O Tratamento da Prova Ilícita no Inquérito Policial

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O tratamento da prova ilícita no inquérito policial Resumo: O presente trabalho busca analisar a assertiva corrente de que o inquérito policial é peça meramente informativa, cujas irregularidades não contaminam a ação penal. Entretanto, a praxe tem demonstrado o quanto é importante a realização de um inquérito livre de vícios e garantidor dos direitos fundamentais inseridos na Constituição Federal de 1988. Partindo da análise, inclusive, de alguns casos judiciais, tentar-se-á demonstrar a verdadeira importância que este procedimento administrativo possui para a elucidação de fatos criminosos e, sobretudo, que o famigerado caráter meramente informativo não o é tão simplório quanto sustentado comumente.

1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES Todo indivíduo, na leitura constitucional instaurada a partir da Carta Política de 1988, goza do status de presumidamente inocente. Esta ideologia, que constitui o Princípio da Presunção da Inocência, alicerça toda a ordem jurídica nacional quando o assunto versado for a apuração da autoria e materialidade de crimes sujeitos à legislação brasileira. Neste contexto, sendo o indivíduo presumidamente inocente, ou seja, até que haja prova cabal de sua responsabilidade penal, não poderá ser privado de sua liberdade e de seus bens. Justamente por isso, é que o Estado tem o dever de demonstrar de forma insofismável a autoria dos delitos, devendo sempre fazê-lo conforme a regras previstas em lei. Praticada a infração penal, nasce a obrigação do Estado de buscar as provas que são necessárias para a solução do fato criminoso, apurando sua autoria e materialidade, possibilitando, se for o caso, o exercício da ação penal e a aplicação da pena a todo aquele que infringir normas de convívio social eleitas como indisponíveis pelo Direito Penal. Nesse contexto, a Polícia Judiciária, a quem compete a investigação da materialidade, autoria e demais circunstâncias relativas ao crime, vale-se do inquérito policial, procedimento de natureza administrativa que visa justamente a colheita de provas úteis ao esclarecimento dos delitos. Entretanto, corriqueiramente, diz-se que o inquérito policial é dispensável para a propositura a ação penal e, ainda, peça meramente informativa, cujos vícios e nulidades não contaminam a ação penal.

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O presente estudo visa, pois, abordar as provas produzidas no inquérito policial, sobretudo no que pertine a sua licitude, em face do alegado caráter informativo que lhe é emprestado pela doutrina e jurisprudência. É dizer: dado que todo o acervo produzido no inquérito não contaminaria a ação penal, haveria espaço para a produção de prova ilícita para que se obtenham dados fundamentais para a investigação, seja para utilizá-los como fonte imediata de convicção do Delegado de Polícia, do Promotor de Justiça e do Juiz? Outrossim, diante da inexistência de um regramento específico no campo da produção probatória na fase investigativa, quais seriam os limites que o inquérito policial deve seguir, se de outro lado temos o princípio da Livre Apreciação das Provas que norteia o juiz na análise dos processos? Considerando estes questionamentos é que o presente estudo propõe-se a algumas considerações. 2. O CARÁTER MERAMENTE INFORMATIVO DO INQUÉRITO POLICIAL Praticada uma infração penal, surge para o Estado o poder-dever de punir o seu infrator, fazendo com que se restabeleça a autoridade da lei como condição para a pacificação das relações sociais. Entretanto, para que os fatos criminosos sejam desvendados, as circunstâncias do crime devem ser apuradas pelos legitimados elencados no texto constitucional. Se por um lado a Constituição assegura, no art. 129, I a titularidade exclusiva da ação penal pública ao Ministério Público, confere à Polícia Civil, no art. 144, a atribuição de polícia judiciária, responsável pela elucidação de fatos criminosos. Assim, teríamos uma relação entre Polícia Civil e Ministério Público onde a primeira recolhe provas sobre a autoria e materialidade dos delitos, enquanto o segundo, subsidiado pelo trabalho desenvolvido, forma sua opinio delicti, ajuizando ou não a ação penal cabível.

