade de diversidade no campo das regulações particulares em cada Estado soberano passa, então, por uma regulamentação internacional. O art. 28 da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU faz uma referência global e traz uma vinculação aos países signatários. Aliado ao movimento da globalização, pode-se assistir um entrecruzamento entre o local e o global, no qual o mundo da vida tradicional caminha para uma forma de “aldeia global” (SOUZA CRUZ, 2006:229). Com isso, assiste-se o desenvolvimento de uma esfera pública internacional engajada em questões de interesse transnacional. Aqui, as organizações não governamentais, com 25

Uma síntese dessa proposta é apresentada por Cattoni de Oliveira (2000:109): “Nesse quadro, o processo legislativo, enquanto processo de justificação democrática do Direito, pode ser caracterizado como uma sequência de diversos atos jurídicos que, formando uma cadeia procedimental, assumem seu modo específico de interconexão, estruturado em última análise por normas jurídico-consitucionais, e, realizados discursiva ou ao menos em termos negocialmente equânimes ou em contraditório entre agentes legitimados no contexto de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição”.

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atuação internacional, desempenham um papel importante, elevando a legitimidade das decisões institucionais, marcando aqui uma busca cooperada pelo melhor argumento. Desse modo, uma “cidadania cosmopolita” em formação se funda discursivamente, sustentando suas pretensões de universalidade sob a base dos direitos humanos. Mas contra este proposta Habermas anote e responde algumas críticas. A primeira, afirma que a noção de direitos humanos é uma pretensão unilateral do Ocidente, o que esconderia por detrás estratégias vinculadas ao imperialismo das grandes potências (HABERMAS, 2001: 152; SOUZA CRUZ, 2006:232). Habermas fala, então, no “uso estratégico dos direitos humanos”, como fundamentação para intervenções militares “humanitárias”, como, por exemplo, a Guerra do Golfo ou as invasões norte-americanas no Iraque. Contra esse uso estratégico, apenas uma opinião pública internacional seria capaz de realizar discursivamente uma depuração. Finalizando, Habermas responde que a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU marca uma preocupação que é universal e, por isso, a crítica esta é mal colocada: o problema estaria mais bem posto na tônica de qual a forma adequada de interpretar os direitos humanos (HABERMAS, 2001: 156; SOUZA CRUZ, 2006:234). Fundamental seria, portanto, as posições que levassem em conta os pontos de vista de outras culturas.

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A Praça é do Povo? A Liberdade de Reunião e o Direito de Manifestação Popular em Espaços Públicos na Visão dos Tribunais George Marmelstein*

“A praça! A praça é do povo Como o céu é do condor É o antro onde a liberdade Cria águias em seu calor!” Castro Alves, no poema “O Povo ao Poder” (1864)

1. Introdução A essência da democracia é a participação do povo na tomada das decisões políticas. O povo somente pode participar eficazmente do processo de tomada das decisões políticas se estiver municiado de informações suficientes e adequadas para realizar as melhores escolhas e se puder ele próprio manifestar seu pensamento a fim de ver suas idéias serem levadas em consideração no processo deliberativo. Sem um sistema que garanta a livre circulação de idéias, a comunicação para a formação da vontade política racional fica inviabilizada ou, pelo menos, gravemente prejudicada, dificultando ou impossibilitando o exercício autêntico da soberania popular1. Para que as idéias possam circular livremente, é fundamental * 1

Universidade de Coimbra. Faculdade de Direito / Faculdade de Economia. CES – Centro de Estudos Sociais. Curso de Doutoramento “Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI” Essa idéia foi defendida, entre outros, por MILL, Stuart. Ensaio sobre a Liberdade (On Liberty, 1869). São Paulo: Editora Scala, 2006. Mais contemporaneamente, pode-se ver os mesmos argumentos em HABERMAS, Jürgen. A Constelação Pós-Nacional: ensaios políticos. São Paulo: Mundi, 2001. Nas suas palavras: “o nexo interno da democracia com o Estado de direito consiste no fato de que,

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George Marmelstein

a garantia da liberdade de reunião, onde pessoas com interesses comuns possam debater e defender suas opiniões abertamente e sem embaraços, através de passeatas, discursos, comícios, desfiles, cortejos, festividades etc., realizados em espaços públicos. Afinal, as manifestações coletivas representam o modo corporal e coletivo de tornar visíveis as convicções, de forma que os participantes vivenciem, de um lado, na comunhão com os outros, uma certificação desta convicção2. A manifestação “torna audível o protesto dos descontentes e dos insatisfeitos e chama a atenção da opinião pública para vias descuradas de progresso social”, revelando-se, por isso, “um dos instrumentos mais potentes da afirmação do pluralismo na sociedade democrática e do asseguramento da liberdade de expressão às minorias”3. Portanto, impedir a realização de reuniões pacíficas significa privar os cidadãos de trocarem idéias e experiências que, com toda certeza, poderão enriquecer o debate democrático4. A validade lógica da argumentação acima desenvolvida é indiscutível. Atualmente, é pacífico o entendimento de que a democracia e o direito de manifestação em espaços públicos possuem uma forte conexão5. Tal é a importância da liberdade de reunião que, praticamente, todos os documentos jurídicos e políticos, nacionais e internacionais, que tratam de direitos humanos/fundamentais mencionam expressamente a necessidade de se proteger esse direito.

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por um lado, os cidadãos só poderão utilizar condizentemente a sua autonomia pública se forem suficientemente independentes graças a uma autonomia privada assegurada de modo igualitário. Por outro lado, só poderão usufruir de modo igualitário da autonomia privada se eles, como cidadãos, fizerem uso adequado de sua autonomia política” (p. 149). SCHWAB, Jürgen. Cinqüenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Org: Leonardo Martins Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2006, p. 528. CORREIA, Sérvulo. O Direito de Manifestação: âmbito de proteção e restrições. Lisboa: Almedina, 2006, p. 17. Também nesse sentido, o “Guideliness on Freedom Peaciful Assembly”, ao esclarecer a importância da liberdade de reunião, publicado pelo “OSCE Office for Democratic Institutions and Human Rights (ODIHR)”, assinala que: “Peaceful assemblies can serve many purposes, including the expression of views and the defence of common interests. The freedom of peaceful assembly can be an important strand in the maintenance and development of culture, and in the preservation of minority identities. It is also recognized as one of the foundations of a functioning democracy, and its protection is crucial for creating a tolerant society in which groups with diff erent beliefs, practices, or policies can exist peacefully together” (OSCE – Office for Democratic Institutions and Human Rights (ODIHR). Guidelines on Freedom of Peaceful Assembly. Varsóvia: OSCE-ODIHR, 2007, p. 13). Tradução livre: “reuniões pacíficas podem servir a muitos propósitos, incluindo a expressão de pontos de vista e a defesa de interesses comuns. A liberdade de reunião pacífica pode ser uma vertente importante na manutenção e desenvolvimento da cultura e na preservação das identidades de minorias. É também reconhecida como um dos alicerces de uma democracia, e sua proteção é essencial para criar uma sociedade tolerante em que os grupos com deferentes crenças, práticas ou políticas podem existir pacificamente juntos”. No presente texto, não será feita uma distinção entre direito de manifestação e liberdade de reunião, ainda que possam existir sutis diferenças entre esses dois institutos. De um modo geral, considera-se que a liberdade de reunião engloba o direito de manifestação, sendo este um corolário lógico daquele. A liberdade de reunião é, em certo sentido, a liberdade de manifestar coletivamente uma opinião, ainda que não seja somente isso. Em alguns países, contudo, sendo Portugal um exemplo, o texto constitucional difere os dois institutos, ainda que a proteção jurídica seja praticamente idêntica, já que existe uma forte conexão material entre eles. Sobre o assunto, analisando a questão à luz do ordenamento português: CORREIA, Sérvulo. O Direito de Manifestação: âmbito de proteção e restrições. Lisboa: Almedina, 2006.

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A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), por exemplo, prevê que “toda a pessoa tem direito à liberdade de reunião e de associação pacíficas” (art. 20). O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966), de modo mais específico, estabelece que “o direito de reunião pacífica será reconhecido. O exercício desse direito estará sujeito apenas às restrições previstas em lei e que se façam necessárias, em uma sociedade democrática, ao interesse da segurança nacional, da segurança ou ordem públicas, ou para proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas” (art. 21). Há normas semelhantes na Convenção Européia de Direitos Humanos6, na Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos7, bem como nas constituições de praticamente todos os países democráticos. Apesar desse enfático reconhecimento normativo, nem sempre o direito de reunião é respeitado pelas autoridades públicas pelo mundo afora8. O protesto em espaço público costuma incomodar, especialmente porque pode chocar-se com outros valores importantes. Aliás, a própria livre circulação de idéias tem um forte potencial de conflituosidade, já que, em sociedades complexas, a pluralidade de concepções de vida costuma gerar opiniões antagônicas e, muitas vezes, radicalmente opostas. E quando a manifestação de idéias é veiculada por um grupo de pessoas reunidas em torno de um ideal comum, certamente amplia-se a possibilidade de conflito, tal qual uma voz veiculada por um megafone a ser escutada por pessoas com ouvidos sensíveis. Também não se pode deixar de reconhecer que, em determinadas situações, a liberdade de reunião é exercida de forma abusiva por grupos que se escondem sob o manto protetor do direito fundamental para divulgarem idéias de ódio (“hate speech”), para incitarem a prática de ilícitos (apologia ao crime) ou mesmo para praticarem atos de violência e de agressão. Atentos quanto ao caráter potencialmente conflituoso desse direito, os documentos normativos que reconhecem a liberdade de reunião prevêem cláusulas gerais que autorizam a sua restrição em situações excepcionais. Em primeiro lugar, somente as reuniões pacíficas são protegidas. Em segundo lugar, a lei pode estabelecer restrições com vistas à garantia da ordem democrática, especialmente a proteção dos direitos e liberdades de outras pessoas. 6

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“Art. 11º - Liberdade de reunião e de associação: 1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de reunião pacífica e à liberdade de associação, incluindo o direito de, com outrem, fundar e filiar-se em sindicatos para a defesa dos seus interesses. 2. O exercício deste direito só pode ser objeto de restrições que, sendo previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, ou a proteção dos direitos e das liberdades de terceiros. O presente artigo não proíbe que sejam impostas restrições legítimas ao exercício destes direitos aos membros das forças armadas, da polícia ou da administração do Estado”. “Artigo 11 - Toda pessoa tem direito de se reunir livremente com outras pessoas. Este direito exerce-se sob a única reserva das restrições necessárias estabelecidas pelas leis e regulamentos, nomeadamente no interesse da segurança nacional, da segurança de outrem, da saúde, da moral ou dos direitos e liberdades das pessoas”. Para uma compreensão global e contemporânea do problema, ainda que mais voltada especificamente à liberdade de associação, mas também com alguns reflexos na liberdade de reunião: PUDDINGTON, Arch (editor). Freedom of Association Under Threat – the new authoritarians’ offensive against civil society. Washington: Freedom House, 2008.

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O problema é que essas cláusulas de restrição costumam ser redigidas por meio de fórmulas semânticas demasiadamente abertas para justificar interpretações capazes de esvaziar substancialmente o significado dessa garantia quando interpretadas e aplicadas por pessoas sem compromisso com a democracia. Nem sempre é fácil definir se uma reunião é ou não pacífica, assim como nem sempre é fácil definir quando uma reunião ameaça a moral ou a ordem pública, por exemplo. A vagueza semântica dos termos normativos é uma fonte de incerteza capaz de gerar conflitos jurídicos de difícil solução prática. Infelizmente, algumas autoridades públicas se aproveitam dessa estrutura textual aberta para reprimir reuniões de forma arbitrária geralmente quando a manifestação de idéias é contrária à ideologia dominante. Portanto, assim como há abuso de direito por parte de determinados grupos que se aproveitam da garantia jurídica para deturparem seu significado e praticarem atos abomináveis, também há abuso de poder por parte de algumas autoridades públicas responsáveis pela aplicação da norma. E certamente o abuso de poder é mais freqüente do que o abuso de direito. Em regimes com pouca maturidade democrática, manifestações de oposição a um determinado regime político ou a uma determinada ideologia majoritária tendem a ser tachadas de suspeitas ou de subversivas, violadoras da moral e dos bons costumes. Essas manifestações podem se tornar alvos fáceis do controle estatal silenciador ou intimidador quando não há uma legislação regulamentadora preocupada em estabelecer rígidos limites contra a repressão abusiva da liberdade de reunião, nem há uma autêntica vontade política de fazer valer esse direito fundamental. Em situações mais extremas, chega-se a criminalizar o dissenso, punindo todos aqueles que, publicamente, manifestam opiniões que desagradam o establishment. Algumas vezes, até mesmo em países com forte tradição democrática, as autoridades (administrativas e/ou policiais) restringem excessivamente as manifestações políticas em espaços públicos que não são do seu agrado ou criam “zonas de liberdade”, especificando os lugares em que as manifestações públicas podem ser exercidas. Esse tipo de limitação é uma clara afronta ao direito de reunião e, para muitos, representa uma manifestação patológica da chamada “síndrome NIMBY”, que é cada vez mais comum nesses tempos de multiculturalismo global9. É certo que a liberdade de reunião pode ser restringida em situações excepcionais, pois não é um direito absoluto e ilimitado. Porém, isso não significa que a liberdade de 9

NIMBY é um acrônimo inglês de “Not In My Back Yard”, que pode ser traduzido como “não no meu quintal”. Apesar de ser utilizado por urbanistas para se referir àquelas construções que ninguém quer ter por perto de sua casa (como os presídios, fábricas poluidoras, usinas nucleares, aterros sanitários etc.), também se aplica com perfeição ao mundo dos direitos fundamentais. Há muita gente que defende a democracia, a liberdade e a igualdade, mas “não no meu quintal”, ou seja, defende uma ampla tolerância e abertura para as suas idéias, mas quando se depara com valores pregados por outros grupos simplesmente se nega a aceitar tê-los por perto ou mesmo ouvi-los. A síndrome NIMBY é bastante visível com relação à discriminação por orientação sexual. Muitas pessoas defendem um tratamento igualitário para as minorias sexuais, desde que cada um se mantenha em seu próprio lugar. Também é possível verificar o mesmo fenômeno em assuntos de religião.

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reunião pode ser abusivamente restringida ou suprimida. A regra é o respeito ao direito de manifestação pública e não a sua limitação. É preciso lembrar qualquer restrição a direitos fundamentais deve ser vista com desconfiança, exigindo-se uma forte carga argumentativa para afastar a garantia. Antes de limitar qualquer direito fundamental, deve-se exigir a comprovação de um fundado receio, com base em elementos concretos, de que está havendo uma violação da ordem democrática. Reconhecer que “não há direitos absolutos” e que “toda norma de direito fundamental é relativa, passível de limitação”, como se costuma bradar sem qualquer critério seguro, é extremamente perigoso, já que pode levar a uma idéia equivocada de que as liberdades são frágeis e que podem ceder sempre que assim ditar a “ordem pública”, expressão vaga que, no final das contas, pode justificar quase tudo. Em situações em que há abuso por parte de autoridades administrativas na restrição à liberdade de reunião, o Poder Judiciário imparcial, independente e garante dos direitos fundamentais surge como último reduto de proteção dos cidadãos contra o arbítrio estatal. Algumas vezes, o último reduto são os tribunais internacionais de direitos humanos, que vem conquistando cada vez mais legitimidade perante a comunidade internacional, em grande parte graças à sua atuação em favor de direitos básicos para o saudável funcionamento da democracia, como o direito de liberdade de reunião. Aliás, até mesmo aquelas pessoas que criticam a jurisdição constitucional, por conferir demasiado poder aos juízes, aceitam a intervenção judicial para desobstruir os canais democráticos. Essa é, por exemplo, a opinião de John Ely, para quem a função específica da jurisdição constitucional seria a de promover o funcionamento adequado da democracia, assegurando a abertura dos canais de participação e de mudanças políticas, bem como impedindo a tomada de decisões contrárias a direitos de minorias que não lograssem participação adequada no processo político-democrático, por sofrerem hostilidade e preconceito por parte da maioria política10. No presente texto, serão analisados alguns casos paradigmáticos em matéria de liberdade de reunião, resolvidos pela jurisdição nacional ou internacional. O objetivo é tentar fornecer, a partir da jurisprudência comparada sobre o assunto, algumas balizas interpretativas capazes de esclarecer e melhor delimitar o âmbito de proteção desse direito fundamental. Selecionaram-se os casos muito mais por sua importância didática e pela força de precedente que deles emanam do que propriamente pelos argumentos utilizados pelos juízes que os decidiram, até porque, em alguns casos, não se concordará integralmente com o resultado obtido ou com a fundamentação adotada. A fim de delimitar bem o objeto de estudo, é preciso deixar claro que não há qualquer pretensão de se analisar profundamente alguns institutos da teoria dos direitos fundamentais que estão aqui pressupostos, como o princípio da proporcionalidade, a dimensão subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais, o dever de proteção, a eficácia 10

ELY, John Hart. Democracy and Distrust: a theory of judicial review. Cambridge: Harvard University Press, 2002.

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horizontal ou a idéia de concordância prática/ponderação. Esses conceitos serão mencionados na medida em que forem necessários para uma correta compreensão dos casos a serem analisados, mas de uma forma genérica e propositadamente superficial, tendo em vista os estreitos limites deste trabalho11. Do mesmo modo, não se adentrará em aspectos legislativos específicos do direito de reunião, por exemplo, as manifestações em períodos eleitorais, ou a regulamentação das manifestações dos trabalhadores em greve ou, ainda, o direito de liberdade e de manifestação dos militares12. Cada país tem uma disciplina própria para o exercício do direito de reunião e, mesmo naqueles países em que os textos normativos são semelhantes, há uma história e um contexto democrático que justificam uma interpretação diferenciada sobre os pressupostos e as restrições a essa liberdade, especialmente se consideradas as questões específicas. Por essa razão, embora minha pretensão tenha sido analisar o tema sob uma ótica universalista, dentro do espírito de uma globalização ética e 11

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Para um estudo mais detalhado desses temas, entre outros: MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008; ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997; ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2001; BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2006; CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2002; DIMOULIS, Dimitri & MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006; MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007; NOVAIS, Jorge Reis. As Restrições Aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003; PIEROTH, Bodo & SCHLINK, Bernard. Direitos Fundamentais: Direito do Estado II (Grundrechte, Staatsrecht II, 1985). Porto: Universidade do Porto, 2009; QUEIROZ, Cristina M. M.. Direitos Fundamentais – teoria geral. Coimbra: Coimbra editora, 2002; SARLET, Ingo W. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. Em vários lugares do mundo, costuma-se restringir os direitos fundamentais dos militares em nome da unidade, da hierarquia, da disciplina e do cumprimento das missões, que é da essência do regime específico das forças armadas. Em Portugal, por exemplo, há uma proibição absoluta em relação às manifestações de militares de “natureza político-partidária ou sindical”. Por outro lado, para as outras espécies de manifestações públicas, é permitida a participação de militares desde “(a) as manifestações sejam ‘legalmente convocadas’; (b) não ponham em risco a coesão e a disciplina das Forças Armadas; (c) estejam desarmados; (d) trajem civilmente e não ostentem qualquer símbolo nacional ou das Forças Armadas” (CORREIA, Sérvulo. O Direito de Manifestação: âmbito de proteção e restrições. Lisboa: Almedina, 2006, p. 88). A Assembléia Parlamentar do Conselho da Europa, através da Recomendação 1742 de 11 de abril de 2006, que trata dos direitos humanos aos membros das Forças Armadas, embora tenha reconhecido a possibilidade de restrições específicas dos direitos fundamentais militares em razão da sua peculiar razão de ser, considerou que os membros das forças armadas são cidadãos em uniforme que devem usufruir das mesmas liberdades fundamentais, razão pela qual devem ter a mesma proteção dos seus direitos e dignidade que têm quaisquer outros cidadãos, dentro dos limites impostos pelas exigências específicas dos deveres militares. De acordo com a referida Recomendação, quaisquer restrições aos direitos fundamentais dos membros das forças armadas devem preencher os seguintes critérios: (a) devem ter uma intenção legítima, serem rigorosamente justificados pelas necessidades e especificações da vida militar, disciplina e treino, e serem proporcionais aos objetivos visados; (b) devem ser conhecidos, estabelecidos de acordo com a lei e rigorosamente definidos por esta, por forma a respeitar as regras estabelecidas na constituição; (b) não devem, injustificadamente, ameaçar ou pôr em risco a saúde física ou mental dos membros das forças armadas; (c) devem respeitar os limites estabelecidos pela Convenção Européia dos Direitos Humanos. Para uma visão doutrinária das restrições aos direitos fundamentais nas chamadas “situações especiais de sujeição”, entre outros: PEREIRA, Jane Reis Golçaves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

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cosmopolita, há pré-compreensões inafastáveis próprias da história democrática do meu país e conclusões que só fazem sentido no meu contexto de vida particular.

2. Liberdade de Expressão nos Tribunais 2.1. Corte Européia de Direitos Humanos 2.1.1. Caso Bączkowski e outros vs. Polônia (2007) – Parada Gay na Varsóvia – Direito de Minorias

Marcha pela Igualdade na Varsóvia, Polônia13 Em 2 de maio de 2007, a Corte Européia de Direitos Humanos, em decisão unânime, condenou a Polônia no caso Bączkowski e outros vs. Polônia por violação à liberdade de reunião e ao direito fundamental de não-discriminação14. No caso específico, as autoridades públicas polonesas, movidas por razões políticas preconceituosas, dificultaram a realização da chamada “Marcha pela Igualdade”, organizada por um grupo de combate à discriminação de minorias sexuais (GLBT – gays, lésbicas, bissexuais e transexuais). A marcha é semelhante à “Parada do Orgulho Gay” (“Gay Pride”), que se realiza em vários lugares do mundo. Os manifestantes pretendiam marchar pelas ruas de Varsóvia em 11 de junho de 2005, com o objetivo de sensibilizar a opinião pública para a questão da discriminação contra as minorias - sexuais, nacionais, étnicas e religiosas - e também em favor dos direitos das mulheres e das pessoas com deficiência. O itinerário da marcha havia sido nego13 14

Fonte: http://bi.gazeta.pl/im/5/4145/z4145115X.jpg Sobre o caso: BOGAERT, Sina Van den. ECHR Rules on Illegal Ban of Warsaw Equality Parade: The Case of Baczkowski and Others v. Poland. 8 German Law Journal No. 9 (1 September 2007), p. 889/902.

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ciado desde maio de 2005 com as autoridades responsáveis pelo trânsito e pela segurança pública, conforme era a prática adotada em eventos semelhantes. Em 20 de maio de 2005, antes mesmo de o pedido administrativo para a realização da Marcha ter sido formalmente formulado, a autoridade municipal de Varsóvia, responsável pela apreciação do pedido, afirmou em entrevista que iria proibir a manifestação de qualquer jeito. Em sua opinião, “propaganda sobre a homossexualidade não é equivalente a um exercício da liberdade de reunião”. E de fato, a autorização para a realização do evento não foi concedida, mas os motivos reais do indeferimento foram camuflados, tendo sido apresentado em seu lugar uma desculpa meramente burocrática. As autoridades locais invocaram as leis de trânsito, que exigiam a elaboração de um “plano de organização do tráfego”, com três meses de antecedência, para organização de eventos em vias públicas. Essa formalidade nunca havia sido exigida antes e só foi comunicada aos organizadores do evento a poucos dias da data marcada para a sua realização, a despeito de o pedido administrativo ter sido formulado vários meses antes. E outras organizações “mais tradicionais” receberam autorização para realização de manifestações públicas sem qualquer exigência semelhante naquele mesmo dia, numa clara demonstração de que o indeferimento teria sido movido por preconceito contra os homossexuais. Em grau de recurso, foi reconhecida a ilegalidade do indeferimento, pois, se houvesse necessidade de apresentação de um plano de organização do tráfego, as autoridades deveriam ter intimado os organizadores do evento para a apresentarem dentro do prazo devido, o que não foi feito. Tal decisão, contudo, só foi proferida em agosto daquele ano, não tendo qualquer eficácia, já que a marcha havia sido marcada para julho. Do mesmo modo, o Tribunal Constitucional polaco (Trybunał Konstytucyjny) reconheceu a inconstitucionalidade da referida regra burocrática que obriga os organizadores de eventos a elaborem de um “plano de organização do tráfego”, por dificultar excessivamente o exercício da liberdade de reunião. Como a decisão só foi proferida em 18 de janeiro de 2006, não ajudou muito os realizadores do evento em questão, a não ser prospectivamente. Naquele mesmo ano, em novembro, outro grupo GLBT tentou realizar uma “Marcha pela Igualdade” em Poznan, mas a prefeitura local indeferiu o pedido. A marcha foi realizada apesar da proibição. Houve confronto com a polícia. Cerca de 500 manifestantes foram presos. E o curioso é que um grupo chamado “Juventude Polonesa”, que é uma liga do partido de extrema-direita polonês, não sofreu qualquer punição por jogar ovos e agredir verbalmente os manifestantes com frases do tipo “gás neles” ou “vamos fazer com vocês o que Hitler fez aos judeus” e outras aleivosias semelhantes. No caso da Marcha de Poznan, o próprio Supremo Tribunal Administrativo polonês reconheceu que os motivos apresentados pela municipalidade seriam insuficientes para justificar restrições à liberdade de manifestação. Por isso, os organizadores da Marcha de Poznan optaram por não levar o caso à Corte Européia de Direitos Humanos.

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Os organizadores da Parada Gay de Varsóvia, por sua vez, mesmo tendo realizado a marcha apesar da proibição (com cerca de 2.500 participantes), resolveram levar o caso à Corte Européia de Direitos Humanos, pois o evento foi bastante prejudicado com a decisão administrativa. Muitos manifestantes deixaram de participar da marcha com medo de represálias e de repressão policial. A Corte Européia de Direitos Humanos acolheu o pedido dos organizadores do evento e reconheceu o desrespeito à liberdade de reunião e a violação à proibição de discriminação praticados pelo governo polonês, sendo este o primeiro precedente envolvendo especificamente o direito de manifestação pública de movimentos semelhantes. Na parte em que interessa, a decisão pode assim ser sintetizada: (a) uma das principais características de uma sociedade é o pluralismo, a tolerância, o respeito à diversidade e a abertura para idéias divergentes (broadmindedness). “A harmoniosa interação de pessoas e grupos com identidades variadas é essencial para a coesão social”; (b) quando uma sociedade civil funciona de um modo saudável, a participação dos cidadãos no processo democrático é, em grande medida, alcançada através de manifestações públicas, em que os cidadãos podem se integrar uns com os outros no intuito de defenderem interesses coletivos comuns; (c) embora os interesses individuais devam ser, por vezes, subordinados aos interesses coletivos, a democracia não se limita a dizer que a opinião da maioria deve prevalecer sempre: é preciso alcançar um equilíbrio que garanta o justo e adequado tratamento das minorias a fim de evitar qualquer abuso por parte de grupos dominantes; (d) o estado é o melhor garante do princípio do pluralismo. Ele deve proteger real e efetivamente o exercício da liberdade de reunião. Essa proteção não se dá apenas de forma negativa (através da não interferência), mas também através de obrigações positivas no intuito de garantir o efetivo gozo dessas liberdades, especialmente em se tratando de pessoas que possuem pontos de vista impopulares ou que façam parte de minorias, porque elas estão mais vulneráveis à vitimização; (e) as limitações à liberdade de reunião devem ser previstas em lei, visar um ou mais objetivos legítimos e ser adequadas e necessárias para realização desses objetivos; (f) no caso, a restrição concreta foi ilegal (conforme reconhecido pelas próprias autoridades locais em nível de recurso) e violou o princípio da proporcionalidade, especialmente porque a diferença de tratamento não tinha um objetivo legítimo; (g) a decisão administrativa foi estimulada, em última análise, por preconceito homofóbico, conforme demonstrou a entrevista já mencionada, o que não se constitui em interesse legítimo, por afrontar o direito fundamental que proíbe discriminações por motivos de orientação sexual.

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A referida decisão representa uma conquista para grupos minoritários, que são, em grande medida, os principais destinatários das proteções conferidas pelas declarações de direito. O mais importante do caso foi o reconhecimento de que as autoridades estatais, em nome da liberdade de reunião, não podem agir de forma discriminatória por motivo de orientação sexual. Logicamente, o mesmo raciocínio se aplica a outras formas de discriminação: religiosa, raça, linguagem, política, nacionalidade, classe social, idade ou qualquer outro critério.

2.1.2. Plattform “Ärzte für das Leben” v. Austria (1998) – Contra-Manifestação e Dever de Proteção Estatal

Manifestação do Grupo “Médicos pela Vida”15 O grupo Ärzte für das Leben (Médicos pela Vida) tem como bandeira de luta a crítica ao aborto e tenta influenciar, na Áustria, a aprovação de leis sobre o assunto. Em 1980 e 1982, tentou realizar duas manifestações em locais públicos, mas foi impedido por parte de contra-manifestantes hostis, apesar da presença de um grande número de policiais no local. Na manifestação de 1980, os contra-manifestantes, que apoiavam a liberdade de escolha da mulher e, portanto, eram contrários à proibição do aborto, praticaram vários atos que inviabilizaram as manifestações do Ärzte für das Leben: usaram auto-falantes com gritos de hostilidade e jogaram ovos nos manifestantes durante o evento. Só não houve violência física entre os manifestantes e os contra-manifestantes porque a polícia fez um cordão de isolamento entre os grupos opostos. De qualquer modo, a manifestação restou inviabilizada por conta dos atos praticados pelos contra-manifestantes. No ano de 1982, a mesma situação se repetiu durante uma vigília religiosa organizada pelo Ärzte für das Leben durante a madrugada. Gritos dos contra-manifestantes impossibilitaram que a celebração religiosa ocorresse normalmente e mais uma vez os policiais nada fizeram para conter os contra-manifestantes. 15

Fonte: http://www.epld.org/assets/images/Paris-Demo_GW_Dr.Laf.__Klein_1-06.jpg

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Em razão desses fatos, o grupo Ärzte für das Leben, depois de esgotar os procedimentos previstos, ingressou com pedido perante o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, alegando que a Áustria, por omissão, estaria impedindo o exercício do direito de reunião do Ärzte für das Leben. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos reconheceu a existência de um dever estatal de fornecer a proteção adequada e necessária para a realização do direito de liberdade, assinalando que: “A demonstration may annoy or give offence to persons opposed to the ideas or claims that it is seeking to promote. The participants must, however, be able to hold the demonstration without having to fear that they will be subjected to physical violence by their opponents; such a fear would be liable to deter associations or other groups supporting common ideas or interests from openly expressing their opinions on highly controversial issues affecting the community. In a democracy the right to counter-demonstrate cannot extend to inhibiting the exercise of the right to demonstrate”16. Em seguida, o tribunal reconheceu que a efetiva liberdade de reunião pacífica não pode ser reduzida a uma mera obrigação estatal negativa. Além dessa obrigação negativa (dever de respeito), o Estado também possui uma obrigação positiva (dever de proteção), ainda que, para o exercício desta última, as autoridades estatais tenham uma ampla margem de discricionariedade acerca dos meios adequados e necessários à proteção do direito. Em razão disso, o tribunal não indicou quais são as medidas efetivas que o estado deve tomar, pois esse papel caberia ao estado; apenas determinou que fossem adotadas as medidas necessárias para efetivamente assegurar o exercício do direito. Em relação aos incidentes específicos que justificaram o pedido, a Áustria não foi considerada culpada, pois, à luz das informações disponíveis, as autoridades envolvidas não se abstiveram de adotar medidas razoáveis e apropriadas, dentro do possível diante de uma situação crítica como aquela. Esse caso demonstra uma faceta interessante dos direitos fundamentais, que é a idéia de dever de proteção. Para muitos, a obrigação do estado em relação aos direitos de liberdade é tão somente uma obrigação negativa, de respeito, ou seja, de não-interferên16

Trecho do voto proferido no caso Plattform “Ärzte für das Leben” v. Austria. Tradução livre: “uma manifestação pode desagradar ou ofender às pessoas que se opõem àquelas idéias ou reivindicações. Os participantes devem, no entanto, ser capazes de exercer o direito sem ter receio de que serão submetidos à violência física pelos seus adversários; tal receio seria suscetível de dissuadir os grupos de expressarem abertamente as suas opiniões em questões controversas que afetam a comunidade. Em uma democracia, o direito de contra-manifestação não pode ir ao ponto de inibir o exercício do direito de outros manifestantes”.

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cia. Trata-se, porém, de uma visão parcialmente equivocada, já que não leva em conta a multiplicidade de comandos que emanam das normas definidoras de direitos fundamentais. Na verdade, não existem direitos exclusivamente negativos, sendo um erro pensar que os direitos de liberdade não geram custos ou tarefas para o Poder Público. A proteção de qualquer direito, inclusive os direitos de liberdade, exige a mobilização de recursos financeiros, administrativos, legislativos e judiciais17. Para ser mais claro: todo direito fundamental gera um dever de respeito, proteção e promoção, ou seja, o Estado tem o dever de respeitar (não violar o direito), proteger (não deixar que o direito seja violado) e promover (possibilitar que todos usufruam o direito). Vale explicar melhor essa idéia. Em virtude do dever de respeito, o Estado tem a obrigação de agir em conformidade com o direito fundamental, não podendo violá-lo, nem adotar medidas que possam ameaçar um bem jurídico protegido pela norma constitucional. Esse dever gera, portanto, um comando de abstenção. No entanto, não basta uma postura inerte para a plena efetivação dos direitos fundamentais, ou seja, o Estado não apenas deve se abster de lesar bens jurídicos fundamentais, mas também deve atuar positivamente, protegendo-os de quaisquer ameaças, inclusive de terceiros. Em outras palavras, o Estado muda seu papel de adversário dos direitos fundamentais para uma função de guardião. Essa obrigação constitucional que o Estado – em todos os seus níveis de poder – deve observar é o chamado “dever de proteção”. Esse dever significa, basicamente, que (a) o legislador tem a obrigação de editar normas que dispensem adequada tutela aos direitos fundamentais, (b) o administrador tem a obrigação de agir materialmente para prevenir e reparar as lesões perpetradas contra tais direitos e (c) o Judiciário tem a obrigação de, na prestação jurisdicional, manter sempre a atenção voltada para a defesa dos direitos fundamentais18. Foi justamente isso que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos afirmou no caso Plattform “Ärzte für das Leben” v. Áustria, ainda que não tenha reconhecido, no caso concreto, qualquer violação desse dever por parte da Áustria, já que, diante das condições específicas em que os fatos ocorreram, a ação administrativa teria sido razoável.

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18

Cf. HOLMES, Stephen & SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights: why liberty depends on taxes. Nova Iorques: W. W. Norton & Co., 1999. Os referidos juristas norte-americanos demonstraram, no citado livro, que é um erro pensar que os direitos de liberdade não geram custos para o Poder Público. Eles comprovaram que os “direitos individuais e de liberdade dependem fundamentalmente de uma intensa ação do Estado”. Sem que o Estado gaste dinheiro, nenhum direito é protegido: “a penniless state cannot protect rights”. Fonte de consulta: SARMENTO, Daniel. Os Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006, p. 130/132.

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2.2. Tribunal de Justiça Europeu 2.2.1. Caso Eugen Schmidberger, Internationale Transporte und Planzüge vs. Republik Osterreich (2003) – Protesto-Bloqueio na Auto-Estrada de Brenner – Inconvenientes e Dever de Tolerância

Imagem da auto-estrada de Brenner “interditada” pelo protesto da Transitforum Austria Tirol em junho de 200019 Em junho de 2003, o Tribunal de Justiça Europeu julgou um interessante caso envolvendo o direito de manifestação em vias públicas20. Ficou decidido que o fato de as autoridades austríacas não haverem proibido uma manifestação pacífica e temporária que bloqueava a auto-estrada de Brenner não seria contrário ao direito comunitário. No caso específico, uma organização não-governamental ligada à proteção da biosfera na região dos Alpes (Transitforum Austria Tirol) organizou uma manifestação nos dias 12 a 13 de junho de 1998 na auto-estrada de Brenner, que é uma das principais vias de comunicação entre a Europa setentrional e o norte da Itália. O objetivo do protesto era o de sensibilizar o público para os problemas de ameaças ao meio ambiente e à saúde pública ocasionadas pelo aumento constante de circulação de veículos pesados naquela estrada e pressionar as autoridades competentes para tomarem as medidas necessárias para solucionar o problema, dada a importância ambiental da região alpina. A manifestação foi devidamente noticiada para as autoridades administrativas competentes que, por meio da comunicação social, divulgaram para os potenciais usuários daquela auto-estrada que o acesso à via seria bloqueado por ocasião do protesto. Aconselhou-se ainda que, se possível, os usuários deveriam evitar trafegar por aquela estrada durante o período do protesto. 19 20

Fonte: http://news.bbc.co.uk/olmedia/800000/images/_802901_bikes300.jpg Case C-112/00, ECR I-5659, 2003.

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Tal como previsto, a manifestação foi realizada normalmente, no local e no momento indicado, sem maiores transtornos além dos já esperados em decorrência do bloqueio da rodovia, que durou trinta horas. Após a manifestação, a empresa privada Schimidberger, que utilizava aquela via regularmente para transportar seus produtos (madeira e aço), ingressou com ação judicial requerendo uma indenização pelos prejuízos sofridos durante o período em que seus caminhões ficaram parados por conta do bloqueio. Alegou que a Áustria seria responsável por violar o seu direito fundamental de livre circulação de mercadorias, conforme previsto no direito comunitário. A empresa alegou que seus caminhões foram impedidos de utilizar a auto-estrada de Brenner durante quatro dias consecutivos, que foi o período em que caminhões pesados não puderam trafegar por aquela via. Disse ainda que não havia caminhos alternativos para o destino desejado, já que aquela era a única rota disponível para percorrer o trecho entre a Alemanha e a Itália. Respondendo a uma consulta formulada Tribunal Regional Superior de Innsbruck (Oberlandesgericht Innsbruck), que pedia orientações sobre a interpretação do direito comunitário naquele caso, o Tribunal de Justiça Europeu decidiu que as autoridades austríacas agiram corretamente ao privilegiar a liberdade de reunião naquela situação. Argumentou-se que a restrição à liberdade de circulação foi legítima e justificada já que as autoridades austríacas foram inspiradas por considerações ligadas ao respeito dos direitos fundamentais dos manifestantes à liberdade de expressão e à liberdade de reunião, além de terem tomado todas as cautelas possíveis para que a livre circulação de veículos sofresse a menor restrição possível. Tanto é assim que divulgaram previamente aos usuários da auto-estrada que o bloqueio se realizaria naquele período. Além disso, o bloqueio restringiu-se a um único itinerário, durante um único momento de duração limitada. Com isso, considerou-se que houve um justo equilíbrio entre a proteção dos direitos fundamentais dos manifestastes e as exigências da livre circulação de mercadorias21. Conseqüentemente, não poderia ser atribuída às autoridades austríacas uma violação do direito comunitário susceptível de suscitar a responsabilidade civil22. A importância maior desse caso foi reconhecer que eventuais inconvenientes ocasionados pelas manifestações públicas, como os transtornos causados ao trânsito de veículos ou à livre circulação de mercadorias, por exemplo, não são suficientes para impedir a sua 21

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O mesmo raciocínio não se aplica quando os manifestantes agem totalmente na ilegalidade. No caso Commission v. France, por exemplo, julgado em 1997, o mesmo Tribunal de Justiça Europeu condenou a França por ter permitido que, em 1993, agricultores revoltados praticassem atos de vandalismo e de violência contra particulares, interceptando seus veículos, destruindo suas cargas, praticando violência contra os motoristas, danificando bens, entre outros atos ilícitos, durante uma manifestação pública que fugiu do controle (Caso C-265/95, ECR I 6959, 1997). A decisão pode ser lida em inglês, na íntegra, em: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:62000J0112:EN:HTML

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realização23. Tais inconvenientes devem ser suportados pela comunidade em geral, sobretudo quando a manifestação é realizada de forma responsável e razoável, como foi o caso24.

2.3. Tribunal Constitucional Federal Alemão 2.3.1. Caso Brokdorf (1985) – Protesto contra Usina Nuclear – Dever de Aviso Prévio e Manifestações Espontâneas

Protesto em Brokdorf25 Um dos casos mais importantes na jurisprudência mundial envolvendo a liberdade de reunião foi o caso Brokdorf, ocorrido na Alemanha, em 1981. 23

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Eis um trecho do julgamento: “Whilst a demonstration on a public highway usually entails inconvenience for non-participants, in particular as regards free movement, that inconvenience may in principle be tolerated provided that the objective pursued is the public and lawful demonstration of an opinion”. Tradução livre: “Embora uma manifestação pública normalmente provoque inconvenientes para os não participantes, em particular no que diz respeito à livre circulação, esse transtorno pode, em princípio, ser tolerado, desde que o objetivo visado seja uma legítima manifestação de uma opinião”. Também a esse respeito, a Suprema Corte de Israel, no caso Sa’ar vs. Minister of Interior and Police, de 1979, assim decidiu: “… In exercising the ‘traffic’ consideration, a balance must always be struck between the interests of citizens who wish to hold a meeting or procession and the interests of citizens whose right of passage is affected by that meeting or procession. Just as my right to demonstrate in the street of a city is restricted by the right of my fellow to free passage in that same street, his right of passage in the street of a city is restricted by my right to hold a meeting or procession. The highways and streets were meant for walking and driving, but this is not their only purpose. They were also meant for processions, parades, funerals and such events” (extraído de OSCE – Office for Democratic Institutions and Human Rights (ODIHR). Guidelines on Freedom of Peaceful Assembly. Varsóvia: OSCE-ODIHR, 2007, p. 26). Tradução livre: “Levando em consideração as ‘questões de tráfego’, a ponderação deve ser sempre um equilíbrio entre os interesses dos cidadãos que pretendem organizar uma reunião ou passeata e os interesses dos cidadãos cujo direito de passagem é afetado por essa reunião ou passeata. Assim como o meu direito de me manifestar na rua de uma cidade é limitado pelo direito de passagem do meu colega na mesma rua, o seu direito de passagem é restringido pelo meu direito de realizar uma reunião ou passeata. As estradas e as ruas foram feitos para o passeio a pé ou de carro, mas esse não é seu único objetivo. Podem servir, também, para a realização de passeatas, desfiles, funerais e eventos semelhantes”. Fonte: http://www.hinifoto.de/akw/brokdorf1.jpg

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Brokdorf é um município localizado no distrito de Steinburg, na Alemanha, e foi o local escolhido pelo governo alemão para servir de base territorial para a construção de uma usina nuclear. Várias organizações não-governamentais resolveram convocar a população para se reunir nas ruas e praças de Brokdorf e protestar contra a referida construção. O órgão administrativo competente, contudo, emitiu uma ordem proibindo qualquer manifestação pública em um raio de 210 quilômetros quadrados em torno do território onde seria construída a usina. A decisão administrativa foi fundamentada na informação fornecida pela polícia de que alguns dos cinqüenta mil manifestantes esperados estavam dispostos a usar a violência para ocupar o local das obras e danificar os equipamentos e destruir o que estivesse até então construído. Alguns manifestantes ingressaram na Justiça Administrativa alemã para tentar anular judicialmente o ato administrativo. Nas vias ordinárias, o pedido foi indeferido, sob o fundamento de que o aviso prévio da reunião tinha sido requerido fora do prazo previsto em lei26, além de ser razoável a suspeita da prática de violência por parte dos manifestantes. Em 1985, o caso, finalmente, foi julgado pela Corte Constitucional alemã que, em famosa decisão, reconheceu o direito dos manifestantes de se reunirem nos espaços públicos, sob o fundamento de que o direito do cidadão de participar ativamente do processo de formação da opinião e da vontade política pelo exercício da liberdade de reunião faz parte dos elementos funcionais indispensáveis de uma comunidade democrática27. Ficou decidido que o dever de aviso prévio não deveria ser um empecilho para a realização de manifestações espontâneas28 e que a proibição prévia de protestos públicos somente seria possível “se, segundo as circunstâncias perceptíveis quando da edição da medida administrativa, a segurança ou ordem pública restarem imediatamente ameaçadas pela realização 26

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A Lei de Reuniões e Passeatas, de 24 de julho de 1953, que justificou a decisão, determinava o seguinte: “§ 14 (1) Quem tiver a intenção de organizar uma reunião pública ao ar livre ou uma passeata, deve, no máximo com 48 horas de antecedência em relação a sua publicação, anunciá-lo à autoridade competente, sob a indicação do objeto da reunião ou da passeata. (2) No anúncio, deve ser indicada que pessoa é responsável pela reunião ou passeata. § 15 (1) A autoridade competente pode proibir a reunião ou passeata ou fazer com que elas dependam de certas condições, se, conforme circunstâncias reconhecíveis ao tempo da edição da medida administrativa], a segurança pública ou a ordem estiverem diretamente ameaçadas com a realização da reunião ou passeata. (2) Ela pode dissolver uma reunião ou passeata quando não tiverem sido anunciadas, quando elas se afastarem das indicações do anúncio ou contrariarem as condições impostas, ou quando estiverem presentes os pressupostos de uma proibição, conforme o parágrafo 1º. (3) Deve-se dissolver uma reunião proibida”. SCHWAB, Jürgen. Cinqüenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Org: Leonardo Martins Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2006, p. 524. “As declarações relacionadas com o anúncio prévio devem fornecer as informações necessárias às repartições públicas, a fim de que elas possam ter uma idéia do que, de um lado, deve ser feito para que a realização da reunião transcorra de maneira a menos perturbar as regras de trânsito, e o que é necessário fazer, de outro lado, no interesse de terceiros, bem como no interesse da coletividade, e como esses interesses podem harmonizarse uns com os outros (cf. BT Drucks. 8/1845, p. 10). Segundo uma visão bastante predominante, o dever de anunciar a manifestação dentro do prazo legal desaparece nas manifestações espontâneas, que se formam instantaneamente a partir de ensejo atual uma infração ao dever de anúncio prévio não leva automaticamente à proibição ou dissolução de um evento” (SCHWAB, Jürgen. Cinqüenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Org: Leonardo Martins Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2006, p 532/3).

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da reunião ou passeata”. A proibição prévia ou a dissolução de uma manifestação somente podem ser legítimas “para a proteção de bens importantes da coletividade, sem prejuízo do princípio da proporcionalidade e apenas no caso de risco imediato a esses bens jurídicos, o qual pode ser inferido de circunstâncias reconhecíveis”. E mais: “A proibição e a dissolução pressupõem, de um lado, como ultima ratio, que o meio mais ameno do estabelecimento de obrigações ad hoc [a serem cumpridas pelos organizadores ou pelos próprios manifestantes] esteja esgotado. Inconvenientes que ocorrerem inevitavelmente a partir das multidões que o exercício desse direito fundamental implica, e que não puderem ser evitados sem que haja prejuízo para o fim da reunião, precisam ser, em geral, tolerados por terceiros. Em virtude de meros motivos de técnica de tráfego, tanto menos se poderá proibir uma reunião, quanto mais se se puder atingir, por meio do estabelecimento de obrigações ad hoc, uma justaposição do uso da via pública pelos participantes da reunião e pelo tráfego fluente”29. Outro ponto importante do julgado foi estabelecer padrões a serem observados no decorrer das grandes manifestações populares. Foram citados três grandes eventos ocorridos em espaços públicos alemães (Gorleben-Trecks de 1979, da manifestação pela paz de Bonn de 1981 e a corrente humana do sul alemão de 1983), para demonstrar que as reuniões públicas de grande porte podem ser conduzidas a bom termo, sem maiores transtornos para a coletividade ou para o patrimônio público, se houver uma relação de mútua cooperação e de confiança entre os organizadores do evento e as autoridades envolvidas. O estado tem o dever de facilitar o exercício da liberdade de reunião e mobilizar o seu aparato administrativo (organização, recursos humanos e procedimentos), a fim de aprender a lidar com as grandes manifestações, atuando dentro dos padrões da boa governança, com espírito apaziguador e garantidor do exercício do direito e não como uma ameaça. Uma atitude não cooperativa das autoridades é um estímulo a reações emotivas por parte dos manifestantes que podem fugir do controle e ocasionarem danos muito maiores. Por isso, “quanto mais os organizadores, quando do anúncio prévio de uma grande manifestação, estiverem predispostos à tomada de medidas de sua parte que demonstrem confiança, ou mesmo a uma cooperação favorável à [o transcorrer pacífico da] manifestação, mais alto será o limite para as intervenções das autoridades públicas em virtude de risco à segurança e à ordem públicas”30.

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SCHWAB, Jürgen. Cinqüenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Org: Leonardo Martins Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2006, p 535. SCHWAB, Jürgen. Cinqüenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Org: Leonardo Martins Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2006, p 538.

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2.3.2. Caso Sitzblockaden II (1995) – Bloqueio Sentado contra Armas Nucleares – Conceito de Reunião Pacífica

Foto do protesto em Großengstingen em maio de 198331 Outro processo importante julgado pela Corte Constitucional alemã, envolvendo a liberdade de reunião, foi o caso do bloqueio sentado (Sitzblockaden II). Desta vez, o palco da manifestação pública seria a cidade de Großengstingen, onde havia um depósito militar contendo foguetes de curto alcance do tipo Lance. O objetivo do protesto, realizado em 9 de maio de 1983, era semelhante ao do caso Brokdorf: alertar contra os perigos de uma corrida armamentista nuclear na República Federativa da Alemanha. O grupo de manifestantes era pequeno, variando ao longo do dia entre 15 a 40 pessoas. Em um dado momento da manifestação, cinco manifestantes sentaram-se na rua para impedir a passagem de um carro do exército. O militar responsável ordenou que os manifestantes saíssem da passagem, mas não foi obedecido. Em razão disso, retornou com o seu veículo para o quartel e reportou o caso para a polícia, que obteve uma ordem de dissolução daquela manifestação. Ao tentar passar novamente com o veículo, houve novo bloqueio por parte dos manifestantes, que não obedeceram a ordem policial para que saíssem da rua. A polícia retirou-os à força, carregando-os para a calçada. E isso se repetiu várias vezes naquele dia. Depois do protesto, os manifestantes foram punidos pelo crime de constrangimento ilegal, tendo sido condenados a pagar uma pena pecuniária. A decisão foi confirmada pelas instâncias recursais ordinárias, o que forçou os manifestantes a ingressarem com uma reclamação constitucional para a Corte Constitucional alemã. A Corte Constitucional alemã revogou as condenações impostas aos manifestantes, por entender que o “bloqueio sentado”, tal como realizado pelos manifestantes, não poderia ser considerado como uma manifestação não-pacífica. Logo, como não houve um intuito de violência, o ato não poderia ser punido32. 31 32

http://www.eberhard-finckh-kaserne.de/assets/images/DEMO-6.jpg É certo que um dos fatores preponderantes para a reforma das condenações foi o fato de que a legislação

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Discorrendo sobre esse tema específico, Sérvulo Correia defendeu que, nessa modalidade de protesto (bloqueio sentados ou deitados em vias públicas), a remoção coercitiva dos manifestantes não-agressivos somente deveria ser autorizada após um tempo mínimo, salvo razões de perigo iminente para a integridade física33. Tal proposta parece ser razoável por uma razão muito simples: se o protesto é legítimo, já que não violento, está devidamente protegido pelo direito fundamental. Por outro lado, como se trata de um protesto que, por natureza, prejudica o interesse de terceiros ou da própria administração pública, é prudente que não possa ser exercido de forma ilimitada, já que tal atitude transformaria o exercício legítimo do direito em um abuso que não pode ser tolerado. Por isso, um meio termo, dentro da idéia de concordância prática, deve ser buscado: permite-se o protesto desde que por um prazo razoável – nem muito curto, a ponto de tornar insignificante a manifestação da idéia, nem muito longo, a ponto de prejudicar demasiadamente o direito de terceiros.

2.3.3. Caso Loveparade (2001) - Festa Rave na Alemanha – Relevância Pública da Reunião

Imagem da LoveParade em Berlin34

33 34

aplicável à espécie não definia claramente qual era o conceito de violência, ferindo, portanto, o princípio da legalidade penal. Os tribunais ordinários adotaram uma interpretação ampliativa e “desmaterializada” de violência para abranger até mesmo os comportamentos que não incluíam o emprego imediato de forças corporais, o que foi rejeitada pela Corte Constitucional alemã por ferir a legalidade. É que o princípio da reserva legal “obriga o legislador a formular os requisitos da punibilidade (Strafbarkeit) tão concretamente que a área de aplicação e o alcance do tipo penal possam ser extraídos da letra da lei ou esclarecidos por interpretação. Essa obrigação serve a um duplo fim. Ela deve, de um lado, assegurar que os destinatários da norma possam prever qual comportamento é vedado e está sujeito à sanção penal. Ela deve, de outro lado, garantir que a decisão sobre que comportamentos devam ser sancionados criminalmente seja previamente determinada pelo legislador e não posteriormente pelo Poder Executivo ou pelo Poder Judiciário” (SCHWAB, Jürgen. Cinqüenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Org: Leonardo Martins Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2006, p 546). CORREIA, Sérvulo. O Direito de Manifestação: âmbito de proteção e restrições. Lisboa: Almedina, 2006, p. 79/80. Fonte: http://neosapiens.net/images/bank/LoveParadeBerlin1.jpg

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O Loveparade é um festival de música tecno ao ar livre. Foi concebido originariamente como manifestação política pela paz através da música. Na sua primeira edição, em 1989, tinha apenas 150 participantes. Dez anos depois, passou a ser freqüentado por mais de um milhão de pessoas. É considerado como a maior festa rave do mundo. O evento costumava ocorrer numa área pública no centro de Berlim. Em 2001, por conta dos transtornos causados pela multidão, as autoridades berlinenses (administrativa e policial) indeferiram o pedido de autorização para realização do evento formulado pelos organizadores do Loveparade e, em conseqüência, proibiram a sua realização em Berlim. O argumento utilizado pelas autoridades públicas foi o de que tal ato indeferitório não constituiria uma violação do direito constitucional de liberdade de reunião porque o Loveparade não se qualificaria como uma reunião pública inserida no âmbito de proteção da norma constitucional. Para as autoridades, não se poderia falar em reunião, já que o Loveparade havia se transformado em um mero evento comercial sem qualquer objetivo de expressar opiniões ou idéias. Os organizadores do Loveparade questionaram os atos administrativos judicialmente. Não obtiveram sucesso nas instâncias ordinárias, pois a jurisdição administrativa concluiu praticamente a mesma coisa, ou seja, que o Loveparade não estaria protegido pela liberdade de reunião, por lhe faltar o elemento ideológico. Para o Oberverwaltungsgericht (Supremo Tribunal Administrativo Regional), a proteção constitucional deveria estar relacionada à expressão de uma opinião e não poderia ser alcançada pela mera dança e música e nada mais. Seria necessário qualquer outro elemento adicional que levasse à construção de idéias. Inconformados com a decisão das instâncias ordinárias, os organizadores do Loveparade recorreram ao Tribunal Constitucional Federal alemão alegando que o conceito de reunião estabelecido pelos tribunais administrativos era muito restrito, já que qualquer união de pessoas baseadas em uma vontade ou crença partilhadas mereceria ser considerada como reunião para fins da proteção constitucional. Em suas palavras, as manifestações políticas, com objetivo de expressar uma opinião, seriam importantes, mas de nenhuma forma exclusivas para caracterizarem a incidência da norma constitucional que garante liberdade de reunião. O Tribunal Constitucional alemão manteve a decisão das instâncias inferiores, negando autorização para a realização do Loveparade. Basicamente, ficou decidido que (a) seria preciso uma investigação fática mais aprimorada para conhecer as características e objetivos do evento, o que seria inviável no âmbito da reclamação constitucional; (b) os organizadores do evento não demonstraram o erro das conclusões fáticas e jurídicas adotadas pelos tribunais inferiores; (c) a liberdade de reunião, ainda que seja um dos direitos fundamentais mais importantes para a democracia, já que exerce uma função substancial na formação da opinião pública, não protege uma mera aglutinação de pessoas unidas

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por objetivos partilhados como a dança e a música, sendo indispensável um propósito de manifestar uma opinião, o que não ficou demonstrado no caso do Loveparade. Depois da resposta do Tribunal Constitucional alemão, os organizadores do evento tiveram que mudar a data e o local previamente estabelecidos, o que gerou inúmeros prejuízos financeiros, pois perderam alguns patrocinadores e vários participantes desistiram de comparecer. Estima-se que o prejuízo foi de mais de 2,5 milhões de marcos alemães. Os organizadores da Loveparade ainda pressionam as autoridades para tentar caracterizar a manifestação como um evento político protegido pela liberdade de reunião, já que seu propósito seria, entre outros, defender a paz mundial através da música. As autoridades locais, contudo, não costumam ser muito sensíveis a esse argumento, respaldadas pela decisão do TCF. Em 2004 e 2005, por exemplo, o evento não pôde ocorrer na Alemanha, por falta de autorização. O Loveparade 2009, que seria realizado em Bochum, também foi cancelado. É possível apontar algumas críticas à decisão do Tribunal Constitucional alemão. Em primeiro lugar, o Loveparade, aparentemente, tem sim um intuito de divulgar uma idéia - seja a paz, seja o amor, seja a música tecno -, ainda que a forma de expressão não se amolde ao “mainstream“, ou seja, ao gosto cultural da maioria da população. Em segundo lugar, mesmo que não tivesse qualquer intuito ideológico por detrás do Loveparade, penso que a liberdade de reunião não protege apenas as reuniões ideológicas, mas qualquer tipo de reunião, desde que haja interesses comuns compartilhados, como ouvir e dançar uma música em praça pública35. De acordo com o Guidelines on Freedom of Peaceful Assembly, uma reunião merece ser protegida quando dois ou mais indivíduos se unem em um local público, de forma intencional e temporária, para compartilharem um objetivo comum. Reunião é definida como sendo “the intentional and temporary presence of a number of individuals in an open-air public place for a common expressive purpose”36. Por isso, não há necessidade de que a liberdade de reunião esteja ligada à manifestação de um pensamento. Embora exista uma íntima ligação entre a liberdade de reunião e a liberdade de expressão, cada uma dessas liberdades pode ser exercida de forma independente. 35

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No mesmo sentido, Sérvulo Correia assinala: “Percebe-se assim que o objeto da manifestação possa não ter ligação direta com temas próprios do exercício da atividade política. Ao colocar sistematicamente o direito de manifestação entre os direitos, liberdade e garantias pessoais, a Constituição não autoriza uma ‘desqualificação do privado’ no tocante aos possíveis temas das manifestações. Nada impede que sejam organizadas para expressar pontos de vista filosóficos, artísticos, religiosos e quaisquer outros que não se prendam diretamente com os fins, os modos e os programas do exercício do poder político. E não compete ao Estado hierarquizar os fins das manifestações, designadamente em função da maior ou menor relevância política dos seus objetos. Essa idéia seria uma inadmissível ingerência no exercício das liberdades individuais meramente regido pela consciência de cada um” (CORREIA, Sérvulo. O Direito de Manifestação: âmbito de proteção e restrições. Lisboa: Almedina, 2006, p. 40). OSCE – Office for Democratic Institutions and Human Rights (ODIHR). Guidelines on Freedom of Peaceful Assembly. Varsóvia: OSCE-ODIHR, 2007, p. 13.

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Tendo em vista essas consideração, em primeira linha, as atividades meramente recreativas também merecem proteção constitucional, desde que não haja cobrança de ingressos para permitir o acesso de pessoas a áreas públicas. As áreas públicas pertencem a todos e não podem ser fechadas para fins particulares, exceto nos casos previstos em lei37. O problema é que o Loveparade ganhou uma dimensão tão desproporcional que outros valores importantes talvez possam ter sido ameaçados. Desse modo, em tese, seria possível estabelecer alguns limites administrativos para proteger o patrimônio histórico-cultural, ou a tranqüilidade pública, ou impor limites contra a poluição ambiental e sonora e assim por diante. Enfim, o exercício do direito de reunião pode ser limitado dentro dos critérios objetivos da proporcionalidade, não podendo ser afetado pelo fato de a música tocada e os trajes dos participantes ser de discutível qualidade. A proibição absoluta daquela manifestação significou uma clara afronta ao núcleo essencial do direito de reunião.

2.4. Suprema Corte dos Estados Unidos 2.4.1. Caso Cox v. Louisiana (1965) – Protesto contra Segregação – Confronto com a Polícia

Protesto contra a segregação racial em Baton Rouge38 Nos anos 1960, quando o movimento dos direitos civis norte-americano estava em seu auge em razão das lutas pela igualdade racial, a cidade de Baton Rouge foi palco de 37

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Pelas informações obtidas pela internet, não ficou claro se o Loveparade é uma festa popular gratuita. Se fosse uma festa popular gratuita, certamente o estado não poderia impedir a sua realização, sob a alegativa de que não possui um conteúdo ideológico. Se um grupo de amigos resolve comemorar a vitória do seu time em praça pública, há proteção constitucional, ainda que isso não promova nenhuma discussão de idéias. A liberdade de reunião não pode ser controlada ideologicamente (salvo excessos, obviamente) e o Estado deve se manter, em regra, neutro quanto ao conteúdo. Ora, se o Estado não pode controlar o conteúdo, então até o conteúdo neutro ou vazio também merece proteção. Fonte: http://www.ebr.lib.la.us/1960afamboycott/banner.jpg

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um importante caso envolvendo o direito de reunião nos Estados Unidos: o caso Cox vs. Louisiana39. O líder religioso Elton Cox comandou uma manifestação pública que se realizaria em frente ao fórum de Baton Rouge para protestar contra a prisão de alguns estudantes negros que haviam participado de um protesto contra a segregação em um restaurante naquela cidade40. Cerca de 2000 pessoas se dirigiram ao fórum onde os estudantes presos seriam julgados, entoando cânticos tradicionais e estampando faixas contra a discriminação racial. A polícia havia concordado em autorizar o protesto, desde que os manifestantes se mantivessem do outro lado da rua, mais longe do fórum. Durante o protesto, a polícia alegou que Elton Cox teria sugerido que os manifestantes fossem almoçar nos restaurantes exclusivos para brancos que existiam nas proximidades. Sob esse pretexto, a polícia resolveu dissolver a manifestação e determinou que a multidão dispersasse. A ordem da polícia de acabar com o protesto não foi bem recebida pelos manifestantes, o que levou a polícia a usar gás lacrimogêneo, gerando pânico entre os que ali estavam presentes. No dia seguinte, Elton Cox, que teve que ser hospitalizado por conta de ferimentos sofridos durante o tumulto, foi preso e acusado pelos crimes de conspiração criminosa, perturbação da paz, obstrução de passagens e manifestação pública diante de um tribunal. Julgado por um tribunal local, foi inocentado do crime de conspiração criminosa, mas foi condenado pelas três últimas acusações (perturbação da paz, obstrução de passagens e manifestação pública em frente a um tribunal). A Suprema Corte de Louisiana confirmou a condenação, forçando o líder religioso a ingressar com um pedido de certiorari perante a Suprema Corte dos Estados Unidos, alegando violação ao direito de expressão e de reunião. A decisão da Suprema Corte foi no sentido de anular todas as condenações impostas a Elton Cox41. A Suprema Corte entendeu que, até a intervenção da polícia, a manifestação transcorria pacificamente, ou seja, nenhum ato específico dos manifestantes excedeu às expectativas do que se esperava de uma reunião pacífica. Aplaudir, bater palmas e cantar não poderiam ser considerados por si mesmo formas de violação da paz. Desse modo, os manifestantes não poderiam ser responsabilizados pela violência que resultou de uma reação à ação policial. Com relação ao fato de Cox haver sugerido que os 39 40

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The Oyez Project, Cox v. Louisiana , 379 U.S. 536 (1965) available at: (http://oyez.org/cases/1960-1969/1964/ 1964_24) (last visited Sunday, April 19, 2009). Vale ressaltar que Elton Cox já era bem conhecido das autoridades da Louisiana e foi preso em pelo menos dez ocasiões só em Baton Rouge por liderar protesto contra a segregação racial. Nesse sentido: HUDSON JR., David L. Ben Elton Cox: Civil rights leader to high court litigant. Disponível em: http://www.firstamendmentcenter. org/analysis.aspx?id=18004. Com relação ao crime de perturbar a paz, a decisão foi por um placar de 9-0; com relação ao crime de obstrução de passagem, foi de 7-2; com relação ao crime de protesto diante de um tribunal, foi de 5-4. As decisões foram redigidas pelo Justice Arthur Goldberg.

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manifestantes almoçassem em restaurantes segregados, também isso não seria motivo para inferir o intuito de violência ou de violação da paz. Ficou reconhecido que os direitos constitucionais de liberdade de expressão e de reunião não podem ser negados por causa da hostilidade de seu conteúdo ideológico. Muitas vezes, a agitação é a única forma de conseguir chamar a atenção para um ponto de vista impopular ou minoritário. Condenar as pessoas nessas situações “would allow persons to be punished merely for peacefully expressing unpopular views”, conforme apontou o juiz Arthur Goldberg no voto vencedor.

2.4.2. Caso National Socialist Party of America v. Village of Skokie (1977) – Protesto Nazista em Bairro Judeu – Dever de Proteção e Idéias Impopulares

Manifestação do Partido Nazista Norte-Americano em Chicago, em 197742 Durante a década de 1970, Frank Collin foi um dos mais proeminentes membros do Partido Nazista Americano (National Socialist Party of America), que reunia um pequeno grupo de simpatizantes de Hitler, defendendo a supremacia branca e o ódio contra judeus, negros e homossexuais. Tratava-se de um partido obscuro e sem qualquer expressão política no cenário nacional dos EUA. Aliás, ainda hoje o Partido Nazista Americano não possui grande relevância política, mas talvez não seja mais tão obscuro assim graças a Frank Collin, que foi o protagonista principal desse caso que será analisado43. 42 43

http://judicial-inc.biz/ffraan6.jpg O curioso é que, nos anos 80, foi descoberto que Frank Collin, na verdade, era judeu e por isso foi expulso do partido nazista. Logo depois, Collin foi preso por praticar atos de pedofilia, o que reforça a comprovação do seu desequilíbrio mental.

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Collin ficou famoso por haver liderado uma das mais polêmicas batalhas jurídicas envolvendo o direito de reunião nos Estados Unidos. O célebre caso National Socialist Party of America v. Village of Skokie44 foi decido pela Suprema Corte em 1977 e pode assim ser sintetizado: O Partido Nazista Americano organizou uma manifestação pública a ser realizada nas ruas da comunidade de Skokie, Illinois, onde os neonazistas marchariam com uniformes militares, estampando suásticas e com cartazes de elogios a Hitler e de ódio aos judeus e aos negros. Skokie foi escolhida pelos neonazistas por ser a mais populosa comunidade judaica dos Estados Unidos e por lá viverem vários sobreviventes do holocausto. Logicamente, o anúncio daquela manifestação nazista gerou reações enérgicas por parte dos habitantes de Skokie. As autoridades locais não concederam a necessária autorização para que a marcha nazista se realizasse pelas ruas daquela cidade, argumentando que a Constituição norte-americana não protegia aqueles que pretendem destruir a democracia. O Partido Nazista questionou judicialmente aquela decisão administrativa, mas não obteve êxito nas instâncias ordinárias. A Corte de Illinois, por exemplo, proibiu os neonazistas de marcharem, caminharem ou se reunirem com uniformes do Partido Social Nacionalista da América; de exibirem suásticas; de distribuírem panfletos ou qualquer material que incite ou promova o ódio contra outras pessoas. Uma das principais entidades de defesa dos direitos civis dos Estados Unidos – a “American Civil Liberties Union” (ACLU) – apoiou a causa dos nazistas, por entender que a liberdade de reunião protegia a todos, inclusive aqueles que manifestavam idéias que desagradavam a população45. Com o apoio da ACLU, o caso chegou até a Suprema Corte que, por 5-4, decidiu em favor do Partido Nazista, revertendo a decisão da Corte de Illinois. Basicamente, entendeu-se que houve violação da liberdade de expressão e de reunião (primeira emenda). Para a Suprema Corte, até mesmo discursos tão abomináveis quanto a defesa do nazismo ou a defesa da supremacia branca estariam abrangidos pela proteção ampla conferida pela primeira emenda à Constituição norte-americana. Depois da decisão judicial, a comunidade judaica norte-americana se mobilizou para tentar impedir a realização da marcha por meio da força. Divulgou-se que milhares de judeus se dirigiriam a Skokie para confrontar abertamente os nazistas, usando, se necessário, violência física para impedi-los de se reunirem. As autoridades de Skokie afirmaram que nada fariam para proteger os nazistas. Em razão da notória possibilidade de confronto físico, as autoridades nacionais conseguiram persuadir os nazistas de desistirem de marchar pelas ruas de Skokie e ofereceram proteção para que suas manifestações pudessem ocorrer em outros locais aos arredores de Chicago. A marcha em Skokie não se realizou, apesar da decisão da Suprema Corte. 44 45

The Oyez Project, National Socialist Party v. Skokie , 432 U.S. 43 (1977) available at: (http://oyez.org/ cases/1970-1979/1976/1976_76_1786) (last visited Sunday, April 19, 2009). Curiosamente, a ACLU era liderada por David Goldeberger, que era um advogado judeu.

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É difícil compreender esse caso sem compreender a importância que os norte-americanos dão à liberdade de expressão. A liberdade de expressão é o direito fundamental por excelência da democracia norte-americana. O fato de estar prevista na Primeira Emenda já simboliza o caráter prioritário com que esse direito é tratado. São poucos os países do mundo que aceitam que a defesa do nazismo está protegida pela liberdade de expressão46. Nesse ponto, os EUA são a exceção. E foi isso que motivou a decisão da Suprema Corte. Lá vigora o princípio de que idéia se combate com idéia, conforme sempre defendia o justice Louis Brandeis. Logo, dentro dessa lógica, se os nazistas quiserem defender suas idéias, o estado não pode intervir. Há nessa concepção uma forte influência das idéias de Stuart Mill, que defendia um “mercado de idéias” totalmente livre da interferência estatal. Mill defendia que impedir a divulgação de determinados pontos de vista é um grande erro, por dois motivos básicos: (a) se o ponto de vista for verdadeiro, a sociedade não teria como sabê-lo sem ter a oportunidade de conhecê-lo e discuti-lo; (b) se for falso, as idéias verdadeiras serão fortalecidas com a sua discussão. Portanto, o debate de idéias é sempre benéfico para a sociedade47. Dentro desse contexto, a solução dada pela Suprema Corte é até compreensível. Mas há outro componente a ser levado em conta nesse caso48. É que os nazistas não estavam apenas “exercitando” a liberdade de expressão, mas também a liberdade de reunião. E um dos requisitos para o exercício da liberdade de reunião é o caráter pacífico. Pode-se alegar que os nazistas não queriam agredir ninguém fisicamente. Mas a agressão moral era inegável naquele caso específico. Escolher um bairro de sobreviventes do holocausto para marchar com fardas e suásticas nazistas é um claro abuso do direito de se manifestar publicamente. Certamente, essa agressão moral era um estímulo para uma reação física por parte dos judeus, o que certamente retira ou pelo menos põe em dúvida o caráter pacífico da passeata nazista. Uma passeata de ódio nunca pode ser considerada como pacífica quando realizada dentro da comunidade vítima do discurso de ódio. Por isso, pode-se dizer que a decisão da Suprema Corte não foi acertada sob esse aspecto, 46

47 48

A limitação da liberdade de expressão nos casos de discurso de ódio é justificada com base na idéia de que se não for combatida a manifestação do pensamento de ódio, o Estado estará contribuindo, com sua inércia, para a disseminação do preconceito contra minorias estigmatizadas e, com isso, estará criando um ambiente de hostilidade entre os diversos grupos que compõem a sociedade, o que certamente não é desejável. No caso do Brasil, a Constituição obriga o estado a combater o preconceito e a discriminação, inclusive por meio da criminalização do discurso de ódio. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Caso Ellwanger, já decidiu que a incitação ao ódio racial é incompatível com o combate ao preconceito imposto pela Constituição, de forma que não há proteção constitucional para tal comportamento. Eis um trecho elucidativo da ementa: “O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o ‘direito à incitação ao racismo’, dado que um direito individual não pode constituirse em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica” (STF, HC 82424/RS, rel. Min. Maurício Correa, j. 17/9/2003). MILL, Stuart. Ensaio sobre a Liberdade (On Liberty, 1869). São Paulo: Editora Scala, 2006. Perceba que as instâncias ordinárias e quatro juízes da Suprema Corte concordam que não havia proteção constitucional no referido caso.

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embora tenha sido bastante coerente em relação aos seus precedentes, inclusive ao caso Cox vs. Louisiana (1965) antes citado. A Suprema Corte rejeitou o argumento da violência verbal ou psicológica seguindo uma tradição de respeito incondicional à liberdade de expressão. Para eles, “fear of serious injury cannot alone justify suppression of free speech and assembly. Men feared witches and burnt women. It is the function of speech to free men from the bondage of irrational fears”49. O princípio que inspira essa idéia é que o caráter pacífico da reunião deve ser presumido. Para afastar essa presunção, é preciso apresentar argumentos convincentes que demonstrem que os organizadores irão usar, advogar ou incitar a prática de violência física iminente: a mera agressão verbal, dentro desse contexto, não é motivo para impedir a manifestação de um pensamento. Felizmente, no final deste dramático episódio, que foi, inclusive, objeto de um filme chamado “Skokie” (1981), prevaleceu o bom senso e os próprios nazistas perceberam que seria um grande risco realizar aquela marcha. Desse modo, a marcha de Skokie nunca foi realizada, mas os nazistas fizeram passeatas em outras localidades de Chicago, inclusive com a proteção da polícia, já que o público de um modo geral era bastante hostil, com muita razão, àquele grupo de indivíduos que defendia a ideologia de Hitler.

2.5. Brasil 2.5.1. Caso da Praça dos Três Poderes (1999, Supremo Tribunal Federal) – Protesto no Centro Político do País – Restrição Inconstitucional

Manifestação na Praça dos Três Poderes, em Brasília50 49

50

Voto vencido do Justice Louis Brandeis no caso “Whitney v. California”, 274 U.S. 357, 375-378 (1927). Tradução livre: “o mero receio de lesão grave por si só não pode justificar a supressão da liberdade de expressão e de reunião. O temor dos homens às bruxas levou várias mulheres à fogueira. A função da liberdade de expressão é libertar os homens da escravidão do medo irracional”. Fonte: http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/foto/0,,14488076,00.jpg

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Em 1999, o Governo do Distrito Federal, no Brasil, editou um decreto que proibia a realização de manifestações públicas nas Praças dos Três Poderes, na Esplanada dos Ministérios e na Praça do Buriti, em Brasília. O objetivo da norma era impedir a realização de protestos no centro político da capital brasileira. Eis o seu teor: “Considerando que o princípio constitucional que possibilita a livre reunião não autoriza a interferência da mesma no bom funcionamento dos órgãos públicos, advindo daí a necessidade de disciplinar o uso e manter a segurança em áreas e prédios públicos no Distrito Federal; Decreta: Art. 1º. Fica vedada a realização de qualquer manifestação pública, exceto as de caráter cívico-militar, religioso e cultural, nos locais a seguir descritos: I – Praça dos Três Poderes; II – Esplanada dos Ministérios; III – Praça do Buriti” (Decreto 20.007, de 14 de janeiro de 1999)51. Esse Decreto se chocava frontalmente com o direito fundamental à liberdade de reunião e de manifestação pública, previsto no art. art. 5º, inc. XVI, da CF/8852. Em razão disso, o Supremo Tribunal Federal, julgando uma Ação Direta de Inconstitucionalidade declarou a inconstitucionalidade do referido Decreto, autorizando, como conseqüência, a realização de manifestações públicas nos mencionados locais. Vale conferir a ementa: “EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DECRETO 20.098/99, DO DISTRITO FEDERAL. LIBERDADE DE REUNIÃO E DE MANIFESTAÇÃO PÚBLICA. LIMITAÇÕES. OFENSA AO ART. 5º, XVI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. I. A liberdade de reunião e de associação para fins lícitos constitui uma das mais importantes conquistas da civilização, enquanto fundamento das modernas democracias políticas. II. A restrição ao direito de reunião estabelecida pelo Decreto distrital 20.098/99, a toda evidência, mostra-se inadequada, desnecessária e desproporcional quando confrontada com a vontade da Constituição (Wille zur Verfassung). III. Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do Decreto distrital 20.098/99” 53. 51 52

53

O referido decreto foi modificado pelo Decreto distrital 20.098/99, que fez algumas alterações pontais, passando a proibir apenas as manifestações públicas nos locais mencionados com o uso de carros de som ou assemelhados. “Art. 5º. (...) XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”. STF, ADIn-MC 1969-4, rel. Min. Celso de Mello, j. 24/3/1999.

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A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal está afinada com o espírito democrático. Não se pode tolerar tão grave restrição à liberdade de reunião, especialmente quando o local em que foi proibida a sua realização é o centro político do país. Por outro lado, o caso também demonstra como os governantes brasileiros ainda se acham “donos” do espaço público, como se fosse possível impedir manifestações ao gosto das conveniências administrativas. A decisão representa, talvez, um pequeno passo para a teoria do direito, mas é, sem dúvida, um grande passo para a democracia e para a consolidação de um verdadeiro Estado Democrático e Constitucional de Direito.

