O Transformismo como estilo de vida: um estudo exploratório.

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Instituto de Ciências Sociais Departamento de Sociologia

Transformismo como estilo de vida: um estudo exploratório Tiago Filipe Mendes de Sousa ([email protected]) Sob orientação da Professora Doutora Emília Araújo

Relatório de Investigação

Setembro de 2016

Transformismo como estilo de vida: um estudo exploratório

Tiago Mendes de Sousa

Agradecimentos Quero agradecer, em primeiro lugar, à Universidade do Minho e respectivo Instituto de Ciências Sociais que continuam a proporcionar na licenciatura em Sociologia uma vertente prática de contacto mais directo com as metodologias da Sociologia. Facultando ao discente a capacidade de fazer um pouco de ciência para além do contacto empírico com o objecto de estudo, a aplicação de algumas das teorias aprendidas ao longo do curso. Agradeço à orientação da Professora Doutora Emília Araújo pela ajuda incessante, incentivo, compreensão e conselhos que se tornam fulcrais para nós discentes conseguirmos encontrar um rumo nos estudos a que nos propomos. Em terceiro lugar, quero agradecer por tudo, aos entrevistados que participaram neste estudo, que sem eles não seria possível realizar esta investigação. Agradeço pela forma amável que me receberam nas suas casas, lugares de trabalho e afins. Por todo o respeito demonstrado pela investigação e pelas metodologias adoptadas. Tenho necessidade de agradecer aos meus colegas e amigos que me acompanharam neste percurso, ouvindo os meus receios e ansiedades, que através das suas palavras e actos de constante apoio ajudaram-me a concluir mais uma etapa da minha vida académica. Em último, todavia, não menos importante dos referidos, anteriormente, pelo contrário, agradeço à minha família, sobretudo, à minha mãe, à minha madrinha e à pessoa que me acompanha, diariamente, lidando com os meus problemas, barafustações, ansiedades e incertezas. Obrigado pelo vosso incentivo e constante força transmitida. Muito obrigado a todos,

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Quando o homem atribuía um sexo a todas as coisas, não via nisso um jogo, mas acreditava ampliar o seu entendimento - só muito mais tarde descobriu, e nem mesmo inteiramente, ainda hoje, a enormidade desse erro. De igual modo, o homem atribuiu a tudo o que existe uma relação moral, atirando sobre os ombros do mundo o manto de uma significação ética. Um dia, tudo isso não terá nem mais nem menos valor do que possui hoje a crença no sexo masculino ou feminino do Sol. Friedrich Nietzsche.

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ÍNDICE CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO ................................................................................... 5 CAPÍTULO II - PROBLEMÁTICA …………………………………………………7 CAPÍTULO III - MODELO DE ANÁLISE ............................................................... 29 CAPÍTULO IV - METODOLOGIA ........................................................................... 31 CAPÍTULO V - APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS ...................................... 38 CAPÍTULO VI - DISCUSSÃO DOS RESULTADOS ……………………………..76 CAPÍTULO VII - CONCLUSÃO ............................................................................... 87 CAPÍTULO VIII – BIBLIOGRAFIA ......................................................................... 89 ANEXOS .................................................................................................................... 93

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CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO Temos a arte para não morrer da verdade! Friedrich Nietzsche

A investigação presente é fruto do interesse em conhecer e aprofundar o fenómeno do transformismo, enquanto arte e enquanto forma de trabalho. E que abordaremos como uma performance artística e, ainda, tendo em conta variáveis como a orientação e identidade sexual, assim como a possível ligação à prostituição. É toda a intenção analisar as perspectivas dos indivíduos que exercem o transformismo, aferir se existe estigmatização da profissão e se há preconceitos associados à sua prática. Basear-se-á num estudo onde as condições de vida, a relação com a família, a precariedade laboral, a própria prática de prostituição serão variáveis de análise para inferir sobre os indivíduos que optem por seguir o caminho do transformismo. Será por arte, por vocação, por identidade, por necessidade de um trabalho/ emprego? Seria de todo fundamental para um estudo com maior profundidade analisar as percepções sociais sobre este tema, de modo, a constatar que tipo de estereótipo, imagem está ligada aos indivíduos que exercem o transformismo na sociedade. Todavia. Por escassez de tempo, não será possível haver essa vertente em análise, não obstante, espero que esta investigação venha a ter num futuro algum percursor.

Durante o tempo de investigação, fui-me deparando com alguns termos e conceitos utilizados, que considerei importante referir como notas introdutórias, permitindo desta forma esclarecer estes mesmos conceitos e as suas implicações.

Ao longo do estudo serão expostos alguns casos de indivíduos que, numa expressão de senso comum seriam denominados como travestis. Contudo, no decorrer da minha investigação tive necessidade de elucidar e aprofundar alguns conceitos que dizem respeito às identidades sexuais, originais e de identificação. Há assim

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diferenciações concretas entre o designado indivíduo travesti, transsexual e transgénero. O individuo travesti detém uma identidade de género oposta ao seu sexo biológico, no entanto, não deseja realizar qualquer intervenção cirúrgica para fins de “mudança de sexo”. Este conceito inclui, também, indivíduos que não se identificam como sendo homens ou mulheres, combinam as características dos dois sexos, intitulando-se somente como travestis. O travestismo não é considerado uma orientação sexual, visto que que um indivíduo travesti pode assumir qualquer orientação sexual, como heterossexual, homossexual, bissexual ou assexual. No entanto, diferenciam-se dos travestis no sentido que estes, pelo contrário, pretendem efectuar uma mudança para o sexo oposto recorrendo à intervenção cirúrgica onde são realizados todos os procedimentos como tratamentos hormonais e a mudança do órgão sexual.

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CAPÍTULO II - PROBLEMÁTICA Sexualidade: perspectivas A sexualidade atualmente é um tema em grande discussão, no entanto, só se iniciou de forma genuinamente aberta há poucos anos. Até meados do século passado, a sexualidade era minorada a algo oculto, não se falava ou quando tal se fazia, era para esconder. Lopez (1988) caracteriza, então, a sexualidade até meados do século XX “como tabuizada, perseguida, reduzida, cindida, culpabilizada, obsessiva e carenciada de uma ciência que a estudasse”. Vaz (2000) indica a visão Freudiana como um ponto de mudança, já que pela primeira vez alguém desagregava claramente o instinto sexual da reprodução, a libido absorvia ao prazer não acatando a qualquer ética procriativa. Não prevendo um sexo pré-definido como destino, o desejo seria independente do objecto, sendo a infância o primeiro período dessas manifestações, o que não foi bem aceite na sociedade contemporânea. A partir do fim do século XX, conceberam-se algumas mudanças fulcrais em relação à sexualidade que geraram novas concepções. O reconhecimento científico permitiu fortalecer numerosas investigações psicológicas, sociológicas e fisiológicas. A luta de algumas minorias, sobretudo contrariamente à moral tradicional, os meios de comunicação enquanto veiculadores de informações, a difusão de estudos e a discussão em algumas organizações mundiais, entre elas a OMS, contribuíram para esta mudança. Na concepção de Lopez (1988:27)”a sexualidade, para além de um impulso enraizado no biológico, é igualmente uma realidade interpretada – de sentimentos, emoções, símbolos e condutas – pelo indivíduo e sociedade em que está inserido.” O autor, ainda, defende que esta influência social torna a sexualidade numa “construção social que condiciona as diferentes formas de as viver pelos indivíduos concretos” (Lopez, 1988:27).

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A Organização Mundial de Saúde (OMS) entende a sexualidade como “ uma energia que nos motiva a procurar amor, contacto, ternura, intimidade; que se integra no modo como nos sentimos, movemos, tocamos e somos tocados; É ser-se sensual e ao mesmo tempo sexual; A sexualidade influencia pensamentos, acções e interacções, e por isso, influencia também a nossa saúde física e mental” (Caetano, 2003).

Orientação sexual: concepção e percepção

A American Psychological Association (APA, 2006) considera a Orientação Sexual como uma atracção emocional, romântica, sexual ou afectiva a indivíduos de um determinado sexo. A Orientação Sexual é encarada como uma das quatro componentes da sexualidade, sendo as restantes componentes: o sexo biológico (sexo masculino ou feminino atribuído no nascimento); a identidade de género, correspondendo ao sentido psicológico de ser masculino ou feminino; e o papel social do género, ou seja a extensão do que é considerado na sociedade como o comportamento feminino e masculino (APA, 2006). Geralmente, são reconhecidas três tipos de orientação sexual, isto é, heterossexual, homossexual e bissexual. Heterossexual é o indivíduo que sente atracção por outro indivíduo do sexo oposto, homossexual, atracção por indivíduos do mesmo sexo, já um indivíduo bissexual sente atracção por ambos os sexos. Orientação Sexual diferencia-se de comportamento sexual porque se alude aos sentimentos e às concepções que os indivíduos têm sobre si próprios e do que se julgam ser. O comportamento sexual é a configuração como os indivíduos se comportam numa situação sexual, podendo esses mesmos indivíduos expressar, ou não, a sua orientação sexual nos seus comportamentos (APA, 2006). A American Psychological Association (APA, 2006) considera, ainda que, a orientação sexual se processa num contínuo da vida do indivíduo, que não tem que ser exclusivamente homossexual ou heterossexual, podendo sentir variados graus de atracção por ambos os géneros.

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Numa sociedade caracterizada pela heterogeneidade, onde imperam várias formas de ver e viver a realidade, há realidades pouco conhecidas ou pouco estudadas no meio académico. Uma dessas realidades é o transformismo. O transformismo pode fazer parte de uma forma de arte, onde homens vestem-se, interpretam mulheres e viceversa ou podemos incluir o transformismo no conceito de transgéneros. Antes de prosseguir, com a tentativa de definição de transformismo, irei explicar o que se entende por indivíduos transgéneros ou transgeneridade/ transexualidade. O conceito de transgénero refere-se à condição onde a identidade de género de um indivíduo é diferente daquela atribuída ao género designado no nascimento. Depois de uma análise ao termo, constatei que, mais recentemente, a palavra transgénero tem sido utilizada para definir indivíduos que estão constantemente em transição entre um género e outro. O prefixo trans significa "além de", "através de". Transgénero é um conceito abrangente que engloba grupos diversificados de pessoas que têm em comum a não identificação com comportamentos e/ou papéis esperados do sexo biológico, determinado no seu nascimento. Esses grupos não são homogêneos dado que a não identificação com o género de nascimento se dá em graus diferenciados e reflectem realidades diferentes. (fonte: Wikipédia)

Transformismo e arte

Conforme mencionei o transformismo poderá ser entendido sob duas perspectivas diferentes. Como forma artística ou como identidade de género, isto é, como um transgénero “ … travestis, transformistas, drag queens e transexuais reconstroem géneros, revelando que essa categoria não possui uma estrutura binária, antes, refere-se a multiplicidades” (Castro, 2010:168). Focando no transformismo como forma de arte, é necessário recorrer à história humana para entender e contextualizar o transformismo como uma forma artística. Na sua acepção mais primária o transformismo é definido como o processo mediante indivíduos de um determinado sexo, em ocasiões particulares, adoptam uma postura

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diferente do seu género, desde a maquilhagem, roupa, gestos e até forma de falar. Todavia, o transformismo está patente na história humana desde o teatro grego da antiguidade, aos rituais religiosos de algumas culturas latino-americanas, ao próprio teatro kabuki Japonês é em todo visto como forma de transformismo, passando até às conhecidas representações do dramaturgo europeu William Shakespeare, durante a última parte do século XVI. Na ópera tradicional chinesa, as personagens femininas são protagonizados por homens. Na vertente mais contemporânea, consagrados actores representaram papéis nos quais vivenciaram outro género que não o seu. Por exemplo, o actor Dustin Hoffman, em “Tootsi” (1982) e Antonio Gasalla, em “Esperando la carroza” (1985). Considerados paradigmas do cinema, a actuação e o transformismo é tido com profundo valor artístico. É, a meu ver, fundamental analisar o teatro japonês para melhor entender a ideia que gira em torno do transformismo. A necessidade de representar um género que não o de nascimento. A história do kabuki iniciou em 1603, quando Okuni, uma miko do santuário Izumo Taisha, passou a praticar um estilo de dança inovador, de estilo dramático, na cidade de Kyoto. Este estilo consistia nestas actrizes representarem papéis masculinos e femininos, fazendo encenações caricatas sobre a vida quotidiana. O estilo ganhou uma rápida notoriedade. Tendo imenso sucesso, formaram-se rapidamente grupos rivais e o kabuki nasceu como uma dança de estilo dramático exercida por mulheres, hoje, apresenta-se muito diferente da sua apresentação moderna. Todo este sucesso decorreu das sensuais e incentivadoras actuações que eram realizadas sendo que grande parte destas actrizes estavam predispostas a prostituírem-se e os indivíduos masculinos que assistiam a estas actuações tinham a liberdade de solicitar os serviços destas mulheres. E, é por esta mesma razão que durante o período Edo, o kabuki era descrito como cantora prostituta e dançarina. O kabuki foi, então, praticado por actores do sexo masculino denominados de Yoro-kabuki.. Os actores masculinos interpretavam papéis de ambos os géneros. O

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teatro permaneceu popular e preservou um foco do estilo de vida urbana até aos tempos actuais. No Japão dos tempos modernos, o kabuki continua notável, sendo a arte mais popular dos estilos tradicionais de drama do Japão.Vários dos seus actores conseguem frequentemente trabalhos no cinema, como na televisão. Um exemplo, é o conhecido onnagata Bandō Tamasaburō V que teve participações em peças de teatro e filmes, às vezes, interpretando papéis femininos. Este estilo artístico desponta em várias obras de cultura popular japonesa, como por exemplo em “animes”. Para além das colossais obras teatrais realizadas em Tóquio e Kyoto, existem outros teatros por todo o país, nomeadamente em Osaka, que desenvolvem este estilo de arte.

Corpo e identidade A ideia de uma única identidade tem vindo a perder força na sociedade actual caracterizada pela multiplicidade, pelas mais diferentes formas de sentir, pensar e agir. Travestis, transformistas, drag queens e transexuais são exemplos para reflectir sobre esta questão de identidade. Com características diferentes todas têm em comum o facto de se vestirem com um género diferente do seu nascimento. Umas por identidade sexual, outras por trabalho sexual associado ao travestismo e outras como forma de arte associados ao transformismo. A noção de incorporação é necessária para pensar em todo este fenómeno, pois há a necessidade da construção de uma identidade que será através do corpo um meio de expressão, “A alteridade provocada por elas é percebida por seu corpo que transmite um significado, mas também expressa a performance.” (Castro, 2010:168). Antes de prosseguir, é fulcral, tentar definir o que são travestis, transformistas, transexuais e drag queens. As travestis são pessoas que se vestem com roupas do sexo oposto, mas não transformam o corpo com hormónios, silicone e demais. Mas afinal, o que é ser uma travesti? Para Don Kulick (2008): “as travestis em momento algum se consideram homens, muito menos mulheres.” Portanto, o autor observa “que o núcleo central da sua subjectividade é o facto de sentirem atração física e sexual por homens.

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Elas alteram o corpo irrevogavelmente para que este se assemelhe ao do sexo oposto, sem, contudo, reivindicar a subjectividade própria ao sexo oposto” Seguindo esta lógica, Pelúcio (2005) descreve que ser travesti é “ (...) um processo, nunca se encerra. Construir um corpo e cuidá‐lo é uma das maiores preocupações das travestis. Elas estão sempre à procura da "perfeição", o que significa "passar por mulher", uma mulher bonita e desejável, geralmente "branca" e burguesa. À procura dessa imagem melhoram os seus traços, bronzeiam os seus corpos, adornam‐ se com roupas de remetem a mulheres glamourosas, escolhem nomes de celebridades submetendo‐se às normas estabelecidas.” Neste caso concreto em que o corpo sofre constantemente intervenções oriundas da vontade, um desejo que leva as travestis a se construírem, sistematizando essas construções a partir de referências heteronormativas, sujeitas a padrões estéticos e a princípios morais afinados com o que o senso comum considera normal, belo e desejável (Pelúcio, 2007). O Transexual diferente da travesti, modifica o seu corpo clinicamente, faz cirurgia de transgenitalização e, consequente, injecção de hormónios, também, aplica silicone. Segundo Ana de Castro “a diferença entre as transexuais e as travestis, é que as primeiras afirmam que “nasceram com o corpo errado”. Seriam “mulheres presas num corpo de homem”. O órgão sexual é visto como um apêndice, portanto, deve ser retirado. Assim, a transexual é aquela que fez ou deseja fazer cirurgia, assim como, passar por todo o processo de mudança de sexo. Para Miguel Vale de Almeida (2004): “ (...) quando se fala de corpo em antropologia é incontornável o legado de Marcel Mauss, para quem toda a expressão corporal era aprendida, uma afirmação entendível no quadro da sua preocupação em demonstrar a interdependência entre os domínios físico, psicossocial e social. Tanto Mauss como Van Gennep mostraram que as técnicas do corpo correspondem a mapas socioculturais do tempo e do espaço. Assim, o corpo humano nunca pode ser encontrado num qualquer suposto “estado natural”. “ (Vale de Almeida, 2004:4).

