Observatórios de jurisprudência: um modo de(re)pensar o Direito do Século XXI

May 30, 2017 | Autor: F. Medeiros | Categoria: Direito Ambiental, Direito Constitucional
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Copyright © 2015 Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito Todos os direitos reservados e protegidos. Nenhuma parte deste livro, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados sem prévia autorização dos editores. Produção Editorial: Equipe Conpedi Diagramação: Marcos Jundurian Capa: Elisa Medeiros e Marcos Jundurian Impressão: Nova Letra Gráfica e Editora Ltda. CNPJ. nº 83.061.234/0001-76 Editora: Ediciones Laborum, S.L – CIF B – 30585343 Deposito legal de la colección: MU 859-2015 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) E56p Encontro de Internacionalização do CONPEDI (1. : 2015 : Barcelona, ES)

I Encontro de Internacionalização do CONPEDI / organizadores: Nestor Eduardo Araruna Santiago, Karine de Sousa Silva. – Barcelona : Ediciones Laborum, 2015. V. 5 Inclui bibliografia ISBN (Internacional): 978-84-92602-86-5 Depósito legal : MU 859-2015 Tema: Atores do desenvolvimento econômico, político e social diante do Direito do século XXI 1. Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Congressos. 2. Direito constitucional. 3. Direito internacional 4. Direitos humanos. I. Santiago, Nestor Eduardo Araruna. II. Silva, Karine de Souza. III. Título. CDU: 34 Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071 1º Impressão – 2015

EDICIONES LABORUM, S. L. CIF B-30585343 Avda. Gutiérrez Mellado, 9 - 3º -21- Edif. Centrofama Teléfono 968 88 21 81 – Fax 968 88 70 40 e-mail: [email protected]

Diretoria - Conpedi Presidente Prof. Dr. Raymundo Juliano Feitosa - UFRN Vice-presidente Sul Prof. Dr. José Alcebiades de Oliveira Junior - UFRGS Vice-presidente Sudeste Prof. Dr. João Marcelo de Lima Assafim - UCAM Vice-presidente Nordeste Profa. Dra. Gina Vidal Marcílio Pompeu - UNIFOR Vice-presidente Norte/Centro Profa. Dra. Julia Maurmann Ximenes - IDP Secretário Executivo Prof. Dr. Orides Mezzaroba - UFSC Secretário Adjunto Prof. Dr. Felipe Chiarello de Souza Pinto - Mackenzie Conselho Fiscal Prof. Dr. José Querino Tavares Neto - UFG /PUC PR Prof. Dr. Roberto Correia da Silva Gomes Caldas - PUC SP Profa. Dra. Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini Sanches - UNINOVE Prof. Dr. Lucas Gonçalves da Silva - UFS (suplente) Prof. Dr. Paulo Roberto Lyrio Pimenta - UFBA (suplente) Representante Discente Mestrando Caio Augusto Souza Lara - UFMG (titular) Secretarias (Diretor de Informática) Prof. Dr. Aires José Rover - UFSC (Diretor de Relações com a Graduação) Prof. Dr. Alexandre Walmott Borgs - UFU 3

(Diretor de Relações Internacionais) Prof. Dr. Antonio Carlos Diniz Murta - FUMEC (Diretora de Apoio Institucional) Profa. Dra. Clerilei Aparecida Bier - UDESC (Diretor de Educação Jurídica) Prof. Dr. Eid Badr - UEA / ESBAM / OAB-AM (Diretoras de Eventos) Profa. Dra. Valesca Raizer Borges Moschen - UFES Profa. Dra. Viviane Coêlho de Séllos Knoerr - UNICURITIBA (Diretor de Apoio Interinstitucional) Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira - UNINOVE

Rua Desembargador Vitor Lima, 260, sala 508 Cep.: 88040-400 Florianópolis – Santa Catarina - SC www.conpedi.org.br 4