2.5.2. Caso da Marcha da Maconha (Brasil, 2008) – Decisões da Justiça Estadual de Primeira Instância – Protesto pela Legalização do Consumo (Apologia ao Crime ou Liberdade de Manifestação?)

Manifestante sendo preso, no Rio de Janeiro, durante uma das “marchas da maconha” proibidas54 Em 2008, o Poder Judiciário brasileiro foi palco de inúmeras controvérsias envolvendo o direito à reunião. Uma organização não-governamental que defende a legalização da maconha (cannabis sativae) pretendia realizar uma série de passeatas por todo o país no intuito de defender seu ponto de vista55. A referida marcha é realizada, desde 2005, em mais de 200 cidades de 19 países, sendo 13 no Brasil. Ocorre que alguns juízes brasileiros entenderam que a marcha da maconha deveria ser proibida, alegando que estaria havendo, por parte dos organizadores, uma apologia ao uso da droga, o que seria crime de acordo com as leis brasileiras. A manifestação ocorreu em algumas localidades, mas foi proibida em nove cidades56, com o aval do Judiciário, 54 55 56

Fonte: http://images.ig.com.br/publicador/ultimosegundo/arquivos/pmaconhaae.jpg O portal de informações eletrônicas da organização é: http://www.marchadamaconha.org/ Cuiabá, Curitiba, Brasília, Belo Horizonte, Fortaleza, João Pessoa, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.

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que concedeu liminares pelo Brasil afora impedindo a realização da marcha, em processos judiciais iniciados pelo ministério público. Nas cidades em que não houve proibição, a marcha transcorreu normalmente, sem qualquer incidente digno de nota. Por outro lado, nas cidades em que a marcha foi proibida, houve confronto com a polícia e alguns manifestantes foram presos “para averiguação”. Em certo sentido, a proibição da marcha teve um efeito positivo para os manifestantes, pois o fato foi amplamente divulgado pela mídia. Com isso, os organizadores do evento certamente atingiram seu objetivo que foi chamar a atenção da sociedade. De qualquer modo, o evento demonstrou como algumas instituições brasileiras – em particular, alguns membros do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia – não estão totalmente preparadas para compreender o sentido de uma vida democrática alicerçada em um livre mercado de idéias. Pelas informações colhidas pela internet, em particular pelo portal eletrônico oficial do evento, seria muito fácil perceber que os organizadores não estavam fazendo apologia ao uso de drogas, mas defendendo uma idéia. Havia um aviso em destaque proibindo o uso de maconha durante a marcha e em várias notas oficiais o grupo informava que não estava defendendo o uso da droga, mas a sua legalização, o que é bastante diferente. Mesmo que não se concorde com o mérito da proposta, não se pode impedir que a idéia seja debatida pela sociedade. Isso é democracia. Além disso, eventuais ilícitos praticados pelos participantes do evento (consumo de drogas, por exemplo) deveria ser punido pontualmente, sem contaminar a globalidade da festa. Como defendem dois conhecidos juristas alemães: “se as violações jurídicas não forem apoiadas pelo grupo na sua globalidade, mas se apenas partirem de particulares no seio de uma reunião geral pacífica, o caráter pacífico da reunião não é, por esse fato, prejudicado no seu todo”57. A Corte Constitucional alemã, no já citado caso Brokdorf, também assinalou, naquela decisão, que, quando o organizador do evento e seus seguidores se comportam pacificamente, o comportamento de uns poucos indivíduos que perturbam a ordem não é motivo suficiente para acabar com o direito dos demais participantes. “Para esse caso, na literatura jurídica [doutrina] exige-se corretamente que as medidas administrativas devam dirigir-se primeiramente contra os perturbadores e que, somente sob os pressupostos especiais do estado emergencial de polícia, a reunião como um todo possa sofrer uma intervenção” 58. O mesmo tribunal justificou essa idéia com o seguinte argumento: “Se o comportamento não pacífico de alguns indivíduos tivesse como conseqüência a queda da proteção do direito fundamental de todos os manifestantes e não somente dos infratores, estes teriam o poder de ‘inverter o funciona57 58

PIEROTH, Bodo & SCHLINK, Bernard. Direitos Fundamentais: Direito do Estado II (Grundrechte, Staatsrecht II, 1985). Porto: Universidade do Porto, 2009, p. 229 SCHWAB, Jürgen. Cinqüenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Org: Leonardo Martins Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2006, p. 541/542.

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mento’ de manifestações para transformá-las em ilegais ‘contra a vontade dos outros manifestantes’; então, praticamente toda grande manifestação poderia ser proibida, pois que quase sempre o ‘reconhecimento’ acerca de intenções não-pacíficas de parte dos manifestantes pode ser obtido. É preferível pensar em uma dissolução a posteriori, que não retire ab initio dos manifestantes pacíficos a chance do exercício do direito fundamental e que deixe ao organizador a palavra final quando ao isolamento de participantes não-pacíficos” 59. A Corte Européia de Direitos Humanos também chegou à mesma conclusão no caso Ezelin v. France (1991): “an individual does not cease to enjoy the right to peaceful assembly as a result of sporadic violence or other punishable acts committed by others in the course of the demonstration, if the individual in question remains peaceful in his or her own intentions or behaviour”60. Desse modo, atento a essas considerações, parece inquestionável que os organizadores do evento “Marcha da Maconha” possuem todo o direito de defender a legalização da cannabis sativae em espaços públicos ou abertos ao público, sendo legítima as passeatas que organizam em várias cidades brasileiras, não cabendo qualquer intervenção estatal para proibir em abstrato e a priori essas manifestações. Qualquer excesso ou abuso que eventualmente possa ocorrer durante os eventos deve ser punido pontualmente, caso efetivamente fique demonstrada a prática de alguma ilicitude por algum indivíduo específico. Mas a proibição geral, abstrata e prévia da manifestação é uma clara afronta à democracia e ao direito de liberdade de reunião.

3. Conclusões A Ágora – símbolo maior da democracia grega – era a praça em que os cidadãos atenienses se reuniam para deliberarem sobre os assuntos da pólis. A liberdade dos antigos, para usar a conhecida expressão de Benjamin Constant, era justamente a liberdade de “deliberar em praça pública” sobre os mais diversos assuntos: a guerra e a paz, os tratados com os estrangeiros, votar as leis, pronunciar as sentenças, examinar as contas, os atos, as gestões dos magistrados e tudo o mais que interessava ao povo61. A democracia nasceu, portanto, dentro de uma praça. 59 60

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SCHWAB, Jürgen. Cinqüenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Org: Leonardo Martins Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2006, p 542. Tradução livre: “um indivíduo não deixa de gozar do direito de reunião pacífica em virtude da violência esporádica ou de outros delitos cometidos por outras pessoas no decurso da manifestação, se o indivíduo em questão tem intenções e ações pacíficas”. CONSTANT, Benjamin. Del Espíritu de Conquista (De l’esprit de conquête et de l’usurpation dans leurs rappots avec la civilisation européene, 1814; De la liberte des anciens comparée à celle des modernes, 1819). Madrid: Editoral Tecnos, 1988, p. 68.

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A praça também pode ser considerada como um ícone da liberdade dos modernos de que falava Constant. Foi na Place de la Bastille, em Paris, que se realizou pela primeira vez, em 14 de julho de 1970, a Fête de la Fédération (“A Festa da Federação”), para comemorar a Revolução Francesa que tinha se iniciado um ano antes naquele mesmo local, com a famosa queda da prisão da Bastilha, que simboliza o começo da modernidade. No Brasil, o Movimento Diretas Já, que acelerou o fim da ditadura militar, teve como palco principal as praças das grandes cidades brasileiras: a Praça da Sé e a Praça Charles Müller, em São Paulo; Praça Cinelândia e Praça da Candelária, no Rio de Janeiro; Praça Rio Branco, em Belo Horizonte; Praça do Bandeirante, em Goiânia; Praça Gentil Ferreira, em Natal; Praça XV de Novembro, em Florianópolis, entre várias outras. Muitas praças foram território de batalhas sangrentas pela liberdade no mundo todo. Em Pequim, na China, a Praça da Paz Celestial (Tian’anmen) presenciou um dos grandes atentados contra a liberdade da história contemporânea: o Massacre de 4 de Junho de 1989, onde milhares de estudantes chineses, que protestavam pacificamente contra a repressão e a corrupção do governo comunista chinês, foram mortos pelo exército sem qualquer respeito aos mais básicos direitos humanos. Mas a praça não é somente o lugar de discussões políticas. Na praça, criam-se vínculos pessoais das mais variadas espécies: afetivos, econômicos, políticos, culturais, lúdicos. A praça é o lugar onde se sente a preguiça no corpo e se bebe uma água de coco, como diz a canção de Vinícius de Morais62. No meio da praça a meninada canta a alegria da vida, diria Mário Quintana63. A praça é o ponto de encontro dos amigos, o banco dos namorados, a calçada para se andar de mãos dadas, as procissões religiosas, o pregador mais exaltado, os passeios de bicicleta, a pista de corrida do atleta, o futebol de latas das crianças, a pipoca do domingo, a comemoração da vitória, o jogo de dama dos idosos, o bate-papo despretensioso do intervalo do trabalho e o discurso mais sério do operário em greve. A praça é a memória do povo, a lembrança de momentos felizes e a saudade de um lugar qualquer. Mas a praça é também o banheiro dos vira-latas, o banquete dos pombos, a malemolência do vagabundo, a perspicácia dos trombadinhas, o território das gangues, a cama gelada dos mendigos, o balcão de negócios da prostituta, a passarela desequilibrada do bêbado, o ganha-pão dos ambulantes e dos artistas populares. É a vitrine invisível dos excluídos, onde até os ausentes estão presentes. É aquele sítio “lógico e plebeu” para usar um verso de Fernando Pessoa64. Ou então, ainda com o mesmo poeta, é o lugar em que “tudo o que passa e nunca passa”. É o lugar dos comerciantes, vadios, escrocs exageradamente bem-vestidos, membros evidentes de clubes aristocráticos, esquálicas figuras dúbias, chefes de família vagamente felizes, das cocotes, das burguesinhas, dos pederastas: e afinal tem 62 63 64

“Tarde em Itapoã”. “Família Desencontrada”. “A Praça da Figueira da Manhã”.

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alma lá dentro65! Se a praça é tudo isso, então a praça não pertence ao Estado. A praça! A praça é do povo, como bem bradou Castro Alves. E quando a voz sublime do povo se eleva nas praças, um raio ilumina a treva66. O objetivo deste trabalho foi tentar demonstrar como é a percepção dos tribunais pelo mundo afora acerca da importância do espaço público como local de manifestação da cidadania. Os exemplos demonstram que o mero reconhecimento normativo da liberdade de reunião, seja por tratados internacionais, seja pela constituição, seja pelas leis, não é suficiente, por si só, para garantir que não haja empecilhos ao exercício dessa liberdade. Na verdade, o direito, em qualquer questão envolvendo a liberdade, tem sempre um caráter ambivalente: pode emancipar ou oprimir. Vale lembrar que também foi na Ágora, o berço da democracia grega, que os atenienses condenaram Sócrates à morte, naquele episódio que talvez tenha sido o primeiro precedente mundial em que alguém foi condenado, num regime democrático, por exercer o direito de manifestar publicamente o pensamento67. O caráter ambivalente do direito gera um paradoxo: ao mesmo tempo em que o direito pode criar as condições necessárias para o exercício legítimo do direito em uma sociedade plural, também pode, pelo contrário, regulamentar de tal modo o exercício do direito que este se torna inviável na prática por conta dos entraves burocráticos ou pela má-vontade e preconceito das autoridades responsáveis. Infelizmente, as manifestações públicas e os protestos de um modo geral nem sempre são vistos como uma parte essencial da vida em uma sociedade democrática. Freqüentemente, agrupamentos ideológicos são considerados suspeitos por quem está no poder e isso acarreta, em muitos casos, restrições desproporcionais à liberdade de reunião. Nesse contexto, os tribunais, aqui incluídos as cortes constitucionais e os tribunais internacionais, surgem como um instrumento essencial à desobstrução dos canais democráticos, controlando, de forma independente e imparcial, o excesso de todas as partes envolvidas, especialmente das autoridades públicas. Assim como o direito, os tribunais também possuem um caráter ambivalente: às vezes, agem bem e cumprem a contento o seu papel de guardião dos direitos fundamentais, permitindo a emancipação dos seres humanos, a proteção da liberdade, o exercício da cidadania e o controle do poder; outras vezes, agem mal, servindo como uma mera maquiagem de legitimação de atitudes opressoras, dando um manto de legalidade a condutas estatais autoritárias. Em matéria de liberdade de reunião, há muita margem para controvérsia, já que os conceitos adotados pelas constituições e pelos tratados internacionais não são muito pre65 66 67

“Ode Triunfal”. “O Povo ao Poder”. Para uma análise bastante interessante do julgamento de Sócrates, defendendo que o grande culpado pela decisão tomada pela democracia grega foi o próprio Sócrates, que desdenhou do processo contra ele instaurado: STONE, I. H. O julgamento de Sócrates (The Trial of Socrates). Companhia das Letras: São Paulo, 2005.

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cisos, a começar pelo próprio conceito de reunião. Uma definição “amiga da liberdade” deve ser a mais abrangente possível. É demasiadamente arriscado adotar uma interpretação restritiva como a Tribunal Constitucional alemão no caso LoveParade, que incluiu o caráter ideológico no conceito de reunião, excluindo as reuniões “não-ideológicas” da proteção constitucional. Não é preciso complicar muito para definir uma reunião: é a união de duas ou mais pessoas em espaços públicos com um propósito comum e por tempo determinado. Não cabe ao estado julgar a relevância ou não desse propósito comum. Exigir algum conteúdo relevante como pressuposto da configuração do âmbito de proteção da liberdade de reunião é dar um pretexto bastante amplo para os governantes autoritários impedirem a realização de manifestações a seu bel prazer, com a desculpa de que tal evento não seria digno de proteção por lhe faltar uma base ideológica. O exercício da liberdade de reunião é, em princípio, livre. Não é necessário pedir autorização para o poder público. Basta comunicar, previamente, à autoridade competente, caso se trate de reunião realizada em local aberto ao público e se trate de reunião planejada com antecedência. O objetivo dessa comunicação não é o de permitir uma censura prévia ou o patrulhamento ideológico sobre o conteúdo da manifestação, mas tão somente para que se possa impedir que duas reuniões diferentes sejam marcadas para o mesmo local na mesma data, bem como para que o poder público possa organizar a segurança e o tráfico de veículos na proximidade da manifestação, adotando as medidas de planejamento necessárias ao exercício do direito. Vale ressaltar que o dever de anúncio à autoridade competente é exigido tão somente para as reuniões em céu aberto planejadas com antecedência. Tratando-se de reuniões realizadas em locais fechados ou então que ocorram espontaneamente, sem planejamento e sem organização, ainda que em locais abertos ao público, é desnecessária a prévia autorização. Nessas situações, a autoridade competente não pode dissolver compulsoriamente reuniões pacíficas, ainda que não tenham sido previamente anunciadas, salvo se estiver havendo violência por parte dos manifestantes. Aliás, nem mesmo as manifestações previamente planejadas podem ser compulsoriamente dissolvidas só pelo fato de os promotores não haverem cumprido o requisito formal de prévio aviso. Afinal, “tratando-se de um mero requisito de ordem procedimental, não existem razões para concluir que a sua ausência coloque por si só os cidadãos fora do âmbito de proteção da liberdade fundamental de se manifestarem”68. Outro conceito importante em matéria de liberdade de reunião é o conceito de “pacífica”. Apenas as reuniões pacíficas e sem armas são protegidas. O caráter pacífico da reunião deve ser presumido. O ônus da prova do caráter não-pacífico da reunião compete ao estado. O que tira o caráter pacífico de uma determinada reunião não é o seu conteúdo, mas a intenção dos manifestantes: se os manifestantes, comprovadamente, preten68

CORREIA, Sérvulo. O Direito de Manifestação: âmbito de proteção e restrições. Lisboa: Almedina, 2006, p. 70.

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dem praticar atos de violência física ou incentivar a agressão corporal contra pessoas ou bens, então o caráter pacífico pode ser afastado. Mas a prova disso deve ser objetivamente demonstrada. Não bastam meros receios ou meras especulações, mas dados concretos. O fato de um grupo de manifestantes defender idéias hostis ou impopulares ou de protesto não significa necessariamente que a sua intenção é violenta. Como se disse, o caráter violento ou não da reunião não está no conteúdo das idéias defendidas, mas na intenção dos seus participantes. A violência praticada por alguns manifestantes não contamina o caráter pacífico da reunião como um todo. Cada ato de violência deve ser reprimido pontualmente e, apenas em último caso, deve ser aceita a dissolução completa de uma reunião que começou pacífica, devendo a autoridade policial apresentar, no momento oportuno, uma prognose de risco e de perigo devidamente fundamentada capaz de justificar, de forma objetiva, a medida extrema adotada. Caso os fundamentos apresentados pela autoridade policial não forem convincentes, tal atitude poderá ser passível de configuração da responsabilidade civil, administrativa ou criminal, conforme o caso. Tratando-se de grupos minoritários, cujas idéias possam ser alvo de repúdio por outros grupos, o estado tem o dever de proteger a realização da reunião, fornecendo o aparato necessário para que a manifestação ocorra sem interferência negativa de terceiros. É o dever estatal de proteção. O exercício da liberdade de reunião pode ser restringido, mas apenas em situações excepcionais devidamente justificadas com base na lei e no princípio da proporcionalidade, que devem ser sempre aplicados e interpretados de forma o mais favorável possível ao exercício da liberdade. Os agentes estatais, especialmente as autoridades policiais e judiciais, não podem enxergar as manifestações públicas de protesto como uma ameaça à segurança e à ordem. As manifestações públicas de protesto fazem parte da democracia e o dever do estado é fazer tudo o que estiver ao seu alcance para que essas manifestações públicas ocorram da melhor forma possível. Um governo democraticamente maduro é aquele que sabe que a construção da cidadania e a tomada de decisões políticas devem ser realizadas nas ruas e nas praças e não nos gabinetes frios das autoridades.

Referências Bibliográficas ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2001; BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2006

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A Praça é do Povo? A Liberdade de Reunião e o Direito de Manifestação Popular em Espaços Públicos na Visão dos Tribunais

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1. Algunas características de las recientes codificaciones constitucionales en materia de derechos fundamentales En los últimos años se aprobaron nuevas cartas constitucionales, las cuales –más allá de las especificidades históricas, de la diversidad de las formas de gobierno y de Estado –tienden a homologarse en la lista de los derechos de la persona reconocidos como fundamentales y en las técnicas de garantía. 1 Las nuevas Constituciones tienen en común la voluntad de reservar una amplia parte del texto a la enumeración de una vasta gama de derechos fundamentales y a la identificación de instrumentos específicos y órganos para su tutela. *

1

Universidad de Genova. Giancarlo Rolla is chaired Professor at Genova University.He is director of the Center for Research on Constitutional Systems. He is member of the Italian Association of Comparative Law, of the Italian Association for Canadian Studies,of theInternational association of constitutional law,of the Argentinian association of constitutional law. He is member of the executive committe of the Revista europea de derechos fundamentales, Revista de derecho constitucional europeo and of the Rivista di diritto pubblico comparato ed europeo. His works include comparative studies of the legal system of Canada, Latin America and Spain. En general, sobre las recientes transiciones constitucionales acaecidas: G.DE VERGOTTINI, Le transizioni costituzionali, Bologna,1998; E.CECCHERINI, La codificazione dei diritti nelle recenti Costituzioni, Milano, 2002; L.MEZZETTI, Teoria e prassi delle transizioni costituzionali e del consolidamento democratico, Padova, 2003; S.GAMBINO (cur),Costituzionalismo europeo e transizioni democratiche, Milano, 2003; AA.VV., Limitazioni di sovranità e processi di democratizzazione,Torino, 2004. Para referencias más amplias relativas a las codificaciones de los derechos fundamentales véase: G.ROLLA, Derechos fundamentales,Estado democratico y justicia constitucional,Mexico,2002,p33 ss.

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Sobre todo, las nuevas Constituciones han supuesto una verdadera e importante discontinuidad respecto a la precedente y traumática historia constitucional y política del continente europeo, marcada por el hecho de que estas áreas geográficas se vieron afectadas por un amplio proceso de democratización. Tal proceso, por lo que concierne a Europa, se ha desarrollado en tres “oleadas” sucesivas, que han implicado, primero, a los Estados que salieron de la Segunda Guerra Mundial (Italia, Francia, Alemania), posteriormente, a los ordenamientos mediterráneos, nacidos de la crisis de los regímenes fascistas (Grecia, Portugal, España), y por último, a los Estados de la Europa Oriental, tras la crisis de la hegemonía de la URSS.2 Las mas recientes transiciones constitucionales tienen algunos caracteres comunes. En primero lugar, se destaca la fuerza atractiva de la Unión Europea, que ha ejercido de verdadero y auténtico « poder constituyente asistido » gracias a la acción de vigilancia llevada a cabo por la «Comisión para la Democracia a través del Derecho» del Consejo de Europa ,frente a los proyectos de Constitución elaborados por los Estados interesados en formar parte de la Unión Europea . En segundo lugar, se caracterizan no sólo por la presencia de amplios y detallados catálogos de derechos (verdaderos Bill of rights), sino también por la idea común de que los derechos fundamentales de la persona constituyen un elemento que caracteriza la forma de Estado democrático de derecho. Surge una estrecha integración entre la adhesión a la forma de Estado social y democrático y las tecnicas de salvaguardia de los derechos fundamentales de la persona. 3 Esta integración influye sobre la naturaleza constitucional de los derechos, que no sólo reconocen posiciones subjetivas y garantías individuales, sino que representan también un elemento cualificador el sistema de valores que se expresa a través de la Constitución. Utilizando las palabras del juez constitucional español, a propósito de esta cuestión, puede hablarse de “elementos esenciales de un ordenamiento objetivo de la comunidad nacional, en cuanto esta se configura como marco de una convivencia humana justa y pacifica”. 4 Además las Constituciones propias del Estado democrático y social, aún remitiéndose idealmente y en algunos casos formalmente a las codificaciones liberales (por ejemplo, el preámbulo de la Constitución francesa de 1958 afirma que “el pueblo francés proclama solemnemente su fidelidad a los derechos del hombre y a los principios de la 2

3 4

Cfr.,S.BARTOLE- P.GRILLI DI CORTONA, Transizione e consolidamento democratico nell’Europa centroorientale, Torino, 1998; S.BARTOLE, Riforme costituzionali nell’Europa centro-orientale: da satelliti comunisti a democrazie sovrane, Bologna, 1993; M.CALAMO SPECCHIA (cur.), I balcani occidentali: le costituzioni della transizione, Torino, 2008; G.ROLLA, I diritti fondamentali nel costituzionalismo contemporaneo:spunti critici, en (G.ROLLA cur.) Tecniche di garanzia dei diritti fondamentali,Torino,2001,4 ss. STC 25/81

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soberanía nacional, definidos de la Declaración de 1789, confirmada e integrada por el Preámbulo de la Constitución de 1946”), presentan algunos elementos innovadores. Se potencian los instrumentos de garantía, a fin de evitar que el reconocimiento de los derechos del hombre se reduzca a una “declaración romántica”, priva de efectividad: en particular, un indudable salto de calidad en la tutela de los derechos fundamentales se registra con la afirmación del carácter rígido de las Cartas constitucionales y con el desarrollo de la justicia constitucional, que se vuelve la institución principal para la salvaguarda de los derechos fundamentales. Se elabora tambièn una noción mas evolucionada de la persona, que no está constituida por el individuo aislado o por la persona en su dimensión iusnaturalista, sino por la persona considerada en su proyección social. El hombre y la mujer están tutelados en cuanto sujetos sociales, en cuanto individuos históricamente determinados que, inmersos en la sociedad, participan activamente en la vida pública y las instituciones y deben estar en condiciones de recavar estímulos para enriquecer su propia personalidad. En fin, el valor de la libertad se situa junto al de la dignidad, mientras que el principio de igualdad se enriquece con nuevos significados constitucionales: a la igualdad entendida como la prohibición de tratos irrazonablemente diferenciados por parte del legislador, se le suma la prohibición de discriminación y el reconocimiento de acciones positivas con el fin de conseguir la salvaguarda de la igualdad en sentido sustantivo. 5 La Carta de los derechos fundamentales de la Unión es parte de esta trayectoria evolutiva del constitucionalismo; per, nel mismo tiempo,intrduce elementos de novedad: sobre todo, despues de la aprobatión del “Tratado de Lisboa”da parte del Consejo de la Unión Europea.6 El Consejo de la Unión Europea en Lisboa en el 2007 ha tomado algunas decisiones de gran interés para los estudiosos del derecho constitucional, especialmente en cuanto concierne al tema de los derechos fundamentales: si, por un lado, es verdad que ha decidido no aprobar una Constitución europea –separando la parte relativa a la organización constitucional, a las competencias, a la política de la Unión (que continúa siendo disciplinada en los Tratados) de la parte relativa a los derechos que está contenida en la Carta de los Derechos Fundamentales de la Unión Europea--- ; sin embargo, al mismo tiempo, ha atribuido a la Carta una fuerza jurídica vinculante y ha decidido iniciar el 5

6

Cfr., G.ROLLA, Profili costituzionali della dignità umana, in (E.CECCHERINI cur.) La tutela della dignità dell’uomo, Napoli,2008, 57 ss; IDEM, El valor normativo del principio de la dignidad humana.Consideraciones en torno a las Constituciones iberoamericanas, en Anuario iberoamericano de justicia constitucional,Madrid,2002,463 ss.;E.FERNANDEZ, Dignidad humana y ciudadanía cosmopolita, Madrid,2001; F.FERNANDEZ SEGADO,La dogmática de los derechos umanos, Lima,1994; C.LANDA, Dignidad de la persona, en Cuestiones constitucionales,2002,109 ss. En general, P. COSTANZO, L.MEZZETTI, A.RUGGERI, Lineamenti di diritto costituzionale dell’Unione europea, Torino, 2008.

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proceso de adhesión de la Unión Europea al Convenio Europeo para la Protección de los Derechos Humanos y de las Libertades Fundamentales del Consejo de Europa (“Convenio Europeo”), de modo que en adelante las disposiciones en éste contenidas tendrán el mismo rango de la normativa de la Unión Europea Con tal decisión se ha producido una importante consecuencia desde la perspectiva del Derecho Constitucional: esto es, se ha reforzado la capacidad de integración del ordenamiento europeo en virtud de la existencia de un ámbito supranacional tanto con las dos Cartas de derechos – el Convenio europeo de derechos del hombre y la Carta de los derechos fundamentales de la Unión europea--, cuanto por dos jueces supremos -- El Tribunal europeo de los derechos del hombre y el Tribunal de Justicia de la Unión Europea - como, finalmente, red de jueces comunitarios ramificada, constituida por los magistrados pertenecientes al sistema judicial de cada uno de los países integrantes de la Unión Europea A mi juicio es correcto afirmar que está afirmándose “a pesar de las dificultades y reacciones por parte de nacionalismos que permanecen todavía fuertes por la crisis económica- una significativa etapa ulterior en el proceso de constitucionalización de la Unión Europea, que favorece algunas consideraciones de orden general en tema de derecho fundamentales.”7

2. La naturaleza federal del proceso de codificació de los derechos fundamentales Este proceso es asimilable a los procesos federales. Tal vez, la experiencia histórica de la Unión Europea constituya hoy el único ejemplo de tendencia hacia la federalización, en una realidad en la cual prevalece sobre todo la tendencia hacia la descentralización. Históricamente, los Estados federales nacieron para satisfacer una exigencia de mayor unidad, diversos territorios han renunciado a parte de la propia soberanía originaria para, juntos, afrontar mejor los problemas comunes. 8 El principio federalista se mostraba como la solución idónea para asegurar una mayor unificación jurídica, una mejor amalgama de culturas y tradiciones: pero, sobre todo, para favorecer la creación de un mercado y de relaciones económicas comunes. Hoy, en la era de la globalización, este impulso se manifiesta dando vida a ordenamiento supranacionales, como en el caso de la Unión Europea, donde los procesos de integración 7

8

Sobre las caracteristicas del proceso constituyente europeo: L.DIEZ PICAZO,¿Tratado o Constitución? El valor de la Constitución para Europa, en (E.ALVAREZ CONDE-V.GARRIDO MAYOL dir.) Comentarios a la Constitución europea,Valencia,2004,59; P.BILANCIA (cur.), Il processo costituente europeo,Milano, 2002; G.FLORIDIA, Il cantiere della nuova Europa, Bologna,2003; G.STROZZI, Il trattato costituzionale. Entrata in vigore e revisione, in (P.CARETTI,F.DONATI cur.) Una Costituzione per l’Unione europea, Torino,2006, 63 ss. Vèase: G.ROLLA, L’autonomia delle comunità territoriali.Profili costituzionali,Milano, 2008.

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fueron inicialmente originados por la exigencia de crear un mercado económico común y, sólo con posterioridad, dan dado vida a una comunidad política. Los dos elementos esenciales de la idea de Constitución – la garantía de los derechos y la organización de los poderes - no siempre, ni necesariamente, han sido codificados simultáneamente: de tal manera que la Constitución de algunos ordenamientos se ha presentado al examen del historiador como un díptico cuyas partes han sido completadas en momentos distintos y con estilos diferentes. En otros términos, existen varios ejemplos de Constituciones que, en principio, nacen como textos que regulan esencialmente la organización de poderes y la distribución de competencias y, sólo un tiempo después, advierten la necesidad de incorporar (o de aparejar) al texto constitucional el reconocimiento de la garantía de los derechos fundamentales de la persona. Dicha experiencia, ha caracterizado, sobre todo, a los ordenamientos constitucionales federales, también debido a posiciones teóricas que consideraban a la Constitución federal como una Constitución parcial destinada a combinarse con las constituciones locales: la primera se consideraba a limitada a la disciplina de organización central del poder, al reparto de competencias entre el centro y las sujetos miembros, mientras que a las segundas – a su vez-- se les reservaba el reconocimiento de los derechos fundamentales de la persona. 9 A este fin, pueden aludirse dos ejemplos: por un lado, el ordenamiento federal de Canadá y, por el otro, la Constitución de los Estados Unidos. La Constitución federal de USA (1787) no contenía – en su origen - artículos relativos al reconocimiento de la tutela de unos derechos concretos, introducidos tras la aprobación del “Bill of Rights” norteamericano (1791). A su vez, la Carta Constitucional de Canadá está compuesta por dos documentos, bien distintos tanto desde el punto de vista temporal como en lo referente al contenido. Se trata de la British North American Act de 1867 y de la Carta de los derechos y libertades de 1982. Mientras la primera se concentraba en la organización constitucional de Canadá, en el reparto de las competencias entre la Federación y las provincias, en la regulación del carácter dual de Canadá (dos lenguas, dos religiones, dos sistemas jurídicos); la segunda, por su parte, se caracterizaba por la aprobación de una Carta de derechos y libertades. 10 No muy distinta se presenta la experiencia constitucional de Europa, cuyo proceso de codificación se ha concentrado primero en la forma de Estado y de gobierno, después, 9 10

Así:A.D’ATENA, La vinculación entre constitucionalismo y protección de los derechos humanos, en Memoria del seminario de justicia constitucional y derechos humanos,San José, 2004,139 ss. Cfr., CODIGNOLA- L.BRUTI LIBERATI, Storia del Canada,Milano,1999; T.GROPPI, Il Canada, Bologna, 2006; G.ROLLA (cur.), Lo sviluppo dei diritti fondamentali in Canada,Milano,2000; E.MITJANS,J.CASTELLA ANDREU (coord.), Derechos y libertades en Canadá,Barcelona,2005.

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en la determinación de algunos presupuestos unificadores (moneda y ciudadanía) y, por último, en la aprobación de una Carta de Derechos.11

3. Tecnicas de clasificación de los derechos fundamentales En segundo lugar, es interesante subrayar la técnica de constitucionalización de los derechos empleada por el Tratado de Lisboa. La experiencia constitucional evidencia dos fundamentales técnicas de constitucionalización de los derechos. Una inserta la tutela de los derechos dentro del documento constitucional, dedicando a éstos una parte especial; la otra disciplina la materia en una Carta de Derechos. La primera solución es generalmente típica del constitucionalismo europeo; la segunda, en vez, es propia de los sistemas constitucionales del common law. Es del todo original la solución francesa, donde el reconocimiento y la garantía de los derechos se consigue en virtud del preámbulo constitucional de 1958; que remite sea a la Declaración de los derechos del Ciudadano de 1789, sea a los derechos reconocidos por la Constitución de 1946. En relación a las opciones arriba mencionadas, se puede señalar que en la hipótesis precedente de dar vida a una Constitución para Europa prevaleced la perspectiva europea continental; mientras en la decisión de incorporar los derechos en un Bill of Rights especial parece tributaria de la experiencia inicial anglosajona. Es interessante subrayar, también, el método de clasificación. Los catálogos de derechos presentan una pluralidad de lenguajes y técnicas de clasificación que vuelven arduo un intento de síntesis. Podemos hablar al respecto, de una babel de lenguajes que inducen a considerar que se está en presencia de una “carencia casi absoluta de sistematización”. 12 Por ello existen Constituciones que no introducen distinciones entre los derechos clasificados como fundamentales o constitucionales (Alemania, Bélgica, Finlandia, Holanda, Suecia, Estonia, Hungría), Constituciones que optan por un reparto tradicional distinguiendo entre derecho civiles, políticos, sociales y económicos (Italia, Portugal, Polonia, Eslovaquia) y, finalmente, Constituciones que introducen clasificaciones más amplias, distinguiendo los derechos en derechos de primera, segunda y tercera generación. Diferente resulta la clasificación adoptada en España y en otro ordenamientos, donde la Constitución distingue entre derechos y principios informadores de la política social y económica. 11

12

En tema:R.BIFULCO,M.CARTABIA,A.CELOTTO, L’Europa dei diritti,Bologna,2001;G.FERRARI, I diritti fondamentali dopo la Carta dei diritti,Milano,2001;P.COSTANZO (cur.), La Carta europea dei diritti,Genova,2002; AA,VV, I diritti fondamentali in Europa,Milano,2002; Cfr.,CASTRO CID, Derechos humanos y constitucion,en Revista de estudios politicos, 1980,132.

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En este contexto, particularmente interesante, desde el punto de vista metodológico, se muestra, la técnica de clasificación adoptada en la Carta de los Derechos Fundamentales de la Unión Europea. Ésta no acoge las clasificaciones tradicionales, sino que intenta unificar las múltiples posiciones subjetivas garantizadas en torno a algunos valores de referencia: la dignidad, la libertad, la igualdad, la solidaridad, la ciudadanía, la justicia. Y a su vez, tales valores se encuentran unificados en la posición central que ocupa la persona y su intrínseca e intangible dignidad. Se configura, por tanto, una estructura piramidal en cuyo vértice se sitúa la persona, cuya tutela presupone el reconocimiento activo de valores precisos (dignidad, libertad, igualdad, solidariedad, justicia), los que, por su parte, se realizan a través del reconocimiento de derechos específicos. Entre estos derechos específicos no faltan “nuevos” derechos: han sido codificados tanto derechos que son consecuencia de innovaciones – como, por ejemplo, la biomedicina y la manipulación genética— como derechos reconducibles a comportamientos sociales actuales –como es el caso, por ejemplo, de la prohibición de discriminación basada en las características genéticas y en la orientación sexual, la libertad de cambiar de credo, o la tutela de la libertad cultural. 13 Sin embargo, predomina en la Carta de los Derechos Fundamentales de la Unión el propósito hacer explícitos los principios y derechos que dan vida al ius comune europeo, a las tradiciones constitucionales comunes. A propósito, es interesante señalar que han sido codificados: a) algunos derechos ya presente en el Convenio Europeo de los Derechos del Hombre (derecho a la vida, a la integridad personal, la prohibición de penas inhumanas o degradantes, …), b) otros que han sido introducidos por la normativa europea – reglamentos y directivas – (protección de datos personales, derecho a constituir una familia, liberta de ejercitar una profesión…); c) otros incluso ya previstos en Convenciones firmadas por la Unión Europea (sobre bióetica de Oviedo, prohibición de la esclavitud y de trabajos forzados Convención eurogol); d) pero, sobretodo, derechos frutos de la jurisprudencia de la Corte de Justicia (pluralismo de los medios de comunicación, derecho al trabajo, libertad de empresa, prohibición de extradición…). Otra faceta característica de la codificación consiste en haber considerado algunos principios con su propia evolución histórica, tomando en consideración los diversos sig13

Cfr.,C.CASONATO, La Carta dei diritti fondamentali dell’Unione europea:tra conferme,novità e contraddizioni, en (R.TONIATTI cur.) Diritto,diritti,giurisdizione, Padova, 2002, 99ss

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nificados que caracterizados por el paso del Estado Liberal al Social, del Estado Constitucional al de Derecho. A título de ejemplo se puede tomar en consideración el Titulo III que la Carta de los Derechos Fundamentales de la Unión dedica al principio de igualdad. Del principio de igualdad reconoce, sobre todo, la necesidad que a todos, hombres y mujeres, debe ser asegurada igual capacidad jurídica, esto es, igual capacidad de ser titulares de derechos y de deberes. Es esta la acepción de la igualdad que nosotros tomamos ya en la Declaración de los Derechos del Hombre y del Ciudadano de 1789, la cual afirmaba que “todos los hombres naces y permanecen libres e iguales en derechos. Las distinciones sociales sólo pueden ser fundadas sobre la utilidad común”. Con este significado el art. 20 de la Carta reconoce la igualdad de todos los individuos ante la ley. En su evolución, el principio de igualdad a asumido también un alcance más amplio, el cual --si bien no excluye la igual capacidad jurídica-- comprende también una regla que las diferencias entre los individuos y los grupos sociales no pueden dar vida a discriminaciones. En la base a esta perspectiva está la consideración que históricamente algunos elementos --étnicos, raciales, religiosos, lingüísticos-- han sido utilizados para negar la igual dignidad moral y jurídica de todos los individuos.Consecuentemente, el art. 21 de la Carta introduce la prohibición de discriminación. Esta visión de la igualdad --típico de la forma de Estado Social-- se acompaña el reconocimiento que toda sociedad tiene en su interior desigualdades de hecho, que deben ser removidas en la medida en que impiden el pleno desarrollo de la persona humana y la efectiva participación de todos los trabajadores en la organización política, económica y social del país. Según esta perspectiva el principio de igualdad se propone ofrecer a todos los ciudadanos aquella igualdad de oportunidades y de condiciones que la sociedad, en razón de su estructura económica y social, no está en aptitud de ofrecerla autónomamente. Se habla, entonces, de igualdad en sentido sustancial y se admite la legitimidad de acciones positivas a favor de los llamados “sujetos débiles”, de aquéllos –esto es— que ven obstaculizada por razones económicas y sociales la posibilidad de un ejercicio efectivo y paritario de los derechos constitucionales: la mujer respecto del hombre, el trabajador respecto al empleador, los marginados sociales respecto de los sectores más favorecidos. Diversos son, a propósito, las acciones positivas en relación a las mujeres, a los menores, a los ancianos, a personas discapacitadas previstas por los arts. 23, 24, 25, 26 de la Carta. Más recientemente, en fin, ha adquirido relevancia una ulterior visión del principio de igualdad, consistente en el hecho que la sociedad tiende a transformarse en multiétnica y multicultural.En tal contexto, la igualdad debe comprender también la posibilidad de reconocer las diferencias y de legitimar, a tal fin, regulaciones diferenciadas a favor de los pertenecientes a determinados grupos provistos de una específica identidad cultural, expresamente reconocida por la Constitución.

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Interesante es, a propósito, la codificación del art. 22 de la Carta que impone el respeto a las diferencias culturales, religiosas y lingüísticas.14

4. Los derechos de las minorías nacionales y étnicas Este articolo es parte de la relevancia che no solo las Constituciones nazionales, sino también la Unión europea reservan a las minorías nacionales y étnicas . 15 En Europa, disposiciones constitucionales específicas se encuentran presentes como garantía de las minorías étnicas y nacionales –por ejemplo- en las Constituciones de Eslovaquia (arts. 33 y 34), de Hungría (art. 68), de Finlandia (art.14) de Suecia (art.2) , de Estonia ( art. 49), de Lituania ( art.114), de Romania (art.6) . Por su parte, la Constitución de Eslovenia prevé derechos especiales en favor de las comunidades autóctonas italianas y húngaras, así como de las rumanas: se trata de un parcial reconocimiento de los errores y horrores de la colonización y de las persecuciones; la Constitución de Austria garantiza los derechos concedidos por la legislación federal a las minorías linguísticas (art.8), mientras la España considera –la riqueza de las distintas modalidades linguísticas de España un patrimonio cultural que debe ser objeto de especial respeto y protección (art.3 Cost.). Sobre este punto también ha manifestado una especial atención la Unión Europea, la cual, antes de codificar en la Carta de los Derechos de la Unión el principio de respeto a las diversidades étnicas y culturales (art.22) ha aprobado diversos actos internacionales. A propósito, se pueden recordar, por ejemplo: la Carta de las lenguas regionales y minoritarias aprobada en 1992 por el Consejo de Europa, que se propone asegurar determinados derechos a los grupos minoritarios que hablan lenguas en riesgo de desaparición, en tanto que acalladas por las lenguas oficiales y cooficiales; la Carta sobre Seguridad Europea aprobada en Estambul en 1999, en la que se afirma que: “la identidad étnica, cultural, lingüística y religiosa de la minorías nacionales será protegida y que las personas pertenecientes a minorías nacionales tienen el derecho de expresarse libremente, de conservar y desarrollar su identidad sin discriminación alguna”; la Convención –marco para la protección de las minorías nacionales adoptada por el Consejo de Europa en 1994, 14 15

Cfr.,G.ROLLA, La problematica del multiculturalismo en la Unión Europea, en (E.ALVAREZ CONDE,V. GARRIDO MOYOL coords), cit. , 2004,815 ss. En tema de minorías: S.BARTOLE – N.OLIVETTI RASON – L.PEGORARO (cur) , La tutela giuridica delle minoranze,Padova,1998; E.PALICI DI SUNI, Intorno alle minoranze,Torino,2002; A. PIZZORUSSO, Minoranze e maggioranze, Torino, 1993; T. BONAZZI, M. DUNNE (cur.), Cittadinanza e diritti nelle società multiculturali, Bologna, 1994;V.PIERGIGLI, Lingue minoritarie e identità culturali,Milano,2001; T.W.SIMON,Minorities in International law,in Canadian journal of law and jurisprudence,1997,512 ss; D.FOTTRELL –B.BOWRING (a cura di), Minority and groups rights in the new millennium, London,1999; M.CARBONELL,La Constitución en serio. Multiculturalismo,igualdad y derechos sociales, Mexico,2001;J.A.LAPONCE, The protection of minorities,Berkeley,1960; R.TONIATTI, Los derechos del pluralismo cultural en la nueva Europa, en Revista vasca de administración pública,2000,58,17ss; V.PIERGIGLI,Lingue minoritarie e identità culturali,Milano,2001.

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que asigna a los estados adherentes el encargo de dar curso, según el principio de buena fe, a las medidas adecuadas para promover la plena y efectiva igualdad entre las personas pertenecientes a las minorías nacionales y aquellas que pertenecen a la comunidad mayoritaria. Tales codificaciones presentan delicados problemas de naturaleza doctrinal desde el momento en que numerosos autores dudan de la posibilidad de reconocer derechos constitucionales cuyos titulares no sean individuos, sino determinados grupos sociales. El tema es particularmente complejo y su tratamiento orgánico excede de las tareas a las que se circunscribe el presente trabajo: sin embargo, no se puede evitar precisar que en este caso no nos encontramos –en nuestra opinión- tanto en presencia de derechos no individuales, cuanto del reconocimiento de supuestos que habilitan a derogar de la aplicación de los derechos universales (esto es, universalmente válidos para todos los asociados). Por otra parte, estas codificaciones terminan por recoger algunos documentos internacionales recientes, como la Declaración de los derechos y de las personas pertenecientes a minorías nacionales o étnicas, religiosas o lingüísticas, adoptada por la Asamblea General de la ONU, la cual establece que «minorities may exercise their rights (…) individually as well as in community with other members of their group without any discrimination».16 En general, las facultades reconocidas a los miembros de grupos étnicos o a minorías nacionales que las Constituciones garantizan se pueden articular como derechos promocionales orientados a eliminar o limitar la condición socialmente subalterna de tales grupos (mediante programas de ayuda al empleo, la sanidad, las políticas juveniles) como derechos de autogobierno, reconocidos mediante una pluralidad de soluciones institucionales de intensidad variable .17 Con el objeto de reforzar las tradiciones y la cultura de determinados grupos étnicos, algunas Constituciones prevén la institución de órganos para la promoción y la tutela de los derechos de la comunidad. Se trata, en general, de órganos representativos de la pluralidad de los grupos étnicos presentes en el territorio, dotados de funciones consultivas o de propuesta, o de funciones de tipo jurisdiccional. Es el caso, por ejemplo, del Consejo consultivo de las nacionalidades, instituido en Letonia con la ley constitucional sobre el libre desarrollo, y el derecho de autonomía cultural de los grupos nacionales y étnicos de 1991; de la Asamblea popular sueca, integrada por 75 miembros que puede realizar propuestas o expresar 16

17

Para referencias ulteriores, permítaseme reenviar a: G.ROLLA, La tutela costituzionale del diritto all’identità culturale, en (G.ROLLA) Lo sviluppo dei diritti fondamentali in Canada, Milano, 2000, 111 ss. Véase también, en referencia a la tutela nacional e internacional de los derechos a la identidad cultural: E.CECCHERINI, Diritti individuali v.diritti comunitari,en (G.ROLLA) Lo sviluppo dei diritti fondamentali in Canada,Milano,2000,163 ss Cfr., R.TONIATTI, Los derechos del pluralismo cultural en la nueva Europa, cit. 17 ss; G.ROLLA –E.CECCHERINI, The constitutional protection on linguistic diversity in some of the EU countries, en The theory and the pratice of linguistic policies in the world, Iasi, 2003, 79 ss.

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opiniones relativas a las medidas del Gobierno finlandés, susceptibles de incidir sobre los intereses de la minoría sueca; del Consejo para la minorías nacionales previsto en Rumania, establecido por el Decreto gubernativo n. 137 de 6 de abril de 1993, competente para ofrecer su opinión sobre todas las iniciativas normativas y administrativas del Gobierno relativas a los derechos de las minorías étnicas. Por último, carácter particular poseen las disposiciones constitucionales que reconocen a las comunidades étnicas un derecho de representación en el seno de los órganos constitucionales del Estado. La representatividad de los componentes étnicos en los poderes públicos es, por ejemplo, el elemento característico de la Constitución de BosniaHerzegovina de 1995. A su vez, la Constitución rumana atribuye un escaño de la Cámara de los Diputados a cada uno de los grupos minoritarios; mientras los arts. 5 y 64 de la Constitución eslovena permiten la participación en las asambleas electas locales y nacionales de los miembros de las minorías radicadas sobre el propio territorio. 18

5. La especificación de los derechos como técnica de codificación Una característica relevante de los catálogos constitucionales en materia de derechos – con la excepción menor de algunas Constituciones de la Europa Central y Septentrional- es la evidente propensión a la especificación de las situaciones subjetivas reconocidas como derechos. La codificación tiende a ser exhaustiva y a especificar en modo detallado los perfiles de la personalidad y del actuar humano que se encuentran tutelados. Las listas resultan bastante minuciosas y con frecuencia el constituyente se encarga de identificar directamente las situaciones jurídicas subjetivas por tutelar .19 Es necesario, sin embargo, precisar que una amplia analítica positivización no es en sí misma índice de una efectiva y substancial tutela de los derechos de la persona. La inserción de tales derechos en el texto de las Constituciones –por cuanto sea necesaria e importante- no permite percibir con inmediatez el grado de efectividad de los mismos. Los derechos no deben ser solamente codificados, sino que deben ser aceptados y convalidados por la cultura jurídica y política de un determinado país. En otras palabras, las modalidades de tutela de los derechos de la persona se encuentran reguladas por las cartas constitucionales, pero la idea de tutela se forma necesariamente en el seno de la comunidad y sólo de esta manera se vuelve parte de la Constitución en un sentido substancial. Lo anterior pone en evidencia un dato importante, que no puede ser olvidado por el jurista o por el intérprete jurisdiccional: el hecho de que en muchos casos se está en 18 19

Cfr., E.CECCHERINI, Multculturalismo (diritto comparato), en Digesto discipline pubblicistiche (appendice di aggiornamento), Torino, 2008. Cfr.,G.ROLLA, I diritti fondamentali nel costituzionalismo contemporaneo:spunti critici, en (G.ROLLA cur.) Tecniche di garanzia dei diritti fondamentali, cit. ,10 ss.

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presencia de documentos que asumen la forma de las Constituciones propias de la tradición liberal y democrática pero que no tienen tal espíritu. En este caso, según una feliz expresión, se dice que se está en presencia de Constitutions without constitutionalism. Ello no obstante, las más recientes cartas constitucionales se muestran claramente favorables a adoptar la técnica de los catálogos detallados; y así ocurre, esencialmente, para satisfacer una o más exigencias específicas. En primer lugar se propone historiar los derechos de la persona reconocidos en un preciso periodo histórico y establecer una discontinuidad respecto del pasado. La especificación cumple una función de naturaleza didáctica. Teniendo el objetivo de evidenciar la ruptura político-institucional que separa el actual ordenamiento constitucional de los precedentes, cumple una función de reacción respecto a periodos autoritarios y antidemocráticos precedentes: permite enfatizar los rasgos de la dignidad y de la libertad de la persona que los regímenes precedentes habían conculcado. Podemos mencionar numerosos ejemplos, como las normas que prohíben la esclavitud y la segregación racial, las que prohíben la tortura y tutelan el derecho a la vida, o las que aseguran el pluralismo y los derechos políticos. En segundo lugar, la especificación se propone desempeñar una función de transparencia frente a los ciudadanos, haciendo “visibles” los derechos garantizados y ejercitables. Dicha finalidad, por ejemplo, parece inspirar la Carta de los Derechos fundamentales de la Unión Europea. A propósito baste recordar que el documento preparatorio, redactado por el llamado “Comité Simitis” (integrado por ocho constitucionalistas e instituido por la Comisión Europea para sentar las bases del debate sobre la codificación de una Carta de derechos fundamentales), manifestó claramente la opinión de que los derechos deberían ser enumerados y enunciados en modo tal que todo ciudadano europeo fuese capaz de conocerlos y hacerlos valer; en otros términos, “los derechos fundamentales deben ser visibles”. 20 En tercer lugar, la especificación de los derechos encaminados al desarrollo de la personalidad humana pretende dar parámetros más detallados para la actividad interpretativa de los jueces y la actividad especificativa del legislador. A este proposito la Carta de los derechos fundamentales de la Unión se destaca por algunas caracteristicas: a) algunos derechos están actualizados: las discriminaciones prohibidas (características genéticas, orientación sexual), la libertad de religión; b) algunas definiciones son modificadas: a diferencia de l’art.12 de la CEDU, l’art.9 de la Carta non define el matrimonio como la unión de un hombre y una mujer; 20

Commissione europea, Relazione del gruppo di esperti in materia di diritti fondamentali:per l’affermazione dei diritti fondamentali nell’U.E.,Bruxelles,1999.

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c) algunos derechos estàn especificados a luz de la jurisprudencia: el principio de retroactividad de la pena mas leve (art.49); el tercero apartado de l’art.47 (asistencia jurídica gratuita, se necesaria para garantizar la efectividad del acceso a la justicia).

6. Cláusulas de integración entre ordenamientos constitucionales Un elemento característico del derecho constitucional de hoy, ma sobre todo de los ordenamientos multiniveles es la integración a través de los derechos . En un mundo siempre mas integrado es evidente la crisis de autosuficiencia de los ordenamientos nacionales en particular. 21 Tal exigencia se advierte sobre todo en materia de derechos fundamentales por la tensión universalista que anima la protección de la persona humana. El nuevo constitucionalismo presenta diversas disposiciones que dan un valor de rango constitucional a las normas internacionales en materia de derechos humanos .22 En numerosas Constituciones europeas hay la presencia de disposiciones que reconocen al derecho internacional rango constitucional y una posición de supremacía sobre el resto del ordenamiento jurídico.23 Se puede recordar el art. 16 de la Const. Portuguesa según el cual las previsiones constitucionales y legislativas en materia de derechos fundamentales deben ser interpretadas e integradas en armonía con la Declaración Universal de los Derechos del Hombre. Igualmente, según el art. 10.2 de la Const. Española las normas relativas a los derechos fundamentales y a las libertades reconocidas por la Constitución se interpretan de conformidad con la Declaración Universal de los Derechos del Hombre y con los tratados y acuerdos internacionales sobre esas mismas materias ratificados por España. A su vez, el art. 11 de la Const. eslovaca y el art. 10 de la Const. De la República Checa reconocen que las normas sobre derechos fundamentales ratificadas por el Estado poseen una fuerza jurídica superior a las leyes. Además en la Carta de los Derechos Fundamentales de la Unión, no faltan cláusulas – en cierto sentido- asimilables. Puede ser el caso, por ejemplo, del art. 52.3 que dispone “En la medida en que la presente Carta contenga derechos que correspondan a derechos garantizados por el Convenio Europeo para la Protección de los Derechos Humanos y de las Libertades Fundamentales, su sentido y alcance serán iguales a los que 21 22

23

Véase, sobre las cláusulas de apertura al ordenamiento internacional: A.SAIZ ARNAIZ, La apertura constitucional al derecho internacional y europeo de los derechos humanos, Madrid,1999; Cfr., H.ESPIELL, El derecho inteernacional en la jurisdicicon constitucional,en La jurisdicción constitucional, San Josè,1993,61 ss; H.FX ZAMUDIO, El derecho internacional de los derechos humanos en las constituciones latinoamericanas y en la corte interamericana de derechos humanos, en The modern world of human rights,San Josè,1996,159 ss. Cfr.,G.ROLLA, Garantía de los derechos fundamentales y justicia constitucional, cit.,66 ss

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les confiere dicho Convenio. Esta disposición no impide que el Derecho de la Unión conceda una protección más extensa”. Del mismo modo puede aludirse la disposición contenida en el art. 53 de la Carta, según la cual, ninguna de las disposiciones de ésta deberá ser interpretada en sentido limitante o lesivo para los derechos del hombre y las libertades fundamentales reconocidas por el derecho internacional, por las Convenciones internacionales de las cuales la Unión o todos los estados miembros sean parte contrayente. 24 Tales formulaciones no solo amplian las concretas posiciones subjetivas tuteladas, sino también intentan satisfacer una exigencia de integración entre ordenamientos diferentes . La integración , en Europa, ha obtenido resultados muy progresivos, pero este fenómeno es, sin embargo, parte de una tendencia general, a la luz de la cual se podría considerar que el fenómeno de la globalización se está extendiendo de la economía a las estructuras constitucionales, de los mercados financieros al sector de los derechos humanos de la persona, como si estos últimos representasen incluso una “ideal moneda única”, de curso legal en la mayor parte de los ordenamientos. El proceso de osmosis entre ordenamientos jurídicos en materia de derechos fundamentales está favorecido por diversos elementos, entre los cuales: a) La difusión de Cartas “regionales” de derechos (El Convenio Europeo de los Derechos del Hombre, la Convención americana sobre derechos humanos, la Carta africana de los derechos del hombre y de los pueblos, la Declaración islámica de los derechos del hombre), las cuales proporcionan un importante aporte a la homogenización de los derechos en áreas culturales y jurídicas homogéneas. b) La presencia en numerosísimas constituciones de cláusulas de apertura del ordenamiento internacional que obligan a interpretar los derechos constitucionales a la luz o de conformidad al derecho internacional reconocido; y sobre todo atribuyendo valor vinculante a la jurisprudencia internacional. c) La utilización de especiales técnicas interpretativas: por las cuales, por ejemplo, en caso de conflicto con las normas internacionales deben de cualquier modo considerarse que prevalecen sobre aquellas producidas por fuentes primarias; o bien, el criterio de interpretación constructiva, según el cual la normativa nacional debe ser, en cuanto sea posible, interpretada en sintonía con el alcance y el mismo significado que esos mismos derechos tienen en el ámbito internacional. La incidencia de la normativa y de jurisprudencia internacional sobre los ordenamientos nacionales genera un verdadero bloque de constitucionalidad y alimenta una 24

Véase: T.GROPPI, Portata dei diritti garantiti ,en (R.BIFULCO,M.CARTABIA,A.CELOTTO cur.) L’Europa dei diritti, cit.,360ss

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tendencia constitucional de particular interés, que permite al derecho nacional especificar e implementar sus propios niveles de tutela..25 De tal integración derivan algunas consecuencias importantes de orden constitucional, capaces de reforzar la garantía de los derechos constitucionalmente reconocidos. En primer lugar, los derechos reconocidos por el ordenamiento constitucional de los países en particular deben interpretarse conforme a la interpretación y a la jurisprudencia de los órganos internacionales, sobre todo – en Europa - del Tribunal Europeo de derecho Humanos. Dicho proceso osmótico permite al derecho nacional especificar e implementar los estándares de tutela definidos en el ámbito internacional, de la misma forma que el derecho internacional amplía la potestad interpretativa de los jueces nacionales. En segundo lugar, los derecho reconocidos a nivel internacional son inmediatamente justiciables a través de los múltiples procedimientos de recurso directo previstos en las cartas constitucionales. En tercer lugar, el mencionado proceso de ósmosis favorece la creación de un derecho común, que constituye la base unitaria de la tutela de los derechos de la persona en un determinado ámbito geográfico supranacional. Pero, por la creación de un derecho común, otros elementos se revelan como necesarios, como la adhesión a un método interpretativo común, la existencia de formas significativas de unidad cultural o la aceptación de un sistema de valores suficientemente homogéneo.

7. Clausolas que favorecen la limitación y la suspensión de los derechos fundamentales. Los derechos constitucionales de libertad se encuentran, con frecuencia sometidos, a limitaciones o bien a suspensiones temporales en su disfrute para afrontar situaciones de emergencia o de seguridad pública. Derogaciones parciales y condicionales de su tutela se encuentran previstas en muchos ordenamientos, pareciendo encontrar una doble justificación: por una parte, se atribuye al estado de necesidad el carácter de fuente de producción del derecho, apta para innovar sobre normas del ordenamiento jurídico vigente; por otra parte, se considera que las condiciones para garantizar la permanencia de los derechos fundamentales y de las instituciones que otorgan carácter democratico a un régimen político pueden, en concretas fases políticas circunscritas, asegurarse sólo tras su negación o atenuación temporal. En la realidad contemporánea se presentan con frecuencia casos en los que la afirmación plena de una posición subjetiva acabaría por quebrar valores constitutivos del 25

G.ROLLA, Le prospettive dei diritti della persona alla luce delle recenti tendenze costituzional, en Quaderni costituzionali,1997,419 ss.

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ordenamiento constitucional. En ocasiones, los presupuestos para garantizar la permanencia de los derechos fundamentales y las instituciones que definen como democrático un régimen político pueden ser asegurados sólo tras su atenuación temporal. Según una orientación extendida no parece ni irrazonable, ni contrario a los principios constitucionales, consentir al ordenamiento la adopción de medidas insólitamente restrictivas de un derecho fundamental, mientras que ello venga determinado por una situación de urgencia y necesidad, y no se prorrogue injustificadamente en el tiempo. En virtud de lo delicado del problema, las Constituciones son, en general, propensas a disciplinar la materia. En Europa, la temática de las suspènsión de los derechos fundamentales se afronta desde una perspectiva duble: por un lado, se confiere dignidad constitucional al principio de la “democracia que se defiende”, por el otro, se prevé sancionar las formas de abuso en el ejercicio de lates derechos. 26 A propósito de este último caso, el ejemplo más significativo lo constituye el art. 18 de la Constitución alemana, que dispone que quien abuse de la libertad de reunión, de la libertad de asociación, del secreto epistolar, postal y de telecomunicaciones, del derecho de propiedad o de asilo para combatir el ordenamiento fundamental democrático y liberal pierde estos derechos. Continuando en el ámbito de las cláusulas que prohíben el llamado “abuso de los derechos”, pueden mencionarse el art. 17 de la Human Rights Act del Reino Unido. El art. 54 De la la Carta de los derechos fundamentales de la Unión y el art.17 del Convenio europeo prohiben en los mismos terminos el abuso de derecho. .27 Por el contrario, el principio la Đdemocracia que se defiendeĐ se recoge en diversas cláusulas constitucionales tendentes a justificar la limitación en el ejercicio de determinados derechos con la exigencia de salvaguardar los principios generales de democracia y de justicia. La más conocida de tales cláusulas se contiene en el art. 10.2 de la Convenio Europeo para la protección de los Derechos Humanos y de las Libertades Fundamentales, que permite someter el ejercicio de la libertad de expresión a determinadas formalidades, condiciones, restricciones o sanciones que constituyen “medidas necesarias, en una sociedad democrática, para la seguridad nacional, la integridad territorial o la seguridad pública, la defensa del orden y la prevención del delito, la protección de la saludo de la moral, la protección de la reputación o de los derechos ajenos, para impedir la divulgaci26

27

Véase:A.BENAZZO, L’emergenza nel conflitto fra libertà e sicurezza,Torino,2004; J. DE BARTOLOME CENZANO, El orden público al ejercicio de los derechos y libertades, Madrid, 2002; T.GROPPI (cur.), Democrazia e terrorismo,Napoli,2006. Véase:: J.GARCIA ROCA, Abuso de los derechos fundamentales y defensa de la democracia, en (J.GARCIA ROCA- P.SANTOLAYA cur.) La Europa de los derechos, Madrid, 2005,727ss; C.PINELLI, Divieto dell’abuso di diritto, en S.BARTOLE- F.CONFORTI-G.RAIMONDI (cur.) Commentario alla convenzione europea per la tutela dei diritti dell’uomo e delle libertà fondamentali, Padova, 2001,455ss.

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ón de informaciones confidenciales o para garantizar la autoridad y la imparcialidad del poder judicial”. 28 Dicha formulación ha circulado ampliamente en las recientes Cartas constitucionales de la Europa Central y Oriental. En sustancia, ha sido retomada por la Constitución de Polonia, en cuyo art. 31 se dispone que toda limitación a los derechos y a las libertades constitucionales debe imponerse tan sólo en caso de necesidad “en un Estado democrático para la protección de su seguridad o del orden público, o para proteger el medio ambiente, la salud y la moral pública, o los derechos ajenos”. A su vez, el art. 11 de la Const. Estona prevé que los derechos constitucionales puedan ser limitados siempre que ello sea necesario en una “sociedad democrática”; además, el art. 44 de la Constitución de Lituania consiente que el legislador introduzca las restricciones necesarias sobre los derechos y libertades para garantizar la seguridad, el orden público y la paz. Mientras, según el art. 12 de la Const. Sueca las limitaciones a los derechos pueden ser impuestas sólo para satisfacer finalidades compatibles con una sociedad democrática; además tales limitaciones no pueden extenderse hasta el punto de amenazar la libre formación de las opiniones, en tanto que principio fundamental de la democracia. Fórmulas similares, por otra parte, se encuentran presentes también en ordenamientos distintos a aquellos hasta ahora considerados. De una parte, resulta de particular interés el art. 1 de la Carta canadiense de los derechos y libertades, la cual afirma que no pueden ser impuestas restricciones a los derechos y libertades enunciados en la Carta, más allá de aquellas establecidas por la ley, dentro de los límites de la razonabilidad y de las que se pueda demostrar su justificación en el marco de una sociedad libre y democrática. 29 Por otra parte, el art. 33 de la Constitución de Sudáfrica contiene una disposición claramente inspirada en la Carta canadiense de los derechos y libertades –aunque “contaminada” por la fórmula de la Constitución alemana sobre la salvaguarda del contenido esencial de los derechos- la cual consiente en someter a los derechos fundamentales, a límites razonables y justificables en una sociedad abierta y democrática fundada sobre la dignidad, la libertad y la igualdad, siempre que no sea violado el contenido esencial del mismo derecho. 30 28 29

30

Cfr.,R.BUSTOS GISBERT, Los derechos de libre comunicación en una sociedad democrática, en J.GARCIA ROCA-P.SANTOLAYA (coords.) La europa de los derechos, Madrid, 2005,529 ss. Véase: S.RODRIQUEZ, La Corte suprema del canada e l’art.1 della Carta dei diritti e delle libertà. una “free and democratic society” in continua evoluzione, en G.ROLLA (cur.), L’apporto della Corte suprema alla determinazione dei caratteri dell’ordinamento costituzionale canadese, Milano, 2008, 241 ss; P.TELESE, Le limitazioni al godimento dei diritti fondamentali secondo i principi generali elaborati dalla Corte suprema del Canada,en (G.ROLLA cur.) Lo sviluppo dei diritti fondamentali in Canada,Milano,2000,83 ss;F.ROSA, The Canadian Charter as a model for the codification process of fundamental human rights in common law countries:the justified limitatio clause and the notwithstanding clause en M.RUBBOLI (cur.) The Canadian Charter of Rights and freedoms:t he first twenty years,Genova, 2003,89 ss. G. ROSA, Limiti ai diritti e clausole orizzontali:Canada,Nuova Zelanda,Israele e Sudafrica a confronto, en Diritto pubblico comparato ed europeo,2002,656 ss.

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Con tales formulaciones las Constituciones pretenden confiar en la sabiduría del legislador o – posteriormente- de los jueces constitucionales para conseguir un balance equitativo entre las libertades individuales y los intereses de la comunidad. Tales operaciones no resultan en absoluto fáciles, puesto que, por un lado, se deben predeterminar los parámetros con cuya provisión considerar razonables las limitaciones legislativas al disfrute de los derechos constitucionales; 31 por otro lado, se requiere atribuir a la noción de “sociedad libre y democrática” un significado fuertemente ligado al contexto político y cultural: en todo caso, siempre orientado a asegurar que la intervención de limitaciones sobre los derechos se encuentre ligada a necesidades relevantes, urgentes y reales en una sociedad libre y democrática. Más tradicionales aparecen las fórmulas en materia de declaraciones de los estados de excepción codificadas, per exemplo, en el art. 16 de la Constitución fancesa, que atribuye poderes especiales al Presidente de la República en caso de que se vean amenazadas en medida grave einmediata las instituciones republicanas, la integridad territorial, o la posibilidad de acometer los deberes internacionales; o bien, en el art. 55 de la Constitución española que admite la suspensión de algunos derechos fundamentales ya sea en el caso de declaración de estado de sitio o excepción, ya sea en conexión con la exigencia de afrontar el terrorismo.

8. Cláusulas tendentes a favorecer el equilibrio entre derechos constitucionales Una de las principales dificultades que se enfrentan al garantizar el efectivo disfrute de un derecho fundamental consiste en individualizar la regla aplicable a un caso concreto: ello porque la idea histórica del juez en tanto que “boca de la ley”, y la concepción del intérprete como mero ejecutor de la voluntad del legislador, tienen mal encaje en la realidad actual. En efecto, en los sistemas constitucionales contemporáneos resulta bastante improbable que la tutela de una posición subjetiva se realice utilizando una única disposición constitucional, haciendo referencia a un solo derecho, o interpretando una o más disposiciones homogéneas. Por lo general, para individualizar la norma aplicable se hace necesario realizar una ponderación: ya sea en el caso en que se deban sopesar varios derechos susceptibles de entrar en conflicto, o bien en una situación de concurrencia, siendo 31

Por ejemplo, el Tribunal Supremo de Canadá ha elaborado un auténtico Test – que tomó el nombre de la autorizada opinión del juez Dickinson- basado en cuatro elementos: el objetivo que se pretende perseguir con la limitación debe ser de importancia suficiente; deb subsistir una conexión racional entre dicho objetivo y el contenido de la limitación; la limitación debe suponer la menor restricción posible al ejercicio del derecho; los efectos de la limitación del derecho no deben ser despropporcionados repecto del objetivo que se persigue.

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entonces necesario contemporizar el ejercicio de un derecho con la salvaguarda de un principio o valor constitucional. 32 En estos casos, se hace necesario un balance que puede ser llevado a cabo, en cada ocasión, por el intérprete competente para solucionar el caso – ad hoc balancing- o bien realizado directamente por el legislador en virtud de disposiciones normativas puntuales -definitional balancing-. Tal actividad hermenéutica, por lo general, viene facilitada por la inserción en las Constituciones de cláusulas específicas que favorecen una conjugación equilibrada entre derechos constitucionales contrapuestos. Entre éstas, las más significativas son, sin duda., aquellas que aluden al principio de proporcionalidad, o bien a la tutela del contenido esencial de los derechos . La constitucionalización del principio de proporcionalidad en materia de interpretación de los derechos fundamentales está presente – por ejemplo- en la Carta de los Derechos Fundamentales de la Unión Europea, cuyo art.52 afirma que las limitaciones a los derechos fundamentales tan sólo pueden ser realizadas en el respeto del principio de proporcionalidad y allí dónde sean necesarias y respondan efectivamente a objetivos de intereses generales reconocidos por la Unión o a la exigencia de proteger los derechos y libertades de otros. La misma cláusula está presente también en algunas Constituciones de los estados adherentes a la Unión Europea. El art. 25 de la Const. Griega afirma que las limitaciones de los derechos constitucionales deben respetar el principio de proporcionalidad; el art. 18 de la Const. Portuguesa prevé que las restricciones de derechos, libertades y garantías deben “limitarse a lo necesario para salvaguardar otros derechos o intereses constitucionalmente protegidos”. Igualmente el art. 12 de la Const. Sueca prohíbe que las limitaciones de los derechos y de las libertades fundamentales vayan “más allá de lo necesario por referencia al motivo que la ha provocado”. Tales disposiciones se apresuran a evitar que el disfrute de un derecho se produzca en una modalidad tal que comprima “más allá” los derechos ajenos, esto es más allá de lo que es necesario e indispensable para ejercitar tal derecho. Si se excluyen el art. 18 de la Const. Portuguesa y el art. 12 de la Const. Sueca- que precisan las operaciones lógicas que el intérprete debe acometer en sede interpretativa-, el resto de Constituciones se limitan a realizar un reenvío dinámico al principio de proporcionalidad, tal y como es entendido por la jurisprudencia. Compete, por tanto a los jueces determinar el test sobre la base del cual evaluar la 32

Existe concurrencia cuando la conducta de un determinado sujeto puede ser reconducida a una pluralidad de derechos garantizados – reunión y manifestación del pensamiento; asociación y libertad religiosa; manifestación del pensamiento e iniciativa económica,etc.-; los conflictos se producen cuando el derecho de un sujeto debe ser comparado con los derechos de otros (por ejemplo, reserva y prensa, iniciativa económica y dignidad humana, huelga y salud o libertad de circulación) o bien con valores y principios de naturaleza general (derechos de libertad y seguridad, secreto de las comunicaciones y legalidad).

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conformidad de las normas al principio de proporcionalidad; en ese momento, tales reglas deben encontrarse verificando: a) la legitimidad de los fines por los cuales el derecho ha sido limitado; b) la subsistencia de una relación efectiva entre el contenido de la limitación y sus finalidades; c) el carácter de no irrazonable, arbitrario o inútilmente opresivo del límite; d) la no anulación total del derecho. 33 El principio de proporcionalidad asume, además, una relevancia particular en el ámbito del derecho penal: en aquellos ordenamientos en los que existen disposiciones constitucionales que prohíben que se inflijan penas desproporcionadas respecto del delito ( art. 49 de la Carta). La especificidad de tales cláusulas consiste en la circunstancia, que en este caso no se discute, de la razonabilidad de la limitación de un derecho garantizado constitucionalmente, así como en la racionalidad (constitucionalidad) de penas desproporcionadas. En otros términos, se sancionan los efectos “colaterales” producidos por una pena desproporcionada, que pueden determinar – como ha sido sostenido por el Tribunal Constitucional español- a causa de su severidad, un sacrificio no necesario y desproporcionado o un efecto de disuasión en el ejercicio de derechos fundamentales. 34 Mayores dudas presentan, en cambio, desde la perspectiva de los cánones interpretativos, las cláusulas constitucionales que hacen referencia al respeto del contenido esencial de los derechos fundamentales: hasta el punto que una voz autorizada ha afirmado que apreciar si una limitación de un concreto derecho fundamental vulnera su esencia constituye a menudo una tarea tan hostil como la de descifrar un enigma. 35 La apelación a la garantía del contenido esencial de los derechos se contiene, por lo general, en una cláusula constitucional específica. Ello ocurre, por ejemplo, en el art. 33

34

35

A propósito del principio de proporcionalidad: TOMAS DE DOMINGO, Neoconstitucionalismo, justicia y principio de proporcionalidad, in Persona y derecho,2007,245 ss; J BRAGE CAMAZANO, Los limites a los derechos fundamentales, Madrid,2004,215ss; C.BERNAL PULIDO,El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales,Madrid, 2003; J.BARNES, Introducción al principio de proporcionalidad en el derecho comparado y comunitario,en Revista de administración pública, 1994,495 ss; N.EMILOU, The principle of proporcionality en european law, London, 1996; AA.VV., El principio de proporcionalidad, en Cuadernos de derecho público, 1998, n.5; En Italia el principio de proporcionalidad ha sido por lo general asociado al criterio de razonabilidad como canon interpretativo, véase:L.PALADIN, Ragionevolezza (Principio di),en Encl.dir.,Agg.1,Milano,1997, 901ss; AA.VV., Il principio di ragionevolezza nella giurisprudenza della Corte costituzionale. Riferimenti comparatistici, Milano, 1991; M.P.VIPIANA, Introduzione allo studio del principio di ragionevolezza nel diritto pubblico,Milano,19 93;L.D’ANDREA,Ragionevolezza e legittimazione del sistema,Milano,2005; STC 110/2000 Véase: T.DOMINGO PEREZ, La argumentación jurídica en el ámbito de los derechos fundamentales:en torno al debnominado “chilling effect” o “effecto desaliento”, en Revista de estudios políticos, 2003,141 ss Así J. JIMENEZ CAMPO, Derechos fundamentales.Concepto y garantías, Madrid,1999,69

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53.1 de la Const. Española (Los derechos y libertades reconocidos en el Capítulo segundo del Título primero sólo pueden ser limitados por ley y en el respeto de su contenido esencial), en el art, 19.2 de la Const. Alemana (en ningún caso un derecho fundamental puede ser afectado en su contenido esencial), en el art. 18. 3 de la Const. Portuguesa (Las leyes restrictivas de derechos, libertades y garantías…no pueden…disminuir la extensión y el alcance del contenido esencial de las previsiones constitucionales), en la Const. Húngara, que prohíbe la limitación de los derechos que menoscabe su significado y contenido esencial (art. 8). 36 Por su parte, la Carta de los Derechos fundamentales de la Unión europea opta por una solución diversa, en el sentido de que el principio de proporcionalidad y el respeto al contenido esencial se encuentran insertos en el mismo artículo: las limitaciones del ejercicio de los derechos y libertades deben respetar el contenido esencial de tales derechos y libertades, además de ser diseñadas en el respeto del principio de proporcionalidad. La formulación utilizada induce a pensar que la cláusula de respeto al contenido esencial de los derechos no representa un criterio interpretativo autónomo, sino uno de los perfiles de evaluación necesarios para respetar el principio de proporcionalidad. En otros términos, la garantía del contenido esencial sirve como contrapunto argumentativo y valorativo al juez, en el momento de considerar si una determinada regimentación legislativa es razonable y garantiza el derecho constitucionalmente tutelado. 37 Por otra parte, la jurisprudencia ha precisado que la proporcionalidad requiere que las intervenciones sobre los derechos no sean desmesuradas o generen efectos intolerables, tales que atenten contra la sustancia del derecho garantizado. 38

36

37 38

En general, véase: C.BERNAL PULIDO, El principio de proporcionalidad y derechos fundamentales, Madrid,2003; J.C.GAVARA DE CARA, J.C, Derechos fundamentales y desarrollo legislativa: la garantía del contenido esencial de los derechos fundamentales en la Ley Fundamental de Bonn, Madrid, 1994;M.LORENZO RODRÍGUEZ, Análisis del contenido esencial de los derechos fundamentales enunciados en el art. 53.1 de la Constitución española, Granada, 1996; A.L.MARTÍNEZ PUJALTE, La garantía del contenido esencial de los derechos fundamentales, Madrid, 1997; P.HABERLE, La garantía del contenido esencial de los derechos fundamentales, Madrid,2003; PRIETO SANCHIZ, La limitación de los derechos fundamentales y la norma de clausura del sistema de libertades, in Derechos y libertades,2000,438 STJCE del 22 de octubre de 1991. Interesante resulta la sentencia n. 43 de 24 de febrero de 1987 del Tribunal Constitucional de Chile según la cual los derechosi “pueden en consecuencia ser canalizados en sus diferentes expresiones, sin ser desconocidos de plano; ellos pueden ser moldeados pero no pueden ser objeto de desnaturalización”, vivecersa non possono essere privati de aquello que le es consustancial, de manera tal que deja de ser reconocible y que se impide “el libre ejercicio” en aquellos casos en que el legislador lo somete a exigencias que lo hacen irrealizable, lo entraban más allá de lo razonable o lo privan de tutela jurídica”.