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Para o antropólogo Michael Jackson (1989:45) “a subjectividade está localizada no corpo, contrariando assim a ideia de cultura como algo de superorgânico. Usando um conjunto de ideias fenomenológicas e terapêuticas…” Este autor não concorda com a perspectiva simbolista e, afirma que, o corpo não reflete apenas a sociedade. Ele não é somente inscrito, como nas teorias de Mary Douglas e Durkheim, constitui-se a si próprio como body subject. O próprio entendimento decorre da empatia, do envolvimento e da experiência prática e não dos pressupostos gerais. O uso do corpo compõe a base para o alcance do sentimento de viver em comunidade com os outros. Na obra de Foucault , o corpo também aparece como o “lugar” privilegiado para a manifestação do poder, susceptível de receber uma disciplina por via de normas sociais. Segundo o autor, esse poder é um biopoder pois por estar dentro de uma lógica de normatização tem a capacidade de controlar toda a sociedade. É importante destacar: Foucault põe lado-a-lado o denominado dispositivo da aliança e o da sexualidade. O primeiro é ligado ao direito (lícito/ilícito) e à reprodução, ainda, perdurando através de formas tradicionais, particularmente, na família. A interdição, por exemplo, é típica deste dispositivo, como regra, há o incesto ou mesmo segregação. Mas o dispositivo da sexualidade ao qual Foucault se refere segue uma nova lógica, muito ligada ao sexo como negócio do Estado e para a vigilância (não interdição). Autonomização do sexo em relação ao corpo: cria-se a medicina das perversões e os programas de eugenia. Não se reduz a utilização do prazer para engendrar a força de trabalho, uma vez que, também, se aplica às classes privilegiadas, embora esteja ligado a uma certa hegemonia burguesa (o corpo se valoriza, bem como o modelo de família e um modelo de sexualidade própria). Como se percebe, é preciso estar atento às divagações do autor, pois as suas ideias são conectadas de modo dialético: a cultura do corpo cria certa sexualidade, por isso, não pode ser vista como castração, embora possa apresentar limites, por exemplo, em relação às classes (como também foi o caso do nazismo/racismo). Foucault apresenta um conceito para sexualidade: “é o conjunto de efeitos produzidos nos corpos, nos comportamentos, nas relações sociais, por um certo

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dispositivo pertencente a uma tecnologia política complexa” (Foucault, 1988:139). Ocorre, portanto, a difusão de tal dispositivo, e o elemento repressor é que vai compensar a difusão, desunindo em classes. Não sendo a hipótese repressiva o centro da sua síntese, esta ressurge quando o dispositivo em questão (a sexualidade como apreende Foucault) entra no nível da difusão: “doravante, a diferenciação social não se afirmará pela qualidade sexual do corpo, mas pela intensidade da sua repressão” (Foucault, 1988:141). Se há a repressão, a confissão funciona como forma de injunção para prover a sexualidade. Repreende-se o que é incitado. Há, portanto, uma nova organização sobre a vida, chamada de Biopoder. A sociedade normalizadora acontece sobre a vida e o corpo (não mais sobre o direito de morte). O dispositivo da sexualidade é quem levanta tais questões, e cria o próprio desejo e o próprio sexo. Neste sentido, Foucault utiliza a palavra “sexo” como se fosse a própria relação sexual, algo parecido ao coito. E conclui a sua obra com uma previsão perturbadora: “Não acreditar que dizendo-se sim ao sexo se está dizendo não ao poder; ao contrário, se está seguindo a linha do dispositivo geral da sexualidade” (Foucault, 1988:171). Ou seja, as relações e o desejo são fruto da própria construção social. Aceita-se que não há essencialismos, identidades naturais ou algo do tipo. O próprio sexo estaria apontado em tal dispositivo. A obra Foucaultiana é inquietante e deixa algumas hesitações, especialmente, no que incide ao comportamento do sujeito perante tal dispositivo. No entanto, este é apenas o primeiro capítulo de três, reservando aos próximos a continuação deste “épico” sobre a história da sexualidade. Cria-se uma série de nomes e sujeitos, tais como os exibicionistas, fetichistas, automonossexualistas,

mixoscopófilos,

ginecomastos,

presbiófilos,

invertidos

sexoestéticos, mulheres disparêunicas, entre outros. Os quais, embora já existissem, não eram postos à tona no discurso. A mecânica do poder que ardorosamente persegue todo esse despropósito só pretende suprimi-lo atribuindo-lhe uma realidade analítica, visível e permanente: encrava-o nos corpos, insere-o nas condutas, torna-o princípio de

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classificação e de inteligibilidade, constituindo em razão de ser e ordem natural da desordem. O controlo funciona como mecanismo de dupla intenção: prazer e poder. Há a proliferação de prazeres específicos e a multiplicação de sexualidades disparatadas. É preciso estar atento para as verdadeiras intenções de Foucault, ou seja, rejeitar a ideia de que o sexo é prioritariamente interditado. Os discursos e os sujeitos (que passam a ter um nome) são exemplo disso. É que Foucault denomina de scientia sexualis, uma produção de verdade sobre a sexualidade. Muito diferente do que seria uma Ars Erotica, arte de iniciação, não prevalecente no ocidente. O que prevalece no nosso contexto social é a confissão. O indivíduo, durante muito tempo, foi autenticado pela referência dos outros e pela manifestação do seu vínculo com outrem (família, lealdade, protecção), posteriormente passou a ser autenticado pelo discurso da verdade que era capaz de (ou obrigado) ter sobre si mesmo. “A confissão da verdade inscreveu-se no cerne dos procedimentos de individualização pelo poder”. (Foucault, 1998:67) A interdição aqui funciona não como elemento central, mas como parte de um dispositivo muito mais abrangente. Se por um lado há a obrigação (interdição) de esconder o sexo, há o dever de confessá-lo, e como ritual, um interlocutor e uma instância que requer a confissão. Em princípio, o sexo esconder-se-ia do sujeito, cabendo a um exame clínico resgatá-lo (inconsciente). O interlocutor, hermeneuticamente, interpreta o sexo do outro. Cria-se um poder-saber sobre o sujeito: “Nós dizemos a sua verdade, decifrando o que dela ele nos diz, e ele nos diz a nossa, liberando o que estamos oculto” (Foucault, 1988:79). Assim é criado o dispositivo da sexualidade, não sobre a repressão dos instintos (externo), mas, essencialmente, sobre leis que regem o desejo que são a constituição do próprio desejo, logo, interno, e criando o próprio sujeito e as identidades tal e qual a entendemos hoje.

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Foucault afirma que esta vontade de verdade actua até mesmo ao nível do sexo biológico o que foi alvo de críticas pela teórica Judith Butler nos “Problemas de Género” (2008), para a qual o próprio sexo é, também, uma construção social. Porém, Foucault apenas queria chamar a atenção para deslocar os dispositivos do poder da sua lógica negativa, da interdição e da censura. Foucault almejava tornar positivo o poder, e é bem provável que acatasse as ideias de Butler, uma vez a autora em questão desmantela e positiva o poder, inclusivé, a nível biológico e não, apenas, como atuando sobre ele. Este poder é esboçado pelo próprio direito, logo, “é preciso construir uma analítica de poder que não tome mais o direito como modelo e código” (Foucault, 1988:100), ou seja, “pensar ao mesmo tempo, o sexo sem a Lei e o poder sem o rei” (Foucault, 1988:101). Foucault assim entende o poder “Multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas da sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte, os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as desfasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esforço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação de Leis, nas hegemonias sociais (Foucault, 1988:102-103). O poder é entendido na sua forma complexa, como potência e relação, e não como estrutura ou instituição. Em suma, o poder apresenta-se em vários pontos, o poder é imanente a outros sistemas, o poder vem de baixo, as relações de poder são objectivas e intencionais, o poder cria resistência. Assim temos as “quatro” regras, regra de imanência, onde o sexo é como um objecto possível, a regra das variações contínuas, onde as matrizes não se fragmentam, por exemplo, ao focar a sexualidade da criança, os especialistas reformulam a dos adultos, a regra do duplo condicionamento, isto é, os dispositivos não são categorizados, família e Estado – mas enlaçam-se e sobrepõem-se, a regra da polivalência táctica do discurso que se apresenta descontínuo, por exemplo, nominar a sexualidade liberalizou-a para falar por si.

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A descrição de poder em Foucault é um tanto abstracta. Todavia, o autor harmoniza esta impressão ao ir directo à construção histórica dos conjuntos estratégicos associados à sexualidade: a histerização do corpo da mulher; pedagogização do sexo da criança; socialização das condutas de procriação e psiquiatrização do poder perverso. São estes exemplos que fortalecem a sua tese da produção da sexualidade e não da interdição. A sexualidade está ligada a dispositivos recentes de poder, a articulação que tem como base, desde então, não se ordena em função da reprodução; esta articulação, desde a origem, vinculou-se a uma intensificação do corpo, à sua valorização como objecto de saber e como elemento nas relações de poder. (Foucault, 1998:118).

É importante salientar que Foucault põe ao mesmo lado o denominado dispositivo da aliança e o da sexualidade. O primeiro é ligado ao direito e à reprodução, ainda persistindo através de configurações tradicionais, especialmente na família. A interdição, por exemplo, é característica deste dispositivo; como regra, há o incesto ou mesmo segregação. Mas o dispositivo da sexualidade ao qual Foucault se refere segue uma lógica diferente, muito ligada ao sexo como negócio do Estado e para a vigilância, autonomização do sexo em relação ao corpo, gera-se a medicina das perversões e os programas de eugenia. Não se minora o uso do prazer para causar a força de trabalho, uma vez que, também, aplica-se às classes privilegiadas, apesar de, estar ligado a uma certa hegemonia burguesa, valorizando o corpo, bem como o modelo de família e um modelo de sexualidade própria. Enfim, Foucault apresenta um conceito para sexualidade: “é o conjunto de efeitos produzidos nos corpos, nos comportamentos, nas relações sociais, por um certo dispositivo pertencente a uma tecnologia política complexa” (Foucault, 1998:139). Ocorre, portanto, a difusão de tal dispositivo, e o elemento repressor é que vai compensar a difusão, separando em classes.

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Foucault rejeita a hipótese repressiva, pois ela não é o núcleo da sua análise. Porém, ela surge quando o dispositivo em questão, a sexualidade como a compreende Foucault, entra na esfera da difusão: “doravante, a diferenciação social não se afirmará pela qualidade sexual do corpo, mas pela intensidade de sua repressão” (Foucault, 1998:141). Se há a repressão, a confissão funciona como forma de coação para fornecer a sexualidade.

Ora, censura-se o que é incitado. Há, portanto, uma nova organização sobre a vida, chamada de Bio-poder. A sociedade normalizadora se faz sobre a vida e o corpo, não mais sobre o direito de morte. O dispositivo da sexualidade é quem ergue tais objectos, e cria o próprio desejo e o próprio sexo. Neste sentido, Foucault emprega a palavra “sexo” como se fosse a própria relação sexual, algo semelhante ao coito. E finda a sua obra com uma previsão transtornante: “Não acreditar que dizendo-se sim ao sexo se está dizendo não ao poder; ao contrário, se está seguindo a linha do dispositivo geral da sexualidade” (Foucault, 1998:171). Ou seja, as relações e o desejo são consequência da própria construção social. Não há essencialismos, identidades naturais ou algo do tipo, isto é, o sexo estaria inscrito em tal dispositivo.

Corpo, género e identidade Segundo Miguel Vale de Almeida “nos últimos vinte anos tem-se assistido, quer do lado da antropologia quer do lado da sociologia, a uma tentativa para ultrapassar a separação radical entre conhecimento e prática, descentrando a construção cognitiva do conhecimento, pelo que as novas interpretações procuram abolir as dualidades entre mente e corpo, o que advém do reconhecimento da dificuldade de as pessoas terem e serem (e fazerem) corpos.” Miguel Vale de Almeida além de fazer uma ligação entre estas duas ciências faz também uma ligação entre os conceitos de cognitivismo e fenomenologia. O autor defende ”Bourdieu toma de Mauss o conceito

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de habitus, como repetição de práticas corporais inconscientes e mundanas. Procura assim ultrapassar o dualismo LéviStraussiano entre estruturas mentais e o mundo dos objectos materiais. O objectivo metodológico de Bourdieu para uma teoria da prática é delinear uma terceira ordem de conhecimento para lá tanto da fenomenologia como de uma ciência das condições objectivas da possibilidade da vida social (in Csordas 1990)” (Vale de Almeida, 2004:11). Através do conceito de habitus, pretende pôr fim à dualidade corpo e mente e ainda a signo e significado. Miguel Vale de almeida defende, ainda que, mesmo que este conceito “tenha sido introduzido por Mauss para se referir à totalidade dos usos culturalmente padronizados do corpo numa sociedade, Mauss antecipou que o corpo era simultaneamente objecto de técnica e meio técnico, bem como identificou a natureza subjectiva da técnica.” (Vale de Almeida, 2004:12) Porém, o autor estabelece uma relação intrínseca com Bourdieu, em que defende que o autor “vai mais longe do que a ideia do habitus como colecção de práticas, definindo-o como um sistema de disposições duradouras, princípio inconsciente e colectivamente inculcado para a geração e estruturação de práticas e representações. Este princípio não é mais do que o corpo socialmente informado.” (Vale de Almeida, 2004:12) No entanto, a abordagem da performance ganha um novo e actual sentido quando associada a uma análise de género e sexualidade que, baseada na influência da designada Teoria Queer, que decorreu na sequencia de uma teoria social feminista e do desconstrucionismo, desconstruindo as identidades, sugerindo identificações apoiadas em performances da corporalidade. A teoria queer, oficialmente queer theory (em inglês), é uma teoria sobre o género que afirma que a orientação sexual e a identidade sexual ou de género dos indivíduos são o resultado de um constructo social e que, portanto, não existem papéis sexuais essencial ou biologicamente inscritos na natureza humana, antes formas socialmente variáveis de desempenhar um ou vários papéis sexuais. Não é possível falar em Teoria Queer sem pensarmos na categoria de género como sendo algo fluido, socialmente construído, performado e sistêmico. Conforme a

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autora Teresa de Lauretis: “um sistema sexo-semiótico, de interpretação dos dados biológicos como produtores de diferenças, que não são per si, mas produtos da interpretação arbitrária dos “marcadores biológicos””. Existem, ainda segundo a autora, “Tecnologias de Género”, ou seja, “construção de técnicas de viver que determinam como um sujeito pode se inserir na sociedade segundo normas específicas de “ser homem” ou “ser mulher””. Uma das autoras mais influentes da teoria queer, ao longo dos últimos anos, tenha sido Judith Butler. Para a autora, o género é uma falsidade cultural, o efeito performativo de acções repetitivas. A razão pela qual explica não haver identidade de género por trás das manifestações do género é a de que a identidade é constituída pelas próprias expressões que são olhadas como o seu resultado. Butler contesta essa naturalização através da repetição removida da sua performatividade, chamando à atenção para os procedimentos que solidificam as identidades sexuais. Uma dos estratagemas sugeridos é a repetição paródica das normas de género. Foca, pois, no drag, qual seria, a meu ver, a expressão da própria atitude “queer”. O género é, então, performativo, não porque seja algo que o indivíduo assume intencionalmente, mas porque, através da repetição, consolida-o. Não se trata, todavia, do mesmo que simplesmente “vestir roupa”: o constrangimento é o pré-requisito da performatividade. Apesar desta ressalva tente ultrapassar o carácter difuso da teoria do poder de Foucault, não indica com a objectividade, quais as instituições e lugares de poder onde o género e a sexualidade são formados e reproduzidos.

Montagem de outro eu Sociologia e identidade de género Na sociologia, identidade de gênero refere-se ao género no qual a pessoa se reconhece e ao género que é socialmente reconhecido através dos signos verbais e nãoverbais (roupas, corte de cabelo, gestos, entre outros). Na primeira noção, considera-se que a identidade de género é fixa, isto é, algo biológico que nasce com o individuo, não sofrendo variações, independentemente do papel social de género vivido pelo

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individuo. Já na segunda noção, a identidade de género pode, de algum modo, ser constrangida por uma diversidade de contextos e configurações sociais como a etnicidade, o trabalho, a religião, os valores individuais e da própria família. É fulcral ressalvar que identidade de género não está intimamente ligada à sexualidade.

Existem as situações em que os indivíduos são marginalizados, havendo exclusão e estigma, diariamente, devido à própria sociedade onde estão inseridos não os considerarem “normais”. Por serem associados a “espécies” caracterizadas por serem fora do normal, incomum, diferentes a sociedade tende a afastar‐se delas e, ainda, exercer um forte preconceito sobre as pessoas ditas “incomuns”, denominandoas de perigosas e más. “Quase sempre deixam de ser vistas na sua totalidade enquanto pessoas com potencialidades, com capacidade de acção” (Goffman, 1993).

O transformismo e a transexualidade. Conceitos que se confundem. Toda a sociedade é caracterizada pela heterogeneidade, muitos comportamentos e formas de agir em sociedade são erroneamente interpretadas. Muitas são as interpretações que os indivíduos assumem de determinados grupos sociais. Por exemplo, na vida nocturna as pessoas deparam-se com muitos comportamentos de outros indivíduos. Comportamentos esses que, muita das vezes, são associados a grupos sociais. É comum, ver-se uma diversidade de máscaras, géneros e mutações corporais, e maioritariamente, confundem as coisas, levando-as a criticar os outros que são diferentes dos demais indivíduos que compõem a sociedade, como se tudo fossem comportamentos associados só a determinados indivíduos, como se todo o travesti, transformista, transgénero e demais fossem todos um só género, máscara ou qualquer outro tipo de palavreado (com sentido pejorativo) que possam usar. Até generalizações são constatadas no seio social, ou seja, associam pessoas travesti, transformista, transexual ou até invadindo um campo mais perigoso qualquer membro da comunidade LGBT associados à prostituição. O que estudos realizados não verificam qualquer ligação entre a orientação sexual e a prática da prostituição.

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Segundo Werzer-Lang et al. (1994)1 Esta situação poderá estar conectado com o facto de o número de prostituição do sexo feminino ser superior à prostituição do sexo masculino. Não obstante, na opinião do autor, tem vindo a verificar-se um gradual aumento da percentagem de indivíduos do sexo masculino que se prostitui, sendo estes ou não, homossexuais, travestis ou transsexuais. Há a ideia pré-concebida que a prostituição dos homens esteja comummente associada à homossexualidade, quer os prostitutos, quer os clientes, normalmente, identificam-se como heterossexuais, podendo ou não haver contacto homossexual. Para alguém enveredar pela prostituição, a pessoa não tem que ser homossexual ou heterossexual. Isto é, a prostituição não está ligada a uma determinada orientação sexual. Qualquer indivíduo, seja homem ou mulher, poder-se-á dedicar a este mundo alternativo. Os indivíduos que entram no mundo da prostituição, fazem-no sobretudo pela falta de condições

socioeconómicas

para

garantirem

sobrevivência,

havendo

casos

excepcionais, de indivíduos que se dedicam à prostituição por prazer ou diversão.

Transformismo: hoje em dia O transformismo foi visto, durante muitos anos, como uma não-arte ou até como algo associado à prostituição, à banalidade ou algo popular. Até, então, era dentro da comunidade LGBT que aconteciam os shows de transformismo. Hoje em dia, alcançam um espaço mais vasto, seja nos meios de comunicação ou até mesmo dentro da representação em geral. A arte de um homem se transformar numa mulher e viceversa tornou-se algo mais comum. Em relação ao próprio público, se antes era direcionado mais ao público LGBT, nos dias actuais, abarca um público heterogéneo

1 In Martins (2004) Martins, J. (2004). Prostituição: Percursos (com) sentidos. Tese de Mestrado. Lisboa: Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia.

