O TRATAMENTO DA TEMÁTICA AMBIENTAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E SUA EFETIVIDADE APÓS 20 ANOS

May 31, 2017 | Autor: Cristiane Jaccoud | Categoria: Direito Ambiental, Direito Constitucional, DIREITO CONSTITUCIONAL E AMBIENTAL
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O TRATAMENTO DA TEMÁTICA AMBIENTAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E SUA EFETIVIDADE APÓS 20 ANOS Cristiane Jaccoud Advogada militante na área ambiental (CJ ADVOCACIA AMBIENTAL)Engenheira Florestal (UFES) Doutora em Planejamento Ambiental (COPPE/PPE/UFRJ) Mestre em Direito Ambiental pela Universidade Católica de Santos (UNISANTOS) Especialista em Direito Ambiental pela PUC-Rio. Coordenadora Regional (RJ) da APRODAB Professora de Direito Ambiental na EMERJ, IBMEC e ESA-OAB/RJ Autora de diversos artigos sobre temas de Direito Ambiental em livros e periódicos nacionais e internacionais Publicação Original: JACCOUD, C. V. “O tratamento da temática ambiental na CF/88 e sua efetividade após 20 anos”. Revista do Instituto dos Advogados Brasileiros. , v.97, p.73 - 92, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. ISSN 0100-1752

1. CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS SOBRE A PROBLEMÁTICA AMBIENTAL E A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DA PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE O século XX chegou ao seu final com um balanço paradoxal. Por um lado, a notória evolução no campo da ciência e da tecnologia proporcionou não só o atendimento das principais necessidades e maior conforto ao ser humano, mas, também, criou a cultura da “constante renovação” (obsolescência planejada). Por outro lado, o modelo de desenvolvimento adotado pecou por desconsiderar aspectos relevantes, como a finitude dos recursos naturais, a dinâmica dos elementos componentes da natureza e os impactos ambientais dos processos produtivos e dos produtos colocados no mercado. Não tardou para que as consequências aparecessem. Hoje, o principal desafio da humanidade neste início do século XXI certamente está relacionado com a questão ambiental. Até a década de 60 acreditava-se que a eficiência a locativa dos fatores de produção seria capaz, por si só, de ajustar todas as consequências, tanto sociais quanto ambientais, provenientes da busca de maior produtividade e lucratividade. Todavia, a as implicações ambientais do modelo produtivo adotado pela sociedade pós-industrial têm levado a um consenso cada vez maior sobre a necessidade de se repensar a atitude humana em relação à natureza. 1

JACCOUD, Cristiane. Atuação do Estado no domínio econômico e seus reflexos na política ambiental: análise da proposta brasileira de fomento à inserção do biodiesel na matriz energética. Dissertação de mestrado apresentada no Programa de pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Santos – UNISANTOS, 2008. Disponível em http://www. http://biblioteca.unisantos.com.br/tede/index.php. 1

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As duas últimas décadas do século XX registraram mudanças de paradigmas no que concerne à concepção de desenvolvimento e a responsabilidade social em face da preservação, exploração e manipulação dos recursos naturais. É diante desse contexto que a questão ambiental começa a ganhar notoriedade. Além da arena social, começa a ser objeto de maior atenção da comunidade científica e permear campos onde até então era desconsiderada, como as arenas política e econômica. A comunidade internacional, reunida pela primeira vez para discutir sobre os problemas ambientais, relacionando-os com as questões econômicas, o que ocorreu na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, em Estocolmo, 1972, acorda sobre a importância do meio ambiente como inerente ao direito à vida e sobre a necessidade da adoção, pelos Estados, de medidas para sua preservação. Tal constatação ensejou não só a inserção da questão ambiental nas políticas públicas, mas, sobretudo, uma disciplina jurídica da relação “homem x ambiente” sob esse novo prisma. Sobre o tratamento legal da temática ambiental, Élida Seguin 2 traz reflexões no sentido de que o Direito varia no tempo e no espaço, na dependência do avanço do conhecimento humano e das culturas, em uma sinergia que guarda um quê de imponderável. A partir do momento em que o homem começou a prestar atenção no planeta que o hospeda e preocupar-se com a preservação ambiental, o que tem como marco regulatório internacional a Convenção de Estocolmo, em 1972, coube ao Direito disciplinar as novas relações que surgem em decorrência dessas mudanças. Assim, a proteção ambiental passa a ser objeto de tutela jurídica inicialmente em legislações ordinárias e posteriormente vem inserta no bojo das Constituições. Nesse sentido, muitos textos constitucionais elaborados a partir da década de 70 passaram a assegurar uma tutela ao meio ambiente como bem jurídico “per se” (com autonomia em relação aos outros bens protegidos pela ordem jurídica) não só em razão de entendê-lo como pressuposto para garantia do direito fundamental maior – o direito à vida, mas, também, pelo reconhecimento de valor intrínseco à natureza. 3 Sobre a tendência à constitucionalização da proteção ambiental, Antônio Herman Benjanim chama atenção para o fato de que, em pouco tempo, a questão ambiental perdeu seu estado periférico e ingressou na órbita de valores fundamentais de pactos políticos nacionais, privilégio esse que outros direitos sociais igualmente relevantes levaram décadas, quando não séculos, para atingir. 4 Ademais, através de um estudo comparado dos regimes de proteção constitucional do meio ambiente, o mesmo autor identifica cinco bases comuns: i.

Uma compreensão sistêmica e legalmente autônoma do direito ao meio ambiente;

ii.

Um compromisso ético no intuito de assegurar que o acesso aos recursos naturais e as condições de equilíbrio ecológico se ampliem, quantitativa e qualitativamente, para as gerações futuras;

iii.