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O Ministério Público do Trabalho como Instituição Vocacionada à Defesa dos Direitos Humanos dos Trabalhadores Gilsilene Passon P. Francischetto*

1. Introdução Com a Constituição Federal de 1988 foi possível perceber a nítida mudança no perfil dos membros do Ministério Público que, de uma atuação voltada à fiscalização da lei e assessoria ao Executivo, passam a ter suas funções ligadas à defesa da Ordem Jurídica e do Estado Democrático de Direito, conforme preceitua o art. 127. Centrando a atenção no Ministério Público do Trabalho, tal órgão passou pelas mesmas mudanças, estando hoje incumbido da defesa dos direitos indisponíveis dos trabalhadores. O novo perfil do Ministério Público do Trabalho se insere, portanto, na perspectiva da segunda onda de acesso à Justiça, preconizada por Mauro Cappelletti1, em que a atenção está voltada para a defesa dos interesses difusos, rompendo com uma tendência individualista em relação aos direitos. A atuação ministerial também está em consonância com a 3.ª onda de acesso à Justiça defendida pelo mesmo autor, em que se busca não só a composição extrajudicial dos conflitos mas, sobretudo, a sua prevenção. O MPT dispõe de inúmeros instrumentos visando a prevenção dos conflitos trabalhistas, como o inquérito civil, o termo de ajustamento de conduta, as audiências públicas, entre outros. O órgão, com o intuito de tornar mais efetiva a sua atuação, buscou organizar-se internamente criando coordenadorias específicas para atuar em áreas estratégicas, incluindo-se numa nova perspectiva no direito brasileiro, em que a atuação volta-se para * 1

Mestre e Doutora em Direito, Pós Doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Coimbra. Professora da Graduação, Especialização e Mestrado em Direito da Faculdade Direito de Vitória-FDV. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie northfleet. Porto Alegre: Sérgio Atônio Fabris, 1988.

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os interesses metaindividuais dos trabalhadores, com um arcabouço legislativo que traz um amplo suporte para o desenvolvimento de suas funções. O objetivo do presente artigo é demonstrar que o papel dos membros do MPT experimentou um salto de quantidade, que também precisa ser acompanhado pelo avanço qualitativo, não podendo estar alheio a este quadro, mas, ao contrário, deve estar convicto de que a sua prática poderá desenhar um novo cenário, em que os valores do ser humano e seus direitos sejam exaltados. A escolha pela instituição do Ministério Público justificou-se, principalmente, porque historicamente sempre lhe foi atribuída a função de fiscal da lei com uma vinculação ao Poder Executivo. No entanto, a autonomia foi alcançada em 1988, com a Constituição federal, e as atribuições foram alargadas, abrangendo os interesses metaindividuais e a defesa da própria ordem jurídica e do Estado Democrático. Nota-se que, de todas as profissões jurídicas, o Ministério Público teve uma orientação marcadamente social com a nova Carta Magna. Nessa esteira, a legislação infraconstitucional não se distanciou de tais disciplinamentos e ergueu toda uma construção normativa que valorizou o papel de tais profissionais e ratificou o perfil traçado pela Constituição.

2. O Ministério Público do Trabalho no Estado Democrático de Direito e a Necessidade de Democratização de sua Atuação Como já salientado, o Ministério Público recebeu amplo disciplinamento na Constituição de l988, incumbindo-lhe, primordialmente, a defesa do regime democrático de Direito. Este reúne os princípios do Estado Democrático e do Estado de Direito, no entanto, não como simples reunião formal dos respectivos elementos, porque, em verdade, revela um conceito novo que os supera, na medida em que incorpora um elemento revolucionário de transformação do status quo2. Quanto ao Estado de Direito, cabe esclarecer que seu surgimento está mais diretamente ligado ao pensamento germânico dos séculos XVII e XVIII, no entanto, muito antes disso já se tem notícias de idéias que terminaram por eclodir na consolidação de tal concepção3. O Estado de Direito surge em contraposição ao absolutismo, com nítida diminuição do poder do Estado e com a sobreposição da lei, que deveria ser observada tanto pelos governados como pelos governantes. 2 3

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 112. COPETTI, André. Direito penal e estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 52-53.

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Ao falar-se em Estado de Direito, apesar de estar presente a idéia de liberdade e de sujeição de todos à lei elaborada com a participação da população, não há que se confundir com a idéia de democracia. Quanto ao conceito de democracia do século XIX, alerta Luciano Gruppi: (...) a corrente democrática, que se afirmou na Revolução Francesa com Robespierre, na verdade foi derrotada na história da Europa. Neste continente, após a década de 1860 e 1870, ter-se-ão regimes liberais; ter-se-á uma fusão de liberalismo e democracia, isto é, uma ampliação do sufrágio universal e da igualdade jurídica. Uma mistura de liberalismo e democracia que, no entanto, reafirma sempre o direito de propriedade, tutela sempre a iniciativa econômica e o desenvolvimento capitalista4 (grifo nosso) A vinculação histórica do Estado de Direito com o liberalismo econômico acabou por pregar a liberdade dos indivíduos com uma conduta abstencionista do Estado, ocasionando o acirramento de constantes desigualdades. Tal ligação mostrou-se tão intensa que se passou a usar a denominação “Estado Liberal de Direito” cujas características foram: (a) submissão ao império da lei, que era a nota primária de seu conceito, sendo a lei considerada como ato emanado formalmente do Poder Legislativo, composto de representantes do povo, mas do povo-cidadão; (b) divisão de poderes, que separe de forma independente e harmônica os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, como técnica que assegure a produção das leis ao primeiro e a independência e imparcialidade do último em face dos demais e das pressões dos poderosos particulares; (c) enunciado e garantia dos direitos individuais5. Cabe lembrar que com o surgimento de vários movimentos sociais, dentre os quais o sindicalismo, terminou por exigir do Estado uma atuação mais concreta, tutelando alguns interesses sociais, como por exemplo, a proteção aos direitos dos trabalhadores que foram largamente lesados com a revolução industrial. Ademais, a idéia de Estado de Direito passou a ser interpretada de maneiras diversas, ora associando-a a um conjunto de normas estabelecidas pelo Legislativo, passando a ser um mero Estado da legalidade, destituído de qualquer conteúdo comprometido com a realidade vivenciada pelos indivíduos e suas necessidades. 4 5

GRUPPI, Luciano. Tudo começou com Maquiavel. As concepções de Estado em Marx, Engels, Lênin e Gramsci. Tradução de Dario Canali. São Paulo: L&PM, 1987, p. 22-23. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. Op. Cit., p.112-113.

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Kildare Gonçalves Carvalho adverte: “O Estado de Direito, conceito político que serviu historicamente ao liberalismo, vem-se transformando hoje em dia em Estado legalista, onde nem sempre o cumprimento da lei reflete a justiça (...)”.6 Diante da afirmação abstrata da liberdade aos indivíduos, passou-se a verificar o agravamento das desigualdades, especialmente no campo do trabalho, em que os trabalhadores eram considerados livres para contratar, mas de fato acabavam tendo que aceitar condições subumanas em troca do posto de trabalho. Segadas Vianna resume a situação criada pelo Estado Liberal de Direito: (...) o Estado Liberal posto via-se como mero espectador [...] sua função seria apenas garantir a ordem social e política, com a força organizada, com os tribunais distribuindo justiça e dando aos particulares ampla liberdade de ação econômica (...). Na verdade, o Direito apenas garantia a riqueza patrimonial do homem, esquecendo que este, além dos bens materiais, tinha direitos morais que necessitavam ser protegidos, e que a própria dignidade humana estava rebaixada diante da opressão econômica7. Com o questionamento em torno da importância de um Estado mais atuante que visasse muito mais aos interesses sociais gerais do que os individuais, tem-se o campo fértil ao surgimento de uma nova concepção estatal denominada “Estado social de Direito” ou “Estado do bem-estar”. Assim, o Estado abre mão do seu papel abstencionista e passa a desenvolver prestações positivas como as de natureza trabalhista e previdenciária. Gregório Assagra de Almeida manifesta-se: Na verdade , o Estado Social não surgiu de uma verdadeira transformação e rompimento com o Estado Liberal. É um Estado onde se implantou uma política de proteção de alguns direitos sociais, mas sem adaptar o seu sistema jurídico para a tutela dos interesses primaciais da sociedade, como os decorrentes dos conflitos transindividuais. Não é verdadeiramente um novo Estado, mas um remendo de Estado.8 (grifo nosso) O Estado Social de Direito buscou superar a concepção liberal individualista e implementar ações que visassem superar o Estado mínimo. Segundo Dalmo de Abreu Dallari: 6 7 8

CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional. Teoria do Estado e da Constituição. Direito constitucional positivo. 10.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 348. SUSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de direito do trabalho. 19.ed. São Paulo: LTr, 2000. p.36-37. ALMEIDA, Gregório Assagra. Direito Processual Coletivo Brasileiro. Um novo ramo do Direito Processual. São Paulo; Saraiva, 2003, p.53.

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(...) este Estado, mais do que qualquer outro, assume responsabilidades no sentido de distribuição de bens materiais, proporcionando a todos os indivíduos pelo menos um padrão mínimo, abaixo do qual não se permitirá que qualquer um seja obrigado a viver9. É possível perceber que o Estado Social de Direito ganhou contornos que tentaram superar a igualdade meramente formal do Estado de Direito. No entanto, verificou-se que em nenhuma das modalidades foi dada a ênfase necessária na participação efetiva dos cidadãos. Acrescente-se ainda que após a segunda guerra mundial surgiram conflitos e necessidades diversificadas que passaram a exigir uma nova organização do Estado, de suas diretrizes e da própria sociedade. Gregório Assagra de Almeida10 esclarece que a democracia não poderia continuar sendo visualizada apenas pelo seu ângulo formal como fez o Estado Liberal, mas deveria buscar a efetivação dos direitos fundamentais e a preservação da dignidade das pessoas. Assim, o Estado não poderá mais ficar passivo diante de injustiças sociais, mas deverá intentar todos os esforços para conscientizar a sociedade acerca da importância da preservação dos seus direitos, inclusive intensificando a participação popular. A Constituição Federal de 1988 estabelece no art. 1° que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito tendo como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Menciona em seu próprio parágrafo único que todo poder emana do povo, que poderá exercê-lo diretamente ou por meio de representantes eleitos. Além dos fundamentos mencionados, ao constituir-se num Estado Democrático de Direito, a República Federativa do Brasil traçou os seguintes objetivos (art. 3°): constituir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. A partir dos fundamentos e dos objetivos da sociedade brasileira conclui-se que o projeto a ser implementado pelo Estado Democrático de Direito não é uma tarefa simples. No entanto, deverá ser buscada tendo sempre como norte a diminuição das desigualdades e a exaltação da dignidade dos cidadãos. José Afonso da Silva11 traça os princípios do Estado Democrático de Direito, elencando, primeiramente, o da constitucionalidade, que consiste na observância do texto constitucional elaborado a partir da vontade do povo, que vincule todos os poderes e atos 9 10 11

DALLARI, Dalmo de Abreu. O futuro do Estado. São Paulo: Moderna, 1980, p.133. ALMEIDA, Gregório Assagra de. Op. Cit., p. 55-56. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. Op. Cit., p.122.

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deles provenientes. Já o princípio democrático propriamente dito impõe a organização de uma democracia participativa e representativa que tenha como alvo a ser alcançado a eficácia dos direitos fundamentais. Outro princípio de grande relevância é a criação de um sistema de direitos fundamentais que envolva os individuais, os coletivos, os sociais e culturais, formando uma grande teia de proteção aos mesmos. Com o princípio da Justiça Social exposto nos artigos 170 e 193 da CR/88 tem-se a tarefa da construção de uma democracia não só social mas também cultural. O autor elenca ainda os princípios da igualdade (artigo 5°, caput e I), da divisão dos poderes (artigo 2°), da independência do juiz (artigo 95), da legalidade (artigo 5°, II) e da segurança jurídica (artigo5°, XXXVI a LXXIII). Todos esses princípios devem ser manejados visando uma finalidade comum, que é uma modificação concreta na vida das pessoas no sentido de transformações sociais amplas e profundas. Eles são instrumentos a serem utilizados na construção do Estado Democrático de Direito desenhado no texto constitucional e que não pode ficar apenas no campo técnico, mas precisa romper as amarras que ainda impedem a sua concretização. Gregório Assagra de Almeida acrescenta um importante princípio do Estado Democrático de Direito, qual seja, o da máxima prioridade na proteção e efetivação dos direitos transindividuais: (...) o Estado, em todos os seus níveis, deve dar prioridade aos direitos sociais fundamentais da sociedade, como aos relacionados ao meio ambiente, ao patrimônio público, cultural, cuja violação e falta de proteção, pelas conseqüências sociais produzidas, retiram o verdadeiro valor substancial da democracia e deslegitima, pela omissão, a atuação estatal12. Com tal princípio, é possível notar que a proteção dos direitos dos indivíduos ganha uma dimensão maior, coletivizada, cuja defesa atinge grupos inteiros e, até mesmo, todos os indivíduos indistintamente. Após essa prévia menção das fases do Estado Moderno e da demonstração de que elas não foram lineares, mas que surgiram a partir de circunstâncias sociais, políticas e econômicas, cabe verificar qual o papel a ser desempenhado pelo Ministério Público, em especial o do Trabalho, diante das novas exigências do Estado Democrático de Direito. Diante disso, cabe a seguinte indagação: está a atuação do MPT dirigida à realização do Estado Democrático de Direito, em especial, na busca da concretização dos direitos humanos dos trabalhadores? A própria Constituição Federal de 1988 colocou o Ministério Público entre as funções essenciais à justiça, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, conforme preceitua o art. 127. 12

ALMEIDA, Gregório Assagra de. Op. Cit., p. 58.

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Ao Ministério Público do Trabalho coube a defesa da ordem jurídico-trabalhista e dos interesses sociais dos trabalhadores, buscando a observância aos seus direitos mínimos, como uma remuneração digna, condições saudáveis de trabalho entre outras situações que afrontam a dignidade da pessoa. Apesar da previsão de tal tarefa no próprio texto constitucional, ainda estamos distantes da instauração efetiva do Estado Democrático de Direito, pois ainda assistimos atônitos a graves violações dos direitos humanos dos trabalhadores. Entre tais violações é corriqueiro verificar a exposição de trabalhadores a condições análogas à de escravo13, a um ambiente insalubre e perigoso sem qualquer providência para neutralizar ou eliminar tais agentes e a negativa reiterada de cumprimento de outros direitos básicos como férias e 13° salário. Ainda é possível encontrar quem defenda que a economia sofreu mudanças significativas, tendo que se adequar à globalização e buscar competitividade no mercado, precisando, para tanto, diminuir custos com o trabalhador. Este tipo de argumento busca mascarar a real situação de desrespeito aos direitos humanos dos trabalhadores e contra isso o Ministério Público do Trabalho deve intentar todos os esforços. Diante dessa realidade, há a necessidade de questionarmos o discurso jurídico-trabalhista que vê na precarização das relações de trabalho uma saída para o aumento da lucratividade de muitas empresas. Com isso, têm-se conseguido destruir vários núcleos de direitos fundamentais e afastar o cumprimento dos objetivos da República Federativa, em especial, a erradicação da pobreza, da marginalização e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária em que a dignidade e o valor social do trabalho sejam realmente seus fundamentos. Assim, uma das tarefas primordiais para a consolidação democrática é a concretização dos direitos humanos, inclusive dos trabalhadores, e o Ministério Público do Trabalho é um canal de acesso à justiça para os indivíduos lesados, buscando a respectiva reparação. No entanto, a missão do MPT não se esgota na busca da tutela jurisdicional após a ocorrência do dano, mas também na utilização de meios de prevenção dos conflitos advindos do desrespeito aos direitos sociais formalmente assegurados. O Ministério Público dispõe de inúmeros meios não só para a busca da prevenção dos conflitos trabalhistas, mas também para a tutela judicial dos interesses que defende. No entanto, apesar de a instituição ter um papel fundamental na estrutura do Estado Democrático de Direito, a sua própria atuação precisa estar permeada por um espírito democrático. Para tanto, precisa buscar cada vez mais a sua legitimidade, criando canais 13

Em junho de 2005 foram libertadas 1200 pessoas da Destilaria Gameleira, no Município de Confresa (MT), sendo a maior operação de libertação de trabalhadores já ocorrida no país. Leonardo Sakamoto relata as condições de trabalho: “Todas as características confirmam a existência de escravidão contemporânea, do aliciamento ao endividamento e à impossibilidade de deixar o local. Os trabalhadores foram levados de Pernambuco, Maranhão e Alagoas, iludidos pelas falsas promessas de salários e boas condições de serviço dadas pelos ‘gatos’ (contratadores de mão-de-obra a serviço da usina)”. Disponível em www.agenciacartamaior.uol. com.br. Acesso em 17/06/2005.

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de contato com a sociedade. Dessa forma, é preciso criar vínculos com a população, buscando uma atuação pedagógica, esclarecendo direitos e deveres e prestando contas do que tem sido feito. Na medida em que as pessoas, especialmente a classe trabalhadora, conhecerem o Ministério Público do Trabalho, sabendo quais as suas possibilidades de atuação, criar-se-á uma esfera de maior legitimidade do órgão. É inconcebível que tal atuação fique restrita a funções burocráticas, desenvolvidas na clausura dos gabinetes. Atitudes dessa natureza, retiram credibilidade da instituição e trazem a descrença no seu potencial de transformação social. Torna-se fundamental que o Ministério Público do Trabalho seja fiel à sua destinação constitucional, atuando com incisividade sobre as mazelas que afrontam a classe trabalhadora, que tem no seu posto de trabalho também uma forma de afirmação de sua cidadania. O Ministério Público do Trabalho precisa mostrar-se para a sociedade e para isso não pode ficar restrito ao trabalho burocrático. As Procuradorias precisam abrir suas portas, organizando audiências públicas, fóruns, seminários e conversações com os sujeitos envolvidos na relação de emprego. Além disso, os canais de veiculação de informações como rádio e televisão podem ser utilizados para levar esclarecimentos aos cidadãos. Em outras palavras, o Ministério Público do Trabalho deve mostrar-se sensível e permeável aos anseios sociais. A democratização da atuação do órgão deve ocorrer também com os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Não se está aqui defendendo que o Ministério Público reative seus laços com tais poderes, no sentido de uma dependência, como já se verificou em outros momentos históricos. Ao contrário, a independência e autonomia constituem avanços de extrema importância. O que se defende uma aproximação para o acúmulo de esforços e cooperação mútua. O Ministério Público do Trabalho precisa de uma interação constante com o Ministério do Trabalho, através de sua fiscalização. Tal proximidade terá que ser não apenas de procedimento, mas também física, ocupando tais órgãos prédios próximos e elaborando um sistema integrado de informática em que seja possível o acompanhamento das diligências e a cooperação de seus agentes. Tal parceria, mesmo incipiente, já tem se mostrado positiva14. Com o Poder Legislativo a aproximação poderá ocorrer através do encaminhamento de projetos de lei de interesse da classe trabalhadora, participação em comissões e nos debates legislativos. Com o Poder Judiciário é possível a celebração de convênios para a elaboração de projetos de atuação conjunta na sociedade, como orientação jurídica e mutirões com a finalidade de visitar empresas, escolas e outras entidades, para um trabalho pedagógico. 14

Tal grupo é formado por membros do MPT, auditores fiscais do Ministério do Trabalho e a cooperação da Polícia Federal.

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Para democratizar a atuação do Ministério Público, com ênfase no do Trabalho, é preciso um diálogo com grupos organizados e entidades não-governamentais que tratem de assuntos relacionados à sua área de atuação, como grupos de direitos humanos, de defesa da criança e do adolescente, da pessoa deficiência, entre outras. Essa aproximação poderá repercutir de maneira muito positiva, pois elas seriam incentivadas a atuar ainda mais no interesse dos grupos que representam. O que ocorre hoje é que o Ministério Público tem atuado de maneira isolada, por exemplo, no manuseio da Ação Civil Pública. Tal legitimação é concorrente, porém tem estado muito restrita ao órgão ministerial. Para que outras entidades possam atuar é preciso que sejam conscientizadas e orientadas, sendo que a aproximação defendida seria um caminho para tanto. Achiles de Jesus Siquara acredita que o Ministério Público é um órgão de defesa da sociedade e deve buscar o envolvimento dos grupos sociais na formação da vontade coletiva, e complementa: Entendo que o MP deve começar a trabalhar nas questões de organização popular. Não podemos admitir um Ministério Público com esse discurso retórico, e querendo competir com a sociedade, ou ser o eterno tutor dela, absolutamente. A instituição tem que enfrentar o seu próprio paradoxo: na medida em que o povo se conscientizar e a cidadania plena for se formando, a instituição naturalmente, tendo êxito na sua atuação, vai se afastar desse processo.15 (grifo nosso) A opinião acima se mostra de grande importância ao enfoque que se tem buscado no presente trabalho, qual seja, de que o Ministério Público precisa estreitar seu relacionamento com a sociedade. Mas não é desejável que a instituição transforme-se na sua eterna tutora. Isso quer dizer que o Ministério Público tem como uma de suas tarefas o despertar da cidadania, incentivando uma participação popular crescente. No entanto, ainda estamos longe de atingir essa meta, pois o que se vê é um constante desrespeito aos direitos dos indivíduos com a sonegação reiterada do mínimo necessário para uma vida digna. Ao mesmo tempo, os grupos sociais de defesa de tais direitos ainda não têm conseguido, salvo as exceções, se erguer e efetivar, em sua plenitude, tais lutas. Nesse contexto, o órgão ministerial tem uma função essencial na construção dessa consciência social, necessitando, para tanto, que haja uma democratização no desenvolvimento de suas atividades e que o diálogo seja sempre um ponto marcante. Assim, o Ministério Público, com o enfoque na área trabalhista, ainda precisa atuar como tutor da maioria que tem seus direitos lesados, mas deve implementar sua atuação buscando o 15

SIQUARA, Achiles de Jesus. Mesa Redonda: Perspectivas de atuação do Ministério Público. In: SADEK, Maria Teresa. (Org). O Ministério Público e a Justiça no Brasil. São Paulo: Sumaré/Idesp, 1997, p. 42.

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amadurecimento da cidadania e da participação da sociedade na luta pela implementação de seus direitos. Para a consecução de tais tarefas pelo MPT, mostra-se indispensável que a sua atuação esteja voltada para um viés humanista.

3. O Ministério Público do Trabalho como Instituição Vocacionada à Concretização dos Direitos Humanos dos Trabalhadores Estamos vivenciando um período de discussão acerca da importância dos direitos humanos e a Carta Magna de 1988 acolheu amplamente tal idéia. Prova disso encontramos no art. 1º, III da CR/88 que estabeleceu como um de seus princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana, que deve constituir a espinha dorsal de todo o sistema legal e dos demais direitos ali estabelecidos. Flávia Piovesan salienta a importância de tal princípio: O valor da dignidade humana impõe-se como núcleo básico e informador do ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional instaurado em 1988. A dignidade humana e os direitos fundamentais vêm constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo sistema jurídico brasileiro. Na ordem de 1988 esses valores passam a ser dotados de uma especial força expansiva, projetando-se por todo o universo constitucional e servindo como critério interpretativo de todas as normas do ordenamento jurídico nacional.16 Como se observa na opinião acima, uma nova forma de ver e refletir acerca do ordenamento jurídico foi inaugurada com a Constituição de 1988 que elencou um rol significativo de direitos dos indivíduos. Dentro de tal perspectiva, o Ministério Público teve suas funções institucionais ampliadas, conforme o art. 127 e seguintes, tendo entre elas a defesa da ordem jurídica e dos direitos indisponíveis dos cidadãos. Toda atividade dos juristas precisa ser repensada à luz da nova ordem constitucional. Também o Ministério Público do Trabalho, pois possui uma gama de possibilidades de atuação tanto judicial quanto extrajudicialmente que poderá ser muito mais profícua se estiver voltada à concretização dos direitos insertos no texto constitucional. 16

PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998, pp. 215-216.

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As várias metas17 institucionais do MPT estão diretamente relacionadas à busca da dignidade da pessoa humana. Uma atuação efetiva dos Procuradores do Trabalho, principalmente através dos mecanismos de prevenção de conflitos, poderá ser um diferencial significativo na busca de uma condição de vida mais digna para os trabalhadores. A práxis do Procurador do Trabalho deverá estar norteada pelo primado dos Direitos Humanos, ou seja, a reflexão teórica não pode prescindir da análise da história, dos principais aspectos e da afirmação dos Direito Humanos e a sua atividade cotidiana deverá ter sempre como norte a busca pela concretização de tais valores. João Baptista Herkenhoff menciona um conceito de Direitos Humanos: Por direitos humanos ou direitos do homem são, modernamente, entendidos aqueles direitos fundamentais que o homem possui pelo fato de ser homem, por sua própria natureza humana, pela dignidade que a ela é inerente. São direitos que não resultam de uma concessão da sociedade política. Pelo contrário, são direitos que a sociedade política tem o dever de consagrar e garantir.18 (grifos do autor) Os Direitos Humanos vêm ao encontro da dignidade dos indivíduos, proporcionando o seu resguardo e sua observância. Há uma variação na denominação, ora conceituando-se como Direitos Humanos, ora como Direitos Fundamentais. Fábio Konder Comparato esclarece que a distinção entre “Direitos Humanos” e “Direitos Fundamentais” tem raiz na doutrina germânica: Estes últimos são os direitos humanos reconhecidos como tais pelas autoridades às quais se atribuiu o poder político de editar normas, tanto no interior dos Estados quanto no plano internacional; são os direitos humanos positivados nas Constituições, nas leis, nos tratados internacionais.19 Segundo o autor, desde que positivados, os Direitos Humanos receberiam a denominação de Direitos Fundamentais. Os Direitos Humanos ainda padecem de efetivação em nosso país e isso se deve à falta de esclarecimento por parte da população, à falta de políticas públicas tendentes à sua implementação, como também ao descaso com que os profissionais do Direito tratam 17

18 19

Foram criadas várias coordenadorias divididas em áreas estratégicas de atuação do MPT. Tais como a questão do meio ambiente de trabalho, o combate à exploração infantil, a erradicação do trabalho escravo e a promoção da igualdade de oportunidades e eliminação da discriminação. HERKENHOFF, João Baptista. Curso de Direitos Humanos. Gênese dos Direitos Humanos. São Paulo: Acadêmica. 1994, pp. 30-31. COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação histórica dos Direitos Humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva. 2003. p. 57.

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o assunto. Tal fato pode ser explicado, dentre outros motivos, pela ausência de discussão sobre Direitos Humanos nos bancos universitários. Um estudante de Direito não pode ficar durante cinco anos numa faculdade sem ter acesso a esse conteúdo e sua apreensão crítica. Restringindo-se ao membro do Ministério Público do Trabalho, sua práxis transformadora pode ser verificada em inúmeros problemas sociais. Um Procurador atuante terá condições de ser um agente concretizador dos Direitos Humanos, por exemplo, quando participa de Fóruns, Conselhos, palestras, workshops e tantos outros eventos, em que se discuta ações nas mais diversas áreas como: discriminação de trabalhadores, medicina e segurança do trabalho, trabalho escravo, do menor, entre outros. Faz-se necessário buscar várias formas de implementação dos Direitos Humanos, pois ainda não há efetividade. Norberto Bobbio ratifica tal entendimento: (...) o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não era mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los. (...) Com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.20 Também nesse sentido, denuncia João Baptista Herkenhoff: As proclamações solenes de direitos sofrem o perigo de um desgaste contínuo quando se percebe o abismo existente entre os postulados e a situação concreta. O freqüente desrespeito aos Direitos Humanos, praticado sem remédio por governos, gera, na opinião pública, a descrença na efetividade desses Direitos. (...) É indispensável a criação de mecanismos eficazes que promovam e salvaguardem o império desses Direitos na civilização atual.21 Como salientou Norberto Bobbio, não se trata de enunciar tais direitos, pois isso já tem sido feito, mas o grande desafio que se coloca diante de todos nós é a sua efetivação. É falacioso pensar-se que somente a previsão legal de tais direitos será suficiente para garanti-los. No mesmo sentido, não é suficiente apenas a discussão teórica da importância dos Direitos Humanos. Por isso, é que temos insistido que somente na práxis é que avançaremos, ou seja, na reflexão e ação transformadoras. 20 21

BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 10. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 25. HERKENHOFF, João Baptista. Curso de Direitos Humanos. Op. Cit., pp. 62–63.

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Em seus estudos acerca dos Direitos Humanos, João Baptista Herkenhoff concluiu que: “Os Direitos Humanos não são estáticos, não ficaram estabilizados na Declaração Universal proclamada em 1948. Continuaram e continuam sendo elaborados e constituídos no processo dialético da história”.22 Observa-se que a noção de Direitos Humanos continua a se desenvolver e, mais uma vez mostra o seu caráter dinâmico, segundo João Baptista Herkenhoff: De 1948 para cá, as concepções sofreram mudanças e continuarão a sofrer mudanças, no envolver do processo histórico, porque é da essência do Direito o dinamismo, o caráter dialético. (...) à medida que os fracos adquirem consciência de sua dignidade e da possibilidade de se tornarem fortes pela união e pela luta, pactos legais menos injustos, podem ser conquistados. É dentro dessa dinâmica histórica que o Direito se constrói. Os Direitos Humanos não estão fora desse processo de criação contínua e conflitiva do Direito.23 (grifo nosso) Norberto Bobbio também defende o caráter histórico dos Direitos Humanos: “(...) os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”.24 Com base nas opiniões acima é possível afirmar que os direitos humanos sofrem variações e estão sempre suscetíveis de ampliação, dependendo do momento histórico e das transformações experimentadas pela sociedade. Essa dinâmica dos Direitos Humanos exige que os profissionais do Direito em geral estejam constantemente interessados nessa temática e na sua práxis. Fábio Konder Comparato também acentua o caráter de permanente mudança nos Direitos Humanos, ao mesmo tempo em que defende a irreversibilidade dos direitos já declarados: A exigência de condições sociais aptas a propiciar a realização de todas as virtualidades do ser humano é, assim, intensificada no tempo, e traduz-se, necessariamente, pela formulação de novos direitos humanos. É esse movimento histórico de ampliação e aprofundamento que justifica o principio da 22 23 24

HERKENHOFF, João Baptista. Direitos Humanos. A construção Universal de uma utopia. São Paulo: Santuário, 1997, p. 182. Ibidem, pp. 179-180. BOBBIO, Norberto. Op. Cit., p. 05.

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irreversibilidade dos direitos já declarados oficialmente, isto é, do conjunto de Direitos fundamentais em vigor.25 O autor, ao defender o princípio da irreversibilidade dos direitos já declarados, mostra-nos que não há qualquer contradição entre a luta pela declaração de novos direitos ao mesmo tempo em que se busca a efetivação daqueles que já estão positivados. Isso ocorre porque uma “dimensão” de Direitos não substitui as anteriores, mas se soma numa aglomeração de direitos tendentes à concretização da dignidade da pessoa humana. J. J. Gomes Canotilho também salienta a irreversibilidade dos direitos: O princípio da democracia económica e social aponta para a proibição de retrocesso social. A ideia aqui expressa também tem sido designada como proibição de > ou da >. Com isto quer dizer-se que os direitos sociais e económicos (ex.: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjetivo.26 (grifo do autor) E complementa o autor ao referir-se à dignidade humana: A “proibição de retrocesso social” nada pode fazer contra as recessões e crises económicas (reversibilidade fáctica), mas o princípio em análise limita a reversibilidade de direitos adquiridos (...) em clara violação ao princípio da proteção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito económico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana.27 A dignidade da pessoa humana deve estar no centro das preocupações do poder público e de toda a sociedade. O profissional do Direito também tem grande contribuição na efetivação cada vez maior desse valor. Chaïm Perelman esboça uma opinião nesse sentido: Se é o respeito pela dignidade da pessoa que fundamenta uma doutrina jurídica dos direitos humanos, esta pode, da mesma maneira, ser considerada uma doutrina das obrigações humanas, pois cada um deles tem a obrigação 25 26 27

COMPARATO, Fábio Konder. Op. Cit., pp. 65-66. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6.ed Coimbra, Portugal: Almedina, 2002, pp. 338-339. Ibidem, p. 339.

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de respeitar o indivíduo humano, em sua própria pessoa bem como na das outras. Assim também o Estado, incumbido de proteger esses direitos e de fazer que respeitem as obrigações correlativas, não só é por sua vez obrigado a abster-se de ofender esses direitos, mas tem também a obrigação positiva da manutenção da ordem. Ele tem também a obrigação de criar as condições favoráveis ao respeito à pessoa por parte de todos os que dependem de sua soberania.28 Cumpre repetir que a dignidade da pessoa deve estar no Ordenamento Jurídico como uma “espinha dorsal”, sustentando a interpretação do sistema normativo e a prática de todos os profissionais de Direito. Referindo-se especificamente aos membros do Ministério Público, o legislador constituinte de 1988, determinou, como função institucional, a defesa e proteção dos direitos do homem. Centralizando o foco de análise nos direitos dos trabalhadores, vê-se que o desrespeito avoluma-se a cada dia, com grande dificuldade de tutela individual dos mesmos. Por isso, uma das tarefas de suma importância atribuída ao Ministério público do trabalho é a busca pela tutela coletiva. Atualmente pode-se concluir que a defesa dos interesses metaindividuais em juízo corresponde ao reconhecimento de que o processo centrado numa visão individualista vem cedendo terreno para as demandas de massa, que tendem a alcançar resultados mais céleres para o grupo lesado como um todo, evitando-se decisões contraditórias e, por conseguinte, insegurança jurídica para os jurisdicionados. Como destaca Raimundo Simão de Melo: A ação civil pública (...) tem por finalidade proteger os direitos e interesses metaindividuais – difusos, coletivos e individuais homogêneos – de ameaças e lesões. Destaca-se sua importância porque tais direitos são bens do povo e, por isso, constituem interesse público primário da sociedade, que, na maioria das vezes, não podem ser tutelados individualmente porque o cidadão é quase sempre um hipossuficiente que não dispõe de condições técnicas, financeiras e até psicológica para enfrentar os poderosos em demandas que duram muitos anos perante o Judiciário. Em outros casos, nem mesmo compensa a atuação individualizada diante do baixo valor econômico provocado pela lesão ao interesse individual decorrente da agressão coletiva.29

28 29

PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 401. MELO, Raimundo Simão de. Ação Civil Pública na Justiça do Trabalho. São Paulo: LTr, 2002., p. 93.

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Em síntese, pode-se citar algumas vantagens que a tutela coletiva proporciona: a) permite a concentração de diversos litígios em uma única demanda; b) prestigia os princípios da economia e da celeridade processuais; c) torna o acesso ao Poder Judiciário mais democrático, pois ameniza barreiras técnicas e psicológicas, permitindo, no caso da Justiça do Trabalho, que empregados a acionem durante a relação de emprego com menos riscos de perder o emprego; d) evita a insegurança jurídica no que tange a decisões conflitantes. Uma atuação coletiva do Ministério Público do Trabalho pode amenizar um quadro que se mostra muito comum nas relações de trabalho, qual seja, o empregado não aciona o Judiciário Trabalhista durante o vínculo, pois teme ser dispensado de seu posto de trabalho. Como é sabido, no direito comum prevalece o princípio da renunciabilidade, onde o detentor de um direito disponível pode dele privar-se voluntariamente. Já no direito do trabalho, o que ocorre é exatamente o oposto, o princípio que prevalece é o da irrenunciabilidade, o qual deve ser entendido como a impossibilidade do empregado renunciar voluntariamente às vantagens que o direito do trabalho lhe concede. A palavra “voluntariamente” é bem empregada nesse caso, pois, se assim não fosse, o que ocorreria na prática seria a imposição por parte do empregador para que o empregado renunciasse a seus direitos, sendo extremamente difícil provar a coação. A tutela coletiva objetiva eliminar, ou pelo menos minimizar, essas e outras barreiras que o processo comum impõe ao jurisdicionado, com destaque, nesse estudo, à atuação do Ministério Público do Trabalho. O trabalhador poderia ser extremamente beneficiado com a atuação do Órgão Ministerial sob vários aspectos. O primeiro consiste na prevenção de conflitos, na medida em que fossem celebrados termos de ajuste de conduta com as empresas, visando a regularização de inúmeras situações que estejam agredindo os direitos garantidos aos trabalhadores. Quando não for possível uma atuação preventiva, o Ministério Público poderá ingressar em juízo através de ações coletivas. Com isso, evita-se o constrangimento de empregados que vêem seus direitos consumidos pela prescrição em decorrência do temor de ingressarem com uma reclamação trabalhista durante o vínculo e perderem seus postos de trabalho. Assim, o Ministério Público do Trabalho teria também o papel de levar ao Judiciário uma grande parcela da população que fica excluída do sistema de justiça, funcionando como um agente propulsor da concretização dos direitos fundamentais dos trabalhadores. Já se mencionou que o membro do Ministério Público precisa ter sensibilidade com os problemas sociais, tendo que ser alguém que esteja atento às mazelas vividas pela maioria da população. Paulo Bonavides alerta quanto ao Ministério Público: Se há regra ou princípio de política jurídica, que o rege, esta regra ou princípio é a norma que deve fazê-lo obediente aos fins institucionais insculpidos

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no art. 127 da Carta Magna. Descumpridos esses fins, o órgão se descaracteriza e se desfigura pelo falseamento de seus valores e de seus objetivos.30 Vê-se que a instituição ministerial recebeu a incumbência da defesa dos Direitos Humanos no âmbito interno da nação brasileira. É possível notar que existem vários organismos internacionais que visam a tal objetivo, mas no âmbito interno é preciso que haja um órgão forte e independente e que possa defender tais direitos até mesmo contra o próprio governo, sendo o Ministério Público do Trabalho a instituição vocacionada para tanto. Tal conclusão fica clara quando se examina o atual arcabouço legal que rege as hipóteses de atuação do Ministério Público do Trabalho, especialmente na Lei Complementar 75/93, em que se pode encontrar inúmeros dispositivos que dão seqüência à missão constitucional de defesa dos direitos humanos dos trabalhadores. O art. 83 da referida lei menciona um rol de atividades inerentes ao órgão, dentre as quais destacam-se: a promoção da ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho para a defesa de interesses coletivos em caso de desrespeito aos direitos sociais constitucionalmente garantidos (III) e a propositura das ações cabíveis para declaração de nulidade de cláusula seja de contrato, acordo ou convenção coletiva que viole as liberdades individuais ou coletivas ou os direitos individuais indisponíveis dos trabalhadores (IV). Cabe destacar ainda que tal órgão poderá propor as ações necessárias à defesa dos direitos de menores, incapazes e índios, desde que decorrentes da relação de trabalho (V) e recorrer das decisões da Justiça do Trabalho quando entender necessário e mesmo nos processos em que esteja atuando como fiscal da lei, além de poder pedir a revisão das Súmulas TST. É possível observar que o Ministério Público do Trabalho possui várias linhas de atuação, seja como parte ou como custos legis. No entanto, não se pode fazer uma divisão nítida entre tais atividades, pois a Constituição de 1988 coloca como norte a ser atingido a defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis qualquer que seja a forma de atuação.31 Paulo Bonavides argumenta acerca da atuação insuficiente do Ministério Público: Em verdade, os elementos de reflexão, hauridos no exame da realidade tocante aos papéis já referidos que ele executa, levam à melancólica conclusão de que ponderável parcela da instituição nem sempre corresponde na práxis ao rigor do mandamentos constitucional, a saber, 30 31

BONAVIDES, Paulo. Os dois Ministérios Públicos do Brasil: o da Constituição e o do Governo. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 56. Nesse sentido, opina Carlos Henrique Bezerra Leite: “É preciso, pois, a formação de uma nova mentalidade a respeito da atuação judicial do Ministério Público junto à Justiça do Trabalho, que seja consentânea com a ideologia da nova ordem constitucional, que prestigia a unidade e a individualidade como princípios institucionais do Parquet, e com a sistemática adotada pelo CDC e LACP, que não estabelece divisor de águas na atuação judicial da Instituição. In: LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Ministério Público do Trabalho: doutrina, jurisprudência e prática. Op. Cit., p. 101.

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nem sempre se tem havido com fidelidade político-jurídica aos preceitos institucionais da Lei Maior.32 Para que se possa reverter tal quadro exposto pelo autor, o ponto de tensão principal a ser equacionado consiste no despertar da consciência dos seus membros para a importância de um trabalho sistemático e constante nessa área. Acreditamos que, com a Constituição de 1988, travou-se um marco na tentativa de amadurecimento democrático de toda a população brasileira e, inclusive, do próprio MPT. Apesar de lento, tal processo é gradual e já é possível colher bons frutos. Nesse sentido, o desafio que se coloca diante da instituição é a criação de uma cultura dos Direitos Humanos que deve perpassar toda e qualquer ação dos seus membros. A necessidade de lidar com novos instrumentos de atuação como o Termo de Ajuste de Conduta, o Inquérito Civil e com uma nova visão da própria jurisdição, agora considerada também sob o prisma metaindividual, também são desafios colocados à instituição. Associado a tudo isso, vê-se a propagação de direitos e interesses referentes indistintamente a uma categoria de sujeitos, que reformularam as concepções individualistas que sempre foram muito marcantes no ordenamento jurídico brasileiro. Sob essa ótica, torna-se fundamental assegurar o efetivo combate às lesões ocasionadas a uma série de direitos não titularizados por pessoas individualmente consideradas, mas que extrapolam determinado grupo, podendo atingir toda a coletividade. É inegável o papel de articulador social a ser cumprido pelo Ministério Público do Trabalho aproximando não só as partes envolvidas na atividade laboral, como também sindicatos, órgãos governamentais e não-governamentais. Criando-se uma teia de promoção dos direitos humanos dos trabalhadores é possível colocar o ser humano no centro das preocupações e das políticas públicas. O Ministério Público do Trabalho tem todo o potencial para ser o elo que irá contribuir, decisivamente, para o atingimento dos objetivos traçados pela Constituinte de 1988, em especial a construção de uma sociedade mais justa, com a erradicação da pobreza e a diminuição das desigualdades sociais.

Referências ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Processual Coletivo Brasileiro. Um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003. BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 10. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992. 32

BONAVIDES, Paulo. Os dois Ministérios Públicos do Brasil. Op. Cit., p. 56.

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BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. ___. Os dois Ministérios Públicos do Brasil: o da Constituição e o do Governo. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed. Coimbra, Portugal: Almedina, 2002. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Nothfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1988. CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional. Teoria do Estado e da Constituição. Direito constitucional positivo. 10.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação histórica dos Direitos Humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva. 2003. COPETTI, André. Direito penal e estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000 DALLARI, Dalmo de Abreu. O futuro do Estado. São Paulo: Moderna, 1980. GRUPPI, Luciano. Tudo começou com Maquiavel. As concepções de Estado em Marx, Engels, Lênin e Gramsci. Tradução de Dario Canali. São Paulo: L&PM, 1987. HERKENHOFF, João Baptista. Curso de Direitos Humanos. Gênese dos Direitos Humanos. São Paulo: Acadêmica. 1994. ___. Direitos Humanos. A construção Universal de uma utopia. São Paulo: Santuário, 1997. LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Ministério Público do Trabalho: doutrina, jurisprudência e prática. 2. ed. São Paulo: LTr, 2002. ___. O Inquérito Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. MELO, Raimundo Simão de. Ação Civil Pública na Justiça do Trabalho. São Paulo: LTr, 2002. PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998. SADEK, Maria Teresa. (Org). O Ministério Público e a Justiça no Brasil. São Paulo: Sumaré/Idesp, 1997. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. SÜSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de Direito do Trabalho. 19. ed. São Paulo: LTR, 2000.

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1

1. Introdução Após mais de duzentos anos de reconhecimento e extensão dos Direitos Humanos no cenário mundial estes continuam sendo constantemente violados. E isto não é diferente no Brasil, que mesmo após a incorporação no Sistema Jurídico por intermédio dos tratados internacionais que possuem força supralegal, por vezes a eficácia destes direitos encontra-se a mercê da vontade da Administração Pública. Não bastasse o descaso com estes direitos, a cada dia que passa são encontradas novas escusas para a ineficácia destes, mesmo em um momento em que a Constituição é vista como marco a ser seguido por todas as esferas do Direito, conforme o propõe o neoconstitucionalismo. Assim, por ser fiscal dos demais Poderes estatais – legislativo e executivo –, cabe ao Judiciário, observados dados limites, exercer o Controle das Políticas Públicas e, ainda, exercitar o papel daqueles para implementação destas.

2. Dos Direitos Humanos O signo lingüístico Direitos Humanos tem, neste artigo tem como intuito designar os direitos fundamentais, quais sejam aqueles que encontram-se positivados no arcabouço jurídico estatal. Em complemento, afirma Dallari (1998, p. 7) que o termo Direitos Humanos é

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Acadêmica de Direito do 5° ano de na Faculdade de Direito de Vitória - FDV. Contato: [email protected].

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[...] uma forma abreviada de mencionar os direitos fundamentais da pessoa humana. Esses direitos são fundamentais porque sem eles a pessoa humana não consegue existir ou não é capaz de se desenvolver e participar plenamente da vida. Joaquim Salgado (1996, p.15), trata o tema com brilhantismo ao afirmar que estes direitos se diferenciam dos demais, posto que se configuram com matrizes daqueles, dando-lhes fundamentos. Ainda, aduz o autor (SALGADO, 1996, p.17-18) que estes apresentam dois aspectos, o formal e o material. O primeiro remete aos direitos garantidos por intermédio de sua prescrição, qual seja em uma Constituição, enquanto ao segundo é atribuído o aspecto valorativo, produto da cultura civilizada a qual determina o conteúdo das constituições. São estas últimas, portanto, fruto de uma perspectiva antropológica do próprio homem. Deste modo, esses direitos devem estar sacramentados na Constituição, expressão volitiva maior de uma dada sociedade. Tratando do tema lembra Salgado que para melhor entender os direitos fundamentais há de se observar que: [...] a sua evolução obedece a um processo histórico de três momentos: em primeiro lugar, aparece a consciência desses direitos em determinadas condições históricas; em segundo lugar, a declaração positiva desses direitos como aceitação formal de todos, nas constituições; e, finalmente, a sua realização como concretos e eficazes. (SALGADO, 1996, p.16) Seguindo a mesma lógica de Salgado com relação aos Direitos Fundamentais da Pessoa Humana1, pondera Paulo Otero que estes, diferentemente do que se costuma atribuir, não surgiram com a Revolução Francesa. A luta pela concretização desta proteção surge desde quando o homem se entendeu como um ser, in verbis: [...] a história da preocupação com os direitos da pessoa humana não começa com a Revolução Francesa, antes lhe é muito anterior: toda historia da humanidade se resume a uma permanente luta pela progressiva consciência e afirmação dos direitos do ser humano como pessoa. (OTERO, 2007, nota prévia) 1

Vale-se André de Carvalho Ramos (2001, p.28-19) desta expressão para designar o mesmo que Direitos Humanos por entender que esses direitos são essenciais à qualquer homem. Deste modo, corrobora sua afirmação com a idéia outrora apresentada por José Roberto Franco Fonseca (apud RAMOS, 2001, p. 29) que afirma que o termo que “mais se adequaria para a designação dessa categoria especial de direito subjetivos seria direitos fundamentais da pessoa ou direitos esse essenciais à personalidade” para distingui-los dos direitos adquiridos.

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Deste modo, com a Revolução Francesa pode-se dizer que houve a positivação de um anseio enraizado nos indivíduos e, consequentemente, na parcela da sociedade que era alheia àqueles que detinham o poder. Com o fim da Primeira Guerra Mundial, juntamente com o discurso liberal de cidadania os Direitos Humanos ganharam novo impulso por intermédio da positivação de diversos temas arraigados ao direito social, econômico e cultural em Constituições, sendo estas modificações fruto de uma influência da concepção marxista-lenista, conforme lembra Flávia Piovesan (2004, p.51-55). No contexto atual brasileiro a proteção a estes direitos, já conferida pela própria Constituição, foge ao âmbito Estatal por intermédio de tratados e posturas que são pactuadas internacionalmente. No Brasil, particularmente, por força do parágrafo 4° do artigo 5° da Constituição de 1988, esses tratados internacionais ingressam no ordenamento jurídico com força supralegal2, sendo assim, acima das leis e abaixo da Constituição. No entanto, necessário observar que dentro do âmbito nacional, muitos dos direitos fundamentais positivados não são dotados de eficácia, já que embora tenham como característica a aplicação imediata, por força do parágrafo 1° do art. 5° da Constituição de 1988, estes não auto-executáveis, posto que depende de outras medidas tanto do executivo, quanto do legislativo para sua eficácia. Portanto, quando estes não o fazem, cabe ao Judiciário o papel de fazer com estas proteções sejam colocadas em prática. Outrossim, alerta Castro que: [...] Percebe-se, assim, com facilidade, que o Estado e a sociedade brasileira estão falhando quanto à garantia das condições mínimas da existência humana digna, sem o que inviabiliza-se a fruição dos direitos fundamentais do homem. Sem o mínimo existencial, que a doutrina alemã designa de existenzminimum, frusta-se o sistema supralegal de proteções essenciais, aprofundando-se o fosso do nominalismo e do semantismo constitucional, ou seja, frustra-se a efetividade da maioria das normas constitucionais. Melhor pensando, cinde-se a eficácia social da Constituição, que passa a operar seletivamente: efetiva-se para uma minoria em condições de desfrutar da plenitude os direitos básicos à dignidade humana, mas esmorece para aqueles destituídos de meios para viver no cotidiano o padrão existencial idealizado pela Lei Maior (2003, p.281).

2

Tema que ainda gera muita discussão em âmbito nacional, hoje, a maioria dos estudiosos possuem o entendimento apresentado.

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Desta forma, caso não haja o exercício da Administração Pública para que se faça valer para todos, indiscriminadamente, todas as medidas protetivas resguardadas na Constituição, recairemos em um modelo semelhante ao Estado absolutista, cujos atos políticos eram realizados ao bel prazer do detentor do poder e, consequentemente, para resguardar seus interesses.

3. O Controle Jurisdicional como Forma de Concretização dos Direitos Humanos A partir da Revolução Francesa o estado príncipe3 (1994, 164 p.) passou a se voltar aos anseios sociais, que se encontravam totalmente alienados à nobreza, vez que, até então, o intuito era o de satisfazer os interesses daqueles que detinham os poderes dos soberanos. Lembra Otero (2007, nota prévia), que em termos da busca pela concretização dos direitos humanos decorre de longa data, sendo uma falácia, atribuir como marco temporal para a concretização destes a carta que estatuiu os Direitos do homem. No entanto, em termos de políticas públicas, de fato, foi neste momento histórico que o modelo Estatal passou a ser modificado. Posteriormente, vivenciou-se o “Welfare State”, também conhecido como estado de Bem Estar Social. Modelo em que o Estado assumia diversas responsabilidades em prol dos cidadãos. Direitos, então reconhecidos como fundamentais, eram de inteira responsabilidade do Estado. Exemplos que são compartilhados nos dias atuais são os da saúde, da educação e da segurança. Lembra Appio (2005, p.144) que [...] Os direitos sociais surgem como decorrência dos movimentos revolucionários de 1848, a partir de conseqüências práticas do socialismo utópico. Sendo que a Constituição francesa de 1848 já previa alguns direitos de natureza social como “o direito ao ensino primário gratuito, à educação profissional e à igualdade das relações entre patrão e empregado”. No entanto, com o Neoliberalismo tal modelo passou a ser insustentável, o Estado já não podia arcar com todas essas benesses. Porém, o Estado Brasileiro continuou como detentor e “distribuidor” de diversos desses direitos fundamentais. Obviamente, como os demais Estados, este modelo não consegue ser sustentado pelo Estado que continua como garantidor e não cumpre por seus meios naturais. Qual seja, por sua própria iniciativa. No Brasil, a título exemplificativo, nota-se um sistema de saúde deficitário em que as pessoas dormem e morrem nos corredores de hospitais. 3

Referencia alusiva ao Estado soberano descrito por Nicolau Maquiavel em seu livro “O Príncipe”.

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O mesmo ocorre com a educação. Crianças sofrem pela falta de vagas em creches e em escolas. Percebe-se, ainda, que poucos destes alunos da rede de ensino fundamental público chegam à cursar uma Universidade Pública. Por um outro viés, vê-se as rede de ensino particular com um nível de inadimplência exorbitante, vez que a falta de vagas na rede pública leva às redes particulares arcarem com o déficit estatal. Deste mesmo modo, no âmbito da saúde, outrora tratado, percebe-se que os planos de saúde respondem cada vez mais pela falta de tratamentos nas redes públicas. Alerta Appio (2005, p. 147), com relação ao Estado brasileiro que [...] no tocante à saúde e a educação, o próprio constituinte se encarregou de garantir os recursos necessários ao seu financiamento, através de um sistema automático de repasses, que elimina a discricionariedade do Poder Executivo em sede de formulação da lei orçamentária anual. A forma como estes recursos serão revertidos passa pelo controle da sociedade e, com especial ênfase, de conselhos previstos em lei [...]. Com relação à segurança é o medo da população que resta reluzente, percebe-se uma preocupação crescente para a aquisição de aparatos de segurança privada que vão desde câmeras de segurança à carros blindados e seguranças particulares. Portanto, o intuito deste artigo é tratar dos direitos humanos no âmbito social. Nestes casos já trazidos à baila tratamos de questões positivadas, mas que dependem de iniciativas da Administração Pública seja com projetos de implementação seja por normatização de condutas, principalmente nos casos de normas programáticas. Vislumbra-se que muitas vezes o problema não é só concernente à verba. Este se exterioriza na falta de Políticas Públicas, projetos e vontade administrativa. Assim, indaga-se como solucionar o problema?

3.1. O Conceito de Políticas Públicas Para a compreensão do tema, primeiramente, deve ser analisado o que são as Políticas Públicas. Afirma Appio (2009, p. 131-132) que políticas públicas são “programas de intervenção estatal a partir de sistematizações de ações do Estado voltadas para a consecução de determinados fins setoriais ou gerais baseadas na articulação entre a sociedade, o próprio Estado e o mercado”. Marcus Aurélio de Freitas Barros (2008, p. 70-71), por sua vez, afirma que as políticas públicas são, a mais das vezes,

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[...] compostas por uma quantidade enorme de normas, de atos administrativos, de licitações, contratos etc, Exigem, também, necessariamente, dispêndio de recursos. Dificilmente se compõem de um único ato isolado. No geral, demandam verdadeiros processos: seja legislativo, administrativo ou até financeiro. Já Fabio Konder Comparato (2003, p.248-249), vai mais além e explica que esta [...] é um programa de ação governamental. Ela não consiste, portanto, em normas ou atos isolados, mas sim numa atividade, ou seja, uma série ordenada de normas ou atos, do mais variado tipo, conjugados para a realização de um objetivo determinado. [...] Toda política, como programa de ação, implica, portanto, uma meta ser alcançada e um conjunto ordenado de meios ou instrumentos aptos à consecução desse resultado. [...] o que organiza e da sentido a esse complexo de normas e atos jurídicos e a finalidade, a qual pode ser eleita pelos Poderes Públicos ou a eles imposta pela Constituição e leis. (grifos nossos) Pondera, Barros (2008, p. 73) que estas políticas públicas possuem certa limitação mesmo sendo dever de um poder, em tese, completamente independente. Resta salientar que a Constituição será responsável por este controle. Deste modo tem-se, precipuamente, que as políticas públicas são atos da Administração Pública que podem ser exteriorizados de diversas formas para a implementação de dadas normas sejam elas Constitucionais ou infraconstitucionais, mas que determinam ao poder público certas ações, que não podem ultrapassar os limites impostos pela própria norma, sob pena de ferir o principio da legalidade.

3.2. Da Separação dos Poderes Ora, já que a implementação das Políticas Públicas é papel do Estado, cabe a ele por intermédio dos três Poderes que o sustenta realizá-las. Com relação à divisão dos Poderes, há de ser lembrado que Montesquieu (2000, 851p.), ainda em meados do século XVII, já tratava da ficta tripartição dos poderes. Assim, o Estado para ele se subdivide em três grandes grupos: o legislativo, o executivo e o judiciário. Cada qual funciona de forma autônoma, com atividades específicas4 para 4

Tema que não é objeto de analise é a possibilidade dos poderes realizarem funções específicas dos outros em determinados momentos. Isto pois, esta-se tratando das funções típicas de cada poder.

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cumprir seus deveres. No entanto, cabendo aos demais realizar o controle de efetividade dos demais. É neste momento em que surge o judiciário como guardião do cumprimento das políticas públicas, principalmente os que remetem aos direitos humanos. Acerca do tema, afirma Eduardo Appio (2005, p. 149) [...] A separação dos Poderes se assenta na especialização das funções do Estado e não veda o exercício a titulo ocasional, de uma determinada função por órgão não- especializado, desde que compatível com sua atividade-fim. [...] É da própria natureza do Poder Judiciário interferir sobre o exercício das atividades dos demais Poderes na medida em que é o Poder constitucionalmente responsável pela função de verificar a compatibilidade dessas atividades com a Constituição federal. (grifos nossos) No entanto, quando se trata de direitos fundamentais tal lógica deve ser afastada, posto que, conforme já tratado anteriormente os direitos protegidos pela Constituição, sejam os originários, sejam os incorporados tanto pelo parágrafo 3°, quanto pelo parágrafo 4° do art. 5, possui aplicabilidade imediata por força, também constitucional do parágrafo 1 do mesmo artigo. Desta forma, todos os Poderes devem juntos garantir que estes direitos sejam resguardados, caso um não o faça cabe ao outro realizá-lo dentro de seus limites de atuação.

3.3. O Controle Jurisdicional Atualmente, vivencia-se uma mudança de paradigmas dentro do Ordenamento Jurídico Brasileiro. Isto pois, surge o movimento neoconstitucionalista, com intuito de colocar a Constituição como Centro do Ordenamento Jurídico, papel que até pouco tempo atrás competia ao Código Civil. Assim, todos os atos devem estar em conformidade com o que preceitua a Carta Magna Brasileira. Deste modo, deve o poder público observar preventivamente e posteriormente a Constituição. Tanto este fato é observado que pode ser citado como exemplo as Comissões de Constituição e Justiça que existem para analisar a viabilidade de determinada lei ser editada pelo legislativo sem que venha a ferir a Constituição. Ora, expresso na Constituição Brasileira, certas medidas, conhecidas como normas programáticas, que dependem da atuação Estatal. Assim, para a efetivação de dadas normas, principalmente com relação às normas de eficácia limitada. Deste modo, existe um controle jurisdicional caso o legislador não exerça seu papel de legislar, criar normas, qual seja o mandado de injunção.

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Porém, se para a verdadeira eficácia da norma não faltar qualquer elemento normativo e sim prático, o que fazer? Poderá a parte prejudicada buscar a tutela destes direitos? Nota-se, precipuamente, a exigência de práticas Estatais em casos individuais. Percebem-se todos os dias diversos mandados de segurança em face de secretários de saúde para a reivindicação de medicamentos pelo poder público, em decorrência do descumprimento do direito líquido e certo da pessoa que dele necessita. Os juízes, por sua vez, na maioria dos casos, vêm admitindo e apreciando o pleito autoral concedendo-lhe o bem da vida pleiteado e obrigando o poder público à realizá-lo. Américo Bedê Freire Junior (2005, p. 105), incentiva que este controle jurisdicional ultrapasse a esfera individual e torne-se um pleito coletivo passível de audiência pública, in verbis: [...] Efetivamente, é preciso, como estabelecido no processo de controle de constitucionalidade em abstrato, viabilizar uma abertura no processo coletivo, a fim de que toda a sociedade que, de fato, é alcançada pelos efeitos da decisão possa participar ativamente das decisões do processo coletivo. [...] vislumbra-se plenamente compatível com as ações coletivas a introdução de figuras como o amicus curiae e a realização pelo poder Judiciário de audiências públicas. Isto é importante a fim de viabilizar que o juiz, ao analisar a questão coletiva, não seja seduzido por parte da realidade transportada aos autos, mas possa sopesar as questões postas, ouvindo um maior número de opiniões das pessoas que também serão alcançadas pela decisão no processo coletivo. À título de exemplo, no estado do Espírito Santo, fora realizada um audiência pública acerca das cotas raciais nas universidade, fruto da lei municipal de Vitória, Espírito Santo de n° 6.025/2004 que deu ensejo à ADIN de n° 100070023542. Porém, imperioso ressaltar que ao Poder Judiciário não cabe um controle jurisdicional indiscriminado. Isto porque, por este ser “responsável pela fiscalização dos demais Poderes exercentes das funções de governo, não pode substituir esta atividade, a titulo de fiscalizar sua escorreita execução, sob pena de autorizar a intervenção dos Poderes Legislativo e Executivo na atividade judicial” (APPIO, 2005, p. 151-152). Por outro lado, dependendo da atividade a ser realizada pelo poder público fiscalizar sem que nada seja efetuado expõe uma ineficácia do sistema de separação dos poderes. Sendo assim, dependendo da atividade estatal realizada, caberá a intervenção do Poder Judiciário. Por este viés, depara-se o Judiciário com algumas situações discrepantes, das quais duas se destacam: quando não há qualquer previsão legislativa à determinado pleito social e quando há previsão legislativa, muitas vezes com o orçamento, porém cujas atividades administrativas essenciais não acontecem pelo descaso político.

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Ora, no primeiro exemplo a atividade jurisdicional encontra-se cerceada pelo princípio da reserva do possível. Isto porque nada atribuía ao Estado tal responsabilidade, sem qualquer existência legislativa para atuar, o que, recai em uma impossibilidade do Estado agir tendo em vista a falta de um pressuposto essencial às atividades estatais que regem-se pelo princípio da legalidade, qual seja, a lei.

3.3.1. Da reserva do possível Escusa para diversas falta de implementação de políticas públicas ocorrem com fulcro na reserva do possível. Tal expressão remete a idéia de que a administração não pode realizar nada sem que seja observado o principio da legalidade e, ainda, no fato de determinadas políticas serem faticamente. Esta última idéia é bem lembrada por Canotilho (2003, p. 481) quando este afirma que “os direitos sociais só existem quando e enquanto existir dinheiro nos cofres públicos”. Porém ressalta-se que nem sempre é isto que motiva a inércia do Administrador Público, por vezes a barreira se dá com base no elemento volitivo. Obviamente se fossem atender a todas as necessidades não haveria recursos suficientes para suprir-las. Destarte, deve ser observado que o referido princípio escusa, deve ser condizente com as prioridades e não com as necessidades. Lembra Homem de Siqueira inspirado por Scaff e Walzer que [...] não se pode confundir prioridade com necessidade, as necessidades são, de fato, infinitas, mas nem por isso todas dever ser atendidas, mesmo porque há aquelas supérfluas e aquelas prioritárias. Deste modo, os recursos financeiros devem ser empregados para atender o que é prioritário, podendo caso haja sobra, atender o que é supérfluo. Esta é, pois, a verdadeira razão de ser da reserva do possível (2008, p. 160). Exemplificando, a construção de um posto de saúde para atender determinada população é uma medida prioritária, já a construção de um campo de futebol é uma medida supérflua. Deste modo, caso existam reservas para sua construção não existe qualquer óbice, porém, entre os dois deve o posto de saúde ser construído primeiro, pois tem como intuito final a proteção à vida. Bedê Junior traz uma boa conclusão acerca da utilização do argumento da reserva do possível pela administração: [...] Enfim, a reserva do possível é um argumento que deve ser analisado e sopesado na hora da decisão judicial. Não para impedir a fixação da responsabilidade estatal, mas para que seja construída uma Forma de viabilização

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de uma Constituição compromissada com a dignidade da pessoa humana e com os direitos fundamentais. (2005, p. 79) Pelo exposto, razão tem Dimas Macedo (2003, p. 59) ao afirmar que “o desrespeito ao texto da Constituição Federal e a supervalorização das normas administrativas e dos procedimentos extralegais são situações que concorrem para agravar a problemática dos Direitos Humanos no Brasil”. Ora, uma vez que os direitos fundamentais possuem eficácia imediata deixar de implementá-las por descumprimento de medidas formais, que mesmo sendo normas de densidade inferior à Constituição demonstram um entrave criado, para justificar a inobservância destes direitos que deveriam produzir seus efeitos de pronto.

3.3.2. Das omissões normativas e o Judiciário No tocante à este tema, existem casos em que não há qualquer dado legal exigindo o cumprimento de determinadas políticas públicas. Por outro lado existem casos em que existe a norma, mas ela por si só não representa uma eficácia plena, vez que depende de outra norma. Nestes casos, poderia o Judiciário intervir? Lembra Appio que [...] Nos casos em que já exista um programa social implementado pelo governo, a partir da interpretação que confere um dever genérico previsto no texto constitucional ou, ainda, que já exista um programa social previsto de forma específica em lei aprovada pelo Congresso Nacional, o Poder Judiciário deverá interferir de forma positiva, de molde a assegurar a proteção da isonomia constitucional. [...] Ocorre que o princípio da isonomia impõe um tratamento idêntico, por parte do Estado, em favor de todos os cidadãos que se encontrem em uma mesma situação de necessidade, não se podendo limitar a assistência social aos valores previstos na lei orçamentária anual, sob pena de tratamento desigual. [...] A proteção da isonomia constitucional se apresenta, portanto, como uma injunção necessária decorrente do próprio art. 5° da Constituição Federal de 1988. Muito embora a formulação de uma política pública seja responsabilidade dos Poderes Executivo e Legislativo, a sua execução demanda um tratamento isonômico que será assegurado pelo Poder Judiciário através de uma concepção substancial acerca do papel da Constituição. (2005, p. 174) Já, quando se trata dos Direitos Fundamentais previstos no art. 5° da Constituição brasileira de 1988, deve-se ter certa cautela. Isto porque os direitos ali previstos são

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espécies de direitos difusos, todos são sujeitos, mas não há como se observar quem são estes destinatários exceto se a análise se der com fulcro em dado caso concreto. Assim, a proteção conferida pelo Judiciário à estas demandas dar-se-á de forma concreta ao caso individual. Destaca, ainda, Eduardo Appio (2005, p. 172-173) que uma necessidade individual não é uma demanda individual per si, na verdade esta tutela de determinado caso concreto representa “a busca de proteção de um direito coletivo através de uma demanda de natureza individual” sob pena do Judiciário estar interferindo em uma atividade administrativa vinculada. Isto porque caso o administrador público exerça uma proteção individual sem que a lei o permita ou mesmo por intermédio de uma política social estará ferindo o principio da legalidade. Desta mesma forma estará agindo o juiz, vez que [...] Da mesma forma que o juiz não poderá atender a uma necessidade individual (como a determinação da compra de um medicamento especial não previsto em qualquer programa social, por exemplo), com base no dever de proteção dos direitos fundamentais individuais [...] sem que exista um programa prévio de proteção social já implementado. Caso o programa já esteja sendo executado, cumpre ao juiz assegurar o exercício do direito fundamental individual, através de uma prestação positiva ainda não implementada e que vise atender a toda a população, estará afrontando o principio da isonomia entre os cidadãos. Note-se, portanto, que a aparente ofensa ao principio da separação dos Poderes não é verdadeira tônica deste debate, o qual deve ser procedido a partir da discussão acerca do papel do Estado na distribuição de recursos públicos entre os cidadãos. A decisão judicial deve servir como instrumento de proteção da isonomia entre os cidadãos e não como fatos de desequilíbrio das prestações sociais, impondo à Administração Pública a criação de um programa específico e exclusivo que venha a atender a uma situação individual. (APPIO, 2005, p.173) De fato, não é isto que se busca. Porém, há que se lembrar que as políticas públicas que tratam da saúde, refletem o direito fundamental à vida. Resta claro na jurisprudência atual a busca, por intermédio de indivíduos do resguardo da proteção conferida constitucionalmente, principalmente na seara da saúde, mas que se encontra deficitária em diversas localidades brasileiras. Muitos dos pleitos são ajuizados por intermédio do sucedâneo recursal conhecido como mandado de segurança, em regra em face dos secretários de saúde dos Estados da federação em busca de remédios essenciais para a sobrevivência, mas que não se encontram disponíveis para a população.

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Por certo as estimativas dos governos para determinadas áreas dos direitos sociais não correspondem à realidade, deste modo o que ser feito por aqueles indivíduos que acabam fadados a ineficácia da Administração Pública? Destaca-se que para a manutenção do programa social não há qualquer limitação de fontes de recursos. Lembra Appio que [...] Um programa de proteção social que tenha sido criado, por exemplo, com a finalidade de assegurar medicamentos especiais gratuitos a todos que deles necessitem não estar jungido pelos limites impostos pela lei de responsabilidade fiscal, motivo pelo qual os recursos deverão ser disponibilizados diretamente do orçamento, mesmo que em prejuízo de outras rubricas já aprovadas. Cabe ao Poder Executivo encaminhar as alterações necessárias à Casa Legislativa de acordo com suas opções próprias. A vinculação da Administração Publica a este comando legal é automática e não permite o exercício de um poder incontrastável porque não existe discricionariedade administrativa neste caso específico (2005, p.177). Bedê Junior, por seu turno, afasta qualquer empecilho criado pela separação dos poderes em sede de efetivação dos Direitos Fundamentais, isto porque, de acordo com o autor [...] deve ser frisado que não apenas os direitos de primeira geração devem ser protegidos pela separação dos poderes, mas todas as gerações de direitos fundamentais, já que é uma das características dos direitos fundamentais é a sua indivisibilidade. Todas as dimensões dos direitos fundamentais, portanto, podem (devem) ser protegidas pelo principio em comento. [...] Constatamos, assim ser um arrematado absurdo apontar o principio da separação dos poderes como entrave à efetivação dos direitos fundamentais, uma vez que tal interpretação aniquila a efetividade (correta aplicação) da separação dos poderes. (2005, p. 38-39) Além disto, analisando os direitos fundamentais destaca-se que a Constituição concedeu-lhes em seu art. 5°, parágrafo 1° eficácia imediata, in verbis: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Ademais assevera Luis Freddyur Lovar (2008, p. 04) que [...] Crucial resulta, entonces, para el ejercicio de los derechos humanos, el reconocimiento y su protección; por tanto, el amparo jurídico de ellos está conformado por el conjunto normativo e institucional que no sólo los

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reconoce, sino que posibilita al titular del mismo acudir ante la autoridad pública encargada de su eficacia, para que ésta haga real el postulado consagrador y protector de derechos y, por ende, se convierta en garante de la efectividad del goce de tales atributos, ante la violación o amenaza de éstos por parte de las autoridades públicas o de los particulares5 [...]. Deste modo, independentemente de políticas positivas da administração pública, por ser a Constituição de 1988 a lex legum de todo o Sistema Jurídico e por serem os direitos fundamentais por esta protegida, devem ser implementadas medidas que garantam a eficácia delas. Sejam elas por vontade da administração, sejam requeridas pelos próprios sujeitos de direitos ante a ameaça ou violação seja pelo administrador público, seja por um particular. Neste sentido, hão de ser realizados por aqueles que integram quaisquer dos Poderes estruturantes do Estado todas as medidas cabíveis a fim de que sejam concretizados e resguardados os direitos resguardados na Carta Magna.

4. A Eficácia dos Direitos Humanos Atualmente, vive-se em todo o mundo uma busca incansável pela positivação dos Direitos Humanos. Percebe-se, porém que à estes direitos de tamanha importância somente a positivação não remete ao seu efetivo resguardo. Obviamente, quando normas deste diapasão se encontram dentro de um Sistema de Direito já foi dado um enorme passo para sua efetividade, posto que estes podem ser exigidos quando descumpridos sem qualquer óbice legal. Por outro lado, a partir do momento em que não existe o exercício destes direitos, seja na proteção, seja na exigência desta proteção a letra torna-se conforme jargão jurídico “letra morta”. Neste ponto, quando incorporadas por um sistema interno, como no Brasil pela Constituição de 1988 por intermédio de seu art. 5°, parágrafos 3° e 4°, percebe-se a importância destes diretos para toda a sociedade brasileira. No entanto, quando o próprio Estado, que se diga protetor dos direitos Constitucionais, deixa de cumpri-los, principalmente pela falta de medidas protecionistas já ressalvadas no texto Constitucional deflagram um descaso, camuflado, deste. Assim, cabe 5

Crucial resulta, então, para o exercício dos direitos humanos, o reconhecimento e sua proteção; portanto, o amparo jurídico deles esta condizente com o conjunto normativo e institucional que além de os reconhecer, vez que possibilita ao titular do mesmo requerer proteção perante a autoridade pública encarregada de sua eficácia para que seja real o postulado consagrador e protetor dos direitos e, por fim que se converta em garantidor da efetividade do gozo de tais atributos, ante a violação ou ameaça destes direitos por parte das autoridades públicas ou mesmo de particulares (tradução livre).

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ao Judiciário, fiscal das medidas do legislativo e executivo e fiel protetor dos direitos fundamentais, fazer com que estes direitos sejam protegidos e, quando necessários, atuantes. Deste modo, exposto está o grande problema dos Direitos Humanos, cujo rol é extenso e detalhado, mas que dá pequenos passos para a eficácia material, pois a formal, como já visto, foi e vem sendo conquistada a duras penas. A nova e essencial face destes direitos é a concretização material, que no caso ora trazido, depende diretamente do incentivo e vontade da Administração Pública.

5. Conclusão Embora o Brasil tenha adotado a filosofia do sistema de Montesquieu com a tripartição dos Poderes, isto não significa que o Judiciário não possa interferir no controle das políticas públicas para além de mero fiscal da lei com a determinação de que o legislativo realize a feitura de determinada lei capaz de promover eficácia plena à uma norma de eficácia limitada, por força de decisão em mandado de injunção. Em sede de Direitos Humanos, cuja melhor nomenclatura para este estudo seria Direitos Fundamentais, poderá o Judiciário exercer a função tanto legislativa, quanto executiva quando houver uma omissão parcial, total ou inexistência de determinada lei. Isto porque, conforme outrora exposto, estes direitos possuem eficácia imediata de acordo com a Constituição, que é cerne de todo o Sistema Jurídico. Obviamente, tais poderes não fazem do Judiciário um “superpoder”, melhor ou mais forte que os demais, tão somente faz com que os Direitos resguardados sejam de fato protegidos. Desta forma, deve-se afastar o óbice criado pela administração pública com intuito de proteger e de implementar os Direitos Fundamentais. Assim, com a mudança de posturas na análise dos textos normativos, bem como com o ativismo judicial, aqueles direitos formalmente protegidos, passam a possuir uma proteção material e isto é o que de fato importa para os Direitos Humanos, aliás, para todos os direitos e, principalmente, para os sujeitos de direitos. Portanto, estar-se-á atingindo um novo patamar dos Direitos Humanos, vez que saem do papel como meros programas ou direitos formalmente protegidos e passam a ter eficácia.

Referências APPIO, Eduardo. Controle Judicial das Políticas Públicas no Brasil. Paraná: Juruá, 2009. BARROS, Marcus Aurélio de Freitas. Controle Jurisdicional de Políticas Públicas: parâmetros objetivos e tutela coletiva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008. BRASIL. Constituição [da] República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2009.

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Preliminary Remarks There is a new intriguing frontier for judicial dialogue: the potential beginning of an era of cooperation between the European Court of Justice and some constitutional courts. Recently, the Belgian,1 Austrian,2 Lithuanian,3 and-lastly-Italian4 Constitutional Courts accepted to raise the preliminary reference to the ECJ. Constitutional Courts are progressively accepting the cooperative mechanism set up by art. 234 of the European Community Treaty (hereafter ECT); the latest episode of this new trend is an historical decision by the Italian Constitutional Court (hereafter ICC). The aim of this work is to reflect on the latest trend of the relationship between Constitutional Courts (thereinafter CCs) and the European Court of Justice (thereinafter ECJ) within the first pillar5. This article is divided into three parts: 1. in Part I, after briefly recalling the cases in which CCs other than the ICC raised preliminary references, the article will focus on the Italian case; *

1 2 3 4 5

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García Pelayo Fellow, Centro de Estudios Politicos y Constitucionales, Madrid. A slightly different version of this paper has been published in F.Fontanelli-G.Martinico-P.Carrozza (eds.), Shaping rule of law through dialogue: international and supranational experiences, Europa Law Publishing, Groningen, 2009. Cour d’Arbitrage, 19 Febr.1997, no. 6/97, available at www.arbitrage.be/fr/common/home.html. VfGH, 10 March 1999, B 2251/97, B 2594/97, available at www.vfgh.gv.at/cms/vfgh-site . Lietuvos Respublikos Konstitucinis Teismas, decision of 8 May 2007, available at www.lrkt.lt/dokumentai/2007/ d070508.htm. Corte Costituzionale, sentenza no. 102/2008 and ordinanza no. 103/2008, available at www.cortecostituzionale. it. The preliminary reference was raised during principaliter proceedings. The situation in the third pillar is in fact very different as the tensions existing between CCs and ECJ about the European Arrest Warrant saga demonstrate. For an overview on that see: J. Komarek, “European Constitutionalism and the European Arrest Warrant: in search of the limits of contrapunctual principles”, Jean Monnet Working paper, 10/05 and O.Pollicino, “New Emerging Judicial Dynamics of the Relationship Between National and the European Courts after the Enlargement of Europe”, Jean Monnet Working Paper, 14/08.