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“algumas das causas que tornaram possível o desdobramento dessa linguagem (assim como um maior acolhimento pelo público de diferentes esferas sociais) foram a crescente mudança de pensamento da sociedade …” (Amanajás, Igor, sd: 2) “Quando o homem atribuía um sexo a todas as coisas, não via nisso um jogo, mas acreditava ampliar o seu entendimento: - só muito mais tarde descobriu, e nem mesmo inteiramente ainda hoje, a enormidade desse erro. De igual modo, o homem atribuiu a tudo o que existe uma relação moral, atirando sobre os ombros do mundo o manto de uma significação ética. Um dia, tudo isso não terá nem mais nem menos valor do que possui hoje a crença no sexo masculino ou feminino do Sol.” (Nietzsche,2008:27)

Cada um(a) de nós é uma pessoa única, que porém tem características comuns a toda a humanidade. Essas que nos identificam com alguns e nos tornam diferentes de outros, como a região em que nascemos e crescemos, a nossa raça, a classe social, se temos ou não uma religião, idade, as nossas habilidades físicas, entre outras que marcam a diversidade humana. Crescemos a ser ensinados que os homens e mulheres têm determinados padrões comportamentais porque “é da sua natureza”, e costumamos realmente observar isso na sociedade. Entretanto, o facto é que a grande diferença que percebemos entre homens e mulheres é construída socialmente, desde o nascimento, quando meninos e meninas são ensinados a agir de acordo como são identificadas, a ter um papel de género “adequado”. Como as influências sociais não são totalmente visíveis, parece para nós que as diferenças entre homens e mulheres são naturais, totalmente biológicas, quando, na verdade, parte delas é influenciada pelo convívio social. Além disso, a sociedade em que vivemos dissemina a crença de que os órgãos genitais definem se uma pessoa é homem ou mulher. Porém, essa construção do sexo não é um facto biológico, é social.

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Para a ciência biológica, o que determina o sexo de uma pessoa é o tamanho das suas células reprodutivas (pequenas: espermatozóides, logo, macho; grandes: óvulos, logo, fêmea), e só. Biologicamente, isso não define o comportamento masculino ou feminino das pessoas: o que faz isso é a cultura, a qual define alguém como masculino ou feminino, e isso muda de acordo com a cultura de que falamos. As mulheres de países nórdicos têm características que, para a nossa cultura, são tidas como masculinas. Ser masculino no Brasil é diferente do que é ser masculino no Japão ou mesmo na Argentina. Há culturas para as quais não é o órgão genital que define o sexo. Ser masculino ou feminino, homem ou mulher, é uma questão de género. Logo, o conceito básico para entendermos homens e mulheres é o de género. Sexo é biológico, género é social. E o género vai além do sexo: O que importa, na definição do que é ser homem ou mulher, não são os cromossomas ou a conformação genital, mas a autopercepção e a forma como a pessoa se expressa socialmente. Todos nós vivenciamos, em diferentes situações e momentos da vida, inversões temporárias de papéis determinados para o género de cada um: somos mais ou menos masculinos, fantasiamo-nos, interpretamos, etc. Para algumas pessoas, a vivência de um género discordante do sexo é uma questão de identidade, é o caso das pessoas conhecidas como travestis, e das transexuais, que são tratadas, colectivamente, como parte do grupo chamado de “transgénero” Tem sido utilizado o termo “transfobia” para se referir a preconceitos e discriminações sofridos pelas pessoas transgénero, de forma geral. Muito, ainda, tem de ser enfrentado para se chegar a um mínimo de dignidade e respeito à identidade das pessoas transexuais e travestis, para além dos estereótipos. Um deles leva alguns a esquecer que a pessoa transgénero vivencia outros aspectos da sua humanidade além dos relacionados à sua identidade de género: que não a de ser uma pessoa transexual, isto é, ela tem raça, classe, origem geográfica, religião, idade, uma história de vida, para além da transexualidade. Entre as pessoas de um mesmo grupo há grande diversidade: as pessoas brancas não são todas iguais, como não são as pessoas negras, mulheres, homens, indígenas, transexuais e tantas outras.

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A transexualidade é uma questão de identidade. Não é uma doença mental, não é uma perversão sexual, nem é uma doença debilitante ou contagiosa. Não tem nada que ver com orientação sexual, como geralmente se pensa, não é uma escolha nem é um capricho. Ela é identificada ao longo de toda a História e no mundo inteiro. Uma parte das pessoas transexuais reconhece essa condição desde pequenas, outras tardiamente, pelas mais diferentes razões, em especial as sociais, como a repressão. A verdade é que ninguém, hoje, sabe por que alguém é transexual, apesar das várias teorias. Umas dizem que a causa é biológica, outras que é social, outras que mistura questões biológicas e sociais. O que importa é que a transexualidade é apenas uma condição, como tantas outras. A resposta mais simples e completa que define as pessoas transexuais é a de que: Mulher transexual é toda pessoa que reivindica o reconhecimento como mulher. Homem transexual é toda pessoa que reivindica o reconhecimento como homem. Ao contrário do que alguns pensam, o que determina a condição transexual é como as pessoas se identificam, e não um procedimento cirúrgico. Assim, muitas pessoas que hoje se consideram travestis seriam, em teoria, transexuais. Cada pessoa transexual é tratada de acordo com o seu género: mulheres transexuais adoptam nome, aparência e comportamentos femininos, querem e precisam ser tratadas como quaisquer outras mulheres. Homens transexuais adoptam nome, aparência e comportamentos masculinos, querem e precisam ser tratados como quaisquer outros homens. Uma pessoa transexual pode ser bissexual, heterossexual ou homossexual, dependendo do género que adopta e do género com relação ao qual se atrai afectivo-sexualmente, portanto, mulheres transexuais que se atraem por homens são heterossexuais, tal como os seus parceiros, homens transexuais que se atraem por mulheres também; já mulheres transexuais que se atraem por outras mulheres são homossexuais, e vice-versa. Ou seja, nem toda pessoa transexual é gay ou lésbica, a maioria não é, apesar de geralmente serem identificados como membros do mesmo grupo político, o de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – LGBT.

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Travestismo e transformismo A nossa sociedade tem estigmatizado fortemente as travestis, que sofrem com a dificuldade de serem empregadas, mesmo que tenham qualificação, e acabam, na sua maioria, sendo forçadas a trabalharem como profissionais do sexo. Entretanto, nem toda a travesti é profissional do sexo. A denominação travesti é estigmatizada. Tem-se discutido a sua utilidade no mundo contemporâneo, quando se entende que as pessoas transgénero não se “travestem” no sentido original da terminologia, e que há os termos transexual e crossdresser para se referir a dimensões melhor definidas da vivência transgénero. A distinção entre travestismo e transformismo não é consensual. “Existe o conceito de transformista, usado exclusivamente no contexto das artes performativas, e o de travesti, que pode ir muito para lá do mundo do espectáculo”, clarifica o presidente desta associação LGBT. Conta que muitas pessoas não gostam de usar o termo travesti pelas conotações negativas que lhe são feitas, nomeadamente no que toca à prostituição. “O que algumas pessoas querem é evitar ser confundidas.”2 Artistas que fazem uso de feminilidade estereotipada e exacerbada nas suas apresentações são conhecidos como drag queens (sendo mulheres fantasiadas como homens, são drag kings). O termo mais antigo, usado no Brasil para tratá-los, é o de artistas transformistas. Drag queens/king são transformistas vivenciam a inversão do género como espectáculo, não como identidade. Aproximam-se dos crossdressers (a vivência do crossdresser geralmente é doméstica, com ou sem o apoio de suas companheiras, têm satisfação emocional ou sexual momentânea em se vestirem como mulheres, diferentemente das travestis, que vivem integralmente de forma feminina) pela funcionalidade do que fazem, e não das travestis e transexuais pela identidade. Nesse plano aponto para a investigação da arte transformista portuguesa. Conectando-me ao campo epistemológico do Construcionismo Social, defendo que a

2 Retirado do site JPN (http://jpn.up.pt/2010/02/23/transformismo-do-antigo-infernopara-o-ceu/) acesso em 10/06/2016.

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construção da identidade sexuais e de género não pode ser isolada das trajectórias sociais pessoais – incluindo as suas redes de sociabilidade, a sua inserção em comunidades culturais e a sua trajectória de carreira –, questiono o uso de categorias como “travesti”, “transexual”, “homossexual” e “transformista” como definidoras de identidades evidentes isoladamente. Proponho a investigação do transformismo, como forma de lançar um outro olhar para as vivências subjectivas, uma vez que amplia os significados sexuais e de género compartilhados intersubjetivamente em cenários localizados, bem como compreende esses contextos como espaços de criação de novos significados sociais. Para esse escopo, traço rotas epistêmicas de compreensão do transformismo dentro de uma etnogênese da comunidade LGBT. É importante, então, cruzar a identidade sexual, orientação sexual, transexualidade, travestismo e transformismo avaliando o impacto pessoal e social dos indivíduos com estas características, atendendo ao facto de haver discriminação contra estes indivíduos. "Os psicólogos, psiquiatras e outros profissionais de saúde mental concordam que a homossexualidade não é uma doença, uma desordem mental ou um problema emocional. Após 35 anos de pesquisa científica bem fundamentada, demonstrou-se que a homossexualidade, em si e por si, não se vincula a distúrbios mentais ou problemas emocionais ou sociais. No entanto, intuitivamente e por experiências, sentidas ou relatadas, percebemos que a sociedade portuguesa demonstra ainda tendências discriminatórias em razão de orientação sexual, exibidas através de atitudes e comportamentos homofóbicos ou de diferenciação negativa, e que estas manifestações podem ter efeitos altamente negativos na própria pessoa e na sua vida familiar, escolar e/ou laboral e social dos homossexuais, femininos e masculinos, bissexuais e transsexuais. Quando questionadas cerca de 200 pessoas LGBT, a expectativa demonstrada perante o desenvolvimento de serviços de apoio pelas associações LGBT ascendeu a mais de 90%. Referiam "mais à vontade", segurança e maior confiança de que encontrariam do lado de lá alguém que iria ao encontro das suas necessidades. Pretendemos com o mind the gaps - Gabinete de Atendimento Psico-Social do Centro

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LGBT (na sequência do Gabinete de Atendimento Social) responder a estas expectativas, colmatar um hiato no apoio aos cidadãos pertencentes a minorias, neste caso sexuais e colaborar para uma sociedade justa para todos. Isto é, disponibilizar um serviço de atendimento social e psicológico, especializado e sistemático, a pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transsexuais."

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CAPÍTULO III - MODELO DE ANÁLISE Ao longo da minha investigação, irei analisar as motivações para o transformismo, será por arte, alienação de identidade, por questões económicas e financeiras? Será o transformismo apenas uma forma de arte? Será o transformismo um meio para um indivíduo viver um género/ identidade que não é a sua de nascença (identidade biológica)? Ou o transformismo será um meio para sobreviver? Serão os transformistas também trabalhadores do sexo? Há alguma relação do transformismo com a prostituição? Um transformista é na realidade um homem que se veste de mulher para tentar viver uma identidade fingida? Transformismo Orientação Sexual

Sobrevivência (Questão económica-

financeira) Arte

Identidade sexual

As principais dimensões em estudo para uma melhor tentativa de conhecer a realidade social inerente ao transformismo são as dimensões 

Da socialização do indivíduo enquanto actor social;



Da família, o indivíduo enquanto transformista e pertencente a um grupo;



Da economia, o indivíduo desempenha um papel laboral;



Da artística, o indivíduo transformista desempenha um papel com uma função meramente artística;



Sexual, o indivíduo enquanto um ser que possui um género, uma identidade, uma orientação.

Com estas dimensões tentar-se-á aferir se há as seguintes hipóteses: 

O transformismo é uma saída para as dificuldades económicas/ desemprego;



O transformismo e a prostituição estão intimamente ligados;



O transformista pretende assumir um sexo que não é o seu sexo biológico;

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O transformismo camufla a necessidade do homem querer ser mulher;



O transformismo encarado como apenas uma forma de arte;



Percepções dos actores transformistas sobre o mundo do transformismo.

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CAPÍTULO IV - METODOLOGIA Nesta investigação segui a pesquisa qualitativa, utilizei a técnica das entrevistas para recolha de informação e, deste modo, perceber, de forma mais aprofundada o panorama do transformismo em Portugal segundo os próprios profissionais, tal como vividos e descritos pelos envolvidos. Ponte caracteriza o estudo de caso da seguinte maneira, “Um estudo de caso pode ser caracterizado como um estudo de uma entidade bem definida como um programa, uma instituição, um sistema educativo, uma pessoa ou uma unidade social. Visa conhecer em profundidade o seu “como” e os seus “porquês” evidenciando a sua unidade e identidade próprias. É uma investigação que se assume como particularista, isto é, debruça-se deliberadamente sobre uma situação específica que se supõe ser única em muitos aspectos, procurando descobrir o que há nela de mais essencial e característico.” (Ponte, 1994: 3) Foram realizadas 11 entrevistas semi-estruturadas com a duração aproximada de 60 minutos, conduzidas com base num guião previamente elaborado. Através da técnica utilizada pretende-se fazer um estudo intensivo assim como Merriam classifica «O estudo de caso qualitativo caracteriza-se pelo seu carácter descritivo, indutivo, particular e a sua natureza heurística pode levar à compreensão do próprio estudo» (Merriam, 1988).

Técnicas de recolha de informação Em relação às entrevistas adoptadas foram semi-directivas de modo a focar-me nos aspectos sociológicos do transformismo, nas dimensões a que me propus investigar. “A entrevista semi-directiva coloca questões que se pretendem abertas, num ambiente descontraído e informal, estando articuladas de modo a que o entrevistado se sinta confortável para se expressar sem condicionalismos e possa utilizar o seu vocabulário original. Este tipo de entrevista é utilizado quando o investigador dispõe de informação bibliográfica que o auxilia na temática que pretende estudar: deve existir um guião, pelo qual o investigador se rege ao longo do processo. “As boas entrevistas

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caracterizam-se pelo facto de os sujeitos estarem à vontade e falarem livremente sobre os seus pontos de vista.” (Biggs, 1986)”3 É importante referir como cheguei até aos actores transformistas. Depois de ter feito uma análise dos estudos realizados no âmbito da sexualidade, deparei-me com a pouca visibilidade e escassos estudos sobre o transformismo. Foi aqui que senti a necessidade de me debruçar sobre esta temática. Depois da recolha da literatura, investiguei os locais onde se realizam os shows de transformismo. Dirigi-me até esses locais, onde assisti a alguns espectáculos. Abordei alguns dos transformistas para uma possível entrevista, no qual foi, imediatamente, aceite. Mais tarde, dirigi-me para explicar o meu estudo e iniciar as entrevistas. Desde o momento da análise das temáticas estudadas no âmbito do género e sexualidade esta investigação despertou-me o interesse para estudar este fenómeno e as causas adjacentes devido à complexidade da sociedade portuguesa, uma sociedade que, ainda, é caracterizada por ser muito tradicional e até ligada à igreja, muito que o estado se diga laico. Verifiquei a dificuldade que uma investigação deste género requer e, também a própria viabilidade para conseguir chegar a conclusões, traçando os objectivos que este estudo requer. Este trabalho foi um desafio enorme pela carga emocional e constrangimentos associados. Desde revelações mais profundas às situações de descriminação sentidas pelos indivíduos entrevistados. No entanto, foi um trabalho enriquecedor que me permitiu aferir o que leva um indivíduo enveredar pelo transformismo, as dificuldades encontradas, a vida pessoal e profissional, a própria situação económica etc. A objetividade consiste na supressão de influências que afectam a validade da abordagem ao objeto (Gauthier, 2003:518). Assim, é fundamental estabelecer relações causais de modo não subjectivo. Nos estudos de caso, a objectividade depende da cadeia de evidências (Yin, 1994: 98-99). Neste estudo, ao analisar os dados das entrevistas, procurei comparar ser o mais objectivo criando quadros específicos de

3 Citação directa do sítio “Academia.edu” (http://www.academia.edu/1317389/Escola_inclusiva_uma_hist%C3%B3ria_de_amor_nem_sempre_bem_contada ), acesso em 31/03/2016

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análise e que, desse processo intersubjetivo, as opiniões mais comuns sobre o valor dos dados para avaliar a plausibilidade das hipóteses constitui a objetividade. A validade pode ser interna, quando se refere a estudos explanatórios que procuram relações causais, e externa, quando as descobertas do estudo de caso são generalizáveis, ou seja, os seus resultados são aplicáveis a outros casos (Yin, 1994, 2026; 27-32; 44-45). Este estudo procura cuidar da validade interna e externa, estabelecendo relação entre a teoria e as hipóteses e triangulando análise dos dados para melhorar a objectividade dos resultados. Externa, tentando com este estudo de caso conhecer melhor a realidade do transformismo em Portugal através de alguns profissionais no activo que me possam criar um quadro do transformismo. A triangulação permite assegurar que a informação e a interpretação são adequadas e reduzem a influência das impressões subjectivas dos investigados e dos investigadores. (Stake, 2006:33-35). A triangulação mais adequada deve, por isso, triangular teorias, fontes, métodos e investigadores. Dada a sua natureza, nesta pesquisa apenas triangulei os dados recolhidos nas entrevistas. A generalização é uma fragilidade no estudo de caso, uma vez que, a incapacidade para generalizar, característica do estudo de casos, está ligada ao seu carácter intensivo. (Greenwood:1965, 344). Ela está intimamente relacionada com a validade e às vezes apelidada de validade externa, sendo que os resultados da pesquisa são utilizados em aplicações específicas (Gummesson, 1991, pp72-73). Assim, em vez da generalização empírica, farei generalização teórica. A fidedignidade consiste em demonstrar que as operações de um estudo – tal como os procedimentos de recolha de dados - podem ser repetidos, com os mesmos resultados (Yin:2009:40) e o protocolo é uma maneira eficaz de aumentar a fidedignidade num estudo de caso (Yin:2009:67). Por isso, descrevi a metodologia de análise para que outros possam analisá-la criticamente, de modo a compreenderem as conclusões como resultado do processo de pesquisa e a adoptarem ou melhorarem o método.

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Potencialidades e limites Um dos grandes desafios deste trabalho foi a entrevista, isto porque é uma mistura de novidade, com nervosismo e pelo próprio empirismo da situação. Estar frente-a-frente de um indivíduo que, voluntariamente, nos dá a conhecer uma parte da sua vida, e numa temática tão sensível que envolve dimensões como a sexualidade, a trajectória familiar e aspectos socioeconómicos. É preciso ter um cuidado extra a fazer as perguntas, não é de todo o objectivo criticar, fazer julgamentos, magoar ou ferir os entrevistados. “… Para além das questões técnicas, colocam-se, também, questões éticas quando se trata de entrevistas em profundidade e, muito particularmente, de “histórias de vida”, devido ao carácter intimista que tem sempre uma narração biográfica. Parece uma questão simples, mas não é. Pedir a alguém que nos conte a sua vida é complexo, pela relação de confidência/ convívio gerada numa relação (apesar de tudo) desigualdade, sobretudo, quando se trata de populações em situações de exclusão social, às quais o sociólogo sente que nada tem para dar em troca de tanta disponibilidade e abertura.” (Guerra, Isabel, 2006:52) Foi extremamente interessante e empolgante usar esta técnica de recolha de informação, pois permite ao investigador estar em contacto com uma pessoa que nos facultará através da sua experiência material sociológico para nós o estudarmos, para nós tentarmos chegar a alguma conclusão. Devido à fragilidade da temática as entrevistas tiveram de ser orientadas com especial cuidado devido às experiências vividas pelos actores sociais, tais como as relações com a família e a própria orientação sexual. Foi necessário conduzir um tipo de entrevista que pudesse favorecer a expressão de sentimentos, atitudes e opiniões, numa

continência

afetivo-cognitivo-social

necessária

a

um

assunto

dessa

complexidade.