Apresentação Este livro condensa os artigos aprovados, apresentados e debatidos no Iº ENCONTRO DE INTERNACIONALIZAÇÃO DO CONSELHO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO – CONPEDI, realizado entre os dias 08, 09 e 10 de outubro de 2014, em parceria com a Faculdade de Direito da Universidade de Barcelona – Espanha. O evento teve como tema os “Actores del Desarrollo económico, político y social frente al Derecho del siglo XXI”. Para o evento foram submetidos e avaliados mais de quinhentos artigos de pesquisadores do Brasil e da Europa. Após as avaliações foram aprovados em torno de trezentos artigos para apresentação e publicação. O principal objetivo do evento foi o de dar início ao processo de internacionalização e fundamentalmente, o de construir espaços para a inserção internacional e divulgação de pesquisas realizadas pelos Pesquisadores dos Programas de Pós-Graduação em Direito do Brasil, associados ao CONPEDI. A realização deste primeiro evento procurou estimular o debate e o diálogo sobre questões atuais do Direito envolvendo a realidade brasileira e espanhola. Os artigos apresentados analisaram o papel dos “Actores del Desarrollo económico, político y social frente al Derecho del siglo XXI” praticamente em todas as áreas do Direito. Considerando a amplitude do tema, as diversas abordagens e buscando uma aproximação entre as áreas de conhecimento optou-se pela organização de seis grupos de trabalhos (GTs), que foram constituídos da seguinte forma: a) Derecho Constitucional, Derechos Humanos e Derecho Internacional; b) Derecho Mercantil, Derecho Civil, Derecho do Consumidor e Nuevas Tecnologías; c) Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social; d) Derecho Administrativo, Derecho Tributario e Derecho Ambiental; e) Teoría del Derecho, Filosofía del Derecho e História del Derecho; f) Derecho Penal, Criminología e Seguridad Pública. Além da promoção do intercambio entre as Instituições e profissionais da área do Direito do Brasil e Europa, a possiblidade de ampliar e difundir a produção cientifica no âmbito internacional e a melhoria dos indicadores dos Programas de Pós-graduação brasileiros, com a realização do primeiro evento internacional 5

a atual Diretoria do CONPEDI também cumpre com um de seus compromissos assumidos quando eleitos. A transcendência da realização deste primeiro evento internacional para os pesquisadores brasileiros da área do Direito se reflete no resultado final obtido. A publicação de 15 livros, através da Ediciones Laborum da Espanha em parceria com o CONPEDI, com todos os artigos apresentados e debatidos nos GTs representa uma expressiva conquista que trará importantes resultados para os programas de Pós-graduação brasileiros e, fundamentalmente, para a área do Direito. Barcelona/Florianópolis, março de 2015. Os Organizadores

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Sumário Nós as Fadas, Elas as Bruxas? do Exercício e da Exploração da Sexualidade na Prostituição Feminina Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso....................................................... 9 Novas Vulnerabilidades no Processo de Globalização: Paradigmas da Cidade Standard Rosângela Lunardelli Cavallazzi e Gabriela Fauth................................. 25 O Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos Camila Barreto Pinto Silva e Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini......... 33 O Diálogo entre Jurisdições Frente a uma Concepção Contemporânea de Direitos Humanos: Ainda a Questão da Anistia no Brasil Andréa Regina de Morais Benedetti e Tatyana Scheila Friedrich.............. 55 O Diálogo Hermenêutico como Horizonte de uma Nova Paisagem no Direito: Crítica à Racionalidade Autoritária Dispensada aos Tratados de Direitos Humanos no Brasil Rafael Fonseca Ferreira e Têmis Limberger............................................. 81 O Direito à Educação Superior na Constituição Brasileira de 1988: Uma Leitura Garantista Horácio Wanderlei Rodrigues e Leilane Serratine Grubba....................... 117 O Estado Social Democrático de Direito, o Estado Ecológico ou Socioambiental e o Desenvolvimento Sustentável na Constituição da República Federativa do Brasil: Concretização dos Direitos Humanos Grasiele Augusta F. Nascimento e Regina Vera Villas Bôas ..................... 149 O Grito na Linguagem da Dor: O que Não Falar Quer Dizer? Silvana Beline....................................................................................... 169 O Novo Regime Constitucional da Defensoria Pública no Brasil Cleber Francisco Alves e Bárbara Gomes Lupetti Baptista........................ 189 volume