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2. in Part II, after a summary of the main reasons which compelled the ICC to change its strategy, it will try to identify the macro-reasons which might favour a new cooperation between CCs and ECJ, namely the margin of appreciation doctrine-to which the ECJ refers in the latest years-and the emersion of an untouchable core of absolute rights (cfr. Schmidberger6) in the case-law of the ECJ. 3. In Part III, the article will refer to the problematic factors still existing between these courts. One should pay attention to these, before “officially” affirming that a new era of cooperation between courts is beginning.

Part I: the phenomenon in a nutshell Accepting the risk associated with simplification, one can identify three kinds of position with regard to the possibility for CCs to raise the preliminary reference to the ECJ7: a) Some Courts have denied the possibility to raise the preliminary question to the ECJ. This is the case of German Bundesverfassungsgericht (BvG) and of the ICC with regard to incidenter proceedings. Courts can support this conclusion in several ways: some of them do not consider themselves as “judges” pursuant to art. 234 ECT (for instance, the ICC did so until 2008). Although in Solange I8 the BVG accepted to be in principle bound by art. 234 ECT, it is interesting to notice that, in practise, the German constitutional judges never raised the question, as Mayer points out9. Indeed, if in order to solve a question of EC law interpretation in the proceedings culminating in the 1993 Maastricht decision10 the BVG decided to hear the testimony of the Director General of the Commission Legal Service, this was done precisely to avoid raising the preliminary reference to the ECJ. The position at hand is also that of the Spanish Constitutional Tribunal, according to which the possible contrast between EC and domestic law is a mere question of “legality”, not one of “constitutionality”11. 6 7

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C-112/00, Schmidberger, ECR., 2003, I-5659 The most complete analysis of the relations between national judges and the ECJ is that carried out by M.Claes, The national courts’ mandate in the European Constitution, Hart Publishing, Oxford, 2006. See also F.C. Mayer, “The European Constitution and the Courts”, in A. von Bogdandy- J. Bast (eds), Principles of European Constitutional Law, Hart Publisher, Oxford, 2006, 281- 334. BVerfGE 37, S. 271 ff. F.C. Mayer, “The European Constitution and the Courts”, in A. von Bogdandy- J. Bast (eds), Principles of European Constitutional Law, Hart Publisher, 1-33, Oxford, 2006, 281- 334, 287. BVerfGE 89, 155, available at www.bundesverfassungsgericht.de/en/index.html See on that C. Vidal Prado, El impacto del nuevo derecho europeo en los Tribunales Constitucionales, Madrid, 2004, 156-159.

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b) Other Courts yet have initially denied such a possibility, but later changed their mind and entered a preliminary ruling proceeding. This is the case of the ICC with regard to ordinanza 103/200812. c) Finally, some Courts accepted to raise preliminary questions to the ECJ a long time ago. This is the case of the Belgian and Austrian Courts. The Austrian Verfassungsgerichtshof13 first raised the reference in 1999, four years after Austria’s accession. Yet, the most active CC in this sense is undoubtedly the Belgian Cour Constitutionnelle. This tribunal has set the “record” of preliminary references so far: having a look at the 2008 Annual Report, one can remark that the number of references raised since 1952 is very high (12)14. Moreover, the Belgian Court is the only one to have referred preliminary questions concerning both the interpretation and the validity of instruments of EC law 15. The openness of the Belgian Constitutional Court has historical roots: initially born as an arbiter, the Cour Constitutionnelle “grew into a full-fledged constitutional court”16 just a few years after its creation. The Austrian Verfassungsgerichtshof was a pioneer, too17. Broadly speaking, as this article will argue below, these two courts paved the way for the Italian revirement. Dealing with the Italian case is necessary because the ICC, together with the BvG, has historically been the most famous enemy of the ECJ. This history was enriched by an unexpected decision by the ICC: on April 15, 2008, for the first time in its history, the Court accepted to raise a preliminary question to the European Court of Justice.18 The decision the article is about to comment is relevant for several reasons, which can be summarized as follows:

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Corte Costituzionale, ordinanza 103/2008, available at www.cortecostituzionale.it On the Austrian case see U.Jedliczka “The Austrian Constitutional Court and the European Court of Justice”, Journal of International Constitutional Law, 4/2008, 301-305. http://curia.europa.eu/jcms/jcms/Jo2_7000/annual-report “Thus, the Constitutional Court of Belgium broke at least three records. Among national constitutional courts it is the court that has referred most questions to the ECJ (five, at that time); moreover it is the first to have made preliminary references on the validity of EC law (Money Laundering) as well as on the validity of EU law (Advocaten voor de Wereld)”, T.Vandamme, “Prochain Arrêt: La Belgique! Explaining Recent Preliminary References of the Belgian Constitutional Court”, European Constitutional Law Review, 2008,127–148, 128. Ibidem, 147. “Generally it can be said that, if the Court has jurisdiction in a certain case under The Austrian Constitution--in other words, in a case where a question of constitutionality has to be answered--and has reason to believe that the Austrian provision in question conflicts with a European Law Provision, the Court will move for a preliminary ruling. However, the Court has come in some cases to the conclusion that it is obvious that an Austrian provision conflicts with a European Law Provision and is therefore not applicable and cannot be the subject-matter of a constitutional proceeding. On other occasions, an inferior court has failed to ask the ECJ for a preliminary ruling, even though it was bound to do so. In such cases, the constitutional right to a lawful judge has been violated; the case was reversed and remanded by the Constitutional Court without referring it to the ECJ”, U.Jedliczka “The Austrian Constitutional Court cit, 304. ICC, ordinanza No. 103/2008, available at www.cortecostituzionale.it.

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the ICC accepted the preliminary ruling mechanism under art. 234 ECT, and fully acknowledged the interpretative authority of the ECJ; the ICC confirmed its views on the distinction between the two ways in which the constitutionality of a domestic norm can be reviewed, i.e. direct (principaliter) proceedings and indirect (incidenter) proceedings. It further made it clear that this distinction influences the choice on whether to resort to EC law or not when solving a question of constitutionality;19 in light of the above, this decision marks a veritable shift away from the doctrine of procedural impermeability20 between constitutional procedural law and EC law, which the ICC had devised since the earliest years of its case-law.

In dealing with the questions of constitutionality raised by the referring ordinary judge, the ICC adopted a two-step approach. The Court tackled and solved a first set of issues in judgment No. 102, while it postponed the decision upon a second set of issues, reluctant as it was to rule on those before a suggestion by the ECJ. A careful reading of the decision allows one to draw a distinction between the legal reasoning and the political motivations put forward by the judges. The present article will also describe the context in which this ruling is set, as well as its technical groundings and political consequences21. 19

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The principaliter proceedings is the ordinary definition for constitutional claims lodged directly before the Constitutional Court by the Central Government or the Regions. The incidenter proceedings, on the contrary, consists of a claim filed by an ordinary judge (known as judge a quo, a Latin expression meaning “from which”, since the question stems “from” the judge) and is carried out while the underlying proceedings is pending (it is suspended). The former is a direct review of a piece of legislation which also entails an abstract nature, while the latter is a form of indirect review of legislation that bears a concrete nature (i.e., the outcome of the constitutionality review is decisive for the settlement of the dispute before the referring judge). This article refers to incidenter and principaliter proceedings by using descriptive definitions concerning the quality of the control involved, as the Latin expressions could be misleading for non-Italian readers: namely, I will use indirect/concrete (incidenter) and direct/abstract (principaliter), when referring to this distinction. On this concept see: F.Fontanelli-G.Martinico, Between procedural impermeability and constitutional openness: the 102 and decision of the Italian Constitutional Court, European Law Journal, forthcoming. The Italian Constitutional Court decided to raise the question during a trial opened by the application of the Italian Government and devoted to the so called “Luxury Tax” (“Tassa sul lusso”) established by the Sardinia district authority in 2006 and amended in 2007. In particular, under art. 4 of Law No 4 of the Sardinia Region of 2006, Sardinia imposed a tax on planes and boats (not including cruise ferries, boats used in sport competitions and boats spending the whole year in Sardinia’s harbors); this tax levied from June 1st to September 30th, and payment thereof was due i) in case of each call made in regional airports for the purpose of transport of individuals, and ii) yearly, by the owner of any boat larger than 14 meters who intended to make call at any harbor or mooring point placed on the territory of the Region. The ICC referred the following questions: “(a) Is Article 49 of the Treaty to be interpreted as precluding the application of a rule, such as that laid down in Article 4 of Law No 4 of the Region of Sardinia of 11 May 2006 (Miscellaneous provisions on revenue, reclassification of costs, social policy and development), as amended by Article 3(3) of Law No 2 of the Region of Sardinia of 29 May 2007 (Provisions for the preparation of the annual and long-term budget of the Region-2007 Finance Law), under which the regional tax on aircraft making stopovers for tourist purposes is levied only on undertakings, operating aircraft which they themselves use for the transport of persons in the course of ‘general business aviation’ activities, which have tax domicile outside the territory of the Region of Sardinia? (b) Does Article 4 of Law No 4 of 2006 of the Region of Sardinia, as amended by Article 3(3) of Law No 2 of 2007

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The present article will not deal with the facts out of which the question originated-all the more so because the case is still pending. Rather, it will seek to explain the reasons of such a revirement by the ICC.

The Italian decision in context It is possible to appreciate the groundbreaking nature of such a decision simply by contrasting its findings with the previous case-law on the preliminary reference mechanism. In the past years, case-law of the ICC has been characterized by a sort of procedural mutual exclusion between EC law and domestic constitutional law (that is, the non-usability of EC law within the framework of the domestic constitutional review). The ICC refused to use the preliminary reference on the basis of this exclusion: the ICC does not use EC law as a constitutional parameter; hence, it is not interested in asking for the exact meaning of an EC act, because it would not be relevant for the resolution of the case. Moreover, the ICC recalled another technicality. Since 1995,22 the Constitutional Court has emphasized the nature of its functions and the peculiarity of its task, and consequently refused to raise the preliminary question to the ECJ; nevertheless, we could also maintain that the constitutional review of the national legislation shares some features with the normal jurisdictional function, I will try to provide some short remarks on this point. First of all, scholars have stressed the Constitutional Courts’ distinguishing features, that are rooted (i) in the broadness of the constitutional norms regulating the Court’s activity, (ii) in the inapplicability of the set of general rules on interpretation (codified by Art. 12 of the preliminary provisions to the Civil Code),23 (iii) in the impossibility to

22 23

of the Region of Sardinia, by providing for the imposition of the regional tax on aircraft making stopovers for tourist purposes only on undertakings, operating aircraft which they themselves use for the transport of persons in the course of ‘general business aviation’ activities, which have tax domicile outside the territory of the Region of Sardinia, constitute, within the meaning of Article 87 of the Treaty, State aid to undertakings carrying on the same activities which have tax domicile in the Region of Sardinia? (c) Is Article 49 of the Treaty to be interpreted as precluding the application of a rule, such as that laid down in Article 4 of Law No 4 of 2006 of the Region of Sardinia, as amended by Article 3(3) of Law No 2 of 2007 of the Region of Sardinia, under which the regional tax on recreational craft making stopovers for tourist purposes is levied only on undertakings, operating recreational craft, which have tax domicile outside the territory of the Region of Sardinia and whose commercial operations involve making such craft available to third parties? (d) Does Article 4 of Law No 4 of 2006 of the Region of Sardinia, as amended by Article 3(3) of Law No 2 of 2007 of the Region of Sardinia, by providing for the imposition of the regional tax on recreational craft making stopovers only on undertakings, operating recreational craft, which have tax domicile outside the territory of the Region of Sardinia and whose commercial operations involve making such craft available to third parties constitute, within the meaning of Article 87 of the Treaty, State aid to undertakings carrying on the same activities which have tax domicile in the Region of Sardinia?”. ICC sentenza no. 536/1995, www.cortecostituzionale.it On the peculiarity of the constitutional interpretation see V. Crisafulli, La Costituzione e le sue disposizioni di principio, Milano, Giuffrè, 1952, 11; M. Dogliani, Interpretazioni della Costituzione, Milano, 1982, 90.

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apply those constitutional provisions conceived to regulate the judicial function (since in principle they are addressed to ordinary and administrative judges only), and (iv) in the uniqueness of constitutional proceedings.24 In order to describe the mandate of the ICC the scholars have conceived a fifth function/power (the function of “constitutional control, the supreme guarantee of the Constitution25”), along with the classic tripartite division of powers (legislative, judicial and executive power), and in addition to the fourth function of “political direction” (“indirizzo politico26”), owned by the constitutional subject who is capable of deciding and defining the State’s fundamental policies (in a given historical period), and of adopting “political acts” (that is, acts escaping any judicial review). The Italian Constitutional Court’s revirement, therefore, can be explained as consequence of several factors: • • • • • •

the 2001 constitutional reform, the distinction between the principaliter (direct) proceedings and the incidenter (indirect) proceedings, the “good” example given by the Belgian and Austrian Constitutional Courts, the previous case-law concerning the relationship between the European Court of Human Rights” (hereafter ECHR) and Art. 117, par.1 of the Constitution, the lack of coherence concerning the ICC’s nature (judicial or non-judicial) within the case-law of the Court itself, and the external pressure coming from cases like Traghetti and Köbler.

These six factors are explored here, with the aim of coming across the reasons that might have led the Italian Constitutional Court to review its jurisprudence. A pre-emptive remark is needed, in fact, before entering the analysis of the factors mentioned above: as obvious, the refusal by the Italian Constitutional Court to raise the preliminary question to the ECJ cannot be explained only by technical elements, as it involves also political motivations. The Italian (and German) Constitutional Courts supported their refusal to consider themselves as judges in the meaning of art. 234 ECT with some typically political considerations, such as their poor consideration of the level of protection of fundamental rights provided by the EC, and with the purported non-democratic nature of the Community.27 24

25 26 27

On this, see G. Zagrebelsky, Diritto processuale costituzionale?, in AA.VV., “Giudizio a ‘quo’ e promovimento del processo costituzionale”, Milano, 1990, 105 ff.; A. Pizzorusso, “Uso e abuso del diritto processuale costituzionale”, in AA.VV., Diritto giurisprudenziale, Torino, 1996, 133 ff. M. Cartabia, Taking cit. E. Cheli, Atto politico e funzione di indirizzo politico, Giuffrè, Milano, 1968; G. Grottanelli De Santi, “Atto politico e atto di governo”, in Enciclopedia Giuridica Treccani, Vol. IV, Roma, Istituto della Enciclopedia Italiana, 1988. See, for example, Solange I cit: “The Community still lacks a democratically legitimated parliament directly elected

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However, there are also some important “technical” (i.e. “purely legal”) factors, which can be very helpful to appreciate the Italian Consulta’s coherence, and this is the reason why a study of these judicial practices can be of much importance, even if we acknowledge the influence of the political choices drawn by the Court.

A. The 2001 Constitutional Reform The Italian Constitution’s new Art. 117, paragraph 1 expressly codifies the limit that supra-national obligations represent for domestic law by providing that: “Legislative power belongs to the State and the regions in accordance with the constitution and within the limits set by European Union law and international obligations”. Soon after the reform, the interpretation of this provision divided the scholars.28 According to some of them, Art. 117, paragraph 1 would simply codify the pre-existing situation: it would just grant a sort of a posteriori assent to the European primacy29 as it was developed by the ECJ and accepted across the Community. Other scholars, instead, emphasized the importance of the constitutional status given to the European primacy, and asserted that Art. 117 paved the way for the acceptance of the Italian monist thesis.30 Such a codification would bring about the necessity of centralizing the task of controlling the relationship between EC law and national law31 or-at least-a more active role of the ICC in this respect (along with common judges, who would maintain their role as main guardians of the primacy of EC law).32 The occasion of testing these theories was given in case no. 406/2005, where the ICC accepted a State claim against a regional law where Art. 117, paragraph. 1 was the only parameter of constitutionality invoked, and in case no. 129/2006.33 by general suffrage which possesses legislative powers and to which the Community organs empowered to legislate are fully responsible on a political level”. 28 For an overview, see R. Chieppa, “Nuove prospettive per il controllo di compatibilità comunitaria da parte della Corte costituzionale” in Il Diritto dell’Unione Europea, 3/2007, 493-511, 499 ff.; A. Ruggeri, “Riforma del titolo V e giudizi di “comunitarietà” delle leggi” available at http://www.associazionedeicostituzionalisti.it/dottrina/ordinamentieuropei/ruggeri.html. 29 C. Pinelli, “I limiti generali alla potestà legislativa statale e regionale e i rapporti con l’ordinamento comunitario”, in Foro italiano, 2001, V, 194 ff. 30 F. Paterniti, “La riforma dell’art. 117, comma 1, Cost. e le nuove prospettive nei rapporti tra ordinamento”, in Giur. Cost, 2004, 2101 ss; A. Pajno, “Il rispetto dei vincoli derivanti dall’ordinamento comunitario come limite alla potestà legislativa nel nuovo Titolo V della Costituzione”, in Le Istituzioni del federalismo, 2003, 814-842. 31 S. Catalano, “L’incidenza del nuovo articolo 117, comma 1, Cost. sui rapporti fra norme interne e norme comunitarie”, in N. Zanon (ed.), Le Corti dell’integrazione europea e la Corte costituzionale italiana, Napoli 2006, 129 ff. 32 A. Celotto, “Le fonti comunitarie”, in G. Corso - V. Lopilato (eds), Il diritto amministrativo dopo le riforme costituzionali- parte generale, Milano, 2006, 121 ff. 33 ICC, judgement No. 129/2006, www.cortecostituzionale.it

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In both cases, the Italian Consulta decided to appoint the Italian Constitution Art. 117, paragraph 1 as the only parameter upon which to decide the question, and refrained from using the other constitutional standard of review invoked by the plaintiff. In fact, the Consulta declared the regional laws challenged in this case unconstitutional for the first time, after many “failed attempts”34 (see cases no. 65, 150, 161, 304, 355, 393, 428, 434, 469 of 200535). Although these two decisions do not mention the intentional avoidance of preliminary ruling by the ICC, nevertheless they reflect a certain “judicial activism”, and support the view that the new explicit mention of EC law in Art. 117, paragraph 1 changed the map of the relationship between the ICC and the EC system.

B. The distinction between direct proceedings and indirect proceedings The above mentioned judgments were drawn in a direct proceeding, where the ICC acts as the “true” judge of the controversy, as opposed to indirect proceedings (“incidenter” proceedings), where the “true” judge of the question is the a quo national judge. In direct proceedings EC norms are “interposed norms [norme interposte] that can integrate the parameter for the control of consistency of the regional legislation with Art. 117, par. 1, of the Constitution” (see sentenze no. 129/2006; no. 406/2005; no. 166 and no. 7/2004) or, better, they “make the parameter of Art. 117, par. 1, actually efficient,36 [and this can give rise to a] declaration of constitutional illegitimacy of the regional norms judged incompatible with EC law.”37 Moreover, since no form of appeal against its decisions is foreseen (Art. 137 Cost), the Constitutional Court could not avoid raising the preliminary ruling without infringing the general interest to the uniform application of EC law. According to the Italian Constitution, the legislation’s constitutional review38 can be triggered and pursued in two different ways: indirect proceedings and direct proceedings. In the incindeter proceedings an a quo judge (either ordinary or administrative) can raise the question of constitutionality (i.e. of consistency between the Italian law and the Constitution) before the Constitutional Court during a trial. The Constitutional Court can regard the question as admissible only if it is “relevant” (i.e. significant for the solution of the case) and non-manifestly groundless. 34 35 36 37 38

In these terms R. Calvano, “La Corte costituzionale ‘fa i conti’ per la prima volta con il nuovo art. 117 comma 1 Cost.”, in Giur. Cost., 2005, 4417 ff. See www.cortecostituzionale.it This passage is borrowed from sentenza No. 348/2007. ICC ordinanza No. 103/2008. The task of reviewing the legislation, in the traditional models of centralized constitutional justice, is usually attributed to a ad hoc Constitutional Court.

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On the contrary, direct proceedings are regulated under Constitution, that reads:

by

Art. 127 of the Italian

“(1) Whenever the government regards a regional law as exceeding the powers of the region, it may raise the question of its constitutionality before the Constitutional Court within sixty days of the publication of the law. (2) Whenever a region regards a state law, another act of the state having the force of law, or a law of another region as infringing on its own sphere of powers, it may raise the question of its constitutionality before the constitutional court within sixty days of the publication of said law or act”.

According to the scheme provided therein, in case of a constitutional controversy arising between the Regions and the State, the Government can appeal directly against a regional law, and a Region can appeal directly against a national law, or a law enacted by another Region. In such cases, constitutional proceedings are conceived to resolve disputes between the State and the Regions concerning the limits of their respective powers.39 It is well known that direct proceedings represent another exception to the diffuse review of consistency between internal and Community law (i.e. the power that ordinary or administrative judges have to monitor the consistency between domestic and EC law); as argued above, the ICC had already agreed to rule on the issue of contrasts between national and EC law within this type of proceedings. According to decisions no. 384/1994 and no. 94/1995,40 indeed, a centralized decision could be envisaged when a question of consistency between national and EC law was raised before the ICC via direct proceedings (both by the Regions and by the State). In particular, in case no. 384/1994 the ICC acknowledged that, due to the particular dynamics of direct proceedings (where the role of the ordinary judge-who normally guarantees the respect of EC law-is irrelevant), its refusal to rule on such questions would have implied a dangerous gap in the protection of rights, and a breach of the legal certainty principle. Therefore, it can be said that, due to the unique features of direct proceedings, the residual possibility to involve the Constitutional Court is justified only because the ordinary judge, who is the natural guardian of EC law primacy at domestic level, is totally missing from the scene. 39

40

A huge difference between Regions and State exists: whilst the former can raise the constitutional question only when their sphere of competence is infringed by a State act, the State can raise the constitutional question on a regional norm grounded on any kind of constitutional ‘defect’. Both available at www.cortecostituzionale.it

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Scholars pointed out that, if the Constitutional Court were really coherent with this assumption, it should also provide for the centralization of the questions of consistency between national and EC laws in indirect proceedings.41 Probably, the key to understand the rationale underlying the choice made by the ICC rests in the absence of the a quo judge who normally non-applies the domestic norm in conflict with the EC law in direct proceedings. The distinction between direct and indirect proceedings was initially drawn in case no. 129/2006, where the ICC declared that- as the Court had already had the chance to clarify (see cases no. 406/2005 and no. 166/2004)- EC directives work as interposed norms (“norme interposte”), and can then integrate the constitutional standard of review used in the constitutionality test over regional provisions, as regards their consistency with Art. 117, paragraph 1 of the Constitution. Italian scholars have already stressed how there is no particular reason for confining this view to direct proceedings alone.42 The conflict between national norms and EC norms can be brought about in several ways besides in direct proceedings, as confirmed in an ordinanza raised to the ICC by the Italian Corte di Cassazione (see Corte di Cassazione III Criminal Section, order no. 1414/200643). In that case the ICC’s intervention was urged by the Corte di Cassazione because it was impossible to non-apply the Italian norms in conflict with interpretative ECJ rulings44, since those interpretative rulings were based on an EC provision lacking direct applicability. The question was then referred back to the Corte di Cassazione because in the meanwhile the Italian regulation had been modified,45 and this prevented the ICC from 41 42 43 44

45

M.Cartabia-J.H.H.Weiler, L’Italia in Europa, Il Mulino, Bologna, 2000, 185. S. M. Carbone, “Corte Costituzionale, pregiudiziale comunitaria e uniforme applicazione del diritto comunitario”, in Il Diritto dell’Unione Europea, 3, 2007, 707-717, 711. Recalled by S. M. Carbone, see “Corte Costituzionale cit., 711. In its case-law (mainly in 113/1985 and 389/1989), the Italian Constitutional Court has recognized erga omnes effects to the ECJ’s rulings because they share certain characteristics with the classic EC legal sources. In the Italian Constitutional Court’s reasoning, these interpretive rulings present the normal effect of the classical EC legal sources when they contain the interpretation of EC legal provisions characterized by the following effects: direct applicability and direct effect. This way the Italian Court put ECJ interpretive rulings on an equal footing with classic EC acts (regulations, directives). Following this reasoning, according to the Italian Constitutional Court, the ordinary judge’s duty to non-apply internal law contrasting with the EC law must be extended to the case of contrast between national law and interpretive rulings of the ECJ. The reasoning of the Italian Constitutional Court builds upon the particular position of the ECJ in the EC legal system. The interpretive rulings of the ECJ would be second degree sources because they infer their legal power from the provisions they interpret. In fact, the Italian Court acknowledged the content and effects of the classic Community sources (direct effect and direct applicability) onto ECJ interpretive rulings only if the interpreted provisions have such effects. This is an indirect recognition of the strong role of the ECJ and it implies the extension of the national judge’s obligation to non-apply national law contrasting with the interpretive rulings of the ECJ. This is normally referred to in Italy with the Latin formula jus superveniens, used when an amendment of the applicable regulations results in changing the terms of a preexisting legal relationship, which was born (and regulated) under the previous set of norms.

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Preliminary Reference and Constitutional Courts: Are You in the Mood for Dialogue?

ruling on it (indeed, in cases of ius superveniens the requisite of relevance-see above-can obviously be missing). I am going to review this point at a later stage, when dealing with the Constitutional Court as a quo judge.

C. The “good” example given by the Belgian and Austrian Constitutional Courts As a matter of fact, it could be sound to claim that one of the most important reasons which led the Consulta to change its mind is the gradual acceptance of the constitutional dialogue by certain Constitutional Courts, through the use of Art. 234 ECT. Apart from a couple of very well known cases,46 it is interesting to notice that the case that probably persuaded these Constitutional Courts to accept the formal dialogue with the ECJ is the Carlsen case.47 This is a bit of a paradox, because the “main player” of that case was not a Constitutional Court, but the Danish Supreme Court (in Denmark, in fact, a real Constitutional Court does not exist). In Carlsen the Danish Court specified the relationship existing between counter-limits and preliminary ruling as follows. According to the Carlsen doctrine, if there is a doubt about the consistency of an EC act with the Constitution, the Supreme (or Constitutional) Court can raise the question by asking the ECJ to clarify the exact meaning of the norm. Once it has received the ECJ’s opinion, the national (Constitutional or Supreme) court can decide: if it still has doubts regarding the constitutionality of the EC act, it can resort to the use of the “counter-limits”. This precedent obviously supports the view that Constitutional Courts do have the last say, even when they accept to raise the preliminary referral, and therefore encourages Constitutional tribunals to behave in the same way, without the fear of being outclassed by the ECJ.

D. The case-law on the relationship between the ECHR and Constitution art. 117, par.1 In Order no. 103/2008 the ICC recalled the recent twin cases no. 348 and 349/2007, where some national provisions48 were declared unconstitutional for being in conflict 46

47 48

Cour d’Arbitrage, 19th February 1997, No. 6/97, in http://www.arbitrage.be/fr/common/home.html; VfGH, 10 March 1999, B 2251/97, B 2594/97, in http://www.vfgh.gv.at/cms/vfgh-site. See also Lietuvos Respublikos Konstitucinis Teismas, Decision of 8 May 2007, available at www.lrkt.lt/dokumentai/2007/d070508.htm. Højesteret, Carlsen v Rasmussen, [1999] 3 CMLR 854. Namely, the provisions ruling the quantification of compensation amounts due for public purposes expropriation and for unlawful expropriation.

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with the international obligations stated in the European Convention of Human Rights, Protocol 1, Art. 1. These decisions are very innovative “because not only has the Italian Constitutional Court clarified, by using Art. 117, paragraph 1, the European Convention’s actual efficacy in the domestic legal system, but it has also interpreted international obligations as an interposed standard of review, on the basis of which the constitutionality of domestic law must be assessed.”49 There is no room here to analyze these two decisions in-depth, but it is fundamental to point out the increasing openness of the constitutional jurisprudence towards external sources of law that is reflected in the text of the decisions. It is nevertheless curious to emphasize that in the above mentioned decisions the ICC entered a long reasoning in order to underline the difference between EC law and the law of the European Convention, based on the difference of their effects on domestic law, whereas in order no. 103/2008 the Court seems to refer to this precedent only with the view of supporting its findings on EC law. In other words, the ICC is more interested in using the similarities between EC and conventional (international) law, rather than in drawing the attention on those passages of the decisions no. 348 and 349/2007 where the Court itself had provided a careful distinction between them.

E.

The lack of coherence of the Constitutional Court’s case-law concerning its judicial - non judicial nature

As Prof. Groppi50 pointed out, the fact that the Italian Constitutional Court did not consider itself as an a quo (referring) judge was hardly compatible with its own “internal” case-law. According to a consolidated case-law, indeed, the ICC considers itself a potential a quo judge who can raise to itself (sic!) questions of consistency between ordinary statutory norms and constitutional provisions; this clear-cut judicial trend is consolidated in each area of its jurisdiction (see orders no. 22/1960, no. 225-297/1995, no. 183-197/1996, no. 42, 156, 288/2001, no. 2/1977). 49

50

See F. Biondi Dal Monte - F. Fontanelli, “The Decisions No. 348 and 349/2007 of the Italian Constitutional Court: The Efficacy of the European Convention in the Italian Legal System”, German Law Journal, 2008, 889-932, 889 T. Groppi, “La Corte costituzionale come giudice del rinvio ai sensi dell’art.177 del Trattato CE”, in P. Ciarlo - G. Pitruzzella - R. Tarchi (eds.), “Giudici e giurisdizione nella giurisprudenza della Corte costituzionale”, Torino, 1997 171 ff, 186-187.

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Preliminary Reference and Constitutional Courts: Are You in the Mood for Dialogue?

In each of these cases the ICC agreed to refer to itself (thus acting as an a quo judge) the question of constitutionality, but it argued that a difference still existed between itself and “normal” judicial bodies (see sentenze no. 13/1960 and 536/1995). It is common knowledge that the domestic notion of “a quo judge” is somehow different with the one pertaining to the EC order, but either of them is very broad, and allows for a wide interpretive margin.51 As for the ECJ’s approach, it has been maintained that the Luxembourg Court follows a functional or “fuzzy52” logic, as its choices reveal a high degree of malleability and changeability. On this issue, the core elements of the ECJ’s position-as expressed in its case-law-are summarized as follows: “In order to determine whether a body making a reference is a court or tribunal for the purposes of Article 234 TEC, which is a question governed by Community law alone, the Court takes into account a number of factors, such as whether the body is established by law, whether it is permanent, whether its jurisdiction is compulsory, whether its procedure is inter partes, whether it applies rules of law and whether it is independent”.53 According to these criteria it can be inferred that the ICC fits the ‘tribunal or court’ Community definition. Here, on the contrary, it is worth remembering how Italian scholarship had stated that indirect proceedings lack a perfect inter partes structure,54 and that, for this reason, they differ from direct proceedings, and the ICC cannot be seen as playing the judge role in the indirect framework. Secondly, as the Consulta has repeatedly assessed, the ICC is not the actual judge deciding on the dispute of the trial before the a quo judge. From this perspective, it is possible to appreciate the coherence of the Italian Constitutional Court, which raised the preliminary ruling in direct proceedings, arguing that in this context, in a dispute between a Region and the State, the judge is the Court itself (both formally and substantially).

51

52 53

54

As Cartabia wrote “The ECJ, for example, considered the Council of State capable of the preliminary ruling, ECJ judgement 16 October 1997, joined cases 69 to 79/96, while the selfsame court (Council of State) is not authorised to approach the Constitutional court with questions of constitutional review of legislation.” M. Cartabia, “‘Taking Dialogue Seriously’ The Renewed Need for a Judicial Dialogue at the Time of Constitutional Activism in the European Union”, Jean Monnet Working paper, 12/07 M. T. D’Alessio - N. Pecchioli, “Ricorso straordinario al presidente della repubblica e rinvio pregiudiziale: la logica «fuzzy» della Corte di giustizia”, in Riv. It. Dir. Pubbl. Comunitario, 1998, 699 ff. See case C-96/04, Standesamt Stadt Niebüll, ECR, [2006], I-3561. See also D. Basile, “La nozione di ‘giurisdizione nazionale’ nella giurisprudenza della Corte di giustizia. Aspetti problematici e profili comparativi”, in Foro. Amm. C.d.S., 2006, 696 ff.; N. Bassi, “Ancora sul rinvio pregiudiziale alla Corte di giustizia e sulla nozione di ‘giudice nazionale’: è il momento della Corte Costituzionale?”, in Riv. It. Dir. Pubbl. Comunitario, 2000, 155 ff. R. Romboli, Il giudizio costituzionale incidentale come processo senza parti, Milano, Giuffrè, 1985.

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F. The external pressure coming from cases like Traghetti and Köbler In the cases Traghetti del Mediterraneo55 and Köbler56 the ECJ carried out something that was already anticipated in the Francovich57 and Brasserie58 decisions. Indeed, it had pointed out that: “In international law a State whose liability for breach of an international commitment is in issue will be viewed as a single entity, irrespective of whether the breach which gave rise to the damage is attributable to the legislature, the judiciary or the executive. This must apply a fortiori in the Community legal order since all State authorities, including the legislature, are bound in performing their tasks to comply with the rules laid down by Community law directly governing the situation of individuals”.59

As the ECJ specified, a typical case of manifest infringement of community law is precisely “the non compliance with the obligation to make a reference for preliminary ruling under the third paragraph of art. 234 EC.”60 It was argued that these two judgments have to be read in the light of the ECJ’s necessity to “control” its relationship with national judges, after some questionable decisions were taken by the latter not to raise the preliminary question. As Cartabia pointed out: “The fact remains, however, that the Court of Justice wants to punish the high courts that do not use, when necessary, the preliminary ruling ex art. 234 ECT.”61 Besides, it is possible to link this judicial trend with other judgements issued by the ECJ, whereby the Court recognized that “the liability of a member state under article 169 [today art. 226] arises whatever the agency of the state whose action or inaction is the cause of the failure to fulfil its obligations, even in the case of a constitutionally independent institution.”62 Although Constitutional Courts are not expressly “targeted” by these rulings, undoubtedly their own condition can be “touched” by these judgments. It is therefore acceptable to suggest that the Constitutional Court could have given up a portion of its interpretative sovereignty also under the pressure coming from the judgements described above. As Cartabia sharply concluded, somehow anticipating the latest events: “The evolution of State liability as exemplified in the decisions Köbler and Traghetti del Mediterraneo, 55 56 57 58 59 60 61 62

ECJ, Case C-173/03, Traghetti del Mediterraneo, 2006 ECR I-5177 ECJ, Case C-224/01, Köbler, 2003 ECR I-10239 ECJ, Francovich and Bonifaci / Italy, C-6/90, ECR, 1991, I-5357. Joined cases C-46/93 and C-48/93, Brasserie du pêcheur/Bundesrepublik Deutschland and The Queen / Secretary of State for Transport, ex parte Factortame and others ECR 1996 I-1029. Brasserie cit. Köbler cit. M. Cartabia, “Taking Dialogue cit. C-77/69, Commission v. Belgium, ECR, [1970], 243 ff; C-8/70, Commission v. Italy, ECR, [1970], 966 ff; C-100/77, Commission v. Italy, ECR, [1978], 887 ff.

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Preliminary Reference and Constitutional Courts: Are You in the Mood for Dialogue?

should solicit an overruling by the constitutional courts, preferably before facing the unpleasant hypothesis of requests for claims for damages on the part of individuals due to the constitutional courts’ behaviour.”63

Final remarks on this point One should not overestimate the value of this revirement: the Court was careful in preventing the revolutionary component of the decision from spreading and causing unexpected consequences. The ICC limited its decision to the direct proceedings stressing the different structure characterizing the indirect form of constitutional review of legislation and this distinction seems to be very coherent with its previous case law. I would argue against an extension of the conclusions reached by the Italian Corte Costituzionale with regard to direct proceedings to indirect proceedings: in the logic of interpretive competition, such an extension could lead to the loss of control over the national common judges, fundamental actors for the activity of the Italian Constitutional Court. Probably the ICC will rely on its alternative modes of dialogue in the field of indirect proceeding, especially in the dual preliminarity. According to the technique of dual preliminarity (“doppia pregiudizialità”)64, the Constitutional Court could be asked to solve a question of constitutionality regarding an Italian norm in cases where such a question is strongly related to another preliminary ruling question contemporarily raised before the ECJ (either by the same or by another ordinary judge) on the meaning/validity of an EC act. If these two questions are strongly related, the Italian Constitutional Court can decide either to return the question (declaring it “inadmissible”) to the ordinary judge (536/199565) or to “wait for” the ECJ to pronounce itself before judging (165/200466). As we can see, the dual preliminarity is a technique by which the Italian Constitutional Court acknowledges “priority” to the ECJ and to Art. 234 ECT questions; at the same time, it can work as a “safety valve”, since it avoids a contrast with the ECJ with regard to the possible violation of counter-limits. In the Berlusconi case, for example, the 63 64

65 66

M. Cartabia, Taking cit. M. Cartabia, ‘Il processo costituzionale: l’iniziativa. Considerazioni sulla posizione del giudice comune di fronte a casi di ‘doppia pregiudizialità’, comunitaria e costituzionale’ (1997) 5 il Foro italiano, 222–225. For a very similar point of view about the dual preliminarity see in English M. Cartabia, ‘Taking Dialogue Seriously’ The Renewed Need for a Judicial Dialogue at the Time of Constitutional Activism in the European Union’, Jean Monnet Working paper, 12/07, http://www.jeanmonnetprogram.org/papers/07/071201.html See Corte Costituzionale, ordinanza No.536/1995, www.cortecostituzionale.it and Corte Costituzionale, ordinanza No. 319/1996, www.cosrtecostituzionale.it Corte Costituzionale, ordinanza No. 536/1995, www.cortecostituzionale.it Corte Costituzionale, ordinanza No. 165/2004, www.cortecostituzionale.it

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Italian Constitutional Court (165/200467) waited for the ECJ’s answer, preparing itself for a decision that could possibly be incompatible with its fundamental principles. Thanks to the dual preliminarity, the Italian Court allows the ECJ to decide whether to challenge the risk of a jurisdictional “clash” or not. On the other hand, perhaps one can read the Berlusconi case as an attempt to avoid such a danger and as a chance to show the EC system maturity about fundamental rights. This technique is based is based upon a judicial triangle and obviously, this can only happen in the framework of incidenter proceedings. Thanks to dual preliminarity the ICC can maintain the control over the national ordinary judges and, at the same time, a symmetric dialogue with the ECJ.

Part II: looking for the macro-reasons for such a new trend In this part, the article will focus on some factors which might have favoured the cooperation between CCs and the ECJ and contributed to the creation of a common ground between judicial actors. In this respect, I have two arguments: first of all, the “respect” shown by the ECJ towards the national constitutional structures of the Member States (and the consequent transformation of the primacy principle with the progressive emergence of a margin of appreciation doctrine in the ECJ’s case-law); secondly, the latest developments of the ECJ’s case-law in the field of fundamental rights.

a) Margin of appreciation Three years ago, Shany68 wrote about a general margin of appreciation doctrine in international law to describe the process of progressive extension of this doctrine in tribunals other from the European Court of Human Rights. 67 68

Corte Costituzionale, ordinanza No. 165/2004, www.cortecostituzionale.it Y.Shany, “Toward a General Margin of Appreciation Doctrine in International Law?”, European Journal of International law, 2006, Vol. 16 No. 5, 907–940. On this doctrine see also: E.Benvenisti, “Margin of appreciation, consensus, and universal standards”, 31 New York University Journal of International Law and Politics,1998-1999, 843 ff; M.R.Hutchinson, “The Margin of Appreciation Doctrine in the European Court of Human Rights”, International Comparative Law Quarterly, 1999, 638 ff.; Lord Marclay of Clashfern, “The Margin of Appreciation and the Need for a Balance”, in Protection des droits de l’homme: la perspective européenne, Mélanges à la mémoire de Rolv Ryssdal, Verlag, 2000, 837; S.C. Prebensen, “The Margin of Appreciation and Articles 9, 10 and 11 of the Convention”, Human Rights Law Journal, 1998 13 ff; I. de la Rasilla del Moral ,“The Increasingly Marginal Appreciation of the Margin-of-Appreciation Doctrine”, in German Law Journal, Vol 07 No 06, 2006, 611-624; G.Letzas, “Two Concepts of the Margin of Appreciation”, Oxford Journal of Legal Studies, Vol. 26, No. 4, 2006, pp. 705–732.

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Recently, some scholars in EU law69 have taken this idea into further consideration in order to describe how the ECJ is attempting to “locate the ‘line’ between EC review and legitimate Member State autonomy”70. As Weiler had already suggested, in fact, “if fundamental rights are about the autonomy and self-determination of individual, fundamental boundaries are about the autonomy and self-determination of communities”71. When adopting this perspective, one can appreciate the ECJ’s increasing attention to the peculiarities of the Member States in many sensitive areas. Moreover, the ECJ has recently started to72 quote the constitutional materials of the national judges or finding exceptions to obligations under EC law in national (rather than common) constitutional traditions: “In that connection, it is not indispensable that restrictive measures laid down by the authorities of a Member State to protect the rights of the child, referred to in paragraphs 39 to 42 of this judgment, correspond to a conception shared by all Member States as regards the level of protection and the detailed rules relating to it (see, by analogy, Omega, paragraph 37). As that conception may vary from one Member State to another on the basis of, inter alia, moral or cultural views, Member States must be recognised as having a definite margin of discretion.”73

These statements reveal the necessity to preserve national diversity as a fundamental value of integration, as expressed (also) in Art. I-5 of the Constitutional Treaty (Art. 4 of EUT after the Reform Treaty of Lisbon)74. 69 70 71 72

73 74

For example, N. Nic Shuibhne “Margins of Appreciation: National Values, Fundamental Rights and EC Free Movement Law”, European Law Review, 2009, 230-256. N. Nic Shuibhne “Margins cit 243. J.H.H. Weiler, “Fundamental Rights and Fundamental Boundaries: On Standards and Values in the Protection of Human Rights”, in his The Constitution of Europe, Cambridge University Press, 1999, 102-129, 104. This approach can be seen in many other cases: recently, for example, in Gouvernement de la Communauté française et Gouvernement wallon, where the ECJ attempted to prevent national constitutional law from standing in the way of the effectiveness of EC law, but, in the meantime, left manoeuvring room for those constitutional courts dealing with such issues. ECJ, Case C-212/06, Gouvernement de la Communauté française et Gouvernement wallon, not yet published. For a comment on this case see P. Van Elsuwege, S. Adam, “Situations purement internes, discriminations à rebours et collectivités autonomes après l’arrêt sur l’assurance soins flamande”, Cahiers de droit européen, 2008/5-6, 655-711. ECJ, Case C-244/06, Dynamic Medien, 2008 ECR I-505. The model for Art. I-5 is undoubtedly Art. 6 EUT (‘current’ version), which efficaciously describes the proximity between common constitutional traditions and national fundamental principles. In this article, in fact, these two kinds of legal sources are mentioned in two subsequent paragraphs. Here, suffice it to recall the reference that Art. 6 (‘current’ version), par. 2 makes to the common constitutional traditions, and the reference to the “national identities” of its Member States that is set in par. 3 of Art. 6. I argue that, within a legal context, by the formula “national identities” the European legislator referred to the constitutional identities of the Member States, that is to counter-limits, as defined by each national constitutional court. In this sense, one can say that Art. I-5 of the Constitutional Treaty has simply codified such an interpretation expressly, by speaking about “constitutional structure,” thus delivering the interpretation of counter-limits to the ECJ.

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According to Shany75, the doctrine of margin of appreciation is based on two core elements: a) judicial deference. The courts should grant each other a certain degree of deference and respect each other’s discretion. b) Normative flexibility. International norms subject to this doctrine can be characterized as being open-ended or unsettled. Such norms provide the States with limited guidance and establish a broad zone of legality within which they are free to operate. “Application of margin of appreciation doctrine depends on a variety of factors: a) the comparative advantage of local authorities-broader margins are afforded to local authorities with respect to questions they are better situated to assess (eg. Local moral sensitivities); b) the indeterminacy o the applicable standard- broader margins are granted over issues lacking a European consensus; and c) the nature of the contested interests- broader margins are granted when more important national interests are at stake and the alleged violation appears less fundamental”76

This doctrine requires a certain attention to the legislative and factual situation of the national order involved in the case. It also implies the need for the ECJ to immerge itself in the constitutional structure of the national laws in order to make a preventive evaluation of its judgments. This would require a case-by-case approach by the ECJ and a more frequent use of comparative law tools before the EC judge in order to evaluate the nature of the contested interests, the specificity of the domestic legal order at hand and the possible impact of its decision thereon. We can find support for this approach in the latest judgements dealing with the issue of State liability in case of breach of the EC law. In Konle77: “The answer to the fourth question must therefore be that, in Member States with a federal structure, reparation for damage caused to individuals by national measures taken in breach of Community law need not necessarily be provided by the federal State in order for the obligations of the Member State concerned under Community law to be fulfilled”.

75 76 77

Y.Shany, Regulating jurisdictional relations between national & international courts, OUP, 2007, 185. Y.Shany, Regulating jurisdictional cit,187 ECJ, Case -C-302/97 Konle [1999]ECR I-3099.

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At the same time, it is possible to read Grant78 and P v S79 coherently by looking at the different impact of the ECJ’s decisions on the factual background. In those cases, it was self-evident that the acknowledgement of rights of homosexual couples would have had much heavier financial repercussions on the Member States than those caused by the possible acknowledgement of transsexuals’ rights. Consequently, such a decision would have been less understood by the States. The ECJ plays its role of systemic actor well when it pays attention to the impact of its decision on the member states and to the current phase of European integration, such as it does in Grant: “In the present state of the law within the Community, stable relationships between two persons of the same sex are not regarded as equivalent to marriages or stable relationships outside marriage between persons of opposite sex, and an employer is not therefore required by Community law to treat the situation of a person who has a stable relationship with a partner of the same sex as equivalent to that of a person who is married to or has a stable relationship outside marriage with a partner of the opposite sex. It is for the legislature alone to adopt, if appropriate, measures which may affect that position” .

These are only two examples of the attention given by the ECJ to the constitutional structures of the Member States; they reveal a strong hint to an attitude of judicial comity by the Court. Recently, the ECJ has demonstrated a tendency to allow for national constitutional traditions and structures which are not common to all Member States, but specific to one Member State (Azores80, Omega81). Such a behaviour may be related to the increasing use of comparative law by the ECJ: “The methodology of comparative law to be employed by the Court has, therefore, to balance the respect of national legal traditions with the need to accommodate them to the specific needs of the EU legal order ... in other words, it is not simply a question of determining what legal solution is common to the national legal orders. It is also, or mostly, a question of determining what legal solution fits better with the EU legal order (in the light of its broader set of rules and principles and of its context of application). Comparative law becomes, in this 78 79

80 81

ECJ, Case C-249/96 Grant c. South west trains Ltd [1998] ECR I-621. ECJ, Case C-13/94 P / S and Cornwall County Council [1996] ECR I-2143. See O. Pollicino, ‘Legal Reasoning of the Court of Justice in the Context of the Principle of Equality Between Judicial Activism and Self-restraint’ (2004) 5 German Law Journal, 3, German Law Journal, 2003, 283-317 ECJ, Case C-88/03, Portugal / Commission, [2006] ECR I-7115, especially paras. 62-67. ECJ, Case C-36/02, -Omega, ECR, 2004, I-9609, paras. 34-35, 39-41. On Omega see Alberto Alemanno, ‘À la recherche d’un juste équilibre entre libertés fondamentales et droits fondamentaux dans le cadre du marché intérieur. Quelques réflexions à propos des arrêts Schmidberger et Omega (2004), 4, Revue du droit de l’Union Européenne, 709-751.

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way, one more instrument of what is the prevailing technique of interpretation at the Court: teleological interpretation”82.

As we will see, such a methodology might act as a boomerang and create many problems for the ECJ, should CCs feel that an external judged deprived them of their constitutional materials. One step further: from constitutionalization to the idea of the untouchable core (i.e. the absolute rights in the case-law of the ECJ) After such judgements as Kadi83, scholars insisted on the definition of the ECJ as a constitutional court. Although it is questionable, this conclusion underlines the importance acquired by fundamental rights in the constitutional discourse of Europe. Without recalling the massive literature on the process of constitutionalization in the European Union in the past few years, I would like to stress a slightly different (but parallel) process. In this respect, having a look at the latest judgements of the ECJ one could pay attention to a further development in this process of constitutionalization: the progressive emergence of the category of absolute rights which may not be subjected to the balancing. The best example is given by the Schmidberger case: “Thus, unlike other fundamental rights enshrined in that Convention, such as the right to life or the prohibition of torture and inhuman or degrading treatment or punishment, which admit of no restriction, neither the freedom of expression nor the freedom of assembly guaranteed by the ECHR appears to be absolute but must be viewed in relation to its social purpose. Consequently, the exercise of those rights may be restricted, provided that the restrictions in fact correspond to objectives of general interest and do not, taking account of the aim of the restrictions, constitute disproportionate and unacceptable interference, impairing the very substance of the rights guaranteed”. 84

In Schmidberger the Court of Justice distinguished between two groups of fundamental rights: absolute rights, which admit of no restrictions, and other fundamental rights. Concerning the second category of rights, the Court of Justice admitted the necessity to evaluate the proportionality of their possible restrictions on a case-by-case ba82 83 84

M. Poiares Maduro, “Interpreting European Law: Judicial Adjudication in a context of constitutional pluralism”, European Journal of Legal studies, 2/2007, available at http://www.ejls.eu/2/25UK.htm. C- 402/05 P, Kadi/Council and Commission, not yet published See, to that effect, ECJ Case C-62/90 Commission v Germany [1992] ECR I-2575, paragraph 23, and case C-404/92 P X v Commission [1994] ECR I-4737, paragraph 18.

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sis. The Court went back to this selective, case-by-case approach to fundamental rights (conceived in Schmidberger) in the Laval85 and Viking86 cases. In these judgements, the Court of Justice recognized the fundamental right to collective action as an integral part of EU Community law. The need to protect this right can justify restrictions on the fundamental freedom of establishment or on the freedom to provide services guaranteed under the EU Treaty, in order to protect workers and their conditions of employment. The Court of Justice added that this action is legal “only if it pursues a legitimate aim such as the protection of workers” and it has left the decision of legitimacy in this case up to national courts to decide, balancing the rationale of market integration with that of social policies. The ECJ came back to the idea that an untouchable core of absolute rights exists in the Kadi case where the ECJ said: “Fundamental rights form an integral part of the general principles of law whose observance the Court ensures. For that purpose, the Court draws inspiration from the constitutional traditions common to the Member States and from the guidelines supplied by international instruments for the protection of human rights on which the Member States have collaborated or to which they are signatories.... It follows from all those considerations that the obligations imposed by an international agreement cannot have the effect of prejudicing the constitutional principles of the EC Treaty, which include the principle that all Community acts must respect fundamental rights, that respect constituting a condition of their lawfulness which it is for the Court to review in the framework of the complete system of legal remedies established by the Treaty.”

Beside this progressive attention to the fundamental rights issue, there is another relevant factor, which has been summarized by the double formula “unionisation and conventionisation of fundamental rights”87: the mutual influence of the two European legal systems (EC/EU law and ECHR) on one another. On the one hand, in fact, ECtHR expressions entered the language of the ECJ thanks to two main tools: the general principles of Community law88 and the Charter of fundamental rights of the EU. 85 86 87

88

ECJ, Case C-341/05 Laval un Partneri Ltd/Svenska Byggnadsarbetareförbundet et a. [2007] ECR I-11767. ECJ, Case C-438/05 The International Transport Workers’ Federation and The Finnish Seamen’s Union [2007] ECR I-10779. J.Callewaert, “‘Unionisation’ and ‘conventionisation’ of fundamental rights in Europe: the interplay between union and convention law and its impact on the domestic legal systems of the member states”, in J. Wouters-A. Nollkaemper- E. de Wet (eds.), The Europeanisation of International Law. The Status of International Law in the EU and its Member States, 2008, T.M.C. Asser Press, 2008,109-135. On the interplay between ECHR and EC/EU Law see X. Groussot, General Principles of Community Law, Europa Law Publishing, 2006, 63 ff.

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Although the latter document is still not binding from a stricto sensu legal point of view, its proclamation favoured the emergence of a huge debate among scholars, especially among constitutional lawyers in continental Europe. Moreover, the ECJ has already begun to quote the Charter and refer to it89 in spite of the Constitutional Treaty’s (CT) failure to come into force and in the wait of the Reform Treaty (RT), which would make it legally binding (although the position of some Member States, such as the UK and Poland, is not clear because of the so called opt-out signed by these countries90) . More generally, the proclamation of the Charter of fundamental rights of the 91 EU brought new life to the debate about the drafting of a European Constitu89

90

91

Among the other cases, see : C-438/05, The International Transport Workers’ Federation and The Finnish Seamen’s Union, ECR., 2007, I-10779 and C-341/05, C-341/05 Laval un Partneri Ltd /Svenska Byggnadsarbetareförbundet., ECR.,2007,p.I-11767. Recently scholars have stressed the absurdity of the so called opting out by Poland and the UK with regard to the EU Charter of fundamental rights and the exclusion of the Charter itself from the text of the Reform Treaty. As we know, in fact, art. 6 EUT states that: “The Union recognises the rights, freedoms and principles set out in the Charter of Fundamental Rights of the European Union of 7 December 2000, as adapted at Strasbourg, on 12 December 2007, which shall have the same legal value as the Treaties”. This article makes the Charter of fundamental rights part and parcel of EU primary law. In order to escape the risk of being subject to this document’s provisions, the UK and Poland insisted on signing a specific protocol (n. 30), to the effect that: “Art. 1: 1. The charter does not extend the ability of the Court of Justice of the European Union, or any court or tribunal of Poland or of the United Kingdom, to find that the laws, regulations or administrative provisions, practices or action of Poland or of the United Kingdom are inconsistent with the fundamental rights, freedoms and principles that it reaffirms. 2. “In particular, and for the avoidance of doubt, nothing in Title IV of the charter creates justiciable rights applicable to Poland or the United Kingdom except in so far as Poland or the United Kingdom has provided for such rights in its national law.” “Art. 2 To the extent that a provision of the charter refers to national laws and practices, it shall only apply to Poland or the United Kingdom to the extent that the rights or principles that it contains are recognised in the law or practices of Poland or of the United Kingdom”. It was rightly observed that the goal of this protocol consisted in limiting the effect of the Charter without saying--as it would have been impossible to say under art. 6 EUT--that it is not binding for the UK and Poland. In fact, “The opt-out is not an opt-out at all ” (C.Barnard, “The ‘Opt-out’ for the UK and Poland from the Charter of Fundamental rights : triumph of rhetoric over reality ?”, paper presented at the Conference “The Lisbon Treaty and the future of European constitutionalism”, 11-12 April, 2008, EUI, Fiesole) ; one could find support for this hypothesis in the words of the House of Lords’ Select Committee, according to which: “The Protocol is not an opt-out from the Charter. The Charter will apply in the UK, even if its interpretation may be affected by the terms of the Protocol. The Preamble itself of the document does not use the qualification in terms of opt-out, its goal consists of the clarification of certain aspects of the application of the Charter” House of Lords EU Select Committee “The Treaty of Lisbon: an impact assessment”, http://www.publications.parliament.uk/pa/ld200708/ldselect/ldeucom/62/62.pdf . This protocol will not change much as long as the two Countries remain subject to those European acts that include reference to the EU Charter and the ECJ begins to quote and use the Charter of fundamental rights . For a commentary see K.Feus (ed.), The EU Charter of Fundamental Rights - text and commentaries, Constitution for Europe, Federal Trust Series 1, Logan Page, London, 2000; G.Braibant, La Charte des droits fondamentaux de l’Union européenne. Témoignage et commentaires, Paris 2001; UK House of Commons, Human Rights in the EU: The Charter of Fundamental Rights, Research Paper 00/32, March 20, 2000; see the special issues of the following journals: Revue Universelle des Droits de l’Homme. Volume 12, Issues 1 and 2 (with contributions from Benoit-Rohmer, Jacqué, Fischbach, Dietmar, Wachsmann, Simon, Sudre, De Schutter and Tulkens) and Maastricht Journal of European and Comparative Law. Volume 8, Issue 1, 2001 (with contributions from Wouters, Willem, Verhey, Gijzen, Lemmens, Besselink, de Witte, de Smijter and Lenaerts, van Ooik and

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tion 92 and the possibility of a Bill of Rights at EU level93, since it testified the possibility to provide rights through a written instrument at supranational level, overcoming the ECJ’s logic of ius praetorium in this field. In its decision on case n. 540/03, the ECJ acknowledged a certain legally relevant role for the Charter. The Court reasoned: “The Charter was solemnly proclaimed by the Parliament, the Council and the Commission in Nice on 7 December 2000. While the Charter is not a legally binding instrument, the Community legislature did, however, acknowledge its importance by stating, in the second recital in the preamble to the Directive, that the Directive observes the principles recognised not only by Article 8 of the ECHR but also in the Charter. Furthermore, the principal aim of the Charter, as is apparent from its preamble, is to reaffirm ‘rights as they result, in particular, from the constitutional traditions and international obligations common to the Member States, the Treaty on European Union, the Community Treaties, the [ECHR], the Social Charters adopted by the Community and by the Council of Europe and the case-law of the Court … and of the European Court of Human Rights’”.94

On the other hand, in the Bosphorous95 case, the European Court of Human Rights, refused to review an EC regulation implementing a resolution of the UN Security Council, although the content of the EC act was restrictive of the property right. The Strasbourg Court reached this conclusion under the conviction that the system of fundamental rights’ safeguard guaranteed at the EC level and that provided by the ECHR are comparable. In Bosphorous, the ECtHR used the same formula the German Constitutional Court adopted in Solange (“as long as”) to introduce a sort of presumption of comparability, preventing a clash between jurisdictions 96.

92 93

94 95 96

Curtin); European Review of Public Law, Vol. 13 - No. 3/2001.For a complete bibliography on the Nice Charter see http://www.arena.uio.no/cidel/cwatch/bibliography.html; A. J. Menéndez, Chartering Europe: The Charter of Fundamental Rights of the European Union, Arena Working Paper 01/13, http://www.arena.uio.no/ publications/wp01_13.htm For a very interesting introduction to the idea of a European constitutional law see: S. Douglas-Scott, Constitutional law of the European Union, Harlow, Longman, 2002 (especially pp. 3-44 and 515-530). See the image by C.Pinelli, Il momento della scrittura, Bologna, Il Mulino, 2002. D.Grimm, “Il significato della stesura di un catalogo europeo dei diritti fondamentali nell’ottica della critica dell’ipotesi di una Costituzione europea”, in G.Zagrebelsky (ed.) Diritti e Costituzione nell’Unione Europea, RomaBari, 2003, 15 ff.; F.Mayer, “La Charte européenne des droits fondamentaux et la Constitution européenne”, in Revue trimestrielle de droit européen, 2003, 175-196; V.Skouris, “La protezione dei diritti fondamentali nell’Unione europea nella prospettiva dell’adozione di una Costituzione europea”, in L.S.Rossi (ed)., Il progetto di Trattato-Costituzione, verso una nuova architettura dell’Unione europea, Bologna, Il Mulino, 2004, 254 ff ECJ, C-540/03, Parliament / Council, ECR, 2006, I-5769. ECHR Bosphorus Hava v. Ireland, judgment of 30 June 2005 “Paradoxically, the safeguard of core rights, far from being the reason for the application of the counter-limit doctrine, was used as harmonizing platform, and both tribunal sacrificed their own particular conception to pledge allegiance to

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Such a presumption might be rebutted if, in the circumstances of a particular case, it was considered that the protection of Convention rights was manifestly deficient. Due to its ambiguity, this notion attracted fierce critique by the literature as well as by some components of the Court itself in their concurring opinions: “In spite of its relatively undefined nature, the criterion ‘manifestly deficient’ appears to establish a relatively low threshold, which is in marked contrast to the supervision generally carried out under the European Convention on Human Rights. Since the Convention establishes a minimum level of protection (Article 53), any equivalence between it and the Community’s protection can only ever be in terms of the means, not of the result”. In the same decision, the ECtHR also paid attention to the Nice Charter, adding: “Moreover, it seems all the more difficult to accept that Community law could be authorised, in the name of ‘equivalent protection’, to apply standards that are less stringent than those of the European Convention on Human Rights when we consider that the latter were formally drawn on in the Charter of Fundamental Rights of the European Union, itself an integral part of the Union’s Treaty establishing a Constitution for Europe. Although these texts have not (yet) entered into force, Article II-112(3) of the Treaty contains a rule whose moral weight would already appear to be binding on any future legislative or judicial developments in European Union law: ‘Insofar as this Charter contains rights which correspond to rights guaranteed by the Convention for the Protection of Human Rights and Fundamental Freedoms, the meaning and scope of those rights shall be the same as those laid down by the said Convention’.97”

In Bosphorus, the ECtHR, despite the prima facie impression of judicial clash, preferred to act as a cooperative actor. In this sense one would be tempted to conclude for the birth of an instance of cooperative constitutionalism, as the outcome of a process of “integration through rights”98. Nevertheless, before reaching such an optimistic conclusion, I would like to enrich the picture by spotlighting some possible factors of tension between judicial actors.

97 98

the Court of Justice, or to support it” F. Fontanelli in G. Martinico- F. Fontanelli, “The Hidden Dialogue: When Judicial Competitors Collaborate” Global Jurist 8.3 (2008), available at http://www.bepress.com/ gj/vol8/iss3/art7 . Judges Rozakis, Tulkens, Traja, Botoucharova, Zagrebelsky and Garlicki. L. Scheeck, “The relationship between the European Courts and integration through human rights”, Zeitschrift für ausländisches öffentliches Recht und Völkerrecht, 2005, 837-885

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Part III: Are we watching a happy ending? The ECJ under siege Bearing this conclusion in mind, one could notice that there have recently been many factors of contrast between the ECJ and national Courts. As we saw, in the wake of the Köbler and Traghetti del Mediterraneo cases, there was a huge debate over the possibility for the ECJ to jeopardize the principle of national res judicata in order to ensure the uniformity of interpretation. The problem of the equilibrium between the need for interpretive uniformity and the respect for the principle of res judicata was tackled by the ECJ in the Kühne & Heitz case99. There (with regard to administrative decisions), the ECJ clearly expressed its preference for the overcoming of the national res judicata, where the applicable national law allows it. This reference to national autonomy (suggested by the a quo judge himself when raising the preliminary question) seems to mitigate the strong acceleration for the ECJ’s interpretive uniformity. In Kapferer100, the ECJ answered a preliminary question raised by the Landesgericht Innsbruck (Austria) in the proceedings Rosmarie Kapferer versus Schlank & Schick GmbH. The a quo judge expressly proposed the possibility to extend the Kühne & Heitz principle to the case of res judicata in a judicial decision. The ECJ highlighted that: “It should be added that the judgment in Kühne & Heitz, to which the national court refers in Question 1(a), is not such as to call into question the foregoing analysis. Even assuming that the principles laid down in that judgment could be transposed into a context which, like that of the main proceedings, relates to a final judicial decision, it should be recalled that that judgment makes the obligation of the body concerned to review a final decision, which would appear to have been adopted in breach of Community law subject, in accordance with Article 10 EC, to the condition, inter alia, that that body should be empowered under national law to reopen that decision (see paragraphs 26 and 28 of that judgment). In this case it is sufficient to note that it is apparent from the reference for a preliminary ruling that that condition has not been satisfied.”101

The Kapferer doctrine seemed to resolve the issue. Yet, a few months after that decision, the ECJ dealt with another interesting case: Lucchini.102 In Lucchini the ECJ, following the Opinion of General Advocate Geelhoed, concluded that: “Community law precludes the application of a provision of national law, such as Article 2909 of the Italian Civil 99 100 101 102

ECJ, Case C-453/00, Kühne & Heitz, 2004 ECR I-837. ECJ, Case C-234/04, Kapferer, 2006 ECR I-2585 ECJ, Case C-234/04, Kapferer, 2006 ECR I-2585, par. 23. ECJ, Case C-119/05, Ministero dell’Industria, del Commercio e dell’Artigianato v. Lucchini SpA, 2007 ECR I-6199. About Lucchini see: X. Groussot, T. Minseen, “Res Judicata in the Court of Justice Case-Law: Balancing Legal Certainty with Legality?”, European Constitutional Law Review, 2007, 385-417.

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Code, which seeks to lay down the principle of res judicata in so far as the application of that provision prevents the recovery of State aid granted in breach of Community law which has been found to be incompatible with the common market in a decision of the Commission which has become final.” As I have elsewhere103 argued, my impression is that one can explain the final conclusion reached in Lucchini by the fact that the contested decision was issued ultra vires. Indeed, as the ECJ itself recalled, that the challenged decision had been adopted on a subject of undisputed Community competence, given that national courts “do not have jurisdiction to give a decision on whether State aid is compatible with the common market.”104 As Advocate General Geelhoed said, the principle of res judicata cannot permit the persistence of a judicial decision which amounts to a clear violation of the simplest separation of competences between the ECs and the Member States.105 Lucchini seemed to be an extra-ordinary judgement, unlikely to set a precedent on the point; broadly speaking, the judicial autonomy of the Member States did not seem to be put in doubt. However, a few months ago, in Cartesio the ECJ “has opened the possibility for national Courts to make references and maintain them, even if they are quashed on appeal by a superior Court on points of EC Law”106 thus jeopardizing the “national judicial autonomy” of the States107. Alongside this decision-which once more raised the question whether the aim of the ECJ is to build a sort of judicial hierarchy to be considered as alternative to the national one--one should pay attention to other contested decisions, which pawed the way 103 G.Martinico, Constructivism, Evolutionism and Pluralism: Europe’s Constitutional Grammar, forthcoming, King’s Law Journal, 2009 104 ECJ, Case C-119/05, Ministero dell’Industria, del Commercio e dell’Artigianato v. Lucchini SpA, 2007 ECR I-6199 105 “In short, the key question is whether a final judgment which came about in the circumstances referred to above, which, as is evident from the previous point, may have serious implications for the division of powers between the Community and the Member States, as this results from the Treaty itself, and which would also make it impossible for the powers assigned to the Commission to be exercised, must be considered inviolable. To my mind, that is not the case”, Opinion of the AG Geelhoed on the Lucchini case, delivered on 14 Sept. 2006. 106 D.Sarmiento, “The Silent Lamb and the Deaf Wolves Constitutional pluralism, preliminary references and the role of silent judgments in EU Law”, paper presented at the conference “Constitutional Pluralism in the European Union and Beyond”, held at St Anne’s College, Oxford, 20-21 March 2009. See the point: “Where rules of national law apply which relate to the right of appeal against a decision making a reference for a preliminary ruling, and under those rules the main proceedings remain pending before the referring court in their entirety, the order for reference alone being the subject of a limited appeal, the second paragraph of Article 234 EC is to be interpreted as meaning that the jurisdiction conferred by that provision of the Treaty on any national court or tribunal to make a reference to the Court for a preliminary ruling cannot be called into question by the application of those rules, where they permit the appellate court to vary the order for reference, to set aside the reference and to order the referring court to resume the domestic law proceedings” C-210/06, Judgment of 16/12/2008, Cartesio, not yet published. 107 “Cartesio raises many questions about the degree of interference that the ECJ is willing to inflict on national judicial autonomy, but it is clear from its wording that national Courts that engage in a preliminary discourse with the Luxembourg Court are protected from most appellate intrusions of superior domestic Courts. When the ECJ states that a revocation or an amendment from the appellate jurisdiction is a matter that the inferior court “alone is able to take a decision on”, it is conferring on the said Court a power to disregard a judgement delivered by an appellate Court, on a case that will eventually return to that same jurisdiction when the judgements of the ECJ and the referring court are dictated”, D.Sarmiento, “The Silent lamb cit”.

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Preliminary Reference and Constitutional Courts: Are You in the Mood for Dialogue?

to several critiques against the ECJ’s work. suffice it to recall the heated debate raised after the Mangold decision. As seen, the national and the supranational legal order are progressively converging in the field of fundamental rights. Moreover, the ECJ started acknowledging an important role to the national constitutional materials in its decision. This “partial” appropriation of the fundamental rights’ discourse by the ECJ emerges in a long series of judgements, and it is most evident in cases such as Omega108 and Dynamic Medien109. As some authors pointed out, having a look at those cases one can perceive a certain concern over the “octroyée methodology of construing common constitutional traditions”110. Now, such a methodology has its own risks, as shown in the Mangold case, where the ECJ stated that: “Directive 2000/78 does not itself lay down the principle of equal treatment in the field of employment and occupation. Indeed, in accordance with Article 1 thereof, the sole purpose of the directive is ‘to lay down a general framework for combating discrimination on the grounds of religion or belief, disability, age or sexual orientation’, the source of the actual principle underlying the prohibition of those forms of discrimination being found, as is clear from the third and fourth recitals in the preamble to the directive, in various international instruments and in the constitutional traditions common to the Member States...The principle of non-discrimination on grounds of age must thus be regarded as a general principle of Community law...”111

Some German scholars strongly contested the possibility to infer such a principle from the constitutional traditions common to the Member States. In an article published in English on Euobserver, Herzog and Gerken stressed: “However, this “general principle of community law” was a fabrication. In only two of the then 25 member states namely Finland and Portugal is there any reference to a ban on age discrimination, and in not one international treaty is there any mention at all of there being such a ban, contrary to the terse allegation of the ECJ. Consequently, it is not difficult to see why the ECJ dispensed with any degree of specification or any proof of its allegation. To put it bluntly, with this construction which the ECJ more or less pulled out of a hat, they were acting not as part of the judicial power but as the legislature”112. 108 C-36/02, Omega, ECR, 2004, I-9609. 109 C-244/06, Dynamic Medien, not yet published. 110 M. Dani, “Tracking Judicial Dialogue-The Scope for Preliminary Rulings from the Italian Constitutional Court”, Jean Monnet Working Paper, 10/2008. 111 C-144/04, Mangold, ECR.2005,p.I-9981. 112 R. Herzog- L.Gerken, “[Comment] Stop the European Court of Justice”, http://euobserver.com/9/26714. This piece is the translation of an article originally published in Published in German on September 08, 2008 byFrankfurter Allgemeine Zeitung (“Stoppt den Europäischen Gerichtshof”)

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In his critique of Mangold, Hatzopoulos113 stressed how this reference to general principles weakens the legal reasoning of the ECJ and contested the resort thereto in other judgements like Carpenter114 and Karner115. Recently, another strong attack to the ECJ came from an Editorial of the European Law Review116. In a sort of short case-note on the Commission/Italy117 decision, it was argued that the enlargement and the massive case load of the ECJ might jeopardize the coherence of its case-law: “The European Court of Justice is manifestly no longer “tucked away in the fairyland Duchy of Luxembourg”. The new Palais, inaugurated on December 4, 2008, is a complex collection of buildings that, quite literally, consume the original Palais within a ring-like structure, alongside the original Court of First Instance and, most prominently, two high-rise towers (making unfortunate allusions to Tolkien difficult to suppress). The overall visual impact is one of enormous scale; but also, seeing the mismatched structures that differ from one another in almost every way--size, materials, scale-- dysfunction. Within the Court of Justice, another striking image comes from the cavernous room in which the full court holds its réunion générale. In particular, to accommodate 27 judges, eight Advocates General and the Registrar, the long table in that room is, quite simply, vast. What that picture suggests is that the possibility for organic, unstructured discussion is impossible to reconcile with the present size of this judicial college”.

These are just a few instances showing how the picture is much more complicated than one could expect looking exclusively at the mentioned decisions of national constitutional courts. Before talking about a new era of stability and cooperation between courts, one should take account of the tensions between national and domestic legal orders: was it just a temporary truce?

113 V.Hatzopoulos, “Why the Open Method of Coordination is Bad for You: A Letter to the EU”, in European Law Journal, 2007, 309-342, 337. 114 C-60/00, Carpenter, ECR., 2002,I-6279. 115 C-71/02, Karner, ECR, 2004, I-3025. 116 Editorial, “A court within a court: is it time to rebuild the court of justice”, European Law Review, 2/2009, 173-174. 117 C-110/05, Commission v Italy, not yet reported, February 10, 2009.

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La Dichiarazione Universale dei Diritti Umani sessant’anni dopo Le “promesse mancate” dei diritti umani Gustavo Gozzi*

1

Per valutare la portata della Dichiarazione Universale dei Diritti Umani a sessant’anni dalla sua proclamazione, occorre metterla a confronto con i problemi fondamentali del presente: da un lato, dopo l’11 settembre 2001, il confronto con altre civiltà e culture è diventato centrale; dall’altro, la questione dello sviluppo ha assunto una rilevanza crescente che deriva dal sempre più accentuato divario tra nord e sud, tra paesi ricchi e paesi poveri all’interno dei processi di globalizzazione (cfr. D. Zolo, Globalizzazione, Laterza, Roma-Bari 2004). Affronterò alcuni temi che consentano di svolgere una valutazione critica sulla Dichiarazione del 1948 riconoscendo, da una parte 1. il suo carattere sicuramente innovativo, ma, evidenziandone, dall’altra, anche le insufficienze, in particolar modo per ciò che concerne 2. l’assenza dei diritti collettivi e 3. l’insostenibilità dell’universalismo dell’interpretazione dei diritti umani che essa proclama, in quanto si tratta di una concezione propria della tradizione occidentale. Si tratterà inoltre di mettere in luce le implicazioni 4. del diritto ad un ordine internazionale, che assicuri la garanzia dei diritti umani, enunciato dalla Dichiarazione del 1948; 5. le insufficienze per ciò si riferisce al diritto d’immigrazione e 5. 1. al diritto d’asilo e, da ultimo, 6. le critiche da parte del cosiddetto *

Gustavo Gozzi is full professor of “History of Political Thought” and of “Human Rights and History of International Law” in the Faculty of Preservation of Cultural Heritage of Bologna University. At present he is Director of the Master in “Human Rights and International Intervention” by the Faculty of Preservation of Cultural Heritage of Bologna University. He is responsible of the “Centre for the Constitutional Studies, the Cultures, the Rights and the Democracies. Europe, Eurasia, Mediterranean Sea” (www.cencode.unibo.it) by the Department of Politics, Institutions, History of Bologna University. From 1994 till present time he is responsible for the Convention between Bologna University and the University of Tunis El Manar and he is member of the Interdepartmental Centre of Research on Islamic World of Bologna University. Moreover is Director of the series “Democracies, Rights, Constitutions” by the Publisher Il Mulino in Bologna. His main research interests regard the History of constitutionalism, the History and Philosophy of Human Rights, the Multiculturalism, the History of International Law.

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“Terzo Mondo” alla concezione occidentale dei diritti umani e 6.1. il rapporto tra movimenti sociali nei paesi del “Terzo Mondo” e diritti umani. L’innegabile carattere innovativo della Dichiarazione non può pertanto indurre a sottacerne le insufficienze e le inadeguatezza, in breve: le promesse mancate. 1. Il carattere innovativo della DUDU consiste nell’aver introdotto il concetto di diritti umani, ossia i diritti degli esseri umani (human beings), senza distinzioni di genere e di classe. In questo senso la Dichiarazione è sicuramente il punto di arrivo di una lunga storia costituzionale occidentale che si è svolta a partire dall’origine religiosa dei diritti tra i sec. XVI e XVII (cfr. G. Jellinek), alla concezione giusnaturalistica nei sec. XVII e XVIII fino all’età delle rivoluzioni della seconda metà del Settecento e, in seguito, alla concezione positivistico-giuridica dei diritti, ossia all’interpretazione dei diritti sul fondamento della legge nell’età dello Stato di diritto del XIX secolo, fino all’età della democrazia e al fondamento costituzionale dei diritti nel sec. XX e, infine, alla fase attuale che potrebbe essere quella di un costituzionalismo internazionalistico, avviato proprio dalla DUDU nel secondo dopoguerra. Questa dichiarazione proclama i diritti degli esseri umani, senza distinzioni di genere - che esistevano ancora nelle dichiarazioni dell’età delle rivoluzioni di fine Settecento – e senza distinzioni di classe sociale – che Marx denunciava nella Questione ebraica del 1844, con riferimento alla dichiarazione dei diritti della costituzione giacobina del 1793, interpretando quei diritti come diritti dell’”uomo borghese”. La Dichiarazione del 1948 si rivela tuttavia un documento privo di un’effettiva efficacia giuridica, ossia come un insieme di raccomandazioni di ordine morale. Analizzando il processo di approvazione della Dichiarazione Universale avvenuto il 10 dicembre di sessant’anni fa attraverso una risoluzione da parte dell’Assemblea Generale delle Nazioni Unite, Hans Kelsen osservò, da una parte, che l’Assemblea Generale aveva proclamato la Dichiarazione come un “ideale comune da raggiungersi da tutti i popoli e le nazioni” (common standard of achievement for all peoples and all nations), ma sottolineò, dall’altra, l’assenza di rilievo giuridico (legal importance) dei diritti umani, in quanto non erano state stabilite le corrispondenti obbligazioni giuridiche che debbono essere sempre promulgate dalla legislazione degli Stati o da accordi internazionali. Infatti la risoluzione non raccomanda espressamente atti giuridici o accordi internazionali. In breve – concludeva Kelsen – la risoluzione dell’Assemblea Generale non aveva alcun effetto giuridico1. 1

H. Kelsen, The Law of the United Nations, New York 1951, p. 40. Alla 218.ma riunione dell’Economic and Social Council il rappresentante del Regno Unito affermò:”La Dichiarazione era un’affermazione di ideali, alla quale si auspicava che tutti i popoli aspirassero, ma non uno strumento che imponesse giuridicamente delle obbligazioni agli Stati” (Doc. E/SR. 218, p. 8), ibidem, p. 40.