Técnicas de tratamento de dados Na análise de conteúdo das entrevistas, elaborei um quadro de análise comparativa, temos outro quadro onde procedemos à análise categorial, para perceber

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as co-variações ou associações das situações descritas dos entrevistados. Conforme Isabel Guerra nos demonstra “a análise de conteúdo pretende descrever as situações, mas também, interpretar o sentido do que foi dito. De facto, quando falamos em investigação empírica, falamos de uma série de operações como descrever os fenómenos (nível descritivo), descobrir as suas co-variações ou associações (nível correlacional e grosso modo objectivo da análise categorial) e, ainda, descobrir relações de causalidade/ de interpretação das dinâmicas sociais em estudo (nível interpretativo das dinâmicas sociais em estudo (nível interpretativo e grosso modo correspondente à análise tipológica” (Guerra, Isabel, 2006:69). Realizei as entrevistas e na análise do material procurei classificá-las em temas ou categorias que auxiliam na compreensão do que está por trás do discurso, em virtude do que nos refere Isabel Guerra, “nas entrevistas em profundidade (e histórias de vida) utiliza-se uma diversidade de técnicas de análise de conteúdo para cada uma destas operações.” (Guerra, Isabel, 2006:69) Ao tratar o material recolhido, surge a possibilidade de comparar as respostas dos entrevistados devido à semi-directividade das questões previamente definidas, de modo, a verificar as semelhanças, aspectos comuns e complementares das informações dos entrevistados para melhor entender as motivações e todos os aspectos ligados ao transformismo. “A comparação, enquanto momento da actividade cognitiva, pode ser considerada como inerente ao processo de construção do conhecimento nas ciências sociais. É lançando mão de um tipo de raciocínio comparativo que podemos descobrir regularidades, perceber deslocamentos e transformações, construir modelos e tipologias, identificando continuidades e descontinuidades, semelhanças e diferenças, e explicitando as determinações mais gerais que regem os fenómenos sociais.” (Schneider e Schmitt, 1998:1) A Sociologia tem muitas implicações práticas nas nossas vidas. O pensamento e a investigação sociológica contribuem, de várias e óbvias maneiras, fornece, simplesmente, uma compreensão mais clara e adequada da situação social. Desta forma, estudar o transformismo da perspectiva sociológica é fundamental, porque antes

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de sermos seres individuais, somos seres sociais, atrevo-me a dizer que maiorias das nossas acções são tomadas porque vivemos em determinada sociedade, foi incutido pensar de determinada maneira, como Durkheim refere-se aos factos sociais, são maneiras de agir, pensar e sentir. Logo, são caracterizados por serem exteriores e coagirem o indivíduo. Acredito que o transformismo tem que ser estudado através da sociologia, para verificarmos as condições sociais em que vivem e sobrevivem os actores sociais. A Sociologia como a ciência dos factos sociais, dos fenómenos sociais utiliza métodos para atingir as suas finalidades “sendo os principais objectivos da ciência analisar, explicar, prever e intervir/ agir sobre a realidade, tais objectivos só podem ser atingidos por via da utilização do método científico” (Dicionário de Sociologia). Nesta investigação os métodos de análise sociológica que segui foi a metodologia qualitativa para o estudo do transformismo. “O método científico é uma forma de actuação humana orientada para o conhecimento da realidade empírica” (dicionário de Sociologia). Desta forma, os métodos qualitativos assumem um papel de relevância neste estudo, pois através da história de vida do público-alvo procurei perceber as motivações que levam a enveredar por este caminho, será vocação ou uma forma de identidade? Isto é, verificar se os factores económicos, artísticos, laborais são propiciadores para seguir a carreira de tranaformista ou quais outros indicadores que estão envolvidos. “O reconhecimento de que, nas relações humanas, a “realidade” ocorre dentro de contextos históricos e é construída socialmente tem levado parte das pesquisas sociais e humanas à utilização de métodos qualitativos”. (Guba; Lincoln, 2005) No que se refere a procedimentos analíticos, “a pesquisa qualitativa não utiliza modelos matemáticos e/ou de aplicações estatísticas, mas da interpretação de textos, sons, imagens e até de linguagem não-verbal”. (Guba; Lincoln, 2005). Na pesquisa qualitativa, os critérios de validade e de confiabilidade assumem aspectos particulares. Isso se deve a algumas das suas características. Uma delas diz respeito ao facto de que a investigação qualitativa é sempre, em alguma instância, de carácter interpretativo. Com isso, a subjetividade do investigador está presente em todo

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o desenvolvimento da investigação. Por outro lado, “a investigação qualitativa, também, assume pelo menos certo grau de indução, que pode chegar à sua forma mais pura, despojada de teoria e sem a formulação de hipóteses, mas permanecendo aberta à descoberta, mesmo quando se utiliza de um quadro teórico prévio, uma vez que este não será operado no nível de variáveis” (leão; Mello; vieira, 2009; Risjord, Moloney, Dunbar, 2001).

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CAPÍTULO V - APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS Dados Sociodemográficos

Tabela

Segundo os dados obtidos nas entrevistas realizadas, podemos analisar o perfil sociodemográfico dos entrevistados. Assim sendo, temos 11 entrevistados, com idades compreendidas entre os 23 e os 66 anos. A média de idades ronda os 41 anos. A maioria dos 11 entrevistados são naturais do Porto (5 indivíduos), 1 de Vila Nova de Gaia, 1 de Évora, 1 de Lisboa, 1 de Oliveira de Azeméis e 2 são estrangeiros, isto é, são do Brasil. Actualmente, 7 dos entrevistados residem na cidade do Porto, 1 em Penafiel, 1 em Vila Nova de Gaia, 1 em Lisboa e outro em Almada (Margem Sul de Lisboa). Todos os entrevistados são solteiros (7 indivíduos), exceptuando 3 que estão numa união de facto. As habilitações literárias dos entrevistados em estudo ronda o 12.º ano (6 indivíduos), 1 possui o 11.º ano, 3 concluíram o 9.º ano de escolaridade. Apenas 1 dos

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entrevistados tem frequência universitária. 1 dos entrevistados não foi possível compreender o seu nível de escolaridade. Todos os entrevistados que participaram neste estudo são de orientação homossexual.

Artística Relativamente à dimensão artística, com o principal intuito de conhecer em profundidade o transformismo. Compreender como o indivíduo teve conhecimento deste mundo, perceber até que ponto o próprio indivíduo encara a sua performance como uma forma de arte, constatar se o entrevistado sempre teve um gosto pela arte e pela representação, analisar se as percepções como a sensibilidade são características de quem se transveste, compreender a formação da personagem criada, entender como funciona o mercado do transformismo, constatar a percepção dos transformistas em relação ao seu público, proceder a análise de que forma personagem entra na vida do actor, aferir os preconceitos, estigmas e marginalização em relação ao transformismo. Foram destinadas perguntas como “Como conheceu a arte do transformismo?”; “Para si o transformismo é uma arte ou como define o transformismo?”; “Havia um desejo de ser actor?”; “Todas as roupas são financiadas por quem?”; “Acha que ser transformista requer uma grande sensibilidade e vocação?”; “Como nasceu a sua personagem? Tem características próprias, é sempre a mesma personagem ou é mutável a cada transformação?”; “Quem escolhe as cantoras que vai interpretar é o próprio transformista ou é algo que é imposto por quem contrata os serviços?”; “Imagina-se sem a sua personagem?”; “Enquanto preparação para se transformar, é um procedimento que requer muito cuidado e demora muito tempo?”; “Acha que existe um preconceito associado a esta performance artística?”; “Sente respeito pelo público para quem actua?”; “Acha que existe um complemento entre o seu eu masculino e a personagem em que se transforma?”. Com estas questões, de forma, a aprofundar o tema do transformismo e a relação indivíduo-arte, indivíduo-público e indivíduo- e o seu “eu” tentei analisar até que ponto o transformista compreende-se como um

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complemento entre o seu género, o ser homem, e a personagem em que se transforma, a representação de ser mulher. Referente à primeira questão desta dimensão, tentei perceber como o indivíduo teve o seu primeiro contacto com o transformismo. A maioria conheceu o transformismo através de bares nocturnos de carácter LGBT: “… havia um barzinho que já não existe, ficava em frente ao Majestic e aquilo era uma boate, ao domingo à tarde havia um show e, entretanto, houve um desfile, um concurso e eu fiquei em primeiro lugar no concurso …" (Entrevistado n.º 1, 53 anos); “Onde conheci é onde estou a trabalhar agora, que é no “Pride” (Bar gay) e, então a minha primeira coisa foi uau eu quero ser como elas, quero fazer isto” (Entrevistado n.º 4, 23 anos).

Há entrevistados que conheceram o transformismo através de pessoas com quem se relacionavam e, até, através, da própria televisão : “Ainda muito jovem, via espetáculos e essas coisas todas e através depois de uma pessoa com quem tive um relacionamento que já estava dentro, enfiado no meio do transformismo.” (Entrevistado n.º 5, 52 anos) “Eu lembro-me muito, muito bem, num dia à tarde, tinha eu 18 anos e lembro-me que estava em casa e a meia da noite estava a ver um programa sobre transformismo, sobre drag queens na televisão, num canal que nem sequer era português, entretanto, vi assim coisas espetaculares, homens produzidos de mulher, (…), falavam no transformismo no mundo, e vi que que havia transformistas em Portugal e, também, no Porto, e fiquei muito surpreso.” (Entrevista n.º 7, 36 anos).

Um dos entrevistados refere, ainda, que sempre esteve conectado ao mundo artístico e depois de conhecer o transformismo através de um bar desencadeou o desejo de fazer transformismo.

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“Sempre fui um rapaz de artes, fiz teatro durante muitos anos e danças de salão. Um dia levaram-me ao Finalmente Clube foi aí que despertou o desejo de experimentar” (Entrevistado n.º 10, 27 anos).

Pretende-se aferir se para o transformista, o transformismo é uma arte ou como define esta actividade, sendo que a maior parte dos entrevistados considera o transformismo como uma arte. “O transformismo é uma vertente do teatro, para todos os efeitos, portanto considero que o transformismo é uma arte…" (Entrevistado n.º 1, 53 anos).

Outro entrevistado, ainda, complementa com algumas das características fundamentais para ser um transformista: “É uma arte e o transformismo em primeiro lugar tem que ter uma veia de actor sem isso é impossível ser-se transformista, e depois requer muita coisa, preparação, expressões faciais, corporais, conhecimentos artísticos, mesmo das outras artistas, portanto, requer muita coisa para se ser um bom transformista porque vestir-se de mulher é muito fácil, mas ser transformista é muito difícil.” (Entrevistado n.º 3, 57 anos).

Um dos entrevistados afirma que ser transformista é uma especialização dentro dos estilos de representação: “É! Eu para mim o transformismo deve estar dentro da arte da representação como aqueles artistas que se especializam em acção, outros em comédia. Há artistas que se especializam na arte do transformismo. Que por si só é tão antiga como tudo. Nos teatros, desde a época da Grécia já havia transformismo.” (Entrevistado n.º 5, 52 anos).

É, ainda, de salientar que um dos entrevistados além de definir o transformismo como uma arte, encontra uma terapia, uma forma de libertação e afirmação pessoal:

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”Não sei, tenho momentos que possa ser uma arte, … Para mim o transformismo é uma forma de libertação, afirmação, divertimento, portanto, a nível pessoal … Comecei a fazer show para me libertar, tive uma depressão quando era mais novo.” (Entrevistado n.º 8, 26 anos).

O entrevistado n.º 9 (66 anos) tece críticas aos mais jovens transformistas pela forma como encaram o transformismo. “Levo isto como uma arte. É muito difícil fazer o burlesco, o cómico, às vezes, estou triste e tenho de fazer rir os outros. … A “chavalada” agora não leva como uma arte. Gostam de se vestir de mulher. Isto de ser transformista é uma arte muito difícil.”

Referente à questão se o transformista já tinha um desejo de ser actor, antes mesmo de conhecer o transformismo, maioria afirma que sim, já havia um gosto em ser actor. “Havia e há. Sempre gostei de interpretação, sempre tive uma veia artística.” (Entrevistado n.º 2, 24 anos).

Outros referem que além do gosto em ser actor, tiveram outras experiências enquanto artistas “Havia (…) cheguei a entrar numa peça de teatro, fazer uma peça de teatro com a falecida Tônia Carrero, e pronto sempre estive um pouco ligado a pessoas do teatro…" (Entrevistado n.º 1, 53 anos) “Sim, havia, comecei artisticamente como ajudante de ilusionista, mais tarde, fui bailarino numa revista, depois fui então a Espanha, e voltei para fazer transformismo. Mas sempre com a ideia de ser um actor, o transformismo é que se meteu no caminho.” (Entrevistado n.º 3, 57 anos)

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“Eu sempre tive ligado ao mundo do espetáculo, estudei música, fiz teatro e depois veio o transformismo.” (Entrevistado n.º 4, 23 anos) “Sou actor com formação, estagiei 3 anos no Teatro Nacional D. Maria II.” (Entrevistado n.º 11, 51 anos). Três dos entrevistados referem que nunca sentiram o desejo de ser actor “Eu nunca tive um dia ou uma altura em que dissesse que queria ser actor, (…), já me interessei quando era mais novo, ali entre os quinze, dezasseis anos, frequentei aulas de expressão dramática …” (Entrevistado n.º 7, 36 anos).

Nesta questão tentei perceber quem financia as roupas que os transformistas usam para actuar. Todos os entrevistados referiram que são os próprios a adquirir e até a criar as suas roupas “Não, tudo aquilo que tenho em cinco anos fui eu que comprei, eu que fiz, sou eu que elaboro as roupas e assim, …” (Entrevistado n.º 8, 26 anos). Todavia, quando são números em grupo poderá haver financiamento do próprio estabelecimento onde actuam “Depende. Se forem números a solo que eu dirijo são financiadas por mim. Se forem números de grupo são, certamente, financiadas pelo Finalmente Club.” (Entrevistado n.º 10, 27 anos).

Para ser transformista é necessário sensibilidade e vocação? Foi outra das questões abordadas. Todos os entrevistados concordam que é necessária muita vocação e sensibilidade, aliás, até justificam com as limitações da própria arte “Completamente, até porque diferente dos actores convencionais, que estamos habituados a ver, nós não temos figurinista, não temos maquilhador, não temos coreógrafo, tudo parte de nós por isso é mesmo preciso uma grande sensibilidade, veia artística, ser visionário, bom gosto dentro do possível.” (Entrevistado n.º 2, 24 anos).

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Um dos entrevistados tece críticas aos mais jovens transformistas que apareceram recentemente “Acima de tudo é assim, hoje em dia apareceu uma vaga nova de criaturas, falando assim mesmo, que acham que vestir um vestido e sapatos altos já são artistas. Não, o transformismo requer uma entrega, …” (Entrevistado n.º 1, 53 anos). Outro entrevistado complementa que para além da sensibilidade e vocação é necessário todo um árduo trabalho “Acho. Acho que em toda a arte de representação tem que ter. Eu visualizo muito, trabalho muito a nível de pesquisa, procurar as coisas estar sempre … apesar de fazer 35 anos ainda hoje continuo estudando, continuo procurando os personagens, vendo as verdadeiras cantoras, aprendendo com elas. (...) Ele tem de aprender a ser uma equipa numa única pessoa. Você acaba tendo que desenvolver vocação para outras coisas, independente da arte de representar você tem desenvolver a arte de saber pentear, a arte de saber maquilhar, saber produzir roupas, a arte de saber dançar, interpretar, ou seja você não tem nenhuma direcção artística, você não tem nada.” (Entrevistado n.º 5, 52 anos).

Na questão que se segue, tentei conhecer de onde surgem as personagens criadas pelos entrevistados, visto que, têm nomes próprios. Então, a questão é como nasceu a sua personagem, tem características próprias, é sempre a mesma ou é mutável a cada transformação. Em suma, são personagens únicas e mutáveis, ou seja, adaptáveis mediante contextos. São criações do próprio transformista, maioria com características exageradas dos indivíduos, uma espécie de hipérbole do indivíduo “No fundo, basicamente é a mesma. Depois vai modificar de acordo com o trabalho que eu vou fazer. Eu gosto muito de diversificar para muitos lados. O lado cómico ou o lado mais sério, mais dramático, o lado show business. Dependendo daqui que vou fazer há a personagem que é a mesma, também se adapta, vai-se adaptando a vários registos. (Entrevistado n.º 5, 52 anos)

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“A minha personagem é sempre a mesma, é a (nome da personagem), e ela é aquilo que eu gosto de ser enquanto (o próprio) e com a personagem posso ser mais que é uma gata doce, ou seja uma pessoa atenta às coisas, observadora bastante, e ao mesmo tempo gosto de me dar bem com toda a gente, gosto de fazer aquilo que estou a fazer agora, ajudar as pessoas, coisas que possam melhorar a vida das pessoas, portanto, é nesse sentido e depois porque também tem muito de erotismo, porque ali posso ser outra pessoa, e nessa outra pessoa posso ser bastante erótico, sexy, e entrar por essas coisas assim mais loucas, e aí é o (nome da personagem), …” (Entrevistado n.º 8, 26 anos) “É uma personagem diferente de mim, mais solta, mais fluida e bastante ousada. Eu sou tímido. E, embora seja uma personagem com características próprias, está em constante evolução e mutação.” (Entrevistado n.º 10, 27 anos).

Alguns dos entrevistados criaram uma personagem baseada na sua estrutura física ou na sua própria imaginação, sem qualquer tipo de aproximação a uma cantora famosa “É sempre mutável, foi nascendo, a personagem foi sendo criada, embora com características muito próprias, embora a maior parte dos meus colegas da altura usavam determinadas cantoras para criarem uma imagem muito semelhante e imitar, eu nunca fiz isso. Era sempre a minha interpretação de … então, foi por isso que sempre foi notável a personagem…” (Entrevistado n.º 6, 41 anos) “Como nasceu a minha personagem é engraçado, eu sou gordinho, de ter emagrecido e engordado, fiquei com maminhas, e o meu nome (nome artístico) daí vir o meu nome (nome artístico) foi inspirado naquele filme da (nome artístico), e então ficou o meu nome artístico. Aproveitei o meu corpo, a minha estrutura física, e daí veio o nome … faço mais shows cómicos, …” (Entrevistado n.º 4, 23 anos).