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O Papel do Brasil na Construção da Paz Internacional: Os Desafios e Avanços da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) Karine de Souza Silva........................................................................... 223 O Povo como Ator Constitucional: Diálogos Institucionais, Manifestações Populares e o Controle de Constitucionalidade no Brasil Leonardo Martins Wykrota e Rafhael Frattari........................................ 243 O Princípio da Razoável Duração no Brasil e na Espanha Maria Cristina Zainaghi e Alexandre Luna da Cunha............................ 271 O que o Processo Coletivo e o Direito Fundamental de Acesso à Justiça Ganham com a Participação Procedimental Democrática do Amicus Curiae? Patrícia da Costa Santana..................................................................... 295 Observatórios de Jurisprudência: Um Modo de (Re)Pensar o Direito do Século xxi Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros e Selma Rodrigues Petterle........... 335

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nós as fadas, elas as bruxas? do exercício e da explor ação da sexualidade na prostituição feminina Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso1

Resumo Em tempos atuais, os Estados considerados centrais têm-se dedicado ao debate da prostituição. Porém referido debate está fundamentado em fóruns internacionais que possuem a preocupação de encontrar soluções outras para a problemática das fronteiras internacionais. O tema da prostituição passa, assim, a uma condição de segundo plano, já que é resultante do discurso do tráfico de seres humanos para sua posterior exploração sexual e/ou imigração ilegal. Neste talante, presta-se a definir conceitos sobre exercício e exploração da sexualidade, assim como estabelecer teorias de disciplina e/ou regularização e quiçá proibição da prostituição. Sem embargo, não resta duvida de que o referido debate é conseqüência do fenômeno da escolha da prática da prostituição e em nada contribui para a garantia de um futuro diferente para essas mulheres ora prostituídas. O presente trabalho observa uma condição anterior à eleição da mulher para a realização da prostituição, qual seja, a confusa dualidade entre os conceitos de exercício e exploração da sexualidade, quando da prática da prostituição. A importância dessa discussão reside no fato de observar a real 1 Doutora em Direito Penal pela Universidad Complutense de Madrid (España) onde investigou o crime de Tráfico de Seres Humanos e a interferência do marco do Código Penal Espanhol de 1995 para a prevenção de referido delito no âmbito da União Européia. A tese doutoral apresentou, ainda, especial atenção a exploração sexual comercial de mulheres terceiromundistas. Diplomada em Estudos Avançados (DEA) pela mesma Universidade e especialista em Relações Internacionais na era da Globalização pela Universidade Católica de Pernambuco (Brasil). Atualmente, é professora da Universidade Católica de Pernambuco e líder do grupo de pesquisa ?Direitos Fundamentais: Instrumentos de concretização? (Plataforma Lattes). Integra, em nível de pós doutoramento, programa de pesquisa em ciências sociais, crianças e adolescentes na América Latina da rede CLACSO (Centro Latino Americano de Ciências Sociais)/CINDE (Centro Internacional de Educação e Desenvolvimento Humano? Centro cooperador da UNESCO). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Público, atuando principalmente nos seguintes temas: movimento migratório - com atenção ao fenômeno da feminização da imigração, tráfico internacional de seres humanos e imigração ilegal, exploração sexual e prostituição - futuro do Direito Penal e Direito penal da globalização. volume

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existência da autonomia dessas mulheres ora prostituídas, quando da eleição do exercício da prostituição, posto que, somente a partir de então, se pode estabelecer políticas, no sentido de prevenir a exploração dessas mulheres.

Palavras-chave Exercício; Exploração; Prostituição.

Resumen En tiempos actuales los Estados considerados centrales se dedican al debate de la prostitución. Sin embargo, referido debate está fundamentado en fórums internacionales que poseen la preocupación de encontrar soluciones distintas de las actuales para la problematica de las fronteras internacionales, es decir, el tema de la prostitución pasa a una condición de segundo plano ya que es resultante del discurso de la trata para su posterior explotación sexual y/o inmigración ilegal. En este sentido, se quedan definiendo conceptos sobre lo que sea ejercicio y/o explotación de la sexualidad y, aún, estableciendo teorías que disciplinan y/o regularizan y quizás prohíben la prostitución. Sin embargo, no hay dudas que la referida contienda es consecuencia posterior al fenómeno de la elección de la prostitución y para nada contribuye en la garantía de un futuro diferente para las mujeres prostituidas. El trabajo observa una circunstancia anterior a la elección de la mujer a la práctica de la prostitución, cual sea, la confusa dualidad entre los conceptos de ejercicio y explotación de la sexualidad cuando de la práctica de la prostitución. La importancia de ese debate está en el hecho de observar la real existencia de la autonomía de esas mujeres ora prostituidas cuando de la elección del ejercicio de la prostitución, puesto que solamente a partir de entonces se puede establecer políticas en el sentido de prevenir la explotación de esas mujeres.

