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Ensaio 1 – Engelmann, M. L.

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“Observações Filosóficas” e o Projeto da Linguagem Fenomenológica1

Mauro L. Engelmann (UFMG) Introdução O capítulo I das Observações Filosóficas (PB)2 introduz as ideias centrais do projeto gramático-fenomenológico. Esse projeto, contudo, precisa ser contrastado com o Tractatus e o projeto da linguagem fenomenológica do início de 1929 para que seja compreendido, uma vez que esses antigos projetos determinam o contexto das PB 3. Por essa razão, na seção 1 exponho brevemente o projeto tractariano e seus pressupostos, todos relacionados ao papel fundamental atribuído ao simbolismo lógico. A partir disso, na seção 2, apresento algumas das motivações que levaram Wittgenstein à tentativa de estabelecer uma linguagem (simbolismo ou notação) fenomenológica. Depois, na seção 3, faço uma breve apresentação do simbolismo fenomenológico. Na seção 4, indico razões para o fracasso de tal projeto. Por fim, na seção 5, apresento as consequências 1

Este artigo foi escrito com o suporte financeiro do CNPq. As seções 2-4 expressam uma série de ideias exploradas de forma mais detalhada no capítulo 1 do livro Wittgenstein’s Philosophical Development: Phenomenology, Grammar, Method, and the Anthropological View (2013). O primeiro esboço deste ensaio e dos demais foi elaborado durante o primeiro semestre de 2013, quando dei um curso sobre as “Observações Filosóficas” no programa de pós-gradução da UFMG. Agradeço aos estudantes que participaram do curso por questões e objeções que acabaram por moldar minha estratégia de apresentação. 2 TS 209, de acordo com o Nachlass. As observações foram escritas do início de 1929 até o final de abril de 1930 e reunidas por Wittgenstein em 1930 com o título Philosophische Bemerkungen. Seu objetivo, na ocasião, era apresentar uma sinopse dos resultados de suas investigações desde o seu retorno a Cambridge, em fevereiro de 1929, com o intuito de receber fundos do College Council de Cambridge para continuar sua pesquisa (WiC, 180-8). O pedido de verba foi aprovado com um parecer de Russell (ver cartas de Russell a Moore e ao Council em The Autobiography of Bertrand Russell 1914-44, 282-8). A divisão em “capítulos” (numerais romanos) e “parágrafos” (numerais arábicos), bem como o prefácio (escrito, na verdade, posteriormente por Wittgenstein) são acréscimos de Rush Rhees, que editou a obra e a publicou em 1964. 3 Utilizarei as seguintes abreviações: PB: Philosophische Bemerkungen (Observações Filosóficas); T: Tractatus Logico-philosophicus; SRLF: Some Remarks on Logical Form; MS: manuscrito (o número que segue ‘MS’ é o número do manuscrito de acordo com o Nachlass); WLC30-32: Wittgenstein’s Lectures Cambridge, 1930-32; WWK: Wittgenstein und der Wiener Kreis; WiC: Wittgenstein in Cambridge; BT: The Big Typescript; Notebooks: Notebooks 1914-16. Referências completas são dadas no final.

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imediatas do fracasso do simbolismo, a saber, a concepção de sentenças ordinárias como hipóteses e o caráter “incompleto” de certas proposições elementares. É o abandono desse projeto que levará Wittgenstein à ideia de uma compreensiva gramática-fenomenológica, cuja apresentação geral será o tema do segundo ensaio.

1) O Minimalismo do Tractatus e a Linguagem Fenomenológica Talvez o maior mérito do Tractatus, aos olhos de Wittgenstein à época, tenha sido determinar simbolicamente que proposições necessárias são tautologias vero-funcionais (T 6.1, 6.3). Isso significa que toda expressão tautológica construída através dos conectivos vero-funcionais é redutível a uma operação básica (a operação N) sobre proposições bipolares inanalisáveis chamadas “proposições elementares” (T 5.3). Essas proposições são logicamente inanalisáveis na medida que não implicam ou são implicadas por nenhuma outra proposição elementar; elas são logicamente independentes (T 4.211, 5.134 e 6.3751). Elas constituem a base da forma geral das proposições: qualquer proposição é ou uma proposição elementar bipolar ou o resultado da operação N sobre proposições elementares (T 4.5 e 6). As proposições que resultam da operação são elas próprias bipolares ou proposições da lógica (tautologias e contradições). Quanto à natureza das proposições elementares, sabemos a priori, de acordo com o Tractatus, somente que são estruturadas pelas formas mínimas de funções com n lugares de argumento cada uma (T 5.5541 e T 5.5571). Desse modo, Wittgenstein pode determinar o que é uma proposição possível e o que conta como parte da linguagem, pois a linguagem, segundo o Tractatus, não é nada mais do que a totalidade das proposições (T 4.001). O que não é uma proposição, nos

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termos do Tractatus, não é parte da linguagem, mas mero contrassenso (T, prefácio).4 Esse resultado fundamental assume aquilo que poderíamos chamar de minimalismo simbólico da lógica determinado pelos dispositivos notacionais do Tractatus.5 O minimalismo ganha expressão em pelo menos quatro ideias fundamentais: 1) argumento e função expressam a forma mínima de qualquer proposição; 2) qualquer “proposição” necessária é expressável notacionalmente em termos vero-funcionais na forma de tautologias (e contradições); 3) qualquer proposição complexa tem uma análise final em termos de proposições elementares; 4) qualquer proposição elementar é logicamente independente

1-4 são ideias consideradas redundantes (trivialidades) no Tractatus. A aparente trivialidade das mesmas deve-se ao seu simbolismo. As ideias são expressas (mostradas) no próprio simbolismo e, assim, as afirmações 1-4 são supérfluas, isto é, são meras ‘tautologias’ no sentido ordinário da palavra. Vejamos como 1-4 aparecem no Tractatus. A construção da quantificação no Tractatus depende da determinação de uma classe de proposições elementares a partir de uma forma elementar como Fx (T 5.501). Somente desse modo N(ξ) pode ser ~(x) Fx (5.52). Ou seja, construímos ~(x) Fx a partir de: N(Fx)=def. (~Fa & ~Fb & ~Fc…). Primeiro, uma classe de proposições elementares (Fa, Fb, Fc, etc) é fixada por uma forma Fx (“variável proposicional”). Fx é o que Russsell chamava ‘função proposicional’; porém, de acordo com o Tractatus, uma função proposicional não é, contra Russell, uma entidade platônica: “A fixação dos valores é a variável” (T 3.316). Segundo, o operador N é usado para negar a classe dos valores fixados e, assim, determinar uma conjunção de negações [N(Fx)= (~Fa & ~Fb & ~Fc...)], de modo que ~(x) Fx é construído. A notação do Tractatus, portanto, expressa 4 5

O resultado filosófico da forma geral da proposição é apresentado nos aforismos do grupo 6. Apresento uma interpretação minimalista do Tractatus em Engelmann (2016) e (forthcoming 2).