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Em relação às músicas que interpretam e às cantoras que imitam seguiu-se a questão sobre quem escolhe as cantoras que vai interpretar é o próprio transformista ou é algo que é imposto por quem contrata os serviços. Desta forma, todos os entrevistados admitem serem eles a fazer as escolhas musicais, apenas se estiverem inseridos num número grupal ou se há uma festa temática “Sempre foi escolhido por mim. Trabalhei com um grupo de pessoas e tentei sempre criar grupos e espetáculos que tivessem um fio condutor não actuações individuais mas que no conjunto aquilo contasse uma história.” (Entrevistado n.º 6, 41 anos) “Geralmente quem escolhe as músicas que eu interpreto sou eu que as escolho, (…) sou eu que escolho tudo (…) já passei por casas que o dono da casa tentou manipular ou impor a nossa escolha musical (…) Já passei por casas onde o patrão nem sequer se metia no trabalho dos transformistas, outros tentam-se impor quase ao máximo (…) Já tive discotecas que me contrataram e têm festas temáticas, essas festas temáticas obrigam ou pedem a um dresscode próprio ou a um tema próprio.” (entrevistado n.º 7, 36 anos).

Na questão seguinte realizada pretende-se constatar se o transformista sente respeito pelo público para quem actua. Em suma, todos os entrevistados afirmam sentirem-se respeitados pelo público para quem actuam. Ressalvam que aos seus espetáculos assistem todo o tipo de público, desde homens a mulheres, desde heterossexuais a homossexuais. Sendo uma opinião geral, sentirem-se mais respeitados e menos criticados pelo público heterossexual. Afirmam, quase na maioria, que o público homossexual é muito mais mesquinho, observador e crítico em relação aos actores transformistas “Sem dúvida! (...) Hétero, o público hétero é muito mais compreensivo, mais acessível, mais, tem uma entrega total totalmente diferente a outro público, quando digo outro público, digo, exactamente, o público gay. São mais exigentes, mais críticos, e muitas das vezes, não percebem daquilo que estão a ver.” (Entrevistado n.º 3, 57 anos)

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“Já trabalhei para vários tipos de público, desde público hétero português, público hétero em locais sofisticados, público hétero em favela. (…) Actuei para vários. Depois você precisa de moldar-se para cada grupo. O que funciona bem numa boate, por vezes não funciona bem num restaurante e às vezes não funciona bem numa casa gay. Tens de te adaptar ao público que vais encontrar.” (Entrevistado n.º 5, 52 anos) “Profundamente. (…) Todas as pessoas estavam presentes, homens, mulheres, em ambientes gay, heterossexual. (…) Público muito heterogéneo. (…) Sinto que com o meu trabalho consegui misturar vários géneros. “ (Entrevistado n.º 6, 41 anos).

Depois de se vivenciar determinar personagem, poderá ser difícil imaginar-se sem a personagem que foi criada. A questão vem nesse seguimento, se o indivíduo imagina-se sem a sua personagem. Três dos entrevistados mostram alguma facilidade ou desprendimento em deixar a personagem criada. “Sim, imagino, já tive períodos de grande espaço de tempo sem a personagem. Mais cedo ou mais tarde, a (nome artístico) vai morrer!” (Entrevistado n.º 7, 36 anos).

Os restantes oito indivíduos revelam grande dificuldade em "matar" a sua personagem feminina “É difícil, já são muitos anos. São 31 anos …” (Entrevistado n.º 1, 53 anos) “Sinceramente, nunca pensei nisso. Já parei um ano sem fazer espetáculo, mas nunca consegui deixar totalmente. É complicado deixar isto.” (Entrevistado n.º 4, 23 anos) “Não, no fundo é um pedaço de mim até eu digo eu devo a ela muitas emoções nesses anos de vida.” (Entrevistado n.º 5, 52 anos)

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“Não. Agora já não, uma pessoa fica viciada depois de fazer show, é uma libertação constante, se passar uns tempos sem fazer é como se ficasse sem um medicamento entre aspas.” (Entrevistado n.º 8, 26 anos) “Se nasceu … vai morrer comigo.” (Entrevistado n.º 11, 51 anos).

A questão que se segue, surge para perceber se o indivíduo encontra na personagem um complemento. 7 dos 10 entrevistados admitem haver um complemento entre o seu eu masculino e a personagem feminina que criaram. “É, sim, (…) é uma parte de mim. É o meu alter-ego.” (Entrevistado n.º 1, 53 anos).

Além de admitirem haver um complemento entre ambos, consideram que a personagem criada ajudou a lidarem com situações e emoções “Sem dúvida. (…) Todos nós temos uma mulher e um homem dentro de nós, e a minha personagem feminina que eu criei ajudou-me a lidar com muitas situações, por exemplo, eu considerava-me muito tímido e essa personagem mostrava outra faceta de mim, mais extrovertido, soltava-me, foi uma forma de eu vencer alguns receios, medos, medo de encarar um público, foi dessa forma que eu venci, por isso o masculino e o feminino vão-se complementando e nesse jogo criam uma harmonia. E, hoje em dia, sinto-me harmonizado exactamente por isso porque tive essa fase da minha vida.” (Entrevistado n.º 6, 41 anos).

Outros consideram a personagem como um exagero do próprio eu, além do complemento “Acho que existe, tem que existir, já faço isto há quase dezassete anos. (…) Quem criou a (nome artístico) fui eu. (…) Ela é o expoente máximo do (nome do entrevistado). (…) Mais exagerada, mais mórbida, …” (Entrevistado n.º 7, 36 anos).

Um dos entrevistados afirma que além do complemento, a personagem ajudou-o a descobrir-se enquanto um homem mais masculino “Certamente que sim,

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A personagem que interpreto ajudou-me a ser mais eu próprio no dia-a-dia, mais masculino e mais real. Sei que depois, de extravasar (em palco) e soltar toda a adrenalina, lavo a cara e volto a ser eu próprio. Antes isso não acontecia. Era uma pessoa muito feminina e muito extravagante, uma autêntica bichinha! Permitiu-me ter essa mesma percepção e mudar para melhor. Portanto não seria de esperar que não me complementasse.” (Entrevistado n.º 10, 27 anos). Outro entrevistado diz não viver sem a personagem “Um não sobrevive sem o outro … somos siameses … mas com contornos.” (Entrevistado n.º 11, 51 anos).

Em contrapartida, Quatro referem que não há complemento pois defendem ser personalidades distintas, não procuram um outro eu, não procuram ser mulher ou ter traços femininos fora das actuações “Eu enquanto homem não tenho vontade nenhuma, nunca me surgiu a ideia de ser mulher. Enquanto artista gosto de interpretar qualquer tipo de papéis, de mulher na vertente mais sedutora, mais glamorosa, mas enquanto homem não tenho vontade alguma de ser mulher. (…) Sim, há um complemento, não deixa de o ser. Não quer dizer que eu não ache que o homem e o meu ser homem vive sem a mulher.” (Entrevistado n.º 2, 24 anos) “Não, não tem nada a ver, são personalidades diferentes, e não procuro o transformismo para mostrar o meu segundo eu.” (Entrevistado n.º 3, 57 anos).

Um dos entrevistados que considera não existir qualquer complemento, ainda, ressalva que não tem necessidades de procurar ser outra pessoa ou viver com rótulos “Sou transformista não sou travesti. Não ando vestido com paneleirices. Não ando com um letreiro.” (Entrevistado n.º 9, 66 anos).

Os entrevistados para encararem os papéis femininos têm que se transformar, daí serem actores transformistas. A questão que surge agora vem neste seguimento

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tentar perceber se para o entrevistado se transformar é procedimento que requer muito cuidado e quanto tempo demora toda a preparação. É unânime a opinião recolhida. É um procedimento moroso, em média cada indivíduo demora mais de uma hora para se transformar “Requer bastantes procedimentos, uns mais demorados outros menos exigentes. Demoro cerca de 45 minutos seguidos ou uma hora e meia com pausas para fumar a realizar toda a transformação. Ultimamente acrescentei mais dez minutos, pois descobri que tenho umas ótimas unhas para pintar.” (Entrevistado n.º 10, 27 anos) “Requer muito cuidado e leva aproximadamente 1H30 … a transformar.” (Entrevistado n.º 11, 51 anos).

Outro entrevistado complementa que, para além do acto de transformar-se, há, ainda, toda uma preparação de dias “Sim, normalmente, demoramos certa de quarenta minutos e se quiseres ir mais longe demoramos dias para fazer uma roupa, a elaborar um número, sei lá, que seja, por exemplo, um dueto, … “ (Entrevistado n.º 8, 26 anos).

A última questão desta dimensão vem tentar perceber se os entrevistados sentem que haja preconceito associado a esta performance artística. 10 dos 11 entrevistados afirma haver preconceito, com maior incidência por parte dos indivíduos homossexuais “No meio gay principalmente. (…) Não veem o transformismo como uma arte, ligam à rua… somos marginais, prostitutos …” (Entrevistado n.º 1, 53 anos) “Existe. Principalmente quando confundem um ser artista de palco com prostituição de rua. E o preconceito é forte, nesse aspecto. (…) O maior preconceito vem dos homossexuais. Já trabalhei para heterossexuais e nunca me colocaram essa questão, (…) nunca me olharam como prostituto (…) enquanto para homossexuais já

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e já me colocaram olhares discriminatórios, esse tipo de comentários … (…) é complicado lidar com isso…” (Entrevistado n.º 2, 24 anos) “É assim, há sempre preconceito, porque nós somos vistos de maneira diferente, mas eu acho que por exemplo, eu vou falar do público hétero porque tenho trabalhado muito com o público hétero, eu acho que estamos muito mais aceites neste momento do que se calhar há uns anos atrás, que era mais complicado, mas acho que aos pouquinhos vamos chegar lá …” (Entrevistado n.º 4, 23 anos).

Um dos entrevistados além de concordar que haja preconceito associado a esta performance artística justifica com a falta de informação e conhecimento das próprias pessoas que, normalmente, discriminam aquilo que desconhecem e fazem associações erradas. Salientando, ainda, que o transformismo é uma arte independentemente da orientação sexual do actor “Acho que ainda existe um bocado no nosso país (…) mas acho que vai sempre haver, o que é grave em relação ao transformismo ou em relação a qualquer outra coisa a maior parte das pessoas nem sequer querem-se informar do assunto. Grande parte das pessoas ainda associa o transformismo a transexualidade, quando são duas coisas totalmente distintas uma da outra. Estamos a falar do transformismo que é uma arte, independentemente da nossa orientação sexual.” (entrevistado n.º 7, 36 anos).

Outro entrevistado menciona o facto de, também, existirem mulheres que se transformam no género oposto “Muita. E o preconceito está em achar que quem faz transformismo é prostituto. É transexual, é um homem que quer ser mulher, até porque o transformismo pode ser feito por mulheres. Performance masculina.” (entrevistado n.º 8, 26 anos).

Um dos entrevistados que já sendo transformista noutra época histórica do país, logo após a ditadura portuguesa, demonstra que além de haver preconceito, tudo

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mudou significativamente “As pessoas agora gostam de ver. Antes esperavam por mim, apedrejavam-me, esperavam-me” (Entrevistado n.º 9, 66 anos).

O único que respondeu negativamente, acredita que já não haja preconceito, justificando a sua opinião com a evolução da própria sociedade “Eu quero pensar que não, neste momento acho que as coisas evoluíram bastante e será que me estou a iludir?” (Entrevistado n.º 6, 41 anos).

Socialização Nesta dimensão procurei aferir se características femininas do indivíduo estão na génese da formação de uma personagem, perceber se o indivíduo transporta a sua personagem para o quotidiano, constatar discriminação em razão do transformismo, aferir as percepções sociais em relação ao transformismo e analisar a reacção do entrevistado em relação à afirmação “Todo o homem tem um lado feminino”. Desta forma, os entrevistados foram questionados com as seguintes perguntas “Esse seu lado artístico consiste em transformar-se numa mulher. Acha que sempre existiu um lado feminino seu que andava à procura de encontrar um refúgio, neste caso, uma personagem?”; “Durante o seu dia-a-dia, esquece-se da sua personagem ou ela está sempre presente em si? (consegue separar-se da personagem em que se transforma?)”; “A sua personagem tem existência própria, ou seja, por exemplo, uma rede social só dela, ou mistura a sua personagem com o seu próprio eu?”; “Já sentiu descriminação?”; “Quando o conhecem no seu dia-a-dia não sabem da sua actividade enquanto transformista. Qual é a reacção das pessoas quando sabem? Tem alguma inibição em dizer que é um actor transformista?”; ““Todo o homem tem a sua parte feminina”. Concorda com esta afirmação?”. A primeira questão desta dimensão centra-se na ideia que se possa ter em relação a um transformista, ou seja, que possa ter a necessidade de encontrar um lado feminino. A questão que se colocou foi o seu lado artístico consiste em transformar-se numa mulher. Acha que sempre existiu um lado feminino seu que andava à procura de

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encontrar um refúgio, neste caso, uma personagem? Um dos entrevistados considera que todas as pessoas têm os dois lados, um lado mais masculino e outro lado mais feminino, todavia, o entrevistado n.º 1, 53 anos, admite ter desenvolvido mais o seu lado feminino. Não obstante salienta que, despindo-se da sua personagem, os actores transformistas não são tão femininos conforme é pré-concebido: “Toda a gente tem os dois lados, … eu apenas desenvolvi mais esse lado … os transformistas profissionais são pessoas extremamente sensíveis. Quando tiram a roupa, despem a personagem não são tão femininos quanto as pessoas pensam." (Entrevistado n.º 1, 53 anos).

Entretanto, 7 dos 11 entrevistados admitem não encontrar qualquer refúgio na personagem que criam/ interpretam “Não. Eu acho que todos os homens têm um lado feminino. E cada um transpõe da sua forma. Se o transformismo é mostrar o seu lado feminino, eu não acho que seja. É simplesmente arte, é simplesmente interpretação, e o feminino vê-se de outras formas. No bom gosto, numa decoração, em tantas coisas …” (Entrevistado n.º 2, 24 anos) “Não, de maneira alguma. Como acabei de dizer, nunca procurei no transformismo o meu segundo eu. Nem nunca procurei o meu segundo eu no transformismo.” (Entrevistado n.º 3, 57 anos) “No meu caso particular não. Porque nunca fui (nome artístico) fora. Aliás eu nem sequer me dei permissão de usar a figura da (nome artístico) para intuitos sexuais seja de engates nada. A (nome artístico) é uma personagem de palco. (…) Quando acabo o personagem eu volto para a minha vida. Foi sempre essa, no começo foi o meu grande medo inclusivé tive muitos colegas que aconteceu isso daqui a pouco já estavam a raspar as pernas estavam a tomar hormonas para crescer o peito, já deixavam o cabelo crescer (…) e ai sim eu acredito que nesses

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casos o transformismo consiga colocar para fora um desejo interior. Mas não só. Eu acredito que muitas vezes exista um deslumbramento.” (Entrevistado n.º 5, 52 anos).

Não obstante, 3 entrevistados referem encontrar um refúgio, uma nova identidade na personagem que criaram “Sim, sim, creio que sim. Quando eu era criança vestia os vestidos da minha mãe, calçava os sapatos da minha mãe, houve sempre aquela linha ali de, pronto, feminina, … Nunca houve desejo de mudar de sexo.” (Entrevistado n.º 4, 23 anos); “A determinada altura sim. (…) Todas as sensações (…) poder em que eu conseguia lidar contudo que me acontecesse, era uma forma de energizar o meu ser, e tenho algumas características femininas no meu ser e podia-o ser sem problemas.” (Entrevistado n.º 6, 41 anos) “Sempre existiu dentro de mim o meu lado feminino … talvez a personagem seja o refúgio, pois sinto-me muito protegido com a máscara.” (Entrevistado n.º 11, 51 anos).

A questão que se segue pretende analisar se o entrevistado esquece-se durante o seu dia-a-dia da personagem ou ela está sempre presente em si. 2 dos 11 entrevistado admitem não conseguir esquecer a personagem, pois encontram-se, várias vezes ao dia, a pensar na personagem “Esquecer? Eu acho que os dois estão interligados. Este fim-de-semana, muitas vezes eu estou no trabalho e lembro de alguma coisa que tenho para fazer no fundo você não se consegue desligar um do outro.” (Entrevistado n.º 5, 52 anos) “Ai isso está sempre, não como se eu fosse a (nome artístico) eu passo as pessoas comentam, tenho um Facebook do (nome do entrevistado) onde as pessoas associam ao da (nome artístico). Porque sou organizadora do bar onde trabalho, então a (nome artístico) está sempre presente. A (nome artístico) vive sempre.” (Entrevistado n.º 8, 26 anos).

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Maioria, ou seja, 9 dos 11 revelam desligarem-se completamente da personagem, ressalvando o facto de ser apenas uma ferramente de trabalho “O vestido para mim é a minha ferramenta de trabalho. Quando faço os traços na minha cara deixo de ser o (nome do entrevistado) e passo a ser a (nome artístico).” (Entrevistado n.º 9, 66 anos) “Completamente! Inclusivamente uso muitas vezes uma expressão quando me tratam por (nome artístico): A (nome artístico) está no armário, juntamente com as perucas.” (Entrevistado n.º 10, 27 anos) “No meu dia-a-dia tenho uma profissão de relacionamento com o público … sou cabeleireiro e faço sempre questão de adormecer a (nome da personagem) … e aí o (nome do entrevistado) está sempre presente.” (Entrevistado n.º 11, 51 anos).

Nesta questão que se analisa, pretende-se aferir se o entrevistado mistura a sua personagem com o seu próprio eu, ou seja, se lhe dá uma vida própria, tendo um perfil numa rede social dedicado só à personagem e outro a si mesmo ou se há mistura entre ambos. Assim sendo, maioria afirma que, não misturam a personagem com o seu próprio eu. Cada um, por exemplo, tem um perfil de Facebook. A personagem ganha uma vida própria “Não, eu tenho as coisas bem distintas entre o (nome do entrevistado) e da (nome artístico). (…) Aliás eu sou o único transformista em Portugal que tenho um website com domínio próprio.” (Entrevistado n.º 7, 36 anos).

Pois, acontece o mesmo, em relação a convites para trabalhar ou promover algum evento. Não são os entrevistados enquanto homens que são convidados para as personagens “Na altura não tínhamos dessas tecnologias. (…) Mas, sim de alguma

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forma sim, cheguei a ser convidado para inaugurações, lojas etc. não era (nome do entrevistado) convidado mas a personagem.” (Entrevistado n.º 6, 41 anos).

Um dos entrevistados refere haver misturar ambos, todavia, um ressalva que isso só acontece no perfil da rede social por falta de tempo e até mesmo descuido, jamais, por querer misturar a personagem com o seu próprio eu “Na minha rede social, realmente tem aí uma mistura, embora, artisticamente, a minha personagem também tem uma página. De maneira que não é bem aquilo que quero fazer a mistura entre mim e a personagem mas acontece por descuido meu.” (Entrevistado n.º 3, 57 anos).

2 dos 11 entrevistados demonstram misturar ambos e justificam como sendo algo inevitável “Embora seja isso mesmo: uma personagem é inevitável que não esteja presente no meu dia-a-dia. A minha página de facebook representa isso mesmo.” (Entrevistado n.º 10, 27 anos).