Uma reestruturação do direito de propriedade, sob a orientação da sustentabilidade;

SEGUIN, Élida. “A vizinhança, a Constituição Federal e o meio ambiente construído”. In 20 anos da Constituição Federal: trajetória do direito ambiental. CONCEIÇÃO, Maria Collares Felipe da (Coord.). Rio de Janeiro, EMERJ, 2008, p. 69. 3 Nesse sentido, destacam-se a Constituição da Bulgária (1971) (art.31), Constituição do Panamá (1972) (arts. 114 e 117), Carta da Iugoslávia (1974) (arts. 192 e 193), Constituição da Grécia (1975) (art. 24), Constituição Portuguesa (1976) (art. 66), Emenda Constitucional Polonesa de 1976 (arts. 11 e 12), Constituição da Argélia (1976) (art. 151), Carta Chinesa (1978) (art. 11), Constituição Espanhola (1978) (arts. 45, 46 e 47), Carta do Peru (1980) (art. 123), Constituição do Chile (1980) (art. 19), Constituição de El Salvador (1983) (art. 117), Constituição da Guatemala (1985) (art. 97), Constituição do México (1987) (art. 27) e mais recentemente, Constituição da Argentina (1994) (art. 41). Para mais detalhes sobre o tratamento do meio ambiente nas constituições estrangeiras sugere-se: MILARÈ, Édis. Direito do Ambiente. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. P.143/145; SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 44/46. 4 Cf. BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos e. “Meio ambiente e Constituição: uma primeira abordagem”. In 10 anos da ECO-92: O Direito e o Desenvolvimento Sustentável - Anais do 6˚ Congresso internacional de Direito Ambiental. BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos e (Org.). São Paulo: IMESP, 2002. 2

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iv.

Uma opção por processo decisórios abertos, transparentes, bem informados e democráticos; e,

v.

Uma nítida preocupação com os meios de implementação, visando evitar que a norma maior (e também a infraconstitucional) assuma uma feição retórica. 5

A Constituição brasileira de 88, inspirada nos modelos espanhol e português editados em seguida à redemocratização da Península Ibérica, e que costumavam ser apontados como paradigmáticos em relação à proteção do meio ambiente, supera ambos. Mais abrangente e radical, vem a ser considerada como a mais avançada do mundo em matéria ambiental. 6

2. O MEIO AMBIENTE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 A Constituição Federal de 1988 revela-se inovadora em vários aspectos. De acordo com Fabio Konder Comparato, o principal deles reside em sepultar o paradigma que insistia em ver o Direito apenas como instrumento de organização da vida econômica (o que reduz o Estado à acanhada tarefa de estruturar e perenizar, com asséptica eficiência social, as atividades do mercado), abandonar o enfoque convencional de simples “regulamento econômico-administrativo” e mudar de rumo, inclusive, quanto aos objetivos que visa assegurar. 7 Nesse sentido, foi a primeira Constituição brasileira a tratar deliberadamente da questão ambiental. Embora a partir de 1934 já fosse possível extrair orientações sobre a competência legislativa da União em relação a determinados bens ambientais e normas sobre a proteção do patrimônio histórico, cultural e paisagístico do país, até então, as constituições brasileiras cuidavam do meio ambiente de maneira diluída e mesmo causal, referindo-se separadamente a alguns de seus elementos integrantes (água, florestas, minério, caça, pesca) ou então disciplinando matérias a ele indiretamente relacionadas (mortalidade infantil, saúde, propriedade). Não havia uma proteção de forma específica e global. 8 9 Alinhada na evolução do direito constitucional comparado registrada na última metade do século XX, a Constituição Federal de 1988 confere tratamento amplo e moderno à questão ambiental, dedicando-lhe status e enfoque inovadores.

BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos e. “O meio ambiente na Constituição Federal de 1988”. In Desafios do Direito Ambiental no Século XXI: estudos em homenagem a Paulo Affonso Leme Machado. KISHI, Sandra Akemi Shimada et al. (Org.). São Paulo: Malheiros, 2005. 6 Cf. WALCACER, Fernando e FIGUEIREDO, Guilherme Purvin de. “Constituição, direitos humanos e meio ambiente: um balanço crítico de nossa jurisprudência”. In Direito Ambiental em Debate Vol. 2. FIGUEIREDO, Guilherme Purvin de (Corrd.). Rio de Janeiro: Esplanada, 2004, p. 212 e MILARÈ, Édis. Direito do Ambiente. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 147. 7 Cf. COMPARATO, Fábio Konder. “O papel do juiz na efetivação dos direitos humanos”. In Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região. Campinas, São Paulo, n. 14, 2001. Disponível em:. Acesso em: 6 fev. 2009. 8 As sete constituições brasileiras anteriores à Constituição de 88 refletem momentos diversos de nossa história. Todavia, a proteção do meio ambiente natural, como bem jurídico “per se” jamais foi objeto de alguma delas. A Constituição do Império de 1824 não fez qualquer referência ao tema, havendo apenas uma alusão indireta ao tratar da proteção à saúde através da proibição de indústrias porventura nocivas (art, 179, IV). Embora a medida trouxesse certo avanço para a época, foi a única referência ao tema, o que é compreensível vez que a visão ambiental era utilitarista e pautada na inesgotabilidade dos recursos naturais. A Constituição de 1891 demonstrou preocupação com alguns elementos naturais ao dispor sobre a competência da União para legislar sobre minas e terras (art. 34 n. 29). Tal preocupação baseava-se na natureza econômica desses bens, sem qualquer relação com sua preservação. A Constituição de 1934 estabeleceu a competência da União sobre subsolo, mineração, caça, pesca, águas, floresta e sua exploração (art. 5˚, XIX, j). Ademais, dispensou proteção às belezas naturais, ao patrimônio histórico, artístico e cultural (art. 10, III e 148). Tal proteção foi mantida nas Constituições de 1937 (art. 134), 1946 (art. 175), 1967 (art. 172, parágrafo único) e na Carta de 1969 (art. 180, parágrafo único). Cf. SEGUIN, Élida. “A vizinhança, a Constituição Federal e o meio ambiente construído”. In 20 anos da Constituição Federal: trajetória do direito ambiental. CONCEIÇÃO, Maria Collares Felipe da (Coord.). Rio de Janeiro, EMERJ, 2008. P. 69/70 e MILARÈ, Édis. Direito do Ambiente. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 145/147. 9 Cf. FERRAZ, Antônio Augusto Mello de Camargo; MILARÉ, Édis; MAZZILLI, Hugo Nigro. “O Ministério Público e a questão ambiental na Constituição”. Revista Forense. v. 294. Rio de Janeiro, 1986, p. 157/158. 5