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1. Podemos dizer que a notação para a quantificação mostra que proposições elementares têm as formas função e argumento, mesmo que não possamos explicitar a priori quais as formas específicas que, de fato, encontraremos na análise da linguagem. Ao aplicarmos a lógica poderíamos, por exemplo, descobrir que teríamos apenas relações com 5 lugares de argumento ou mais nas proposições elementares (T 5.5541). Do ponto de vista do Tractatus, existem critérios para a determinação daquilo que é uma verdade lógica: a verdade é tautológica, ou seja, reconhecida nos símbolos somente (T: 6.11, 6.113). As tabelas de verdade mostram visualmente que as proposições da lógica são meras tautologias. Casos complicados de tautologias são determinados por procedimentos de prova (T 6.126). “Verdades lógicas” não tautológicas não são verdades lógicas. Assim, evidentemente, torna-se manifesto que nem o “axioma da infinitude”, nem o “princípio da reducibilidade”, nem a Lei V de Frege são verdades lógicas (T 6.1232). Portanto, dados os critérios de verdades lógicas do Tractatus, 2 acima é uma espécie de trivialidade notacional. 3 acima é, por um lado, uma obviedade notacional, pois proposições que não são complexas (a complexidade zero sendo determinada pela ausência de conectivos lógicos) são elementares. Por outro lado, proposições elementares deveriam ser o resultado da análise. Deve-se pensar em dois procedimentos definicionais (modos de análise) de uma proposição: análise conceitual (definições convencionais) e a análise russelliana da proposição – ver T 3.21-6 e 4.0031, respectivamente. Se o sentido de uma proposição é determinado (T 4.023), ele pode ser progressivamente expresso por definições que explicitam as condições de verdade de uma proposição, de modo que cada proposição deve ser expressável em uma única análise final. A análise é final quando o processo

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definicional não pode prosseguir, isto é, quando termos indefiníveis, que nomeiam objetos diretamente, são apresentados. A análise russelliana garante que, mesmo que um complexo não exista, a proposição que faz referência a ele tenha sentido (isso garante a não violação do terceiro excluído no caso de descrições e nomes vazios). 6 A análise correta de expressões incompletas como ‘o x tal que x’, afirma Russell, mostra que a sentença toda precisa ser reescrita com a expressão das condições de verdade da sentença. Vejamos o exemplo “O atual rei do Brasil é manauara”: a) há pelo menos um rei do Brasil, b) não mais de um, c) ele é manauara. A explicitação das condições de verdade, assim, explicita o sentido da sentença não analisada de modo que nenhuma condição de verdade é externa à proposição.7 Qualquer sentença, portanto, em que aparece uma tal expressão tem sentido, como já indica seu uso na própria linguagem ordinária – que, evidentemente, está em perfeita ordem lógica (ver T 5.5563). Esse tipo de análise, assim como a ‘construção’ da quantificação vista acima, mostra que precisamos chegar a proposições elementares de alguma variação de função e argumento em que nomes indefiníveis tenham significado (referência). Caso contrário, não poderíamos entender uma proposição, uma vez que o sentido é expresso por condições de verdade (T 4.024). Se não chegássemos a termos indefiníveis, a explicitação do sentido (condições de verdade) não teria fim e, portanto, não poderíamos entender nossas proposições (isso parece ser uma consequência absurda). Proposições em que

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Ver On Denoting de Russell. A sentença acima é falsa e deve ser notacionalmente expressa por (x) (Rxb & (y) (Ryb  x=y) & Mx). A análise apresentada não é propriamente a análise final do Tractatus, pois ainda não foi eliminado o sinal ‘=’ (ver T 5.53n). Deve-se ressaltar, ainda, que a análise apresentada não é final também porque, por exemplo, o nome ‘b’ (Brasil) deveria ser analisado através de uma descrição definida como “o país mais populoso da América do Sul”, e assim por diante. 7

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somente nomes indefiníveis aparecem são elementares. Temos, então, a ideia fundamental 3 acima, que é expressa na ideia tractariana de análise. Mas qual o critério que determina a indefinibilidade dos termos? A indefinibilidade dos termos é determinada pela independência lógica das proposições elementares onde, supostamente, aparecem (4 acima). Aqui devemos observar que as tabelas de verdade mostram que proposições elementares são logicamente independentes. Se não fossem, não poderíamos, por exemplo, tomar a conjunção como um equivalente de ‘(VFFF)’: uma forma proposicional p  q só pode ser expressa como (VFFF) se p e q são instanciados por proposições logicamente independentes (se as proposições fossem incompatíveis, por exemplo, ‘V’ não poderia aparecer como uma possibilidade). Sendo assim, se uma determinada tabela de verdade indicasse uma linha em que a sequência VFFF não fosse válida para a conjunção, teríamos um claro sinal de que a análise deveria prosseguir. Um exemplo de uma tal tabela seria “A é vermelho & A é azul”. Essas proposições não são elementares de acordo com o Tractatus, uma vez que não permitem que a primeira linha da tabela de verdade seja uma possibilidade. Ocorre que tal possibilidade não existe precisamente porque as proposições em questão não são logicamente independentes. Desse modo, parece natural supor que ser ‘logicamente independente’ determine o caráter de ‘ser elementar’ (como veremos a seguir, essa ‘trivialidade’ do Tractatus não se sustenta, de acordo com o próprio Wittgenstein).