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Afastando a discussão sobre a possibilidade de o Ministério Público poder promover diretamente a investigação criminal, não há dúvidas de que, para o ajuizamento da ação penal, não há a necessidade de prévio inquérito policial. Basta que o Ministério Público alicerce a ação penal com outros elementos – extraídos de um inquérito civil público ou de outro expediente, por exemplo – aptos a demonstrar os indícios de autoria e a prova da materialidade necessários para o recebimento de denúncia que nenhuma irregularidade do ponto de vista processual haverá. Essa possibilidade da ação penal ser oferecida independente da participação investigativa da Polícia demonstra uma das características do inquérito policial que é a dispensabilidade, o que, em princípio, poderia dar a falsa impressão de que este procedimento inquisitorial é secundário, de menor importância quando pensamos no iter da investigação criminal (IP, denúncia e ação penal). Ao lado da característica da dispensabilidade, leciona-se que o inquérito policial é peça meramente informativa. Diz-se que as nulidades ou vicissitudes ocorridas na fase pré-processual não contaminam a ação penal. 1 Entretanto,

como

será

constatado,

as

características

da

dispensabilidade e do caráter informativo, nos termos em que usualmente tratadas, não revelam a vital importância que um inquérito policial ético e regido pelo Princípio da Legalidade possui para o investigado, potencial réu de uma ação penal. De posse dessas considerações, torna-se pertinente avaliar a produção probatória no inquérito policial à luz da garantia constitucional da vedação de produção de provas ilícitas, demonstrando que o caráter

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Exemplificativo deste entendimento, veja-se trecho de acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça: “Eventuais vícios ocorridos durante a realização do inquérito policial não implicam nulidade da ação penal em razão de ser peça meramente informativa e não probatória, ainda mais em se tratando,como no caso ora em tela, de processo com condenação já transitada em julgado.” BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 70.391/RJ. Relatora: Ministra Laurita Vaz. Brasília, 28 de outubro de 2010. Disponível em http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=eventuais+e+v%EDcios+e+ocorridos&& b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=1. Acesso: 19 set. 2010.

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informativo do inquérito policial e a máxima da não contaminação da ação penal são aspectos que devem ser repensados. 3. LINHAS GERAIS SOBRE ILICITUDE PROBATÓRIA: A ATUAL SISTEMÁTICA DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL A vedação da utilização de provas ilícitas para a imposição de uma condenação encontra suporte primário na Constituição Federal em seu art. 5.º, LVI, segundo o qual “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.” 2 Além desta disposição constitucional, nenhuma outra, inclusive em nível legislativo, regulamentou o que seria uma prova ilícita. Assim, competiu à doutrina e à jurisprudência, por muito tempo, construir lições e reconhecer, em casos concretos, o que seria considerado como prova ilícita. Abordando resumidamente o tema sobre as provas inadmissíveis (ou ilícitas em sentido amplo), diz-se que a prova ilegítima é a prova obtida com violação à regra de direito processual, ao passo que a prova ilícita em sentido estrito é aquela obtida em desrespeito a uma norma de direito material 3. Com a alteração introduzida no Código de Processo Penal pela lei 11690/2008, no entanto, houve a opção legislativa por tachar como provas ilícitas “assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”4. Assim, pouco importa se a ofensa foi a direito processual ou material, pois fatalmente a produção probatória, nestes casos, terá ofendido a Constituição ou a lei, enquadrando-se no conceito de prova ilícita traçado no art. 157 do Código de Processo Penal5.

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BRASIL. Constituição Federal de 1988. São Paulo: Saraiva 2010. p. 10. NUCCI, Guilherme de Souza. Provas no Processo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 33 4 BRASIL. Presidência da República. Lei 11.690 de 09 de junho de 2008. Altera dispositivos do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal, relativos à prova, e dá outras providências. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2008/Lei/_leis2008.htm . Acesso em 19 set. 2010. 5 A título de informação, vale consignar que a lei 11690/2008 traduz a adoção expressa pelo Código de Processo Penal de algumas teorias que já vinham sendo desenvolvidas e aplicadas no pelo Supremo Tribunal Federal: a Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada, segundo a qual toda prova derivada de uma prova ilícita estará por esta contaminada, bem como a Teoria da 3