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A consagração da proteção ambiental está em capítulo próprio (art. 225), no título que trata da ordem social, ao lado de outros temas de grande relevância como saúde, seguridade social, educação, cultura e ciência e tecnologia.10 A redação do art. 225 merece algumas reflexões. Ao dispor em seu caput que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para presentes e futuras gerações”, o texto constitucional traz implicações implícitas nos conceitos que integram seu texto. Primeiramente, é conveniente assinalar que o conceito de meio ambiente trazido pela Carta Magna de 88 aponta para quatro dimensões distintas, mas necessariamente integradas. Dessa forma, é possível distinguir os bens jurídicos ambientais, tomados em sentido amplo, em: i.

meio ambiente natural, contempla os recursos naturais de um modo geral, abrangendo terra, água, ar atmosférico, flora, fauna e patrimônio genético;

ii.

meio ambiente artificial, que compreende o espaço urbano construído;

iii.

meio ambiente cultural, que abarca o patrimônio histórico, artístico, paisagístico, arqueológico e turístico; e, por fim,

iv.

meio ambiente do trabalho, que integra o espaço onde as relações de trabalho são desempenhadas, tendo em conta o primado da dignidade do trabalhador em razão de situações de insalubridade e periculosidade. 11

Assim, tomado em suas quatro dimensões, o “direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado” é um direito constitucional “fundamental”, e, como tal, indisponível, inalienável, imprescritível e de aplicabilidade imediata. 12

10 Título VIII, Capítulo VI, art. 225

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. § 2º - Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei. § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. § 4º - A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. § 5º - São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais. § 6º - As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas. 11 Cf. SARLET, Ingo W.; FENSTERSEIFER, Thiago. “O papel do judiciário brasileiro no âmbito da “governança ambiental” – o juiz como “guardião” do ambiente. In 20 anos da Constituição Federal: trajetória do direito ambiental. CONCEIÇÃO, Maria Collares Felipe da (Coord.). Rio de Janeiro, EMERJ, 2008, p. 148. 12 Em consonância com o art. 5˚, § 1˚, o qual dispõe que “as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Para Eros Grau, significa quer “tais normas devem ser imediatamente cumpridas pelos particulares, independentemente Página 4 de 13

A expressão “todos têm direito (...)” realça a titularidade difusa do bem ambiental como direito subjetivo, o qual, além de não se esgotar no indivíduo, estende-se às “futuras gerações”. A locução “ecologicamente equilibrado” traduz o tratamento sistêmico da proteção ambiental, reconhecendo a interdependência dos elementos que a integram. Por sua vez, como “bem de uso comum do povo”, o bem ambiental realça uma diferente concepção jurídica de domínio, na maioria das vezes restrita à dicotomia público/privado. No “bem de uso comum do povo” o Poder Público passa a figurar não como proprietário dos bens ambientais, mas como gestor, o que enseja transparência e alargamento da participação popular na “administração” dos recursos naturais. Já “essencial à sadia qualidade de vida” realça o vínculo com o direito dignidade da pessoa humana e à saúde. A qualidade de vida é um elemento finalista do poder público, onde se unem a felicidade do indivíduo e o bem comum, com o fim de superar a estreita visão quantitativa, antes expressa no conceito de nível de vida.13 Os conceitos apresentados precisam de normas e políticas públicas para ser dimensionados completamente. Assim, a norma esculpida no art. 225, consagradora de um “direito fundamental ao “meio ambiente ecologicamente equilibrado”, não se limita apenas à subjetividade. Ao contrário, enseja o comprometimento com um rol de obrigações direcionadas a diversos sujeitos: Poder Público, indivíduos, coletividade e particulares específicos. disserta:

Sobre os deveres fundamentais “expressos e implícitos” no art. 225, Herman Benjamin Em quatro categorias podemos agrupar os deveres ambientais encontrados na Constituição Federal: Primeiro, no caput do art. 225, uma obrigação explícita, genérica, substantiva e positiva de defesa do meio ambiente. Além disso, o texto constitucional forjou uma obrigação genérica substantiva e negativa, mas implícita, de não degradar o meio ambiente, também abrigada no caput do art. 225. Em ambos os casos, estamos diante de deveres erga omnes, em que temos como coobrigados, indistintamente, o Poder Público, os indivíduos e a coletividade. Terceiro, um conjunto amplo de deveres explícitos e especiais do Poder Público, independente de ser ele degradador ou não, dispostos no art. 225, caput e § 1˚ - injunções que são bastante detalhadas, em oposição a dispositivos semelhantes encontrados em Constituições estrangeiras, caracterizados pela sua vagueza. O intuito do constituinte, aqui, foi afastar qualquer dúvida sobre a índole cogente das determinações dirigidas a todo o Estado, na sua posição bifronte de legislador e de implementador adminsitrativo e judicial do ordenamento. De legislador, espera-se que aprove novas leis e aperfeiçoe as existentes, vedada a redução de garantias ambientais; do judiciário, uma enérgica e rápida aplicação da lei e interpretação conforme a melhor solução para a proteção do meio ambiente. Por último, temos um leque de deveres explícitos e especiais, exigíveis de particulares ou do Estado (art. 225, §§ 2˚ e 3˚) – este, agora, na posição de degradador potencial ou real. 14