Palabras clave Ejercicio; Explotación; Prostitución. 1. introdução Não há duvidas que o tema da prostituição é, por demais, amplo e envolve muitíssimas dificuldades. Tal fato exige a prestação de alguns esclarecimentos 10

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antes de adentrar no deslinde do trabalho proposto. O primeiro deles, é no sentido de afirmar que embora a autora reconheça a existência e problemática da prostituição masculina e infantil, a prostituição será tratada neste trabalho a partir de uma perspectiva, essencialmente, feminina, bem como para mulheres maiores de idade. O segundo esclarecimento é terminológico. É dizer, a exemplo de alguns textos feministas atuais, a autora utiliza o termo mulheres prostituídas ao invés de prostitutas, posto que esta expressão sugere uma classificação definitiva destas mulheres, enquanto aquela faz referência a uma situação que pode ser conjuntural, momentânea da qual a mulher pode sair sem uma marca de identificação. Feitas essas considerações, é possível dizer que, além de amplo, o tema da prostituição vai além do discurso científico, pois envolve toda uma carga emocional direcionada ao conceito pré-estabelecido deste instituto. Fato que termina por afastá-lo dos princípios considerados morais para a sociedade de forma a repreendê-lo e/ou quiçá satanizá-lo. Posicionamentos como esse, foram determinantes, no decorrer histórico, para que os diferentes governos do mundo considerassem a problemática da prostituição como uma preocupação de segundo plano. Se não é assim, note-se que, ainda hoje, sempre que os Estados apresentam alguma preocupação com o referido tema, ela é decorrente de outros problemas que não a prostituição propriamente dita. Tal afirmativa está fundamentada na observação do fato de que, apesar da temática da prostituição se encontrar, neste momento, em evidência, em muitos dos fóruns internacionais mundiais, ora promovidos pelos países considerados centrais, ela é sempre fruto de argumentos outros que, por sua vez, guardam relação com o panorama que permeia os movimentos migratórios em direção àqueles países. Já nos países ditos periféricos, o debate da prostituição está vinculado ao tema do tráfico de seres humanos e aos ditames daquela sociedade dos considerados decentes. É, em outras palavras, afirmar que o discurso em torno da prostituição jamais esteve nas mãos destas mulheres ora prostituídas, mas sim, nas mãos da sociedade considerada decente, à qual, aquelas mulheres estão, infelizmente, subordinadas. Referida circunstância é por demais preconceituosa e termina por segregar grupos que, por sua vez, menospreza pessoas. Por outro lado, tão pouco acrescenta volume

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para o desenvolvimento de políticas públicas que se não resolvem a problemática em exame, pelo menos venham a suavizar os tantos problemas resultantes dela. Nesse sentido, passa-se à análise das principais correntes que disciplinam a prostituição no mundo acadêmico. 2. proibicionismo, regulacionismo e abolicionismo: as principais correntes que disciplinam o fenómeno da prostitução A primeira corrente se fundamenta no discurso trazido pelas feministas e socialistas do final da década de oitenta, posto que tem uma visão proibicionista da prostituição, isto é, defende a necessidade de abolir referido instituto. Para essa corrente, a prostituição consiste em uma forma de degradação do ser humano, uma insígnia da discriminação da mulher diante do homem, ou seja, a representação de uma força masculina justificada pelo machismo e por isso a necessidade de observar o referido fenômeno como um fruto de uma patologia social. (PADOVANI, 2002, p. 50). Essa visão defende que toda a prostituição deve ser pensada “como uma violação dos direitos da mulher e como uma forma de violência contra ela” (RAYMOND, 2006, p. 29.), pois viola os direitos humanos e fomenta, de maneira indireta, o tráfico de mulheres para o exercício da prostituição. Para este grupo – representado pelos países do leste, como Lituânia, Ucrânia, Malta, Romênia e Albânia, e com escassa presença em Europa ocidental, já que somente Irlanda defende o que se pode chamar de semi-proibicionismo, pois persegue a prostituição pública (PADOVANI, 2002, p. 50/51) – a normatização da prostituição, como um simples trabalho, consiste na legalização da escravidão sexual e da desigualdade de gênero. Nesse modelo – em que se leva a cabo a necessidade de responsabilizar, bem como punir, não somente a pessoa que agencia as mulheres e/ou crianças, mas também os proxenetas e aqueles que compram referidos serviços. (RAYMOND, 2006, p. 29.) – a mulher prostituída é considerada uma delinquente, de maneira que é exposta a sanções penais que vão desde uma multa até a pena de prisão. Referida pena tem como pressuposto a intenção de induzir a mulher prostituída a mudar sua opção, sua atividade, desistindo, assim, do exercício da prostituição. (MARTÍNEZ et al., 2004, p. 17.). 12