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Malgrado questi limiti la Dichiarazione rappresentò comunque il momento iniziale che diede impulso ad una successiva e sempre più estesa normazione internazionale in materia di diritti: i Patti del 1966, le Carte regionali dei diritti ecc. 2. Il carattere sicuramente innovativo della Dichiarazione - anche se si tratta di un documento privo di un’effettiva efficacia giuridica - non consente tuttavia di ignorare i limiti che vennero infatti subito evidenziati. Il primo limite si riferisce all’assenza, nel testo della Dichiarazione, dei diritti collettivi. Durante lo svolgimento dei lavori preparatori, l’Associazione americana degli antropologi presentò nel 1947 un documento nel quale veniva sottolineata la necessità di superare l’orizzonte strettamente individualistico della Dichiarazione. Nel documento si affermava che oltre al rispetto per la personalità dell’individuo, anche “il rispetto per le culture dei differenti gruppi umani era (è) ugualmente importante”. E ancora si dichiarava: “Se cominciamo, come dobbiamo, con l’individuo, troviamo che dal momento della sua nascita, non solo il suo comportamento, ma il suo pensiero, le sue speranze, aspirazioni, i valori morali che dirigono la sua azione e giustificano e danno significato alla sua vita…sono formati dal corpo delle consuetudini del gruppo del quale egli diviene membro”2. Il documento prendeva inoltre una ferma posizione contro l’espansione del mondo occidentale che era stata segnata “dalla disintegrazione dei diritti umani nei popoli sui quali l’egemonia era stata stabilita”. Vi si potevano infine leggere alcune precise proposizioni che intendevano arricchire e completare la prospettiva dei diritti individuali della Dichiarazione del 1948. In modo particolare veniva dichiarato che: “L’individuo realizza la sua personalità attraverso la sua cultura, di conseguenza il rispetto per le differenze individuali comporta il rispetto per le differenze culturali”. E inoltre: “I criteri e i valori sono relativi alla cultura da cui derivano, così che ogni tentativo di formulare dei postulati che prescindano (grow out) dalle credenze o dai codici morali di una cultura limiterà, in quella stessa misura, l’ applicabilità di qualsiasi Dichiarazione dei Diritti Umani all’umanità come un tutto”3. Il documento degli antropologi americani auspicava pertanto che nella Dichiarazione venisse incluso “il diritto degli uomini a vivere nei termini delle loro proprie tradizioni” (Statement on Human Rights, p. 543). L’istanza non venne accolta. Ma successivamente – alcuni decenni più tardi - la Commissione per i Diritti Umani delle Nazioni Unite riconobbe che un diritto individua2 3

Statement on Human Rights, in “American Anthropologist”, Vol. 49, October-December 1947, No. 4, pp. 539-540. Ibidem, p. 542.

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le è tanto più garantito, quanto più lo sono la lingua, la religione, le tradizioni del gruppo al quale appartiene4. Occorre tuttavia sottolineare che il diritto collettivo di un gruppo culturale non può in alcun modo sovrapporsi al diritto del singolo essere umano. Questo dibattito fu estraneo alle discussioni che ebbero luogo nell’ambito dei lavori preparatori. La complessità delle odierne società civili ha imposto la necessità di affrontare e sviluppare questa complessa relazione. In proposito condivido le tesi formulate da W. Kymlicka, secondo il quale i principi liberal-democratici della nostra civiltà giuridica ammettono le “tutele esterne” (dei gruppi di minoranza rispetto alla maggioranza), ma non consentono che vengano imposte (dai gruppi di maggioranza o di minoranza) delle “restrizioni interne” all’esercizio dei diritti da parte dei singoli membri dei gruppi (cfr. W. Kymlicka, La cittadinanza multiculturale, Il Mulino, Bologna 1999). 3. Fortemente problematico appare poi l’”universalismo” della DUDU se messo a confronto con le proclamazioni dell’universalismo delle dichiarazioni dei diritti di altre civiltà, in particolare di quella islamica. Ciò emerge fin dai lavori preparatori della Dichiarazione. I risultati della votazione per l’approvazione della Dichiarazione del 1948 furono i seguenti: 48 voti a favore e 8 astensioni. Gli Stati arabi votarono in questo modo: 4 a favore ( Egitto, Iraq, Libano e Siria) e 1 astenuto (Arabia Saudita); lo Yemen non era presente al momento del voto. Votarono a favore altri paesi non arabi, ma a maggioranza islamica (l’Iran, la Turchia, il Pakistan e l’Afghanistan)5. L’astensione dell’Arabia Saudita e l’assenza dello Yemen espressero una sostanziale opposizione ad un testo che appariva a questi paesi del tutto incompatibile con i principi dell’islam6. Questi orientamenti si erano manifestati con chiarezza in occasione dei lavori preparatori del testo della Dichiarazione. Così durante la discussione sull’art. 14 della bozza preparatoria (poi art. 16 nel testo definitivo), relativo al diritto di contrarre liberamente il matrimonio, il rappresentante dell’Arabia Saudita, Baroody, osservò che l’espressione “men and women of full age” (ossia “uomini e donne in età adatta) avrebbe dovuto essere sostituita dall’espressione “of full age according to the law” allo scopo di garantire il rispetto delle diverse concezioni giuridiche nei differenti paesi7. Di fronte al rifiuto opposto a questo emendamento, espresso in seno alla Terza Commissione, il rappresentante 4

5 6 7

United Nations High Commissioner for Human Rights, The rights of minorities (art. 27): 08/04/94, General Comment 23: “Although the rights protected under article 27 are individual rights, they depend in turn on the ability of the minority to maintain its culture, language or religion”. Official Records of the 183rd Plenary Meeting of the General Assembly, 10 December 1948, p. 933. P. Tavernier, L’Etats arabes, l’ONU et les droits de l’Homme. La Déclaration universelle des droits de l’Homme et les Pactes de 1966, in G. Conac et A. Amor (sous la direction de), Islam et droits de l’homme, Economica, Paris 1994. p. 59. Third Committee, Summary Records of Meetings, 1948, p. 363.

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dell’Arabia Saudita affermò apertamente che “la maggioranza degli autori del progetto di dichiarazione sembrava aver preso in considerazione solo i criteri riconosciuti dalla civiltà occidentale e aveva ignorato più antiche civiltà che avevano superato lo stadio della sperimentazione e le cui istituzioni , ad es. quella matrimoniale, avevano dimostrato la loro saggezza nel corso dei secoli. La Commissione non poteva proclamare la superiorità di una civiltà rispetto alle altre, né poteva stabilire delle norme uniformi per tutti i paesi del mondo”8. Particolarmente rilevante fu poi la discussione sull’ art. 16 del progetto della Dichiarazione (in seguito art. 18) sul diritto alla libertà di pensiero, di coscienza e di religione, che prevede anche la libertà di cambiare religione. Anche su questo punto si aprì una discussione particolarmente lacerante con i paesi islamici, giacché essi escludono il diritto di cambiare religione. In proposito il confronto con i paesi occidentali fu particolarmente duro. Il rappresentante dell’Arabia Saudita propose infatti di escludere questo diritto dall’articolo sulla libertà di religione. Egli evocò ancora una volta lo scontro tra civiltà, ricordando come “certi gruppi di persone abbiano preteso, nel corso della storia, di essere il popolo eletto da Dio o di appartenere ad una religione superiore semplicemente perché erano più potenti dei loro vicini che professavano una religione differente”9. Egli invitò pertanto la Commissione a rendere la Dichiarazione realmente universale sopprimendo tutte le disposizioni che potessero servire da pretesto per suscitare l’odio e alimentare pericolose differenze di opinione. Mentre la Turchia e il Libano si dichiararono a favore della formulazione dell’articolo proposta dalla Commissione, altri paesi islamici sostennero invece le posizioni dell’Arabia Saudita. Così si pronunciarono infatti i rappresentanti dell’Iraq e della Siria. Nel corso della discussione emerse anche lo scontro tra i paesi islamici e le potenze coloniali occidentali, che lasciava intravedere l’opposizione del mondo islamico ad una concezione dei diritti considerata come espressione dell’ideologia dei paesi occidentali che esercitavano il dominio coloniale. Baroody chiese infatti al rappresentante della Francia “se il suo governo avesse consultato le popolazioni musulmane dell’Africa del Nord e di altri territori francesi prima di accettare questo testo o se si era deciso di imporlo in modo arbitrario”. Allo stesso modo domandò “al Regno Unito, al Belgio e all’Olanda se non temessero di offendere le credenze religiose dei musulmani che erano sottoposti al loro dominio, imponendo questo articolo”10. Anche il rappresentante della Siria avanzò gli stessi rilievi critici osservando che “il popolo siriano ricordava la politica oppressiva esercitata dal governo francese durante il periodo in cui il paese era soggetto al mandato francese ed era convinto che la stessa politica oppressiva fosse esercitata in Nordafrica”11. Infine il rappresentante dell’Afghanistan dichiarò di votare contro il diritto di cambiare religione, 8 9 10 11

Ibidem, p. 370. Ibidem, p. 392. Ibidem, p. 404. Ibidem, p. 408.

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in quanto le ragioni indicate dal rappresentante dell’Arabia Saudita erano “conformi alle credenze religiose del suo paese e ai principi di ordine sociale che vi erano riconosciuti”. L’Afghanistan si riservava pertanto “il diritto di conformarsi alle leggi musulmane per ciò che riguardava questa questione”12 . L’emendamento proposto dall’Arabia Saudita, che escludeva il diritto di cambiare religione, fu respinto con 22 voti contro 12 e con 8 astensioni13: l’esito fu il risultato di un dibattito che rivelò apertamente l’inconciliabilità della concezione islamica dei diritti rispetto alla tradizione occidentale. Certamente è insostenibile il presunto carattere “universale” della concezione dei diritti enunciata dalla Dichiarazione del 1948. L’interpretazione dei diritti della Dichiarazione appartiene infatti manifestamente alla tradizione occidentale, in quanto si tratta di una ripresa della concezione giusnaturalistica14 e della prospettiva individualistica dei diritti. Tuttavia il Preambolo della Dichiarazione offre la possibilità di sviluppare una concezione dei diritti che permette di superare le contrapposte rivendicazioni di universalità. Vi si legge: “Considerato che il riconoscimento della dignità inerente a tutti i membri della famiglia umana e dei loro diritti uguali ed inalienabili, costituisce il fondamento della libertà, della giustizia e della pace nel mondo…L’Assemblea Generale proclama la presente dichiarazione universale dei diritti dell’uomo come ideale comune da raggiungersi da tutti i popoli e da tutte le Nazioni”. Il nesso che viene posto nel Preambolo tra dignità e diritti può essere interpretato come l’individuazione nella dignità del fondamento comune che può essere concepito diversamente nella pluralità delle civiltà e delle culture. In questo senso si può affermare che la diversità appartiene all’essenza dell’universalità15.Il riconoscimento della dignità postula i diritti umani a tutela della dignità come loro fondamento. I diritti umani sono pertanto un imperativo che deriva dal riconoscimento della dignità di ogni essere umano. Essi possono poi essere “costituzionalizzati”dal legislatore come” diritti fondamentali” nelle carte costituzionali. 3.1 Poiché le molteplici interpretazioni della dignità corrispondono alla pluralità delle civiltà e delle loro culture, si impone la necessità di riconoscere i diritti culturali a tutela delle differenti interpretazioni della dignità degli esseri umani. Questi diritti corrispondono alle trasformazioni della realtà contemporanea e al crescente confronto e interazione tra le culture nelle odierne società – multiculturali, polietniche, pluriconfessionali. 12 13 14 15

Ibidem, p. 408. Ibidem, p. 405. A. Cassese, I diritti umani nel mondo contemporaneo, Laterza, Bari 1988, p. 24. Una concezione simile si ritrova nella Sana’a Declaration on Democracy, Human Rights and the Role of the International Criminal Court del 10-12 gennaio 2004, dove si legge: “Cultural and religious diversity is at the core of universally recognised human rights”.

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La Dichiarazione riconosce, con una straordinaria anticipazione, i diritti culturali di ogni essere umano, in quanto proclama, all’art. 22: “Ogni individuo, in quanto membro della società, ha diritto…alla realizzazione, attraverso lo sforzo nazionale e la cooperazione internazionale…dei diritti economici, sociali e culturali indispensabili alla sua dignità e al libero sviluppo della sua personalità”. I diritti culturali tuttavia non sono diritti collettivi, ossia diritti delle diverse culture, giacché in tal caso, come avverte Habermas, si ipostatizzerebbero le culture ponendole al di sopra degli individui e precludendo loro delle alternative che non siano quelle poste dalla tutela della “cultura” del gruppo. I diritti culturali sono invece diritti individuali: essi corrispondono sia all’esigenza di tutelare l’identità culturale degli individui nella molteplicità delle sue manifestazioni, sia all’importanza di consentire ad ogni individuo di scegliere liberamente la cultura nella quale intenda riconoscersi. 4. Alla complessità del realtà contemporanea dovrebbe corrispondere un ordine internazionale, i cui lineamenti appaiono ancora assai incerti. Nel Preambolo della Dichiarazione sono indicati con chiarezza non certamente gli aspetti istituzionali di questo nuovo ordine internazionale, ma sicuramente i principi fondativi, là dove si afferma che “il riconoscimento della dignità inerente a tutti membri della famiglia umana… e dei loro diritti…costituisce il fondamento della libertà, della giustizia e della pace nel mondo”. Non vi è, nella prospettiva della Dichiarazione, alcuna possibilità di pace nel mondo se non sul fondamento del riconoscimento dei diritti di ogni essere umano. L’art. 28 configura, su queste basi teoriche, un nuovo diritto: “Ogni individuo ha diritto ad un ordine sociale e internazionale nel quale i diritti e le libertà enunciati in questa Dichiarazione possano essere pienamente realizzati”. Ogni essere umano ha dunque un diritto alla realizzazione di un ordine internazionale che garantisca i diritti della persona, i diritti dell’individuo nei suoi rapporti con i gruppi sociali nei quali opera, i diritti politici, i diritti economici e sociali enunciati dalla Dichiarazione16. Il nuovo ordine così delineato è certamente l’ ordine giuridico sopranazionale – in grado di limitare la sovranità degli Stati e garantire i diritti umani - che appartiene alla tradizione del cosmopolitismo da Kant a Kelsen. In realtà siamo ben lungi da questa realizzazione, che rappresenta una “promessa mancata della Dichiarazione del 1948. Dopo la fine della Guerra fredda abbiamo assistito all’affermazione della concezione unipolare della maggiore potenza occidentale e al suo rifiuto di aderire ad importanti Convenzioni e trattati internazionali. Gli USA non hanno accettato la convenzione contro le mine anti-uomo, né il trattato per la messa al bando dei test nucleari, né la convenzione contro le armi biologiche e tossiche del 2001. Inoltre essi non hanno sottoscritto la maggior parte dei trattati a tutela 16

A. Cassese, op. cit., p. 34.

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dei diritti umani. Questi orientamenti della maggiore potenza corrispondono al conflitto tra una logica imperiale e i principi del diritto internazionale. Ma il diritto internazionale, in particolare il diritto internazionale dei diritti umani, rappresenta il fondamento per la costruzione di uno spazio pubblico17, nel quale “i gruppi i cui interessi non sono ben rappresentati nei corpi della governance ricevono una voce” (M. Koskenniemi, Global Governance , p. 253). Esso infatti contribuisce alla formulazione universalistica di termini come “pace”, “diritti umani”, jus cogens (ibidem, p. 253) ecc. Indubbiamente questo spazio, creato al di là della logica realistica della cosiddetta “governance” esercitata dalla potenza imperiale, può apparire solo la dimensione utopistica in cui si esprime la prospettiva solidaristica del diritto internazionale. In realtà è paradossale il fatto che mentre il realismo politico ha giustificato maldestramente l’intervento militare in Iraq18, vi è stata contemporaneamente una vastissima invocazione dei principi del diritto internazionale. Accanto alla logica del realismo politico, in cui si esprime la logica di potere della maggiore potenza internazionale, sussiste dunque molto forte anche la realtà di una comunità del diritto internazionale, in cui si esprimono i principi di una giustizia universale (p. 254) e la rivendicazione dei diritti umani che nessuna logica degli interessi di potenza appare ancora in grado di sopprimere. 5. All’interno di un ordine internazionale ancora in costruzione, ma segnato dai vasti processi che configurano la realtà della cosiddetta “globalizzazione”, la Dichiarazione rivela inevitabilmente altre insufficienze che la realtà contemporanea evidenzia con la forza drammatica dei processi migratori e con le richieste della popolazioni che premono ai confini dell’Occidente. L’art. 13 enuncia il diritto alla libertà di migrare: “…Ogni individuo ha diritto di lasciare qualsiasi paese, incluso il proprio, e di ritornare nel proprio paese”. Ma il concetto di migrazione racchiude sia il significato di “emigrazione”, ossia di distacco dalla società di origine, dal “mondo di vita” in cui chi emigra si è formato e ha costruito la sua identità, sia il significato di immigrazione, ossia di ingresso in una società (che dovrebbe essere) di accoglienza e dove dovrebbe integrarsi. In realtà questo secondo aspetto è assai problematico, in quanto – come scrive S. Benhabib – la Dichiarazione Universale dei Diritti Umani del 1948 prevede, all’art. 13, il diritto di emigrare, ossia di lasciare un paese, ma non il diritto di immigrare, ossia di entrare in un paese. Con questa affermazione l’autrice intende sottolineare le difficoltà 17 18

M. Koskenniemi, Global Governance and Public International Law, in “Kritische Justiz”, Jahrgang 37, 2004, Heft 3, p. 253. La risoluzione 1441 dell’8.11.2002 si limitava a minacciare “gravi conseguenze” in caso di non collaborazione del governo iracheno alla verifica delle restrizioni sul riarmo. L’intervento anglo-americano ha invece addotto a giustificazione dell’intervento la presenza di (inesistenti) armi di distruzione di massa.

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che le società occidentali frappongono all’integrazione dei migranti, che vengono per lo più interpretati come forza-lavoro, dei quali non vengono tuttavia considerati i diritti culturali al riconoscimento e rispetto di una alterità non riconducibile al sistema dei valori occidentali. Il problema dell’integrazione è infatti quello dell’”appartenenza politica” che si basa sul criterio della nazionalità che, nelle società dei paesi occidentali, è ancora purtroppo interpretata in senso etnico. Al concetto di popolo è infatti ancora attribuito un significato che ne evidenzia le connotazioni di tipo etnico rendendo difficile l’integrazione dei migranti. Nella storia occidentale è avvenuta infatti, faticosamente e non compiutamente, la separazione di Stato e chiese, ma non di Stato ed etnia. Ma l’immigrazione, come ha scritto recentemente Sayad19, rappresenta un “fatto sociale totale”, che deve essere analizzato attraverso il concorso di molteplici discipline - la storia, la geografia, la demografia, l’economia, il diritto, la sociologia, la psicologia, l’antropologia, la linguistica, le scienze politiche – e che mette in discussione il concetto etnico di popolo. Deve essere affrontata in una prospettiva diacronica, ossia comprendendo la cause dell’immigrazione, e in una prospettiva sincronica, ossia ponendo il problema delle strutture della società di accoglienza (A. Sayad, L’immigrazione, p. 14). All’interno di questa prospettiva si pone inoltre il problema tra chi emigra e la sua società di origine, in quanto l’emigrazione “ha delle ripercussioni sulle condizioni che erano state all’origine dell’emigrazione”20. 5.1. La Dichiarazione universale del 1948 racchiude anche il riconoscimento del diritto d’asilo. L’art. 14 proclama infatti: “Ogni individuo ha il diritto di cercare e di godere in altri paesi asilo dalle persecuzioni”. Il diritto d’asilo è dunque riconosciuto come uno dei diritti umani. E’ certamente un riconoscimento fondamentale, ma esso deve essere oggi, nella complessa realtà dell’odierna globalizzazione, precisato nei suoi contenuti. La successiva Convenzione di Ginevra del 1951 ha definito lo status di rifugiato individuandolo, all’art. 1, nella condizione di chi “”temendo a ragione di essere perseguitato per motivi di razza, religione, nazionalità, appartenenza ad un determinato gruppo sociale o per le sue opinioni politiche, si trova fuori del Paese di cui è cittadino e non può o non vuole a causa di questo timore, avvalersi della protezione di questo Paese…”. Ma ora questa definizione appare inadeguata se si considerano le emergenze dalle quali fugge chi si trova costretto chiedere asilo. Il diritto d’asilo è stato infatti tradizionalmente riservato ai perseguitati per ragioni politiche o razziali, ma dovrebbe essere esteso anche ai rifugiati per lesioni al diritto alla sussistenza21. La Dichiarazione del 1948 19 20 21

A. Sayad, L’immigrazione o i paradossi dell’alterità, Ombre corte, Verona 2008, p. 14 Ibidem, p. 17. L. Ferrajoli, Oltre la sovranità e la cittadinanza. Un costituzionalismo mondiale, paper presentato al 17th IVR World Congress, Bologna 16-21 June, 1995

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non racchiude infatti solo le tradizionali “libertà negative” della tradizione liberale, bensì anche una lunga serie di diritti umani “positivi” alla sopravvivenza e alla sussistenza: il diritto alla sicurezza sociale e i diritti economici e sociali “indispensabili alla sua dignità e al libero sviluppo della sua personalità” (art. 22); il “diritto ad una remunerazione equa e soddisfacente che assicuri a lui stesso e alla sua famiglia una esistenza conforme alla dignità umana” (art. 23); il “diritto ad un tenore di vita sufficiente a garantire la salute e il benessere proprio e della sua famiglia” (art. 25). In questo senso e in vista della garanzia di questi contenuti dovrebbe essere ripensato il diritto d’asilo della Dichiarazione Universale: per la tutela dei rifugiati economici, oltre che di quelli per motivi politici e razziali. 6. L’ultimo punto che vorrei trattare si lega strettamente al problema del nuovo “ordine” internazionale rispetto ai paesi del cosiddetto “Terzo Mondo” e all’ambivalenza dei diritti umani all’interno di questo rapporto. Rajagopal cerca di mettere punto una prospettiva che connetta il controllo sulle risorse materiali con la rivendicazione di significati simbolici, analizzando il rapporto tra sviluppo e diritto internazionale. Al centro di questo rapporto egli pone i movimenti sociali che hanno saputo sfidare, ossia porre un’alternativa allo sviluppo rivendicando, ad es., i principi dell’autonomia e della democratizzazione22. Questa prospettiva è sicuramente innovativa rispetto agli orientamenti seguiti da larga parte dei giuristi del Terzo Mondo che, nel secondo dopoguerra, riposero invece le loro speranze e aspettative essenzialmente nelle istituzioni internazionali, in particolare nell’Assemblea Generale delle Nazioni Unite. Al contrario porre la centralità dei movimenti sociali e delle loro lotte consente sia di smascherare la violenza economica dell’intervento occidentale, soprattutto ad opera del FMI e della World Bank, sia di svelare la presunzione di superiorità razziale dei popoli occidentali racchiusa nell’idea di sviluppo. Nel secondo dopoguerra si sono succedute alcune fasi, che hanno posto variamente il rapporto tra diritto internazionale e sviluppo: 1. Nel 1974 l’Assemblea Generale delle Nazioni Unite formulò la Declaration on the Establishment of a New International Economic Order23, che avrebbe dovuto consentire di correggere le disuguaglianze economiche. Ma negli anni Ottanta l’offensiva del neoliberalismo reaganiano contribuì alla crisi di questa prospettiva e delle iniziative avviate per acquisire condizioni economiche più giuste all’interno di un nuovo ordine internazionale. 2. I paesi in via di sviluppo si rivolsero allora al discorso dei diritti umani, soprattutto per opporsi alle forme di razzismo e di nuovo colonialismo. 22 23

Ibidem, p. 28. Cfr. Declaration on the Establishment of a New International Economic Order, UNGA Res. 3201, Sixth Spec. Sess., 1 May 1974, Supplement No. 1(A/9559).

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3. Successivamente verso la metà degli anni Ottanta l’Assemblea Generale delle Nazioni Unite formulò il diritto allo sviluppo. Nel 1986 infatti l’Assemblea Generale delle Nazioni Unite enunciò la Declaration on the right to development24, sulla base della quale venne stabilita la relazione tra sviluppo e diritti umani. Tuttavia fu diversa l’interpretazione dello “sviluppo” che diedero gli Stati del Terzo Mondo e quelli dei paesi sviluppati: per i primi o, meglio, per le élites del Terzo Mondo “sviluppo” significava infatti essenzialmente il diritto ad espandere le proprie economie senza considerare i costi sociali - soprattutto le disuguaglianze economiche e sociali - e i rischi negativi per l’ambiente. Per i paesi del Primo Mondo lo sviluppo era invece soltanto una finalità da conseguire compatibilmente con la salvaguardia dei loro interessi economici, ma certamente non costitutiva un titolo giuridico che potesse essere rivendicato dagli individui dei “paesi più arretrati”. Il vero problema delle due prospettive risiedeva nel fatto che, in entrambi i casi, al centro delle strategie di sviluppo vi era lo Stato. Ma ciò ha contribuito solo a creare un legame tra interessi delle potenze economiche occidentali ed élites del Terzo Mondo. 4. Una prospettiva profondamente alternativa consiste pertanto, come scrive Rajagopal, nel porre la prassi e le finalità dei movimenti del Terzo Mondo come criteri per reinterpretare il rapporto tra sviluppo e diritti umani. Ciò può avvenire in tre ambiti precisi: a. in primo luogo, contribuendo a definire la relazione tra diritti umani e “sviluppo sostenibile” che è, ad es., al centro del rapporto dell’UNDP (United Nations Development Program) del 1998. Ma in questo rapporto non è chiarito il significato dei diritti di libertà (ad es. del diritto di parola) e dei diritti sociali (ad es. del diritto alla salute ecc.): la prassi dei movimenti può invece consentire di definire con precisione il rapporto tra sviluppo e diritti umani. b. In secondo luogo, la centralità dei movimenti può svelare il reale significato delle istituzioni previste a tutela dei diritti umani (good governance, rule of law, mercato, democrazia), che sono in realtà espressioni di un’ideologia a garanzia degli interessi economici occidentali. c. In terzo luogo, i piani formulati dalle agenzie delle UN per il rafforzamento dei diritti umani hanno un fondamento ideologico, in quanto mancano di indicatori obbiettivi, che possono essere forniti dalle lotte espresse dai movimenti del Terzo Mondo25. In breve: si può affermare, come ben sottolinea Rajagopal, che il solo discorso dei diritti umani non può essere il fondamento dei processi di resistenza del Terzo Mondo alla penetrazione economica e all’egemonia ideologica occidentale. Solo le finalità delle lotte dei movimenti sociali possono interpretare il discorso dei diritti umani come fondamen24 25

Cfr. Declaration on the right to development, Forty first Session, 97th plenary meeting, 4 December 1986. B. Rajagopal, International Law from Below, cit., p. 229.

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to politico-culturale dell’opposizione alla violenza economica del cosiddetto “sviluppo” promosso dall’Occidente. Questa prospettiva consente anche di mettere in discussione il concetto di Terzo Mondo – un concetto “inventato” dall’Occidente negli anni Cinquanta del secolo scorso – distinguendo tra gli interessi delle élites e quelli dei popoli del Terzo Mondo. Questo approccio permette inoltre di approfondire e chiarire l’ambivalenza dell’ordine del discorso dei diritti umani e la strumentalizzazione che ne viene effettuata dalle potenze occidentali: esso infatti, da una parte, enuncia diritti civili, politici e sociali che possono essere invocati contro gli Stati stessi a favore dei gruppi più poveri e marginali ma, dall’altra, esso contribuisce a tutelare i diritti privati, ad es., i diritti di proprietà intellettuale, i brevetti, i processi e i metodi di produzione imposti dall’Occidente, la trasformazione del patrimonio comune dell’umanità in un sistema di diritti “corporati” di proprietà26. In breve: il discorso dei diritti umani è diviso tra la funzionalità alle politiche neoliberali e quella ai processi di emancipazione dei popoli del Terzo Mondo. Questa ambivalenza mostra che l’insuperabile opposizione tra l’orizzonte dei diritti umani e le politiche economiche delle potenze occidentali può essere in realtà piegata a loro vantaggio. In ciò si svela la continuità tra l’ideologia del colonialismo, che si giustificava con il discorso della “civilizzazione” dei popoli, e l’ideologia dei diritti umani delle potenze neocoloniali che può essere utilizzata per giustificare le loro politiche economiche liberistiche. U. Baxi osserva che vi è il rischio che oggi i principi della Dichiarazione Universale dei Diritti Umani siano sostituiti da un paradigma dei diritti umani compatibile con il mercato e funzionale al commercio27. Al contrario le lotte del Terzo Mondo traggono origine da problemi sociali e da dinamiche identitarie, proponendo concezioni alternative relativamente alla condizione della donna, alla situazione ambientale, ai temi del riconoscimento delle identità etniche. 6.1. Movimenti sociali e diritti umani. L’orientamento introdotto da Rajagopal – e, più in generale, la prospettiva sviluppata dagli autori appartenenti al network di TWAIL – è sicuramente innovativo in quanto costituisce una sfida alla concezione occidentale del diritto internazionale. Esso rappresenta una visione che mette in discussione il paradigma occidentale del diritto internazionale svelandone l’unilateralità e l’evidente connotazione egemonica. 26

27

Cfr. G. Teeple, Globalization as the Triumph of Capitalism: Private property, Economic Justice and the New World Order, in Surviving Globalism: The Social and Environmental Challenges, ed. By T. Schrecker, 1997. In proposito cfr. Ancora B.S. Chimni, Third World Approaches to International Law: A Manifesto, cit., p. 54. U. Baxi, Voices of Suffering and the Future of Human Rights, cit., p. 163. Questo paradigma pone il principio secondo cui i diritti umani possono avere un futuro unicamente sulla base dello sviluppo economico. In questa prospettiva si afferma che solo il libero mercato offre le migliori speranze per la redenzione umana e si finisce, in realtà, con il legittimare l’imposizione di una straordinaria sofferenza umana da parte del capitale globale, ibidem, p. 168.

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Gli assetti istituzionali internazionali della globalizzazione e la resistenza che ad essi oppongono i paesi e i movimenti sociali del Terzo mondo impongono una riflessione teorica che dovrà inevitabilmente riconsiderare i principi che sono al fondamento dell’attuale diritto internazionale. Occorre pertanto – e conclusivamente – ricapitolare e approfondire la prospettiva avanzata dall’opposizione del Terzo mondo al diritto internazionale occidentale. Possono essere sottolineati i seguenti aspetti: 1. I movimenti sociali rappresentano una sfida teorica ed epistemologica al diritto internazionale, in quanto aprono un orizzonte che si pone oltre la centralità degli Stati e il ruolo degli individui28. Essi ridimensionano pertanto il rilievo dello Stato come agente principale delle trasformazioni socio-politiche. 2. I movimenti sociali rappresentano un’alternativa alla teoria e alla pratica del diritto internazionale dei diritti umani. I diritti sono stati infatti interpretati, nella prospettiva liberale, sulla base del confronto con la sovranità dello Stato e all’interno di due limiti: essi non dovevano violare l’integrità territoriale degli Stati e non dovevano includere l’autodeterminazione economica29. La prospettiva dei movimenti sociali consente invece di evidenziare i fondamenti socioeconomici dei diritti e della sovranità. 3. I movimenti sociali consentono di precisare il diritto allo sviluppo, in quanto essi non intendono “superare l’Occidente”, ma propongono un tipo di crescita che sia per essi ottimale30. In tal modo il problema dell’”universalismo” o meno dei diritti umani viene ricondotto al dibattito sulle strategie e sulle risorse. 4. I movimenti sociali valorizzano la dimensione della self-governance contro l’orizzonte della global governance. In proposito R. Falk parla di una “globalizzazione dal basso”31. Simili forme sono riscontrabili, ad es., in India e in America latina32 e rappresentano il risultato di aspre lotte. Al contrario il diritto internazionale celebra la globalizzazione e ignora gli orientamenti verso la governance locale. 5. I movimenti sociali si oppongono alla centralità del discorso della proprietà privata, che ha una posizione fondamentale nella teoria liberale del diritto internazionale. Ad essa i popoli indigeni del Terzo mondo hanno opposto in modo crescente la rivendicazione del loro controllo sulle risorse locali. 28 29 30 31 32

Ibidem, p. 236. Ibidem, p. 247. Ibidem, p. 248. Sul concetto di “globalization-from-below” cfr. R. Falk, Law in an Emerging Global Village. A Post-Westphalian Perspective, Transnational Publishers, Ardsley, New York 1998, p. 218 ss. B. Rajagopal, International Law from Below, cit., p. 268.

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Storicamente il diritto internazionale – dall’età moderna (nel sec. XVI), al periodo coloniale (nel sec. XIX), fino all’età contemporanea della decolonizzazione (nel sec. XX) – ha contribuito a negare i diritti dei popoli del Terzo mondo sulle loro risorse33. I diritti di proprietà individuale rivendicati dai paesi occidentali mirano ad indebolire la sovranità dei popoli del Terzo mondo. La resistenza dei movimenti sociali può contribuire a spezzare questo nesso e a porre i diritti mani sul fondamento autentico del riconoscimento dei diritti dei popoli e della dignità di ogni essere umano. In breve: c’è ancora molto lavoro da fare!

33

Ibidem, p. 263

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1

Introdução O direito de decidir sobre sua própria vida, em todos os aspectos, denominado autodeterminação, tem ganhado especial atenção no mundo jurídico, e tem exigido estudos atualizados, por parte da comunidade acadêmica. Especial desafio, desta questão, é responder se há limites para que uma pessoa decida sobre si, quando esta decisão pode comprometer sua integridade física. Imperioso estudar, portanto, os contornos da dignidade da pessoa humana, especialmente, sob o prisma das Declarações de Direitos Humanos. Interessa-nos, como objetivo deste estudo, afirmar se há ou não um limite para que um paciente decida sobre a terapia que deseja se submeter, podendo-as recusar, mesmo que tal decisão coloque sua vida em risco. Poderia o Estado substituir, nessas condições extremas, a vontade do paciente? A abordagem exigirá uma análise no significado da dignidade da pessoa humana e a importância de sua positivação em dado sistema jurídico; toma-se por base o ordenamento jurídico brasileiro, já que enuncia a proteção deste valor como fundamento do Estado. Em seguida, será necessário verificar se tal direito está albergado pelas diversas Declarações de Direitos Humanos. Prosseguindo as pesquisas, imprescindível verificar os conceitos da bioética, já que o tema em análise encontra-se intimamente ligado a esta área do direito. Verificaremos como os princípios da bioética podem auxiliar na elaboração de uma proposta que apresente os contornos da autodeterminação. Desta forma, será possível estabelecer, à luz das principais Declarações sobre Direitos Humanos, dos conceitos da dignidade da pessoa humana e dos princípios da bioética, os âmbitos e limites da autodeterminação, quando está em jogo a própria vida humana. 1

Mestre em Direito Constitucional e Especialista em Direito Processual Civil pela FDV/Vitória-ES. Diretor da Academia Brasileira de Direitos Humanos. Professor de Direito Constitucional. Advogado.

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1. Dignidade da Pessoa Humana Os debates em torno da autodeterminação conduzem, invariavelmente, na análise de casos extremos, na preservação da vida, atribuindo-se ao Estado o dever de manter a vida de seu povo. Tal fato determina, porém, uma análise sobre a mais importante característica do ser humano: a racionalidade. Assim, passemos a abordar algumas definições sobre o Homo sapiens, iniciando com a conclusão do Professor Daury César Fabriz, após exaustiva reflexão, afirmando que “O homem torna-se tema de si mesmo, objeto de suas especulações, na busca do domínio do seu próprio destino do mundo” e acresce ainda que O homem concede significado à sua própria existência no mundo. O significado que o homem oferece a si mesmo advém da sua capacidade racional de objetivar e construir toda a realidade que o cerca. O conhecimento produzido pelo homem proporciona sempre um novo significado à sua existência; uma existência que a todo momento se encontra em reconstrução (2003, p. 49).

De fato, vemos que o homem modifica seu meio, seu habitat, ao utilizar seu potencial psíquico. O mundo é alterado e esta mudança, por sua vez, provoca outras, num ciclo infindável. Isto é facilmente detectado pela análise da história, mesmo quando se verifica um curto período de tempo. Mas, o que desejamos destacar, ainda mais do que as mudanças de ordem puramente material, são as de ordem social e moral, somente possíveis ao ser racional pois “O significado que o homem oferece a si mesmo advém da sua capacidade racional...” Eis o que estamos a salientar: a racionalidade, que é ímpar, concedida ao ser humano e que “proporciona sempre um novo significado à sua existência...” (FABRIZ, 2003, p. 49). Refletindo sobre o tema, o Professor Daury César Fabriz, ao buscar a perfeita e consagradora definição do tema tratado neste tópico, concluiu: “O Homem é aquilo que o seu conhecimento pode indicar que ele é”. Extraia-se desta expressão a natureza não física, mas mental, psíquica, tendo por corolário que a qualidade de raciocínio inerente no homem não é apenas um diferencial, mas elemento principal. Basta indagar se uma pessoa que possui um físico, resultando num ser cabalmente debilitado deixaria esta de ser um homem, um ser humano? Não haveria quem defendesse uma resposta afirmativa. Tomemos outro exemplo, a de uma pessoa gravemente enferma, inapta a locomover-se e - para se chegar a um caso extremo - sem condições de se alimentar por seus próprios movimentos, necessitando a todo tempo de ajuda até mesmo para as atividades

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mais simples. Ainda assim seria inconcebível retirar-lhe sua dignidade qual ser humano. Também, por esta razão, ninguém ousaria tirar a vida de uma pessoa pelo simples fato de estar fisicamente debilitada. A conclusão acima nos leva a verificar que, para a vida do homem ser significativa, vivida a contento, tornar-se-á necessária a instituição de direitos fundamentais baseado na condição do homem sob os aspectos dele como pessoa, cidadão, trabalhador e administrado, sendo irrenunciável sua individualidade (1999, p. 248). O respeito à integridade física, psíquica e moral encontra-se inserido no princípio da dignidade humana conforme muito bem tratado pelo Dr Daury Cesar Fabriz mencionando que “Em decorrência desse princípio, ninguém poderá ser submetido a torturas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes; da mesma maneira que ninguém poderá arbitrariamente ser detido, preso ou desterrado, assegurando-se a liberdade de pensamento e culto religioso” (2003, p.273). Nota-se que o respeito à dignidade da pessoa humana transcende os limites do físico, do corpo humano, uma vez que abarca também o culto religioso e a liberdade de pensamento, o que se verifica ao analisar diversos incisos do artigo 5o. da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, como os que excertamos abaixo: VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva; VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial; [...]

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Há outros, mas, como afirmamos, nosso objetivo foi trazer exemplos para tornar visível a preocupação do constituinte em preservar a dignidade da pessoa humana trazendo, inclusive, direitos fundamentais, de caráter físico (corpo, incisos VIII, X e XI), psíquico (liberdades de consciência e de expressão, incisos VI, VIII, IX e X) e espiritual (liberdade religiosa, incisos VI, VII e VIII). Não há como prosseguir em nossos estudos, no entanto, sem enfrentar o que vem a ser vida humana o que nos leva a abordar o tema “pessoa humana” e todos os elementos de sua dignidade. A vida humana é o ápice da proteção do direito, sua maior preocupação, a ponto de propulsionar, invariavelmente, as melhorias dos ordenamentos jurídicos. Tomemos como exemplo o Código Penal Brasileiro que, abrindo a Parte Especial, em ser art. 121, estatui: Matar alguém: Pena - reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos. O intuito da pena é de preservar a vida. Mas a Constituição Federal traz ainda outros exemplos de preservação da vida, sendo a tutela maior a ser oferecida à população, a saber: o art. 5o. caput: Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes... Nos aprofundaremos mais para apurar os significados e abrangências deste dispositivo constitucional, mas por ora, visamos demonstrar a preocupação de Nossa Carta Maior em defender o direito à vida, encabeçando um rol de direitos e garantias individuais e coletivos. Abordando os direitos e liberdades, a ilustre professora Suzana de Toledo Barros (2003, p. 131s), que também colaborou nos trabalhos da última Assembléia Nacional Constituinte, classifica-os em quatro categorias, ordenados em ‘gerações’, sendo: 1a. a liberdade religiosa; 2a. as liberdades civis, políticas e sociais; 3a. dos direitos difusos de natureza transindividual e, por fim; 4a. dos direitos ambientais. Pela análise realizada acima, pode-se afirmar que a dignidade da pessoa humana tem uma amplitude que transcende os limites físicos. De fato, o professor Dr. Daury César Fabriz manifesta conclusivamente que “A dignidade da pessoa humana expressa-se como corolário de todo arcabouço ético de uma sociedade” (2001, p. 275). Certamente, esta conclusão encontra guarida na Constituição brasileira, ganhando destaque, ao ser mencionado como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, pois vejamos:

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Art. 1° A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. (grifos acrescidos). Constituindo a dignidade da pessoa humana um dos fundamentos da República Federativa resulta em apurarmos a importância desta no sistema jurídico brasileiro. Esta constatação conduzir-nos-á a pesquisar qual nível ocupa, em relação aos demais valores que busca este tutelar.

1.1. Posição ordinal da dignidade da pessoa humana no ordenamento jurídico Comentando o preceito, Uadi Lammêgo Bulos ressalta a importância da dignidade da pessoa humana neste rol de fundamentos, afirmando que A dignidade da pessoa humana é o valor constitucional supremo que agrega em torno de si a unanimidade dos demais direitos e garantias fundamentais do homem, expressos nesta Constituição. Daí envolver o direito à vida, os direitos pessoais tradicionais, mas também os direitos sociais, os direitos econômicos, os direitos educacionais, bem como as liberdades públicas em geral. [...] A dignidade da pessoa humana, enquanto vetor determinante da atividade exegética da Constituição de 1988, consigna um sobreprincípio, ombreando os demais pórticos constitucionais, como o da legalidade (art. 5°, II), o da liberdade de profissão (art. 5°, XIII), o da moralidade administrativa (art. 37) etc. Sua observância é, pois, obrigatória para a interpretação de qualquer norma constitucional, devido à força centrípeta que possui, atraindo em torno de si o conteúdo de todos os direitos básicos e inalienáveis do homem. (2001, p.49-50). Uadi Lammêgo Bullos reputou à garantia, ora em análise, o grau de “carro-chefe dos direitos fundamentais na Constituição de 1988” (2001, p.50) lembrando que a dignidade da pessoa humana encontra-se prevista em diversos outros instrumentos constitucionais, como por exemplo, na Lei Fundamental de Bonn de 1949 que teve efeitos influenciadores na Constituição da Espanha de 1978, que em seu art. 1° reza: “A dignidade do homem

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é inatingível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo poder público” (2001, p.50). O poder constituinte português seguindo o exemplo, também assegurou logo na abertura dos dispositivos constitucionais tal garantia. O alcance da dignidade da pessoa humana é defendido como sendo absoluto, conforme argumentado por Fernando Ferreira dos Santos, citado por Daury César Fabriz, pois afirma que “ainda que se opte, em determinada situação, pelo valor coletivo, por exemplo, esta opção não pode sacrificar, ferir o valor da pessoa” lembrando ser este o “instrumento balizador dos demais princípios e direitos compreendidos como superiores” e concluiu que “Se a vida é o pressuposto fundamental, premissa maior, a dignidade se absolutiza em razão de uma vida que somente é significativa, se digna” (2003, p.275). Concluímos daí, que a vida humana somente terá sentido se vivida em dignidade, por isso, transformado em requisito essencial para o exercício do maior direito concedido ao ser humano. J. J. Gomes Canotilho (1999, p.243), ao tratar dos direitos fundamentais, lembrou com muita propriedade que tais direitos criam para o Estado um dever, denominado “Função” e tendo como a primeira destas funções a de defender o ser humano das agressões aos seus direitos fundamentais e, ainda mais, explanando-nos sobre o que denominou ‘direitos de defesa’ sendo que estes, em dupla perspectiva (1)constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa). (1999, p. 243-244). Exorta-se, portanto, ver o princípio da dignidade da pessoa humana como elemento intrínseco do ser, do existir humano. Abordaremos, a seguir, como o homem pode esperar ver instituído e protegido direitos que visem conceder-lhe um viver digno. A dignidade da pessoa humana é, como demonstrado, o mais alto bem que pode ser tutelado, já que ultrapassa a preservação da vida, estritamente considerada, atingindo a preservação dos valores do ser humano. É uma das razões que trazem dificuldades para sua conotação, uma vez que deverá delimitar seu alcance. Ingo Wolfgang Sarlet (2004, p.573) enuncia que a dignidade da pessoa humana é a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais

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que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. Apreendemos, da definição acima, após considerações dos elementos constitutivos da dignidade da pessoa humana feitas pelo autor, que esta, por ser complexa, atribui deveres ao Estado e, concomitantemente, à comunidade, para proteger o indivíduo de atos desumanos. Neste ponto já podemos concluir que a dignidade tem conexão indissociável com a existência do ser, respeitando seus valores, sua cultura, seus costumes. Há que se garantir também, assevera o professor, condições mínimas de existência saudável e, ainda, atingir a harmonia social.

1.2. Irrenunciabilidade Para chegarmos a uma conclusão devidamente fundamentada, parece-nos imprescindível analisar se a autodeterminação é absoluta ou se há condições ou circunstâncias que esta restará relativizada, isto é, se podemos conceber condições ou limites para a autodeterminação, ao que podemos definir como circunstâncias em que se chega a irrenunciabilidade de direitos, valores ou bens jurídicos. Ingo Wolfgang Sarlet (2004, p. 566) defende, na esteira de Martin Koppernock, que a dignidade, na sua perspectiva assistencial (protetiva) da pessoa humana, poderá dadas as circunstâncias, prevalecer em face da dimensão autonômica, de tal sorte que, todo aquele a quem faltarem as condições para uma decisão própria e responsável (de modo especial no âmbito da biomedicina e bioética) poderá até mesmo perder – pela nomeação eventual de um curador ou submissão involuntária a tratamento médico e/ou internação – o exercício pessoal de sua capacidade de autodeterminação, restando-lhe, contudo, o direito a ser tratado com dignidade (protegido e assistido)”. (grifos acrescidos). Afirma-se, por esta doutrina, que o homem pode perder a autodeterminação, passando o poder decisório a outra pessoa: um curador ou o médico, acima enunciado quando se faz referência a uma “submissão a tratamento médico ou internação”. Concordamos como autor, porém, quando afirma, que “resta-lhe, contudo, o direito a ser tratado com dignidade”. Mas discordamos, data máxima vênia, da possibilidade de submissão a tratamento médico involuntário. Tal prática – obrigar o paciente a submeter-

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-se a tratamento médico – afronta todos os princípios pertinentes à dignidade da pessoa humana, já que esta ignora a característica diferenciadora do ser humano: a razão. Forçar uma pessoa a um tratamento médico ou internação, quando este, quando no exercício de suas faculdades mentais normais, manifestou-se em sentido contrário, é tratá-lo como ser irracional, o que é inconcebível sob o atual estágio dos direitos humanos.

2. Autodeterminação sob a Ótica dos Direitos Humanos A história dos direitos humanos, cujos excertos servirão para nos auxiliar a melhor visualiza, a evolução das liberdades, uma vez que estão interligados por serem decorrentes que são dos direitos humanos, mostra-se relativamente recente. No Século XIII tivemos a Magna Carga inglesa, mais precisamente em 1215, que resultou de um pacto entre o rei João-sem-terra e os barões rebeldes. Tal instrumento já continha normas jurídicas para proteger liberdades do povo em face da voraz atuação da Coroa. Estas disposições, lembra-nos Ireneu Cabral Barreto (1999, p.22), influenciaram documentos como The Petition of Rights (1628) e The Habeas Corpus Act (1679). Assevera Antonio Cassese (1993, p.7) que no início do século XX, era comum ver atrocidades serem praticadas contra o homem, tais como discriminações e torturas. Tínhamos uma Itália fascista que obliterava as liberdades de expressão e associação; os Estados Unidos praticavam forte discriminação contra os negros. Em diversas nações os índios eram explorados de forma desumana e a então União Soviética reprimia de forma progressiva os direitos à liberdade. Pouco antes, no século XVIII, para combater o desprezo pelos direitos básicos do homem, surge na França, em 1789, a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” que enunciava, desde seu preâmbulo: Os representantes do povo francês, reunidos em Assembléia Nacional, tendo em vista que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos Governos, resolveram declarar solenemente os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem [...] Frisamos, em análise ao enunciado preambular desta nobre Declaração, que os os direitos do homem, com raiz nos direitos naturais, tornaram-se necessários em decorrência das atrocidades e das práticas arbitrárias, assustadoramente comuns, dos governantes. Embora tenha conseguido amainar a situação, estas continuaram ocorrendo. Ireneu Cabral Barreto classifica esta declaração como a “formulação clássica dos direitos invioláveis do indivíduo” (1999, p.22).

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Num movimento de constitucionalização dos direitos humanos, surgiu nos Estados Unidos da América, em 1791, o Bill of Rights com os dez primeiros princípios da constituição daquele país (BARRETO, 1999, p. 22). Veio então a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, fornecendo não apenas um instrumento paritário, comum, de relacionamento entre uma nação e outra, mas, um parâmetro de como deveria o indivíduo ser tratado em uma sociedade, não atuando apenas de forma universal, mas inserindo valores antes ausentes em algumas constituições. Não obstante tais instrumentos declaratórios, víamos ainda a desconsideração pelo que continham. Desta forma, comenta Ireneu Cabral Barreto (1999, p.22), “nos Estados Unidos, por exemplo, a sua Declaração de Independência consagrava a igualdade do homem, mas só 80 anos mais tarde a escravatura foi abolida”. Olhando para a Europa, similar fenômeno ocorreu, uma vez que, embora a Declaração dos Direitos do Homem atribuísse liberdade a igualdade formal, excluíram dela as mulheres, quando se tratava de direitos naturais (BARRETO, 1999, p.23). Mas, a médio e longo prazo, qual foi o efeito desta declaração dos Direitos Humanos? Antes víamos a inteira população de um Estado ser tratada de forma desumana inexistindo qualquer ação para conter tais atos; agora vemos a cobrança por um genocídio, clamando por uma penalidade, em seu pleno alcance; via-se a tortura dos cidadãos, agora há a proibição de tratamentos desumanos e uma cobrança forte sobre esta prática, visando sua inibição; outrora via-se Estados (nações) ignorando necessidades de seus governados, sob a égide de descumprimento de normas internacionais,; podemos hodiernamente falar em direitos à alimentação, a um ambiente, a uma vida decente (CASSESE, 1993, p.7). Mas a Declaração Universal dos Direitos Humanos implicou evolução. Se antes o cidadão era protegido de forma agrupada, em sociedade, agora, fala-se numa individualização de garantias. Podemos, em decorrência disso, falar do estabelecimento consolidado das garantias que o Estado concede ao indivíduo, não interferindo em sua esfera privada, assegurando-lhe seu direito à vida e à segurança, à intimidade e à vida familiar. É reconhecido seu direito à propriedade privada, à manifestação livre de suas opiniões, à prática religiosa e da livre reunião para fins pacíficos (CASSESE, 1993, p.7).

2.1. Autodeterminação na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 Vamos pesquisar se encontramos na Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, preceito que poderia fundamentar o direito de decisão. Encontramos na Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, preceito que fundamenta o direito de decisão, em seu artigo 4º. estabelecendo que

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A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei. (MELLO, 2003, p.39). Destacamos do enunciado acima o âmbito da liberdade, chamando atenção para o fato da proteção das decisões dos indivíduos, em face de arbitrariedades dos governantes ou da sociedade. Também restou patente que os limites das decisões que tenham pertinência à própria pessoa (autodeterminação) somente encontrarão óbice se refletir em obliteração nos direitos da sociedade. Fora destes limites, não se admitiria plausível a alguém determinar conduta a outrem.

2.2. Autodeterminação na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793 Igualmente necessário sondar legitimação para conceder a liberdade de decisão aos indivíduos no instrumento de Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793, também francês. Analisando seus preceitos, defrontamo-nos com o disposto no art. VI, estipulando que A liberdade é o poder que pertence ao Homem de fazer tudo quanto não prejudica os direitos do próximo: ela tem por princípio a natureza; por regra a justiça; por salvaguarda a lei; seu limite moral está na máxima: - “Não faça aos outros o que não quiseras que te fizessem”. (MELLO, 2003, p. 41). Ratifica-se o entendimento de que os limites de decisão e de ação de uma pessoa são o potencial de dano ou da liberdade de outra. Pode-se decidir tudo que não danifique ou restrinja a liberdade de outro ou da sociedade.

2.3. Autodeterminação na Declaração Universal dos Direitos Humanos O artigo I da Declaração Universal dos Direitos Humanos abre, elencando os princípios deste histórico instituto, que “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade” (MELLO, 2003, p.65).

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Novamente encontramos o ideal de liberdade de ação, reconhecendo a característica humana da razão e tutelando a dignidade da pessoa humana. Mas o art. XII traz uma reserva de ação que nos interessa de modo especial. Vejamos: Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques. Concede, o artigo XII, ampla liberdade ao indivíduo para decidir e agir, vedando o cerceamento às decisões ou atos sobre si mesmo. Desta maneira, consolida-se um quadro que pode ser assim resumido: a autodeterminação encontra tutela em todas as três declarações de direitos humanos; os limites, quando existem, buscam preservar a incolumidade pública e evitar prejuízos a outros. Por corolário, não há qualquer óbice do indivíduo decidir sobre sua própria vida se apenas ônus existirem, ou seja, se os reflexos serão sofridos e arcados pela própria pessoa. Poderia, então, um paciente decidir não realizar determinada terapia, mesmo comprometendo sua vida? Analisando as declarações de direitos humanos, não encontramos qualquer empecilho neste sentido. Ao contrário, verificamos que ele pode, sim, optar por submeter-se ao tratamento ou simplesmente ignorá-lo. Pode, ainda, solicitar as alternativas ou recolher-se para sua casa. Não vemos fundamento para determinar que um paciente, acometido por câncer, deva ser forçado à quimioterapia se não desejar sofrer os efeitos colaterais. É uma opção sua. O exercício da autodeterminação encontra-se plenamente resguardado. O mesmo ocorre quando o paciente deseja as alternativas às transfusões sanguíneas; inexistindo estas ou, ainda, não sendo estas eficazes, resguarda-se a recusar as transfusões, sob fundamento de afronta à dignidade da pessoa humana.

3. Autodeterminação sob a Bioética No presente capítulo abordaremos os temas conexos com a prática da medicina, o que atrairá a consideração atinentes à bioética, seus desafios e limites para a medicina, suas definições e seus princípios. Direitos do médico e do paciente são de especial interesse pelo objeto deste trabalho bem como a forma de efetivação da vontade do paciente considerando os dispositivos constitucionais, infraconstitucionais e os constantes no Código de Ética Médica.

3.1. Ética e Bioética O uso freqüente que se faz destas palavras, mais recentemente, do termo ‘Bioética’ vem causando uma aplicação indevida, o que será explanado no sub-tópico que leva este nome.

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3.1.1. Ética Por mais utilizado que seja no vocabulário corrente, faz-se mister analisar o termo “ética” a fim de estabelecer o pacto semântico nesta obra, evitando desvios que o vernáculo propiciaria sem este cuidado. Ensina-nos Guy Durant que a “palavra ‘ética’ origina-se do grego (éthos) e se refere aos costumes, à conduta da vida, às regras do comportamento” (1995, p.13) ressaltando que etimologicamente analisado, implica sinônimo da palavra ‘moral’. De fato, o Dicionário Caldas Aulete (1974, p.1482) apresenta-nos o vocábulo como sendo um singular feminino de origem grega ‘ethike’ traduzido para o vernáculo por mora e que tem sido empregada por diversos autores, tal como Guy Durant (1995, p.13) de forma sinônima ensinando-nos que abrange três conceitos: 1. A pesquisa de normas ou de regras do comportamento, a análise dos valores, a reflexão sobre os fundamentos dos direitos ou dos valores. 2. A sistematização da reflexão. (...) 3. A prática concreta e a realização dos valores.

Outro sentido da palavra ‘ética’ é empregada hodiernamente como sendo “’a ciência do bem e do mal’, ou a ‘ciência da moral’. Ou, ainda, se limita ao estudo dos fundamentos da moral” (DURANT, 1995, p. 14). Visando, por fim, estabelecer um parâmetro razoável, adotemos os conceitos apresentados por Guy Durant para estes três termos, afirmando que A palavra moral é freqüentemente percebida de um modo negativo; ela lembra uma abordagem tradicional, fechada, religiosa. A palavra ética nos envia a uma nova análise, a uma abertura de espírito, a uma perspectiva não-religiosa. Quando à palavra deontologia, ela faz pensar espontaneamente em regras práticas, em obrigações concretas; ela lembra a idéia de um código adotado por uma autoridade impondo-se quase juridicamente aos membros de uma corporação”. (1995, p.16). Como vemos, Guy Durant procurou exprimir no enunciado, de forma sintetizada, o corrente uso e idéia que cada uma das palavras – moral, ética e deontologia - transmite. Daury Cesar Fabriz, ao enunciar sobre a ética, ensina que “devemos entender o vocábulo Ética, com consonância com o pensamento de Moore, como aquilo que é bom em si mesmo; […]. Tudo aquilo que se opõe à indignidade vislumbra-se como ético” (2003, p.77). Quando se ventila assuntos como a experimentação científica em seres humanos, traz-se à baila a afetação da dignidade humana (2003, p.85). Mais adiante, assevera-nos

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que “a problemática de toda ética contemporânea se insere no respeito à dignidade da pessoa humana” (2003, p.102). Não há como tratar de ética sem que lancemos olhares sobre a dignidade da pessoa humana para obter balizas para as ações científicas que visam melhorar a vida do homem. Conforme podemos apreender dos enunciados acima, percebe-se claramente o estabelecimento de limites para aplicação das descobertas tecnocientíficas sob os olhares do princípio da dignidade da pessoa humana.

3.1.2. Bioética O uso do termo ‘bioética’ não se dista muito na cronologia da história jurídica. Seu uso foi inicialmente efetuado mediante proposição do biólogo Van Rensselaer Potter, em 1970 com um artigo intitulado “Bioethics: the Sciense of Survival” e, logo no ano seguinte, com o livro ‘Bioethics: Bridge to the future’ externando o valor da biociência para a sobrevivência humana, possuindo, por sua importância, uma abrangência interdisciplinar. Aplicou o termo para se reportar aos conhecimentos dos sistemas de viventes em consonância com os sistemas de valores humanos (bio+ética) (FABRIZ, 2003, p.73). Assevera, o autor, ainda, que a bioética abarca estudos sobre a conduta humana e as influências e riscos que se submete quando aplicados os avanços biomédicos e tecnocientíficos (2003, p.75). Deixou transparente neste enunciado que a bioética tem como objeto, portanto, analisar e registrar os perigos que os avanços tecnológicos, principalmente na área da biociência, representa para a própria humanidade. Por fim, Guy Durant propõe que “a bioética é a pesquisa de soluções para os conflitos de valores no mundo da intervenção biomédica, conflitos que deverão ser resolvido pela interposição de uma hierarquia destes, ante uma visão de mundo e uma visão antropológica fundamental” (1995, p.22) e, prosseguindo, assevera que deve inserir “o respeito concreto e a proteção às pessoas; sua liberdade, sua inviolabilidade e qualidade de vida” (1995, p.25). Mais adiante em suas considerações, este autor volta a se referir à vida quando propõe um rol de temas inclusos no objeto de estudo da bioética, dos quais destacamos “a eutanásia, obstinação terapêutica, recuperação, verdade aos doentes, direito à morte;[...]” (1995, p.27). De especial interesse para o presente estudo é a dimensão que a bioética objetiva, conforme elucidado pelo próprio Guy Durant, descrevendo que “a bioética se preocupa com os casos individuais. Ela se relaciona assim com a decisão pessoal do paciente e daqueles que o rodeiam, seu diálogo e, finalmente, com a decisão final“ (1995, p.28). Este âmbito de abordagem é denominado de microética, em oposição à macroética que trata do “equilíbrio dos direitos, pelas estruturas sociais e legais a serem situadas, enfim, pelas condições estruturais da promoção das pessoas e das sociedades, por categorias sociais, econômicas, políticas e culturais das decisões pessoais”(19995, p.28).

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Assim, notamos que o ato da escolha conscientemente de um paciente na recusa às transfusões de sangue e suas implicações estão inseridas no objeto da bioética. Justifica-se, portanto, uma análise mais apurada desta interessante ciência, dentro de nossos estudos, o que nos propomos a fazer no próximo tópico.

3.1.2.1 Princípios da Bioética Vimos a importância da Bioética para a preservação de padrões salutares de investigação científica considerando o atual estágio de pesquisas científicas aplicáveis à medicina. Passaremos a abordar neste tópico a consideração de elementos norteadores da própria Bioética, adotando a corrente principialista, ou seja, passaremos a estudar cada um dos princípios que estabelecer-lhe-ão seus necessários limites.

3.1.2.2 Princípio da beneficência Considerando tal princípio, Daury Cesar Fabriz (2003, p.108) preconiza que sua finalidade será a de estabelecer um norte, uma referência, um alvo, para o legislador, ou, como denominou, o “normatizador jurídico”, que, olhando para a bioética, estabelecerá as normas que concedam “direitos e deveres que dizem respeito à comunidade científica, aos sujeitos da pesquisa, aos médicos e pacientes, bem como ao Estado” estabelecendo condutas que propiciem o “bem-estar da clientela” . O autor, ao prosseguir, cita Fátima de Oliveira, advertindo que nas circunstâncias em que se exige a escolha entre o bem-estar da pessoa ou os interesses da sociedade e da ciência, o primeiro prevalecerá. De fato, opção inversa abriria oportunidade de utilização do indivíduo como mero instrumento científico. O homem estaria ocupando ora o lugar de beneficiário, ora o papel de ferramenta da biociência. Podemos concluir que, se até mesmo quando os interesses da sociedade e da ciência estão em jogo estes são superados pelos interesses do indivíduo, uma vez que o princípio da dignidade prepondera sobre aqueles interesses. Por sua vez, tanto mais o médico deve observar a vontade do paciente quando este recusa uma terapia, pois, também, sua dignidade está em questão devendo prevalecer já que é o valor supremo no ordenamento jurídico.

3.1.2.3 Princípio da autonomia O princípio da autonomia estabelece que todos são responsáveis por seus atos, sendo estes, por sua vez, fruto de sua livre escolha. Daury Cesar Fabriz defende que “devem-se respeitar a vontade, os valores morais e as crenças de cada pessoa” (2003, p. 109). Guy Durant tratou deste assunto sob o tópico de “autodeterminação da pessoa” lembrando-nos que “ela constitui um primeiro princípio fundamental, ainda que nem

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todos assim interpretem” (1995, p.32s) e, para justificar o princípio, cita duas razões: primeira, porque tem conexão com a dignidade humana. Note-se que ele não se referiu ao princípio da dignidade humana mas, sim, diretamente à dignidade da pessoa, lembrando que “a pessoa, não é uma coisa, nem um objeto para o qual se determina um comportamento, mas é livre para assumir o seu destino” (1995, p.33); segunda, a existência de uma espécie de contrato entre o médico e seu paciente, entre o pesquisador e o ‘objeto’, exigindo-se uma relação de confiança. O paciente deposita a confiança no médico que, em contra-partida, não pode agir como soberano,como absoluto e senhor do paciente que lhe procurou. Guy Durant é bastante enfático ao abordar esta situação lembrando que “quando o paciente confia em um médico, ele não renuncia a sua autonomia, ele não se dirigiu a um grande feiticeiro que decidirá por ele. Ele simplesmente precisou de um especialista que o ajudasse a resolver seus problemas” (1995, p.33). Do que já foi exposto até aqui, podemos fazer uma reflexão. Uma primeira consideração é concernente ao caráter do princípio, sendo defendido como o primeiro ou principal na bioética. Depois, podemos refletir nas conseqüências da decisão. O processo decisório nas situações de consentimento ou recusa não é fácil, pois, enquanto pode implicar um benefício por um lado, traz consigo o ônus pelo que decidiu, uma vez que suportará, ele mesmo, as conseqüências de sua decisão, sendo sua a vida que está em jogo, ele é quem sentirá as dores que lhe acometerão. Pode parecer, prima facie, redundante e óbvio o que afirmamos, mas se faz necessário para fins de ênfase e reflexão. Explícito resulta entender por que Guy Durant nos lembrou de que o paciente, ao procurar um médico, não está abdicando de sua autonomia! Quando falamos em autodeterminação, deve se pressupo a escolha em virtude de uma situação, um conflito fático: o paciente aceita a terapia ‘a’ ou a terapia ‘b’ que, por serem diferentes, implicarão em graus de benefício, riscos e custos distintos. Os custos podem ser de ordem financeira ou moral/ética. Os riscos estarão ligados à sua situação de saúde. Por tal razão, é imprescindível ao paciente indagar sobre estes, em relação a sua saúde, quando analisa se aceita ou recusa alguma terapia podendo, até mesmo, rejeitar todas, em face dos efeitos colaterais, chances de cura, questões de estética, ou razões de foro íntimo. Imaginemos, para exercício de argumentação, que um paciente acometido por um tumor. A quimioterapia lhe estará a serviço, mas trará pesados efeitos colaterais e estéticos que somente o paciente poderá decidir se deseja pagar tal preço. Pode preferir não submeter-se ao tratamento. Cabe somente a ele decidir, mesmo que implique uma antecipação de sua morte. Não há como vislumbrar que o médico, o diretor do hospital ou, ainda, a clínica, após informá-lo de sua situação e as terapias disponíveis, avancem sobre seu corpo e submetam-no à quimioterapia ao arrepio de sua vontade. Seria violação aos princípios da autodeterminação e da dignidade da pessoa humana. Tal paciente estaria sendo tratado como uma ‘coisa’ fazendo referência ao termo utilizado por Guy Durant,

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conforme mencionado linhas acima. Defendem alguns que, estando a vida em risco, estaria o médico autorizado a realizar a transfusão de sangue, mesmo tendo o paciente se recusado a tal procedimento. Tal assertiva nos remete a considerar o princípio do respeito pela vida. Avançando em nossa consideração, importante abordarmos outra faceta do princípio da autonomia ou autodeterminação. Trata-se do consentimento substitutivo, ou seja, aquele que diz respeito a pessoas juridicamente incapazes, tais como os menores, deficientes mentais e os permanente ou definitivamente inconscientes. A solução é trazida por análise aos princípios éticos apresentados por Guy Durant, como: “procurar a vontade provável do doente; solicitar um tutor ou um amigo, agir no melhor interesse do doente, etc“(1995, p.36). Neste espeque o ordenamento jurídico brasileiro estabelece os preceitos pertinentes, estabelecendo as formas e pessoas declaradas competentes para, em nome do titular, exercer as escolhas pertinentes. Não se fala em autodeterminação nestes casos, mas sim em consentimento substitutivo. Destaque-se que em momento algum cogitou-se em transferir tal autonomia ao médico. Aliás, de forma exemplificativa, Guy Durant elenca uma situação em que Ante um menor, a maior parte das legislações atribuem a decisão aos pais ou tutores. No sentido ético pode-se, tanto quanto for possível, obter o conhecimento do jovem, principalmente se ele for adolescente [...] A mesma atitude é exigida normalmente para os deficientes mentais. [...] Com a pessoa em estado de coma pode-se perguntar se ela exprimiu, anteriormente, sua vontade de maneira explícita. Em caso afirmativo, se usa o tratamento. Caso contrário pode-se tentar encontrar a vontade presumida do doente com seus parentes. Em última instância pode-se escolher aquilo que parece atender melhor ao paciente, presumindo que isso fosse a sua vontade. (1995, p.36). Concluímos, assim, que caberá ao paciente, ou a alguém conexo a ele, a decisão sobre qual terapia escolher, isto é, qual delas aceita e qual rejeita, prerrogativa que encontra amparo nos princípios da dignidade da pessoa humana e do livre consentimento ou da autonomia do paciente, estes decorrentes do princípio da autodeterminação. Apreendemos, de forma indubitável e explícita, que: a) a primeira escolha, cabe ao paciente; b) não podendo exprimí-la, cabe aos familiares, ao tutor ou, ainda, ao curador; c) não sendo possível aferir destas formas a vontade do paciente, apenas de forma residual a escolha será concedida ao médico. Um último apontamento se faz necessário, visando fortalecer a motivação ou justificação do princípio da ‘autodeterminação da pessoa’, qual seja a de que a escolha –

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consentimento ou recusa – de uma terapia médica, tal como uma quimioterapia, cirurgia ou ainda, uma transfusão de sangue, deverá ocorrer de maneira consciente e motivada.

3.1.2.4. Princípio do respeito à vida A preocupação em manter a vida do ser humano remonta aos primórdios da sua própria história, ou seja, desde que se ouve falar em humanidade, também ouve-se falar em proteção à vida, havendo variações de graus de proteção. Na tradição das religiões sob direção da Bíblia, vemos logo no início de sua narrativa que puniu-se o assassinato, conforme encontra-se registrado no livro de Gênesis 4:1-16, quando Caim golpeou fatalmente Abel. Deus Jeová o puniu, mas, para que não se lhe tirasse a vida por vingança da vida de Abel, Caim recebeu a oportunidade de se manter refugiado. Mas tarde, quando Moisés recebeu a tábua com os dez mandamentos, um deles, registrado no livro de Êxodo 20:13 assevera: “Não deves assassinar” (BIBLIA, 1986, p. 832 ). Quando a moral e o direito se separaram da religião, o preceito de preservação da vida mediante punição do assassinato continuou merecendo importância destacada (DURANT, 1995, p.38). Mas, como devemos encarar a vida? Conforme tutelado pelos sistemas jurídicos? O que está envolvido quando nos referimos à vida humana? Segundo Guy Durant (1995, p.38) existem quatro correntes distintas que preconizam, cada qual, seu conceito de vida. A primeira é denominada ‘Vitalismo’ e a declara sagrada devendo ser preservada mesmo quando sob condições frágeis, de risco; apenas Deus é o dono da vida. A segunda refuta o caráter sagrado da vida, admitindo até mesmo exceções à inviolabilidade da vida. A terceira contrapõe, em termos, o caráter sagrado da vida transformando-a em princípio e admitem sua relativização por ser um princípio fundamental, mas indeterminado. Por fim, a quarta corrente que, igualmente à segunda, recusa o caráter sagrado da vida, porém ressalta a importância da qualidade da vida. No contexto médico, implica atribuir maior ou menor importância à vida por critérios de sua formação, chegando o citado autor, afirmar que, estando duas vidas em perigo, escolhe-se aquela de maior qualidade, por conter maior valor. No contexto da natureza, ecologia e sociologia, visa-se a melhoria da qualidade de vida, isto é, a melhoria no ambiente exigindo empenho para oferecer proteção em todas as formas, facetas e etapas. Este segundo contexto também pode ser transferido para o ambiente da medicina, sob o qual, o alvo mediato é aquilo que pode ser melhorado não diretamente àquele paciente, mas sim, para o futuro. Sob este prisma, Guy Durant (1995, p.32) afirma que 2

Utilizou-se a Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas publicada pela Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, que baseou-se na versão inglesa de 1984.

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em certos casos, poder-se-ia, então, concluir, que a melhor decisão – levando-se em conta o estado do doente, de seu sofrimento e das previsões – fosse cessar ou de não mais tentar um tratamento de urgência, que na realidade faria apenas prolongar uma agonia ou esticar uma vida biológica. Mas, também em outros casos, a decisão será de tentar prosseguir o tratamento se houver uma esperança razoável de controlar o sofrimento e de manter as funções normais da vida. Enfim, o que se deve analisar é a possibilidade de oferecer maior conforto e bem-estar a todos os pacientes, mesmo os que não tem noção precisa de sua situação como os recém-nascidos e os deficientes mentais. Apesar da corrente que se afilia ao enfoque da vida sob o prisma da ‘qualidade’ encará-lo diametralmente oposto ao caráter ‘sagrado’, Guy Durant entende que é possível então unir o conceito de qualidade de vida com o princípio do caráter sagrado da vida. Em nossa opinião, não é necessário colocar as duas máximas como oponentes, mas considerá-las como complementares, ambas contribuindo para satisfazer as exigências éticas do respeito pela vida humana (1995, p.44). Concluída a abordagem destes quatro espectros, voltemos à consideração do ‘princípio fundamental indeterminado’ para tecer um comentário indispensável neste estágio de nossos estudos. Guy Durant (1995, p.40) lembrando que as religiões admitem que o homem recebeu de Deus parte do controle sobre os seres [inclusive sobre suas vidas] tendo a capacidade de entender e assumir as conseqüências de suas decisões. Reiterou ainda, que a ética filosófica não enxerga oposição entre o caráter sagrado da vida e a prática da legítima defesa. Expôs, de forma cristalina, uma evidência que não podemos nos furtar de aplicar. Destacou a capacidade e, ainda mais, a competência das decisões do indivíduo acerca de sua própria vida, e por decorrência, de seu próprio corpo. Não retirou esta competência nem a capacidade sequer nas circunstâncias de risco de vida. Raciocinou que “a prática médica, com efeito, não considera a vida como ‘tabu’ e as doenças, assim como os acidentes, como acontecimentos inesperados, reconhecendo nos seres humanos a responsabilidade própria sobre a vida e a morte”. Assim, podemos afirmar que o paciente tem plena capacidade em escolher a terapia que deseja submeter-se – escolher significa aceitar ou recusar - cabendo ao médico o dever de informar ao paciente sua situação e as alternativas disponíveis, mesmo que ele, médico, não as domine. Afinal, cada médico atuará em sua área de especialização e, por isso, encaminhará o paciente ao profissional mais adequado, já que o paciente, quando saiu de sua residência

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e foi buscar um médico demonstra inegável interesse de obter tratamento, como muito bem notificou-nos o próprio Guy Durant, e que registramos a pouco. Ademais, o princípio do respeito pela vida, como introdutoriamente considerado, visava primordialmente proteger os indivíduos dos assassinatos e não foi instituído para retirar o direito da livre disposição do corpo, tanto que não se pune o suicida, não obstante, punir-se aquele que instiga outrem ao suicídio3. Não encontramos, por tal razão, fundamentação para retirar do paciente seu direito à autodeterminação, ou seja, impedir que possa dispor de seu próprio corpo, em qualquer situação. Por exemplo: determinado paciente se encontra acometido de um aneurisma e não aceita se submeter à intervenção cirúrgica apesar de recomendação médica neste sentido, mesmo sob advertência de que tal recusa pode custar-lhe a vida; o paciente entra em coma. Neste ínterim, o médico, desconsiderando sua vontade, procede tal intervenção cirúrgica, fundamentando-se no princípio do respeito à vida. Este médico interpretou de forma equivocada o princípio, eis que se dirige, primordialmente, contra aqueles que desejam ceifar a vida de outros culposa ou dolosamente, como demonstrado inicialmente. Assim, além de interpretar erroneamente este princípio, viola o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da autodeterminação ou da autonomia.

3.1.2.5. Princípio da justiça Ensina-nos o Professor Daury César Fabriz (2003, p.111) que o princípio da justiça consiste na concessão equitativa e universal de disponibilização dos instrumentos do Estado para os serviços de saúde, na efetivação da cidadania, sendo coadjuvante do princípio da beneficência. O princípio de justiça implica um tratamento de igualdade por parte do Estado e também um sentimento de sujeição coletiva para atingir um ideal comum, por isso tendo características estéticas diferentes em cada povo. Daury César Fabriz (2003, p. 236) nos assevera, neste sentido, que “cada comunidade humana deverá, a partir desse sentimento, construir democraticamente o seu conceito de justiça que seja mais apropriado ou adequado aos seus anseios, aplicável às suas próprias demandas”. Deve, então, sob as normas Constitucionais, buscar-se pelos princípios de justiça a fim de indicar a direção e os limites das relações sociais, bem como obter a formação dos parâmetros das práticas da bioética. Exorta-nos ainda o Prof. Daury Cesar Fabriz que “o poder de decisão médica deve aliar-se à justiça. É o que ocorre quando há um conflito entre a responsabilidade médica e a autonomia do paciente, ou de sua família, visando a proteção da vida” (2003, p.119).