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Porém, é importante observar que se de um lado há a vedação da produção de provas ilícitas, de outro, vigora em nosso sistema processual o princípio da Livre Apreciação da Prova ou do Livre Convencimento Motivado, plasmado no art. 155 do Código de Processo Penal. Isso importa dizer que, a regra, é a de que o magistrado pode considerar qualquer prova existente no processo para condenar o suspeito, desde que o faça de forma fundamentada. A exceção, contudo, repousa exatamente na vedação de produção de prova ilícita, sendo esta a modalidade de prova que não permite um juízo condenatório por parte do julgador. Ainda, na mesma esteira, importante mencionar que o Código de Processo Penal, também com a edição da lei 11690/2008, incorporou o entendimento jurisprudencial e doutrinário acerca da vedação de um juízo condenatório com base em provas exclusivamente obtidas na fase do inquérito policial. O art. 155 do Código de Processo Penal que dispõe sobre o Princípio da Livre Apreciação da Prova refere: “o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.”6

Da redação deste dispositivo legal, nota-se que o magistrado somente poderá impor uma condenação com base em provas que “foram objeto de análise judicial e submetidas às partes para que pudessem utilizar do contraditório”7. Ter-se-ia, em verdade, duas vedações dirigidas ao magistrado no que tange a imposição de uma condenação: fazê-la com elementos existentes exclusivamente no inquérito policial ou com base em provas ilícitas.

Fonte Independente, pela qual toda a prova colhida por meio ilícito, mas cuja descoberta seria certa pelo uso dos trâmites e praxes típicos da investigação, será considerada lícita. 6 BRASIL. Presidência da República. Decreto-Lei n.º 3.689 de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/DecretoLei/Del3689.htm. Acesso em 19 set. 2010. 7 RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 10 ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 465.

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Contudo, o mesmo art. 155 da Lei Processual autoriza um juízo condenatório pelo magistrado quando este considerar as provas cautelares, as não repetíveis e as antecipadas, demonstrando que o indivíduo poderá sofrer uma sanção do Estado com base em uma “prova” colhida exclusivamente no procedimento investigatório, não havendo “como se reclamar sua reprodução mais adiante, em juízo”.8 De outro lado, não olvidando da atual sistemática do procedimento do Tribunal do Júri, sabe-se que é perfeitamente possível a condenação do acusado com base em qualquer prova dos autos, inclusive, aquelas produzidas, exclusivamente, no inquérito policial, algo que decorre do Princípio da Íntima Convicção dos Jurados e da Soberania dos Vereditos, aplicáveis ao rito utilizado para o processo e julgamento dos crimes contra a vida. Considerando esta previsão legal, chega-se à conclusão de que, ainda que excepcionalmente, é possível que um cidadão seja privado - tanto temporária como definitivamente - de seu direito de liberdade com uma prova que não será repetida em juízo. Do ponto de vista constitucional e legal, essa constatação revela-se importantíssima porque a aniquilação do princípio da Presunção da Inocência demanda prova da materialidade e da autoria, sendo que, prova, em sentido estrito, é somente aquela produzida na fase judicial, onde existe o contraditório. Daí, pois, a importância da licitude probatória em matéria de inquérito policial, circunstância devidamente percebida pela jurisprudência de nossos tribunais. 4. A JURISPRUDÊNCIA E A ILICITUDE PRÉ-PROCESSUAL: UMA BREVE ANÁLISE O tema sobre a ilicitude de medidas praticadas durante a investigação pré-processual, sobretudo aquela realizada diuturnamente pelas policias judiciárias, não é novidade em nossos tribunais. Isto se deve justamente porque, teoricamente, o melhor momento para se esclarecer as 8

GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Comentários às Reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 271.