Outro dos 2 entrevistados que refere misturar, afirma mesmo que a página da sua rede social é mesmo um “mix” entre o seu nome e o da personagem “A personagem mistura-se com o meu "eu" … o meu perfil do Facebook … é um mix … (nome do entrevistado versus nome da personagem)” (Entrevistado n.º 11, 51 anos).

A pergunta que se segue vem no seguimento se o entrevistado já sentiu discriminação, em particular, quando já transformado. 6 dos 11 entrevistados mencionam que já sentiram discriminação e sublinham que a maior e mais frequente discriminação vem do público e ambientes gay “Bastante! E no mundo gay nós somos o nosso próprio inimigo. Consigo sentir mais discriminação desta mesma etnia do que dos heterossexuais, principalmente quando quero arranjar namorado.” (Entrevistado n.º 10, 27 anos)

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“A maior discriminação vem do mundo gay.” (Entrevistado n.º 9, 66 anos).

Um dos entrevistados salienta que, a discriminação mais frequente, é sobretudo a verbal e em termos de olhares “Sim, todas as pessoas sentem em algum momento da vida. (…) Mais verbal, olhares…” (Entrevistado n.º 6, 41 anos).

4 afirmam não sentir discriminação ou que tenham sentido algo que merecesse valorar ”Não, discriminação não. Acho que iria reagir mal numa discriminação se a sentisse.” (Entrevistado n.º 3, 57 anos) “Nunca me expus a tal … por isso mesmo … não.” (Entrevistado n.º 11, 51 anos). 1 salienta que já sentiu a tentativa de o discriminarem “Nunca senti discriminação, senti a tentativa de… (…) Claro que, por diversas vezes, houve quem não quisesse falar comigo, conhecer-me,…” (Entrevistado n.º 2, 24 anos).

Na seguinte pergunta abordo a reacção de quando conhecem o entrevistado e não sabem da sua actividade enquanto transformista. Assentando neste prossuposto, qual é a reacção das pessoas quando sabem e se o entrevistado sente algum tipo de inibição ao reconhecer a actividade enquanto transformista. 7 demonstram que a reacção das pessoas quando sabem é positiva e têm orgulho em mencionarem o que fazem “Nenhuma inibição. É esse o meu trabalho, é essa a arte que desenvolvo, é essa a minha paixão. Como poderia não me sentir orgulhoso de o referir?!” (Entrevistado n.º 10, 27 anos) “No meu caso específico maior parte das pessoas já sabem. Mas, quando não sabem, porque há sempre uma ou outra pessoa que não sabe mas quando sabem ficam muito surpresas pela positiva pelo menos é o que demonstram, pelo menos

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demonstram ter uma reacção super positiva e querem ver logo fotos (…) uma grande parte quer logo ver o espetáculo (…) uma reacção muito positiva e favorável em relação aquilo que faço (...) Não tenho nenhuma inibição em dizê-lo mas claro que não ando aí a dizê-lo ao Deus dará, nem ando com uma tabuleta na testa. Mas quando há necessidade de o fazer faço-o sem qualquer tipo de vergonha ou problema.” (Entrevistado n.º 7, 36 anos).

1 revela só contar a quem conhece, todavia, não gosta de rótulos, não há necessidade de espalhar ao mundo. “Normalmente nunca digo nada mas eu tive uma situação em que eu descobri que quando você se respeita e se coloca respeitável as pessoas veem de forma diferente (…) Normalmente quando digo já conheço a pessoa mas maior parte das vezes levam mais por curiosidade ma já não fazem um bicho-desete-cabeças. (...) Só se não conheço. Não sou obrigado a expor-me para todo o mundo. Você tem coragem de dizer que é gay? Judeu ? Heterossexual? Não Ninguém tem de andar com uma placa na cabeça. As pessoas dizem aquilo que querem.” (Entrevistado n.º 5, 52 anos).

Outro revela que teve vários tipos de reacções, desde aquela que adorou àquela que deixou de falar com o próprio. “É muito variada, tive quem achou giríssimo, achou muita piada, houve quem deixasse de falar para mim, quem entrou em choque e acabou por aceitar mas más posições em relação ao tema não tive muitas … (…) Tinha e tenho … porque primeiro eu quero que as pessoas me conheçam a mim, para entenderem que eu não sou travesti, sou um rapaz normal, comum, que se transforma para actuar, e após a pessoa me conhecer, aí não tenho problema nenhum em dizer que faço transformismo …” (Entrevistado n.º 2, 24 anos)

Outro diz não ter necessidade de dizer que é transformista, não obstante, diz ser actor “Ainda, há pouco, uma vizinha perguntou se vivia com uma mulher, pois

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tinha uns collants a secar no arame, e eu disse que era actor (…) Todos me conhecem …” (Entrevista n.º9, 66 anos).

Um dos entrevistados revela sentir-se tímido ao contar, não por vergonha, mas por personalidade. “Sim, sinto-me um pouco tímido … por natureza … não por receio ou algo do género … fico encavacado sim.” (Entrevistado n.º 11, 51 anos).

A seguinte questão visa analisar os comentários dos entrevistados em relação a uma afirmação “Todo o homem tem a sua parte feminina”. Todos concordaram com a afirmação. Um dos quais até referiu, independentemente, da orientação há curiosidade e há um lado mais feminino dentro de um homem, assim como um lado mais masculino dentro de uma mulher “Sim, eu acho que todo o homem tem uma mulher dentro dele, assim como toda a mulher tem um homem dentro dela. (…) Todos nós gostamos de sensibilidade …” (Entrevistado n.º 2, 24 anos) “Sim, sim, sem dúvida. (…) Eu penso que está visto no Carnaval todos eles sem querer vão buscar uma peça feminina para porém em cima. Por isso é o lado feminino a funcionar, quer queiramos quer não.” (Entrevistado n.º 3, 57 anos); “Concordo. Já tive amigos héteros que foram a minha casa e quiseram experimentar as roupas, perucas, deve mexer com qualquer coisa ali dentro … “ (Entrevistado n.º 4, 23 anos) “Sim. Eu acho que todo o homem tem a parte feminina como toda a mulher tem a parte masculina dela agora cada um usa uma parte mais do que outra. Há homens heterossexuais que até são muito femininos no sentido bom não no sentido pejorativo. No sentido de ter mais sensibilidade, ser uma pessoa mais atenta, porque a mulher é mais atenta do que o homem, mais minuciosa essas coisas são femininas que um homem pode ter que às vezes até ajuda num relacionamento com a própria

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mulher. Assim como há mulheres que são muito dominadoras, mandonas que é uma parte masculina.” (Entrevistado n.º 5, 52 anos).

Um dos entrevistados, sem hesitação, admite que vivemos numa androginia, ou seja, há uma mistura de características femininas e masculinas num único ser “Sim, vivemos numa androginia.” (Entrevistado n.º 8, 26 anos).

Familiar Na dimensão familiar o principal objectivo é entender o percurso do indivíduo entrevistado. Perceber o passado do indivíduo como um meio condutor para o transformismo, analisar as percepções da família em relação ao transformismo e a relação do entrevistado com a família. Verificar a reacção inicial e a reacção actual no que diz respeito ao transformismo por parte dos familiares do actor transformista, compreender até que ponto o transformismo invade a vida privada do indivíduo. Aferir que tipos de relacionamentos os transformistas conseguem manter estando o transformismo nas suas vidas. Deste modo, foram realizadas as seguintes questões “Qual é a sua relação com a sua família?”; “Como reagiram quando souberam que fazia transformismo?”; “Como lidam, actualmente, os seus familiares mais próximos com o transformismo?”; “ (Dependendo do estado civil) Como lida o (a) seu (sua) companheiro (a) com o transformismo?”.

Relativamente à primeira questão abordada nesta dimensão que visa analisar as relações dos entrevistados com a família, maioria esclarece que tem uma relação familiar normal ou boa (7 entrevistados). “A melhor possível.” (Entrevistado n.º 1, 53 anos) “Perfeitamente normal, damo-nos todos como uma família normal.” (Entrevistado n.º 10, 27 anos).

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2 referem não terem uma relação familiar próxima ou boa com a família “Não é das melhores, mas que nada tem a ver com o transformismo (...) Tenho contacto com a minha mãe e irmã ponto…” (Entrevistado n.º 2, 24 anos) “A família do meu pai nunca me convidaram para o Natal, da minha mãe convidam-me, ligam-me etc. Quando o meu pai faleceu as coisas com a minha mãe ficaram melhores.” (Entrevistado n.º 9, 66 anos)

Outros 2 dos 11 entrevistados dizem que a família preferiu não abordar o assunto ou houve um distanciamento “A relação é … eles optaram por não falar de nada. E eu respeitei.” (Entrevistado n.º 5, 52 anos) “Natural, algumas pessoas quando eu decidi desenvolver esse trabalho se calhar ficaram um pouco distantes” (Entrevistado n.º 6, 41 anos).

Referente à questão de como lidaram os familiares quando souberam que o entrevistado fazia transformismo, houve reacções diversas. Podendo dividir em dois grupos, 6 dos entrevistados que demonstram que foi complicado ou não houve uma boa reacção “Foi complicado no princípio, sou o único rapaz entre as minhas irmãs, e a partir do momento que viram que isto é como um teatro … acabaram por aceitar. Houve partes da minha família que souberam e agiram com naturalidade …” (Entrevistado n.º 1, 53 anos) “No meu caso foi um bocadinho complicado, porque eu vivo num bairro social, agora estou em Penafiel, mas eu sou do Porto, e foi muito complicado não pela minha família, mas pelo que as pessoas iam pensar, era a preocupação neste caso da minha mãe e da minha família, (...) e a minha mãe riu-se, depois custou-lhe um bocadinho.” (Entrevistado n.º 4, 23 anos)

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“Não falaram. A minha mãe nunca disse nada. Minha irmã disse que eu continuava sendo irmão dela. Ela não queria participar de nada dessa parte.” (Entrevistado n.º 5, 52 anos) “Acho que se calhar me colocaram um bocado à distância, não perceberam muito bem porque eu estava a enveredar por esse caminho.” (Entrevistado n.º 6, 41 anos) “Nunca lhes contei directamente que fazia espetáculo como eu era mais miúdo, mais novo, eu tinha muito receio por parte deles sem perceber qual seria a sua reacção, principalmente dos meus pais. Tanto os pais, comos os irmãos, como a família mais chegada foram sabendo com o tempo e a reacção dos meus pais não foi das melhores pela preocupação de tentar perceber se eu era gay se não era, o facto de fazer espetáculo com roupas de mulher causou ali alguma confusão.” (Entrevistado n.º 7, 36 anos) “Da parte da minha mãe aceitaram melhor, é a parte mais humilde. Do meu pai já tinham uma postura diferente. Há aquele preconceito. O meu pai nunca aceitou a minha homossexualidade. Sofri muito, muito.” (Entrevistado n.º9, 66 anos).

5 dos 11 entrevistados que referem ter havido uma boa aceitação ou não ter havido complicações. “Muito bem! A minha irmã foi ao meu primeiro espetáculo, a minha mãe estava fora do país, entretanto, eu fui viver para Espanha, onde vivia a minha mãe na altura e ela ia ao meus espetáculos e adorava. O resto da família reagiu muito mal (…) Eu soube que em reuniões de família dissessem que eu estava morto…” (Entrevistado n.º 2, 24 anos) “Nada. Não disseram nada, deixaram seguir o meu caminho.” (Entrevistado n.º 3, 57 anos); “Antes de começar a fazer, a minha mãe já ia comigo a um bar ver transformistas. Ela gostava bastante. Quando comecei a fazer, começou-me a fazer

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roupa, … lidou muito bem, e acabou por querer vir ver, no primeiro dia que lhe disse no dia seguinte quis ver logo um show meu.” (Entrevistado n.º 8, 26 anos).

A perguntava anterior questionava o entrevistado sobre a reacção aquando os familiares souberam que o entrevistado fazia transformismo. A questão que se segue pretende verificar como é que hoje lidam os familiares com o transformismo e com o próprio entrevistado. Maioria dos entrevistados revelaram que, hoje em dia, há uma boa ligação dos familiares com o transformismo “Lidam muito bem, a minha mãe lida muito bem, conhece os meus amigos todos …” (Entrevistado n.º 1, 53 anos) “Já tive o meu pai que me foi ver várias vezes onde estou a trabalhar mas o resto da família não comenta, não diz nada …” (Entrevistado n.º 4, 23 anos) “Os meus familiares mais diretos e que lidam com o meu trabalho (porque já me foram ver atuar) lidam, normalmente. Para eles é um trabalho normal e corrente como se fosse um caixa de supermercado.” (Entrevistado n.º 10, 27 anos).

1 dos entrevistados, diz ter sempre arranjado desculpas para a sua mãe não ir assistir a um espetáculo seu “A minha mãe nunca viu-me a trabalhar, inventei sempre desculpas para não deixar.” (Entrevistado n.º 9, 66 anos).

Outro entrevistado revela que esse seu lado de transformista não existe para a sua família “É boa. A minha relação é (nome do entrevistado) com a família a parte da actividade transformista não existe para a minha família porque a minha família simplesmente fez questão de não falar dessa parte então eles simplesmente fazem que ignoram e como não querem falar nós também temos de respeitar as pessoas porque elas também não interferem, (...) Continuam mantendo o silêncio é a limitação de cada pessoa temos de respeitar que cada pessoa tem a sua limitação e quando elas não conseguem lidar com certas coisas que elas ou porque não aceitam mas apesar

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de tudo conseguem respeitar. Temos de respeitar a escolha delas.” (Entrevistado n.º 5, 52 anos).

A última pergunta desta dimensão é para analisar como funcionam os relacionamentos amorosos dos transformistas, ou seja, se há uma boa relação dos(das) companheiros(as) dos entrevistados com a actividade desempenhada pelo entrevistado enquanto transformista, maioria revela ser um pouco complicado, têm que se pessoas especiais para lidarem da melhor forma “Tive um companheiro dez anos e outro seis anos, neste momento não tenho ninguém, tem de ser pessoas especiais para aceitarem o que fazemos … e as pessoas com quem andei aceitaram bem.” (Entrevistado n.º 1, 53 anos) “Essa é a parte mais difícil de gerir … pois a pessoa que está ao nosso lado tem de ter algum "savoir faire" para encarar … "os comentários" … os "assédios" e afins que possam advir.” (Entrevistado n.º 11).

Outros referem que o companheiro respeita a vontade do entrevistado mas não gosta da situação “Já fui “viúva”, tive um companheiro que morreu. Todos que já tive não gostam que faça show. “Deixa esta merda, já não tens idade …” Ele não vai aos bares gay nem nada, prefere ficar em casa …” (Entrevistado n.º9, 66 anos).

Outro, menciona que quando iniciou-se nesta actividade o namorado também era transformista, todavia, já teve um relacionamento que terminou por o entrevistado ser transformista “Tendo em conta que quando comecei o meu companheiro também o era. Relacionamentos futuros, tive uma relação que acabou exactamente por isso, por ser transformista. E de resto com muita naturalidade.” (Entrevistado n.º 2, 24 anos)

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Um dos 11 entrevistados revela que o companheiro, também, já fez transformismo e hoje é seu companheiro amoroso e profissional “Estou com ele há dez anos, ele chegou a fazer duas performances antes de mim num concurso “Dar lugar às novas” que é um concurso para as pessoas que queiram fazer pela primeira vez transformismo. Fez essas duas vezes e passados dois, três anos apareceu (nome artístico do entrevistado). Ele lida bem, é o meu manager. Faz contactos, ajuda-me nas roupas, ajudam-me na maquiagem, … Relação de proximidade…” (Entrevistado n.º8, 26 anos) Outro entrevistado afirma que o companheiro agiu com naturalidade “Eu neste momento estou numa relação, tenho um companheiro há quase cinco anos, e lá está mais uma vez é vista como uma forma totalmente natural porque nunca houve entrave, eu durante muitos anos tive complexos em contar às minhas potenciais relações que fazia espetáculo e eu próprio ao criar essa possível entrave, criar entraves nas minha relações” (Entrevistado n.º7, 36 anos)

Um dos entrevistados ressalva o aspecto de que são namorados do entrevistado e não da personagem interpretada por eles nos palcos “O meu companheiro lida muito bem ele lida como os companheiros que tive anteriormente sempre lidaram muito bem porque eles sempre foram namorados do (nome do entrevistado) nunca foram namorados da (nome artístico). Sempre conheceram primeiro o (nome do entrevistado) depois chegaram a conhecer a (nome artístico).” (Entrevistado n.º 5, 52 anos)

Motivação económica Nesta dimensão pretende-se analisar se o actor social consegue sobreviver com o seu trabalho de transformista, perceber se o actor conjuga mais de uma actividade profissional, constatar o papel da remuneração no mundo do transformismo, verificar

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se o indivíduo está no transformismo por condicionamento ou por vocação e livreescolha, aferir as oportunidades de emprego como variável de constrangimento e tentar relacionar as habilitações literárias e as oportunidades de emprego como condicionantes do transformismo. Assim sendo, foram colocadas as seguintes questões “Encontra-se no activo como transformista?”, “É transformista a tempo inteiro ou complementa com outra actividade profissional?”, “É uma actividade bem remunerada?”, “Se tivesse possibilidade de deixar o transformismo, fazia-o?”, “Considera que seguiu o caminho do transformismo por falta de oportunidades de emprego?”. Em relação à primeira pergunta que verifica se os entrevistados encontram-se no activo como transformistas, 9 dos entrevistados afirmam estar no activo e 2 dos 11 já não se encontram a fazer show de transformismo. “Não” (Entrevistados n.º 2 e 6, 24 e 41 anos).

Com a seguinte questão pretende-se aferir se os entrevistados são transformistas a tempo inteiro ou complementam com outra actividade profissional remunerada. Assim sendo, 2 dos 11 entrevistados estão ou estiveram a tempo inteiro como transformistas “Na parte final a tempo inteiro, mas sempre fiz várias coisas ao mesmo tempo.” (Entrevistado n.º 6, 41 anos) “De momento sou só transformista.” (entrevistado n.º 10, 27 anos).

Os restantes 9 entrevistados referem complementar a actividade de transformista com outro trabalho remunerado, uns até mencionam o facto de o transformismo ser apenas um hobbie/ passatempo “Sou drag como passatempo, sou maquilhador profissional e sou formador na área de maquilhagem profissional.” (Entrevistado n.º 7, 36 anos)

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“Meu hobbie … minha profissão cabeleireiro.” (entrevistado n.º 11, 51 anos). Um dos entrevistados encontra-se reformado da sua principal actividade profissional e, neste momento, só se dedica ao transformismo “Reformado e transformista.” (Entrevistado n.º 9, 66 anos).

