O Terramoto de 1755: uma narração inédita

September 9, 2017 | Autor: Idalina Nunes | Categoria: História de Portugal
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O TERRAMOTO DE 1755: UMA NARRAÇÃO INÉDITA*

Quando se deu o Terramoto do 1º de Novembro de 1755, a vila do Seixal tinha cerca de 329 fogos e 1018 moradores. A população, essa dedicava-se sobretudo à pesca, enquanto uma pequena percentagem trabalhava nas actividades agrícolas. Como paróquia, o Seixal surgiu em 1734 por provisão do então cardeal patriarca de Lisboa, D. Tomás de Almeida. Todavia a igreja matriz havia sido inaugurada uns anos antes, em 1728, no dia de Natal. Mais tarde foi reedificada, devido aos estragos provocados pelo Terramoto de 1755, tendo sido reaberta a 21 de Fevereiro de 1762. O dia do Terramoto de 1º de Novembro de 1755, os efeitos que provocou e os anos que se seguiram, de certo permaneceram na memória oral de várias gerações de seixalenses. A descrição desse acontecimento e os anos subsequentes estão narrados num documento anónimo existente no arquivo da Igreja Paroquial do Seixal e que agora se publica na integra a versão original. Apesar de não ser um texto de todo inédito, pois Pinho Leal** decerto consultou-o e faz-lhe algumas referências no artigo “Seixal” para a obra Portugal Antigo e Moderno, o documento que agora vem à luz do dia é um importante testemunho desse fatídico dia que alterou para sempre o rumo da história portuguesa. “Eis-nos chegados ao tristemente memorável ano de 1755. Pelas nove horas da manhã começando a terra a tremer debaixo dos pés, com tal ímpeto e rapidez correu este fenómeno, e tais estragos fez que mais parecia acção da justiça divina do que um fenómeno natural. Terrível foi este dia para os paroquianos do Seixal. Não bastava a perspectiva horrorosa que apresentava esta povoação sepultando em suas ruínas os próprios moradores, não bastava os gritos e lamentações que de toda a parte se soltava já com receio de que a foice da morte trouxesse ainda os que presenciavam este espectáculo, já aflitos com as perdas de seus pais, filhos e irmãos, vítimas do cataclismo, senão que até virão cair por terra a frontaria da sua Igreja; obra para que tinham concorrido de tão boa vontade, e de cuja alegria ainda ao longe soavam os ecos entre as pessoas que de todos as partes tinham vindo precensear a famosa festividade da dedicação do templo, e o que é mais é que muitos foram vítimas daquelas pedras, que anos antes tinham acarretado com tanto gosto sobre seus ombros para a fabricação da casa de Deus. E mais pesaroso seria aquele dia senão foram os Reverendos *

Publicado originalmente no jornal Tribuna do Povo, 2000. Augusto Pinho Leal (1816-84) Escritor e pintor de arte portuguesa. Viajou por quase todo o país, sendo por isso levado a escrever um dicionário geográfico Portugal Antigo e Moderno, que deixou incompleto. **