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circunstâncias de um fato criminoso é aquele imediatamente posterior ao seu acontecimento. A investigação policial é, pois, regida pelo Princípio da Imediatidade, já que muito do sucesso das diligências persecutórias é diretamente proporcional à agilidade da busca de elementos de prova. O tempo, em regra, atua contra os indícios, já que poderão ser consumidos ou alterados, prejudicando o trabalho pericial ou a colheita de depoimentos testemunhais fidedignos, por exemplo. Considerando que a investigação policial exige um sem número de diligências em busca da prova, aliada à necessidade de agilidade por parte da autoridade policial, não é difícil imaginar a ocorrência de algumas irregularidades, que vão desde equívocos involuntários até mesmo a eventuais abusos na colheita da probatória, como os famosos casos de escutas telefônicas não autorizadas até mesmo nos mais altos escalões da Administração Pública. O Supremo Tribunal Federal, certa vez, deparou-se com um caso em que o ex-gerente de uma empresa obteve documentos sigilosos da mesma, mediante ajuda de outro funcionário, para ingresso com uma ação trabalhista. Ao mesmo tempo, o ex-gerente solicitou abertura de inquérito policial para apuração de crime de falsidade ocorrida na referida empresa. Os demais sócios ingressaram com HC para a retirada desses documentos sigilosos do inquérito, por terem sido obtidos ilicitamente pelo funcionário que se valeu criminosamente do abuso de confiança, o que foi deferido pelo juízo de origem. Ocorre que o Ministério Público Federal solicitou cópia integral da ação trabalhista na qual também constavam os documentos sigilosos e juntou novamente ao inquérito policial. Os sócios impetraram habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça, o qual não foi conhecido. Assim, o Supremo Tribunal Federal concedeu a ordem de habeas corpus concluindo: a permissão, para efeito de suporte de opinio delicti e de convicção judicial, da juntada de cópia integral dos autos da reclamação trabalhista em que contida cópia de documentos de presumida

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origem ilícita, autorizaria a produção, por via indireta, de prova, em 9 princípio, ilícita. HC 82862/SP, rel. Min. Cezar Peluso, 19.2.2008.

Neste julgado, percebe-se que nem mesmo havia processo penal instaurado e a Suprema Corte determinou o desentranhamento de provas consideradas obtidas por meio ilícito. Ou seja, neste caso, ainda que se considere o inquérito peça meramente informativa, sequer permitiu-se que uma prova ilícita servisse para a formação da convicção do órgão responsável pela análise da viabilidade acusatória. Em outro caso, o Pretório Excelso analisou uma escuta ambiental em que agentes da Polícia Federal, de posse de autorização judicial para ingressar em um escritório de advocacia para instalar aparelhos de escuta, adentraram o local no período da noite. No voto vencido do Ministro Celso de Mello (alinhado ao dos Ministros Eros Grau e Marco Aurélio) constou a seguinte afirmação: “a Polícia Federal não podia, ainda que munida de autorização judicial dada por esta Suprema Corte, ingressar, durante a noite, em espaço privado protegido pela cláusula constitucional da 10 inviolabilidade domiciliar”.

Note-se que o tema é controvertido até mesmo em nossa Suprema Corte, havendo divergência sobre a produção de “provas” que são produzidas no âmbito do inquérito policial. Discute-se abertamente sobre a (i)licitude de diligências realizadas na fase investigativa, evidenciando quão frágil é a posição que o jurisdicionado possui em face da ingerência probatória do Estado.

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n.º 82862/SP.Paciente:Walter Luiz Monteiro Cardoso e outros. Relator: Ministro Cezar Peluso. Brasília, 19 de fevereiro de 2008.Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/informativo/verInformativo.asp?s1=82862&pagina=2&base=INFO. Acesso em: 19 set. 2010 10 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inquérito Policial 2424/RJ.Paciente: Paulo Geraldo de Oliveira Medina. Relator: Ministro Cezar Peluso. Brasília, 19 de fevereiro de 2008. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/informativo/verInformativo.asp?s1=82862&pagina=2&base=INFO. Acesso em: 19 set. 2010

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Assim, analisando os limites do Poder Estatal, afirmando que nem mesmo a denúncia poderá basear-se em prova ilícita, prossegue o Ministro Celso de Mello: A cláusula constitucional do “due process of law” — que se destina a garantir a pessoa do acusado contra ações eventualmente abusivas do Poder Público — tem, no dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas, uma de suas projeções concretizadoras mais expressivas, na medida em que o réu (contra quem jamais se presume provada qualquer alusão penal) tem o impostergável direito de não ser denunciado, de não ser julgado e de não ser condenado com apoio em elementos instrutórios obtidos ou produzidos de forma incompatível com os limites impostos, pelo ordenamento jurídico, ao 11 poder persecutório e ao poder investigatório do Estado. – sem grifos no original.