2) Dificuldades Notacionais

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Ramsey, em sua resenha do Tractatus (de 1923), desafia Wittgenstein a esclarecer as pressuposições 2 e 4 acima.8 Segundo Ramsey, Wittgenstein precisaria mostrar que, para duas proposições quaisquer que logicamente se excluem e que parecem implicar uma a negação da outra (como, por exemplo “Este livro é verde” e “Este livro é azul”), a redução à impossibilidade de caráter tautológico (contradição) deveria ser demonstrada (ver T 6.3751, onde Wittgenstein assume que isso deve ser possível). Caso contrário, Wittgenstein não poderia assumir que toda necessidade é lógica, que toda proposição elementar é logicamente independente e que o sentido de qualquer proposição é explicitado completamente através da análise que, supostamente, levaria às proposições elementares. Na mesma resenha, Ramsey indica que o caráter contraditório de “A é verde & A é vermelho” deveria ser demonstrado no caso do espaço visual. Ele não apresenta uma razão para isso, mas pode-se conjecturar que uma análise que não leve em consideração a fenomenologia do campo visual seria incompleta. Se a demonstração de uma contradição fosse baseada, por exemplo, em noções físicas de cor, poderíamos nos perguntar como seria possível aplica-la à noção fenomenológica de cor, uma vez que ‘cor’ em sentido fenomenológico não se comporta do mesmo modo que ‘cor’ em sentido físico (misturas possíveis, por exemplo, são distintas). Assumido esse ponto, o problema é que descrições de fenômenos visuais preservam a incompatibilidade, mesmo sendo, possivelmente, elementares. De qualquer modo, pensa Ramsey, é problemático supor que poderíamos analisar adequadamente o espaço visual e suas cores em termos mais elementares sem que os termos elementares sejam apresentados.

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Muito provavelmente os tópicos da resenha de Ramsey já haviam sido discutidos direta ou indiretamente em visitas a Wittgenstein na Áustria em 1923.

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Wittgenstein não dá exemplos de proposições elementares no Tractatus, tampouco oferece um modelo completo da análise final de proposições. Contudo, é razoável pensar, como Wittgenstein no Tractatus, que é uma espécie de obviedade que “A é vermelho” contradiga “A é azul”. É como se o próprio sentido de “A é vermelho” incluísse “A não é azul”. Isto é, parece plausível assumir que qualquer análise de “A é vermelho & A é azul” explicitasse uma conjunção do tipo “A é vermelho & (A não é azul) & A é azul”. Em 1929, quando volta a Cambridge, Wittgenstein inicia uma investigação fenomenológica para determinar com maior precisão a natureza das proposições elementares. A investigação, contudo, mostra que a análise que deveria ser explicitada é nada óbvia. Essa investigação tem duas etapas. Na primeira, Wittgenstein procura estabelecer, por meio de uma análise vero-funcional, as características das proposições elementares requeridas pelo Tractatus. Nessa etapa,9 como nos mostra Wittgenstein em SRLF, acaba por aceitar que proposições elementares que se excluem (“A é azul” e “A é vermelho”) não podem ser analisadas meramente em termos vero-funcionais e que, portanto, a notação do Tractatus para a necessidade lógica (necessidade tautológica) não parece se aplicar a todos os casos de relações necessárias e impossíveis entre proposições. Isso porque mesmo que a análise de “A é vermelho” mostrasse que uma de suas condições de verdade seria “A não é azul”, outras complexidades de “A é vermelho”

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Essa etapa deve ter ocorrido até mesmo antes da chegada de Wittgenstein a Cambridge. Em carta a Schlick de fevereiro de 1929, Wittgenstein diz que permaneceria em Cambridge para tratar “do campo visual e outras coisas” (ver WWK, 17). É precisamente a análise das formas do campo visual que caracteriza a segunda etapa. Sendo assim, é muito razoável supor que aquilo que chamo de “primeira etapa” ocorre nos manuscritos porque Wittgenstein queria explicar em artigo, a saber SRLF, os problemas com o projeto tractariano ao mesmo tempo que apresentaria o projeto da linguagem fenomenológica.

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deveriam ser consideradas.10 Exceto pelas cores primárias supostamente puras, as cores têm algum grau de brilho e saturação. Suponhamos que uma entidade A tenha o grau de brilho 2 (seguindo Wittgenstein, represento o fato assim: Ab2). Essa, obviamente, não pode ser uma proposição elementar logicamente independente (pois de ‘Ab2’ podemos concluir ‘~Ab3’, etc.). Contudo, não podemos analisá-la. Duas opções de análise apresentam-se. Suponhamos que a análise de ‘Ab2’ seja o produto ‘Ab & Ab’. Dado que a tabela de verdade nos mostra que ‘Ab’ tem as mesmas condições de verdade de ‘Ab & Ab’, essa opção é absurda. Por outro lado, se analisarmos b, para distinguirmos ‘Ab’ de ‘Ab & Ab’, a partir de duas unidades distintas b* e b** (Ab* & Ab**), poderíamos perguntar se b*=b**, o que também parece ser absurdo.11 Assim, Wittgenstein reconhece em SRLF que: a) não pode dar expressão tautológica vero-funcional para inferências do tipo “Este livro é verde, portanto não é vermelho”, nem b) excluir como mal formadas, com base na linguagem lógica do Tractatus, expressões da forma “O livro é vermelho e o livro é azul” e c) deve aceitar que números não podem ser eliminados em proposições elementares – como mostra o argumento acima.12 Os pontos a) e b) indicam que o simbolismo do Tractatus não tinha a multiplicidade correta (SRLF, 170). Isto é, ele permitia a representação de ‘estados de

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No que se segue, apresento apenas uma das razões de Wittgenstein. Outras podem ser encontradas no cap. 1 de Engelmann (2013). 11 Observe que a dificuldade não é resolvida se utilizarmos a notação do Tractatus para a atribuição empírica de números (ver T 5.53n sobre a atribuição empírica de números e T 6.0n e 6.2n sobre a natureza do número). Que uma entidade tenha exatamente 2 graus de brilho pode ser traduzido na linguagem do Tractatus como ((x, y) (Fx & Fy) & ~(x, y, z) (Fx & Fy & Fz)). A partir disso, poderíamos mostrar que resultaria uma contradição caso atribuíssemos 3 graus de brilho, uma vez que teríamos “... & (x, y, z) (Fx & Fy & Fz) & ~(x, y, z) (Fx & Fy & Fz)) & ...”. Contudo, ainda precisaríamos instanciar as variáveis x, y e z. Na instanciação, pelas regras do Tractatus, x e y indicariam unidades distintas, o que, como vimos, é absurdo. 12 A esse respeito ver SRLF. A nova concepção de proposição elementar e a sua relação com os conectivos lógicos é o tema do capítulo VIII de PB, onde outros argumentos que mostram que proposições elementares não são logicamente independentes são apresentados (ver PB §§76-82).