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Referido modelo proibicionista encontra alguma relação com as fundamentações teórica elencadas por Lombroso que, em sua época, considerava a mulher que exercia a prostituição como um delito para os homens, pois, para ele, as prostitutas possuem as mesmas características físicas e morais do delinquente: O importante, com referência à mulher delinquente, é a teoria da prostituição como equivalência do crime. Acredita que, enquanto o homem para satisfazer seus impulsos que não podem ser realizados legalmente tem de recorrer à criminalidade, as mulheres têm uma segunda saída que é a prostituição, que implica menos riscos e pode dar lucros muito maiores do que aqueles obtidos em atitudes tipicamente criminosas. Lombroso encontra na prostituta uma quantidade notavelmente maior de atavismos, deformações e de aspectos mórbidos que na ladra. (...)2. (tradução livre LOMBROSO, 2006, 09).

No entanto, não se pode negar que o marco teórico desta corrente está fundamentado na observação dos Estados que admitem a corrente regulacionista, pois esses Estados apresentam dados de uma quantidade considerável de mulheres prostituídas estrangeiras, reforçando, por sua vez, a ideia do Budapeste Group, qual seja, que nesses Estados, considerado regulacionistas, não se conseguiu manter o controle do tráfico de seres humanos, visto que, de acordo com as pesquisas aplicadas na Holanda, por exemplo, 80% das mulheres prostituídas chegaram àquele país em razão do comércio de mulheres para a posterior exploração sexual comercial. (Budapest Group, Junho 1999.). Ademais, a referida corrente adverte que a legalização do exercício dessas atividades sexuais mediante pagamento não ajuda a criar um futuro diferente para as pessoas prostituídas e, por outro lado, somente incentiva a prática de tal atividade por outras pessoas ainda não prostituídas. Desta maneira, e a título de curiosidade, vale destacar o trabalho da organização argentina AMMAR – Associação das Mulheres Meretrizes da Argentina, 2 “lo importante, con referencia a la mujer delincuente, es la teoria de la prostitucón como equivalencia del crimen. Se piensa que, mientras el hombre para satisfacer sus impulsos que no puede realizar legitimamente tiene que recurrir al delito, la mujer tiene una segunda salida que es la prostitución, la cual implica menos riesgos y puede dar ganancias mucho mayores que las obtenidas en actitudes francamente delictivas. Lombroso encuentra en la prostituta una cantidad notablemente mayor de atavismos, de deformaciones y de aspectos morbosos que en la ladrona. volume