A proibição de produção de prova ilícita é uma garantia constitucional que se revela extremamente adequada e necessária em sede de investigação policial. Não somente após instaurado o processo penal (onde há a existência formal de um réu) que será vedada a persecução estatal dissociada da lei e em afronta à Constituição Federal. Aliás, neste ponto, entende-se pertinente a corrente doutrinária que interpreta de forma ampla o teor do art. 5.º, inciso LV, referindo que o investigado, no inquérito policial, a partir do indiciamento12, poderia ser enquadrado na dicção “acusados em geral”. Dessa forma, se o inciso LV do art. 5.º, CF garante aos acusados em geral “o contraditório, a ampla defesa, como os meios e recursos a ela inerentes”13, é intuitivo que o suspeito não pode ser alvo de qualquer ônus advindo da coleta ilícita de prova. Ainda, no mesmo julgado, é exposto o raciocínio aplicado pela Suprema Corte Brasileira em diversos outros casos:

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inquérito Policial 2424/RJ. Denunciado: Paulo Geraldo de Oliveira Medina e Outros. Informativo 584. Relator: Ministro Gilmar Mendes. 31 de outubro de 2010. Disponível em http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo584.htm#transcricao1= Acesso em 19 set. 2010. 12 CHOUKR, Fauzi Hassan. Garantias Constitucionais na Investigação Criminal. 2.ª ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 129. O autor assinala, contudo, que deveria haver uma reestruturação do ato de indiciamento para cobrar-lhe a devida correlação com a figura do indiciado e o direito ao contraditório. 13 BRASIL. Constituição Federal de 1988. Vade Mecum São Paulo: Saraiva 2010. p. 10.

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Na espécie, é inegável que só as informações extraídas da escuta telefônica indevidamente autorizada é que viabilizaram o flagrante e a apreensão da droga, elementos também decisivos, de sua vez, na construção lógica da imputação formulada na denúncia, assim como na fundamentação nas decisões condenatórias. Dada essa patente relação genética entre os resultados da interceptação telefônica e as provas subseqüentemente colhidas, não é possível apegar-se a essas últimas - frutos da operação ilícita inicial - sem, de fato, emprestar relevância probatória à escuta vedada.” (grifei) Irrecusável, por isso mesmo, o fato de que a ineficácia probatória dos elementos de convicção — cuja apuração tenha decorrido, em sua própria origem, de comportamento ilícito dos agentes estatais — torna imprestável, por derivação, a prova penal, inibindo-lhe, assim, a possibilidade de atuar como suporte legitimador de qualquer decisão 14 judicial, mesmo aquela que recebe a denúncia.

Percebe-se que o Supremo Tribunal Federal confere à garantia do Devido Processo Legal amplitude suficiente para aplicá-la já na fase investigatória, indicando que todas as fases de busca da verdade (seja real ou formal) devem ser regidas por princípios de atuação probatória éticos, vinculando o Delegado, responsável pelo indiciamento, o Promotor de Justiça, a quem compete a formação da acusação, e o Magistrado, quem declara a culpabilidade ou não de um indivíduo. Em outra oportunidade, o Pretório Excelso analisou caso em que o interrogatório realizado na Delegacia de Polícia foi procedido sem a certeza de que o suspeito foi advertido sobre o direito constitucional de permanecer em silêncio e, desta forma, não produzir prova contra si mesmo. Do voto da lavra do Ministro Sepúlveda Pertence, extrai-se a seguinte lição: [...] O privilégio contra a auto-incriminação - nemo tenetur se detegere -, erigido em garantia fundamental pela Constituição - além da inconstitucionalidade superveniente da parte final do art. 186 C.Pr.Pen. importou compelir o inquiridor, na polícia ou em juízo, ao dever de advertir o interrogado do seu direito ao silêncio: a falta da advertência - e da sua documentação formal - faz ilícita a prova que, contra si mesmo, forneça o

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inquérito Policial 2424/RJ. Denunciado: Paulo Geraldo de Oliveira Medina e Outros. Informativo 584. Relator: Ministro Gilmar Mendes. 31 de outubro de 2010. Disponível em http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo584.htm#transcricao1= Acesso em 19 set.