da produção de qualquer ato legislativo ou administrativo. Significa, ainda, que o Estado também deve prontamente aplicálas,decidindo pela imposição de seu cumprimento, independente de da produção de qualquer ato legislativo ou administrativo, e as tornando jurídicas ou formalmente efetivas”. Cf. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica e a Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica). 9 ed. São Paulo: MAlheiros, 2004, p. 287. 13 MACHADO, Paulo Affonso Leme. “Meio Ambiente e Constituição Federal”. In Direito Ambiental em Debate Vol. 1. FIGUEIREDO, Guilherme Purvin de (Coord.). Rio de Janeiro: Esplanada, 2004, p. 224. 14 BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos e. “O meio ambiente na Constituição Federal de 1988”. In Desafios do Direito Ambiental no Século XXI: estudos em homenagem a Paulo Affonso Leme Machado. KISHI, Sandra Akemi Shimada et al. (Org.). São Paulo: Malheiros, 2005. Página 5 de 13

Embora o núcleo principal da proteção do meio ambiente se localize no art. 225, neste não se encerra. Ao contrário, alcança outros regramentos insertos no texto nos mais diversos títulos e capítulos, relacionando-se com outros temas constitucionais de grande relevância, como a ordem econômica, livre iniciativa e direito de propriedade, inserindo-se como questão a ser considerada por ocasião da formulação de outras políticas públicas.15 Ademais, o texto constitucional traz ainda disposições sobre as competências legislativas e administrativas dos entes federados em matéria ambiental e dispositivos sobre os meios processuais para garantia de tutela do meio ambiente. No que tange à atuação legislativa e administrativa dos entes federados, a Constituição foi bastante generosa ao atribuir aos diversos entes da Federação diferentes competências em matéria ambiental, explicitadas nos artigos 22, 23, 24 e 30. Já em relação aos meios processuais para garantia de tutela do meio ambiente, a ênfase nos instrumentos de implementação é um dos aspectos mais louváveis da proteção ambiental na Constituição de 1988. Como bem salienta Paulo Affonso Leme Machado, se não houvesse direito ao processo judicial, o art. 225 da CF ficaria morto, ou restaria como uma ideia digna, mas sem concretude. 16 Assim, encontram-se também previstos na Carta Magna como meios processuais para garantia de tutela garantia de tutela do meio ambiente a Ação Popular (art. 5˚, LXXIII) e a Ação Civil Pública como função institucional do Ministério Público (art. 129, I). A ação popular, embora já prevista desde a Constituição do Império, a partir da Constituição de 88 passa ter também como objeto a proteção do meio ambiente, cuja legitimidade para propositura é atribuída a qualquer cidadão. Sobre o exercício da ação popular para defesa do meio ambiente, Morato Leite salienta que “a diferença primordial de tutela jurisdicional subjetiva, via ação popular, das demais de índole individualista está no fato de que esta última funda-se num interesse próprio, e no caso da ação popular, o ressarcimento não se faz em prol do indivíduo, mas sim em favor da coletividade, por se tratar de um bem indivisível e de conotação social.”17 A ação civil pública, cuja legislação de 85 (Lei 7.347/85), conforme Edis Milaré, “significou “uma ‘revolução’ na ordem jurídica brasileira, vez que o processo judicial deixou de ser visto como mero instrumento de defesa de direitos individuais, para servir de efetivo mecanismo de participação da sociedade na tutela de situações fático-jurídicas de diferentes naturezas”, foi reafirmada na CF/88 através do novo delineamento institucional dado ao Ministério Público, como instituição permanente, incumbida da defesa da ordem jurídica dos direitos sociais e que possui, dentre outras finalidades, a promoção do inquérito civil e da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (arts. 127 e 129, III). 18 O resultado de todo esse conjunto de transformações, substantivas e formais provenientes da proteção do meio ambiente na Constituição de 1988 é a edição de uma nova estrutura jurídica de regência das pessoas e dos bens. Assim, da autonomia jurídica do meio ambiente decorre um regime próprio de tutela, já não centrado nos componentes do meio ambiente como coisas, mas, ao revés, em um

No que tange aos demais dispositivos constitucionais que relacionam a temática ambiental com outros temas e direitos fundamentais, é possível destacar, de forma exemplificativa: art. 7˚, XXII e 200, VII e VIII (direito ao trabalho e à saúde); art. 170, VI (ordem econômica e livre iniciativa); arts. 182 e 186, I e II (direito de propriedade); art. 216, V (direitos culturais) e art. 225, § 1˚, VI (direito à educação). 16 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro.13 ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 124. 17 LEITE, José Rubens Morato. “Ação popular: um exercício da cidadania ambiental?”. Revista de Direito Ambiental. n. 17. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan-mar/2000. 18 Cf. MILARÈ, Édis. Direito do Ambiente. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.1009. Sobre a atuação do Ministério Público nas Ações Civis Públicas, Wladimir Passos de Freitas destaca: que “a competência do Ministério Público para iniciar uma ação civil em juízo é criação brasileira. Na maioria dos países ela não é admitida. A solução brasileira passa certamente por dois fatores. O primeiro é a estrutura administrativa existente e as garantias dadas pela Constituição Federal ao Ministério Público. O segundo é o ainda recente processo de democratização que afeta o país, fazendo com que somente agora, e aos poucos, se exercitem os direitos de cidadania”. FREITAS, Wladimir Passos de. A Constituição Federal e a efetividade das normas ambientais. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.38. 15

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conjunto aberto de direitos e obrigações, de caráter relacional, que denominamos “ordem pública ambiental”. 19