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coisas’ que não podem ocorrer. Há pelo menos uma linha a ser eliminada em certas tabelas de verdade, por exemplo: A é vermelho & A é azul VV VF

F

FV

F

FF

F

Observe que, no Tractatus, a conjunção era considerada uma contradição (T 6.3751). Neste caso, a análise mostraria que a primeira linha da tabela seria F. Dados a-c acima, isso não pode mais ser o caso. A alegação não se sustenta, pois torna-se evidente que não existem meios notacionais tractarianos para mostrar como analisar corretamente a conjunção em uma contradição. Há, portanto, uma “deficiência em nossa notação”, isto é, na notação lógica do Tractatus (SRLF, 171). A partir do reconhecimento de a e b, Wittgenstein abandona a exigência da independência lógica de todas as proposições elementares (consequentemente, abandona 2 e 4, ver acima). Assim, Wittgenstein empreende a segunda etapa da investigação fenomenológica. Em lugar de abandonar a tese dos limites da linguagem do Tractatus e “desconstruí-lo” em 192913, Wittgenstein procura um dispositivo para lidar com as proposições elementares e determinar a natureza da necessidade envolvida em proposições que se excluem. Esse dispositivo seria a linguagem (simbolismo) fenomenológica. Caberia a tal linguagem mostrar simbolicamente, por exemplo, que a

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Como sugerem vários comentadores: Baker, G. Wittgenstein, Frege, and the Vienna Circle, Hacker, P.M.S. Insight and Illusion, Jacquete, D. Wittgenstein’s Thought in Transition.

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primeira linha da tabela acima é um contrassenso, e não uma contradição como pensara no Tractatus; assim, o novo simbolismo eliminaria a deficiência do antigo (SRLF 171). Ele apresentaria a multiplicidade correta de proposições elementares. O novo simbolismo ou notação, portanto, complementaria o simbolismo do Tractatus ao corrigir suas deficiências e ao excluir contrassensos anteriormente não excluídos.

3) Simbolismo Fenomenológico Proposições fenomenológicas bipolares, pode-se pensar, poderiam preservar uma característica das proposições elementares do Tractatus. A determinação (ou o reconhecimento) da verdade ou falsidade de uma descrição dos fenômenos do campo visual, por exemplo, é direta; isto é, ela não parece se fundamentar na verdade ou falsidade de outra descrição. Pode-se dizer, assim, que a proposição “a mancha verde está à direita da mancha vermelha” é elementar no sentido de que somente a inspeção visual deste fato justifica a verdade ou falsidade da mesma. Essa característica de descrições fenomenológicas também indica que qualquer análise que não levasse em conta tais descrições seria incompleta. Não devemos estranhar, portanto, o apelo de Wittgenstein à fenomenologia em sua tentativa de exemplificar as proposições elementares em 1929. Do mesmo modo, penso, a introdução da primeira versão do verificacionismo já no projeto da linguagem fenomenológica é um passo razoavelmente natural, dadas as dificuldades notacionais reconhecidas.14 No Tractatus, Wittgenstein não necessitava assumir o verificacionismo, isto é, equacionar sentido e modo como é determinada a verdade de uma proposição. As próprias condições de verdade de uma proposição seriam suficientes para exibir seu 14

Tratarei da introdução da segunda versão do verificacionismo no ensaio 4.

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sentido. Isso porque tais condições deveriam ser completamente explicitadas por intermédio dos conectivos lógicos e proposições elementares logicamente independentes. Supostamente, uma conjunção de n proposições elementares poderia expressar completamente o sentido de uma proposição não elementar. Ocorre que, como vimos acima, essa pressuposição mostrou-se equivocada, uma vez que o significado dos conectivos lógicos depende, em certa medida, das formas dos fenômenos (cor e espaço, como vimos). É preciso notar que certas características lógicas (ou gramaticais) dessas formas são explicitadas a partir do modo como as proposições complexas são verificadas. “A é azul & A é vermelho”, por exemplo, jamais será verificada. Isso significa, evidentemente, que o sentido da conjunção não é dado meramente pelas condições de verdade da conjunção, mas depende de como o significado de certas conjunções específicas (envolvendo as formas ‘cor’ e ‘espaço’, por exemplo) é explicitado. O verificacionismo (o sentido de p é explicitado pelo modo como verificamos p) assumido no projeto da linguagem fenomenológica tem, assim, dois aspectos: proposições são verificadas pelos fenômenos no final da análise e cada forma fenomênica determina como verificamos as proposições de uma forma específica.15 Dadas essas características, parece claro que a notação fenomenológica seria o meio adequado de expressão da análise das proposições. Isto é, a análise de proposições ordinárias poderia ser feita a partir de definições com base nas formas dos fenômenos que, progressivamente, nos levariam a proposições que tratam diretamente de fenômenos. 15

Penso que essa explicação para a introdução do verificacionismo em 1929 é mais plausível do que assumir um verificacionismo implícito no Tractatus (como em Wrigley (1989)) ou explicá-lo como a eliminação da suposta ideia tractariana de compreender é imaginar uma situação (Marconi (2002)) ou como uma nova concepção do significado (Hacker (1986)). No ensaio 4 trato da adaptação do verificacionismo no projeto gramático-fenomenológico das PB.