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indiciado ou acusado no interrogatório formal e, com mais razão, em 15 "conversa informal" gravada, clandestinamente ou não [...] .

Os julgados analisados demonstram, ainda que de forma rasa e por amostragem, que é rica a temática envolvendo as diligências em sede policial e sua implicância no campo da licitude da prova produzida. Também evidenciam que o inquérito policial é terreno fértil para o cometimento de ilicitudes, o que deve ser sopesado pelas polícias judiciárias no desempenho de suas atribuições constitucionais previstas no art. 144 da Constituição Federal e nas legislações específicas. Por tudo isso, cumpre demonstrar, mesmo que rapidamente, a importância de que as diligências realizadas no âmbito do inquérito policial sejam procedidas dentro da mais estrita legalidade. 5. A UTILIDADE E AS CONSEQÜÊNCIAS DO INQUÉRITO POLICIAL: A NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Uma vez constatado que o inquérito policial é recheado de provas que podem ser chamadas de definitivas, ou seja, que não serão reproduzidas na fase judicial, torna-se importante estabelecer a relação existente entre o acervo probatório produzido na etapa investigatória e as consequencias que geram para o indivíduo. O inquérito policial, segundo a lição tradicional noticiada por NUCCI, “é um procedimento preparatório da ação penal, de caráter administrativo, conduzido pela polícia judiciária e voltado à colheita preliminar de provas para apurar a prática de uma infração penal e da sua autoria.”16

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 80949. Impetrante: Fernando Augusto Fernandes e Outro. Informativo 250. Relator: Ministro Sepúlveda Pertence. 14 de dezembro de 2001. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/informativo/verInformativo.asp?s1=80949&numero=250&pagina=1&b ase=INFO. Acesso em 19 set. 2010 16

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo e Execução Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 121.

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Contudo, a melhor interpretação que se deve ter sobre a função do inquérito policial não é a que o visualiza unicamente como instrumento de busca da autoria a qualquer custo. Assim, o mero suspeito, para evoluir para a condição de processado, deve ter contra si um acervo probatório minimamente consistente, sob pena de ser constrangido de forma leviana. Justamente por isso há a necessidade de que haja um procedimento investigativo sério e ético, impedindo juízos açodados e equivocados acerca da culpabilidade de qualquer cidadão. Nesse contexto, a apuração de todas as provas que se revelarem necessárias para a correta atribuição da autoria evita “que alguém seja submetido ao processo penal sem prova da existência da infração penal(...).”17 Não pode se negar a verdade de que a existência de um procedimento investigativo contra qualquer pessoa afeta profundamente a sua tranquilidade quanto ao futuro de seu direito de liberdade, influenciando de maneira poderosamente negativa no psiquismo do indivíduo. Neste sentido LOPES adverte: [...] o fato de alguém figurar, no curso de um inquérito policial, como investigado, também gera a essa pessoa intranqüilidade e efeitos indesejáveis. De acordo com os antecedentes criminais e com as peculiaridades do fato que se investiga, o investigado poderá, por 18 exemplo, ser preso a qualquer momento.[...]

Fica perceptível o quão danoso pode ser a existência de um procedimento investigativo contra um indivíduo. O inquérito policial revela a função de, antes de tudo, proteger o cidadão contra uma coação indevida por parte do Estado. Isto demonstra que ao Delegado de Polícia compete, quem sabe, a primeira atribuição de ser o garantidor dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, já que existe um desvirtuamento

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LOPES, Fabio Motta. Os Direitos de Informação e de Defesa na Investigação Criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 22. 18 Ibid. p. 25.