3. AVANÇOS NO TRATAMENTO LEGAL DA PROTEÇÃO AMBIENTAL APÓS A CF/88. A constitucionalização da tutela ambiental na Carta Magna, além de recepcionar na integralidade importantes diplomas legais referentes à proteção do meio ambiente, como a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n˚ 6.938/1981) 20 e a Lei da Ação Civil Pública (Lei n˚ 7.347/1985), repercute na adoção de medidas legislativas e administrativas que abarcam boa parte das reivindicações e novos valores em matéria ambiental no âmbito jurídico-político brasileiro. Desta feita, alguns pontos merecem ser destacados. A primeira “repercussão” foi a inserção da temática ambiental também nas Constituições Estaduais e, consequentemente, na atuação legiferante dos Estados no exercício de sua competência para complementar e suplementar prevista no art. 24 da CF/88. Posteriormente, destaca-se a produção legislativa referente à temática ambiental, imbuída de regulamentar alguns dispositivos do art. 225. Nesse sentido, cabe apontar a Lei 9.605/98, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente (Lei de Crimes Ambientais); a Lei 9.985/00, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação; a Lei 11.105/05, que trata sobre biossegurança; e as Leis 11.284/06 e 11.428/06, que dispõem, respectivamente, sobre a gestão de florestas públicas e sobre a utilização e proteção da vegetação nativa de mata atlântica.21 Chama-se atenção também para a instituição de políticas públicas de âmbito nacional para setores estratégicos, delineadas sob o novo enfoque da proteção ambiental e utilização racional dos recursos naturais. Nesse sentido, a Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9.433/97), Política Energética Nacional (9.478/97, com as alterações da Lei 11.097/05) e a instituição de diretrizes nacionais para o Saneamento Básico (Lei 11.445/07). Ainda é conveniente também mencionar o papel do Conselho Nacional de Maio Ambiente CONAMA, cuja criação decorre da Instituição da Política Nacional de Maio Ambiente (Lei 6.938/81), mas que passou a ter uma atuação muito mais expressiva através da disciplina regulamentar de normas, critérios e padrões relativos ao controle e à manutenção da qualidade ambiental após a ênfase à proteção ambiental trazidas pela CF/88.22

BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos e. “O meio ambiente na Constituição Federal de 1988”. In Desafios do Direito Ambiental no Século XXI: estudos em homenagem a Paulo Affonso Leme Machado. KISHI, Sandra Akemi Shimada et al. (Org.). São Paulo: Malheiros, 2005. 20 Conforme Ingo Sarlet, o mais importante diploma legislativo dedicado exclusivamente à temática ambiental é a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n˚ 6.938/1981), a qual estabelece fins e mecanismos da tutela ambiental no cenário jurídico brasileiro, através de uma abordagem integral e sistemática da matéria. Cf. SARLET, Ingo W.; FENSTERSEIFER, Thiago. “O papel do judiciário brasileiro no âmbito da “governança ambiental” – o juiz como “guardião” do ambiente. In 20 anos da Constituição Federal: trajetória do direito ambiental. CONCEIÇÃO, Maria Collares Felipe da (Coord.). Rio de Janeiro, EMERJ, 2008, p 147. 21 Além dos diplomas legais mencionados, também cabe referenciar algumas legislações que têm relação direta com a proteção ambiental. Nesse sentido, a Lei 7.797/89, que cria o Fundo Nacional de Maio Ambiente; a Lei 8.171/91, que dispõe sobre Política Agrícola; Lei 10.257/01, que dispõe sobre a Política Urbana (Estatuto da Cidade); Lei 10.630/05, que dispõe sobre acesso público a dados e informações do SISNAMA. Além destas, legislações referentes à temáticas ambientais específicas, como a Lei 7.802/89, que traz disposições referentes aos agrotóxicos; Lei 8.723/93, que dispõe sobre a emissão de poluentes de veículos automotores; Lei 9.055/95, que dispõe sobre a utilização de amianto/asbesto em território nacional; Lei 9.966/00, que dispõe sobre controle e fiscalização de poluição causada por óleo e outras substâncias em águas nacionais; Lei 10.308/01, que dispõe sobre depósitos de rejeitos radioativos, dentre outras. 22 Até 88, as principais regulamentações do CONAMA ficavam restritas à disciplina do Estudo de Impacto Ambiental (Res. 01/86) e das Audiências Públicas (Res. 09/89). Após 1988, observa-se uma atuação muito maior do CONAMA normatividade ambiental, cabendo destacar as normativas sobre licenciamento ambiental, com definição de norma genérica (Res. 237/97) e normas para tipologias específicas (Res. 23/94 - atividades de exploração de lavra e jazidas de combustíveis líquidos e gás natural; Res. 273/00 19

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Bem, além da Constituição mais avançada em matéria de proteção ambiental, o Brasil dispõe hoje de um amplo arsenal legal referente ao uso e à conservação dos bens ambientais, ao combate á poluição e à proteção da vida e da saúde, que compõe um sistema jurídico-ambiental peculiar, avançado e complexo. Todavia, não basta apenas legislar. A efetividade da proteção ambiental há de ser verificada através da materialização dos preceitos legais.