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Presumivelmente, isso nos mostraria a determinação do sentido de cada proposição ordinária complexa a partir da análise completa das proposições via descrições dos fenômenos. Essas descrições seriam expressas na linguagem fenomenológica, o simbolismo lógico-fenomenológico das relações formais das descrições fenomenológicas. Assim, a função da linguagem fenomenológica seria dupla. De um lado, mostrar que as relações de implicação e dependência têm um caráter formal e excluir certas construções impossíveis (contrassensos). A exclusão de certas construções explicaria, por exemplo, a eliminação da primeira linha da tabela de verdade acima. O vazio indicaria um contrassenso eliminado já no simbolismo fenomenológico. De outro, a linguagem fenomenológica, como instrumento do verificacionismo, indicaria os procedimentos de análise definicional de conceitos ordinários com fundamento nas formas das proposições elementares fenomênicas. Desse modo, a ideia central do Tractatus (a saber, a determinação dos limites do sentido através da estrutura lógica da linguagem) seria defendida com a ajuda de um complemento notacional: um simbolismo de caráter lógico-fenomenológico. Para tanto, a linguagem fenomenológica deveria ser livre de hipóteses:16 seria fundada na apresentação das regras relacionadas às formas presentes nas descrições diretas dos fenômenos, principalmente do campo visual, onde as formas de cor e de espaço se complementam. O fato de ser livre de hipóteses aproximaria o novo simbolismo do simbolismo da lógica a priori do Tractatus, que nada assume a respeito de como são as coisas, e garantiria seu

Ver a observação retroativa no MS 113, 123r; também em BT, 491: “linguagem fenomenológica: a descrição da experiência sensível imediata, sem acréscimo hipotético”. 16

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caráter necessário.17 É preciso lembrar que uma forma fenomênica, como as formas lógicas, nada descreve: ela expressa uma regra pressuposta nas descrições bipolares. A expressão “livre de hipóteses” deve ser entendida como uma moeda de duas faces.18 Por um lado, a descrição fenomenológica deveria limitar-se àquilo que nos é, de fato, dado imediatamente: os fenômenos. Cadeiras, gatos e árvores são objetos que não são imediatamente percebidos como fenômenos, pois, supostamente, percebemos somente aspectos de um algo que chamamos ‘gato’, ‘cadeira’, etc. Sentenças em que essas palavras ocorrem, portanto, não descrevem somente aquilo que é imediatamente percebido (elas descrevem mais do que, por exemplo, vemos imediatamente). A análise, contudo, através de uma cadeia de definições, deveria revelar como as descrições ordinárias estão conectadas àquilo que é imediatamente dado como fenômeno, pois é a informação fenomênica que verifica as descrições ordinárias, dado que as proposições elementares, agora, são especificadas como descrições fenomênicas. O mundo descrito sob os pontos de vista físico-ordinário e fenomênico é o mesmo, mas é o ponto de vista fenomênico que, em última análise, mostraria a determinação completa do sentido de uma proposição e, por fim, a verdade ou falsidade das descrições físico-ordinárias. Por outro lado, nenhuma hipótese deveria ser feita a respeito de como deveriam ser apresentadas as formas lógico-fenomênicas. Esse, creio, é o ponto central de SRLF. No Tractatus, Wittgenstein assumira que as proposições elementares têm as formas de função e argumento, mas deixara em aberto se tais funções seriam de 1, 2 ou n argumentos (T 5.5541-2; Moore, 1969, 290; WWK, 182). Até mesmo essas formas 17

Não é, portanto, a suposta certeza envolvida na apreensão do dado sensível, mas, sim, o seu suposto caráter formal, que leva Wittgenstein à investigação fenomenológica (esse caráter formal era dado, de acordo com Wittgenstein, em certo sentido a posteriori – ver SRLF). 18 No que se segue, apresento sucintamente alguns pontos desenvolvidos no capítulo 1 de Engelmann (2013).

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lógicas mínimas (função e argumento) mostram-se problemáticas no nível elementar em 1929. Função proposicional e argumento, diz Wittgenstein, são como sujeito e predicado (ver o exemplo de projeção em SRLF e em PB §93). Quando usamos tais formas lógicas, assumimos que aquilo que descrevemos deve ajustar-se a elas; assumimos que o mundo deve enquadrar-se nos modos de representação, na maneira com a qual fizemos a projeção do mundo (MS 107, 13). Ora, ocorre que tais formas lógicas não são suficientes para expressarmos relações lógicas elementares. Como diz Wittgenstein em SRLF (p. 177), é um defeito do antigo simbolismo (do Tractatus) não permitir a correta expressão das incompatibilidades, isto é, a incompatibilidade “não se mostra em nossos sinais” (PB §78).19 Assim, pensava Wittgenstein, somente a análise das descrições dos fenômenos poderia revelar a representação correta das formas que devemos usar como regras de projeção. Tal análise poderia revelar, entre outras coisas, que os fenômenos só podem ser perspicuamente descritos com diversas formas lógicas (fenomênicas) novas, isto é, formas não apresentadas no simbolismo do Tractatus (por exemplo, cor, espaço, tempo). Assim, Wittgenstein coloca o pressuposto 1 do Tractatus (ver acima) sob suspeita quando abandona os pressupostos 2 e 4 (o pressuposto 3 só é descartado com o abandono do projeto da linguagem fenomenológica, conforme abaixo). Observe, contudo, que a análise ainda é essencialmente ligada a um simbolismo (ver SRLF, 163). É no nível elementar que as formas da descrição, as regras de projeção fundadas em função e argumento, estão sob suspeita. Como o objetivo da linguagem fenomenológica era complementar a lógica do Tractatus e determinar um método para a análise final de proposições, ela precisaria ser uma extensão da mesma. A 19

Ver SRLF (também MSS 105-7). No Tractatus, as formas lógicas não são tomadas como hipotéticas. Elas, supostamente, são dadas na essência da própria proposição (ver T 5.47). Formas relevantes, no Tractatus, são somente as formas lógicas de função e argumento.

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complementação do simbolismo lógico do Tractatus tinha dois elementos fundamentais (duas novas notações): o sistema de coordenadas e o octaedro das cores. Iniciarei com o sistema de coordenadas e depois explicarei por que o octaedro era também imprescindível. Em SRLF, Wittgenstein deixa claro que, a princípio, o sistema seria suficiente (multiplicidade correta) como notação da estrutura espacial do campo visual, onde as formas cor e espaço apresentam-se interligadas.20 Aqui o modelo de Wittgenstein:

O sistema de coordenadas tem, supostamente, a “multiplicidade necessária” para a descrição dos fenômenos visuais. A princípio, qualquer descrição que faça referência ao campo visual pode ser apresentada no sistema (assumindo-se a expressão de algumas complexidades das descrições apresentadas no octaedro das cores). Pensemos em uma mancha vermelha P no campo visual. Teríamos, assim, por exemplo, que ‘(6-9) (3-8) 20

Sobre a justificação de Wittgenstein para a introdução do sistema de coordenadas ver Engelmann (2013).