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Código Penal, art. 122: “Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça.”

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3.1.2.6. Princípio da não-maleficência O princípio da não-maleficência (primum non nocere) decorre do princípio da beneficência e, em linhas gerais, implica não provocar dano algum a outrem (FABRIZ, 2003, p.107). Sua aplicação mais imediata neste estudo dá-se com a observância do profissional da medicina em atender a vontade do paciente, abstendo-se em provocar-lhe qualquer mal, quer físico quer psicológico. Não há dificuldade em se verificar que tal princípio é frontalmente violado se ao paciente for ministrada terapia da qual se opõe de forma justificada, consciente e expressa.

3.1.3 Princípios da Bioética na recusa às transfusões sanguíneas Podemos aprofundar a análise, escolhendo uma situação comum, em que, na raras vezes, há situações extremas, isto é, apresenta-se uma circunstância que contrapõe o direito à vida com o direito à escolha, e consequente recusa, a determinada terapia. Referimo-nos à escolha que os pacientes fazem, por alternativas às transfusões de sangue. Analisemos esta questão, a partir de um artigo escrito pelo Dr. A. Shander (2000, p.1) médico anestesiólogo do “The New Jersey Institute Englewood Hospital And Medical Center, USA, que tratará dos aspectos bioéticos nos tratamentos de pacientes que se recusam às transfusões de sangue, inclusive as Testemunhas de Jeová. Em considerações iniciais, este anestesiólogo invocou a necessidade de abordar os quatro princípios da bioética, a saber: 1) o princípio da justiça; 2) o princípio do respeito à autonomia do paciente; 3) o princípio do dano ou do malefício e, também, 4) o princípio do benefício. Estes princípios serão tratados no próximo sub-tópico, por motivos didáticos. Após tratar de forma resumida cada um dos princípios acima enumerados, o Dr. Shander trouxe a origem dos conflitos da bioética, resumindo-o da seguinte forma: “La definición de bioética y la esencia de todos los dilemas éticos em la práctica clínica surgen de que siempre hay otras personas que no desean lo mismo que uno para si“ (2000, p.2) lembrando que a sociedade é, deveras, diversificada o que impede que o médico e o paciente compartilhem do mesmo sistema de valores, o que auxilia na compreensão da existência de conflitos entre a posição do paciente e do médico. No caso das Testemunhas de Jeová, topificou o Dr. Shander, o conflito tem como gênese a convicção do caráter sagrado que a Bíblia atribui ao sangue, o que, pelo estrito cumprimento aos preceitos bíblicos, impede que um membro seu se submeta à tratamento que implique a transfusão de sangue, não obstante, aceitam alternativas como: expansores do volume de origem não humana, recuperadores de células, hemodiluição normovolêmica aguda, ‘by-pass’, circulação extra-corpórea, novos métodos cirúrgicos para o controle da hemostasia, drogas derivadas de sangue, albumina, hemoglobina, prepara-

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ções para hemofílicos e, ainda, as novas terapias com oxigênio, o que, em sua opinião não é complexo, dando oportunidades de boa margem para terapias (SHANDER, 2000, p.2). Todavia, o Dr. Shander apontou a raiz do conflito entre a vontade do paciente e a postura do médico expressando que “el problema está em que los pacientes rechazan las transfusiones sanguíneas y los médicos consideran a los pacientes Testigos de Jehová como a herejes em al catedral de la medicina“ (2000, p.2) lembrando que a postura dos médicos no passado era, conforme termo que utilizou, muito paternalista pois diziam “debes recibir sangre, de outra manera no sobrevivirás” (2000, p.2) ou ainda, depreciavam a postura dos pacientes indagando que tipo de religião é esta que permite que seus membros morram? E, por isso, recorram, os médicos, ao sistema legal em busca de coerção para aplicar a transfusão de sangue à revelia da vontade do paciente, mostrando que não se preocupava com ele. A postura mais ética recomendada e aplicável seria transferir este paciente para um médico que venha a acatar a vontade do enfermo, lembrando que “el sistema de valores próprio del médico debe manterse em mente, pero reservarlo para su vida privada, no para su vida profesional“ (SHANDER, 2000, p.3). Hodiernamente, o que ocorre em tais casos é que o paciente acaba por ser abandonado sob os protestos do médico que raciocina sobre a posição do cliente e reage argumentando que se o paciente recusa a transfusão de sangue nada mais poderá ser feito por ele. O Dr. Shander (2000, p.3) todavia, chama atenção para o fato de que o paciente, ao informar sua decisão de recusa à transfusão de sangue em sua terapia, passa a ser vítima de omissão do médico, não pelo fato de que não se lhe administra sangue, mas pelo fato de que o médico não lhe oferece nenhum tratamento alternativo. Contudo, alerta que os direitos do médico podem até justificar uma desconsideração pela vontade do paciente quando tal decisão apresenta-se pouco razoável. Exemplificou ilustrativamente com a hipótese de uma paciente com 95 anos portadora de demência cujos familiares procuram num hospital intervenção médica para transplante de coração. Isto parece pouco razoável e pode ser recusado, conclui. Mesmo assim, esta família pode recorrer a outro médico, para fazer prevalecer a vontade do paciente. Todavia, podem ocorrer diferentes situações que se distanciam dos casos padrão, ou seja, há situações extremas, em que uma decisão deve ser tomada em circunstâncias distintas, como as seguintes: primeiro, a do menor que necessita de cirurgia. Há duas variantes, neste caso: primeira, a do menor que, juridicamente é incompetente, mas é capacitado para exprimir sua decisão; a segunda, do menor que não usufrui ainda de capacidade para exprimir sua decisão. São ambas circunstâncias distintas daquela em que é um adulto que toma a decisão de rejeitar a transfusão de sangue e ainda, deixa esta vontade expressa em documento revestido das formalidades para produzir todos os efeitos legais. Continuando seu raciocínio, esclarece o Dr. Shander que, nos Estados Unidos, o adulto usufrui de autonomia e, em decorrência, lhe é conferido o direito de recusar de-

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terminada terapia ou cuidado médico, conservando-se a integridade corporal da pessoa. Reserva-se, portanto, ao adulto, a prerrogativa de recusa de terapia que põe em risco um membro de seu corpo ou ainda um órgão vital. Em seguida o Dr. Shanders expressa que a decisão do paciente é feita com base fundamentada nas informações que o médico lhe dá. Estas informações, ao passo que constitui um direito do paciente, também implica uma obrigação do médico, com gênese na manifestação de vontade, que resulta num fator determinante para o médico, como se denota na expressão: “Estos son los dos elementos del consentimiento informado en el cual el consentimiento es dado o negado sin derecho a apelar por parte de los clínicos” (2000, p.3). Se o paciente tem o direito de ser informado e o médico tem o dever de informar sobre as terapias necessárias e métodos disponíveis e sobre os riscos e benefícios de cada um, para que o paciente se manifeste de forma inequívoca acerca de sua escolha – pois como corolário, entendemos que é do paciente a prerrogativa de escolha, pela linha de abordagem aqui traçada pelo Dr. Shanders. Qual seria a conseqüência em caso de inobservância por parte do médico à vontade do paciente? O próprio parecerista responde-nos que Las consecuencias de la ruptura del consentimiento tienen el mismo peso que temas tan sérios como la idolatria, la falsa adoración, el adulterio o la inmoralidad sexual. La administración desmedida de sangre puede ser moralmente equivalente a una violación (2000, p.3). De fato restou demonstrado que o Dr. Shanders tem em mente os aspectos religiosos e morais envolvidos. Morais, quando relaciona à questão a imoralidade sexual e o adultério; religioso, quando o relaciona à prática de idolatria e falsa adoração. Aplicando seu posicionamento, podemos dizer que obrigar o paciente a receber uma transfusão de sangue contra sua vontade equivale a submetê-lo a uma relação sexual contrário à seu consentimento, isto é, sujeitá-lo a um estupro. Inicialmente, abordou a questão de um adulto com capacidade de exprimir sua vontade, mas, qual procedimento adotar quando uma paciente obstétrica exprime sua recusa? Afirma-nos o Dr. Shanders que “los pacientes obstétricos tienen los mismos derechos que cualquier adulto competente” (2000, p.3) e cita-nos o exemplo de uma mulher que está grávida e recusa um tratamento para que o feto venha a sobreviver, sendo enfático ao afirmar que “El Estado debe preservar el derecho a la vida del niño y además el derecho de autonomia del paciente, siendo esto imposible” (2000, p.4) tendo determinado a Suprema Corte dos Estados Unidos determinado que o Estado não pode desrespeitar a competente decisão da mulher grávida, tendo esta,ainda, julgado serem as transfusões sangüíneas procedimentos invasivos, pois violam a integridade física do adulto não competente.

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Em decorrência destes posicionamentos judiciais, a Associação Médica Americana (AMA - American Medical Association) e a Faculdade Americana de Obstetrícia e Ginecologia estabeleceram procedimento padrão devendo-se enfrentar o problema de forma objetiva e que não se justifica recorrer à Corte para dirimir tais litígios, observando, ademais, o Dr. Shanders, que mais nenhuma petição, deveras, foi apresentada, visando obter autorização judicial pois as que vinham sendo apresentadas buscavam o ataque ou a agressão à vontade do paciente o que estaria violando o consentimento informado (2000, p.4). Conclui o anestesiólogo, esta consideração, por apresentar os seguintes itens a observar: a) tanto para os casos dos filhos das Testemunhas de Jeová como para os pacientes pediátricos, há que se considerar a capacidade de decisão do menor; b) considerar a efetividade e os riscos do tratamento, neste caso, não importando se o paciente é menor ou não. Portanto, conclui o Dr. Shanders: “si la vida del niño está en peligro los padres deben si se requiere” (2000, p.4). Este é um caso em que o médico substituirá, a seu ver, a vontade do paciente e dos responsáveis. Em outra situação, o médico deve respeitar a posição do paciente, como no caso de um menino de quatorze anos que se sabia estar compreendendo as implicações de um determinado tratamento; outro, em contraposição, de três anos que negava-se a um simples tratamento à base de antibióticos para enfrentar uma meningite; outro paciente de dezessete anos que, portador de leucemia, rejeitou nova quimioterapia após duas tentativas, o que representaria um pequeno benefício a um alto custo. Assim, este médico exemplificou nestes três casos, as diferenças entre um menor com capacidade de decisão e um menor, com três anos, sem condições de decidir por si. As circunstâncias no Chile, conforme explanação deste anestesiólogo, são similares às verificadas nos Estados Unidos (EUA), onde, se um jovem cresce sob os ensinamentos das Testemunhas de Jeová e entende as implicações de suas decisões, pode ser considerado como um ‘menor maduro’ e deve ter suas decisões consideradas. Conclui: “Los pacientes tienen derechos legales y éticos para autodeterminar y decidir sobre su comportalidad” (SHANDERS, 2000, p.4). No Brasil, verificamos que os hospitais invocam o Estatuto da Criança e do Adolescente para aplicar medidas de proteção à criança e ao adolescente, alegando omissão dos pais. Uma rápida análise, demonstrará que tal fato não está adequado à uma interpretação teleológica. O art. 98 preceitua que: Art. 98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados: I – por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; II – por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável III – em razão de sua conduta.

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Não podemos negar que a omissão dos pais pode ensejar a atuação do Estado, nomeando-lhe um tutor. Mas, a conduta dos pais que, detectando necessidade de tratamento médico de seu filho, leva-o a hospital e exigem o melhor tratamento, isento de riscos para restabelecer -lhe a saúde, não pode, de forma alguma, ser considerada conduta negligente, omissa. É diversa, esta conduta, daquela em que os pais, mesmo percebendo que o filho está enfermo, deixa-o em casa, acreditando em cura milagrosa ou simplesmente ignora a moléstia. Um exemplo de que a escolha dos pais é pelo bem-estar do menor, afastando qualquer sentimento de fanatismo, foi salientado em reportagem exibida por uma rede de televisão brasileira, aos 09 de abril de 2004 (Globo Repórter), comprovando, em síntese, que: a) os pais, ao decidirem, buscam o melhor tratamento disponível, respeitando sua posição e desejando um tratamento que preserve a dignidade do menor; b) a medicina possui alternativas confiáveis; c) outros pacientes têm se beneficiado pelas pesquisas e avanços da medicina, em tratamento alternativo às transfusões reduzindo o risco que estas implicam. Vimos, então, que a bioética, através da aplicação de seus princípios, protege de forma abalizada os direitos do paciente, ressaltando a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana, resguardando, de modo inafastável, sua vontade.

9. Conclusão Buscamos confrontar os Direitos Humanos para encontrar, num diálogo com a bioética, o alcance da autodeterminação. A questão enfrentada se refere ao direito do paciente escolher – aceitando ou recusando – determinada terapia para solucionar sua moléstia, quando o reflexo poderia provocar a perda da vida. Abordando, inicialmente, a dignidade da pessoa humana, encontramos uma definição que abarca direitos e deveres do Estado e da comunidade para afastar qualquer ato humilhante ou degradante à pessoa humana, garantindo condições mínimas de existência. Também, verificamos que a dignidade decorre da capacidade de razão do ser humano, sendo o mais alto valor que o Estado deve tutelar. A bioética protege, juntamente com o código de conduta ética dos médicos, o paciente para tomar decisões sobre seu próprio corpo. Assim, apuramos que o paciente deverá tomar conhecimento de sua situação física, saber quais são as alternativas de tratamento e, por fim, decidir qual aceita e qual recusa. As principais declarações sobre Direitos Humanos protegem a liberdade da pessoa, inclusive de decidir sobre si, vedando que outras pessoas, ou até mesmo o Estado, interfira em sua vida, salvo para proteger a sociedade ou terceiros. Por fim que, excetuando-se as situações de risco de contaminação da população, não há fundamento nas Declarações de Direitos Humanos para retirar do paciente, quando decide de modo consciente e fundamentado, a escolha para submissão ou recusa

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à terapias ou cirurgias, mesmo sob risco de vida, uma vez que está em questão a dignidade de sua própria vida, valor maior que o Estado deve proteger.

10. Referências BARRETO, Ireneu Cabral. A convenção europeia dos direitos do homem anotada. 2.ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1999. BARROS, Suzana de Toledo.O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. 3.ed. Brasília Jurídica: Brasília, 2003. BÍBLIA. Português. Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas. Tradução da versão inglesa de 1984 mediante consulta constante ao antigo texto hebraico, aramaico e grego. Revisão de 1986. Cesário Lange: Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, 1986. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. BRASIL. Lei, nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. In: Júris Síntese. Júris Síntese. Porto Alegre: Síntese, 2004 n. 49. 1 CD-ROM. BRASIL. Lei, nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da criança e do adolescente. Vade Mecum Saraiva. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2009. BULLOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2001. CASSESE, Antonio. Los Derechos Humanos en el Mundo Contemporáneo. Barcelona, Espanha: Ariel, 1993. DURANT, Guy. A Bioética: natureza, princípios, objetivos. São Paulo: Paulus, 1995. p.13. FABRIZ, Daury César. Bioética e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. MELLO, Cleyson de Moraes. FRAGA, Thelma Araújo Esteves. Direitos humanos: coletânea de legislação. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 2003. SHANDER, A. Bioética en el Tratamiento de Pacientes Testigos de Jeová. Revista Hospital Clínico Universidad de Chile, Chile, v.11, n. 4, 2000.

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1. Notas introdutórias: a dignidade da pessoa humana e a unidade axiológica (e aberta!) da ordem jurídica Que uma das funções exercidas pelo princípio fundamental da dignidade da pessoa humana reside justamente no fato de ser, simultaneamente, elemento que – embora sem pretensão de exclusividade – confere unidade de sentido e legitimidade a uma determinada ordem constitucional, constituindo-se, de acordo com a significativa fórmula de Haverkate, no “ponto de Arquimedes do estado constitucional”,1 embora amplamente reconhecido, há de ser exaustivamente enfatizado. Como bem o lembrou Jorge Miranda, representando expressiva parcela da doutrina constitucional contemporânea, a Constituição, a despeito de seu caráter compromissário, confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais, que, por sua vez, repousa, em termos gerais, na dignidade da pessoa humana, isto é, na concepção que faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado,2 razão pela qual se chegou a afir*

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Doutor em Direito do Estado (Munique). Estudos de Pós-Doutorado em Munique (Ludwig-MaximiliansUniversität-München e Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Sozialrecht).. Professor Titular da Faculdade de Direito e do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre (PUCRS). Professor vistiante do Programa de Doutorado em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Universidade Pablo de Olavide (Sevilha). Professor visitante (bolsista do Programa Erasmus Mundus) na Universidade Católica Portuguesa, Lisboa. Representante do Brasil e correspondente científico junto ao Instituto Max-Planck de Direito Social Estrangeiro e Internacional (Munique). Pesquisador Visitante no Georgetown Law Center (204) e na Harvard Law School (2008). Professor de Direito Constitucional na Escola Superior da Magistratura (AJURIS) e Juiz de Direito em Porto Alegre, Brasil. Cf. G. Haverkate, Verfassungslehre, p. 142. Cf. J. Miranda, Manual de Direito Constitucional, vol. IV, Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 180. Assim também J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição da República Portuguesa de 1976., Coimbra:

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mar que o princípio da dignidade humana atua como uma espécie de “alfa e ômega” do sistema dos direitos fundamentais.3 Tal concepção, à evidência, aplica-se também à Constituição da República Federal Brasileira, de 05.10.1988 (doravante referida como CF), caracterizada, a exemplo da Constituição da República Portuguesa, especialmente na sua versão original, de 1976, como representativa de um constitucionalismo marcadamente compromissário e dirigente. Considerando que a CF, no seu artigo 1°, inciso III, na esteira da evolução constitucional do segundo Pós-Guerra, erigiu a dignidade da pessoa humana à condição de fundamento do Estado Democrático de Direito4, é possível partir do pressuposto que também esta Constituição – pelo menos de acordo com seu texto – pode ser considerada, de acordo com o que já se disse também da Lei Fundamental da Alemanha e da Constituição Portuguesa, como sendo uma Constituição comprometida com a plena realização da pessoa humana,5 ainda que não raras vezes este dado venha a ser desconsiderado e não corresponda muitas vezes à realidade, especialmente se forem considerados os altos índices de violações de direitos fundamentais, que, de resto, atinge os direitos fundamentais de todas as dimensões. Assim, como bem lembra Martínez, ainda que a dignidade (como valor, é preciso frisar) preexista ao Direito, certo é que o seu reconhecimento e proteção (mesmo que não por meio de uma positivação expressa) por parte da ordem jurídica constituem (um) requisito indispensável para que esta possa ser tida como legítima.6 Aliás, tal dignidade tem sido reconhecida à dignidade da pessoa humana que se chegou a sustentar, parafraseando o conhecido art. 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), que toda sociedade que não reconhece e não garante a dignidade da pessoa não possui uma Constituição.7 Também por este motivo assiste inteira razão aos que apresen-

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Almedina, 1987, p. 101, referindo que os preceitos relativos aos direitos fundamentais “não se justificam isoladamente pela protecção de bens jurídicos avulsos, só ganham sentido enquanto ordem que manifesta o respeito pela unidade existencial de sentido que cada homem é para além de seus actos e atributos”. Entre nós, v., por todos, Rizzato Nunes, O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, São Paulo: Saraiva, 2002, p. 45 e ss. Cf. F. Delpérée, O direito à dignidade humana, p. 161. Neste sentido, v., dentre outros, J. Afonso da Silva, A dignidade da pessoa humana..., p. 91-92. Também E. Benda, Die Menschenwürde ist Unantastbar, in: ARSP nº 22 (1984), p. 23, embora para o caso da Alemanha, de há muito leciona que a noção de dignidade da pessoa constitui o ponto de partida e o centro da concepção de Estado e Direito adotada pela Lei Fundamental de 1949. Cf. Podlech, in: Alternativ Kommentar, vol. I, p. 281. O mesmo se observa em relação à ordem jurídicoconstitucional italiana, de acordo com F. Bartolomei, la dignità umana come concetto e valore costituzionale, p. 11, afirmando que a Constituição da Itália, ao reconhecer e assegurar a dignidade da pessoa e os direitos fundamentais, acabou criando uma ordem de valores centrada na personalidade humana. Quanto ao caso de Portugal, v., dentre otros, J.R. Novais, Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, p. 52. Cf. M. A. Alegre Martínez, La dignidad de la persona..., p. 29. Na literatura brasileira, v., dentre outros, v. E. Pereira de Farias, Colisão de Direitos, p. 51, afirmando que o respeito pela dignidade da pessoa constitui elemento imprescindível para a legitimação da atuação do Estado. Cf. a expressiva formulação de M. L. Pavia, La dignité de la personne..., p. 105, admitindo, contudo, o tardio reconhecimento da dignidade da pessoa humana no âmbito da ordem jurídico-positiva francesa.

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tam a dignidade da pessoa humana (designadamente o seu reconhecimento, proteção e promoção) como sendo um importante critério indicativo da legitimidade substancial de uma determinada ordem jurídico-constitucional, já que diz com os fundamentos e objetivos, em suma, com a própria razão de ser do poder estatal.8 Nesta perspectiva – embora num sentido distinto – há como sustentar que a dignidade sempre também cumpre uma função política (normativa embora não jurídica) fundamental, atuando como referência para o processo decisório, político e jurídico, visto que torna incontroversa (no sentido de uma “metáfora absoluta”) a decisão em si mesma do reconhecimento da dignidade da pessoa humana no âmbito de um consenso sociocultural (por exemplo, na afirmação de que uma violação da dignidade é sempre injusta!) e na condição de conceito referencial, ainda que no particular, sobre o que cada um entende por dignidade da pessoa e sobre o modo de sua promoção e proteção, existam muitas divergências.9 Se, por um lado, consideramos que há como discutir – especialmente no caso do direito constitucional positivo brasileiro – a afirmação de que todos os direitos e garantias fundamentais encontram seu fundamento direto, imediato e igual na dignidade da pessoa humana, do qual aqueles seriam apenas concretizações,10 constata-se, de outra parte, que os direitos e garantias fundamentais podem pelo menos em sua ampla maioria – embora sempre de modo e intensidade variáveis – serem reconduzidos de alguma forma à noção de dignidade da pessoa humana, já que todos remontam à idéia de proteção e desenvolvimento das pessoas - de todas as pessoas! - como bem destaca Jorge Miranda.11 8 9 10

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Assim o sustenta W. Brugger, Menschenwürde, Menschenrechte, Grundrechte, p. 5 e ss. V. neste sentido S. Baer, “Menschenwürde zwischen Recht, Prinzip und Referenz”, p. 572-75. Cf., no Brasil, E. Pereira de Farias, Colisão de Direitos, p. 54. Quanto a este ponto, já nos pronunciamos, em outra oportunidade, no sentido de revelar alguma reserva no que diz com a alegação de que todos os direitos fundamentais positivados na Constituição de 1988 possam ser reconduzidos diretamente e de modo igual ao princípio da dignidade da pessoa humana, seja pela extensão do nosso catálogo de direitos e garantias, seja pelas peculiaridades de algumas normas de direitos fundamentais, tal como ocorre com as regras sobre prescrição em matéria de direito do trabalho, a gratificação natalina (13ª salário), o dispositivo que impõe o registro dos estatutos dos partidos políticos junto ao TSE (art. 17 da Constituição de 1988), etc. Neste sentido, v. o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 98. Neste mesmo contexto, cabe referir importante decisão do Tribunal Constitucional da Espanha, citada por M. A. Alegre Martínez, La dignidad de la persona..., p. 47-48, onde, para além de reconhecer que a dignidade da pessoa representa um mínimo invulnerável que toda a ordem jurídica dever assegurar, a Corte Constitucional Hispânica sinalou que isto não significa que todo e qualquer direito fundamental possa ser considerado como inerente à dignidade da pessoa, nem que todos os direitos qualificados como fundamentais sejam integralmente condições essenciais e imprescindíveis para a efetiva incolumidade da dignidade pessoal. No âmbito da doutrina italiana, F. Bartolomei, La dignità umana..., p. 14, refere que a afirmação de um princípio geral de tutela da dignidade humana não importa, todavia, que todos os direitos individualmente considerados possam ser reconduzidos a um único direito. De resto, o entendimento de que todos os direitos fundamentais são diretamente fundados na dignidade da pessoa seria sustentável apenas em se partindo de um conceito exclusivamente material de direitos fundamentais, considerando como tais unicamente os que puderem encontrar seu fundamento direto na dignidade, concepção esta que, todavia não harmoniza com a Constituição Federal de 1988. Em Portugal, a vinculação direta de todos direitos fundamentais com a dignidade da pessoa humana, no sentido de que esta serviria de fundamento para àqueles, igualmente deparou com a posição cética de J.M. Alexandrino, A estruturação do sistema de direitos, liberdades e garantias na Constituição Portuguesa, p. 325 e ss. Cf. J. Miranda, Manual..., vol. IV, p. 181. Também K. Stern, Staatsrecht..., vol. III/1, p. 33, leciona que o

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Neste sentido, José Carlos Vieira de Andrade, embora sustentando que o princípio da dignidade da pessoa humana radica na base de todos os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, admite, todavia, que o grau de vinculação dos diversos direitos àquele princípio poderá ser diferenciado, de tal sorte que existem direitos que constituem explicitações em primeiro grau da idéia de dignidade e outros que destes são decorrentes.12 Assim, mesmo que seja correta a assertiva de que o princípio da dignidade da pessoa humana atua como elemento informador dos direitos e garantias fundamentais também da CF (o que, de resto, condiz com a sua condição de princípio fundamental) também é certo que isto não significa que todos os direitos fundamentais (até mesmo pelo fato de que sempre poderá haver direitos fundamentais em sentido eminentemente formal ou cuja fundamentalidade encontra-se diretamente lastreada em outros valores e opções do Constituinte) sejam uma decorrência direta da dignidade da pessoa humana. De outra parte, haverá de se reconhecer um espectro amplo e diversificado no que diz com a intensidade da vinculação dos direitos fundamentais em espécie à dignidade da pessoa humana,13 aspecto que voltará a ser abordado no próximo segmento, naquilo que importa ao foco do presente ensaio. Neste passo, impõe-se seja ressaltada a função integradora e hermenêutica do princípio da dignidade da pessoa humana,14 no sentido de que este – por força de sua dimensão objetiva - serve de parâmetro para aplicação, interpretação e integração não apenas dos direitos fundamentais e das demais normas constitucionais, mas de todo o ordenamento jurídico.15 De modo todo especial, o princípio da dignidade da pessoa humana – como também os demais princípios fundamentais da Constituição – acaba por servir de referencial inarredável no âmbito da indispensável hierarquização axiológica inerente ao processo de criação e desenvolvimento jurisprudencial do Direito. Justamente no âmbito desta função do princípio da dignidade da pessoa humana, poder-se-á afirmar a existência não apenas de um dever de interpretação conforme a Constituição e os direitos fundamentais, mas acima de tudo – a exemplo do que também propõe Juarez Freitas – de uma hermenêutica que, para além do conhecido postulado do in dubio pro libertate, tenha sempre presente “o imperativo segundo o qual em favor da dignidade não deve haver

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princípio da dignidade da pessoa humana constitui fundamento de todo o sistema dos direitos fundamentais, no sentido de que estes constituem exigências, concretizações e desdobramentos da dignidade da pessoa e que com base neste devem (os direitos fundamentais) ser interpretados. Cf. J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais... p. 101-2. Neste sentido também M. Herdegen, Neuarbeitung von Art. 1 Abs.1, p. 11 e ss., que, a despeito de criticar a a dedução direta de todo o sistema dos direitos fundamentais da dignidade da pessoa, reconhece que a ordem dos direitos fundamentais encontra-se significativamente impregnada com elementos da dignidade, bem como sustenta a tese do conteúdo diferenciado em dignidade da pessoa dos diversos direitos especificamente considerados (p. 14). Cf. Höfling, in: M. Sachs (Org) Grundgesetz, p. 116. Neste sentido, já lecionava H. C. Nipperdey, in: Neumann/Nipperdey/Scheuner (Org), Die Grundrechte, vol. II, p. 23,assim como, Maunz-Zippelius, Deutsches Staatsrecht, p. 183. Em Portugal, v, as anotações de J.R. Novais, Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, p. 52.

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dúvida”16. Vale dizer, nesta linha de pensamento, que os direitos fundamentais, assim como e acima de tudo, a dignidade da pessoa humana à qual se referem, apresentam como traço comum – e aqui acompanhamos a expressiva e feliz formulação de Alexandre Pasqualini –, o fato de que ambos (dignidade e direitos fundamentais) “atuam, no centro do discurso jurídico constitucional, como um DNA, como um código genético, em cuja unifixidade mínima, convivem, de forma indissociável, os momentos sistemático e heurístico de qualquer ordem jurídica verdadeiramente democrática”.17 É nesta perspectiva, aliás, que, no próximo segmento, pretendemos explorar alguns aspectos que envolvem a importância do princípio da dignidade da pessoa humana para o reconhecimento de direitos fundamentais para além dos como tais expressamente reconhecidos pelo Constituinte, no âmbito daquilo que se convencionou designar de abertura material do catálogo constitucional dos direitos fundamentais, precisamente o cerne da nossa breve contribuição. Para darmos conta da tarefa, iremos, numa primeira etapa, retomar algumas das questões centrais que dizem respeito à cláusula de abertura contida no artigo 5°, § 2°, da CF, para, na seqüência, discutir o problema da identificação de outros direitos fundamentais (expressa ou implicitamente positivados) com base no princípio da dignidade da pessoa humana.

2. Conteúdo e significado da assim designada cláusula de abertura material do catálogo de direitos e garantias fundamentais - breve análise do artigo 5º, § 2º, da Constituição Brasileira Evitando adentrar a discussão em torno da efetiva viabilidade e utilidade de uma concepção dos direitos fundamentais atrelada à conhecida e possível classificação dos direitos em gerações ou dimensões18, assume-se desde logo como correta a afirmação, de resto largamente comprovada pelo conjunto dos direitos fundamentais reconhecidos pela CF, que o catálogo constitucional de direitos e garantias é multifuncional, visto que 16

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Cf. J. Freitas, Tendências Atuais e Perspectivas da Hermenêutica Constitucional, in: AJURIS nº 76 (1999), p. 406. A respeito deste ponto, vale referir, ainda, recente e instigante ensaio de F. Hufen, In dubio pro dignitate – Selbstbestimmung und Grundrechtsschutz am Ende de Lebens, in: NJW 2001, p. 849 e ss. No mesmo sentido (de que a solução que mais prestigia a dignidade da pessoa humana deve prevalecer), mas desenvolvendo também de modo geral a noção de uma espécie de ordem material de preferências (na condição de parâmetros normativos) a serem observadas por ocasião da ponderação de bens (interesses), v. A P. de Barcellos, “Alguns Parâmetros Normativos para a Ponderação Constitucional”, in: L. R. Barroso (Org), A Nova Interpretação Constitucional, especialmente p. 107 e ss. Em sentido similar, no âmbito da doutrina lusitana, v., por todos, J.R. Novais, Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, p. 53 e ss., adotando postura crítica em relação ao postulado do in dubio pro libertate. Cf. A. Pasqualini, Hermenêutica e Sistema Jurídico, p. 80-1. Sobre este ponto, v. o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 8ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 43 e ss.

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abrange tanto direitos de todas as dimensões (ou gerações, como ainda preferem alguns), quanto direitos (e deveres) que atuam, inclusive em função de sua dupla perspectiva objetiva e subjetiva, simultaneamente como direitos negativos (direitos de defesa) e positivos (diretos a prestações). Por outro lado, por mais analítica que seja a Constituição e por mais extenso que seja o elenco dos direitos expressamente reconhecidos como fundamentais, não há como, em princípio, afastar, apenas por esta razão, a existência de outras normas de direitos e garantias fundamentais, o que, de outra parte, não afasta a controvérsia sobre as possibilidades e limites que envolvem identificação de outras posições fundamentais no contexto da Constituição. Neste sentido, é tida como consolidada na tradição jurídico-constitucional brasileira designadamente desde a primeira Constituição da República, de 1891, a idéia de que também o atual artigo 5°, parágrafo 2°, da CF, assume a função de uma norma geral inclusiva, que implica a impossibilidade de aplicar-se o tradicional princípio hermenêutico do inclusius unius alterius est exclusius, o que, em outras palavras, vale dizer que na Constituição também está incluído o que não foi expressamente previsto, mas que implícita e indiretamente pode dela ser deduzido.19 Que a norma contida no dispositivo referido não possui caráter meramente declaratório e fundamenta um poder-dever de reconhecimento de posições fundamentais para além das expressamente (ou explicitamente, como preferem alguns) positivadas no texto como sendo de direitos e garantias fundamentais, deve igualmente ser levado a sério, mas não será aqui objeto de maior desenvolvimento. Da mesma forma e ainda em caráter preliminar, cumpre afastar qualquer interpretação reducionista que pudesse ensejar a exclusão, por exemplo, do reconhecimento de direitos fundamentais sociais, econômicos e culturais, com base na abertura material assegurada pelo artigo 5°, parágrafo 2°, da CF. Com efeito, a mera localização topográfica (no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos) não pode assumir o papel de critério determinante, seja em virtude da própria formulação aberta adotada pela CF (“os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”), seja pelo fato de que no artigo 7° (já no capítulo dos direitos sociais) restou expressamente consignado que “são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”, igualmente apontando para a inclusão de outros direitos sociais, pelo menos no campo dos direitos dos trabalhadores. Sem prejuízo de outros argumentos que poderiam ser colacionados, o fato é que a doutrina brasileira amplamente majoritária, no que tem sido acompanhada pela própria jurisprudência, tem chancelado uma compreensão ampliativa e inclusiva de direitos fundamentais de qualquer dimensão ou geração. 19

V. igualmente o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 93 e ss.. bem como, mais recentemente, J. Freitas, A Interpretação Sistemática do Direito, 4ª ed., São Paulo: Malheiros, 2004, p. 211-12.

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Assim e por todo o exposto, recolhemos aqui a lição de Menelick de Carvalho Neto, naquilo em que bem lembra que o artigo 5°, parágrafo 2°, da CF de 88 traduz a noção de que a Constituição se apresenta como a “moldura de um processo de permanente aquisição de novos direitos fundamentais”.20 Na mesma perspectiva e partindo da premissa de que os direitos fundamentais são variáveis no “espaço” e no “tempo”, leciona Cristina Queiroz que a necessária abertura material do catálogo constitucional de direitos guarda conexão com a circunstância de que assim como inexiste um elenco exaustivo de possibilidades de tutela, também não existe um rol fechado de riscos para a pessoa humana e os direitos que lhe são inerentes,21 de tal sorte que correta a afirmação de Rui Medeiros, no sentido de que “não há um fim da história em matéria de direitos fundamentais”22. Postas estas premissas, importa ainda relembrar que a partir da diretriz normativa do artigo 5º, parágrafo 2º, da CF, é possível sustentar a existência tanto de direitos expressamente positivados em outras partes do texto constitucional (portanto, para além do Título II), quanto de direitos positivados em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, que, portanto, passam a integrar o nosso bloco de constitucionalidade, sem que se vá aqui adentrar – a despeito de sua relevância e atualidade - a discussão a respeito da hierarquia normativa dos tratados de direitos humanos no âmbito da ordem jurídica nacional, objeto não apenas de uma importante e controversa reforma constitucional, mas também de uma recente guinada no âmbito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal brasileiro23. 20 21

22 23

Cf. M. de Carvalho Neto, “A hermenêutica constitucional e os desafios postos aos direitos fundamentais”, in: J.A. Sampaio (Org). Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais, p. 154. Cf. C.M.M. Queiroz, Direitos Fundamentais (Teoria Geral), p. 49. No mesmo sentido, v. também L. Tribe, American Constitutional Law, p. 34/5, averbando – mediante referência à famosa IX Emenda da Constituição dos EUA, que esta contém uma norma de interpretação, já que a omissão de uma previsão formal no texto constitucional não implica necessariamente a impossibilidade do reconhecimento de determinado direito fundamental, justamente em face da não-exaustividade do catálogo constitucional. Cf. R. Medeiros, “O estado de direitos fundamentais português: alcance, limites e desafios”, in: Anuário Português de Direito Constitucional, 2002, p. 25. Com efeito, por meio da Emenda Constitucional nº 45, de Dezembro de 2004, foi inserido um terceiro parágrafo no artigo 5º da Constituição de 1988, dispondo que os tratados internacionais de direitos humanos aprovados por maioria de três quintos, nas duas casas do Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal) em dois turnos de votação, serão tidos como equivalentes às emendas constitucionais. Tal dispositivo teve a sua primeira aplicação concreta em 2008, quando por ocasião da incorporação ao direito interno brasileiro, da convenção internacionais para proteção das pessoas portadoras de necessidades especiais. Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal, que, no Brasil, exerce a função similar a uma Corte Constitucional (de acordo com o artigo 102 da Constituição, ao Supremo Tribunal Federal “compete precipuamente a guarda da Constituição”), após uma longa tradição mais restritiva em relação aos tratados internacionais (para o Supremo os tratados, mesmo em matéria de direitos humanos e apesar do disposto no artigo 5º, parágrafo 2º, da CF, tinham hierarquia equivalente às leis ordinárias), recentemente passou a reconhecer a hierarquia supralegal dos tratados de direitos humanos, que, portanto, prevalecem em relação a qualquer norma legal interna, mas cedem em face da Constituição (cf. decisão no Recurso Extraordinário n° 466.343/SP), decisão na qual, é interessante informar, foi considerada como constitucionalmente ilegítima a prisão civil do depositário infiel, por força de diploma legal anterior. É claro que no caso de tratados incorporados mediante o procedimento reforçado do parágrafo 3º do artigo 5º da Constituição de 1988, a hierarquia será a de emenda constitucional, a prevalecer o atual entendimento da mais alta Corte brasileira, que não deixa de merecer críticas, visto que,

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Além desses direitos expressamente positivados, doutrina e jurisprudência têm reconhecido direitos que podem ser designados como implícitos, no sentido de direitos (posições) fundamentais que se encontram subentendidos no sistema constitucional e que são sempre e neste sentido implicitamente positivados. De resto, quando no dispositivo ora comentado se afirma a existência de direitos decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição, evidentemente se está a chancelar a possibilidade também do reconhecimento de direitos e garantias implícitos. Que o princípio da dignidade da pessoa humana não é o único princípio (e critério) fundamental relevante neste contexto já decorre da própria formulação utilizada pela CF (que, no próprio artigo 5º, parágrafo 2º, se refere genericamente aos direitos decorrentes do regime e dos princípios!), mas também está em sintonia com a idéia de que existem outros princípios fundamentais, que, embora guardem conexão (mais ou menos intensa!) com a dignidade da pessoa humana, possuem âmbito normativo autônomo. Com efeito, sendo correta a premissa, já sustentada, de que os direitos fundamentais constituem – ainda que com intensidade variável – explicitações da dignidade da pessoa, por via de conseqüência e, ao menos em princípio (já que exceções são admissíveis, consoante já frisado), em cada direito fundamental se manifesta um conteúdo ou, pelo menos, alguma projeção da dignidade da pessoa.24 Assim, há como endossar o pensamento de André Ramos Tavares quando – consideradas as ressalvas já feitas - sustenta a existência (em regra, importa acrescentar) de uma consubstancialidade parcial dos direitos fundamentais na dignidade da pessoa humana.25 Por outro lado, um dos principais problemas a serem discutidos neste contexto diz respeito justamente ao papel dos princípios na identificação de direitos e garantias fundamentais situados em outras partes da Constituição e na dedução de posições fundamentais implícitas com base nos princípios. Com efeito, se em relação aos direitos fundamentais prévia e expressamente reconhecidos como tendo este status (designadamente os arrolados no Título II da CF, que justamente leva a epígrafe “dos direitos e garantias fundamentais”) é possível partir da presunção de sua fundamentalidade em sentido material (e não meramente formal), o mesmo não é possível afirmar em relação a direitos situados em outras partes do texto constitucional. Com efeito, neste caso, não se pode prescindir de critérios indicativos da fundamentalidade em sentido material, que, por sua vez, ca-

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além de chancelar um regime jurídico diferenciado entre os tratados de direitos humanos, acabou por lhes negar (pelo menos no que diz com a absoluta maioria dos tratados) a hierarquia constitucional, portanto, equivalente aos direitos fundamentais consagrados no texto da Constituição. Sobre o tema, v., com maior desenvolvimento, o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, item 4.3.4.3. Aqui vale colacionar a lição de D. Rousseau, Les libertés individuelles et la dignité de la personne, p. 70, ao referir que os direitos fundamentais adquirem vida e inteligência por meio da dignidade da pessoa, ao passo que esta não se realiza e torna efetiva se não pelos direitos fundamentais. Cf. A. R. Tavares, “Princípio da consubstancialidade parcial dos direitos fundamentais na dignidade do homem”, in: Revista Brasileira de Direito Constitucional, nº 4, jul./dez. 2004, p. 232 e ss.

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recem de fundamentação criteriosa e coerente. Também no caso do reconhecimento de posições fundamentais subjetivas (ou subjetiváveis) não expressamente agasalhadas no texto da Constituição, no caso, o que se convencionou designar de direitos fundamentais implícitos, os princípios fundamentais têm tido uma especial relevância. Que a dignidade da pessoa humana pontifica também neste contexto resulta evidente, embora seja menos evidente o modo pelo qual se tem dado este diálogo entre dignidade da pessoa humana e os demais princípios fundamentais. É justamente da função da dignidade da pessoa humana neste contexto (o da abertura material do catálogo de direitos fundamentais) que iremos nos ocupar mais detidamente no próximo segmento.

3. O princípio da dignidade da pessoa humana como critério material para a identificação e fundamentação de direitos fundamentais para além dos expressamente positivados pelo Constituinte Sem que se vá aqui aprofundar todas as facetas da problemática, é nosso propósito nesta quadra, partindo da premissa de que a dignidade da pessoa humana assume uma função de inequívoca relevância no que diz com a justificação, tanto da fundamentalidade de direitos e garantias expressamente positivados no título próprio do texto constitucional, quanto na fundamentação de posições jusfundamentais implícitas (incluindo direitos e deveres), é possível afirmar que a circunstância de se estar em face de uma manifestação inequívoca da dignidade da pessoa humana (e de uma exigência concreta de sua proteção ou promoção) constitui indicativo seguro da fundamentalidade das correspondentes posições jurídicas. Todavia, em se levando em conta que, com algum esforço argumentativo – de modo especial em face do elevado grau de indeterminação e cunho polissêmico do princípio (e da própria noção) de dignidade da pessoa – praticamente tudo o que consta no texto constitucional pode – ao menos de forma indireta – ser reconduzido ao valor da dignidade da pessoa, convém alertar que não é, à evidência, neste sentido que este princípio fundamental deverá ser manejado na condição de elemento integrante de uma concepção material de direitos fundamentais, pois, se assim fosse, toda e qualquer posição jurídica estranha ao catálogo poderia (em face de um suposto conteúdo de dignidade da pessoa humana), seguindo a mesma linha de raciocínio, ser guindada à condição de materialmente fundamental. Aplica-se aqui a concepção subjacente ao pensamento de Laurence Tribe e Michael Dorf, no sentido de que a dignidade (assim como a Constituição) não deve ser tratada como um espelho no qual todos vêem o que desejam ver,26 pena de a pró26

Cf. L. H. Tribe e M. G. Dorf, On Reading the Constitution, p. 7, indagando se a Constituição é simplesmente

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pria noção de dignidade e sua força normativa correr o risco de ser banalizada e esvaziada.27 Com efeito, não é à toa que, a partir da observação das hipóteses em que violações da dignidade foram esgrimidas na esfera judicial, se chegou a afirmar que quanto mais elevado o valor que tem sido atribuído à dignidade, mais triviais os objetivos para os quais tem sido invocada.28 Assim, resulta evidente (também neste contexto) que nem mesmo em nome da dignidade, se pode dizer (ou fazer) qualquer coisa.29 Assim, o fato é que – e ousamos enfatizar exaustivamente – sempre que se puder detectar, mesmo para além de outros critérios que possam incidir na espécie, estamos diante de uma posição jurídica diretamente embasada e relacionada (no sentido de essencial à sua proteção e promoção) à dignidade da pessoa, inequivocamente estaremos diante de uma norma de direito fundamental, sem desconsiderar a evidência de que tal tarefa não prescinde do acurado exame de cada caso. Muito embora não se possa falar de um limite previamente definido no que diz com a identificação de direitos fundamentais implícitos ou positivados em outras partes da Constituição, também é correto afirmar que tal atividade reclama a devida cautela por parte do intérprete (já que de atividade hermenêutica se cuida), notadamente pelo fato

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um espelho no qual cada um enxerga o que deseja ver (Is the Constitution simply a mirror in which one sees what one wants to see?). Convém, quanto a este ponto, tomar a sério a advertência de P. Häberle, Menschenwürde als Grundlage..., p. 823, recomendando um uso não inflacionário da dignidade e repudiando a utilização da dignidade de modo panfletário e como fórmula vazia de conteúdo. Neste sentido, por mais que se possa afirmar que, em matéria de dignidade e direitos fundamentais, seja melhor pecar pelo excesso, não há como desconsiderar o fato de que o recurso exagerado e sem qualquer fundamentação racional à dignidade – tal como vez por outra ocorre – efetivamente pode acabar por contribuir para a erosão da própria noção de dignidade como valor fundamentalíssimo da nossa ordem jurídica. Aqui poderiam ser enquadradas, apenas em caráter exemplificativo e respeitando a nobre intenção dos prolatores da decisão – alguns julgados ampliando em demasia o significado da dignidade da pessoa humana, para afastar a impenhorabilidade de alguns bens, como no caso dos aparelhos de televisão, telefones, salvo, é claro, circunstâncias especialíssimas impostas pelo caso concreto. Pelo menos sujeito a controvérsias é o entendimento, sustentado pela 1ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do DF (Brasília), no Julgamento da Apelação Cível nº 51.159-99, em Acórdão relatado pelo Des. Valter Xavier, afirmando que a cobrança de juros acima do limite constitucional de 12% ao ano constitui prática ofensiva à dignidade da pessoa humana, notadamente em se generalizando a afirmação. É claro que a prática da usura, em determinado nível, notadamente quando assume cunho extorsivo, poderá, dadas as circunstâncias do caso, configurar ofensa à dignidade. Da mesma forma, não se pretende afastar a viabilidade do argumento de que uma legislação permissiva de juros abusivos, possa acarretar situações incompatíveis com as exigências da dignidade. Todavia, acreditamos que se possa questionar a tese de que a simples cobrança de juros acima do limite constitucional seja, em princípio, ofensiva à dignidade, especialmente para o efeito de demonstrar um possível uso inflacionário da dignidade. Cf. G. Frankenberg, Autorität und Integration, p. 272-3, referindo exemplos da vida forense alemã, como ocorreu com uma demanda intentada por um grupo de Juízes contra alterações introduzidas no âmbito da denominação de certos cargos e funções, ou mesmo de advogados que – inexitosos assim como os seus colegas magistrados – sustentaram a tese da inconstitucionalidade da obrigação de usar a toga, por ofensiva à sua dignidade. Outro caso colacionado pelo autor foi o do cidadão que processou a empresa telefônica pelo fato de que a conta – em função do software do processador de texto – escrevia, em “evidente” violação da dignidade, a letra “ö” como “oe”. Reportamo-nos aqui, embora o autor não tenha feito referência específica a qualquer princípio, ao magistério de L. L. Streck, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, p. naquilo que bem aponta para os limites da interpretação.p.310 e ss., designadamente para o fato de que mesmo em sendo a norma o produto da atribuição de sentido a um texto, isto não significa que o intérprete esteja autorizado a “dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa”.

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de estar-se ampliando o elenco de direitos fundamentais da Constituição com as conseqüências práticas a serem extraídas, não se devendo, ademais, desconsiderar o risco – a exemplo do que já foi referido com relação à própria dignidade – de uma eventual desvalorização dos direitos fundamentais, já apontada por parte da doutrina.30 Para além de servir de critério de justificação da fundamentalidade material de direitos positivados ao longo do texto constitucional e de reconhecimento de direitos implícitos (no sentido de subentendidos nos já expressamente consagrados), resta a indagação se do princípio da dignidade da pessoa – sem qualquer outro referencial adicional – poderão ser deduzidos direitos fundamentais autônomos, ao que temos respondido afirmativamente.31 Com efeito, ainda que nos tenhamos posicionado no sentido da inexistência de um direito fundamental propriamente dito à dignidade (mas sim, à sua proteção e promoção), nada impede – em que pesem as respeitáveis posições em sentido contrário32 – que do princípio da dignidade da pessoa humana sejam deduzidas – mesmo sem qualquer referência direta a outro direito fundamental (o que não significa que a conexão com outro (s) direito (s) não exista!) – posições jurídico-subjetivas fundamentais. Mesmo assim, não há como desconsiderar a circunstância de que, justamente pelo fato de serem os direitos fundamentais, ao menos em regra, exigências e concretizações em maior ou menor grau da dignidade da pessoa, a expressiva maioria dos autores e especialmente das decisões judiciais acaba por referir a dignidade da pessoa não como fundamento isolado, mas vinculado à determinada norma de direito fundamental. Não é, portanto, sem razão que juristas do porte de um Ernst Benda chegaram a afirmar que os direitos e garantias fundamentais constituem garantias específicas da dignidade da pessoa humana, da qual são – em certo sentido – mero desdobramento.33 Nesta linha de raciocínio, sustenta-se que o princípio da dignidade da pessoa humana, em relação aos direitos fundamentais, pode assumir, mas apenas em certo sentido, a feição de lex generalis, já que, sendo suficiente o recurso a determinado direito fundamental (por sua vez já impregnado de dignidade), inexiste, em princípio, razão para 30

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Referindo uma tendência para a panjusfundamentalização, no âmbito de uma inflação no campo do reconhecimento de novos direitos fundamentais, advertindo, neste contexto, para os riscos de uma banalização, v. o contributo de J. Casalta Nabais, Algumas Reflexões Críticas sobre os Direitos Fundamentais, in: AB VNO AD OMNES – 75 anos da Coimbra Editora, p. 980 e ss. Neste sentido, também aponta J. Rawls, O Liberalismo Político, p. 350, sustentando a necessidade de limitar-se “as liberdades àquelas que são verdadeiramente essenciais”, pena de correr-se o risco de uma fragilização da proteção das liberdades mais relevantes. Cf. o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 109. Questionando a possibilidade da dedução direta de direitos subjetivos do princípio da dignidade da pessoa humana, encontramos, dentre outros, a lição de W. Brugger, Menschenwürde, Menschenrechte, Grundrechte, p. 19 e ss., consignando-se não ser esta a posição majoritária da doutrina e da jurisprudência alemãs, que, de modo geral, sustenta a dupla dimensão da dignidade da pessoa humana como princípio e direito fundamental. Cf. E. Benda, Menschenwürde und Persönlichkeitsrecht, in: Benda/Maihofer/Vogel (Org), Handbuch des Verfassungsrechts, vol. I, p. 166. Também este parece ser o entendimento, na doutrina francesa, de D. Rousseau, Les libertés individuelles et la dignité de la personne, p. 70, ao sustentar que a dignidade, como realidade jurídica concreta, não existe a não ser por meio de sua realização por cada um dos direitos fundamentais.

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invocar-se autonomamente a dignidade da pessoa humana, que, no entanto, não pode ser considerada como sendo de aplicação meramente subsidiária, até mesmo pelo fato de que uma agressão a determinado direito fundamental simultaneamente poderá constituir ofensa ao seu conteúdo em dignidade.34 A relação entre a dignidade da pessoa humana e as demais normas de direitos fundamentais não pode, portanto, ser corretamente qualificada como sendo, num sentido técnico-jurídico, de cunho subsidiário, mas sim, caracterizada por uma substancial fundamentalidade que a dignidade assume em face dos demais direitos fundamentais.35 É neste contexto que se poderá afirmar, na esteira de Geddert-Steinacher, que a relação entre a dignidade e os direitos fundamentais é uma relação sui generis, visto que a dignidade da pessoa assume simultaneamente a função de elemento e medida dos direitos fundamentais, de tal sorte que, em regra, uma violação de um direito fundamental estará vinculada com uma ofensa à dignidade da pessoa.36 Tal constatação não afasta, em princípio, a conveniência de que – justamente em função do alto grau de abstração e indeterminação que caracteriza especialmente o princípio da dignidade da pessoa humana, constituindo os direitos e garantias fundamentais concretizações daquele – diante de um caso concreto, busque-se inicialmente sondar a existência de uma ofensa a determinado direito fundamental em espécie, não apenas pelo fato de tal caminho se mostrar o mais simples, mas acima de tudo pela redução da margem de arbítrio do intérprete, tendo em conta que em se tratando de um direito fundamental como tal consagrado pelo Constituinte, este já tomou uma decisão prévia – vinculativa para todos os agentes estatais e particulares – em prol da explicitação do conteúdo do princípio da dignidade da pessoa naquela dimensão específica e da respectiva necessidade de sua proteção, seja na condição de direitos de defesa, seja pela admissão de direitos a prestações fáticas ou normativas. Isto, contudo, não significa que uma eventual ofensa a determinado direito fundamental não possa constituir também, simultaneamente, violação do âmbito de proteção da dignidade da pessoa humana, de modo que esta poderá sempre servir de fundamento autônomo para o reconhecimento de um direito subjetivo, neste caso, de cunho negativo.37 Por sua vez, vale frisar, nada impede (antes pelo contrário, tudo impõe) que se busque, com fundamento direto na dignidade da pessoa humana, a proteção – mediante o reconhecimento de posições jurídico-subjetivas fundamentais – da dignidade contra no34 35 36

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Neste sentido, a lição de Höfling, in: M. Sachs (Org), Grundgesetz, p. 119. Cf. a oportuna referência de H. Dreier, Art. 1 I GG, in: H. Dreier (Org), Grundgesetz Kommentar, p. 127 Cf. T. Geddert-Steinacher, Menschenwürde als Verfassungsbegriff, p. 166, destacando, ainda, que a dignidade da pessoa humana, na condição de princípio jurídico fundamental, atua – como já referido alhures – como princípio regulativo da interpretação constitucional. Vale frisar aqui que o âmbito de proteção da dignidade da pessoa não se encontra coberto de modo igual e isento de lacunas, já que a dignidade possui, consoante já destacado, uma normatividade autônoma. Neste sentido, v. Udo Di Fabio, Der Schutz der Menschenwürde durch Allgemeine Programmgrundsätze, p. 38.

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vas ofensas e ameaças, em princípio não alcançadas, pelo menos não expressamente, pelo âmbito de proteção dos direitos fundamentais já consagrados no texto da Constituição.38 Neste contexto, embora estejamos a tratar aqui mais especificamente de uma diretriz a respeito da titularidade dos direitos fundamentais em geral, há como sustentar, com fundamento na própria dignidade da pessoa humana, a existência de um direito fundamental de ser titular dos direitos fundamentais que assegurem e promovam justamente a sua condição de pessoa (com dignidade) no âmbito de uma determinada comunidade.39 Aproxima-se desta noção – embora com ela evidentemente não se confunda – o assim denominado princípio da universalidade dos direitos fundamentais,40 que, nada obstante não consagrado expressamente pela CF, e a despeito da redação do caput do artigo 5º do mesmo texto constitucional (atribuindo aos brasileiros e estrangeiros residentes do país) a titularidade dos direitos fundamentais, reclama, todavia – como já tem decidido por várias vezes o Supremo Tribunal Federal Brasileiro41 – uma exegese de cunho extensivo, justamente em homenagem ao princípio da dignidade da pessoa humana, no sentido de que pelo menos os direitos e garantias fundamentais diretamente fundados na dignidade da pessoa podem e devem ser reconhecidos a todos, independentemente de sua nacionalidade, excepcionando-se, à evidência, aqueles direitos cuja titularidade depende de circunstâncias específicas e que, de regra, nem mesmo todos os nacionais de um determinado Estado podem exercer,42 como ocorre especialmente com os direitos políticos (ativos e passivos) ou mesmo com os direitos dos trabalhadores.43 38

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Peter Häberle, Die Menschenwürde als Grundlage..., p. 844, nos lembra, neste contexto, que o desenvolvimento pretoriano ou mesmo a nova formulação textual de direitos fundamentais específicos pode ser vista como uma atualização do postulado básico da proteção da dignidade da pessoa humana em face de novas ameaças. É nesta linha que parece situar-se o entendimento de C. Enders, Die Menschenwürde in der Verfassungsordnung, p. 501 e ss., vislumbrando na dignidade da pessoa humana um direito a ser titular de direitos. Sobre o princípio da universalidade dos direitos fundamentais v., entre outros, J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 390 e ss., afirmando que os direitos fundamentais, em regra, são também direitos humanos, no sentido de que não são apenas direitos dos cidadãos portugueses, a não ser quando a própria ordem constitucional estabeleça (ou autorize expressamente o legislador para tanto) algumas exceções. Entre nós, v. o recente contributo de A. C. Nunes, A Titularidade dos Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. Vale lembrar aqui, a título ilustrativo, o Acórdão proferido no processo de extradição nº 633/CH, tendo como Relator o Ministro Celso de Mello (publicado no dia 06.04.2001), onde restou consignado que “O fato de o estrangeiro ostentar a condição jurídica de extraditando não basta para reduzi-lo a um estado de submissão incompatível com a essencial dignidade que lhe é inerente como pessoa humana e que lhe confere a titularidade de direitos fundamentais inalienáveis, dentre os quais avulta, por sua insuperável importância, a garantia do due process of law”. Neste contexto, J. Miranda, Manual..., vol. IV, p. 217, reconhecendo o princípio da universalidade no direito constitucional português, averba que “todavia, há direitos que não são de todas as pessoas, mas apenas de algumas categorias, demarcadas em razão de factores diversos, sejam permanentes, sejam relativos a certas situações...”. Aqui, em verdade – assim como na já citada decisão do Supremo Tribunal Federal versando sobre a extradição – também se cuida de um exemplo de aplicação da máxima na dúvida em prol da dignidade, e, nesta quadra, da interpretação das próprias normas constitucionais à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, notadamente quando se cuida de ampliar proteção e âmbito de aplicação dos direitos fundamentais. Nesta linha, situa-se decisão do Tribunal Constitucional da Espanha (STC 95/2000, de 10.04.2000), que, na esteira de precedentes do próprio Tribunal, reafirmou o entendimento de que os estrangeiros gozam (na Espanha),

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Em sintonia com esta perspectiva, de uma tutela abrangente da pessoa humana, merecem destaque também os assim designados direitos de personalidade. Neste contexto, vale citar a lição de Paulo Mota Pinto, no sentido de que da “garantia da dignidade humana decorre, desde logo, como verdadeiro imperativo axiológico de toda a ordem jurídica, o reconhecimento de personalidade jurídica a todos os seres humanos, acompanhado da previsão de instrumentos jurídicos (nomeadamente, direitos subjetivos) destinados à defesa das refracções essenciais da personalidade humana, bem como a necessidade de protecção desses direitos por parte do Estado”.44 Assim, na formulação do mesmo autor, “a afirmação da liberdade de desenvolvimento da personalidade humana e o imperativo de promoção das condições possibilitadoras desse livre desenvolvimento constituem já corolários do reconhecimento da dignidade da pessoa humana como valor no qual se baseia o Estado”.45 Aliás, é precipuamente com fundamento no reconhecimento da dignidade da pessoa por nossa Constituição, que se poderá admitir, também no Brasil e apesar da omissão da CF neste particular, a consagração – ainda que de modo implícito – de um direito ao livre desenvolvimento da personalidade,46 que, por sua vez, serve de fundamento à exegese ampliativa do artigo 11 e seguintes do Código Civil Brasileiro, no sentido de que também o elenco dos direitos de personalidade não é taxativo, no sentido de um numerus clausus.47. Para além do já referido reconhecimento de um direito geral ao livre desenvolvimento da personalidade, diretamente deduzido do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como para citar outro exemplo vinculado à proteção da pessoa humana, em virtude de sua dignidade, vale destacar, pela sua atualidade e relevância, o direito (de

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em condições plenamente equiparáveis aos espanhóis, daqueles direitos que pertencem à pessoa como tal e que resultam imprescindíveis para a garantia da dignidade da pessoa humana (“los extranjeros gozan en nuestro país, en condiciones plenamente equiparables a los españoles, de aquellos derechos que pertenecen a la persona en cuanto tal y que resultan imprescindibles para la garantia de la dignidad humana”). Tal entendimento, recentemente reiterado (ainda na Espanha) na Sentença nº 95/2003, onde restou reconhecida a extensão do direito à justiça gratuita também para os estrangeiros, por seu turno, parece expressar a tendência majoritária da doutrina e da jurisprudência no Direito Comparado, também por influência da internalização dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos, do que dá conta, por exemplo, o Acórdão nº 208/04, de 24.03.04, do Tribunal Constitucional de Portugal, onde – com base na dignidade da pessoa humana – foi outorgada a dispensa da taxa judiciária para cidadã brasileira que pretendia propor ação trabalhista. Relativamente a este ponto, importa, ainda, consignar que a extenção da assistência judiciária gratuita a qualquer pessoa (pelo menos em princípio) resulta da necessidade de se assegurar, a qualquer pessoa – para além de um direito a ter direitos – o direito a direitos fundamentais efetivos, notadamente no concernente aos direitos diretamente ancorados na dignidade da pessoa. Cf. P. Mota Pinto, O Direito ao livre desenvolvimento da personalidade, p. 151. P. Mota Pinto, idem., p. 152. No direito brasileiro, com referência expressa – entre outros preceitos constitucionais – ao princípio da dignidade da pessoa humana, G. Tepedino, Temas de Direito Civil, especialmente p. 48-49, sustenta, com inteira razão, a existência de uma “cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana.” A respeito dos direitos de personalidade e do fato de não representarem uma rol taxativo, v., ainda, dentre tantos, C. Ari Mello, “Contribuição para uma teoria híbrida dos direitos de personalidade” e F. S. de Andrade, “Considerações sobre a tutela dos direitos de personalidade no Código Civil de 2002”, ambos in: I.W. Sarlet (Org), O Novo Código Civil e a Constituição, 2ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 69 a 100 e 101 a 118.

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personalidade) da pessoa à proteção contra eventuais excessos cometidos em sede de manipulações genéticas, inclusive no que diz com a fundamentação de um (novo?) direito à identidade genética da pessoa humana,48 ainda não contemplado como tal (ao menos não expressa e diretamente) no direito constitucional positivo brasileiro.49 Também um direito à identidade pessoal (neste caso não estritamente referido à identidade genética e sua proteção, no caso, contra intervenções no genoma humano) tem sido deduzido do princípio da dignidade da pessoa humana, abrangendo inclusive o direito ao conhecimento, por parte da pessoa, da identidade de seus genitores.50 Nesta mesma senda, reportando-se expressamente à conexão entre a dignidade da pessoa humana e o princípio da igualdade, já assume ares de consenso, também na ordem jurídica brasileira, o reconhecimento de um direito à livre orientação sexual, do que dá conta, em caráter meramente ilustrativo, a proteção jurídica das uniões entre pessoas do mesmo sexo e todas as conseqüências que a doutrina e jurisprudência daí já vêm extraindo.51 48

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Vale registrar aqui a lição de J. C. Gonçalves Loureiro, O Direito à Identidade Genética do Ser Humano, especialmente p. 351 e ss., nada obstante admitindo outras possibilidades de fundamentação de um direito à identidade genética. M. Koppernock, Das Grundrecht auf bioethische Selbstbestimmung, 1997, por sua vez, fala em um direito fundamental à autodeterminação bioética, diretamente fundado no princípio da dignidade da pessoa humana e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade (este, por sua vez, também expressão da dignidade). Especificamente sobre as relações entre o genoma humano, a dignidade aos direitos fundamentais, v., ainda, dentre tantos que já se ocuparam do tema no âmbito da doutrina francesa, B. Mathieu Génome Humaine et Droits Fondamenteaux, Paris, Economica, 2000. Também em língua portuguesa, indispensável o contributo de P. Otero, Personalidade e Identidade Pessoal e Genética do Ser Humano, Coimbra: Almedina, 1999. Para além disso, bem lembrando a necessidade de evitar uma “biologização” da pessoa humana, no contexto das ameaças acarretadas pelo uso das novas tecnologias, v. P. Pedrot, La dignité de la personne humaine a l’épreuve des technologies biomédicales, in: P. Pedrot (Dir), Éthique, Droit et Dignité de la Personne, p. 62. Entre nós, explorando com maestria a prespectiva jurídico-penal, v., por todos, P. V. S. Souza, Bem Jurídico Penal e Engenharia Genética Humana, São Paulo: RT, 2004 e, por último,a relevante contribuição de S. R. Petterle, O Direito Fundamental às Identidade Genética na Constituição Brasileira, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.Por último, no direito brasileiro, v. I.W. Sarlet e G.S. Leite (Org), Direitos Fundamentais e Biotecnologia, São Paulo: Método, 2008. Cumpre registrar aqui a previsão expressa feita pela CF (art. 225, § 1º, inciso II, da Constituição) no sentido de impor ao poder público a tarefa de “preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético.” Assim, não obstante – tal como frisado – não haja referência direta a um direito à identidade genética no direito constitucional positivo brasileiro, certo é que a expressão patrimônio genético (apesar de se cuidar de norma versando sobre a proteção do meio ambiente) pode ser lida como abrangendo o genoma humano, de tal sorte que nos parece legítimo concluir que, a partir de uma exegese sistemática, que leve em conta tanto o preceito ora ventilado, quanto o princípio da dignidade da pessoa humana, também no direito pátrio há como reconhecer a existência de um direito à identidade genética da pessoa humana. Da mesma forma, em existindo tratado internacional ratificado pelo Brasil reconhecendo tal direito, este – muito embora o entendimento majoritário em sentido contrário do nosso Supremo Tribunal Federal – forte no artigo 5º, § 2º, da Constituição de 1988, passaria – de acordo com a doutrina mais afinada com a evolução internacional – a ter hierarquia constitucional, aspecto que, embora controverso, não pode ser aqui simplesmente desconsiderado. Sobre o tema, v., no Brasil, o recente estudo de M.C. de Almeida, DNA e Estado de Filiação à Luz da Dignidade Humana, especialmente p. 117 e ss., mediante uma fundamentação calcada não apenas nas experiências paradigmáticas do direito comparado, mas fundada justamente na abertura material do catálogo de direitos fundamentais e no princípio da dignidade da pessoa humana, tal qual consagrados na ordem constitucional brasileira. Sem que se vá adentrar aqui a discussão em torno da qualificação da união entre pessoas do mesmo sexo como equivalente a união estável reconhecida e protegida no artigo 226, § 3º, da Constituição de 1988 (o

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Também os assim denominados direitos sociais, econômicos e culturais, seja na condição de direitos de defesa (negativos), seja na sua dimensão prestacional (atuando como direitos positivos), constituem exigência e concretização da dignidade da pessoa humana, de tal sorte que também nesta esfera é possível identificar exemplos de direitos fundamentais específicos não direta e expressamente positivados. Considerando que uma das tarefas elementares do Estado Democrático de Direito é a proteção da pessoa contra as necessidades de ordem material,52 no contexto da garantia de uma existência com dignidade53 (que, de resto, assume também a condição de fim da ordem constitucional econômica, tal como dispõe o artigo 170 da CF) tem sido advogado o reconhecimento de um direito fundamental a um mínimo existencial, compreendido aqui não como um conjunto de prestações suficientes apenas para assegurar meramente a existência (a ga-

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que, por sua vez, nos remete ao problema da possibilidade de se admitir a existência de normas constitucionais originárias inconstitucionais), assume relevo, também neste contexto, que a dignidade da pessoa humana – de modo autônomo ou conexionado com outros direitos fundamentais – tem servido de suporte para o reconhecimento de direitos fundamentais implícitos, o que tem, pelo menos nesta seara, alcançado expressiva aceitação pela jurisprudência e doutrina. A respeito do tema, reportamo-nos, entre tantos, aos contributos (e aqui vão colacionadas duas das monografias referenciais sobre o tema) de L. A. D. Araújo, A Proteção Constitucional do Transexual, São Paulo: Saraiva, 2000, R. R. Rios, A homossexualidade no Direito, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001 e M. B. Dias, União Homossexual. O Preconceito & a Justiça, 2ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, onde, de resto, também se encontram elementos a respeito da controvérsia apontada, no caso, da possibilidade de se considerar a união homossexual como união estável. Esta a senda privilegiada, entre outros, por A . C. Wolkmer, “Direitos Políticos, Cidadania e Teoria das Necessidades”, in: Revista de Informação Legislativa nº 122 (1994), p. 278 e ss., assim como por J. T. Alfonsin, O acesso à terra como conteúdo de direitos humanos fundamentais à alimentação e à moradia, especialmente p. 19-65. Cf., dentre outros, Höfling, in: M. Sachs (Org) Grundgesetz, p. 109-10, assim como Maunz-Zippelius, Deutsches Staatsrecht, p. 182. Na França, a íntima ligação entre os direitos sociais e a dignidade da pessoa encontra-se referida por M. L. Pavia, Le principe de dignité..., p. 109-10, valendo-se do exemplo de um direito fundamental à moradia, recentemente guindado a objetivo constitucional pelo Conselho Constitucional, e tido, pela Corte de Apelação de Paris, como direito fundamental e objetivo de valor constitucional, em decisão na qual, no confronto entre o direito de propriedade, acabou deferindo aos ocupantes de um conjunto residencial, uma permanência mais prolongada nos imóveis. Também na Bélgica, sustenta-se que o direito a uma existência com dignidade implica o reconhecimento de um direito aos meios de subsistência mínimos, especialmente no que diz com o direito à assistência social. Neste sentido, v. F. Delpérée, O Direito à Dignidade Humana, p. 156 e ss. Assim também J. Miranda, Manual..., vol. IV, p. 186 (ao menos é o que se infere da referência a diversos direitos sociais), aqui representando o que hoje corresponde, ainda que com alguma variação no que diz com o conteúdo e fundamento do mínimo existencial, a doutrina e jurisprudência portuguesa dominantes. Entre nós, v, por todos, R. L. Torres, o Direito ao Mínimo Existencial, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, mapeando e analisando a doutrina e jurisprudência brasileira, mas com expressivo diálogo com o direito estrangeiro. Registre-se, neste contexto, que mesmo antes da introdução de um direito social à moradia no artigo 6º da Constituição de 1998, já havia diversas decisões reconhecendo, por exemplo, a íntima vinculação da habitação com a dignidade da pessoa humana. No que diz com a vinculação dos direitos sociais com a dignidade da pessoa humana, vale referir (embora em caráter meramente exemplificativo), no que diz com a posição dos Tribunais brasileiros, a ementa do Acórdão proferido em 19.08.99 pelo Superior Tribunal de Justiça no Resp. nº 213422, tendo como Relator o Ministro José Delgado, concepção que tem sido objeto de reiterada chancela pelo mesmo Tribunal, como dá conta, entre outros tantos, o Acórdão proferido nos Eresp. nº 182223 (DJ 07.04.2003), relatado pelo Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, onde restou decidido que a finalidade da Lei nº 8.009/90 não se limita à proteção da família (no caso, cuidava-se de examinar a abrangência da proteção outorgada pela legislação referida ao bem de família), mas destina-se a resguardar a proteção do direito fundamental à moradia de qualquer pessoa humana, portanto, também do celibatário. Ao longo dos anos, o mínimo existencial passou a ser reconhecido em larga escala, especialmente em ações envolvendo o direito à saúde e o direito à educação.

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rantia da vida) humana em si (aqui seria o caso de um mínimo apenas vital), mas sim, de uma vida com dignidade, no sentido de uma vida saudável.54 Tal concepção, de resto, encontra ressonância mesmo em pensadores de inspiração liberal, como é o caso – entre outros – do norte-americano Cass Sunstein, para quem um direito a garantias sociais e econômicas mínimas pode ser justificado, não apenas com base no argumento de que pessoas que vivem em condições desesperadoras não vivem uma vida boa, mas, também, a partir da premissa de que um regime genuinamente democrático pressupõe uma certa independência e segurança para cada pessoa,55 o que, de certo modo, harmoniza com a noção de um mínimo existencial para uma vida com dignidade e um conjunto de direitos a prestações indispensáveis para a garantia deste mínimo,56 sem prejuízo da dimensão negativa (defensiva) do mínimo existencial, inclusive no que diz com uma proteção contra o retrocesso.57 Que a garantia do mínimo existencial se projeta também em outros direitos fundamentais,58 e, além disso, exerce importante função na condição simultânea de limite (visto que pode justificar restrições a outros direitos em conflito) e limite dos limites a restrições de direitos fundamentais, não será aqui objeto de desenvolvimento.59 54

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Para maiores referências e desenvolvimentos v. o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 329 e ss. E, de modo especial, o nosso conceito de dignidade da pessoa humana formulado na obra Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, p. 63, de acordo com o qual a dignidade da pessoa humana consiste na “qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humana que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.” Note-se, ainda, que o critério para definição do conceito indeterminado vida saudável é o conceito de saúde adotado pela OMS, no sentido da garantia de um completo bem-estar físico, mental e social, evitando assim a redução a um mínimo meramente vital ou mínimo existencial fisiológico Cf. Cass Sunstein, Designing Democracy, p. 235. A respeito do mínimo existencial, ainda que com variações significativas sobre sua fundamentação e conteúdo, v., no âmbito da doutrina brasileira e dentre tantos que já se tem dedicado ao tema, o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, especialmente p. 330 e ss., mas com particular destaque para as lições de R. L. Torres, inicialmente em seu pioneiro estudo “O Mìnimo Existencial e os Direitos Fundamentais”, in: Revista de Direito Administrativo nº 177 (1989), p. 20 e ss., no seu ensaio sobre “A Metamorfose dos Direitos Sociais em Mínimo Existencial”, in: I.W. Sarlet (Org), Direitos Fundamentais Sociais: estudos de direito constitucional, internacional e comparado, p. 1 e ss., mas acima de tudo na obra O Direito ao Mínimo Existencial, Rio de Janeiro: Renovar, 2008. Dentre a doutrina brasileira, reportamo-nos, ainda e entre outros, aos estudos de A.P. de Barcellos, A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana, Rio de Janeiro: Renovar, 2002 e P. G. C. Leivas, Teoria dos Direitos Fundamentais Sociais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. A respeito da proteção contra o retrocesso e sua vinculação com o mínimo existencial e a dignidade da pessoa humana, v. o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 442 e ss. Bastaria aqui apontar o exemplo do próprio de direito de propriedade, naquilo que cumpre uma função existencial (como meio de subsistência, moradia, etc.) e passa a ser blindado contra uma supressão ou outras formas de violação. Sobre este ponto, v. a paradigmática tese de L.E. Fachin, Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, Rio de Janeiro: Renovar, 2001. Aqui remetemos ao nosso Dignidade da Pessoa Humana, p. 121 e ss.No direito lusitano, sobre este ponto, v., por último, J.M. Alexandrino, Perfil constitucional da dignidade da pessoa humana: um esboço traçado a partir da variedade de concepções, in: Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, vol. I, Coimbra: Almedina, 2008, p. 509-11.

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Já num outro plano – embora revelando direta conexão com a temática ora versada – situa-se o problema da extensão da abertura material dos direitos fundamentais para direitos de matriz legal, porquanto expressamente reconhecidos pelo legislador infraconstitucional. É o que ocorre, por exemplo, com alguns direitos de personalidade consagrados no atual Código Civil Brasileiro e não diretamente positivados na CF, bem como com o direito à prestação alimentícia, igualmente chancelado na legislação infraconstitucional material e processual, mas sem fundamento direto e expresso no texto constitucional vigente, salvo, por exemplo, de modo indireto, como quando se estabeleceu a possibilidade da prisão civil do devedor de alimentos. Quanto a este ponto, se é verdade que a CF não agasalhou dispositivo idêntico ao previsto na Constituição da República Portuguesa, onde, no artigo 16/1,60 foi, como já apontado, igualmente consagrada a noção de abertura material do catálogo constitucional de direitos fundamentais,61 abertura esta que não se reduz à cláusula constitucional específica que a consagra, o que vale particularmente para os casos brasileiro e português62. Contudo, se mesmo em Portugal, onde houve previsão expressa a respeito, a existência de direitos (materialmente) fundamentais nos textos legais é controversa63, no caso do Brasil, ante a ausência de previsão constitucional expressa, a fundamentação de direitos fundamentais com base em leis é anda mais difícil. Assim, é preciso que se compreenda – o que resulta particularmente evidente no caso dos direitos de personalidade e do próprio direito aos alimentos - que, em verdade, não estamos em face de direitos fundados diretamente na lei, mas sim, diante de direitos com fundamento (pelo menos implícito) e hierarquia constitucionais, regulamentados pelo legislador. Em outras palavras, isto significa que, assim como os direitos específicos de personalidade expressamente elencados no Código Civil decorrem já de um direito geral de tutela e promoção da personalidade (por sua vez diretamente ancorado na dignidade da pessoa humana), de tal sorte que até mesmo dispensável (embora certamente não irrelevante) a intervenção legislativa para efeito de seu reconhecimento e proteção,64 também o direito aos alimentos – apenas para ficarmos nos exemplos colacionados – integra o conjunto de prestações indispensáveis ao mínimo existencial, já que destinado essencial60 61

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“os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional” Importa consignar, neste contexto, que a abertura material a outros direitos fundamentais também foi reconhecida em outro dispositivo da Constituição Portuguesa, no caso, o artigo 17, de acordo com o qual “o regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se aos enunciados no Título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga”, enunciado que, contudo, parece excluir os direitos sociais prestacionais do seu âmbito de aplicação, o que não ocorre com o artigo 16, nº 1. Como bem demonstra J.M.Alexandrino, A estruturação do sistema de direitos, liberdades e garantias na Constituição Portuguesa, vol. II, 2006, p. 374 e ss., a abertura a outros direitos fundamentais guarda conexão, mas não se esgota na cláusula expressa de abertura, visto que abrange uma séria de possibilidades. Sobre o ponto, v., por último, J.M. Alexandrino, A estruturação do sistema de direitos, liberdades e garantias na Constituição Portuguesa, vol. II, 2006, p. 381 e ss. Cf., na literatura brasileira, entre outros, C. A. Mello, Contribuição para uma Teoria Hibrida dos Direitos de Personalidade, p. 81 e ss.