4. APONTAMENTOS SOBRE A EFETIVIDADE DA PROTEÇÃO AMBIENTAL APÓS 20 ANOS DA CF/88 São múltiplas e indiscutíveis as vantagens da constitucionalização do meio ambiente e do tratamento legal que o tema vem recebendo na legislação infraconstitucional. Antônio Herman Benjamin salienta que um exame da experiência estrangeira revela que a norma constitucional comumente estabelece uma obrigação geral de não degradar, fundamentaliza direitos e obrigações ambientais, ecologiza o direito de propriedade, legitima a intervenção estatal em favor da natureza, reduz a discricionariedade administrativa no processo decisório ambiental, amplia a participação pública, atribui preeminência e proeminência à tutela da natureza, robustece a segurança normativa, substitui a ordem pública ambiental legalizada pela constitucionalizada, reforça a interpretação pró-ambiente e, por fim, enseja o controle de constitucionalidade sob bases ambientais. 23 Todavia, falar em efetividade da norma constitucional ambiental é matéria que revela certa complexidade. Efetividade, em sentido amplo, significa a capacidade que uma norma jurídica tem para produzir seus efeitos. Por outro lado, em sentido estrito, a efetividade de uma norma pode ser vista sob uma ótica jurídica e sob uma ótica social. A efetividade jurídica ocorre quando uma norma jurídica tem nos limites objetivos todos os elementos: hipótese, disposição, sanção, podendo, assim, produzir efeitos desde logo no mundo dos fatos. Já a efetividade social de uma norma ocorre quando a mesma é respeitada por boa parte da sociedade, existindo assim um reconhecimento do Direito pelos cidadãos e um amplo cumprimento dos preceitos normativos.24 Luis Roberto Barroso, em breve síntese, afirma que a efetividade significa, portanto, a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o deve-ser normativo e o ser da realidade social.25 São inegáveis os avanços na proteção ambiental pós CF/88, mas, na qualidade de direto fundamental e cercado de todos os pressupostos analisados, a proteção do meio ambiente, na prática, revela-se um desafio diário, vez que exige do Poder Público (aí contemplado em suas três esferas – executivo, legislativo e judiciário) e de toda sociedade uma mudança de postura.

postos revendedores de combustíveis; Res. 279/01 - empreendimentos hidrelétricos; 334/03 - estabelecimentos destinados à embalagens vazias de agrotóxicos; Res. 350/04 - atividades de aquisição de dados sísmicos marítimos e em zonas de transição; Res. 377/06 - sistemas de esgotamento sanitário), normas sobre destinação final de resíduos (Res. 257/99 - pilhas e baterias; Res. 258/99 – pneumáticos; Res. 307/02 – resíduos da construção civil; Res. 358/05 - resíduos dos serviços de saúde), além de normas sobre temas específicos de grande importância, como importação de produtos perigosos(Res. 23/94), auditorias ambientais (Res. 307/02) e áreas de preservação permanente (Resoluções 302/02, 302/02 e 369/06). 23 BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos e. “O meio ambiente na Constituição Federal de 1988”. In Desafios do Direito Ambiental no Século XXI: estudos em homenagem a Paulo Affonso Leme Machado. KISHI, Sandra Akemi Shimada et al. (Org.). São Paulo: Malheiros, 2005. 24 Cf. SANTOS, Marcos André Couto. “A efetividade das normas constitucionais: as normas programáticas e a crise constitucional”. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 204, 26 jan. 2004. Disponível em: . Acesso em: 03 fev. 2009. 25 BARROSO, Luis Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas – limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 2 ed, Rio de Janeiro: Renovar, 1993, p. 79 Página 8 de 13

O primeiro desafio refere-se à atuação do Poder Público enquanto executivo, na qualidade de detentor do poder de polícia em matéria ambiental 26, que demanda uma a reestruturação (e estruturação, em muitos casos) dos órgãos públicos da questão ambiental Em âmbito federal, após a criação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (IBAMA), previsto desde a edição da Lei de Política Nacional de Meio Ambiente 27, houve a criação do Ministério do Meio Ambiente (MMA)28, o que conferiu ao Executivo uma pasta própria para o tratamento do tema, antes alocado em outros Ministérios ou subjugado à esfera de Secretaria, e propiciou a estruturação de diversas secretarias internas e entidades vinculadas que cuidam de assuntos específicos.29 Os Estados também cuidaram de instituir ou aprimorar seus Sistemas Estaduais de Meio Ambiente. Recentemente, essa tendência vem sendo observada em âmbito municipal, impulsionada pela descentralização dos licenciamentos ambientais de empreendimentos de menor impacto. Ocorre que a esfera pública muitas vezes se mostra ineficiente na gestão, fiscalização e controle ambiental. A falta de recursos é, na maior parte das vezes, a justificativa para as falhas encontradas, todavia, a questão vai mais além. Não obstante a infra-estrutura precária (pessoal e material) em relação à demanda, a atividade dos órgãos ambientais termina por se concentrar em grande parte no licenciamento. Com isso, outros instrumentos de gestão previstos política nacional do meio ambiente restam sub-utilizados. Ademais, muitas vezes há desarticulação entre políticas públicas dos diversos entes federados e descompasso entre áreas técnicas e esferas políticas, o que causa atritos que impedem uma atuação proveitosa do órgão. Por outro lado, o próprio Estado entrou em crise, e dentro da política de reformas e ajustes (Estado Mínimo), ele vem se debatendo entre propostas de privatização, desregulamentação e pressões para cessão a interesses privados. No que tange à atuação do Poder Público enquanto legislativo, é possível perceber certo avanço em relação à temática ambiental não somente pela vasta produção legislativa em âmbito federal, como já brevemente mencionado, mas, também, pela atuação legiferante dos demais entes federados, que vêm exercitando as competências constitucionais que lhe foram conferidas e detendo maior atenção às questões ambientais. Nesse ínterim, destaca-se a lei paulista que proíbe o uso de qualquer produto que utilize amianto no estado30 e legislações municipais, como a recente lei do Município de São Paulo, que visa regulamentar aspectos da paisagem urbana referentes à poluição visual, disciplinando a propaganda publicitária externa31 e as regulamentações de diversos municípios referentes ao controle da instalação de estações de rádio base (ERB) dos serviços de telefonia móvel 32.