Padre Manuel Simões da Estrela e o Padre Miguel Bravo Reimão, que com o seu zelo e dedicação consolavam e animavam uns, enquanto lançavam a outros a ultima absolvição. E tendo-se seguido o aumento inesperado do Tejo; parecendo querer engolir em seu seio toda a povoação, os habitantes desamparam suas habitações e seus haveres, e fugindo ao furor do mar procuraram refugio nas barrocas do Conde de Vila Nova a leste da povoação. Aí numas pobres choupanas e barrocas passaram todo o inverno deste ano, chorando a falta de 32 de seus patrícios, 24 sepultados debaixo das ruínas da Igreja e 8 nas de diferentes casas. Neste mesmo sítio edificaram uma pequena barraca, onde por alguns dias se ajuntaram todos em lágrimas e orações apelando a misericórdia divina, e recebendo os santos sacramentos. Passados três dias trataram de procurar as vítimas deste flagelo para lhes darem sepultura decente e cristã. Outra aflição, porém, muito mais sensível estava reservada para estes pobres paroquianos. Era a lembrança de que por não haver no lugar decente para se colocar o Santíssimo Sacramento, achando-se também em ruínas a antiga ermida da Senhora, era forçoso que os deixasse na orfandade. Havendo de sair da povoação, determinaram que o celeste Maná fosse depositado na Ermida dos Reverendos Padres Trinos, para onde efectivamente se conduziu, juntando-se a Irmandade e o povo numa dolorosa procissão. Quem presenciou a alegria e o entusiasmo, com que há 21 anos se fez a trasladação do Santíssimo Sacramento, como deixaria de sensibilizar-se vendo regressar o Senhor pela mesma rua então tão enfeitada de signais do templo, e agora triste e cheia de ruínas? Quem poderia suster as lágrimas vendo que os salmos de louvor e de alegria, que noutro tempo se entoavam ao Santíssimo Sacramento eram agora substituídos pelos ais, suspiros, e lamentações de todo um povo, que via ausentar-se de junto de si aquele que fazia toda a sua alegria?! Tirado da Igreja o Sacrário, retiraram-se também todas as imagens para se guardarem em lugar reservado durante o tempo das obras. Serviu de alguma consolação a este povo então bem necessitado a afluência de pessoas que em número de 600, afora as de 25 iates, lanchas e caravelas, que para aqui se refugiaram vindas de Lisboa, trazendo consigo muitos géneros de alimentação. Neste estado ficou este povo sem saber que remédio dar a seus males, chorando a ausência de Deus Sacramentado, e vendo-se a cada pessoa na necessidade de fazer celebrar Missas nas casas particulares para administrarem o sagrado viático aos enfermos; o que deu origem a que imediatamente promovessem a reedificação de seu templo, oferecendo cada um o donativo que a sua religião lhe ordenava.

Como porém a obra da reedificação fosse muito dispendiosa, e além disso muito demorada, ardendo todos em desejos de ver junto de si o diviníssimo Sacramento, resolveram que primeiro se reedificasse a Ermida***, afim de para ela ser conduzido o sacrário com o Santíssimo Sacramento. Resolvido isto, e postas mãos à obra, não obstante ser ela levantada desde os fundamentos, de tal sorte trabalharam, sem mesmo exclusão de domingos e dias santificados, que em 23 de Fevereiro estava de todo reedificada, e por consequência em estado de servir-lhes de paróquia, gastando-se nesta obra, e noutras necessárias a quantia de 851:765. Tendo em Dezembro de 1756 rendido os quartos dos barcos a quantia de 941:840 reis jogo de bola – 47:000 reis, Cantigas de Emfito (?) – 2:600 reis e mais coisas, cuja soma foi de 1:000:040 reis. Acabadas as obras, determinaram fazer a trasladação do Santíssimo Sacramento, e para isso escolheram o dia 28 de Fevereiro de 1756, tendo alcançado licença do Senhor Patriarca. No dia designado, estando as ruas o mais bem preparadas se fez a trasladação com uma solene e devota procissão, acompanhadas dos hossanas e alegrias do povo que viu voltar para a sua companhia o seu Senhor Sacramentado, sendo orador nesta solenidade o Reverendo Padre José Manuel Penalvo, presbítero secular, que numa bem tecida e eloquente oração animou este povo, e influiu a prosseguir nas obras da reedificação do templo. Depois disto trasladaram-se também para a Ermida as Sagradas imagens, que se achavam guardadas na igreja e em casas particulares. Animado com a presença do Santíssimo Sacramento os habitantes do Seixal e tal foi a sua alegria, que, mesmo nesse ano, não se deixaram de fazer as solenidades, que se faziam nos anos anteriores inclusive a da Semana Santa e alem da festa que sempre faziam (à Senhora das) Dores na 1ª oitava da Páscoa ou qualquer Domingo de verão, com septavario, e indulgências, começaram neste ano a fazer também no 1º de Novembro uma procissão com a dita imagem com sermão de manhã e de tarde.”

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Dedicada a Nossa Senhora da Conceição, a Ermida localizava-se muito perto da actual Igreja Matriz. Desconhece-se em que ano foi construída, mas foi demolida na década de 30 do século passado.

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