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Vermelho’ como a descrição do fenômeno. Os números, o sistema de coordenadas e as cores são os elementos primitivos da representação, em lugar das antigas formas de função e argumento. Assim, podemos falar em nomes ou objetos na descrição fenomênica apenas analogicamente, pois nada na análise final sugere a antiga estrutura da sintaxe lógica do Tractatus no nível elementar. Observe que o sistema de coordenadas poderia ser, a princípio, complementado. Uma terceira coordenada poderia indicar como estão conectadas as descrições fenomênicas e as descrições simplificadas de objetos físicos (ver PB §98). Assim, tornarse-ia manifesto como poderíamos definir um a partir do outro. Se fosse apresentada tal conexão, teríamos uma outra vantagem. Nesse caso, a análise completa de uma proposição indicaria também sua verificação completa. Desse modo, o sistema de coordenadas ofereceria não somente a multiplicidade necessária para qualquer descrição (qualquer fenômeno do campo visual pode ser descrito), mas também a multiplicidade exata de qualquer descrição (as descrições elementares mostrariam a determinação completa do sentido). Isso significa que a verdade de uma proposição ordinária sobre objetos seguir-se-ia da verdade das proposições elementares expressas em sua análise, uma vez que o sentido da proposição ordinária seria idêntico ao conjunto dessas proposições. A necessidade de introdução do octaedro como complemento do simbolismo do Tractatus se dá, entre outras, pela seguinte razão. As exclusões espaciais de cores não exaurem as relações lógicas entre as cores. Algumas cores aproximam-se, outras, não. A ‘mistura’ de, por exemplo, amarelo e vermelho é o laranja. Contudo, a mistura de vermelho e verde é “impossível”. “A é vermelho esverdeado” é um contrassenso, mas “A

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é amarelo avermelhado (laranja)” pode ser uma descrição verdadeira ou falsa. Ocorre que o sistema de coordenadas não indica a impossibilidade da mistura de vermelho e verde, dado que impede apenas impossibilidades espaciais. São complexidades desse tipo que são mostradas (visualmente, como em qualquer notação) no octaedro. Voltarei a tratar do octaedro no ensaio 2.21

4) O Fim do Projeto O projeto da linguagem fenomenológica, contudo, logo mostra-se inviável. Quando os fenômenos são tomados isoladamente nas descrições do campo visual, eles não nos permitem nem apresentar a conexão clara com as descrições ordinárias, nem nos dão a multiplicidade exata das mesmas. Wittgenstein chega à conclusão de que existe uma “ambiguidade intrínseca” à descrição dos fenômenos que não pode ser corretamente delimitada na sua expressão notacional, no modelo de “análise última” dos mesmos. Por não poder delimitá-la e, assim, não poder conectar a análise na linguagem fenomenológica à linguagem como um todo, Wittgenstein abandona o projeto de uma linguagem fenomenológica. Essa ambiguidade é encontrada, de modo mais evidente, na “geometria” do campo visual. Quando Wittgenstein diz que “não existe medição no campo visual” (PB §212), tem em mente uma medição interna ao mesmo. Toda determinação da vagueza ou ambiguidade presente no campo visual pressupõe um parâmetro externo. No entanto, se o parâmetro é externo, a apreensão passa a ter um caráter hipotético. A “principal

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Observa-se, aqui, um fato importante a respeito de SRLF: lá, Wittgenstein não trata dessas complexidades das cores. Por isso, penso, não apresenta o octaedro no artigo. Vale notar que as complexidades mencionadas são apresentadas nos manuscritos (principalmente no MS 106, 71-101), assim como na reapresentação do problema no “capítulo” VIII de PB (ver §§76-80).

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dificuldade”, nos diz Wittgenstein, é que tudo se passa “como se a exata demarcação da inexatidão (“die exakte Begrenzung der Inexaktheit”) fosse impossível” (PB §211). Pensemos, por exemplo, na apresentação da demarcação de um círculo no campo visual. Sem o uso de um instrumento de precisão (ou seja, sem um padrão de medida externo), não conseguimos distinguir uma figura de cem lados de um círculo. No campo visual são indistinguíveis. Seria, assim, natural tomarmos uma classe de círculos no campo visual (círculos fenomênicos) como o correspondente fenomênico de um círculo euclidiano como descrito ordinariamente (ou de um círculo como forma de um objeto físico). 22 Isso, supostamente, nos daria uma apresentação exata da inexatidão apreendida no campo visual e nos permitiria relacionar o dado descrito por sentenças ordinárias e sentenças sobre fenômenos. Qual seria, contudo, a característica determinante dessa classe Poderíamos pensar que todos os círculos da classe A, digamos, seriam produzidos pela vibração de um círculo. Nesse caso, a classe de círculos-fenomênicos A seria a classe das figuras circulares entre dois limites (ver MS 107, 160-5). Esta seria a representação de A:

Todos os círculos da classe estariam entre os limites apresentados na figura e todos seriam produzidos pela vibração de um dado círculo. Essa delimitação, contudo, é hipotética, pois não corresponde imediatamente à mera descrição do dado fenomênico. Determinaríamos, a partir de uma escolha, que a vibração de um círculo – e não de uma figura de cem lados, por exemplo – formaria os limites da classe (PB §212). Afora isso, a Wittgenstein toma como possibilidades de análise, aqui, a ideia de ‘limite’ de F. Klein e a ideia de expressão de limites de Hjelmslev (ver referências). 22

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representação acima não é uma representação adequada ou correta do fenômeno qua fenômeno: essa representação e o fenômeno representado não têm exatamente a mesma multiplicidade, pois não descrevemos dois círculos quando vemos o fenômeno (apenas um). A representação, portanto, não nos fornece a multiplicidade correta da descrição do fenômeno (ver WWK, 58). É preciso também observar que a representação acima dá prioridade à geometria euclidiana, como atestam os limites dados na figura. Isso significa que quando delimitamos a inexatidão ou vagueza do fenômeno, já assumimos regras de uma representação correta, isto é, assumimos uma determinada gramática. Se pudéssemos escolher o modo de formação da figura, essa escolha seria pautada por algo externo ao modo como descrevemos os fenômenos. É precisamente essa gramática que, supostamente, nos permite, em primeiro lugar, fazer a distinção entre um círculo e uma figura de cem lados que parece ser um círculo: “Nós precisamos de um método de projeção para representar este estado de coisas no campo visual através da linguagem da geometria euclidiana; e o método de projeção consiste em nosso uso da palavra ‘parece’” (WWK , 59). Assim, as consequências mais interessantes do problema da vagueza e inexatidão da descrição fenomenológica são as seguintes: é o parâmetro previamente fixado (a gramática) que determina o significado usual das palavras que empregamos na descrição dos fatos qua fenômenos. Esse parâmetro, contudo, é hipotético em relação à descrição fenomenológica, pois não é dado imediatamente como estrutura intrínseca (ou implícita) do campo visual. Sendo assim, a linguagem fenomenológica (o simbolismo, a notação fenomenológica), torna-se um empreendimento extremamente complicado de caráter