Sobre o poder de polícia em matéria ambiental, Paulo Affonso Leme Machado leciona tratar-se de “atividade da Administração Pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão do interesse público concernente à saúde da população, à conservação dos ecossistemas, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público de cujas atividades possam decorrer poluição ou agressão à natureza” (Cf. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 11 ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 317/318) 27 O IBAMA, criado através da Lei 7.735/89, resultou da reestruturação dos órgãos públicos então encarregados da questão ambiental: SUDEPE (pesca), a SUDHEVEA (borracha), a IBDF (desenvolvimento florestal) e a SEMA (meio ambiente). 28 Lei 8.746/93 29 Nesse sentido, destacam-se como entidades vinculadas do MMA o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (IBAMA), o Serviço Florestal Brasileiro (SFB), a Agência Nacional de Águas (ANA), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro. 30 Lei 12.684/07, a qual, inclusive, está sendo objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3937) proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI). 31 Lei .14.223/06 do município de São Paulo 32 Vários municípios disciplinam o tema, como Porto Alegre, Belo Horizonte, Niterói, Palmas, Goiânia, Rio de Janeiro, São Paulo, Natal, Teresina, entre outros. 26

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Todavia, a atuação legislativa dos demais entes federados é quase sempre objeto de questionamento judicial em relação à sua validade formal, ou seja, se, de fato, tal ente federado detinha competência para legislar sobre determinado tema. Além disso, há constantes pressão para flexibilizações e concessões. Por exemplo, a lei do Estado de São Paulo que proíbe a utilização de produtos contendo amianto no Estado está sendo objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3937) proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI). A Lei da Cidade Limpa também foi objeto de Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI 146.749-0/8), por ferir o art. 144 da Carta Bandeirante, bem como, objeto de Incidente de Inconstitucionalidade que questionava a competência municipal para legislar sobre poluição visual. Da mesma forma, várias legislações municipais que dispõem sobre as estações rádio base foram objeto de ações judiciais por parte das empresas de telefonia que, sob auspício de não se adequarem aos preceitos legais, questionavam a competência do município para legislar sobre o tema. Felizmente, em relação aos exemplos mencionados, todas as decisões até o momento foram no sentido da constitucionalidade dos dispositivos questionados. Ademais, há atuações louváveis em nossos Tribunais onde princípios do direito ambiental são explicitamente utilizados como fundamento nas decisões judiciais. Todavia, não se pode afirmar o entendimento jurisprudencial favorável à proteção ambiental seja a regra. Dessa forma, outro grande desafio para a efetividade da norma ambiental tem suas bases na atuação do Poder Judiciário. De acordo com as coerentes ponderações de Fernando Walcacer e Guilherme Purvin, a grande maioria da atual geração de magistrados se formou em escolas que privilegiam o ensino do Direito Privado, onde sequer foi oferecido o Direito Ambiental como disciplina optativa no curso de graduação. Por isso, com honrosas exceções, os tribunais costumam pensar o Direito a partir de uma perspectiva privatista, evidentemente incompatível com as necessidades de uma tutela ambiental efetiva, que faz da implementação dos dispositivos constitucionais em matéria ambiental uma meta a ser alcançada, pois a tendência majoritária de nossos Tribunais é de simplesmente desconhecer a legislação ambiental. 33 Tal desafio vem sendo enfrentado através de algumas iniciativas, como a introdução do Direito Ambiental como disciplina obrigatória nas escolas preparatórias para a magistratura e a criação de varas ambientais especializadas nas Justiças Estadual e Federal. A Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ, em atuação inovadora, recentemente incluiu a disciplina “direito ambiental” no rol de matérias obrigatórias do Curso de Especialização em Direito para a Carreira da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Além disso, a EMERJ vem há anos promovendo debates sobre o direito ambiental através do Fórum Permanente de Direito do Ambiente. 34 Outra opção para a otimização da tutela ambiental refere-se instalação de varas ambientais especializadas. Embora seja uma opção institucional do Poder Judiciário, já existem desde meados da década de 90 nos Estados de Mato Grosso (1996) e Amazonas (1997). Recentemente, foram criadas também no âmbito da Justiça Federal, no Tribunal Regional Federal (TRF) da 4˚ Região, nas Comarcas de Curitiba, Porto Alegre e Florianópolis (2005). O maior benefício que se tem com a especialização é tornar o direito ambiental prioritário no trabalho judiciário ao criar um espaço privilegiado dentro da organização judiciária para debater e enfrentar as questões ambientais sem que isso dependa da vontade ou ideologia de um ou outro julgador. Assim, mais do que apenas facilitar a condução dos processos, a especialização da jurisdição chama a

WALCACER, Fernando e FIGUEIREDO, Guilherme Purvin de. “Constituição, direitos humanos e meio ambiente: um balanço crítico de nossa jurisprudência”. In Direito Ambiental em Debate Vol. 2. FIGUEIREDO, Guilherme Purvin de (Coord.). Rio de Janeiro: Esplanada, 2004, p. 214/215. 34 Nesse sentido, destaca-se a incansável atuação da Des. Maria Collares Felipe da Conceição. 33

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atenção do juiz para as tensões e peculiaridades da questão ambiental e força o magistrado a colocar o ambiente e seus desdobramentos em sua agenda de prioridades. 35 Por outro lado, os próprios membros do judiciário são categóricos ao afirmar que apenas a criação de varas especializadas não é suficiente. Trata-se apenas de um paliativo que pode facilmente transformar-se numa figura meramente retórica e decorativa se não houver comprometimento de todos com os valores constitucionais do art. 225 da Constituição. 36 Assim, talvez o maior desafio para a efetividade da proteção ambiental nos moldes previstos na Constituição de 88 resida consciência coletiva, o que só é possível através de informação, educação e participação popular. Nesse contexto, Fernando Walcacer e Guilherme Purvin de Figueiredo trazem lúcidas colocações no sentido de que é preciso construir uma democracia em que a informação de fato circule desembaraçadamente, sem restrições, de forma a possibilitar a todos informações sobre a qualidade ambiental e a existência de projetos que possam afetá-la negativamente. É preciso ainda investir maciçamente em educação ambiental, porque de nada adianta a informação circular se a sociedade não tiver capacidade de entender sobre o que está sendo discutido. Finalmente, não basta a informação circular e ser compreendida pela sociedade, se não houver por parte dos cidadãos a disposição de participar ativamente da construção desse novo paradigma. 37 Como se pode ver, para que a proteção do meio ambiente nos moldes previstos na CF/88 seja de fato efetiva não basta que o direito ao “meio ambiente ecologicamente equilibrado” esteja alçado ao status constitucional de direito fundamental, inseparável da própria dignidade da pessoa humana. Da mesma forma, são insuficientes as previsões legais que impõem deveres ao Poder Público e a sociedade de gerir adequadamente os bens ambientais a fim de transmiti-los às futuras gerações na maior integridade possível. O desafio mostra-se é maior e direcionado a todos os atores sociais. Trata-se da necessidade de um exercício conjunto, diário, constante e intenso da cidadania ambiental.