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institucionalizado que transforma “a justiça criminal em herdeira e, em muitos casos, apenas repetidora de tudo quanto foi feito na etapa investigativa” 19. Por isto é que não poderá o inquérito policial valer-se de qualquer prova ilícita para apurar a autoria de um delito. Considerando o ônus que a investigação policial causa para o indivíduo e de sua influência na fase judicial, não se permite a simplificada noção de que o inquérito é peça meramente informativa, cujas nulidades e irregularidades não contaminam a ação penal. No campo prático, não se deve perder de vista que a apuração da autoria e materialidade de crimes é praticada por agentes públicos, pessoas, portanto, com subjetividades e psiques influenciáveis pelos elementos com os quais tomam contato20. Esta prova, sem dúvida, tem o poder de causar “forte impressão no espírito do juiz.”21 Neste aspecto, a lição de CHOUKR é emblemática e nos situa acerca da prática forense: O quadro se agrava na medida em que o interrogatório policial acaba se transformando em verdadeiro esteio para o convencimento do julgador, e é empregado como fonte de condenação, mormente nas hipóteses em que existem uma ‘confissão’. Nessa linha, há forte jurisprudência, emblematizada pelo seguinte acórdão: As confissões extrajudiciais são admissíveis e têm valor probante quando 22 testemunhadas e não contrariadas por outras prova.

CHOUKR ainda noticia: se admitiu, também, a confissão extrajudicial como prova em juízo se o réu for portador de maus antecedentes (...) ou ainda quando, juntamente com a ‘admissão policial’, viera a apreensão de objetos em poder do indiciado ou, de maneira geral, quando vier 23 acompanhada de outros elementos colhidos em juízo.

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CHOUKR, Fauzi Hassan. Garantias Constitucionais na Investigação Criminal. 2.ª e. rev.ampl. e atual.. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.p. 140 20 Neste aspecto, ao menos quanto ao Magistrado, espera-se a superação deste problema com a edição do Novo Código de Processo Penal, que prevê a figura do “juiz de garantias”. O magistrado, nesta nova formatação, terá atribuições somente na fase do inquérito policial, evitando que seja transposta para a sentença qualquer impressão motivada por eventual contato com as provas preliminares, inclusive, as eventualmente ilícitas. 21 AVOLIO, Luiz Franciso Torquato. Provas Ilícitas: Interceptações telefônicas, ambientais e gravações clandestinas. 4. Ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 111. 22 CHOUKR, op. cit. p. 136. 23 Ibid., p. 137.

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Os exemplos constatam: é comum, na rotina forense, ser o réu prejudicado por tudo aquilo que se produziu na investigação policial, ou seja, com base naquilo que não foi submetido ao contraditório e, por isso, prova no sentido técnico não é. Inquestionável, portanto, é a assertiva de que, no campo da investigação preliminar, não se pode admitir qualquer prova ilícita contra o réu. Tratar o inquérito policial como mera peça informativa constitui uma interpretação apartada dos ditames constitucionais de proteção à dignidade humana, da garantia de um processo legal livre de provas ilícitas e do princípio da presunção da inocência. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS: REPENSANDO O CARÁTER INFORMATIVO DO INQUÉRITO POLICIAL O presente ensaio buscou demonstrar a importância que a colheita de provas realizada no inquérito policial possui para o status dignitatis do indivíduo. As provas coligidas na fase investigativa, sendo irrepetíveis, antecipadas ou cautelares, poderão embasar um juízo de condenação na fase judicial, demandando idoneidade na sua produção na fase pré-processual. Ademais, ainda é corrente em alguns tribunais a consideração de provas existentes no inquérito policial para embasar um decreto condenatório. O que dizer, quanto mais, do procedimento do Tribunal do Júri, onde os jurados, segundo a Íntima Convicção, estão autorizados a julgar com base em qualquer elemento constante nos autos. Considerando que, das provas angariadas na fase pré-processual, poderá o sujeito ser submetido ao constrangimento de uma investigação policial, de responder a uma ação penal e de, até mesmo, ser condenado e privado de sua liberdade, torna-se extremamente questionável a ideia de que o inquérito policial seja peça meramente informativa e que as irregularidades e ilicitudes nele perpetradas não contaminarão a ação penal.

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Em um Estado que se pretende Democrático e de Direito não deve haver espaço para a produção de provas de forma subreptícia, deixando o indivíduo inseguro quanto aos limites da atuação estatal. Toda e qualquer ação policial de investigação deve ser regida pela Legalidade e pela produção idônea de provas. Somente neste contexto é que será admitida a quebra da Presunção da Inocência, pedra basilar de nosso sistema penal constitucional.

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