O transformismo é uma actividade bem remunerada? É a questão que se segue. Maioria dos entrevistados são impreteríveis ao afirmar que é uma actividade cada vez pior remunerada e justificando a génese do problema remuneratório “Já foi melhor remunerada. Está a cair em decadência daí o meu afastamento, por donos de casas, (…), pelos pseudo-transformistas…” (entrevistado n.º 2, 24 anos) “Não. Já foi!” (Entrevistado n.º 3, 57 anos) “Não. Pessimamente remunerada. Justamente porque você investe muito a nível de roupa bijuterias. Você gasta muito mais do que acaba ganhando.” (Entrevistado n.º 5, 52 anos).

Um dos 11 entrevistados demonstra que antigamente conseguia ganhar-se mais e trabalhar em simultâneo em mais casas de espetáculo, não obstante, hoje é quase impossível. Mostra que além do valor remuneratório, todos estes anos, serviram para construir um nome e ter alguma notoriedade, afirmando que já foi homenageado pela Câmara Municipal do Porto e recebeu vários prémios “Não se ganha grandes cachés. Antigamente, havia mais espetáculos, fiz de tudo, em todo o tipo de festas, casamentos etc. só não fiz funerais. Fazia três casas gays ao mesmo tempo, fiquei com nome. A Câmara Municipal do Porto pagou-me a mim quando o Porto foi Capital da Cultura e fiz parte de um livro “O Porto à abrir” editado na livraria Lello. Este livro marcou a minha vida.” (entrevistado n.º 9, 66 anos).

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Apenas um dos entrevistados afirma que é bem pago calculando o n.º de horas e o valor auferido “Sim e não. Sim no que toca ao tempo/ cachet (recebo até bastante bem pelo tempo que trabalho diariamente). Não porque é uma profissão que exige bastantes gastos.” (Entrevistado n.º 10, 27 anos)

A penúltima questão desta dimensão propõe analisar se o entrevistado tivesse possibilidade imediata de deixar o transformismo, se o faria. Maioria demonstra não querer deixar o transformismo, caso tivesse oportunidade imediata de fazê-lo “Não, porque nunca fiz por dinheiro.” (Entrevistado n.º 8, 26 anos) “Já ganhei tudo o que tinha a ganhar. Já ganhei prémio de carreira, tenho um nome … Arranjo sempre desculpas …” (Entrevistado n.º 9, 66 anos) “Neste momento não penso sequer nisso. Sinto-me bem com o que faço e, sobretudo, realizado.” (Entrevistado n.º 10, 27 anos). 3 dos entrevistados ponderavam caso houvesse um motivo de força maior “Só se fosse assim uma coisa muito forte porque adoro fazer o transformismo, eu também digo isto porque sou muito recente nesta área, … para mim é muito bom, dá para exprimir coisas que homem não conseguiria, o dito complemento.” (Entrevistado n.º 4, 23 anos);

Um dos entrevistados afirma não ter necessidade de se retirar da actividade, pelo contrário, é quase interesse público continuar activo enquanto profissional, pois tem uma notoriedade nacional “Sim, aliás, não, eu não tenho nenhuma necessidade de terminar ou não. Neste momento, há um interesse quase público devido à minha exposição dar um contorno diferente à (nome artístico) continuar com os meus espetáculos, porque quero cada vez mais cantar ao vivo, não tenho necessidade, mas

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possibilidade tenho sempre de acabar com os meus espetáculos.” (Entrevistado n.º 7, 36 anos). 2 afirmam que deixar o transformismo seria um caso a pensar “Era um caso a pensar …” (Entrevistado n.º 3, 57 anos). Outro afirma, perentoriamente, não deixar o transformismo “Não.” (Entrevistado n.º 1, 53 anos).

A última questão visa avaliar se os entrevistados seguiram o transformismo por falta de oportunidades de emprego. Todos referem que não, aliás, houve um dos entrevistados afirma ter-se despedido exactamente para poder dedicar-se inteiramente à actividade de transformista “Despedi-me, inclusivamente, do meu anterior emprego pra abraçar esta oportunidade.” (Entrevistado n.º 10, 27 anos).

Outros mencionam que seguem o transformismo por passatempo, por prazer e arte “De modo nenhum… segui o transformismo sempre como hobbie, por prazer e por arte.” (entrevistado n.º 11, 51 anos). Outros mencionam que foi por diversão ou libertação “Não. Foi por pura diversão …” (entrevistado n.º 1, 53 anos); “Não, foi por um gosto, de libertação …” (Entrevistado n.º 8, 26 anos).

Outro entrevistado, ainda, refere que além de seguir o transformismo por livrevontade, tem um emprego onde é realizado profissionalmente “Não. Até porque sou muito bem-sucedido na minha área.” (Entrevistado n.º 2, 24 anos).

Sexual Com a dimensão sexual propôs compreender através das entrevistas realizadas se há correlação entre a homossexualidade e o transformismo, perceber se o actor

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transformista é um indivíduo que se identifica com o sexo feminino ou apenas se transveste profissionalmente e, ainda, aferir se o transformismo é um meio propício para a prática da prostituição. Assim sendo, foram realizadas as seguintes questões “qual é a sua orientação sexual?”; “Considera que haja alguma relação entre ser transformista e a orientação sexual do actor, ou seja, o transformismo está ligado à homossexualidade?”; “Identifica-se mais com o género masculino ou feminino?”; “Alguma vez se prostituiu?”; “Considera que o transformismo é um meio facilitador para a prática da prostituição?” e “Acha que o transformismo, ou seja, um homem vestir-se de mulher é encarado pelo público como uma forma de prostituição?”. Referente à primeira questão “qual é a sua orientação sexual?”, todos os entrevistados afirmam ser homossexuais. Na segunda questão “ considera que haja alguma relação entre ser transformista e a orientação sexual do actor, ou seja, o transformismo está ligado à homossexualidade?”, os entrevistados referem que é comum ser exercido por homossexuais, não obstante, há excepções e casos relatados de indivíduos de outras orientações a fazerem esta performance artística. Citando o entrevistado n.º 10 (27 anos) “Embora seja uma profissão liderada sobretudo por gays, há muitos héteros no mundo inteiro a realizar esta arte. Não nos podemos esquecer que os primeiros papéis feminino foram interpretados por homens na antiga Grécia (e nem todos eram gays).” Citando o entrevistado n.º 11 (51 anos) que refere que o homossexual tem uma sensibilidade diferente “Não obrigatoriamente… mas os homossexuais têm uma sensibilidade diferente.”

Na terceira questão abordada nesta dimensão, que questiona se o entrevistado se identifica mais com o género feminino ou género masculino. Maioria, isto é, 9 dos 11 entrevistados referem que se identificam com o género masculino, um dos entrevistados, salienta, ainda, “Sou muito masculino. Não gosto de mariquices nunca fui. Acho que é desnecessário.” (entrevistado n.º 5, 52 anos).

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Outro entrevistado complementa “Eu sou um homem e gosto do meu corpo. A (nome artístico) é apenas uma personagem.” (entrevistado n.º7, 36 anos).

Em relação a esta questão, temos duas respostas divergentes, um dos entrevistados afirma que se identifica com os dois géneros “Gosto dos dois. Género feminino mais à noite quando trabalho, mas gosto dos dois. Eu gosto da minha maneira de ser nas duas vertentes, …” (entrevista n.º 1, 53 anos) e outro entrevistado que demonstra não se identificar com nenhum género “Sem género, não me identifico com nenhum dos dois.” (entrevistado n.º 8, 26 anos).

No que diz respeito à pergunta que questiona se os entrevistados já se tinham prostituído alguma vez, 10 dos 11 entrevistados afirmam que nunca o fizeram, todavia, salientam que, já foram convidados à prática “Nunca na minha vida pela alma da minha mãe. Já fui muitas vezes convidado para …” (entrevista n.º 9, 66 anos) “Não. Na página da (nome artístico). Pediram amizade e começaram a fazer propostas. Eu esclareci e disse que o perfil existe a nível de trabalho e para as pessoas que admiram. (entrevistado n.º 5, 52 anos).

Apenas um entrevistado refere que já o fez por necessidades económicas, admitindo voltar a fazê-lo caso haja necessidade “Já o fiz por necessidade há alguns anos e nada de bom agrado mas se houver necessidade de o fazer voltarei a fazê-lo.” (entrevistado n.º 10, 27 anos).

Na questão que aborda a ligação do transformismo com a prostituição, as respostas dos entrevistados são bastante divergentes, uns concordam que há ligação justificando “Sim, considero que há strippers que estão a trabalhar no mundo do

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striptease, e nunca se prostituíram, e há mulheres que usam o striptease para chamar atenção para se prostituir (…) com o transformismo é igual. Eu sei que há transformistas que se prostituem e usam o lugar de destaque, o lugar de atenção para chamar atenção neste caso.” (Entrevistado n.º 2, 24 anos) “Também (…) Porque é fácil, a partir do momento em que as pessoas se vestem de mulher e quando digo que se vestem de mulher digo aquelas lingeries que se compram nos chineses ou com a roupa da irmã, da tia ou da prima, esquecendo-se que o transformista tem de usar roupas exuberantes, lantejoulas, plumas, brilhos, são roupas que não são para por na rua e quando se entra por outro lado … é um caminho a seguir … à prostituição porque a seguir há os convites, há uma série de coisas a funcionar nas casas” (Entrevistado n.º 3, 57 anos) “Sim, acredito que sim. Já recebi convites para … nomeadamente nas casas gay onde aparece um curioso que faz propostas.” (Entrevistado n.º 4, 23 anos).

Dois dos entrevistados fundamentam as suas respostas segundo as atitudes das próprias pessoas, ou seja, tudo depende do indivíduo “Depende como cada um encara as coisas, se eu uso o transformismo para usar a minha expressão emocional ou o ser único que eu sou e explorar isso como uma forma de crescimento a arte torna-se terapêutica, agora se estou ali vestido de mulher para me mostrar, para me exibir, tanto faz estar na rua, na esquina, como no palco é exactamente a mesma coisa, nesse processo, isto não é uma crítica, nesse processo não há evolução, a pessoa fica ali, o objectivo dela é vestir-se de mulher para se prostituir, independentemente, de receber dinheiro para isso ou não.” (Entrevistado n.º 6, 41 anos) “Não sei, sinceramente, eu acho que não, tem que ver com a pessoa, com os valores e os ideais da própria pessoa, agora a própria prostituição dá acesso a um

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meio fácil de fazer dinheiro e isso tenta qualquer pessoa como é obvio, agora tem a ver com a própria pessoa, os ideais, os valores (…) Não é o transformismo que facilita a prostituição. (…)” (Entrevistado n.º 7, 36 anos).

Outros afirmam que há, ainda, muita confusão no que toca ao transformismo versus prostituição “Embora os tempos estejam a mudar e muita gente tenha curiosidade com o lado B da vida, temos de separar o que é a arte do transformismo, com pessoas que se maquilham (e até realizem operações para se parecerem com mulheres) para realizar fetiches alheios. Por não haver essa separação é que muitas vezes sou abordado via facebook para atos sexuais.” (Entrevistado n.º 10, 27 anos).

Um dos entrevistados menciona que a prostituição vem dos problemas económicos que o indivíduo possa ter, não usando a arte da transformação para outros fins “Não sei, não vejo uma ligação directa, acho que acaba por a prostituição vem do problema financeiro e não sexual, óbvio alguns tem uma vertente usam o transformismo como escapatória, mas aqueles como eu que são artistas transformistas, muitos não são.“ (Entrevistado n.º 5, 52 anos).

Um entrevistado marca bem a sua opinião demonstrando que o transformismo e a prostituição não têm ligação alguma “Transformismo não. Transformismo implica arte de palco, apareceram as crossdressers e criaturas que vestem um vestido e saldo alto e são mulheres, mas é só uma maneira fácil de ganhar dinheiro … veste-se de mulher e vai para a rua, isso não é transformismo.” (entrevistado n.º 1, 53 anos).

Na última questão desta dimensão que tenta perceber se o transformismo, ou seja, um homem vestir-se de mulher é encarado pelo público em geral como uma forma de prostituição, os entrevistados têm opiniões muito próprias. 6 dos 11 entrevistados pensam que o público em geral, isto é, pessoas que assistem a um

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espetáculo de transformismo não associam o transformismo à prostituição. Apenas, se virem um artista que esteve em palco nas ruas ou vice-versa, aí, sim, poderá suscitar esse pensamento “Este estereótipo transformismo ligado à prostituição surgiu de travestismo de rua, acaba por influenciar um bocado na área da prostituição … porque há travestis que fazem transformismo e depois há associação. Pelo público em geral, eu acho que não, creio que não … Se tivermos em palco acho que não associação, agora, eu usar a personagem no palco e na rua, aí sim é mais complicado porque aí já associam… conheço transformistas que se prostituem.” (Entrevistado n.º 4, 23 anos).

Alguns acusam a falta de conhecimento como justificação para a possível confusão entre as duas actividades “Eu acho que infelizmente por desconhecimento geral a grande maioria associa as duas actividades (…) Tem um bom fundamento nos travestis de rua e nestes novos pseudo-transformistas que vão surgindo.” (Entrevistado n.º 2, 24 anos).

Outros entrevistados referem que o surgimento de novos transformistas que, na sua opinião, não são detentores de qualquer arte, apenas vestem-se de mulheres, é passível de ser denominado de prostituição “Eu falando como público eu se vir um bom transformista não vejo dessa maneira, mas ao ver estes novos transformistas vejo realmente como prostitutos de palco, … pois é uma maneira fácil de ganhar dinheiro, só que não têm sexo, pois é uma maneira fácil de ganhar dinheiro. (Entrevistado n.º 3, 57 anos).

Há, ainda, alguns dos entrevistados que apontam a possível ligação transformismo versus prostituição com a génese do travestismo de rua “Há uma ligação ao travestismo e não tem nada a ver. Há associação ao travestismo de rua, o transformista é a arte de se transformar.” (Entrevistado n.º 8, 26 anos).

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É ressalvado por um dos entrevistados que o transformismo é muito mais do que um homem vestir-se de mulher e tem um fundamento muito próprio “O transformismo é muito mais que um homem vestir se de mulher. É uma homenagem que se faz a grandes vedetas. E não é via sexual! Se assim o pensam, então pensam muito mal.” (Entrevistado n.º 10, 27 anos).

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CAPÍTULO VI - DISCUSSÃO DOS RESULTADOS Neste capítulo serão discutidos os principais resultados desta investigação. Assim, tendo presente a revisão bibliográfica e com base nos dados recolhidos, nomeadamente, a observação e as entrevistas procurou-se analisar e refletir sobre as atitudes, reações, modos de vida, relações do entrevistado com a sociedade. Poderei definir transformista como um indivíduo do género masculino, que se identifica como homem e não pretende mudar de sexo, tem um emprego dentro da área da representação ou de outra área, que não havendo qualquer relação com a sua orientação sexual, tem uma família e uma vida dentro dos parâmetros da sociedade onde se encontra inserido. Todavia, tem uma ocupação extra, seja por lazer, diversão ou como um part-time transformar-se no género oposto ao seu e representar algumas cantoras em espaços de diversão nocturna. O primeiro contacto normalmente com o mundo do transformismo é feito através de bares LGBT, além de já se assistir a este tipo de performance em casinos e bares sem serem direccionados a um público em particular. O Transformismo deixou de ser exibido em guetos e tornou-se uma arte acessível de ser apreciada em qualquer lugar de diversão nocturna. Todos os participantes, neste estudo definem o transformismo como uma arte. Arte essa que deve ser exercida com toda a dedicação, esmero e profissionalismo. Sentem que, alguns dos novos transformistas que têm aparecido no panorama, não respeitam esta performance artística, apenas usam-na para se evidenciarem. Não têm nem vontade de aprender com os transformistas que têm anos de carreira profissional. Ao considerarem o transformismo como uma arte, revelam, na maioria dos entrevistados, haver um interesse ou uma ligação desde cedo ao mundo artístico. Muitos dos transformistas entrevistados, já estavam associados ao mundo do teatro, da música. O transformismo foi para alguns apenas uma especialização, assim, como há

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actores de outros géneros, como de comédia, drama, musical, de teatro, de telenovela, entre outros. As roupas e todos os gastos iminentes à transformação do indivíduo é assegurada por ele próprio, não recebendo qualquer apoio monetário para o efeito. Exceptuando quando são números grupais é que poderá haver um apoio nesse sentido. Apenas é remunerado pelo serviço prestado. Tem, por norma, autonomia para escolher e definir a sua performance onde vai actuar. Para ser um actor transformista tem que haver sensibilidade e vocação, pois o que os transformistas tentam fazer é mostrar em palco o melhor que uma mulher tem, desde a sua exuberância à sua feminilidade. A partir da afirmação de Simone de Beauvoir no seu livro “O Segundo Sexo” onde a autora afirma ” Não se nasce mulher, se chega a sê-lo” não é uma afirmação directamente sobre género mas sobre a mulher, que para Beauvoir, não era compreendida como um “outro”, mas como uma subalternidade que só podia constituir-se em relação ao sujeito “homem”, na sua dependência. O transformar-se mulher, não poderia, na óptica de Beauvoir, pertencer numa razão do “ser homem”, de modo que, os primeiros estudos feministas, dirigemnos uma visão, ainda, essencialista de diferença de género, dissemelhança essa que continua a constituir-se a partir de novas acepções dos dados biológicos. Existem transformistas que se consideram mais chocantes, constroem uma mistura andrógina, e usam a expressão inglesa “Drag Queen” para definirem-se como um transformista mais ousado e que não tem só traços femininos, mas umas mistura de ambos, como barba, espartilho, careca e saias, etc. Neste estudo foi possível verificar que os transformistas sentem-se respeitados pelo público para quem actuam, desde homens a mulheres, independentemente, das orientações sexuais dos indivíduos, Segundo Amanajás, “algumas das causas que tornaram possível o desdobramento dessa linguagem (assim como um maior acolhimento pelo público de diferentes esferas sociais) foram a crescente mudança de

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pensamento da sociedade …” Todavia, revelam que há mais preconceito e até discriminação do público homossexual. Pois, alguns não consideram o transformismo como uma forma de arte, mas apenas como uma afirmação pessoal do indivíduo que se exibe em cima do palco transformado numa mulher. Salientam, também, que o público homossexual é o que mais crítica faz, que repara em mais pormenores e degrine mais o papel do transformista. Todos os transformistas criam uma personagem que tem um nome próprio, todavia, vão interpretando diversas cantoras com essa mesma personagem. Ou seja, a personagem é adaptável e mutável, nomeadamente, em termos de nome artístico tem sempre o mesmo. Há transformistas que só fazem determinados tipos de show, ou seja, há transformistas que se dedicam mais ao show cómico. Todos os entrevistados foram indagados quanto ao facto de se imaginarem sem a sua personagem. Uns revelam desligarem-se com facilidade, todavia, outros não se imaginam sem a personagem, considerando mesmo a personagem como um complemento deles próprios. Há quem refira se a personagem nasceu há-de morrer juntamente com o indivíduo. Outros, só encontram na personagem uma ferramenta de trabalho, usando-a apenas em cima do palco, e quando tiram as pinturas, esquecem-se e querem esquecer a personagem. É de ressalvar, que, ainda, existe um preconceito associado a esta performance artística, devido a desconhecimento do transformismo em si e até por confusão com o travestismo de rua. Pela ideia pré-concebida do transformismo poder estar ligado à prostituição. Existem as situações em que os indivíduos são marginalizados, havendo exclusão e estigma, diariamente, devido à própria sociedade onde estão inseridos não os considerarem “normais”. Por serem associados a “espécies” caracterizadas por serem fora do normal, incomum, diferentes a sociedade tende a afastar‐se delas e, ainda, exercer um forte preconceito sobre as pessoas ditas “incomuns”, denominandoas de perigosas e más. “Quase sempre deixam de ser vistas na sua totalidade enquanto pessoas com potencialidades, com capacidade de acção” (Goffman, 1993).