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mente (mas não exclusivamente) à satisfação das necessidades básicas do destinatário para uma vida com dignidade.65 Além disso, o exemplo da verba alimentar devida em função das relações de parentesco ou da união entre duas pessoas, aponta para uma possível eficácia em relação a particulares dos direitos fundamentais a prestações (que não se identificam apenas com os assim designados direitos sociais), pelo menos em algumas situações, aspecto que, contudo, aqui não será mais desenvolvido.66

4. Considerações finais De todo o exposto resulta evidente que o tema da abertura material do catálogo constitucional de direitos fundamentais segue atual e relevante, constituindo terreno fértil tanto para o cientista quanto para o assim designado operador do Direito. Nenhuma Constituição, por mais analítica que seja, terá condições de determinar de forma exaustiva todas as necessidades e possibilidades de tutela em termos de direitos fundamentais, razão pela qual não se pode subtrair ao intérprete (aqui compreendido em sentido amplo e abrangendo todos os agentes diretamente envolvidos no processo de concretização e desenvolvimento da Constituição) a possibilidade de uma atuação criativa. Os poucos exemplos colacionados, amplamente justificados e chancelados por expressiva doutrina e jurisprudência (ainda que importantes as divergências sobre uma série de aspectos específicos) dão conta disso, apesar de constituírem apenas pálida amostra de todo um universo a ser explorado. De outra parte, importa reafirmar que, para além até mesmo da possibilidade de se recorrer (inclusive nas hipóteses citadas) a fundamento diverso, designadamente, a normas de direitos fundamentais específicas, do princípio da dignidade da pessoa humana, paralelamente à sua dimensão jurídico-objetiva, é não apenas possível como necessário extrair direitos subjetivos (e fundamentais) com vistas à sua mais abrangente proteção e promoção. A recomendar maior reflexão, todavia, está a relativamente freqüente afirmação da possibilidade de se extrair “novos” direitos fundamentais da Constituição e, no que nos diz mais de perto, da dignidade da pessoa humana. Neste sentido, seguimos céticos em relação à própria definição do que efetivamente é um direito “novo”, ainda mais quando se constata – e os exemplos trazidos bem o demonstram – que o que está em causa é a tutela 65

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Versando sobre este tópico, v., recentemente, o ensaio de J. Spagnolo, “Uma visão dos alimentos através do prisma fundamental da dignidade da pessoa humana”, in: S. G. Porto e D. Ustárroz (Org), Tendências Constitucionais no Direito de Família, p. 141 e ss., justamente propondo que o conteúdo da prestação alimentar tenha por referencial, especialmente quando da aferição de seu montante, tudo o que for necessário para uma vida com dignidade. A respeito da eficácia dos direitos sociais nas relações entre particulares v. em especial D. Sarmento, Direitos Fundamentais e Relações Privadas, p. 332 e ss., apontando, com acuidade, para a relevância da dimensão processual do problema, notadamente no que diz com os limites da atuação jurisdicional também nesta esfera, bem como, mais recentemente, o nosso “Direitos fundamentais sociais, mínimo existencial e direito privado”, in: Revista de Direito do Consumidor n° 61 , jan-mar. 2007, p. 90 e ss.

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da mesma dignidade da pessoa ou, como se verifica em outras hipóteses, de direitos fundamentais já amplamente consagrados, pois o que efetivamente constitui uma novidade é o contexto no qual os direitos são exercidos, assim como novas (diferentes) são muitas vezes as formas de violação dos direitos, a exigirem igualmente resposta por parte do Estado e da sociedade. Bastaria aqui tomar o caso do direito à identidade genética da pessoa humana para bem ilustrar a questão, visto que se cuida de saber, em primeira linha, se o patrimônio genético da pessoa humana encontra-se abrangido pelo âmbito de tutela da nossa personalidade e se a proteção da dignidade alcança a vida embrionária, entre tantos outros aspectos correlatos que poderiam ser mencionados. Também a proteção da imagem e da honra segue tendo substancialmente o mesmo significado, seja a violação cometida pela imprensa escrita, seja ela veiculada pela internet ou outro meio antes não disponível. Em verdade, percebe-se que até mesmo alguns direitos fundamentais “clássicos” acabam sendo revitalizados e ganhando inclusive em importância e atualidade, como ocorre com a própria liberdade no âmbito da sociedade informatizada, na esfera da discussão em torno da inclusão digital e outros temas. É por essas (e outras) razões que já se apontou para a circunstância de que em verdade o que ocorre não é propriamente o reconhecimento (seja pela positivação legislativa, seja pela criação jurisprudencial) de “novos” direitos, mas uma espécie de transmutação hermenêutica, no sentido do reconhecimento de novos conteúdos e funções dos direitos fundamentais já consagrados.67 Em verdade, como bem alerta Erhard Denninger, ao nos depararmos com a pergunta sobre o que de novo efetivamente revelam os assim designados “novos” direitos da era tecnológica, talvez seja possível responder que eles nos levam a reconhecer que as antigas dificuldades da humanidade com a problemática da Justiça não lograram ser superadas pelo avanço tecnológico e científico.68 Já de acordo com Antonio Carlos Wolkmer, para quem igualmente os direitos “novos” nem sempre são realmente “novos”, a novidade muitas vezes reside no modo de obtenção (e fundamentação, poderíamos acrescer) dos direitos, que não se restringe necessariamente ao reconhecimento legislativo e jurisprudencial, mas resulta de um processo dinâmico e complexo de lutas específicas e de conquistas coletivas, até que se venha a obter a chancela pela ordem estatal, inclusive na esfera jurídica.69 Feitas essas considerações e reafirmado o nosso ceticismo em relação à noção de “novos” direitos, pelo menos na forma um tanto quanto exagerada que por vezes tem sido utilizada, importa é que sejamos capazes de levar a sério todas as dimensões da abertura material do catálogo constitucional em matéria de direitos fundamentais, não olvidando que em matéria de tutela de direitos fundamentais, designadamente naquilo em que estiver em causa a dignidade da pessoa humana e ressalvados excessos e banalizações, ainda 67 68 69

V., neste sentido, E. Denninger, Der Gebändigte Leviathan, p. 225-6. Cf. E. Denninger, op. cit., p. 229. Cf. A.C. Wolkmer, “Introdução aos fundamentos de uma teoria geral dos “novos” direitos”, p. 20.

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é melhor “pecar” pelo mais do que pelo menos, em outras palavras, pela inclusão do que pela exclusão. Um Direito e uma sociedade mais fraterna e altruísta exigem uma compreensão inclusiva e abrangente da dignidade da pessoa humana e dos direitos e deveres fundamentais que lhe são inerentes.

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60 Anos da Promulgação da Grundgesetz Alemã e Proteção Comunitária Européia dos Direitos Humanos: Uma Relação de Complementaridade Leonardo Martins*

Introdução A relação entre a vigência dos direitos humanos, que têm caráter universal e um fundamento que pode ser caracterizado como metafísico1, e os direitos fundamentais, positivados em ordens constitucionais no ambiente dos Estados soberanos, carece e merece um aprofundamento que vá além dos embates teóricos carregados de disputas ideológicas. A histórica discrepância entre a jurisprudência do STF a respeito da hierarquia dos tratados internacionais sobre direitos humanos e a doutrina internacionalista brasileira2 demonstram-no com sobejo. Essa relação encontra-se plenamente esclarecida na ordem constitucional alemã, com a agravante de que lá há o fator gerador de enorme complexidade que é o advento do bem sucedido direito comunitário europeu, cujo direito secundário composto principalmente pelas chamadas diretrizes, intervém na relação entre os cidadãos de um Estado soberano e este com intensidade e freqüência nunca antes vistas na história do direito internacional público. Em síntese, pode-se dizer que, no caso da União Européia, os Es*

1 2

Graduado em direito pela USP (1994); Mestre (1997) e Doutor (2001) em Direito Constitucional pela Humboldt-Universität zu Berlin, Alemanha; pós-doutorado (2004) pelo Hans-Bredow-Institut para a Pesquisa da Comunicação Social da Univ. de Hamburg, Alemanha; Professor dos programas de graduação e pós-graduação stricto sensu da Univ. Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Fellow no Erich Pommer Institut da Univ. de Potsdam, Alemanha, pela Fundação Alexander von Humboldt; Ganhador (conjuntamente com Dimitri Dimoulis) do “50º Prêmio Jabuti de Literatura” (2008), na categoria “Melhor Livro de Direito” com a obra “Teoria Geral dos Direitos Fundamentais” (RT, 2007); Professor Visitante da Humboldt-Universität zu Berlin (desde 2001). Cfr. HÖFLING, 2003: 80. Cfr., entre muitos outros, sobretudo: TRINDADE, 1997 e PIOVESAN, 2000.

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tados nacionais transferiram de maneira condicionada parte de sua soberania a um quase Estado supranacional. Nenhuma outra corte deixou tão claro esse condicionamento como o Tribunal Constitucional Europeu que julgou, em alguns casos paradigmáticos que serão abaixo analisados, a conformidade de decretos e regulamentos europeus com a Grundgesetz, a qual se consolidou, como se verá no primeiro tópico abaixo, como a Constituição da República Federal da Alemanha e, após 1990, da Alemanha reunificada, que adotou o nome da antiga Alemanha ocidental. É o que sempre ocorreu toda vez que tais atos normativos das Comunidades Européias implicaram intervenções em direitos fundamentais previstos na Grundgesetz. Saber em que medida uma concorrência entre a jurisdição constitucional dos direitos fundamentais e a jurisdição internacional dos direitos humanos é viável e salutar para efetivação dos direitos humanos no âmbito interno e fundamentada do ponto de vista constitucional configura o principal objeto da presente exposição. Para tanto, há lições que podem ser colhidas da historicamente consolidada jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal (TCF) alemão em torno dos direitos humanos derivados do chamado direito primário europeu e da interpretação vinculante dos direitos fundamentais positivados na Grundgesetz.

I. Gênese da Grundgesetz: Entre reconstrução, déficit democrático, pressão dos Aliados e Guerra Fria Era pra ser, como seu próprio nome indica, tão somente uma “Lei Fundamental” e não uma Constituição no sentido estrito jurídico. Isso porque sua promulgação se deu no contexto da dissidência da zona soviética em relação ao bloco ocidental composto pelas zonas de ocupação britânica, francesa e norte-americana. A expectativa do Conselho Parlamentar que funcionou como Assembléia Constituinte3 era que a zona soviética breve juntar-se-ia às demais zonas, o que como se sabe não ocorreu, pelo menos não tão rápido. Os alemães da zona de ocupação soviética resolveram criar seu próprio Estado, a República Democrática Alemã, que, pouco mais de quatro décadas mais tarde, em 1990, deixaria de existir. Na chamada reunificação alemã, firmada no dia 3 de outubro de 1990, a área de vigência da Grundgesetz, então limitada ao território da antiga República Federal da Alemanha, foi ampliada aos hoje conhecidos como novos Bundesländer ou estados-membros, além da Berlim unificada que como cidade-estado também representa uma unidade da nova federação alemã. 3

A respeito dos dados históricos e genéticos (trabalhos do Conselho Parlamentar e precursores) aqui relatados há uma literatura muito vasta. Cfr., por todos, somente: FELDKAMP, 2008: 11 e 23 ss. Vide também SACHS, 2003: 9 s.

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Houve conversas a partir da queda do Muro de Berlin em novembro de 1989, as chamadas “Mesas Redondas”, que visavam à elaboração de um novo texto constitucional válido para o novo Estado. Tais tentativas restaram infrutíferas e a Grundgesetz consolidou-se como a Constituição da Alemanha unificada. Trata-se de uma história tão bem sucedida quanto sem precedentes, apesar de sempre reiteradas objeções quanto à sua legitimidade democrática4. Ocorre que na segunda metade dos anos 40, todas as principais nações européias e a Alemanha, em especial, encontravam-se arrasadas pela Segunda Guerra Mundial. No dia 8 de maio de 1945, em Berlim e nos demais centros urbanos da Alemanha, vislumbravam-se tristes montanhas de entulhos. Ausência total de serviços públicos, severos racionamentos de comida, caos. “Hora Zero”, como os historiadores costumam sintetizar. Delineava-se a Guerra Fria, mas os norte-americanos conquistavam a simpatia dos alemães, à medida que se dispunham a investir na reconstrução. Os Aliados começaram, a partir de 1947, a pressionar os novos e locais políticos alemães a pensarem num Estado alemão do pós-guerra. Havia tendências centralizadoras, provenientes principalmente do Partido Social-Democrata, SPD e propostas mais federalistas provenientes de Estados do Sul com forte tradição federalista como Bayern, Würtenberg e Baden. No início de 1948, houve a Conferência Londrina das Seis Potências, quais sejam, as três ocupantes ocidentais: Reino Unido, Estados Unidos da América e França com os três países que compõem o BENELUX por serem fronteiriços. Cada uma das três potências que ocupavam a antiga Alemanha ocidental tinha um objetivo: Os britânicos pretendiam criar um Estado a partir de uma rápida e indolor unificação com a rebelde zona soviética, pouco importando se centralizado ou federativo; os norte-americanos propugnavam por um Estado federal formado a partir das três zonas ocidentais; os franceses queriam, por sua vez, um Estado mais fraco possível, queriam postergar ao máximo a criação de um Estado alemão, tendo em vista o trauma da ocupação nazista durante a Segunda Guerra e o histórico belicista do país vizinho. O resultado desta conferência foi uma conclamação aos alemães ocidentais para criarem um Estado federado. Este não representaria, segundo o entendimento comum, óbice a eventual acordo com a União Soviética que viabilizasse a reunificação. Os franceses hesitaram muito em ratificar a resolução. Foi somente depois de muita pressão dos demais Aliados, Reino Unido e Estados Unidos da América, que o parlamento francês a ratificou com pouco mais da metade dos votos válidos. Logo após, vieram os chamados Documentos de Frankfurt, pelos quais os governantes militares transferiam poderes aos chefes de governo estaduais para convocarem uma Assembléia Nacional Constituinte. A partir daí começaram os trabalhos nos parlamentos 4

Vide, a respeito, a profunda análise desta objeção, com amplas referências bibliográficas, de HECKEL, 1997: 25-27.

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e governos estaduais que se reuniram na cidade de Koblenz de 8 a 10 de julho de 1948. As resoluções aprovadas aceitaram os chamados documentos frankfurtianos, mas rejeitaram a criação de um Estado alemão ocidental, porque não queriam semear a divisão. Rejeitaram também os estatutos da ocupação aprovados pelos governos militares. Houve forte reação dos governos militares que acabaram convencendo os governadores estaduais a voltarem atrás. Dentre os argumentos, os Aliados norte-americanos e britânicos indicavam que o resultado político daquela rejeição inicial à criação da RFA seria ir ao encontro dos interesses franceses na postergação máxima da criação de um Estado alemão soberano. Depois disso, no castelo Niederwald, os governadores chegaram ao consenso de criar uma Grundgesetz apesar da ratificação das resoluções londrinas que recomendavam a elaboração de uma Constituição nos moldes ocidentais continentais. Planejou-se a escolha dos membros do Conselho Parlamentar pelas câmaras legislativas estaduais e uma ratificação da Grundgesetz também pelas câmaras estaduais e não por intermédio de um plebiscito como queriam os governadores militares. Os 11 governadores reuniram-se então em Herrenschiemsee e elaboraram um pré-projeto pautado no princípio federativo e na construção de um Estado democrático de direito que muito influenciou o Conselho Parlamentar. Este elaborou o texto final. O Conselho, composto por 65 membros que entraram para história como os “pais da Grundgesetz”, embora quatro mulheres estivessem entre eles, buscou firmar um texto sintético, não incorrendo no erro da Constituição de Weimar de 1919, bastante analítica, prolixa e que trouxera ao texto constitucional vários compromissos sócio-políticos, muitos deles incompatíveis entre si. De resto, a Grundgesetz deveria ter, como já dito, um caráter provisório. Uma Constituição só deveria ser então aprovada quando a zona soviética participasse de uma assembléia constituinte representativa de todo o povo alemão. A reunificação fora colocada no preâmbulo da Grundgesetz como objetivo a ser alcançado e o Art. 23 trazia as regras que disciplinariam o processo. O atual art. 23 trata, como se verá abaixo, da relação entre República Federal da Alemanha e a União Européia. O Conselho Parlamentar que se reunia desde setembro de 1948, após grandes e calorosas discussões que focavam, sobretudo, as lições provenientes do fracasso da Constituição de Weimar, aprovou, por maioria, o texto final no dia 8 de maio de 1949. Com algumas ressalvas, os governos militares das três zonas ocidentais ratificaram o texto no dia 12 de maio daquele ano. O Art. 144 prescrevia que a Grundgesetz deveria ser aceita por 2/3 das assembléias legislativas estaduais. Bayern foi o único Estado a não aceitar a Grundgesetz na votação da noite de 19 para 20 de maio, por maioria de 101 a 63 votos. Bayern não queria uma União muito forte, ou seja, propugnava por mais federalismo. Nada obstante, no dia 23, a Grundgesetz foi promulgada pelo Conselho Parlamentar.

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II. O “reconhecimento” da vigência dos direitos humanos pela Grundgesetz (GG) Os direitos humanos podem ter base contratual quando compõem cláusulas de tratados internacionais firmados por Estados soberanos. Sua matriz, no entanto, prescinde de positivação, pois se identifica com o ideário, precipuamente burguês, da vertente filosófico-política e político-jurídica do iluminismo do séc. XVIII, o chamado constitucionalismo. Nada obstante, os constituintes dos Estados pertencentes às chamadas democracias ocidentais empenharam-se em “reconhecê-los”, para além dos catálogos positivados de direitos fundamentais, como é o caso da Grundgesetz. Tal “reconhecimento” pela ordem constitucional de um Estado soberano pode significar um mero apelo programático às instâncias políticas e aos titulares das demais funções estatais ou pode ter caráter vinculante. O art. 4º, II CF, por exemplo, determina que, em suas relações internacionais, a República Federativa do Brasil se pautará, entre outros, pelo princípio da “prevalência dos direitos humanos”, enquanto o art. 5º, § 2º CF determina, para o âmbito interno, que os direitos fundamentais positivados no art. 5º não excluem outros direitos derivados dos tratados internacionais dos quais fizer parte o Estado brasileiro5. O constituinte alemão, por sua vez, determinou, com a propriedade a ser abaixo referida, que o soberano, o povo alemão, reconhece os “direitos ‘invioláveis e inalienáveis’ da pessoa humana como fundamento de qualquer comunidade humana, da paz e da justiça no mundo” (Art. 1 II GG). Incansáveis, a jurisprudência do TCF, em constante diálogo com a doutrina especializada, buscou depreender de tal fórmula do reconhecimento dos direitos humanos os conteúdos normativos do dispositivo constitucional. A seguir, busca-se, primeiro, sintetizar tais conteúdos normativos no contexto no Art. 1 GG, principalmente em face de sua imutabilidade prescrita pelo Art. 79 III GG, para, em seguida, apresentar, ainda que sumariamente, o procedimento geral para o exame da vigência de eventuais direitos humanos no âmbito interno.

1. Sedes materiae: Art. 1 II c.c. Art. 79 III GG Do ponto de vista epistemológico, não se pode “conhecer” dos direitos humanos, por serem supra-positivos e “pré-estatais”, mas reconhecê-los como o fizeram os chamados pais das primeiras cartas de direitos e constituições modernas. O constituinte alemão de 1949 foi feliz, portanto, na escolha dos termos utilizados no Art. 1 II GG. Como com 5

Sem dizer absolutamente nada sobre o grau hierárquico de tais direitos derivados dos tratados internacionais, situação essa esclarecida pela EC 45/2004 que inseriu o § 3º ao art. 5º, possibilitando que os tratados a respeito de direitos humanos sejam recepcionados com o mesmo procedimento das emendas constitucionais. Sobre as condições e o significado desta inserção, v. DIMOULIS e MARTINS, 2007: 42-51 e abaixo, sob IV.

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precisão salienta HÖFLING, em seus comentários à Grundgesetz, “mas à interpretação do direito constitucional como operação prática do direito formula-se com isso [com essa constatação] também a questão do conteúdo normativo paupável”6. Para compreender bem tal conteúdo normativo do dispositivo constitucional germânico, necessário se faz apresentar sua localização no sistema da Grundgesetz. A Grundgesetz é uma típica Constituição sintética que se ocupa, basicamente, de dois complexos temáticos: Outorga de direitos fundamentais, de um lado, e configuração e organização das funções, i.e., competências, estatais, de outro. Ela não pretende ser, além disso, também uma Constituição da sociedade como o são as Constituições conhecidas como analíticas ou dirigentes, tal qual a Constituição brasileira, por exemplo.7 Se a organização do Estado é muito relevante e suas regras demonstram uma das duas faces da mesma moeda, pois que tanto garantir direitos fundamentais quanto organizar o Estado e, portanto, limitar as competências, reverte-se em benefício para a liberdade individual, a Grundgesetz acabou por revelar o grande norte político-constitucional que inspirou o processo de sua elaboração: O primeiro capítulo define e outorga os direitos fundamentais das pessoas em face do poder estatal. A definição do Estado, que normalmente aparece no 1º artigo das Constituições modernas, apareceu no texto constitucional alemão somente no art. 20, depois de fechado o rol dos direitos fundamentais. O Art. 1 GG estabelece o fundamento do novo Estado: a dignidade da pessoa humana. Trata-se, entretanto, de um dispositivo complexo, dividido em três parágrafos8, cada qual com sua função específica. Para facilitar o entendimento, reproduz-se, a seguir, o inteiro teor do art. 1 GG: Artigo 1º (Dignidade da pessoa humana) (1) 1A dignidade da pessoa humana é intocável. 2Observá-la e protegê-la é dever de todos os poderes estatais. 6 7

8

HÖFLING, 2003: 102. Há, porém, os princípios organizacionais de Estado mencionados no art. 20: Estado de direito federal, democrático e social, que são vinculantes. Vinculam principalmente o legislador que não pode se omitir. O princípio do Estado Social, por exemplo, ensejou a criação de uma ampla legislação de proteção social e de um ramo especial da jurisdição responsável por sua concretização. Diferentemente do legislador brasileiro, o legislador alemão prescinde totalmente da parte introdutória dos artigos, alcunhados cada qual de “caput”. Os artigos da Grundgesetz (e de tratados interestaduais) e os parágrafos (§§) das leis ordinárias são divididos diretamente em “Absätze” (parágrafos), designados nas citações por algarismos romanos ou arábicos entre parênteses no corpo das leis. A seguinte subdivisão relevante é a dos períodos ou orações que compõem um “Absatz”, sendo designados nas citações geralmente por algarismos arábicos sobrescritos antes da primeira letra no período. Em geral, os artigos levam um título entre parênteses. Nas leis ordinárias, as unidades principais são os “Paragraphen” (§§), também divididos em “Absätze”. Em ambos os casos, são comuns subdivisões em Números ou Alíneas. A interpretação sistemática do Art. 1 II GG deve levar em consideração essa peculiaridade: de que não se trata de um elenco fundado em uma parte introdutória. Cfr. também as explicações e exemplos em MARTINS, 2005b: 7 (sob “Nota Preliminar 1).

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(2) O povo alemão reconhece, por isso, os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana como fundamento de qualquer comunidade humana, da paz e da justiça no mundo. (3) Os direitos fundamentais a seguir vinculam, como direito imediatamente aplicável, os poderes legislativo, executivo e judiciário.9 O reconhecimento dos direitos humanos pelo povo alemão está encravado entre o “Absatz” 1 que define, em seu primeiro período (Art. 1 I 1 GG), a intangibilidade da dignidade da pessoa humana como fundamento primeiro do Estado, assegurando, em seu segundo período (Art. 1 I 2 GG), os deveres de “observância” (princípio da não intervenção, dever de “não fazer”) e proteção (princípio da pró-ação, dever de “fazer”) da dignidade humana e o “Absatz” 3 que, ao nomear as três funções estatais legislativa, executiva e judiciária, deu caráter vinculante aos direitos fundamentais elencados a partir do Art. 2 GG. Trata-se, com efeito, de uma concepção ambivalente: “O constituinte queria criar, ao mesmo tempo, uma ordem jus-naturalista positivada com vinculação imediata [dos “poderes” estatais, nota do autor]”.10 O dispositivo do Art. 1 GG o fez por intermédio de um passo duplo de fortalecimento recíproco da vigência – primeiro dentro do Absatz 1, depois entre o Absatz 2 e o Absatz 3. O Art. 1 I 1 trouxe ao início [da Grundgesetz] uma ‘última interpretação metafísica da pessoa humana’ e com isso, do ponto de vista jurídico-material, ao centro da nova Constituição; ligou a ela todavia no 2º período a rígida conseqüência do dever de observância e proteção. A mesma ‘estrutura escalonada’ (Denninger) está na base da relação das duas seguintes Absätze [2 e 3, pelo autor]. Embasando-se na norma fundamental pertinente ao Estado Constitucional do preceito da dignidade humana como fundamento e motivo (‘por isso’), o Art. 1 II formula o enfático reconhecimento dos invioláveis e inalienáveis direitos humanos, ao qual se liga o Art. 1 III com seu mandamento de rigorosa positividade dos direitos fundamentais enquanto direito imediatamente vigente.11 Essa ambivalência da sistemática do Art. 1 GG entre “jus-naturalismo positivado” (de um lado, dignidade humana como grandeza pré-estatal e supra-positiva e, portanto, ao mesmo tempo legitimação e fundamento jurídico do novo Estado, e, de outro, 9 10 11

Tradução em MARTINS, 2005b: 953. HÖFLING, 2003: 80. HÖFLING, 2003: 80 s. V. também, a exposição monográfica de BRUGGER, 1997.

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reconhecimento dos “invioláveis” e “inalienáveis” direitos humanos como fundamento “de qualquer comunidade humana”) e os deveres estatais de observância e proteção da dignidade humana (Art. 1 I 2 GG), além dos vínculos imediatos de todos os “poderes” estatais aos direitos fundamentais elencados e garantidos do Art. 2 ao 19 GG (Art. 1 III GG) implica questionamento do papel que os direitos humanos partícipes do direito internacional público devem desempenhar no âmbito interno. Necessário se faz definir se o constituinte, apesar do reconhecimento, vê a tutela jurídica dos direitos humanos exclusivamente na positivação dos direitos fundamentais dos Art. 2-19, além de poucos outros esparsos ou se a norma do Art. 1 II GG tem caráter autônomo. A doutrina germânica majoritária parece enxergar no Art. 1 II GG, semelhantemente ao que fez o constituinte brasileiro no Art. 5º, 3º, ambos inspirados na cláusula do constituinte estadunidense12, uma espécie de “reserva de abertura”13 ao fechado rol de direitos fundamentais positivados. Fala-se, também, em “mínimo de direitos humanos” e em “estoque normativo supra-positivo”14 para o possível caso de lacuna do direito constitucional vigente15 ou, mais importante ainda, como parâmetro para avaliação da constitucionalidade de intervenções do poder constituinte derivado reformador. A primeira hipótese supra do “estoque normativo supra-positivo” nunca foi usada ou concretizada pela determinante jurisprudência do TCF alemão. Esta se vale do caráter subsidiário do Art. 2 I GG16, derivando dele, nesses 58 anos de jurisprudência, sempre novas concretizações17, prescindindo totalmente do discurso em torno dos direitos humanos que se caracterizam por terem caráter assaz difuso18. Mas o estoque existe para o hoje muito improvável caso do catálogo dos direitos fundamentais ficarem aquém dos Standards internacionais dos direitos humanos. A minuciosa jurisprudência do TCF sobre direitos fundamentais revela que, na comparação, os Standards internacionais dos 12 13 14 15 16

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18

Cfr. Amendment IX to the United States Constitution: “[Reserved rights of people] The enumeration in the Constitution, of certain rights, shall not be construed to deny or disparage others retained by the people”. Cfr. HÖFLING, 2003: 102 s. Ibidem. Também se pode falar, nesse contexto, em fomento da “constitucionalização” de novos direitos fundamentais. “Artigo 2° (Livre Desenvolvimento da Personalidade, direito à vida e à incolumidade física, liberdade da pessoa humana) (1) Todos têm o direito ao livre desenvolvimento de sua personalidade, desde que não violem direitos de outrem e não se choquem contra a ordem constitucional ou a lei moral”. (2) ... (trad. em: MARTINS, 2005b: 953.) Criando, por exemplo, o chamado direito à auto-determinação sobre dados pessoais ao julgar inconstitucional uma lei que prescrevia o levantamento de dados econômicos dos cidadãos para efeitos da realização do censo demográfico de 1982 na decisão chamada “Volkszählung”. Cfr. os principais excertos dessa decisão com introdução à matéria do caso e notas explicativas do organizador em MARTINS, 2005b: 233-244. Cfr. também uma visão panorâmica sobre as principais decisões do TCF com base no parâmetro desse direito fundamental subsidiário ao livre desenvolvimento da personalidade em MARTINS, 2005b: 197-190 (sob “nota introdutória”). HÖFLING, 2003: 103.

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direitos humanos, incluindo a jurisprudência dos tribunais internacionais, em especial do Tribunal Europeu de Justiça, em regra, estão aquém das concretizações jurídicas do catálogo dos direitos fundamentais positivados feitas pela jurisprudência do TCF19. Resta a segunda hipótese de parâmetro para o poder constituinte derivado reformador. O art. 79 III GG determina, de maneira bastante precisa, os limites materiais daquele poder. Segundo seu teor: Artigo 79 (Emenda da Grundgesetz) (1) ... (2) ... (3) É inadmissível qualquer emenda a esta Grundgesetz que afete a divisão federativa em Estados-membros ou a participação, por princípio, dos Estados-membros na legislação ou os princípios estabelecidos nos Artigos 1 e 20 (grifo do autor)20. Com essa fórmula, ficaram expressamente salvaguardados de qualquer alteração, entre poucos princípios organizacionais (como do Art. 20), somente os princípios do Art. 1 GG, ou seja, a dignidade da pessoa humana, com os deveres estatais correlatos (de observância e proteção) e o nela fundado reconhecimento dos direitos humanos, além do vínculo imediato de todos os “poderes” estatais aos direitos fundamentais positivados, que, no entanto, podem ser cerceados e limitados ou mesmo extintos desde que tal extinção não signifique ao mesmo tempo o choque com a dignidade humana.21 19

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Até mesmo PERNICE, 2006: 470 ss., 474, especialista e entusiasta do direito comunitário europeu, admite, em seus comentários ao Art. 23 GG, certa diferença que segundo ele não autorizaria, entretanto, a constatação de um déficit estrutural na jurisprudência do Tribunal Europeu de Justiça: “Que na jurisprudência [do Tribunal Europeu de Justiça] o bem jurídico protegido de alguns direitos de liberdade não é mais bem definido deve-se ao geralmente sucinto estilo do Tribunal Europeu de Justiça, mas não autoriza a constatação de um déficit estrutural”. De outra feita, cfr. KOKOTT, 1996: 638; HUBER, 1997: 520 s. e, com muito mais aprofundamento, a exposição monográfica de SELMER, 1998: 118 ss., 151. Tradução em MARTINS, 2005b: 963. Esse é um parâmetro de difícil aplicação tendo em vista o “caráter metafísico” da dignidade humana (vide a respeito do conceito tradicional derivado da teoria jus-naturalista cristã e da filosofia kantiana, o clássico ensaio de HOFMANN, 1993: 357). Cfr., em sentido contrário, a dignidade humana não como uma dádiva divina, da natureza ou própria razão humana, mas fruto da construção individual da identidade, a exposição muito clara e também já clássica de LUHMANN, 1965: 53 ss. Segundo a jurisprudência do TCF deve ser aferido caso a caso, valendo-se o Tribunal de uma chamada “fórmula negativa”, i.e, não se define a dignidade humana, mas sim vai se determinando caso a caso as hipóteses de sua violação. Cf., neste sentido, PIEROTH e SCHLINK, 2007: 82. Em geral, permanece difícil a tarefa de fundamentar até que ponto o poder constituinte derivado pode modificar os direitos fundamentais positivados tendo em vista o óbice intransponível (tabu) da dignidade humana. Em 2004, por exemplo, o TCF julgou a constitucionalidade de uma emenda que inseriu uma série de reservas legais e, portanto, limites, ao direito fundamental à “inviolabilidade do domicílio”. Cfr. os principais excertos, introdução ao caso e notas explicativas em MARTINS, 2005b: 688-691 (introd. do org. ao caso), 692-717 (excertos e notas explicativas) e 718 (maiores ref. jurispr. e doutrinárias).

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Vê-se, com base na jurisprudência do TCF alemão, que, mesmo nessa segunda hipótese, busca-se o parâmetro para avaliação da constitucionalidade na dignidade humana e mandamentos correlatos e não nos direitos humanos, cujo caráter subsidiário no âmbito interno praticamente perde totalmente sua importância em face da muito profícua jurisprudência do TCF em torno dos direitos fundamentais. Quando se fala em postulado de justiça, ínsito à cláusula da dignidade humana, o TCF o concretiza com base no preceito e direito fundamental à igualdade do Art. 3 GG, que implica igualmente uma proibição de arbítrio22.

2. Procedimento geral para aferição da vigência de direitos humanos no âmbito interno junto ao TCF23 O procedimento previsto para a proteção dos direitos humanos em âmbito interno foi previsto pela Grundgesetz com o objetivo de se assegurar a certeza e segurança jurídica em torno da vigência das normas internacionais, sendo chamado de procedimento de verificação normativa (Normverifikationsverfahren). Seu processamento e julgamento são da competência exclusiva do TCF alemão. Ao lado do processo de “qualificação normativa” (Normqualificationsverfahren), cujo objeto são os raros casos envolvendo a recepção de leis promulgadas antes de 1949 pela ordem constitucional implantada pela Grundgesetz, o procedimento de verificação normativa tem como escopo o esclarecimento da vigência, dos efeitos específicos e/ou da qualificação hierárquica de uma norma não escrita do direito internacional público (verificação) ou de uma norma pré-constitucional (qualificação). Ambos servem, portanto, como já salientado, ao princípio da segurança jurídica (Rechtssicherheit). Fundamentam-se no típico elemento da dúvida, tão característico dos processos objetivos, a qual surge, em grande parte, assim como no controle concreto, a partir do julgamento de uma lide por um tribunal. Uma exceção é a possibilidade de órgãos constitucionais também (além, portanto, dos tribunais) proporem a introdução de um processo de qualificação, o que o aproxima do controle abstrato24. No caso do aqui interessante processo de verificação normativa, previsto pelo Art. 100 II GG c.c. § 13 I, nº 12 e §§ 83 s. BVerfGG25, tem-se a regulamentação processual do 22 23 24

25

Cfr., por exemplo: BVerfGE 84, 90 (121) e 94, 49 (103). Sobre a abrev. “BVerfGE” e forma de citação de decisões do TCF, vide abaixo nota 34. Em relação a esse tópico, cfr. MARTINS, 2005a: 55-57. O que caracteriza o processo objetivo é a ausência de lide. O procedimento do controle abstrato pode ser ensejado pelo governo federal, um dos governos estaduais ou 1/3 dos membros da Câmara Federal. Cfr. sobre o controle abstrato: MARTINS, 2005a: 45-48 e sobre o processo objetivo ainda mal compreendido no Brasil: MARTINS, 2007a: 15-32. Trata-se da abreviação de “Bundesverfassungsgerichtsgesetz”, no vernáculo “Lei Orgânica do Tribunal Constitucional Federal”. Os principais excertos traduzidos podem ser encontrados em MARTINS, 2005b: 967-976.

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que foi fixado pelo Art. 25 GG, segundo o qual “as regras gerais do direito internacional público são parte integrante do direito federal. Elas prevalecem sobre as leis [ordinárias] e produzem diretamente direitos e obrigações para os habitantes do território nacional”. Trata-se de regras complementares. Em termos gerais, caberá a proposição de verificação normativa (legitimado para tanto é qualquer tribunal), quando o julgamento de uma dada lide ou demais procedimentos da jurisdição voluntária (o processo em pauta tem, portanto, assim como o controle concreto, natureza incidental) pressupuser a clareza sobre: i) existência, ii) a generalidade ou universalidade e iii) o alcance e os efeitos imediatos da regra, clareza esta que deverá ser alcançada por intermédio do presente procedimento. i) Quanto à verificação da existência, ressalte-se, preliminarmente, que se trata de regra não escrita do direito internacional ou direito dos povos (Völkerrecht), e, assim, mais precisamente de direito consuetudinário internacional (Völkergewohnheitsrecht). O direito dos tratados internacionais entre Estados soberanos (Völkervertragsrecht) não pode, portanto, ser objeto desse processo de verificação normativa, devendo os próprios tribunais aplicá-los a partir de sua transformação em direito interno por uma lei ratificadora (Zustimmungsgesetz) prevista pelo Art. 59 II GG. Em havendo concorrência, ou seja, em sendo a mesma matéria disciplinada tanto por direito consuetudinário internacional quanto por direito internacional, aplica-se o direito do tratado, por ser lex specialis em relação àquele, com a conseqüência de que, em sendo esse o caso, faltará objeto ao processo de verificação. ii) A generalidade e universalidade referem-se à aceitação universal da regra objeto da verificação, o que normalmente suscita os maiores problemas. A aceitação não precisa se dar sequer por parte da República Federal da Alemanha, mas por expressiva maioria dos Estados, pois o Art. 25 GG e seu correspondente processual do Art. 100 II GG visam a assegurar que a República Federal da Alemanha cumpra suas obrigações internacionais, objetivamente existentes. Trata-se, em última instância, de um controle de constitucionalidade de atos da chefia de Estado (ou seja, de atos da Presidência Federal, no sistema parlamentarista alemão). iii) Finalmente, a verificação do alcance e efeitos imediatos liga-se ao pressuposto da relevância da decisão sobre o pedido de verificação para o julgamento do processo originário. Uma vez que a existência da regra não escrita dificilmente poderá ter seu conteúdo (alcance, efeitos) nitidamente definido, esse estágio do exame refere-se, com certeza, ao exame do pressuposto de admissibilidade da relevância, que se dá de maneira semelhante ao controle concreto (Art. 100 I GG), embora não explicitamente exigido no Art. 100 II GG. Entretanto, aqui, ao contrário do que ocorre com o controle concreto normativo, basta a dúvida objetiva, que não precisa ser sequer do tribunal ou juízo apresentante, não sendo necessária sua convicção, como ocorre no controle concreto.

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Sobre o conteúdo e efeitos da decisão do TCF prolatada no julgamento de um processo de verificação normativa, podem ser resumidamente apontados os seguintes aspectos: O TCF verifica no dispositivo da decisão, segundo ordem explícita do § 83 I BVerfGG, tão somente se a regra geral internacional em pauta existe, se ela é parte integrante do direito federal alemão e se ela produz imediatamente direitos e obrigações para o indivíduo. É defeso ao TCF conformar mais detalhadamente a regra, substituindo-se ao legislador. Esta decisão também gozará, em primeira linha, do efeito vinculante do Art. 31 I GG26, o que significa que o tribunal ou juízo apresentante deverá decidir o processo originário com base na regra verificada. Ela encerra também o efeito de força de lei do Art. 31 II GG27, vinculando todos, inclusive os órgãos constitucionais, entre eles o mais interessado: o Governo Federal.

III. A tensão entre a jurisprudência sobre direitos humanos do TCF e do Tribunal Europeu de Justiça O procedimento acima descrito da verificação normativa é numericamente pouquíssimo relevante, além de ser restrito como visto ao direito internacional público consuetudinário. Os casos mais ou menos polêmicos ou pelo menos relevantes para demonstrar em que medida se dá a vigência dos direitos humanos definidos em tratados internacionais no âmbito interno foram aqueles casos decididos pelo TCF alemão, nos quais se questionava a compatibilidade de diretrizes européias, i.e., de direito europeu secundário, com a Grundgesetz no bojo dos três procedimentos de controle normativo de constitucionalidade: o controle abstrato, o controle concreto e a queixa ou reclamação constitucional diretamente contra ato normativo ou contra decisão judicial28. Inegável a existência de uma tensão entre as jurisprudências do TCF alemão e do Tribunal Europeu de Justiça em matéria pertinente aos direitos humanos29, ainda que o TCF seja sempre cioso de se auto-limitar em face da jurisprudência européia. Abaixo, há de se, primeiro, referenciar a concepção do TCF, num primeiro momento (sob 1.) no diálogo com a literatura jurídica em face do princípio da complementarida26

27 28 29

“§ 31 (1) As decisões do Tribunal Constitucional Federal vinculam os órgãos constitucionais da União e dos Estadosmembros, assim como todos os tribunais e órgãos administrativos. (2) ...” (Cfr. tradução em MARTINS, 2005b: 973). Ibidem: “(2) 1Nos casos previstos no § 13, nº 6, 11, 12 e 14, a decisão do Tribunal Constitucional Federal tem força de lei. 2-4 (...)”. Cfr., respectivamente, MARTINS, 2005a: 45 ss., 48 ss. e 59-67. Em sentido contrário, como entusiasta da supranacionalidade da justiça constitucional, MENDES, 2009, nega a existência de tal tensão. Cfr., em geral, a crítica à excessiva internacionalização da justiça constitucional em MARTINS, 2009.

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de do standard de proteção dos direitos fundamentais tutelados positiva e internamente. A partir de então, analisar-se-á (sob 2.) a evolução da jurisprudência com os chamados “leading cases”, no sentido de uma ampliação da referida auto-limitação em face das competências do Tribunal Europeu de Justiça para a interpretação vinculante das diretrizes européias. Estas podem de fato ora ampliar ora restringir as áreas de proteção de direitos fundamentais outorgados pela Grundgesetz.

1. Princípio da complementaridade do standard de proteção de direitos fundamentais O Art. 23 GG vigente até a entrada em vigor do Tratado da Reunificação das duas Alemanhas em 1990 dispunha sobre o provisório território de vigência da Grundgesetz (antiga Alemanha ocidental), prevendo a entrada das outras partes da Alemanha, i.e., basicamente da antiga República Democrática Alemã. O hoje vigente Art. 23 GG supre, portanto, uma lacuna que surgiu quando, em 1990, o antigo Art. 23 GG perdeu seu objeto. Ele agora define as condições da relação da nova República Federal da Alemanha com a União Européia. Trata-se de um dispositivo relativamente longo com sete “Absätze”, contendo cada qual, à exceção dos “Absätze” IV e VII, vários períodos cada. Os princípios que aqui interessam e que servem de parâmetro para a justiça constitucional foram definidos pelo Art. 23 I 1 GG. Segundo seu teor: Artigo 23 [União Européia] (1) 1Para a realização de uma Europa unida, a República Federal da Alemanha atua junto ao desenvolvimento da União Européia, que está vinculado aos princípios democrático, do Estado de direito, do Estado social e federativo e ao princípio da subsidiaridade e que garanta uma proteção de direito fundamental que seja em sua essência comparável com [a proteção garantida por] esta Grundgesetz. 2 – 3 (...). [destaque do autor] (2) – (7) ... Para elaboração deste dispositivo, o constituinte alemão inspirou-se na jurisprudência do TCF até então, principalmente no que tange à parte final supra destacada, a qual estabeleceu como principal condição para certa supremacia do direito comunitário que este garanta, em sua essência, uma proteção de direitos fundamentais comparável à conseguida pela Grundgesetz, vale dizer, pela jurisprudência concretizadora das normas dos Art. 1 a 19 GG pelo TCF.

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O Art. 23 GG pretende fomentar uma União Européia com capacidade funcional30, no âmbito de suas competências transferidas pelos Estados nacionais membros, como abdicação parcial e condicionada de soberania, na medida em que impede que decisões judiciais dos tribunais locais coloquem em xeque a vigência ou aplicação uniforme do direito comunitário nos Estados-membros nacionais 31. Nada obstante, a supremacia do direito comunitário europeu afirmada pelo Tribunal Europeu de Justiça desde a decisão paradigmática (leading case) Costa vs ENEL com base na necessidade de se aplicar uniformemente o direito comunitário não é reconhecida incondicionalmente pelo TCF alemão e pela opinião claramente majoritária32.

2. Jurisprudência do TCF: Reconhecimento progressivo da competência e da autoridade do Tribunal Europeu de Justiça em matéria de proteção dos direitos humanos O TCF enfrentou, como já aludido, por algumas vezes o problema da compatibilidade do direito comunitário europeu com a Grundgesetz, precipuamente em matéria envolvendo suposta violação de direito fundamental previsto na Grundgesetz pela legislação européia ou aplicação da legislação por órgãos da União Européia. As decisões abaixo revelam, de um lado, a preocupação da Corte em delimitar bem o âmbito de competência dos órgãos europeus, incluindo o seu Tribunal a partir da interpretação do direito comunitário primário, ou seja, da interpretação dos tratados que constituíram a União. A interpretação e aplicação de direito secundário seria em geral atribuição dos órgãos europeus, devendo as Cortes nacionais seguir estritamente as diretrizes e, em caso de dúvida quanto ao extrapolamento de competências legislativas e administrativas, cabe ao juízo ou tribunal nacional apresentar a dúvida ao Tribunal Europeu de Justiça por procedimento previsto no Art. 234 III EGV33. Trata-se de um dever que, se não cumprido, pode levar à responsabilização do Estado-membro nacional. De outro lado, o TCF sempre avaliou se fora garantido o standard de proteção equivalente ao garantido pela Grundgesetz em casos nos quais o direito europeu secundário e sua aplicação representem intervenções em direitos fundamentais protegidos pela mesma Grundgesetz.

2.1. Decisão “Solange I” (BVerfGE 37, 271 ss.)34 30 31 32 33 34

Cfr. com ampla referência jurisprudencial por muitos somente PERNICE, 2006: 444 s. Cfr. PERNICE, 2006: 443. Ibidem. “EGV” é abreviação de “Vertrag zur Gründung der Europäischen Gemeinschaft vom 25.3.1957”; no vernáculo: Tratado para a Fundação da Comunidade Européia de 25/03/1957, mais conhecido como “Tratado de Roma”. “BVerfGE” é abreviação de “Bundesverfassungsgerichtsentscheidungen” (Decisões do Tribunal Constitucional

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“Solange” em alemão é um advérbio equivalente ao advérbio “enquanto” do vernáculo. Trata-se de uma decisão, prolatada em processo de controle normativo concreto segundo o Art. 100 I GG. O Tribunal Administrativo de Frankfurt am Main decidiu suspender um processo movido por uma empresa alemã de exportação e importação contra uma notificação do competente órgão europeu que, com base em um decreto da Comunidade Econômica Européia, declarara uma prestação de caução no valor de 17.026,47 marcos alemães como não mais ressarcível, em razão da empresa não ter usado completamente sua licença para exportação de 20 mil toneladas de milho. O Tribunal Administrativo de Frankfurt considerou esse decreto da Comunidade Econômica Européia não aplicável por ferir direitos fundamentais previstos na Grundgesetz, precipuamente o Art. 12 I GG (liberdade profissional que engloba o que no Brasil de chama de “livre iniciativa” empresarial)35. O controle concreto foi proposto apesar do Tribunal Europeu de Justiça ter confirmado a validade do decreto em processo similar de apresentação normativa (Vorlage). Por maioria36, o TCF admitiu a apresentação (Vorlage) do Tribunal Administrativo de Frankfurt no âmbito de um controle concreto previsto pelo Art. 100 I GG, apesar de tal norma prever a apresentação somente de leis alemães, formais e pós-constitucionais37. Como fundamentação de tal admissão a julgamento a despeito do teor do Art. 100 I GG, o TCF aduziu que o direito comunitário europeu não conhece a diferença entre leis formais, aprovadas pelos parlamentos, e decretos, aprovados pelo Executivo, e que, portanto, a eficácia de decretos europeus é a mesma que das leis formais nacionais. Com relação ao requisito da necessária presença de lei alemã, o TCF discorreu que como o poder público alemão tem que executar os decretos comunitários e aquele está vinculado

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Federal). Trata-se da coletânea oficial das principais decisões daquela Corte, aqui citada da mesma forma como o faz a literatura jurídica alemã. O primeiro número antes da vírgula diz respeito ao volume, o primeiro depois da vírgula refere-se à primeira página da decisão e os números entre parênteses às passagens citadas. “Artigo 12 (Liberdade profissional) (1) 1Todos os alemães têm o direito de livremente escolher profissão, local de trabalho e de formação profissional. 2O exercício profissional pode ser regulamentado por lei ou com base em uma lei”. (trad. em MARTINS, 2005b: 957). Três juízes do TCF (Dr. Rupp, Hirsch e Wand) votaram pela não admissibilidade do procedimento, por entenderem equivocada a interpretação muito extensiva do Art. 100 I GG feita pela maioria dos juízes. Cfr. a publicação dos votos discordantes logo após a decisão propriamente dita (devidamente consignada inclusive pelos juízes “vencidos”) em BVerfGE 37, 271 (291-305). Sobre a estrutura completa de uma decisão do TCF alemão, vide a detalhada exposição de MARTINS, 2005a: 96-124. “Artigo 100 (Controle de constitucionalidade de normas) (1) 1Quando um tribunal considerar inconstitucional uma lei de cuja validade dependa a decisão, deverá suspender o processo e requerer a decisão do tribunal de um Estado-membro, se se tratar da violação da Constituição de um Estado-membro, ou do Tribunal Constitucional Federal, se se tratar da violação desta Grundgesetz. 2Isso vale também se se tratar da violação desta Grundgesetz pelo direito estadual ou da incompatibilidade de uma lei estadual com uma lei federal.” (trad. em MARTINS, 2005b: 965).

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aos direitos fundamentais, então se justifica a abertura da competência do TCF para o conhecimento da apresentação judicial da norma comunitária questionada quanto à constitucionalidade. O TCF, nessa decisão, deixou claro não poder decidir sobre a validade do direito comunitário secundário, competência por excelência do Tribunal Europeu de Justiça. Poderia, no entanto, decidir se um ato pautado no direito comunitário deve ou nao ser aplicado pela Administração e Tribunais alemães e se o ato não produz efeito no território alemão, caso colida com direitos fundamentais. O pressuposto de uma tal decisão é, no entanto, uma decisão prévia do Tribunal Europeu de Justiça a partir de uma apresentação judicial alemã como ocorrera no caso. No mérito, o TCF não verificou uma violação do direito fundamental do art. 12 I GG (nem do Art. 2 I GG) pelo decreto da Comunidade Econômica Européia. Nesse contexto, cunhou a famosa fórmula que deu nome à decisão: Enquanto o processo de integração da Comunidade não estiver tão adiantado, de tal sorte que o direito comunitário também contenha um catálogo de direitos fundamentais vigente e promulgado por um parlamento, o qual seja compatível com o catálogo de direitos fundamentais da Grundgesetz, a apresentação judicial de um tribunal [também de primeira instância ou de um juízo, nota do autor] da República Federal da Alemanha ao TCF no processo de controle normativo, depois de se buscar a decisão do Tribunal Europeu de Justiça exigida pelo Art. 234 da Comunidade Européia, é admissível e ordenada, se o Tribunal apresentante [alemão] considerar inaplicável a interpretação dada pelo Tribunal Europeu de Justiça para a norma do direito comunitário, que seja imprescindível para a decisão do caso, em razão e na medida em que ela colidir com um dos direitos fundamentais da Grudgesetz [segundo a convicção do tribunal apresentante alemão, nota do autor].38

2.2. Decisão “Solange II” (BVerfGE 73, 339) Depois da Decisão Solange I que como supra aludido não foi unânime, o TCF já apontava, em algumas decisões39, para uma mudança que chegou de maneira muito clara na chamada Decisão Solange II. Nessa decisão de outubro de 1986, o TCF foi novamente chamado a decidir sobre a possibilidade de se questionar o direito comunitário com base no parâmetro de direitos 38 39

BVerfGE 37, 271 (285). Como por exemplo: BVerfGE 52, 187 (199 s.) – “Vielleicht”-Beschluss e BVerfGE 58, 1 (26 ss.) – Eurocontrol I.

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fundamentais da Grundgesetz. Mas desta vez, tratava-se de uma queixa ou reclamação constitucional movida por uma empresa contra uma decisão do Tribunal Administrativo Federal (Urteilsverfassungsbeschwerde)40, que considerou alguns dispositivos legais comunitários como sendo compatíveis com os direitos fundamentais materiais da Grundgesetz, cujas violações haviam sido alegadas pela titular dos direitos. Também argüia violação de direitos fundamentais processuais como o direito ao juiz natural do Art. 101 I 2 GG e à ampla defesa e contraditório do Art. 103 I GG41. O TCF admitiu a reclamação constitucional e a julgou, no mérito, como improcedente, aproveitando a oportunidade para constatar o desenvolvimento do standard de proteção dos direitos humanos em nível europeu, invertendo a fórmula do “enquanto” da primeira decisão Solange I. Com efeito, o TCF verificou nessa segunda decisão que a proteção jurídica perpetrada pelas Comunidades Européias e, precipuamente pelo Tribunal Europeu de Justiça, correspondem aos parâmetros dos direitos fundamentais previstos pela Grundgesetz, de tal sorte que o TCF estaria em regra dispensado de promover um exame próprio. Todavia, o TCF o fez com uma clara reserva, segundo a qual tal desistência de exercício de competência se daria somente até o ponto e enquanto se garanta, em nível europeu, por intermédio da atuação do Tribunal Europeu de Justiça, efetivamente uma proteção suficiente dos direitos fundamentais e se assegure a observância do conteúdo essencial dos direitos fundamentais e com isso o standard mínimo garantido pelo Grundgesetz. Segundo o teor do decisivo excerto da decisão: Enquanto a Comunidade Européia, principalmente a jurisprudência do Tribunal da Comunidade Européia, em geral garantir uma efetiva proteção dos direitos fundamentais em face do poder estatal comunitário, que seja, em sua essência, equivalente à indispensável e pela Grundgesetz ordenada proteção de direitos fundamentais, precipuamente assegurando em geral [a observância do] o conteúdo essencial dos direitos fundamentais, o TCF não mais exercerá sua jurisdição sobre a aplicabilidade de direito comunitário derivado [secundário], que seja utilizado como fundamento jurídico para a ação de tribunais ou órgãos administrativos alemães no território da República Federal da Alemanha e, destarte, não mais avaliará esse direito 40 41

Sobre as peculiaridades deste procedimento, vide: MARTINS, 2005a: 59 ss., 66 ss. Art. 101 (Proibição de tribunais de exceção) (1) 1Não são admitidos tribunais de exceção.2Ninguém pode ser privado de seu juiz natural. (2) ... Artigo 103 (Direitos fundamentais do acusado) (1) Todos têm o direito de serem ouvidos perante os juízos e tribunais. (2) – (3) ... (trad. em MARTINS, 2005a: 967.

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[comunitário] com base no parâmetro dos direitos fundamentais; apresentações judiciais neste sentido são, portanto, inadmissíveis.42

2.3. Decisão “Maastricht” (BVerfGE 89, 155) Na decisão Maastricht, o TCF foi provocado a decidir sobre a compatibilidade com a Grundgesetz do próprio tratado que, em 1992, criou a União Européia (Tratado de Maastricht). Foram ajuizadas reclamações constitucionais diretamente contra lei (Rechtssatzverfassungsbeschwerden) de cidadãos que consideravam a lei ratificadora do tratado e a Emenda Constitucional a ela conecta como violadoras do “direito igual a direito fundamental” (grundrechtsgleiche Rechte)43 ao sufrágio do Art. 38 GG44, apontando os sempre lembrados déficits democráticos da União Européia. Violações de vários outros direitos fundamentais, como o da liberdade profissional (Art. 12 I GG), foram também alegadas. O TCF admitiu somente uma das reclamações, que se insurgia somente contra a lei ratificadora em face do aludido Art. 38 GG, por entender estarem presentes seus pressupostos e condições processuais, não admitindo as demais. No mérito julgou, todavia, mesmo a reclamação admitida como improcedente. Na esteira das duas primeiras decisões supra apresentadas, o TCF, em sua fundamentalção, reiterou que os direitos fundamentais são suficientemente protegidos em nível europeu. O medo generalizado, que em grande parte motivou a proposição das reclamações constitucionais contra a lei ratificadora e contra a Emenda que inseriu o novo Art. 23 também já acima estudado, por parte principalmente de membros do parlamento de diferentes facções era de uma retirada de poder da Câmara Federal, o parlamento alemão45. A transferência de competências legislativas para a esfera européia não foi considerada, entretanto, inconstitucional pelo TCF. Ele confirmou que os standards de proteção garantidos pela Grundgesetz também valeriam para o direito comunitário da UE e que, portanto, o TCF reservaria para si um direito de última decisão. Porém, em não se veri42 43 44

45

BVerfGE 73, 339 (387). Também MENDES, 2009, oferece para esta passagem uma tradução, porém indevidamente incompleta. É assim como os constitucionalistas alemães alcunham as normas constitucionais que têm conteúdo de direito fundamental, mas não foram positivadas no catálogo que vai do Art. 1 ao 19 GG. “Artigo 38 (Princípios do direito ao sufrágio, Deputados) (1) 1Os deputados da Câmara Federal Alemã são eleitos por sufrágio universal, direto, livre, igual e secreto. 2 São representantes de todo o povo, independentes de mandatos e instruções e sujeitos unicamente à sua consciência. (2) Tem direito de sufrágio quem tiver mais de dezoito anos; é elegível quem tiver atingido a idade estabelecida para a maioridade. (3) A conformação mais concreta será definida por lei federal”. (trad. em MARTINS, 2005a: 962). Entre os “reclamantes” estavam alguns membros da Câmera Federal, deputados, como Manfred Brunner (do FDP, Freie Demokratische Partei – Partido Democrático Liberal).

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ficando o déficit da proteção européia, a fiscalização da efetivação de proteção de direito fundamental no direito comunitário caberia somente ao Tribunal Europeu de Justiça. O TCF declarou inclusive existir uma “relação de cooperação“ entre ele e a Corte européia, nos seguintes termos: Todavia exerce o TCF sua jurisdição a respeito da aplicabilidade do direito comunitário derivado [secundário] em uma ‘relação de cooperação’ com o Tribunal Europeu de Justiça, na qual o Tribunal Europeu de Justiça garante, em cada caso individual, e para a totalidade do território das Comunidades Européias proteção de direito fundamental e o TCF pode se limitar, por isso, a uma garantia geral dos standards jusfundamentais inarredáveis.

2.4. Decisão Bannanenmarktordnung (BVerfGE 102, 147) Nesta decisão de 7 de junho de 2000, o TCF novamente decidiu sobre apresentações judiciais (controle normativo concreto) subscritas pelo Tribunal Administrativo de Frankfurt am Main que, estando convicto da inconstitucionalidade da aplicação da organização conjunta do mercado da Comunidade Européia a respeito do comércio de bananas na República Federal da Alemanha, suspendeu o processo e buscou a decisão vinculante do TCF. Alegou que o decreto da Comunidade Européia atacado violara principalmente os direitos fundamentais à propriedade do Art. 14 I46 e da liberdade profissional / empresarial do Art. 12 I GG. O TCF não admitiu o processo de controle concreto proposto pelo Tribunal Administrativo de Frankfurt, explicitando aquilo que já fora decidido na decisão “Solange II”, ao esclarecer o ônus argumentativo que cabe àquele que questiona a constitucionalidade do direito comunitário em face da Grundgesetz. Segundo tal ônus argumentativo, há um dever implícito de demonstrar que a ordenada e inarredável proteção de direito fundamental não foi garantida nas esferas européias. Para tanto é necessária uma contraposição da proteção de direito fundamental ao nível nacional [de um lado da tabela de equiparação, nota do autor] e ao nível comunitário [do outro lado], de tal modo como o fez o Tribunal Constitucional Federal em BVerfGE 73, 339 (378 até 381)47.

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47

Artigo 14 (Propriedade, sucessão, desapropriação) (1) A propriedade e o direito à sucessão são garantidos. O seu conteúdo e os seus limites são determinados por lei. (2) – (3) ... (trad. em MARTINS, 2005a: 958). Na citada passagem, o TCF elenca uma série de casos decididos pelo Tribunal Europeu de Justiça, nos quais a compatibilidade de Standards de proteção foi verificada.

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IV. Conseqüências para uma operação jurídico-dogmaticamente eficiente dos direitos humanos no Brasil em face do art. 5º, § 3º da CF 1. A “era” dos direitos humanos no Brasil e suas insuficiências Guardadas as devidas grandes diferentes proporções entre a relação do direito nacional com o direito comunitário europeu e a relação do direito brasileiro com o direito dos tratados internacionais sobre direitos humanos dos quais o Brasil faça parte48, há bons motivos jurídico-dogmáticos para se afirmar a necessidade de se conseguir um standard de proteção de direitos fundamentais ao nível nacional por intermédio precipuamente da jurisprudência do STF antes de se apelar para a proteção derivada dos diversos tratados internacionais sobre direitos humanos consignados pelo Brasil, a despeito do novo art. 5º, § 3º da CF, que, na prática, pouco acrescentou além de uma satisfação ao desiderato político-constitucional dos internacionalistas49. O desenvolvimento do direito internacional público no século XX, principalmente após o fim da Segunda Guerra Mundial, teve como conseqüência uma crescente internacionalização dos direitos fundamentais, que são designados, em âmbito internacional, com o termo “direitos humanos”50. Em âmbito internacional, o termo indica, segundo opinião majoritária na literatura jurídica especializada brasileira, o “conjunto de direitos e faculdades que garantem a dignidade da pessoa humana e se beneficiam de garantias internacionais institucionalizadas”51. As principais dimensões da internacionalização podem ser resumidas da seguinte forma: (a) riquíssima produção normativa internacional em prol dos direitos humanos (declarações, convenções, pactos, tratados etc.); (b) crescente interesse das organizações internacionais pelos direitos humanos e criação de organizações cuja principal finalidade é promovê-los e tutelá-los; (c) criação de mecanismos internacionais de fiscalização de possíveis violações e de responsabilização de Estados ou indivíduos que cometem tais violações; (d) intensa produção doutrinária em âmbito internacional, incluindo debates 48

49

50 51

Diferenças essas que só fazem advogar pela tese do redimensionamento da importância dos direitos humanos decorrentes de tratados internacionais em face dos direitos fundamentais protegidos em nível constitucional interno, uma vez que, no caso alemão, o vínculo ao direito comunitário como visto é muito mais forte em razão não somente do Tratado de Maastricht, mas, sobretudo, da abertura dada pelo constituinte alemão no Art. 23 I 1 GG à transferência de parcelas significativas da soberania à instância supranacional européia. Uma vez que mesmo antes da Emenda 45/2004 não era defeso às partes legítimas propor Emendas Constitucionais que realizem constitucionalização de novos direitos fundamentais constantes nos tratados internacionais sobre direitos humanos.. Cfr. DIMOULIS e MARTINS, 2007: 50 s. Cfr. para todo esse tópico, com maiores referências: DIMOULIS e MARTINS, 2007: 40-42. RAMOS, 2005: 49.

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de cunho político e filosófico, assim como análises estritamente jurídicas de dogmática geral e especial. Essa evolução contrapõe-se à validade do princípio do relacionamento binário entre o Estado e o indivíduo que governa a concepção tradicional dos direitos fundamentais. A introdução dos sujeitos do direito internacional e principalmente das organizações internacionais nessa relação torna mais complexas as questões do exercício e da garantia dos direitos fundamentais, vinculando-os a uma nova discussão e negociação do princípio da soberania nacional. As mudanças são múltiplas. Destacam-se as seguintes: a) Ampliação dos titulares de direitos, permitindo uma titularidade universal, independentemente da nacionalidade e do lugar de residência, princípio esse que conhece uma série de exceções e não exclui o reconhecimento de direitos “particularistas”, em benefício de determinadas categorias de pessoas (mulheres, crianças, minorias étnicas, grupos indígenas etc.). b) Possibilidade de responsabilizar o Estado de forma externa, independentemente do acionamento de mecanismos de direito interno e da boa (ou má...) vontade das autoridades estatais pelos instrumentos de fiscalização e responsabilização que ficam a cargo de comissões, tribunais e outras autoridades internacionais. c) Forte politização da matéria devido à necessidade de se realizar contínuos compromissos entre os Estados e os atores internacionais, no intuito de oferecer efetividade aos direitos humanos em âmbito internacional, apesar da ausência de poder estatal e de instituições que executem diretamente normas internacionais (o direito internacional como soft law). Apesar do indiscutível fortalecimento do direito internacional público, deve-se realizar um redimensionamento da relevância do tema, contrariando uma tendência de tratamento da matéria que se resume na exaltação acrítica das virtudes políticas e da relevância jurídica do direito internacional público. Em primeiro lugar, essa evolução não afeta substancialmente a primazia dos Estados nacionais que continuam dispondo de um poder de coerção invencível no interior do respectivo país. Indício e resultado disso é o fato de que a esmagadora maioria dos problemas envolvidos na limitação de direitos fundamentais resolve-se no âmbito do direito interno. O Estado permanece a principal força protetora dos direitos humanos que encontraram respaldo constitucional positivo, transformando-se em direitos fundamentais, ou seja, normas jurídicas supremas dentro do Estado que vinculam todas as autoridades constituídas. Isso não significa, evidentemente, que não se deva reagir em face de abusos e omissões das autoridades estatais, mas indica o restrito papel das organizações internacionais no âmbito de tutela dos direitos humanos. Nesse sentido, esses passam a ser mais relevantes em regra quando há uma falência generalizada de um Estado no controle de seus órgãos, quando, por exemplo, os órgãos do poder de polícia passam a sistematicamente

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cometer homicídios, sem que o Estado tenha condições de identificar e punir tais crimes praticados por agentes públicos. Em segundo lugar, os casos de indivíduos que pedem a proteção de autoridades internacionais invocando normas de direito internacional são estatisticamente limitadíssimos (apesar de sua relevância política) se forem comparados com a massa de conflitos decididos em âmbito interno. Aos milhares de mandados de segurança e habeas corpus impetrados cotidianamente no Brasil correspondem algumas dezenas de denúncias feitas anualmente contra o Brasil perante órgãos internacionais por violação de direitos humanos, sendo que a maioria dessas denúncias tem uma tramitação muito longa e raramente leva a resultados satisfatórios para as vítimas. Em terceiro lugar, tem-se o fenômeno da duplicação. Praticamente todos os direitos humanos garantidos em âmbito internacional são reconhecidos pelo direito interno de forma mais completa, com menos reservas legais e dotada de maiores garantias. Basta comparar as normas internacionais e o direito brasileiro para perceber que esse último é muito completo, sendo a incidência do direito internacional limitada em pouquíssimos casos, em franca desproporção ao interesse que o tema encontra na recente doutrina brasileira.

2. Impacto da inserção do § 3º ao art. 5º CF Pode-se falar que o § 2º do art. 5º CF estatui o “princípio da complementaridade condicionada”52. Não isenta, portanto, de nenhum modo, do ponto de vista da busca da concretização do Estado Constitucional e Democrático de Direito - com todas as suas implicações como a proteção de minorias, promoção do “bem de todos”, respeito a todos os direitos fundamentais, proteção do meio-ambiente e demais direitos difusos e coletivos etc. - a justiça constitucional brasileira da árdua tarefa de concretizar os direitos fundamentais positivados na CF de 1988, dando-lhes contornos jurídico-dogmáticos que impliquem, no mundo dos fatos, sua plena efetividade. Não se protege com efetividade direitos humanos com “soft law”, tão imbricado com investidas de marketing político e improfícua retórica. Praticamente todos os direitos humanos decorrentes de tratados internacionais dos quais o Brasil faça parte podem ser tutelados a partir, em última instância, da totalmente aberta norma do art. 5º caput CF que garante, pelo menos aos brasileiros e estrangeiros residentes no país, a inviolabilidade, entre outros, do direito fundamental “à liberdade”. Trata-se, sem dúvida, de uma cláusula subsidiária, tal qual o é o Art. 2 I GG que ensejou, 52

As condições são: a) origem contratual da norma de direitos humanos (não consuetudinária), b) conformidade constitucional dos tratados internacionais sobre direitos humanos e c) a validade dos tratados internacionais de acordo com o procedimento de sua ratificação (este último pós-inserção do § 3º pela EC 45/2004). Cfr. as explicações de DIMOULIS e MARTINS, 2007: 43-51.

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consoante o que foi acima salientado, uma jurisprudência constitucional bastante minuciosa e de certo modo integradora e/ou criadora de novos direitos fundamentais. A crítica ingênua feita ao positivismo53 jurídico-constitucional, típica das teorias axiológicas, principiológicas e institucionalistas dos direitos fundamentais, as quais pregam entre outros a necessidade de uma Constituição aberta a todos os intérpretes, tendente a dispensar os mínimos Standards de rigor metodológico e se apegar muito à influência dos tratados internacionais de direitos humanos, esquece-se de repente da crítica à literalidade na interpretação constitucional quando consideram necessária a vigência de certos tratados internacionais para se proteger essa ou aquela minoria ou pessoas “portadoras de necessidades especiais” da categoria XYZ e de outros para se proteger grupos semelhantes da categoria XYZ’, quando tais proteções já estão garantidas, na falta de regra específica, no Art. 5º caput da CF que garantiu também a inviolabilidade do direito fundamental à igualdade. Este, portanto, é que deveria ser dogmaticamente delineado, criando Standards bastante concretos de proteção, sendo concretizado diuturnamente por todo nosso Judiciário. Neste contexto, o § 3º do Art. 5º nada acrescentou: A constitucionalização de direitos humanos consagrados em tratados internacionais poderia se dar independentemente dele, até porque o procedimento de ratificação em nada difere de uma emenda constitucional comum.

Conclusão As investigações levaram, em síntese, à conclusão que o que falta no Brasil é uma justiça constitucional que cumpra seu papel de concretização dos direitos fundamentais. No Brasil, a despeito de movimentos (equivocados em seu método) no sentido de concentrar a jurisdição constitucional na competência do STF, esse papel cabe em primeira linha a todo o Poder Judiciário e, indiretamente (em razão do princípio da inércia judicial), às funções essenciais à Administração da Justiça e à pesquisa jurídica. Nada obstante, a responsabilidade do STF é bem maior. Este, em razão de gravíssimos problemas estruturais e do inutilmente complexo processo judicial brasileiro que não podem aqui ser mais bem explicitados, tem perdido sistematicamente oportunidades de concretizar os direitos fundamentais54. 53

54

O positivismo jurídico não tem o condão de legitimar o direito positivo “injusto” ou do Estado totalitário; nunca foi esse o seu propósito, como muito bem demonstrou DIMOULIS, 2006: 257 ss., 264, em ótima exposição monográfica. Cfr. as análises críticas da jurisprudência do STF perpetradas pelo autor do presente em MARTINS, 2007b e MARTINS, 2009b.

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A exagerada ênfase aos tratados internacionais, desproporcional em relação à necessidade de se concretizar os direitos fundamentais já garantidos pela CF, tem o condão de desviar o foco dessa responsabilidade.

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Die Sicherung der Grundrechte in Deutschland Christian Starck*

I. Einführung Nach dem Ende des Zweiten Weltkrieges und der Beseitigung der nationalsozialistischen Diktatur ist vor 60 Jahren am 23. Mai 1949 in Westdeutschland das Grundgesetz als Verfassung erlassen worden, das seit der Wiedervereinigung 1990 in ganz Deutschland gilt.1 Ein besonderes Merkmal des Grundgesetzes ist das Bekenntnis des Deutschen Volkes „zu unverletzlichen und unveräußerlichen Menschenrechten als Grundlage jeder menschlichen Gemeinschaft, des Friedens und der Gerechtigkeit in der Welt“ (Artikel 1 Absatz 2 Grundgesetz [GG]). Das Grundgesetz stammt aus der Zeit der ersten internationalen Grundrechtsproklamationen. Am 10. Dezember 1948 ist die Allgemeine Erklärung der Menschenrechte von der Generalversammlung der Vereinten Nationen als bloße Resolution verkündet worden. Die Europäische Konvention zum Schutze der Menschenrechte und Grundfreiheiten stammt vom 4. November 1950 und ist für Deutschland am 15. Dezember 1953 in Kraft getreten. Auf das Bekenntnis zu den Menschenrechten folgt im Grundgesetz der Satz: „Die nachfolgenden Grundrechte binden Gesetzgebung, vollziehende Gewalt und Rechtsprechung als unmittelbar geltendes Recht“ (Art. 1 Abs. 3). Die nachfolgenden Grundrechte (Art. 2 – 19 GG) sind zumeist die klassischen liberalen Abwehrrechte des Bürgers gegen den Staat: Religionsfreiheit, Meinungs- und Pressefreiheit, Versammlungsfreiheit, Freizügigkeit, Berufsfreiheit, Eigentumsschutz usf. Der Katalog enthält auch einzelne Schutzund Leistungsversprechungen, also einen positiven Status: Schutz von Ehe und Familie (Art. 6 Abs. 1), Schutz der Mütter (Art. 6 Abs. 4), Recht auf gerichtlichen Schutz (Art. 19 Abs. 4), aber keine sozialen Rechte. Vielmehr verpflichtet das Grundgesetz den Ge* 1

Universidade de Göttingen Christian Starck, Verfassungen, 2009, S. 76, 80 f.

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Professor Dr. iur. utr. Christian Starck

setzgeber mit der Sozialstaatsklausel (Art. 20 Abs. 1, Art. 28 Abs. 1) zu fairer Sozialpolitik und Sozialgesetzgebung. Als das zwischen den Staaten geltende (= inter-nationale) Recht damit begann, Menschenrechte zu proklamieren, wurden die im Grundgesetz normierten Grundrechte mit der Bindungsklausel (Art. 1 Abs. 3) versehen und Institutionen geschaffen, die die Wirksamkeit der Grundrechte sichern konnten. Deshalb mag es interessant sein, in einem Buch über den internationalen Menschenrechtsschutz das Ergebnis der 60jährigen Bemühungen des innerstaatlichen Grundrechtsschutzes in Deutschland darzustellen. Ob innerstaatlich oder international, wirksamer Grundrechtsschutz setzt gleichermaßen Institutionen und Grundrechtsdogmatik voraus, ohne die Grundrechte immer nur schöne Worte bleiben.

II. Justizstaatliche Institutionen Mit Art. 1 Abs. 3 ist ein entscheidender Einschnitt in die Tradition der rechtsstaatlichen deutschen Verfassungen vorgenommen worden.2 Mit der Bindung auch der Gesetzgebung an die Grundrechte haben die Grundrechte eine bis dahin nicht erreichte rechtliche Sicherung erlangt. Art. 1 Abs. 3 ist eine Absage an die Grundrechte als bloße Programmsätze‚ die der Gesetzgeber nach freiem Ermessen aktualisiert oder auch nicht aktualisiert.3 Das Grundgesetz hat auch dafür gesorgt‚ dass die Bindungsklausel nicht ihrerseits bloßer Programmsatz bleibt. Einrichtung und Zuständigkeiten des Bundesverfassungsgerichts sind erst die eigentlichen Voraussetzungen für die Aktualisierung der Bindungsklausel im Rechtsleben. Die beim Bundesverfassungsgericht monopolisierte Normenkontrolle (Art. 100 Abs. 1‚ Art. 93 Abs. 1 Nr. 2‚ 2a, 4 a‚ 4 b GG) ist eine der Rechtssicherheit dienende Mittellösung zwischen einer allgemeinen richterlichen Gesetzeskontrolle und einer völligen Freistellung des Gesetzgebers von richterlicher Gesetzeskontrolle. Die beim Bundesverfassungsgericht monopolisierte Gesetzeskontrolle hat diesem Gericht eine wichtige Funktion unter den Verfassungsorganen gegeben. In der Rechtsprechung zu den Grundrechten und in der Ausformung der Grundrechtsdogmatik lässt sich der Einfluss des Bundesverfassungsgerichts auf den Gesetzgeber im Einzelnen ablesen. Soweit ein Grundrechtsverstoß nicht auf der Ebene des Gesetzes‚ sondern auf der Ebene der Gesetzesanwendung liegt‚ stellt Art. 19 Abs. 4 GG das prozessuale Grundrecht dar‚ das dem von der Grundrechtsverletzung betroffenen Bürger den Rechtsweg garantiert. Das Institut der Normenkontrolle und die Rechtsschutzgarantie im Zusam2 3

Christian Starck, Der demokratische Verfassungsstaat, 1995, S. 145, 149 ff. Die ursprünglich im Grundgesetz enthaltenen Programmsätze Art. 3 Abs. 2 und Art. 6 Abs. 5 sind durch Zeitablauf zu unmittelbar geltendem Recht geworden, vgl. Art. 117 und Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts (BVerfGE) Band 3, S. 225, 239 bezüglich Art. 3 Abs. 2 sowie BVerfGE Band 25, S. 167, 173 mit weiteren Nachweisen bezüglich Art. 6 Abs. 5.