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que representa as mulheres em prostituição nesse Estado – que está pressionando para o não reconhecimento da prostituição como um trabalho, pois para essa Associação, o reconhecimento oficial da prostituição serve, unicamente, para empurrar mais e mais mulheres para o comércio sexual seja através do exercício, seja através da exploração, bem como desobrigar o Estado de proporcionar estudo e trabalho para todos. (Budapest Group, 1999.). Dessa feita, defende a corrente proibicionista que é necessário tomar uma atitude de oposição a tal fato. Constatado esse primeiro modelo, passa-se à análise de uma teoria regulacionista do exercício da prostituição, a qual é representada, na Europa, pela Áustria, Alemanha, Grécia, Holanda e Suíça (NGALIKPIMA, 2006, p. 52). Referida hipótese toma como pressuposto o cunho global e empreendedor da prostituição que termina por impulsionar a libertação sexual da mulher, ora representada pela libertação econômica, pois – segundo Raymond – o referido fenômeno mantém seu posicionamento no sentido de que “a prostituição é uma forma de igualdade de gênero e promove o direito da mulher a ser independente e a controlar o que queira fazer com seu corpo”. Acrescenta, ainda, que “a prostituição é outra forma de trabalho e que a melhor maneira de proteger as mulheres em este entorno é melhorar suas condições de trabalho”. (RAYMOND, 2006, p. 29). Essas ideias regulacionistas terminam por fundamentar outros tantos argumentos a seu favor, mas o discurso que, fortemente, é utilizado em defesa desta corrente é aquele direcionado ao pressuposto de que as mulheres, uma vez legalizadas, poderão ser cidadãs, pois pagarão seus impostos, terão salários e poderão comprar uma casa, abrir uma conta bancária, inclusive poderão, também, sindicalizar-se. (BINDEL, 2006, p. 179). Cumpre destacar que as legislações que adotaram a corrente regulacionista somente prevêem tais condições às suas nacionais, isto é, no que tange à mulher imigrante, não existe a possibilidade da regularização de sua força de trabalho para exercer a prostituição, restando, a essas mulheres, a ilegalidade e, portanto, a total privação de proteção, fatos que, por sua vez, resultam em uma maior vulnerabilidade dessas mulheres a pressões e explorações de toda e qualquer ordem. (CEPEDA, 2004, p, 33/34). Sendo assim, é possível afirmar que o discurso em torno da regularização da prostituição como atividade profissional – pelo menos no que tange aos países 14

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europeus – promove, na atualidade, uma grande ambiguidade, pois, na prática, defende um mercado legal que promove o mercado considerado ilegal. Existe, ainda, uma corrente denominada de abolicionista, a qual foi idealizada, no âmbito internacional, pelos opositores da corrente regulacionista, com a determinação de conter a realização de um sistema de regulamentação paneuropeu. (GIBSON, 1986, p. 51). Os defensores dessa corrente acreditam na possibilidade bem como imprescindibilidade, da abolição de toda e qualquer regulamentação das prestações sexuais por dinheiro, o que implica dizer que existe uma preocupação em punir o que se considera exploração da prostituição, posto que pregam a necessidade de sancionar a exploração e o favorecimento da atividade sexual de outrem, ao mesmo tempo em que preservam a manutenção dos direitos, bem como das garantias que sustentam a capacidade do livre e pacífico exercício da atividade de prostituição. (DANNA, 2002, p. 84). Acrescentam, também, que não só a exploração, mas também o exercício da prostituição – quando realizados de maneira a explorar o corpo da mulher – consiste em um ato de violência exercida contra essa mulher e por isso não só os facilitadores e agenciadores de tal prática devem ser perseguidos penalmente, mas, também, os usuários da prostituição seja ela em qualquer modalidade que se apresente, é dizer, através da exploração ou, ainda, do exercício. Esta é uma postura fundamentada no princípio de que corpo humano alheio não está à venda demonstrando, por sua vez, que suas vantagens são muito mais normativas que repressivas. (NGALIKPIMA, 2006, p. 53). Da compreensão das teorias supracitadas se tem claro que distinguir o mercado ilegal da prostituição daquele considerado legal resulta, em tempos atuais, em uma operação difícil ou quiçá impossível, pois o conceito do que deve ser considerado ilegal, bem como exploração – pelo menos no que se refere ao tema da prostituição –, ainda é demasiadamente duvidoso e impreciso. 3. do exercício à explor ação da prostituição Pelo que foi visto até agora, cumpre estabelecer a diferença entre o que a doutrina considera prostituição livre ou propriamente dita e prostituição forvolume