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No que diz respeito ao construccionismo social podemos apoiarmo-nos na teoria foucaultiana que apresenta um conceito para sexualidade e que o podemos usar para perceber os assuntos ligados à temática sexual, “é o conjunto de efeitos produzidos nos corpos, nos comportamentos, nas relações sociais, por um certo dispositivo pertencente a uma tecnologia política complexa” (Foucault, 1998:139). Ocorre, portanto, a difusão de tal dispositivo, e o elemento repressor é que vai compensar a difusão, separando em classes. Foucault diz que as relações e o desejo são fruto da própria construção social. Não há essencialismos, identidades naturais ou algo do tipo. O próprio sexo estaria inscrito em tal dispositivo. Em relação ao facto de existir um complemento entre o indivíduo e a personagem, depende muito de indivíduo para indivíduo. Uns consideram não haver qualquer tipo de complemento, nem vontade de viver outro género que não o de nascença. Não obstante, há entrevistados que referem que é impossível não haver um complemento, pois na personagem que criaram podem evidenciar os seus traços mais femininos. É verificável que a personagem que criam, está presente na vida dos entrevistados, pois há todo um trabalho por trás do palco a ser realizado, mas, tentam delinear e distinguir os papéis, ou seja, preocupam-se constantemente em discernir os papéis no seu quotidiano. É de salientar que não se esquecem da personagem quando saem de palco, pois há todo um trabalho antes das apresentações. Então, ser transformista além de muita sensibilidade e vocação requer muita minuciosidade, tempo e todo um conjunto de cuidados na transformação do ser homem para a personagem. Quando questionados quanto ao facto de os entrevistados tentarem evidenciar um lado feminino e procurar na personagem um refúgio, uma espécie de tentativa de viver outro género que não o seu de nascença, estes mostraram-se divididos, pois por um lado mostram que se sentem bem com o seu género masculino, não sentem vontade sequer de viver outra sexualidade ou identidade. Por outro lado, com a personagem

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podem viver e experienciar outras características que estão presentes em si próprio, características essas que fazem parte do indivíduo mas que socialmente são reprovadas e sujeitos a actos discriminatórios. Em suma, segundo a opinião dos entrevistados todos os indivíduos têm um lado feminino e um lado masculino, mas cada um desenvolve mais um lado do que outro, muito diferente de quererem ser mulheres definitivamente, pois estes sentem-se bem com os seus corpos. Segundo Ana de Castro “a diferença entre as transexuais e as travestis, é que as primeiras afirmam que “nasceram com o corpo errado”. Seriam “mulheres presas num corpo de homem”. O órgão sexual é visto como um apêndice, portanto, deve ser retirado. Assim, a transexual é aquela que fez ou deseja fazer cirurgia, assim como, passar por todo o processo de mudança de sexo”. Os entrevistados referem que conseguem discernir bem os papéis enquanto homens e enquanto actores transformistas. Maioria das vezes, quem não sabe ou não tem a capacidade de saber distinguir ambos são as próprias pessoas, baseando-se em ideias pré-concebidas e pejorativas, fazendo até associações erradas a respeito do mundo do transformismo, afirmo com base na minha experiência empírica que os indivíduos rejeitam e criticam tudo o que não conhecem ou é diferente do conceito de normalidade da sociedade em que se encontram. A normalidade de um comportamento está relacionada à conduta de um indivíduo que não apresente diferenças significativas relativamente à conduta do resto da sua comunidade, por exemplo, na nossa sociedade é comum rejeitar um homem vestido com saias, não obstante, há sociedades em que os homens usam saia (kilt) como em certas regiões da Escócia, então, aqui verificamos que o conceito de normalidade varia de sociedade para sociedade, de comunidade para comunidade. Não nos podemos esquecer, contudo, que a normalidade tem uma grande carga de subjectividade e que depende da condição social e da idade, entre outras variáveis. Um comportamento adoptado por um adolescente se o mesmo se pautar num idoso pode não ser considerado “normal” devido ao factor idade.

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Todos os entrevistados mostraram que ao discernir os papéis enquanto actores procuram separar as esferas da vida da personagem e do próprio sujeito, para sublinhar esta evidência tentou-se verificar como lidavam os entrevistados com as redes sociais. Todos revelaram que têm redes sociais como o Facebook para a personagem independentemente do seu perfil. Estes perfis servem para dar visibilidade à personagem para contactos profissionais. Os actos discriminatórios acontecem sem regularidade e são actos mais silenciosos, como olhares e até pela exclusão do próprio transformista, como ignorando a sua presença. Tentei aferir como é a reacção das pessoas quando sabem da actividade de ser transformista do entrevistado. Todos mostraram que as reacções das pessoas costumam ser positivas, como até procurar saber mais sobre o que é ser transformista, há uma tentativa de esmiuçar o trabalho realizado pelos actores socias. “Todo o homem tem a sua parte feminina” foi uma das frases mais ouvidas nas entrevistas que realizei, contudo, esta frase fazia parte do guião o que foi de encontro à perspectiva dos entrevistados. Todos consideram que as pessoas sejam elas mulheres ou homens têm um lado masculino e um lado feminino dentro delas. Isto é, um homem tem um lado feminino e uma mulher tem um lado masculino, pois este revela-se nas situações do dia-a-dia. No que diz respeito à esfera familiar verificou-se que os entrevistados quando revelaram à sua família mais próxima ser transformistas houve alguns constrangimentos e muitas dúvidas, ligadas à possível homossexualidade ou até mesmo prostituição. Estes esclarecendo que não tem qualquer associação. Há uma maioria que é homossexual, conforme podemos constatar ao longo deste relatório, mas não é regra. A possível ligação à prostituição não é um fenómeno do acto de ser transformista. A relação familiar com o tempo e com o conhecimento do que é ser transformista melhorou e mostrou-se pacífica. Pensando na teoria de Foucault “a

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confissão da verdade inscreveu-se no cerne dos procedimentos de individualização pelo poder”. (Foucault, 1998:67) ainda, reflectindo, mais sobre a cultura, família, representação social e o próprio corpo social, Miguel Vale de almeida defende que, mesmo que este conceito “tenha sido introduzido por Mauss para se referir à totalidade dos usos culturalmente padronizados do corpo numa sociedade, Mauss antecipou que o corpo era simultaneamente objecto de técnica e meio técnico, bem como identificou a natureza subjectiva da técnica.” (Vale de Almeida, 2004:12) Contudo, o autor estabelece uma relação intrínseca com Bourdieu, em que defende que o autor “vai mais longe do que a ideia do habitus como colecção de práticas, definindo-o como um sistema de disposições duradouras, princípio inconsciente e colectivamente inculcado para a geração e estruturação de práticas e representações. Este princípio não é mais do que o corpo socialmente informado.” (Vale de Almeida, 2004:12). Uma das situações que revela maior fragilidade são os relacionamentos amorosos dos entrevistados. Estes referem que é preciso haver muita confiança e “poder de encaixe” dos namorados para lidarem com o mundo do transformismo e inclusivé da vida nocturna. Todos os entrevistados encontram-se no activo enquanto transformista, exceptuando, dois que já abandonaram essa actividade por razões pessoais. Ambos os entrevistados que deixaram o transformismo têm em comum o facto de estarem cansados com determinados comportamentos associados aos donos dos bares onde frequentemente actuavam, ou pela baixa remuneração ou até mesmo pela desvalorização do trabalho desempenhado pelos actores. Os entrevistados revelam ter profissões comuns e, maioria complementa a arte do transformismo com uma actividade profissional. Apenas um dos entrevistados vive apenas do transformismo e inclusivé considera-se bem remunerado calculando as horas que representa com o montante auferido.

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Maioria revela dificuldade em deixar o transformismo, conforme um dos entrevistados explicita ao referir que depois de experimentar-se este mundo é muito complicado deixar. Outro entrevistado vai mais longe e refere se a personagem nasceu com ele, também vai morrer com ele. Nenhum dos entrevistados seguiu o mundo do transformismo por falta de oportunidade de emprego. Quando questionados da relação do transformismo à homossexualidade, estes revelaram que há uma maioria que é homossexual, não obstante, há muitos transformistas de outras orientações sexuais. Os entrevistados envolvidos neste estudo são todos de orientação homossexual, nas não é condição ser homossexual para ser transformistas. Há transformistas heterossexuais e bissexuais. Tendo em conta a American Psychological Association (APA, 2006) que considera a orientação sexual como uma atracção emocional, romântica, sexual ou afectiva a indivíduos de um determinado sexo, assim sendo, a Orientação Sexual é encarada como uma das quatro componentes da sexualidade, sendo as restantes componentes: o sexo biológico (sexo masculino ou feminino atribuído no nascimento); a identidade de género, correspondendo ao sentido psicológico de ser masculino ou feminino; e o papel social do género, ou seja a extensão do que é considerado na sociedade como o comportamento feminino e masculino (APA, 2006). É de ressalvar que o actor transformista só se transveste para exibir a sua arte e não para vivenciar uma outra identidade sexual, desta forma, a noção de orientação sexual não tem uma ligação directa ao transformismo. Já ser transexual tem outra finalidade que Don Kulick (2008), “as travestis em momento algum se consideram homens, muito menos mulheres.” Portanto, o autor observa “que o núcleo central da sua subjectividade é o facto de sentirem atração física e sexual por homens. Elas alteram o corpo irrevogavelmente para que este se assemelhe ao do sexo oposto, sem, contudo, reivindicar a subjectividade própria ao sexo oposto”.

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Dos entrevistados que participaram neste estudo demonstram que se identificam com o seu género. Há dois entrevistados que dizem identificarem-se com os dois, podemos, então, falar no conceito de androginia. Ou seja, que reúne os dois sexos, que é comum ao homem e à mulher, este conceito refere-se popularmente mais a uma qualidade estética. Tem características estéticas associadas ao género masculino e ao género feminino, como traços e formato do rosto ou corpo. É como olhar para um rosto e estar em constante mutação, ora detectam-se elementos femininos, ora masculinos. Os traços ora harmonizam-se, ora confundem-se. Há uma mistura de ambos os géneros. Quando abordamos a questão da prostituição, verificamos que não há ligação da prostituição ao transformismo. Um dos entrevistados refere que já se prostitui por necessidade e que nada tinha que ver com o transformismo. É unânime verificar que um transformista que encara esta performance como uma arte não aceita a associação do transformismo à prostituição. A prostituição está ligada a outros factores como os problemas económicos e não com a prática da arte do transformismo. É de destacar, que há sempre a ideia da prostituição estar ligada ao sexo feminino. Segundo WerzerLang et al. (1994) esta situação poderá estar conectado com o facto de o número de prostituição do sexo feminino ser superior à prostituição do sexo masculino. Não obstante, na opinião do autor, tem vindo a verificar-se um gradual aumento da percentagem de indivíduos do sexo masculino que se prostitui, sendo estes ou não, homossexuais, travestis ou transsexuais. Quando abordamos se o transformismo poderá facilitar a prostituição é comum verificar associação, pois ser transformista dar um lugar de destaque, todos veem o indivíduo a actuar, depois se este se predispõe a prostituir é, de opinião geral, que o transformismo poderá facilitar esta prática. Na tentativa de perceber se o público em geral encara o transformismo como uma forma de prostituição, os entrevistados referem que a opinião do público em geral é de não associar as duas actividades. No entanto, quando fazem alguma observação nesse sentido é por desconhecimento e, também, pela formação e educação das próprias

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pessoas. Pois o transformismo é arte, é uma interpretação que exige muita destreza e empenho do actor para desempenhar um bom papel no palco. Ser prostituto depende de indivíduo para indivíduo e cada situação revela-se única e singular. Segundo as hipóteses que foram formuladas para percebermos melhor o fenómeno do transformismo tentaremos, com base, nas respostas obtidas testá-las. 

O transformismo é uma saída para as dificuldades económicas/ desemprego;

Conforme podemos verificar é unanime verificar que esta hipótese não é plausível. Pois, todos os transformistas têm actividades paralelas ao transformismo. Profissões estas que são as suas formas de sustento e de independência económica. 

O transformismo e a prostituição estão intimamente ligados;

Verificamos nos dados obtidos que não há qualquer relação. 

O transformista pretende assumir um sexo que não é o seu sexo biológico;

O indivíduo que pretende assumir outro sexo é um transexual, logo, o transformista pretende representar e não viver outro género que não o seu. 

O transformismo camufla a necessidade do homem querer ser mulher;

Muito que o actor se sinta liberto, com base nos dados obtidos, não verificamos essa necessidade entre os entrevistados. 

O transformismo encarado como apenas uma forma de arte; Para todos os entrevistados o transformismo é uma arte.



Percepções dos actores transformistas sobre o mundo do transformismo.

Detecta-se que é um mundo, ainda, desconhecido para muitas pessoas, os preconceitos existentes são mesmo por desconhecimento desta performance. É uma arte que não permite independência económica, ou seja, pode ser exercida por prazer

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mas não como profissão a tempo inteiro devido à crise na área e ao aparecimento de mão-de-obra mais barata e que auto desvaloriza-se. O mundo do transformismo é um mundo, ainda, muito hostilizado pois a falta de conhecimento dos demais indivíduos da nossa sociedade é elevado. Tudo o que é desconhecido é criticado e estereotipado fazendo existir pré-conceitos.

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CAPÍTULO VII - CONCLUSÃO Com a realização desta investigação, que me permitiu ter um contacto mais directo com as metodologias da Sociologia, um contacto empírico com alguns indíviduos e com as suas vidas, conhecendo um mundo que me era desconhecido, para além de um aprofundamento pessoal e académico, espero deixar alguns contributos para o conhecimento do mundo do transformismo, uma realidade pouco conhecida e debatida no meio científico. Um dos objectivos que pretendo atingir será a produção de um documentário para que possa ser divulgado pela comunicação social de modo a toda a sociedade ter uma percepção sobre esta performance artística, desenraizando alguns estereótipos e preconceitos que lhes estão associados. O transformismo é uma forma de arte que é vivenciada de norte a sul de Portugal e do mundo inteiro. Desconhecida ou denominada de formas diferente quando se trata a um actor de teatro, telenovela que se transveste para representar determinado papel, todavia, é transformismo. Transformismo não é nada mais, nada menos, que uma forma de representar um género diferente do género biológico. Transsexualidade já é algo bem distinto, envolvendo a identidade e condição sexual do indivíduo. Penso que alcancei alguns dos meus objectivos, ou seja, conhecer um pouco sobre o mundo dos actores transformistas. Pude constatar que as suas vidas são dentro da “normalidade” dos restantes indivíduo de qualquer sociedade, apenas com um detalhe de se transformarem no género oposto ao seu para representarem cantoras em bares de diversão nocturna. Uma das grandes lições que retiro desta investigação é que tudo o que nos é estranho parece-nos errado, mas conhecendo e ouvindo as pessoas que vivem determinados contextos podemos mudar e reflectir a nossa própria postura sobre a vida e sobre tudo o que gira em torno da nossa sociedade.

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Gostava muito de poder vir a desenvolver mais sobre esta temática, por exemplo, penso que um estudo quantitativo para avaliar as percepções das pessoas sobre o transformismo seria muito interessante, mas que não tive tempo suficiente para realizar nesta investigação. Uma das funções da sociologia é ser uma “medicina social”, ou seja, tentar encontrar uma solução para problemas que surgem, que se encontram na sociedade. E, o facto de o transformismo ser muitas das vezes estereotipado e até rejeitado é por falta de conhecimento das próprias pessoas. Logo, umas das possíveis soluções que apresento é exactamente, dar a conhecer sobre este mundo à restante sociedade, ou seja, através de um documentário que pudesse ser elucidativo sobre esta actividade.

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ANEXOS

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ANEXO 1 - Pergunta de Partida Será o transformismo uma arte ou uma fuga ao género do indivíduo? Será o transformismo uma arte ou uma identidade sexual?

Objectivos: 

Identificar os constrangimentos gerais e tipologia;



Explorar o discurso das entrevistas, na medida em que estas revelam o percurso, socialização, vivências e percepções dos indivíduos;



Entender o transformismo como uma forma artística, cruzando com variáveis como a orientação e a identidade sexual do indivíduo;



Aferir como o indivíduo percepciona a sua própria arte e o contacto com a sociedade em geral.

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ANEXO 2 – Modelo do Consentimento Informado

Consentimento informado Eu, _______________________________________________ declaro que fui informado(a) do objectivo e da metodologia da investigação sobre o tema do Transformismo no âmbito do relatório de investigação em Sociologia do discente Tiago Filipe Mendes de Sousa, sob a orientação da Professora Doutora Emília Araújo, do departamento de Sociologia da Universidade do Minho. Estou consciente que em nenhum momento serei exposto(a) a riscos em virtude da minha participação nesta investigação e que poderei, em qualquer momento, recusar continuar sem nenhum prejuízo para a minha pessoa. Sei, também, que os dados da entrevista por mim respondida serão usados, somente, para fins científicos. Aquando do tratamento dos dados, estes serão codificados mantendo assim o anonimato. Fui informado(a) de que não terei nenhum tipo de despesas nem receberei nenhum pagamento ou gratificação pela minha participação nesta investigação. Depois do anterior referido, concordo voluntariamente em participar no referido estudo. Assinatura do(a) participante: ___________________________________________________________ Assinatura do investigador: ___________________________________________________________ Data _________________ dia ______ de Maio de 2016

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Transformismo como estilo de vida: um estudo exploratório

Tiago Mendes de Sousa

ANEXO 3 – Tabela das Dimensões

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Transformismo como estilo de vida: um estudo exploratório

Tiago Mendes de Sousa

ANEXO 4 – Tabela de Análise Comparativa Devido ao tamanho da tabela de análise comparativa, não me é possível

reproduzi-la neste relatório. A tabela deve ser consultada na base de dados em anexo ao presente relatório de investigação (Ficheiro denominado de “Análise de Conteúdo – entrevistas – Transformismo. xlsx”.

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