CONCLUSÃO Como visto, a partir da década de 70 a questão ambiental ganha notoriedade na arena social e política, com reflexos na esfera jurídica. Nesse contexto, constituições recentes passaram a tutelar a proteção ambiental, assegurando o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito humano fundamental. A Constituição Federal de 1988, seguindo a tendência internacional, trata a problemática ambiental de forma singular, dispondo-lhe, além de um capítulo próprio, disposições difusas ao longo de seu texto, relacionando-a com outros temas de grande relevância. Dessa forma, consagra o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado no ordenamento jurídico brasileiro, ratificando legislações anteriores e embasando uma grande produção legislativa e adequação institucional para efetivação do direito em tela. Hoje, além da Constituição mais avançada em matéria de proteção ambiental, o Brasil dispõe hoje de um amplo arsenal legal referente ao uso e à conservação dos bens ambientais, ao combate á

Cf. LEAL JUNIOR, Cândido Alfredo Silva. “A experiência das varas ambientais especializadas”. Espaço Vital. Porto Alegre. 03 jun. 2008. Disponível em: . Acesso em 03 fev. 2009. 36 Nesse sentido, Cândido Alfredo Silva Leal Junior, Juiz Federal da Vara Ambiental, Agrária e Residual de Porto Alegre, em: “A experiência das varas ambientais especializadas”. Espaço Vital. Porto Alegre. 03 jun. 2008. Disponível em: . Acesso em 03 fev. 2009. 35

WALCACER, Fernando e FIGUEIREDO, Guilherme Purvin de. “Constituição, direitos humanos e meio ambiente: um balanço crítico de nossa jurisprudência”. In Direito Ambiental em Debate Vol. 2. FIGUEIREDO, Guilherme Purvin de (Coord.). Rio de Janeiro: Esplanada, 2004, p. 217. 37

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poluição e à proteção da vida e da saúde, que compõe um sistema jurídico-ambiental peculiar, avançado e complexo. Todavia, falar da efetividade da tutela ambiental após 20 anos de sua promulgação é tarefa que revela certa complexidade. A efetividade da proteção ambiental há de ser verificada através da materialização dos preceitos legais. A efetividade da proteção ambiental nos moldes esculpidos na CF/88 vem se revelando um desafio diário, vez que exige do Poder Público (executivo, legislativo e judiciário) e de toda sociedade uma mudança de postura. É inegável que muitos avanços já foram alcançados, mas ainda há muito o que ser feito até termos efetivamente um “Estado de Direito Ambiental”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROSO, Luis Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas – limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 2 ed, Rio de Janeiro: Renovar, 1993. BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos e. “Meio ambiente e Constituição: uma primeira abordagem”. In 10 anos da ECO-92: O Direito e o Desenvolvimento Sustentável - Anais do 6˚ Congresso internacional de Direito Ambiental. BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos e (Org.). São Paulo: IMESP, 2002. BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos e. “O meio ambiente na Constituição Federal de 1988”. In Desafios do Direito Ambiental no Século XXI: estudos em homenagem a Paulo Affonso Leme Machado. KISHI, Sandra Akemi Shimada et al. (Org.). São Paulo: Malheiros, 2005. COMPARATO, Fábio Konder. “O papel do juiz na efetivação dos direitos humanos”. In Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região. Campinas, São Paulo, n. 14, 2001. Disponível em:. Acesso em: 6 fev. 2009. FERRAZ, Antônio Augusto Mello de Camargo; MILARÉ, Édis; MAZZILLI, Hugo Nigro. “O Ministério Público e a questão ambiental na Constituição”. Revista Forense. v. 294. Rio de Janeiro, 1986. FREITAS, Wladimir Passos de. A Constituição Federal e a efetividade das normas ambientais. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica e a Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica). 9 ed. São Paulo: Malheiros, 2004 JACCOUD, Cristiane. Atuação do Estado no domínio econômico e seus reflexos na política ambiental: análise da proposta brasileira de fomento à inserção do biodiesel na matriz energética. Dissertação de mestrado apresentada no Programa de pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Santos – UNISANTOS, 2008. Disponível em http://www. http://biblioteca.unisantos.com.br/tede/index.php. LEAL JUNIOR, Cândido Alfredo Silva. “A experiência das varas ambientais especializadas”. Espaço Vital. Porto Alegre. 03 jun. 2008. Disponível em: . Acesso em 03 fev. 2009. LEITE, José Rubens Morato. “Ação popular: um exercício da cidadania ambiental?”. Revista de Direito Ambiental. n. 17. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan-mar/2000. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro.13 ed. São Paulo: Malheiros, 2005. MACHADO, Paulo Affonso Leme. “Meio Ambiente e Constituição Federal”. In Direito Ambiental em Debate Vol. 1. FIGUEIREDO, Guilherme Purvin de (Coord.). Rio de Janeiro: Esplanada, 2004. MILARÈ, Édis. Direito do Ambiente. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

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