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duvidoso. Todas as palavras – por exemplo, relacionadas direta ou indiretamente à geometria euclidiana – têm um sentido distinto quando usadas na descrição fenomenológica, pois possuem outras regras de aplicação. Portanto, quando passamos da linguagem ordinária à suposta descrição fenomenológica, “nem ao menos podemos substituir ‘igual’ [usado na linguagem ordinária e euclidiana] por ‘igual’ [usado na descrição fenomenológica], ‘paralelo’ por ‘paralelo’, ‘reta’ por ‘reta’.” (WWK, 60). Isso torna o próprio projeto da linguagem fenomenológica um projeto pouco plausível. Será que acharíamos conceitos completamente distintos para descrever os fenômenos (PB §213)? Se os achássemos, contudo, eles seriam a expressão da ambiguidade e vagueza da descrição fenomenológica. Portanto, ainda não teríamos alcançado um modo de traduzi-los corretamente no simbolismo. É provável que qualquer determinação das regras das descrições dos fenômenos pressuporia hipóteses geométricas de cunho não fenomênico; ou seja, mesmo que tal tradução fosse encontrada, ela muito provavelmente dependeria de um parâmetro externo. Desse modo, não teríamos um complemento da notação conceitual do Tractatus, pois a linguagem fenomenológica não serviria como uma explicitação última das relações necessárias entre proposições elementares que envolvem espaço, cor e tempo, tampouco mostraria a análise última das proposições da linguagem ordinária. Assim, uma linguagem fenomenológica, se construída, não cumpriria seus propósitos. O projeto, portanto, não fornece a Wittgenstein o que procurava nele.

5) A “Estrutura Lógica de Hipóteses” e Descrições Fenomênicas Incompletas

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Wittgenstein não apresenta nenhum argumento que mostre ser impossível a constituição de uma linguagem fenomenológica. 23 No entanto, assume as consequências do fracasso de sua busca por tal linguagem (simbolismo). Se não dispomos de uma linguagem fenomenológica, e não possuímos nenhum outro método para levar a cabo a análise final das proposições nos termos tractarianos, não podemos assumir que exista uma análise definitiva. Temos, aqui, portanto, o abandono do pressuposto 3 acima em sua versão na linguagem fenomenológica. Sem a análise final, a ideia de uma verificação final, pressuposta no projeto da linguagem fenomenológica, também deve ser abandonada. Isso significa que a verdade de uma proposição ordinária não se segue da verdade das proposições elementares reveladas em sua análise, pois não podemos tomar como equivalentes a proposição ordinária e a série de proposições elementares (descrições de fenômenos) que deveria apresentar seu sentido. Sua conexão com descrições fenomênicas existe, pois as verificamos através da referência ao fenômeno, o significado (referência) dos termos usados em descrições (PB § 225). Contudo, cada faceta da verificação (por exemplo, o aspecto de uma cadeira que vemos) não é determinada por uma notação completa dos fenômenos (PB §225). Cada faceta de verificação é uma proposição elementar que 23

É interessante observar que Wittgenstein, após abandonar o projeto da linguagem fenomenológica (outubro de 1929; ver MS 107, 176), continua tratando de questões fenomenológicas: por exemplo, a representação correta da generalidade em descrições do campo visual (WWK, 52). Como veremos, o octaedro das cores, que era parte da linguagem fenomenológica, é reintroduzido já no §1 das PB. Isso, por si só, já indica que Austin (1980) equivoca-se ao supor duas “soluções” para o problema da exclusão de cores (supostamente, uma solução de cunho realista em SRLF e a outra linguística em PB). Na origem do equívoco de Austin, penso, está a má compreensão do projeto da linguagem fenomenológica. Austin pensa, por exemplo, que as inferências relacionadas a proposições elementares de grau são de caráter material à época da linguagem fenomenológica. Para justificar tal tese, utiliza-se de PB §78, onde Wittgenstein diz que não devemos pensar que inferências têm um caráter material, pois “sentido segue-se de sentido, e por isso forma [segue-se] de forma”. Austin toma isso como uma crítica ao antigo projeto da linguagem fenomenológica. Ocorre que a citação utilizada é proveniente do MS 106, p.85, isto é, precisamente à época em que Wittgenstein tentava estabelecer a linguagem fenomenológica e estava preparando SRLF. Noe (1994), apesar de apresentar uma análise muito mais detalhada e precisa da linguagem fenomenológica que a de Austin, acaba por cometer erro semelhante - ver Noe (1994, 22-4).

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expressa uma expectativa de que determinado estado de coisas fenomênico ocorrerá. 24 Assim, proposições ordinárias têm o caráter ou a estrutura lógica de hipóteses: são como “leis para a construção de proposições” (PB §228). Essas proposições construídas, expectativas, são como cortes em uma linha que confirmam as hipóteses (PB §227). As proposições ordinárias têm, portanto, o caráter de hipóteses que não são definitivamente verificadas (ver PB “capítulo” XXII). Outra característica das proposições ordinárias que têm a estrutura lógica de hipóteses é que podem determinar mais de um modo de verificação. Se dizemos que há um livro sobre a mesa, por exemplo, temos a expectativa de que podemos vê-lo de diversas posições, mas também de tocá-lo e abri-lo (ver e tocar são modos distintos de verificação dados em ‘espaços’ distintos). Proposições elementares, expectativas que descrevem fenômenos, têm somente um modo de verificação (ver ensaio 4). Deve-se observar que, de acordo com essa concepção, uma hipótese só é uma hipótese caso apresente, de fato, pontos de confirmação (verificação) por meio de proposições elementares (descrição de fenômenos). Sem tais proposições elementares hipóteses são meras “engrenagens soltas” (ver PB §1). Por outro lado, uma mera descrição de fenômenos isolada é, por si só, além de complexa, pouco significativa. A descrição “vejo pontos de luz”, por si só, é uma mera gravação de dados. Tal gravação de dados só passa a ser relevante se confirma uma hipótese conectada a ela. Por exemplo, a hipótese de que há um planeta com determinada órbita poderia ser confirmada com a verdade de “vejo pontos de luz em tais posições”. O sistema de hipóteses da linguagem ordinária opera por intermédio de substantivos. “Um objeto”, segundo Wittgenstein, “é uma conexão de aspectos 24

A respeito de hipóteses e expectativas ver Engelmann (2016).