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Die Sicherung der Grundrechte in Deutschland

menwirken mit der Einrichtung einer unabhängigen Rechtsprechung (Art. 92‚ 94‚ 97‚ 98 GG) sind die notwendigen justizstaatlichen Elemente des Grundgesetzes zur Aktualisierung der Bindungsklausel des Art. 1 Abs. 3.

III. Grundrechtsdogmatik Die Bindungsklausel (Art. 1 Abs. 3) und deren justizstaatliche Sicherung haben Konsequenzen für die Grundrechtsdogmatik‚ die gedanklich nachvollziehbare und berechenbare verfassungsgerichtliche Kontrollentscheidungen ermöglichen muss. Auf der Ebene der Realität beobachten wir einzelne Erscheinungsformen menschlichen Daseins und Verhaltens (Körper‚ Psyche‚ räumliche Umgebung‚ Handlungen‚ Unterlassungen) sowie schon rechtlich geprägter menschlicher Beziehungen (Ehe, Vereinsmitgliedschaft) ‚ die verschiedenen Einwirkungen von Seiten der öffentlichen Gewalt unterliegen. Der verfassungsrechtliche Grundrechtschutz besteht darin‚ dass die Verfassung diese Erscheinungsformen menschlichen Daseins und Verhaltens als körperliche‚ seelische‚ räumliche Integrität‚ als Handlungs- und Unterlassungsfreiheiten und als Teilnahme an normativ geprägten Einrichtungen gewährleistet und zu diesem Zweck Grundrechte formuliert‚ in denen der jeweilige Schutzbereich definiert ist.4 Solch ein Grundrechtstatbestand kann berührt sein durch einen klassischen finalen Eingriff der öffentlichen Gewalt oder durch eine sonstige unmittelbare oder mittelbare Einwirkung der öffentlichen Gewalt. Daraus entsteht erst das praktisch-juristische Grundrechtsproblem‚ und zwar insofern als zu prüfen und zu entscheiden ist‚ ob der Eingriff bzw. die Einwirkung durch eine Grundrechtsschranke gerechtfertigt ist oder ob er das Grundrecht verletzt‚ also verfassungswidrig ist. Diese Argumentationsweise vermeidet es‚ notwendige Gemeinwohlbezüge der Freiheit bzw. „Eingriffsbedürfnisse“ dogmatisch bereits in den Grundrechtstatbestand zu verlagern‚5 wenn nicht das betreffende Grundrecht die Freiheit von vornherein unter Ausschluss bestimmter gemeinwohlschädlicher Modifikationen gewährleistet (z. B. schützt Art. 8 Versammlungen, die „friedlich und ohne Waffen“ stattfinden). Die rechtsdog4

5

Peter Lerche, Grundrechtlicher Schutzbereich, Grundrechtsprägung und Grundrechtseingriff, in: Isensee, Josef/ Kirchhof, Paul (Hrsg.), Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland, Band V, 1992, § 121 Rdnr. 11 ff.; Ingo v. Münch, in: v. Münch, Ingo/Kunig, Philip (Hrsg.), GG – Kommentar, Band 1, 5. Auflage, 2000, Vorbemerkungen zu Art. 1–19 Rdnr. 48; Michael Sachs, in: Stern, Klaus, Staatsrecht, Band III/2, 1994, S. 34 ff.; Bodo Pieroth/Bernhard Schlink, Grundrechte Staatsrecht II, 24. Auflage, 2008, Rdnr. 231 ff.; Jörn Ipsen, Staatsrecht II, 10. Auflage, 2007, Rdnr. 124 ff. Ebenso BVerfGE Band 32, S. 54, 72 f.; Band 85, S. 386, 397; Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, 1985, S. 272 ff.; Horst Dreier, in: Dreier, Horst (Hrsg.), GG – Kommentar, Band I, 2. Auflage, 2004, Vorbemerkungen vor Artikel 1 Rdnr. 119 f.; Wolfgang Kahl, Vom weiten Schutzbereich zum engen Gewährleistungsgehalt, in: Der Staat 43 (2004), S. 167, 184 ff.; derselbe, Neuere Entwicklungslinien der Grundrechtsdogmatik, in: Archiv des öffentlichen Rechts 131 (2006), S. 579, 605 ff.; Lerche (Anm. 4) Rdnr. 24 ff.; anders Wolfgang Hoffmann-Riem, Grundrechtsanwendung unter Rationalitätsanspruch, in: Der Staat 43 (2004), S. 203 ff.; Uwe Volkmann, Veränderungen der Grundrechtsdogmatik, in: Juristenzeitung 2005, S. 261 ff.; Dietrich Murswiek, Grundrechtsdogmatik am Wendepunkt?, in: Der Staat 45 (2006), S. 473, 481 f., 500.

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matische Trennung von Grundrechtstatbestand, Eingriff bzw. Einwirkung und Grundrechtsschranken verhindert die Gefahr willkürlicher Einengung der Freiheit durch adhoc-Definition des Grundrechts und wirkt somit freiheitssichernd. Auch die unter dem Gesichtspunkt der Gewaltenteilung zu betrachtenden verfassungsrechtlichen Beziehungen von Gesetzgebung und kontrollierender Verfassungsgerichtsbarkeit setzen eine Grundrechtsdogmatik voraus‚ die zu berechenbaren Ergebnissen führt. Bei der Verfassungsauslegung geht es nicht um eine allgemeine Grundrechtsphilosophie‚ sondern um Geltungs- und Bindungsprobleme‚ die in erster Linie im Hinblick auf die Kontrollkompetenz des Bundesverfassungsgerichts von Bedeutung sind und rechtsdogmatisch klar ausgearbeitet werden müssen. Dadurch werden die Grundrechtsprobleme nicht verkürzt‚ sondern als normative Probleme erst ernst genommen. Der Grundrechtstatbestand‚ d. h. der Schutzbereich des Grundrechts‚ ist im Einzelnen durch Auslegung zu ermitteln. Mit Rücksicht auf die verschieden formulierten Grundrechtsschranken ist eine abgrenzende Zuordnung der einzelnen Lebenssachverhalte zu den verschiedenen Grundrechtstatbeständen erforderlich. Allgemein ist hervorzuheben‚ dass die Grundrechte‚ die freies Handeln gewährleisten‚ auch entsprechende Unterlassungen schützen. Es ist also nicht nur die positive Freiheit z. B. des Glaubensbekenntnisses‚ der Meinungsäußerung‚ der Eheschließung und des Vereinsbeitritts‚ sondern auch die negative Freiheit gewährleistet‚ z. B. keinem Verein beizutreten‚ keine Ehe einzugehen‚ seine Meinung nicht zu äußern und keinen Glauben zu bekennen.6 Eine verfassungsrechtlich relevante Einwirkung der öffentlichen Gewalt ist jeder Eingriff in ein grundrechtlich geschütztes Rechtsgut eines Grundrechtsträgers; Eingriff im klassischen Sinne ist ein zielbestimmter‚ unmittelbar wirkender rechtlicher Befehl‚ der Norm oder Einzelakt sein kann.7 Auch Realakte der vollziehenden Gewalt können Eingriffe darstellen (Abhören des Telefons)‚ selbst wenn sie unbeabsichtigt sind.8 Darüber hinaus kommen weitere Einwirkungen in Betracht‚ soweit sie der öffentlichen Gewalt zurechenbar sind und Ursache für eine Beeinträchtigung eines grundrechtlich geschützten Rechtsguts sind:9 so bei Drittbetroffenheit‚ wenn die staatliche Maßnahme jemand anderen begünstigt10 oder wenn Organisationsrecht den freien Zugang Dritter zu 6 7

8

9 10

Konrad Hesse, Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, 20. Auflage, 1995, Rdnr. 288. So Sachs (Anm. 4), S. 82 ff.; Wolfgang Roth, Faktische Eingriffe in Freiheit und Eigentum, 1994, S. 7 ff. mit weiteren Nachweisen; Gertrude Lübbe-Wolff, Grundrechte als Eingriffsabwehrrechte, 1988, S. 42 ff.; Albert Bleckmann, Staatsrecht II – Die Grundrechte, 4. Auflage, 1997, S. 336 ff.; Dreier (Anm. 5), Rdnr. 124; Josef Isensee, in: Isensee, Josef/Kirchhof, Paul (Hrsg.), Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland, Band V, 1992, § 111 Rdnr. 61; Rolf Eckhoff, Der Grundrechtseingriff, 1992, S. 3 ff.; Herbert Bethge/Beatrice WeberDürler, Der Grundrechtseingriff, in: Veröffentlichungen der Vereinigung der Deutschen Staatsrechtslehrer 57 (1998), S. 57, 60 ff. Sachs (Anm. 4), S. 128 ff.; Hans Ulrich Gallwas, Faktische Beeinträchtigungen im Bereich der Grundrechte, 1970, S. 94 ff.; Dreier (Anm. 5), Rdnr. 125; Michael Sachs, in: Sachs, Michael (Hrsg.), GG - Kommentar, 5. Auflage, 2009, Vor Art. 1 Rdnr. 83 ff. BVerfGE Band 66, S. 39, 60; vgl. ferner BVerfGE Band 46, S. 120, 137 f.; Band 85, S. 386, 399. BVerfGE Band 90, S. 112 ff.

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Verbreitungsmöglichkeiten beschränkt. In Betracht kommen ferner andere Formen des Einwirkens‚ etwa durch geschäftsschädigende Warnungen der öffentlichen Gewalt11 oder durch Informationen über religiöse oder weltanschauliche Gemeinschaften.12 Der damit erweiterte Eingriffsbegriff‚ der in dem Begriff der Einwirkung auf Grundrechte aufgeht‚13 ist nicht in einer klaren Definition zu fassen. Die Erweiterungen des klassischen Eingriffsbegriffs sind unter dem Gesichtspunkt der Funktion des jeweiligen grundrechtlichen Schutzbereichs und der Intensität der Einwirkung am klassischen Eingriff zu orientieren.14

IV. Grundrecht und schutzwürdiges Rechtsgut Die eigentlichen Schwierigkeiten bei der Aktualisierung der Grundrechtsbindung der Gesetzgebung liegen darin‚ dass die Gesetzgebung nicht nur an die Grundrechte gebunden ist (Art. 1 Abs. 3)‚ sondern zugleich in einzelnen Gesetzesvorbehalten‚ die den Grundrechten beigegeben sind‚ ermächtigt wird‚ Schranken der Grundrechte zu bestimmen. Damit sind zunächst formelle Voraussetzungen für Grundrechtseingriffe festgelegt. Nur der nach der Kompetenzordnung zuständige Bundes- oder Landesgesetzgeber darf den Grundrechten Schranken setzen. Hieraus resultiert das Dilemma der Grundrechtsbindung der Gesetzgebung‚ das in dem Auffinden der materiellen Voraussetzungen des Grundrechtseingriffs zu sehen ist. Einwirkungen auf grundrechtlich geschützte Güter müssen gerechtfertigt werden können‚ worüber das Bundesverfassungsgericht im Rahmen der Normenkontrolle das letzte Wort hat. Daraus entsteht das Problem der Kompetenzberührung zwischen Gesetzgebung und Bundesverfassungsgericht‚15 das sich in der Art und Weise der Verfassungsauslegung manifestiert.16 Wenn ein Gesetz wegen 11

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Paul Kirchhof, Verwalten durch mittelbares Einwirken, 1977, S. 116 ff., 189 ff.; Markus Heintzen, Staatliche Warnungen als Grundrechtsproblem, in: Verwaltungsarchiv 81 (1990), S. 532, 541; Bundesverwaltungsgericht (BVerwG), Juristenzeitung 1989, S. 997 ff. mit Anmerkung Christoph Gusy, S. 1003; BVerwG, Juristenzeitung 1991, S. 624 ff. mit Anmerkung Rolf Gröschner, S. 628; Dietrich Murswiek, Staatliche Warnungen, Wertungen, Kritik als Grundrechtseingriffe, in: Deutsches Verwaltungsblatt 1997, S. 1021, 1022 ff.; BVerfGE Band 105, S. 252, 265, 273, vermischt hier leider die grundrechtsrelevante staatliche Einwirkung mit deren Rechtfertigung: So heißt es zunächst, dass die angegriffene Veröffentlichung (= Warnung) nicht zu beanstanden sei, da die Angaben zutreffend seien. Anschließend heißt es, dass der Veröffentlichung kein Eingriffscharakter zukomme. BVerfGE Band 105, S. 279, 308 ff., Osho Bewegung betreffend, Peter M. Huber, Die Informationstätigkeit der öffentlichen Hand – ein grundrechtliches Sonderregime aus Karlsruhe?, in: Juristenzeitung 2003, S. 290, 293; Dreier (Anm. 5), Rdnr. 128. Ipsen (Anm. 4), Rdnr. 143 ff. Isensee (Anm. 7), Rdnr. 65 ff.; Sachs (Anm. 4), S. 163 ff., mit zahlreichen weiteren Kriterien, insbesondere S. 174 ff.; Eckhoff, (Anm. 7), S. 232 ff., 236 ff.; Marion Albers, Faktische Grundrechtsbeeinträchtigungen als Schutzbereichsproblem, in: Deutsches Verwaltungsblatt 1996, S. 233, 238 ff.; Weber-Dürler (Anm. 7), S. 57, 74 ff.; Bethge (Anm. 7), S. 8 ff. Dazu mit ausführlichen Nachweisungen Klaus Stern, Verfassungsgerichtsbarkeit und Gesetzgeber (Nordrhein - Westfälische Akademie der Wissenschaften Vorträge G 350), 1997, S. 7 ff.; Christian Starck, Praxis der Verfassungsauslegung, 2006, S. 131 ff. Christian Starck, Die Verfassungsauslegung, in: Isensee, Josef/Kirchhof, Paul (Hrsg.), Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland, Band VII, 1992, § 164 Rdnr. 9–15.

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Verstoßes gegen ein Grundrecht vor dem Bundesverfassungsgericht angefochten wird‚ wird sich der Gesetzgeber regelmäßig auf seine Befugnis berufen‚ nach Maßgabe des Gesetzesvorbehalts oder verfassungsimmanenter Schranken das Grundrecht beschränkt zu haben‚ die Ausübung der grundrechtlich gesicherten Freiheit geregelt zu haben. Das Bundesverfassungsgericht hat zu prüfen‚ ob es sich um solch eine verfassungsmäßige Beschränkung oder um eine Verletzung des Grundrechts und damit um einen Verstoß gegen das betreffende Grundrecht und die Bindungsklausel handelt. Eine rationale Auflösung dieses Dilemmas auf einer allgemeinen Ebene sieht wie folgt aus:

1. Vier Gruppen von Grundrechtsschranken Ausgangspunkt der Argumentation sind die im Grundgesetz positivierten Gesetzesvorbehalte.17 Sie zeigen ein buntes Bild; verschiedene Ausdrücke und Formeln werden verwandt. Gleichwohl lassen sich deutlich drei verschiedene Gruppen von Gesetzesvorbehalten unterscheiden‚ hinzu kommt eine vierte Gruppe ohne ausdrücklichen Vorbehalt: (1) Gesetzesvorbehalte‚ die selbst materielle Schranken für das betreffende Grundrecht benennen‚ ungeachtet des weiteren Unterschiedes‚ ob die Schranken verfassungsunmittelbar gelten oder der Konkretisierung durch ein Gesetz bedürftig sind (z. B. Rechte anderer, Jugendschutz, Gefahrenabwehr). (2) Gesetzesvorbehalte‚ die ohne materielle Gesichtspunkte eine formale Kompetenz für den Gesetzgeber auswerfen‚18 die betreffenden Grundrechte zu beschränken oder Schranken zu bestimmen. (3) Eine dritte Gruppe von Gesetzesvorbehalten enthält ebenfalls keine materiellen Schranken‚ verweist auch nicht auf besondere das betreffende Grundrecht einschränkende Gesetze‚ sondern nennt die „allgemeinen Gesetze“ als Schranke des Grundrechts. (4) Eine vierte Gruppe von Grundrechten enthält keine ausdrücklichen Gesetzesvorbehalte Wie aus diesen groben Kategorien bei einer zusammenfassenden Würdigung deutlich wird‚ benennt das Grundgesetz in den Fällen der Gruppe 1 materielle Schranken der Grundrechte. Diese materiellen Schranken schützen im Einzelnen benannte kollektive oder Individualrechtsgüter‚ die kraft ausdrücklicher Verfassungsbestimmung prinzipiell Vorrang vor der Ausübung der Freiheit haben sollen. Dass bei der Interpretation dieser 17 18

Thomas Wülfing, Grundrechtliche Gesetzesvorbehalte und Grundrechtsschranken, 1981, S. 26 ff., 65 ff., 91 ff.; Sachs (Anm. 4), §§ 79–81 mit weiteren Nachweisen. Hier wird häufig von „einfachen“ im Gegensatz zu „qualifizierten“ Gesetzesvorbehalten wie bei (1) gesprochen: Pieroth/Schlink (Anm. 4), Rdnr. 252 ff.; Dreier (Anm. 5), Rdnr. 86; Sachs (Anm. 8), Rdnr. 115.

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Schranken Deutungsschwierigkeiten auftreten können‚ kann zunächst auf sich beruhen. Wichtig ist nur die Erkenntnis‚ dass das Grundgesetz in den Grundrechten der Gruppe 1 selbst die Rechtsgüter nennt‚ die Vorrang vor der Freiheit haben sollen‚ also selbst eine Wertung im Verhältnis zwischen Freiheit und Bindung vornimmt. Aus diesem Umstand ist aber nicht zu schließen‚ dass im Bereich der Grundrechte mit formalem Gesetzesvorbehalt (Gruppe 2) der Gesetzgeber Herr über die inhaltlichen Fragen der Schranken ist. Zunächst ist der Grund für eine nur formale Fassung der Grundrechtsschranken darin zu sehen‚ dass die Rechtsgüter‚ zu deren Schutz die betreffenden Grundrechte eingeschränkt werden können‚ sich einer vollständigen Aufzählung entziehen. Dies bestätigt die 3. Gruppe der Grundrechtsschranken‚ die einfach auf die allgemeine Rechtsordnung bzw. die allgemeinen Strafgesetze verweisen‚ also gezielte Eingriffe verbieten. Die Meinungsäußerungsfreiheit kann gegen so viele verschiedene Rechtsgüter verstoßen‚ dass eine Aufzählung in Art. 5 Abs. 2 (Schutz der Jugend, Recht der persönlichen Ehre) ergänzt wird durch die in den Vorschriften der allgemeinen Gesetze enthaltenen Schranken. Aus der nur formalen Fassung der Grundrechtsschranken kann also nicht geschlossen werden‚ dass der Gesetzgeber die die Freiheit einschränkenden Rechtsgüter ganz nach seinem Ermessen auswählen darf. Zudem würde solch eine Ermessensfreiheit des Gesetzgebers die Bindungsklausel aushöhlen. Denn die Bindungsklausel verlangt im Prinzip ein von der Verfassung vorausbestimmtes Verhältnis von Grundrecht und Schranken. Die schutzwürdigen Rechtsgüter müssen demnach mit dem Grundgesetz in Einklang stehen. Wie hieraus erhellt‚ ist das Verhältnis von Freiheit und Schutzbedürfnis der Gemeinschaft und des Einzelnen im Grundgesetz differenziert ausgestaltet. Deshalb dürfen die notwendigen Abwägungen der Rechtsgüter nicht nach allgemeinen Maximen getroffen werden‚19 wie in dubio pro libertate‚ in dubio pro securitate oder dergl.

2. „Schrankenlose“ Grundrechte Die gleichwohl notwendige Beschränkung sogenannter schrankenloser Grundrechte – Kunst‚ Wissenschaft‚ Gewissen‚ Berufswahl‚ friedliche Versammlung in geschlossenen Räumen – lässt sich i. d. R. nicht von der Tatbestandsseite her lösen. Das würde zu willkürlichen Begriffsbildungen führen‚ die Unsicherheit in die Grundrechtsdogmatik brächten; zudem würde die strenge Argumentation zur Rechtfertigung von Schranken umgangen. Jede Freiheit‚ die Außenwirkung hat‚ also in die Sphären der Mitmenschen einwirkt (anders: bloße Gedanken‚ die bekanntlich „zollfrei“ sind)‚ stellt Schrankenprobleme. Diese können mit noch so scharfsinnigen Argumenten nicht wegdiskutiert wer19

Klaus Stern, Staatsrecht, Band I, 1977, S. 130 ff.; Peter Lerche, Grundrechtsschranken, in: Isensee, Josef/ Kirchhof, Paul (Hrsg.), Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland, Band V, 1992, § 122 Rdnr. 5 ff.

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den. Zwei Wege sind beschritten worden‚ Grundrechten‚ die keine Schranken kennen‚ solche zuzuordnen. Ein Weg führt über die Schrankenleihe‚ indem Schranken aus benachbarten Grundrechten oder aus der allgemeinen Freiheitsgarantie herangezogen werden. Der andere Weg führt über die sogenannten verfassungsimmanenten Schranken‚ das sind Schranken‚ die sich aus den anderen von der Verfassung geschützten Gütern‚ z. B. aus den anderen Grundrechten oder aus verfassungsrechtlich festgelegten Pflichten ergeben.20 Danach kann z. B. der Wissenschaftler‚ der zum Zwecke wissenschaftlicher Forschung mit Menschen experimentiert‚ entweder über Art. 1 Abs. 1 (Menschenwürde) und Art. 2 Abs. 2 (Leben‚ Gesundheit) oder bei Schrankenleihe über Art. 5 Abs. 2 (allgemeine Gesetze: hier Strafrecht) in die Schranken verwiesen werden. Der Weg über kollidierendes Verfassungsrecht als Schranke im Sinne einer Eingriffsrechtfertigung ist vorzuziehen.21

3. Zusammenfassung: schutzwürdige Rechtsgüter Bisher hat sich ergeben‚ dass alle Grundrechte‚ welcher der vier oben angeführten Kategorien sie auch angehören‚ prinzipiell beschränkbar sind. Erste Legitimationsgrundlage für diese Schranken ist ein schutzwürdiges Rechtsgut.22 Was schutzwürdig ist‚ ergibt sich entweder aus der speziellen materiellen Grundrechtsschranke oder in allen anderen Fällen aus den sonst von der Verfassung geschützten oder ihr zumindest nicht widersprechenden Rechtsgütern.23 Auch insoweit wird auf die Kommentierung der einzelnen Grundrechte verwiesen.

V. Das Verhältnismäßigkeitsprinzip Mit dieser verfassungsrechtlichen Fundierung der Rechtsgüter‚ die durch Grundrechtsschranken geschützt werden‚ ist das oben beschriebene Dilemma von Grundrechtsbindung des Grundgesetzes und Gesetzesvorbehalten noch nicht aufgelöst. Wenn 20

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Zu Art. 5 Abs. 3 (Kunst) vgl. BVerfGE Band 30, S. 173, 193 ff.; Band 81, S. 278, 292 f.; Band 83, S. 130, 139; zu Art. 5 Abs. 3 (Wissenschaft) BVerfGE Band 47, S. 327, 367 ff.; zu Art. 4 BVerfGE Band 32, S. 98, 107; zu Art. 9 Abs. 3 BVerfGE Band 84, S. 212, 228. Siehe ferner Entscheidungen des Bundesverwaltungsgerichts (BVerwGE) Band 37, S. 265, 267 ff.; Band 49, S. 202, 209; 105, 73, 78 f.; Herbert Bethge, Zur Problematik von Grundrechtskollisionen, 1977, S. 258 ff.; Klaus Stern, Staatsrecht, Band III/2, 1994, S. 663 ff. Sachs (Anm. 4), S. 571 ff.; Peter Badura, Staatsrecht, 3. Auflage, 2003, C Rdnr. 25; Jarass, Hans D./Pieroth, Bodo, GG – Kommentar, 9. Auflage, 2007, Vorbemerkungen vor Art. 1 Rdnr. 48. Peter Lerche, Übermaß und Verfassungsrecht, 1961, S. 223 ff. BVerfGE Band 28, S. 243, 261: Funktionsfähigkeit der Bundeswehr; BVerfGE Band 30, S. 292, 316 verlangt bezogen auf die freie Berufsausübung nach ständiger Rechtsprechung ein Gemeinwohlgut, das der Wertordnung des Grundgesetzes nicht widerspricht; ähnlich BVerfGE Band 13, S. 97, 107; BVerfGE Band 33, S. 23, 32: Funktionsfähigkeit der Strafrechtspflege; BVerfGE Band 57, S. 70, 99: Leistungsfähigkeit der Krankenversorgung.

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nämlich das bloße Ziel‚ verfassungsrechtlich legitime Rechtsgüter zu schützen‚ für Grundrechtseinschränkungen beliebiger Art genügte‚ könnte die Bindungsklausel durch die Art und Weise der Grundrechtsbeschränkung ausgehöhlt und könnten damit die Grundrechte wieder zu Programmsätzen herabgestuft werden. Dies lässt sich vermeiden‚ wenn auch die zum Schutz der verfassungsrechtlich fundierten Rechtsgüter eingesetzten Mittel bestimmten Grenzen unterworfen sind.24 Das Grundgesetz selbst enthält entsprechende Hinweise. Art. 11‚ in dem besonders ausführlich materielle Schutzgüter genannt sind‚ die eine Einschränkung der Freizügigkeit rechtfertigen‚ verlangt‚ dass die Beschränkungen der Freizügigkeit zum Schutze der genannten Rechtsgüter erforderlich sind. Selbst wenn die anderen Grundrechte die Erforderlichkeit der einschränkenden Gesetze nicht ausdrücklich erwähnen‚ beherrscht doch dieser Grundsatz des Interventionsminimums auch die anderen Grundrechtsschranken. Denn mit Hilfe dieses Grundsatzes können unnötige Grundrechtseinschränkungen abgewehrt und die Bindungsklausel aktualisiert werden. In der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts wird nicht nur auf die Erforderlichkeit abgestellt; vielmehr werden auch Geeignetheit und Proportionalität der Grundrechtsschranken gefordert. Geeignet ist eine gesetzliche grundrechtseinschränkende Norm dann‚ wenn sie überhaupt in der Lage ist‚ das gefährdete Rechtsgut wirksam zu schützen.25 Geeignete Maßnahmen können jedoch übermäßig belastend sein. Dies kann mit dem Raster des Grundsatzes der Erforderlichkeit festgestellt werden. Dieser Grundsatz fordert den Einsatz des mildesten Mittels‚ das noch in der Lage ist‚ das gefährdete Rechtsgut wirksam zu schützen.26 Schließlich soll drittens der Grundsatz der Proportionalität (= Verhältnismäßigkeitsprinzip im engeren Sinne) sicherstellen‚ dass die Belastung des Einzelnen durch eine geeignete und erforderliche Einschränkung des Grundrechts in einem vernünftigen Verhältnis zu den der Allgemeinheit erwachsenden Vorteilen steht.27 24

25 26 27

Eberhard Grabitz, Der Grundsatz der Verhältnismäßigkeit in der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts, in: Archiv des öffentlichen Rechts 98 (1973), S. 568, 586 ff.; Hans Schneider, Zur VerhältnismäßigkeitsKontrolle insbesondere bei Gesetzes, in: Starck, Christian (Hrsg.), Bundesverfassungsgericht und Grundgesetz (FS BVerfG 1976), Zweiter Band, S. 390 ff.; Klaus Stern, Die Grundrechte und ihre Schranken, in: Badura, Peter/Dreier, Horst (Hrsg.), Festschrift 50 Jahre Bundesverfassungsgericht, Zweiter Band, 2001, S. 1, 30 ff.; Oliver Koch, Der Grundsatz der Verhältnismäßigkeit in der Rechtsprechung des Gerichtshofs der Europäischen Gemeinschaften, 2003, S. 158 ff.; Dirk Ehlers, in: Ehlers, Dirk (Hrsg.), Europäische Grundrechte und Grundfreiheiten, 2. Auflage, 2005, § 7 Rdnr. 96. Stern (Anm. 19), S. 862, 866; BVerfGE Band 16, S. 147, 181; Band 63, S. 88, 115; Band 67, S. 157, 175; Band 81, S. 156, 188 ff.; Band 91, S. 207, 222 ff.; Band 95, S. 173, 185 ff.; Band 96, S. 10, 23; Band 120, S. 274, 320 f. BVerfGE Band 17, S. 269, 279 f.; Band 30, S. 292, 316 ff.; Band 39, S. 156, 165; Band 63, S. 88, 115 ff.; Band 102, S. 197, 217 ff.; Band 104, S. 337, 347; Band 120, 274, S. 318 – 335; Band 121, 317, S. 355 – 368. Deutlich als „dritte Stufe der Verhältnismäßigkeitsprüfung“ bezeichnet in BVerfGE Band 90, S. 145, 185. Vgl. ferner BVerfGE Band 16, S. 194, 201 ff.; Band 30, S. 292, 316 ff.; Band 45, S. 187, 245 ff.; Band 68, S. 193, 219; Band 83, S. 1, 19; Band 101, S. 331, 347 jeweils mit weiteren Nachweisen aus der Rechtsprechung; zur erforderlichen Abwägung, die stark durch das einzelne Grundrecht bestimmt ist, vgl. Markus Heintzen, Die einzelgrundrechtliche Konkretisierung des Grundsatzes der Verhältnismäßigkeit, in: Deutsches Verwaltungsblatt 2004, S. 721, 723 ff.

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Die Formel für die Verhältnismäßigkeitskontrolle lautet zusammengefasst: Die in Frage stehende Grundrechtsbeschränkung muss geeignet sein, den Schutz des Rechtsguts zu bewirken. Sie muss dazu erforderlich sein, was nicht der Fall ist, wenn ein milderes Mittel ausreicht. Schließlich muss sie im engeren Sinne verhältnismäßig sein, d.h. in angemessenem Verhältnis zu dem Gewicht und der Bedeutung des Grundrechts stehen. Da es bei der Abwägung zwischen dem Grundrecht und dem zu schützenden Rechtsgut28 nicht um eine Optimierung beider Rechtswerte geht‚29 die praktisch nur eine richtige Lösung zuließe und jede Gestaltungsfreiheit des Gesetzgebers zunichte machte‚ ist bei der Normenkontrolle und bei der Kontrolle fachgerichtlicher Entscheidungen durch das Bundesverfassungsgericht nur zu prüfen‚ ob die angegriffene Einschränkung des Grundrechts „schlechthin ungeeignet“30 oder „unverhältnismäßig“31 ist. Es ist also ein eher negativer Prüfungsansatz zu wählen‚ in dem die Ungeeignetheit‚ Unverhältnismäßigkeit etc. auszuschließen sind. Das kommt auch in dem Begriff „Übermaßverbot“32 zum Ausdruck‚ das sich von einem positiven Optimierungsgebot unterscheidet. Die Anwendung dieser drei Grundsätze zur Überprüfung der zum Schutz von Rechtsgütern eingesetzten grundrechtsbeschränkenden Mittel setzt Tatsachenfeststellungen und Prognosen voraus. Diese trifft der Gesetzgeber‚ der sich anschickt‚ entsprechende Grundrechtsschranken zu normieren. Durch offene Gesetzesklauseln kann er solche Feststellungen auch auf die Verwaltung und die Gerichte verlagern. Wäre der Gesetzgeber bei den der grundrechtseinschränkenden Norm zugrunde liegenden Tatsachenfeststellungen und Prognosen völlig frei‚ so könnte die Bindungsklausel unterlaufen werden. Umgekehrt kann jedoch die Unsicherheit von Prognosen nicht dazu führen‚ dass es dem Gesetzgeber verwehrt ist‚ auf solch einer Grundlage grundrechtseinschränkende Gesetze zu erlassen. Das zur Gesetzeskontrolle berufene Bundesverfassungsgericht hat von jeher Tatsachenfeststellungen und Prognoseentscheidungen des Gesetzgebers kontrolliert.33 Bei dieser Kontrolle spricht jedoch eine Vermutung für die Richtigkeit der 28

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Zu diesen Grundsätzen Lerche (Anm. 22), S. 19 ff.; Grabitz (Anm. 24), S. 568, 575 ff.; Rudolf Wendt, Der Garantiegehalt der Grundrechte und das Übermaßverbot, in: Archiv des öffentlichen Rechts 104 (1979), S. 414, 448 ff.; Stern (Anm. 20), S. 775 ff. Anders Alexy (Anm. 5), S. 75 ff., 100 ff. BVerfGE Band 71, S. 206, 216; Band 96, S. 10, 23; Band 100, S. 313, 373; Band 117, S. 163, 188 f. BVerfGE Band 94, S. 268, 285. BVerfGE Band 90, S. 145, 191; vgl. allgemein Lerche, (Anm. 19) Rdnr. 6. Siehe BVerfGE Band 7, S. 377, 412; Band 25, S. 1, 13; Band 30, S. 250, 263 f.; Band 50, S. 290, 332 f.; dazu ausführlich Fritz Ossenbühl, Die Kontrolle von Tatsachenfeststellungen und Prognoseentscheidungen durch das Bundesverfassungsgericht, in: Starck, Christian (Hrsg.), FS BVerfG 1976 (Anm. 24), Erster Band, S. 458 ff. mit weiteren Nachweisen aus Literatur und Rechtsprechung; derselbe, Bundesverfassungsgericht und Gesetzgebung, in: Badura, Peter/Dreier, Horst (Hrsg.), Festschrift 50 Jahre Bundesverfassungsgericht, Erster Band, 2001, S. 33, 52 ff.; Starck (Anm. 2) S. 97, 109 f.; zu der Variante des gesetzgeberischen Experiments, durch das Grundrechte eingeschränkt werden, Bernhard Schlink, Abwägung im Verfassungsrecht, 1976, S. 208 ff.

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Erfahrungsgrundlagen‚ Erwägungen und Wertungen des Gesetzgebers‚ falls diese nicht entkräftet werden.34 Dem Gesetzgeber wird deshalb eine Einschätzungsprärogative zugebilligt‚ die jedoch abgestuft ist je nach der Eigenart des geregelten Sachbereichs‚ den Möglichkeiten‚ sich ein hinreichend sicheres Urteil zu bilden‚ und der Bedeutung der auf dem Spiele stehenden Rechtsgüter.35 Daraus ergeben sich differenzierte Maßstäbe für die Intensität der Kontrolle: Bloße Evidenzkontrolle im Bereich vor allem der Wirtschaftspolitik‚ wenn die Grundrechte des freien Wirtschaftens nur am Rande berührt werden;36 Vertretbarkeitskontrolle im Bereich der wirtschaftlichen Grundrechte‚ wenn die Möglichkeiten der Prognose sicherer sind;37 eine intensivierte inhaltliche Kontrolle wird vorgenommen‚ wenn das Leben oder die Freiheit der Person38 oder andere Grundrechte betroffen sind‚ soweit es um weitreichende Einschränkungen geht (z. B. nicht nur Modalitäten der Berufsausübung sondern Berufswahl).39 Die Abgrenzung zwischen den Kontrollstufen – insbesondere zwischen der Evidenz- und der Vertretbarkeitskontrolle – ist nicht immer sicher‚ da die Kriterien der Zuordnung zu der einen oder der anderen Stufe selbst erst wertend erfasst werden müssen. Gleichwohl ist die Stufenfolge nützlich‚ weil sie Argumentationsraster liefert und mit Rücksicht auf Präjudizien mehr und mehr vorausberechenbar wird. Im Falle einer Fehlprognose‚ die sich als solche nach geraumer Zeit hinreichend deutlich feststellen lässt‚ ist der Gesetzgeber verpflichtet‚ das Gesetz nach dem neuen Erkenntnisstand zu ändern.40 Das bedeutet für die Normenkontrolle durch das Bundesverfassungsgericht‚ dass es bei seiner Kontrolle zwar von dem Erkenntnisstand zur Zeit des Erlasses des Gesetzes auszugehen hat‚ neue Erkenntnisse aber nicht unberücksichtigt lassen darf. Dies ist unter dem Gesichtspunkt des Grundrechtsschutzes eine angemessene Konsequenz. Das gekennzeichnete Zusammenspiel von Grundrechtsdogmatik und Prüfungskompetenz des Bundesverfassungsgerichts ist Voraussetzung für die Aktualisierung der Bindungsklausel und damit für die Geltung der Grundrechte als unmittelbar geltendes Recht. Dieses allgemein für die Grundrechtsschranken gültige Ergebnis bedeutet nicht‚ dass die verschiedenen Schrankenformulierungen in den Grundrechten des Grundgesetzes belanglos sind. Ferner variieren Reichweite und Dichte des Grundsatzes der Ver34

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Zurückhaltend BVerfGE Band 16, S. 147, 181; Band 17, S. 306, 317; Band 19, S. 119, 127; Band 30, S. 250, 263; Band 47, S. 109, 117 f.; Band 50, S. 142, 163; Band 71, S. 206, 215 ff.; Band 102, S. 197, 218 f.; Band 104, S. 337, 347 f. BVerfGE Band 50, S. 290, 333; Band 62, S. 1, 50; Band 76, S. 1, 51 f.; Band 77, S. 170, 214; Band 90, S. 145, 173. BVerfGE Band 37, S. 1, 20; Band 40, S. 196, 223. BVerfGE Band 25, S. 1, 12 f.; Band 30, S. 250, 263; Band 39, S. 210, 225 f.; offen gelassen BVerfGE Band 57, S. 139, 159 ff. BVerfGE Band 39, S. 1, 46, 51 ff.; Band 45, S. 187, 238. BVerfGE Band 7, S. 377, 415; Band 11, S. 30, 45; Band 17, S. 269, 276 ff. BVerfGE Band 25, S. 1, 13; Band 50, S. 290, 335; Band 57, S. 139, 161 ff.; Band 89, S. 365, 378 ff; Band 110, S. 141, 158; Band 113, S. 167, 234 ff.

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hältnismäßigkeit je nach der Art des gesetzlichen Eingriffs und der Schutzwirkung des betroffenen Grundrechts. Sie sind immer Ausgangspunkt der Argumentation. Die speziellen Schranken stellen‚ von dem hier gewählten positiv-rechtlichen Ansatz der Grundrechtsdogmatik her‚ wichtige Ergänzungen oder Modifikationen des allgemeinen Teils der Schrankenlehre dar. Dieser allgemeine Teil ist ungeachtet von Besonderheiten‚41 die sich aus den einzelnen Grundrechten ergeben‚ Konsequenz aus der Bindungsklausel. Der Grundsatz der Verhältnismäßigkeit‚ in dem die Grundsätze der Geeignetheit‚ Erforderlichkeit und Proportionalität i. e. S. zusammengefasst werden‚42 wird häufig aus dem Rechtsstaatsprinzip abgeleitet.43 Damit wird zutreffend zum Ausdruck gebracht‚ dass das Verhältnismäßigkeitsprinzip ein Rechtsprinzip ist‚ das sich im Übrigen nicht nur auf die Grundrechte bezieht. Wie die vorangegangenen Argumente zeigen‚ kann zumindest für die Grundrechtsdogmatik noch vor dem allgemeinen Rechtsstaatsprinzip auf die in Art. 1 Abs. 3 GG verankerte – normativ viel dichtere44 – Bindungsklausel zurückgegriffen werden‚ um den Grundsatz der Verhältnismäßigkeit in der Grundrechtsdogmatik anzuwenden.45 Das kommt auch deutlich in der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts zum Ausdruck.46 Danach folgt der Grundsatz der Verhältnismäßigkeit „im Grunde bereits aus dem Wesen der Grundrechte selbst‚ die als Ausdruck des allgemeinen Freiheitsanspruchs des Bürgers gegenüber dem Staat von der öffentlichen Gewalt jeweils nur insoweit beschränkt werden dürfen‚ als es zum Schutze öffentlicher Interessen unerlässlich ist“. Was das Bundesverfassungsgericht mit dem „Wesen der Grundrechte“47 bezeichnet‚ ist klarer umschrieben‚ wenn man auf die Bindungsklausel (Art. 1 Abs. 3) abstellt‚ die das „Wesen der Grundrechte“ entscheidend neu prägt. Das Wesen der Grundrechte ist ein anderes‚ wenn sie über Gesetzesvorbehalte allein dem Gesetzgeber anheimgegeben 41 42

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Hinsichtlich der Frage der Schutzgüter, der näheren Ausprägung der Verhältnismäßigkeit in besonderen Stufentheorien usf. So auch Schlink (Anm. 33), S. 195, 199 ff.; Heintzen (Anm. 27), S. 721 ff. So BVerfGE Band 21, S. 150, 155; Band 30, S. 292, 316; Band 38, S. 281, 302; eingehend BVerfGE Band 120, S. 274, 320 ff.; über die Vielfalt der Rechtsprechung unterrichten die zwölf Registerbände unter dem Stichwort „Verhältnismäßigkeit(sgrundsatz)“; Grabitz (Anm. 24), S. 571 ff. BVerfGE Band 23, S. 127, 133 mit weiteren Nachweisen; BVerfGE Band 25, S. 44, 53; Band 25, S. 269, 292; Band 38, S. 348, 368; Band 69, S. 1, 35; Band 76, S. 256, 359 und in seinem Gefolge die meisten Autoren. Eine Zusammenstellung der verschiedenen Ableitungsversuche bei Lerche, (Anm. 22), S. 19 ff.; Grabitz (Anm. 24), S. 568 ff., 570, 582 ff.; Rudolf Wendt, Die Gebühr als Lenkungsmittel, 1975, S. 115 ff.; Zippelius, Reinhold/Würtenberger, Thomas, Deutsches Staatsrecht, 32. Auflage, 2008, S. 123; Stern (Anm. 20), S. 771, mit ausführlichen Nachweisen in Anm. 60. Besonders die Bemühungen Lerches (Anm. 22), S. 58 f., den Grundsatz aus dem Rechtsstaatsprinzip abzuleiten, verdeutlichen den Mangel an normativer Dichte. Damit wird berechtigten Einwänden Rechnung getragen, wie sie zuletzt erst wieder Schneider (Anm. 24), S. 390 ff. formuliert hat. BVerfGE Band 19, S. 342, 348 f. (dort das folgende Zitat); Band 35, S. 382, 401; Band 61, S. 126, 134; Band 76, S. 1, 50. Peter Wittig, Zum Standort des Verhältnismäßigkeitsgrundsatzes im System des Grundgesetzes, in: Die Öffentliche Verwaltung 1968, 819 ff., der sich mit dieser Aussage näher beschäftigt, sieht nicht den Bezug zur Bindungsklausel, sondern verweist auf Art. 2 Abs. 1, Art. 3 Abs. 1, Art. 1 Abs. 1 und Art. 19 Abs. 2. Richtig jedoch die Bemerkung S. 821: Ohne den Verhältnismäßigkeitssatz würde es den Freiheitsrechten in entscheidenden Punkten an Inhalt und Durchsetzbarkeit fehlen.

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werden. Die Vermittlung zwischen Regelungskompetenz des Gesetzgebers im Grundrechtsbereich und Bindung des Gesetzgebers an die Grundrechte ist logisch nur möglich‚ wenn der im Grundrechtsbereich regelnde Gesetzgeber um der Freiheit der Bürger willen sowohl in der Auswahl der Schutzgüter wie der zu ihrem Schutz verwendeten Mittel verfassungsrechtlich gebunden ist. Diese Bindung lässt sich nur‚ wie gezeigt worden ist‚ mit Hilfe des Verhältnismäßigkeitsprinzips realisieren.

VI. Grundrecht und Gesetz Der grundrechtsdogmatische Problemkreis Grundrecht und Gesetz reicht weit über die Frage der gesetzlichen Einschränkbarkeit von Grundrechten hinaus.48 Der Umstand‚ dass es Gesetze sein müssen, die die Grundrechtsschranken normieren‚ soweit diese nicht verfassungsunmittelbar sind‚ bedeutet bereits zu einem guten Teil Sicherung der Freiheit. Gesetze beschränken nicht nur Grundrechte‚ sondern schaffen Verfahren‚ Organisation und Rechtsformen (z. B. Vertragsrecht, Eherecht, Sachenrecht, Vereinsrecht‚ Gesellschaftsrecht)‚ die dem Bürger die Wahrnehmung bestimmter Grundrechte erst ermöglichen. Ferner erlässt der Gesetzgeber Leistungsgesetze‚49 die materielle Grundrechtsvoraussetzungen sichern sollen: Ausbildungsförderung‚ Sozialhilfe‚ Privatschulfinanzierung. Unabhängig von der Frage‚ ob der Gesetzgeber verfassungsrechtlich zum Erlass von Leistungsgesetzen verpflichtet ist‚ stehen solche Leistungsgesetze in engem Zusammenhang mit den Grundrechten.50 Ferner richtet der Gesetzgeber grundrechtsrelevante Leistungsverhältnisse ein wie z. B. das Schulverhältnis, durch das der Staat vor allem seinem Bildungsauftrag nachkommt und die grundrechtlichen Positionen der Schüler und Eltern im Rahmen der verschiedenen Bildungswege und der Schuldisziplin regelt. Das Grundgesetz kennt Ermächtigungen des Gesetzgebers, das Nähere zu regeln51 oder den Inhalt des Eigentums näher zu bestimmen.52 Solche Ausgestaltungen der Grundrechte gehen oft ohne scharfe Grenze in Begrenzungen der Grundrechte über (Art. 14 Abs. 1 S. 2: Inhalt und Schranken werden durch die Gesetze bestimmt). Die Gleichberechtigung von Männern und Frauen (Art. 3 Abs. 2 S. 1) verlangt entsprechende Ge48

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Lerche (Anm. 22), S. 100 ff.; Peter Häberle, Die Wesensgehaltgarantie des Art. 19 Abs. 2 Grundgesetz, 3. Auflage, 1983, S. 180 ff.; Hesse (Anm. 6), Rdnr. 303 ff.; Badura (Anm. 21), S. 105 f.; Matthias Jestaedt, Grundrechtsentfaltung im Gesetz, 1999, S. 108 ff.; Matthias Ruffert, Vorrang der Verfassung und Eigenständigkeit des Privatrechts, 2001, S. 104 ff.; Matthias Cornils, Die Ausgestaltung der Grundrechte, 2005. Starck (Anm. 2), S. 267 ff. Karl Bettermann, Grenzen der Grundrechte, 2. Auflage, 1976, S. 18 f.; Christian Starck, Soziale Rechte in Verträgen, Verfassungen und Gesetzen, in: Ennuschat, Jörg/Geerlings, Jörg/Mann, Thomas/Pielow, Johann – Christian (Hrsg.), Wirtschaft und Gesellschaft im Staat der Gegenwart - Gedächtnisschrift für Peter J. Tettinger, 2007, S. 761, 770 ff. BVerfGE Band 69, S. 1, 21 ff. Michael Nierhaus, Grundrechte aus der Hand des Gesetzgebers – Ein Beitrag zur Dogmatik des Art. 1 Abs. 3 GG, in: Archiv des öffentlichen Rechts 116 (1991), S. 90, 95 ff.

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setzgebung.53 Die Ausgestaltung durch den Gesetzgeber darf nicht beliebig sein, muss sich insbesondere vor unnötigen Beschränkungen hüten.54 Ein weiteres Ausgestaltungsproblem ergibt sich aus der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts, aus den Grundrechten, die primär Abwehrrechte gegen staatliche Eingriffe sind, sogenannte Schutzpflichten abzuleiten, die gesetzliche Regelungen vor allem im Privatrecht (siehe VII) erfordern. Den staatlichen Schutzpflichten entsprechen auf der Seite des Bürgers Schutzrechte. Diese Fortbildung der Verfassung ist sowohl vom Europäischen Gerichtshof55 als auch vom Europäischen Gerichtshof für Menschenrechte56 übernommen worden. Da Schutz des einen Eingriffe in die Rechte eines anderen bedingt, verlangt dies eine Balancierung von Abwehrrecht und Schutzrecht durch den Gesetzgeber und durch das kontrollierende Verfassungsgericht.

VII. Wirkung der Grundrechte im Privatrecht 1. Die verschiedenen Drittwirkungslehren Unter dem Stichwort „Drittwirkung“ wird die Frage erörtert‚ ob und wie die Grundrechte auf die Rechtsbeziehungen zwischen Privatrechtssubjekten einwirken. Die verschiedenen Drittwirkungslehren versuchen‚ eine mehr oder minder starke Bindung der Privatrechtssubjekte an die Grundrechte zu begründen. Ansatzpunkt der folgenden Überlegungen bilden in erster Linie nicht die Beziehungen der Privatrechtssubjekte untereinander‚ sondern die Rolle des Zivilrecht setzenden Gesetzgebers und des Zivilrechtsstreitigkeiten entscheidenden Richters. Im Ergebnis führen die Drittwirkungslehren aber stets dazu‚ das Maß der Grundrechtsbindung von Privatrechtssubjekten festzulegen‚ und zwar vermittelt entweder durch grundrechtskonforme Privatrechtsgesetzgebung oder durch zivilgerichtliche Rechtsprechung.

2. Mehrdimensionales Freiheitsproblem und primäre Staatsrichtung der Grundrechte Je nachdem‚ wie weit man in die Geschichte der Grundrechte zurückgeht, kann man die bloße Staatsgerichtetheit der Grundrechte nachweisen oder in der Freiheitsdis53 54 55 56

Dem widerspricht nicht BVerfGE Band 3, S. 225, 239 ff., das eine unmittelbare Geltung des Art. 3 Abs. 2 angenommen hat nach Erlöschen des dem Art. 3 Abs. 2 widersprechenden Rechts gem. Art. 117 Abs. 1. Dazu ausführlich die Kommentierung der betreffenden Grundrechte, Übersicht bei Sachs (Anm. 4), S. 417 ff. EuGH v. 4. 7. 1989 Rs. C 326/86 und 66/88, Sammlung 1989, 2087; EuGH v. 9. 12. 1997 Rs. C 265/95, Sammlung 1997 I – 6959. EGMR v. 26. 3. 1985, Europäische Grundrechte-Zeitschrift 1985, S. 297 ff.; Christian Walter, in: Ehlers, Dirk (Hrsg.), Europäische Grundrechte und Grundfreiheiten, 2. Auflage, 2005, § 1 Rdnr. 44.

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kussion noch früherer Zeiten eine umfassende Inbezugnahme des Rechts (einschließlich des Privatrechts) feststellen. Kant sieht das Privatrecht unter dem Prinzip der Einstimmung der Freiheit des einen mit der Freiheit des anderen.57 Das Allgemeine Landrecht schützt die natürliche Freiheit des Menschen‚ „sein eigenes Wohl ohne Kränkung der Rechte eines Anderen suchen und befördern zu können“.58 Auch bei v. Rotteck59 kommt noch die Mehrdimensionalität des Freiheitsproblems deutlich zum Ausdruck. Danach hat der Staat als Rechtsanstalt in dieser Eigenschaft „die Freiheit seiner Angehörigen als ein ihnen in allen Sphären der menschlichen Thätigkeit schon schlechthin als Personen zukommendes Recht anzuerkennen und zu schirmen“. Habe sich der Staat „der selbsteigenen Eingriffe in die Freiheitsrechte seiner Angehörigen enthalten‚ so bleibt ihm noch übrig‚ dieselben auch gegen diejenigen zu schirmen‚ womit sie in ihrer Wechselwirkung untereinander selbst bedroht sein mögen“. Selbst wenn die Auffassung v. Rottecks in der für spätere Grundrechtserklärungen durchaus vorbildhaften französischen Erklärung der Menschen- und Bürgerrechte von 1789 zum Ausdruck kommt‚60 sind die Privatrechtsbeziehungen der Rechtsgenossen im Laufe der Zeit mehr und mehr aus dem Blick der allgemeinen Freiheitsdiskussion herausgelöst worden. Das hängt mit dem Positivismus und den geglückten‚ den damaligen Verhältnissen entsprechend Freiheit und Gleichheit sichernden neueren Privatrechtskodifikationen zusammen.61 Die Grundrechtsproklamationen der europäischen Staaten entsprangen „dem Bestreben‚ den antiabsolutistischen Lehren des Natur- und Vernunftrechts von der Begrenztheit der Staatsgewalt und von den unveräußerlichen Freiheitsund Gleichheitsrechten des Individuums einen gesetzgeberischen Ausdruck zu geben“.62 Der an diesen Proklamationen ausgerichtete klassische Grundrechtsbegriff war primär der des status negativus sive libertatis des Einzelnen‚ der sich gegen die öffentliche Gewalt wendet‚ ein Recht des Einzelnen auf eine staatsfreie Sphäre statuiert oder die Eingriffsmöglichkeiten des Staates in die individuelle Rechtssphäre in ganz bestimmte Grenzen bannt. Die Grundrechtsbestimmungen wollten nicht Maßstäbe setzen oder Schranken 57 58 59 60

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Immanuel Kant, Metaphysik der Sitten, Rechtslehre (1797), §§ 5, 10, 18. § 83 Einleitung des Allgemeinen Landrechts für die preußischen Staaten. Carl v. Rotteck, in: v. Rotteck, Carl/Welcker, Carl (Hrsg.), Staats-Lexikon, 2. Aufl., 1847, Bd. V, S. 184, 186; ferner derselbe Lehrbuch des Vernunftrechts, Bd. II, 2. Aufl. 1840, S. 78. Vgl. Art. 4: „La liberté consite à pouvoir faire tout ce qui ne nuit pas à l’autrui; ainsi, l’exercice des droits naturels de chaque homme n’a de bornes que celles qui assurent aux autres membres de la société la jouissance de ces mêmes droits. Ces bornes ne peuvent être déterminées que par la loi.“ In den amerikanischen bills of rights ist das Freiheitsproblem einseitig im Verhältnis Bürger – Staat formuliert, was auf der ungebrochenen common-law-Tradition beruht, aus der heraus die Freiheitsprobleme zwischen den Bürgern zu lösen waren. Zweigliederung der Freiheit in privatrechtlichen und staatsrechtlichen Aspekt bei Otto v. Gierke, Die Grundbegriffe des Staatsrechts (1874), zitiert nach der Ausgabe 1915, S. 109 f., wobei im staatsrechtlichen Bereich das subjektive Recht stark zurücktritt (vgl. S. 106). Richard Thoma, Die juristische Bedeutung der grundrechtlichen Sätze der deutschen Reichsverfassung im allgemeinen, in: Nipperdey, Hans Carl (Hrsg.), Die Grundrechte und Grundpflichten der Reichsverfassung. Kommentar zum zweiten Teil der Reichsverfassung, Band I, 1929, S. 15.

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ziehen für die Rechtsbeziehungen der einzelnen Staatsbürger untereinander; sie waren keine allseitigen Freiheits- und Gleichheitsverbürgungen‚ keine drittbezogenen oder drittgerichteten‚ sondern staatsbezogene oder staatsgerichtete Freiheits- und Gleichheitsgewährleistungen. Dies zeigt sich bis in die Formulierungen der Grundrechte hinein.

3. Privatrechtsbezogene Grundrechte und Garantien des Grundgesetzes Einige Grundrechte des Grundgesetzes gewährleisten bzw. gewähren nicht nur Abwehransprüche gegen den Staat‚ sondern auch gegen Private, zum Beispiel Abreden, die sich gegen die Mitgliedschaft eines Arbeitnehmers in Gewerkschaften richten, sind nichtig (Art. 9 Abs. 3 S. 2) oder übertragen dem Staat Schutzpflichten63 wie Art. 1 Abs. 1 S. 2 (Menschenwürde)‚ Art. 6 Abs. 1 (Ehe und Familie) und Abs. 4 (Mütter) bzw. Gewährleistungspflichten wie Art. 4 Abs. 2 (ungestörte Religionsausübung) und Art. 14 Abs. 1 (Eigentum). Das Grundgesetz hat in Art. 3 Abs. 2 S. 1 (Männer und Frauen sind gleichberechtigt)eine klare Entscheidung in Abweichung von der Weimarer Verfassung und vom damals geltenden Ehe- und Familienrecht getroffen‚ die das Zivilrecht beeinflusst‚ soweit in ihm die Beziehungen zwischen Mann und Frau in der Ehe geregelt werden. Der Konflikt zwischen Art. 6 Abs. 1 (überkommene Struktur der Ehe) und Art. 3 Abs. 2 S. 1 wurde deutlich zugunsten der Gleichheit von Mann und Frau entschieden.64 Diese Schutz- und Gleichberechtigungsaufträge wirken unmittelbar ins Zivilrecht‚ wo die entsprechende Materie geregelt ist.65 Bezeichnenderweise handelt es sich bei den genannten Grundrechten nicht (nur) um klassische Abwehrrechte‚ sondern um Gleichheitsrechte bzw. um Schutzaufträge‚ deren Verwirklichung eine entsprechende Gestaltung gerade des Zivilrechts verlangt. Das gilt auch für die Garantie des elterlichen Erziehungsrechts in Art. 6 Abs. 2 GG‚ der Einfluss auf das Familienrecht hat.66 In den angeführten Beispielen liegt Privatrecht mit Verfassungsrang vor.67 Mit diesen Überlegungen lassen sich bereits einige sog. Drittwirkungsprobleme lösen‚ ohne dass die Grundrechtsgeltung pauschal auf 63

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Hierauf machte frühzeitig Günter Dürig aufmerksam, vgl. Der Grundrechtssatz von der Menschenwürde, in: Archiv des öffentlichen Rechts 81 (1956), S. 117, 118 f.; derselbe, in: Maunz, Theodor/Dürig, Günter, GG – Kommentar, Loseblatt Stand 2009, (Erstbearbeitung), Art. 1 Abs. III Rdnr. 131; Claus – Wilhelm Canaris, Grundrechte und Privatrecht, in: Archiv für die civilistische Praxis 184 (1984), S. 201, 225 ff.; jetzt ausführlich Ruffert (Anm. 49), S. 141 – 255. BVerfGE Band 10, S. 59, 67 ff. BVerfGE Band 3, S. 225, 242 ff.; Band 25, S. 167, 196 ff.; erwogen in BVerfGE Band 49, S. 304, 319 f. Vgl. die Darstellung bei Volkmar Götz, Die Verwirklichung der Grundrechte durch die Gerichte im Zivilrecht, in: Heyde, Wolfgang/Starck, Christian, S. 51 ff. Zum Schutz durch Strafrecht vgl. BVerfGE Band 39, S. 1, 41 f. BVerfGE Band 24, S. 119, 143 ff.; Band 56, S. 363, 381 ff.; Band 64, S. 180, 187 ff.; Band 84, S. 168, 179; Band 92, S. 158, 176 ff. So ausdrücklich für Institutsgarantien Peter A. Windel, Über Privatrecht mit Verfassungsrang und Grundrechtswirkungen auf der Ebene einfachen Privatrechts, in: Der Staat 37 (1998), S. 385 ff.; vgl. auch Ruffert (Anm. 49), S. 76 f., 287 ff.

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das Gebiet des Privatrechts ausgedehnt und dann künstlich wieder eingeschränkt werden müsste.

4. Rücksicht des Privatrechts auf das in den Grundrechten zum Ausdruck gebrachte Menschenbild durch grundrechtliche Schutzpflichten Neben den genannten besonderen Verfassungsnormen‚ die sich unmittelbar auf das Privatrecht beziehen oder gar Privatrecht mit Verfassungsrang sind, lässt sich auf einem weiteren Weg ein normativer Einfluss des Verfassungsrechts auf das Privatrecht begründen. Dabei ist zunächst daran festzuhalten‚ dass die im Grundgesetz formulierten Grundrechte i. d. R. das Staat-Bürger-Verhältnis betreffen.68 Die Grundrechte sind die besondere verfassungsrechtliche Antwort auf die historische Erfahrung‚ dass die öffentliche Gewalt, die für die Sicherung des Friedens und für sozialen Ausgleich verantwortlich ist, die Freiheit der Bürger zu verletzen geneigt ist. Es gibt aber - wie bereits dargelegt - nicht nur Freiheits- und Gleichheitsprobleme im Verhältnis des Bürgers zum Staat‚ sondern auch im Verhältnis der Bürger untereinander‚ insbesondere unter dem Gesichtspunkt der Geschlechtsverschiedenheit und der verschiedenen Mächtigkeit‚ und zwar dies nicht erst seit dem wirtschaftlichen Aufschwung nach dem 2. Weltkrieg. Zu diesen Problemen‚ die bei der Entstehung des Grundgesetzes 1948/49 noch aus der Diskussion der Weimarer Zeit bekannt waren‚ hat sich das Grundgesetz – von der Ausnahme der Art. 3 Abs. 2 S. 1 und Art. 9 Abs. 3 abgesehen – nicht geäußert‚ sondern hat insoweit auf das übernommene Zivilrecht und den zukünftigen Zivilrechtsgesetzgeber vertraut. Diese Entscheidung muss man ernst nehmen und der Grundrechtsauslegung zugrunde legen. Ohne diesen Feststellungen Abbruch zu tun‚ muss jedoch an den Gedanken angeknüpft werden‚ dass Verfassung und Privatrecht nicht beziehungslos nebeneinander stehen.69 Wenn auch im Verkehr der Rechtsgenossen untereinander Leben‚ Gesundheit‚ Freiheit‚ Ehre und Eigentum beachtet werden müssen‚ so folgt dies nicht aus einer unmittelbaren Grundrechtsbindung aller Staatsbürger‚ sondern aus den zivilrechtlich fixierten überkommenen Regeln menschlichen Zusammenlebens‚ auf denen auch die Grundrechte beruhen. Das im Grundgesetz zum Ausdruck gebrachte Menschenbild ist also nicht nur Grundlage für die Grundrechte im Bürger-Staat-Verhältnis‚ sondern als 68 69

Deutlich BVerfGE Band 52, S. 131, 165 f. Dürig (Anm. 64 – Kommentar) Rdnr. 127 ff.; Reinhold Zippelius, in: Dolzer, Rudolf/Waldhoff, Christian/ Graßhof, Karin, Bonner Kommentar zum Grundgesetz, Loseblatt Stand 2009, Art. 1 Rdnr. 34 f.; vgl. ferner allgemein Kirchhof (Anm. 11), S. 329, Fn. 49; Konrad Hesse, Verfassungsrecht und Privatrecht, 1988; Klaus Stern, Staatsrecht, Band III/1, 1988, S. 1563 ff.; Wolfgang Rüfner, Grundrechtsadressaten, in: Isensee, Josef/ Kirchhof, Paul (Hrsg.), Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland, Band V, 1992, § 117 Rdnr. 62 ff.

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objektiv-rechtliche Seite der Grundrechte auch Basis für die Gestaltung des Zivilrechts.70 Das kommt im Hinblick auf die Menschenwürdegarantie dadurch zum Ausdruck‚ dass Art. 1 Abs. 1 GG auch die Pflicht des Staates statuiert‚ die Menschenwürde zu schützen‚ d. h. auch im Verhältnis der Rechtsgenossen untereinander sicherzustellen. Diese Begründung schließt eine analoge Anwendung der nicht auf das Zivilrecht bezogenen Grundrechte im Privatrechtsverkehr aus.71 Es geht immer nur um Rücksicht des Privatrechts auf das in den Grundrechten zum Ausdruck gebrachte Menschenbild. Das Bundesverfassungsgericht sieht dieses in der objektiv-rechtlichen Wirkung der Grundrechte verbürgt.72 Diese Lösung des mit der sog. Drittwirkung angeschnittenen Problems hat den Vorzug‚ dass die auf das Bürger-Staat-Verhältnis zugeschnittenen Grundrechte nicht verbogen werden müssen (rechtsdogmatische Klarheit) und dass der Rückgriff auf das Menschenbild jede gewaltsame Pauschallösung vermeidet (Praktikabilität). Über die das Zivilrecht betreffenden ausdrücklichen Schutz- und Gleichberechtigungsaufträge hinaus wirken die Grundrechte über die aus ihnen durch Verfassungsfortbildung abgeleiteten Schutzpflichten auf die zivilrechtliche Gesetzgebung und Rechtsprechung.73 Den Einfluss der Grundrechte auf die Privatrechtsordnung über besondere Schutzund Gleichberechtigungsaufträge sowie über das in den Grundrechten zum Ausdruck kommende Menschenbild und die daraus folgenden grundrechtlichen Schutzpflichten (vgl. VI am Ende) hat der Gesetzgeber im Wege der Gesetzgebung zu realisieren, indem er die notwendigen Vorschriften erlässt.74 Zur entsprechenden Ausfüllung offener Gesetzesbegriffe ist der Fachrichter zuständig.75 Dieser entscheidet den einzelnen Fall und verwirklicht dabei die der Rechtsprechung aufgetragene Einzelfallgerechtigkeit im Rahmen des Gesetzes. Das Bundesverfassungsgericht darf nur prüfen‚ ob die fachrichterliche Entscheidung – zur Norm verallgemeinert – mit dem heranzuziehenden für das Privatrecht relevanten Gedanken aus dem einschlägigen Grundrecht vereinbar ist.76 Von einer „Wiedergeburt der Rechtsordnung aus dem Geist der Grundrechte“ zu sprechen,77 ist allerdings eine unangemessene Zuspitzung, insbesondere im Hinblick auf das Zivilrecht. 70 71 72 73 74

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BVerfGE Band 52, S. 131, 165 f., spricht von Wertordnung. So auch Dreier (Anm. 5), Rdnr. 98. BVerfGE Band 7, S. 198, 205. BVerfGE Band 7, S. 198, 205. Zum Beispiel BVerfGE Band 14, S. 263 ff.; Band 39, S. 1 ff.; Band 73, S. 261, 270; Götz (Anm. 66), S. 46 ff; Stern (Anm. 70), S. 1565 ff.; Ruffert (Anm. 49), S. 141 ff.; Michael Holoubek, Grundrechtliche Gewährleistungspflichten, 1997, S. 76 ff.; Claus – Wilhelm Canaris, Grundrechte und Privatrecht, 1999, S. 9 ff., weitergehend, aber zutreffend S. 32 (Modifikationen der Wirkungen der Grundrechte), S. 21, 37 f. (Schutzgebotsfunktion der Grundrechte bilde eine überzeugende dogmatische Erklärung für die Drittwirkung der Grundrechte); eine abwehrrechtliche Konstruktion findet sich bei Thorsten Koch, Grundrechtsschutz des Drittbetroffenen, 2000, S. 375 mit weiteren Nachweisen; Ralf Poscher, Grundrechte als Abwehrrechte, 2003, S. 315 ff. Zum Beispiel BVerfGE Band 7, S. 198 ff.; 35, 202 ff.; Götz (Anm. 66), S. 58 ff. Vgl. Christian Starck, Freiheit und Institutionen, 2002, S. 333, 349 ff. So Rainer Wahl, Die objektiv – rechtliche Dimension der Grundrechte im internationalen Vergleich, in: Merten, Detlef/Papier, Hans – Jürgen (Hrsg.), Handbuch der Grundrechte in Deutschland und Europa (HGR),

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Über den notwendigen Ausgleich von privatrechtlichen Rechtspositionen – den Schutz des einen bedeutet Eingriff in die Rechte des anderen – kann hier allgemein gesagt werden‚ dass die jeweilige Intensität des Eingriffs in eine Rechtsposition eingehend analysiert78 und der Ausgleich unter angemessener Wahrung der einander gegenüberstehenden Positionen getroffen werden muss.79 Beispiele: Vertragsfreiheit und Diskriminierungsverbote, Vertragsfreiheit und Verbot der Sittenwidrigkeit‚80 Dauerschuldverhältnis und Tätigkeitsvorbehalte‚ die aus der Menschenwürde fließen‚ Meinungsäußerungsfreiheit und Schädigungsverbote‚81 freie Berichterstattung und Persönlichkeitsrecht‚82 Kunstfreiheit und Persönlichkeitsrecht‚83 Eigentum des Kleinaktionärs und Eigentum des Großaktionärs‚84 Vertragsfreiheit und strukturelle Unterlegenheit eines Vertragspartners.85 Diese Beispiele zeigen‚ dass auch das Zivilrecht selbst Regeln für den Ausgleich zur Verfügung stellt. Diese Regeln werden, wie sich aus den soeben zitierten Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts ergibt, verfassungsrechtlich überprüft. Die Balancierung zwischen den privatrechtlichen Rechtspositionen wird also letztlich vom Bundesverfassungsgericht getroffen. Bei der Balancierung zwischen Pressefreiheit und Persönlichkeitsrecht hat der Europäische Gerichtshof für Menschenrechte auf Klage der Prinzessin Caroline eine Entscheidung des Bundesverfassungsgerichts für menschenrechtswidrig erklärt86, weil das Persönlichkeitsrecht der Prinzessin nicht hinreichendgeschützt worden sei. Damit wird am Schluß deutlich, daß die deutsche Rechtsprechung zu den Grundrechten unter der Kontrolle des Europäischen Gerichtshofs für Menschenrechte, also eines internationalen Gerichtshofs, steht, der normalerweise die Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts billigt87. Im übrigen verdankt der Europäische Gerichtshof für Menschenrechte,

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Band I, 2004, § 19 Rdnr. 1, 53; dagegen warnend Fritz Ossenbühl, Grundsätze der Grundrechtsinterpretation, in: Merten, Detlef/Papier, Hans – Jürgen (Hrsg.), HGR, Band I, 2004, § 15 Rdnr. 49 ff. Wolfgang Rüfner, Grundrechtskonflikte, in: Starck, Christian (Hrsg.), FS BVerfG 1976 (Anm. 25), Zweiter Band, S. 465 ff.; ähnlich Bethge (Anm. 21), S. 323; bestätigend Stern (Anm. 70), S. 1576; aus der Rechtsprechung vgl. BVerfGE Band 18, S. 85, 93; Band 42, S. 163, 168. Hesse (Anm. 6), Rdnr. 354 f.; Friedrich Müller, Normativität und Normstruktur, 1966, S. 213 mit weiteren Nachweisen; aus der Rechtsprechung BVerfGE Band 35, S. 202, 219–244. BVerfGE Band 89, S. 214, 230 - Bürgschaft; vgl. dazu Gerhard Spieß, Inhaltskontrolle von Verträgen – das Ende privatautonomer Vertragsgestaltung, in: Deutsches Verwaltungsblatt 1994, S. 1222 ff.; Joachim Gernhuber, Ruinöse Bürgschaften als Folge familiärer Verbundenheit, in: Juristenzeitung 1995, S. 1086; Peter Derleder, Unterlegenenschutz im Vertragsrecht, in: Kritische Justiz 1995, S. 320, 325 f.; Reinhard Singer, Vertragsfreiheit, Grundrechte und Schutz des Menschen vor sich selbst, in: Juristenzeitung 1995, S. 1133, 1136. BVerfGE Band 7, S. 198, 203 f.; Band 62, S. 230, 243 ff. BVerfGE Band 35, S. 202, 219; Band 120, S. 180, 196 ff. BVerfGE Band 30, S. 173, 195 ff.; Band 119, S. 1, 20 ff. BVerfGE Band 14, S. 263, 282. BVerfGE Band 89, S. 214, 232 f (Bürgschaft); BVerfGE Band 97, S. 169, 175 (Vertragsfreiheit und Kündigungsschutz); BVerfGE Band 81, S. 242, 253 (Wettbewerbsverbot für Handelsvertreter); Band 115, S. 51, 67 ff. Urteil vom 24. 6. 2004 – 59320/00, in: Juristenzeitung 2004, S. 1015; dazu Christian Starck, Praxis der Verfassungsauslegung, 2006, S. 85 – 99. Zu den Deutschland betreffenden Entscheidungen des Europäischen Gerichtshofs für Menschenrechte zur

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dessen Rechtsprechung später begann als die des Bundesverfassungsgerichts, diesem wichtige rechtsdogmatische Strukturen und Maßstäbe für die Prüfung der Fälle und die Begründung seiner Entscheidungen88.

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überlangen Dauer von Gerichtsverfahren siehe Volker Schlette, Der Anspruch auf gerichtliche Entscheidung in angemessener Frist, 1999, S. 32 ff.; Wolfgang Peukert, EMRK-Kommentar, 2. Aufl.1996, Art. 6 Rdnr. 136 ff. (262 ff.). Vgl. Hans Kutscher (Hrsg.), Der Grundsatz der Verhältnismäßigkeit in der europäischen Rechtsordnung, 1985; Jochen Abr. Frowein, in: Frowein/Peukert (Anm. 87), S. 136; zu den Schutzpflichten siehe oben unter VI am Ende.

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O Pacto de São José e o Direito à Vida Desde a Concepção Ives Gandra da Silva Martins*

1

A Academia Brasileira de Direitos Humanos, em oportuníssima obra, objetiva discutir a eficácia dos tratados internacionais sobre tais direitos, tendo me honrado com o convite para escrever sobre o tema. Decidi comentar o artigo 4º do Pacto de São José, assim como ofertar minha opinião sobre a forma como os tratados internacionais sobre os mesmos devem ser tidos no direito interno. Algumas considerações preliminares fazem-se, todavia, necessárias. Em grandes linhas, a vida pode ser vegetal, animal e humana. Há, aproximadamente, três bilhões e oitocentos milhões de anos, sabe-se que há vida no planeta, admitindo-se que a vida humana teria surgido há, pelo menos, 200 mil anos, conforme recentíssimas pesquisas que distenderam em mais 30 mil anos sua existência na Terra. Falo do “homo sapiens”, não dos outros tipos estudados pela Ciência. É pouco, se levarmos em consideração que os dinossauros viveram 150 milhões de anos, extinguindo-se, misteriosamente, há 66 milhões de anos –não é certo que tenha sido pelo choque de um grande meteorito que teria caído sobre o Golfo do México, gerando as correntes quentes existentes até hoje e provocado a extinção de alimentos pela falta de energia solar em face da quantidade de poeira levantada -e a história narrada, a partir dos desenhos de Altamira ou Lescaux (20.000 anos atrás) ou em prosa (6.000 anos), ocupa espaço reduzidíssimo no tempo. O aspecto interessante é que em todas as espécies vegetais, animais e humanas, os seres vivos decorrem –inclusive nas espécies que se auto-multiplicam- da junção, em um determinado momento, de elementos produtores do primeiro instante de vida. Nos animais, o primeiro instante de vida, na esmagadora maioria de peixes, aves, mamíferos e herbívoros, dá-se no encontro do elemento masculino com o feminino, sendo que, no homem, este primeiro instante de vida ocorre com a penetração do esperma*

Professor Emérito das Universidades Mackenzie/UNIFMU/UNIFIEO/UNIP, do CIEE/O ESTADO DE S.PAULO, das Escolas de Comando e Estado Maior do Exército-ECEME e Superior de Guerra-ESG, Presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio-SP.

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Ives Gandra da Silva Martins

tozóide no óvulo, momento em que se forma o zigoto e em que o mapa genético e todo o comando da nova vida passa a dirigir o organismo materno, que o hospeda. Não é mais o organismo materno que comanda a evolução do óvulo, mas o novo ser que impõe suas regras ao corpo hospedeiro, para se desenvolver até o momento de vir à luz. Sobre ter, o zigoto, ainda como uma célula única, não duplicada, quadruplicada etc., todas as características que definirão o futuro ser, não há qualquer dúvida na medicina. Toda a carga genética que lá está na conformação dos 46 cromossomos que determinam a existência do ser humano. Trata-se, pois, desde a primeira célula, de um ser humano e não de um ser animal. Se admitíssemos que ainda não fosse um ser humano, apesar de toda a carga genética e seu mapa definitivo de ser humano já estar plasmado no zigoto, teríamos que admitir que todos nós teríamos sido animais nos primeiros meses de vida e só depois nos transformado em seres humanos. Por esta razão, é que Hipócrates –para evitar homicídios uterinos- já colocou, no seu juramento, que o médico não deve provocar o aborto e a sabedoria dos romanos garantiu, em seu Direito, os direitos do nascituro desde a concepção. Ora, de todos os direitos do nascituro, de longe, o mais relevante, o maior de todos eles, é o direito à vida. Da mesma forma, o Código Civil brasileiro de 1916 e o atual asseguraram, na esteira do Direito Romano, o mesmo princípio, estando, os artigos 4º do antigo Código Civil e 2º do atual, assim redigidos: “Art. 4º A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro” (grifos meus) ...... Art. 2º A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro” (grifos meus) 2.

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D´Ors escreveu “Una innovación, debida en parte a la Jurisprudencia, em parte a la lex Junia Vellaea (deI 28 d. C.3), y ultimada por Juliano, hizo posibIe evitar Ia «ruptura» del testamento mediante la institución o desheredación de los póstumos. i) La Jurisprudencia republicana ya permitia la mención (para instituir o desheredar) de los hijos y nietos (de hijos premuertos) nacidos después de la muerte deI testador «
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