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apresentados por meio de uma hipótese” (Thesen, WWK, 256). Isso não significa que o objeto seja constituído por aspectos. O que ocorre é que “nós apenas utilizamos um método através do qual derivamos afirmações sobre aspectos” (WWK, 257). 25 É preciso, ainda, esclarecer uma característica de certas proposições elementares (descrições de fenômeno): seu possível caráter incompleto. Um dos propósitos da notação (linguagem) fenomenológica era expressar as relações necessárias, e excluir as impossíveis, entre proposições sobre, por exemplo, cores. Outro propósito era determinar o sentido das proposições ordinárias a partir de definições fundadas nos elementos da representação da experiência imediata expressos na notação. Essas seriam definições a partir de termos primitivos, que substituiriam os primitivos (indefiníveis) tractarianos (T 3.26n). Isso daria sentido ao programa de análise do Tractatus (T 3.25), que pressupunha a determinação completa do sentido (T 4.023) e a completude das descrições das proposições elementares: “uma proposição pode muito bem ser uma figuração incompleta de uma certa situação, mas ela é sempre uma figuração completa” (T 5.156). Dados os problemas encontrados na construção da linguagem fenomenológica, Wittgenstein admite figurações (proposições) elementares incompletas (PB §87; MS 107, 193). Existem proposições elementares, afirma, que funcionam como uma “figuração incompleta”, como “um retrato em que, por exemplo, os olhos não foram pintados” (PB §87).26 Assim, ceteris paribus, para quaisquer olhos que encontrarmos, estará correta a figuração. Isso significa que podemos ter algo como variáveis livres em proposições elementares

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Uma característica interessante dessa concepção de hipóteses e proposições é que ela se opõe a dois modos que Russell desenvolveu na década de 1910 para tratar de objetos físicos. Não inferimos a existência de objetos a partir de descrições de dados como defendia Russell em Problems of Philosophy (a inferência é inversa: da hipótese ao dado); tampouco construímos objetos a partir dos ‘aspectos’ como defendeu Russell em Our Knowledge of the External World (aspectos não constituem objetos). 26 É a partir dessa ideia de figuração elementar incompleta que Wittgenstein nas PB pensava poder derivar uma nova teoria da probabilidade e um novo modelo de compreensão da quantificação (PB, capítulo VIII).

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(portanto, variáveis que não expressam meramente uma forma, mas uma espécie de generalidade como em “um x qualquer que tem forma circular”). Mesmo se descrevermos, por exemplo, o círculo no campo visual de forma mais determinada, a descrição pode ser incompleta, ou seja, sem a exata multiplicidade do fenômeno descrito diretamente, pois o círculo pode ser expresso com o sistema de coordenadas a partir de dois círculos concêntricos, conforme o exemplo acima (ver WWK, 40). É importante observarmos que a generalidade (indeterminação) introduzida pela incompletude de uma proposição elementar não impede a verificação direta da mesma. Pelo contrário. No exemplo acima, a incompletude da imagem de um rosto na qual não são pintados os olhos permite que qualquer par de olhos colocados no espaço vazio resulte em uma descrição correta, desde que preservados os demais traços do rosto especificados na imagem. Assim, uma proposição elementar incompleta nos dá margem maior para afirmarmos ou negarmos a verdade de uma proposição elementar: a incompletude de certas proposições elementares lhes confere simplesmente probabilidade maior de verdade (PB §87).27 Essa concepção parece ser, contudo, problemática. Isso porque ela admite a possibilidade de uma descrição elementar de fenômenos ser derivada logicamente de outra, pois uma proposição elementar incompleta pode se seguir ‘gramaticalmente’ de uma completa (por exemplo, se o raio de um círculo é 6, segue-se que o raio de um círculo é algo entre 5 e 8). Pelos critérios de Wittgenstein, uma proposição elementar Wittgenstein apresenta o ponto da seguinte maneira: “A teoria da probabilidade está ligada a isso [incompletude de certas descrições elementares] da seguinte maneira: a descrição mais geral, mais incompleta, é correta de modo mais provável que a completa” (PB §87; MS 107, 193). Isso significa que a concepção de probabilidade apresentada no Tractatus precisará ser alterada, uma vez que nem toda proposição elementar terá probabilidade 0,5 (ver T 5.152). Afora isso, as proposições elementares, como vimos, não são mais consideradas logicamente independentes. Sobre a necessidade de alteração de concepção de probabilidade ver WWK, 93. Wittgenstein apresenta uma nova concepção de probabilidade no capítulo XXII das PB. 27

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incompleta também não pode ser tomada como uma sentença-hipótese. Isso porque a verdade de uma hipótese não se segue logicamente da verdade de descrições de fenômeno. Existe, portanto, um problema com a ideia de proposições incompletas, sejam elas tomadas como proposições elementares ou hipóteses. Uma solução possível seria a seguinte: a verdade de algumas hipóteses segue-se de proposições elementares, mas não a verdade de todas as hipóteses. Essa solução, evidentemente, não é ideal, uma vez que viola aquilo que se pode chamar de estrutura lógica da hipótese (não ser implicada por proposições elementares). Outra solução, a mais adequada a meu ver, seria dizer que essa relação de implicação entre proposições elementares incompletas e completas seria irrelevante porque é a mesma observação fenomênica que confirma ambas. Nesses casos, a proposição incompleta se comportaria como as negações de uma proposição elementar dentro de um sistema proposicional (no exemplo acima, “o raio de um círculo é algo entre 5 e 8” comporta-se como “o raio de um círculo não é 9, não é 10, etc.”). Assim, preserva-se a ideia de que a verdade da proposição incompleta não é justificada pela verdade de outra proposição elementar.

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