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çada. Determinada diferença consiste no fato de que aquela, a prostituição propriamente dita, se realiza a partir do exercício da prostituição voluntária, quer dizer, está fundamentada na livre escolha da mulher. Já no que tange à prostituição forçada, como o próprio nome sugere, indica a exploração sexual e supõe a “violência física, psíquica e sexual, chantagens e enganos de todo tipo, (...)”. (CEPEDA, 2004, p. 35). Por outro lado, cumpre perceber que, em tempos atuais, a prostituição considerada voluntária assume um caráter estrutural muito bem organizado e com estabelecimento, inclusive, de funções para o desempenho de atribuições diversas que vão desde o aliciamento, ao exercício da atividade, passando pela negociação entre os entes envolvidos. Circunstância que, por sua vez, torna muito difícil ou quiçá impossível falar em livre exercício da prostituição ou, melhor dizendo, em prostituição com caráter independente, já que tal propriedade de organização - embora traga alguns prejuízos -, faz-se essencial ao desenvolvimento da referida atividade em dias atuais, pois que promove a segurança das mulheres que exercem tal ocupação frente ao mercado de clientes. De tal maneira, pode-se afirmar, então, que a organização de referida atividade, ainda que para a realização da prostituição fruto da livre vontade e manifestação do agente, - neste caso, mulher prostituída - termina por fundamentar o estímulo econômico e estrutural de sua posterior exploração sexual comercial. Dessa maneira, autores como Villalba suscitam a possibilidade de a prostituição voluntária ter influenciado a prostituição forçada e fundamentam sua afirmativa no fato de que o comércio de mulheres – para o tráfico de seres humano – e a prostituição organizada seja ela livre ou forçada, compartem características básicas, como são exemplos, as histórias de abusos físicos e sexuais que sofrem as mulheres envolvidas em determinados fenômenos. Ademais, note-se, também, a semelhança nas características dos clientes que buscam por esses serviços e o emprego de uma dinâmica de submissão fundamentada sempre no exercício da violência, ameaças, escravidão por dividas, torturas, etc. (2003, p. 41). Curioso é perceber que até mesmo os Estados quando se prestam ao debate e à regulação dessas condutas de exercício e/ou exploração da prostituição, costumam tratá-las de maneira conjunta. Fato que resulta em grandes dificuldades para a determinação do que se pretende prevenir e/ou punir. 16

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Referida confusão entre os conceitos de exploração e exercício da sexualidade, no que tange à prática da prostituição, possivelmente está fundamentada na circunstância de que todo e, qualquer, debate em torno da utilização do corpo das mulheres prostituídas foi desenvolvido por uma sociedade considerada decente que, por sua vez, estabelece um paralelo entre os conceitos de sagrado e profano, entre o que é legal e ilegal, entre a exploração e o exercício da sexualidade conforme seus ditames e conceitos pré-determinados. Ora, não se pode negar que tal particularidade que acompanha determinado .fato termina por ocasionar um discurso unificado. Se não, veja-se que todos os debates promovidos em torno da regulação ou não da prostituição enquanto profissão estão em comum acordo de que é necessário reprimir, inclusive, afirmam a necessidade de se estabelecer políticas de repressão cada vez mais severas à exploração da sexualidade, ao passo que proclamam a garantia do exercício sexual. O referido discurso parece obvio, ademais de atender ao que se considera justo e apropriado aos princípios norteadores da aplicação dos direitos humanos. Sem embargo, pergunta-se: porque referidos conceitos, é dizer, o exercício e a exploração quando observados sob o ponto de vista daquele que vive da prostituição, passa a assumir uma forma única e não paralela? É fato que o exercício da prostituição pressupõe a exploração daquele que a realiza por outrem. Circunstância que, por sua vez, termina por estabelecer uma certa confusão entre a existência ou não de antagonismos entre o exercício e a exploração, exigindo, assim, o abandono do discurso da sociedade considerada decente para a analise de um discurso fundamentado na teoria daqueles ora subordinados à condição de prostituição. 4. o exercício e a explor ação como sinônimos da coisificação É inegável que o denominador comum entre o exercício e a exploração da sexualidade quando da realização da atividade da prostituição, está na coisificação da pessoa prostituída. Sem embargo, referido discurso não deve estar apoiado em uma coisificação que se fundamenta na ideia de utilização do corpo de alguém como objeto de satisfação de outrem (NUSSBAUM, 2002, p. 28.) ou, melhor dizendo, na ideia de que a prostituição consiste na livre disposição do corpo das volume

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pessoas ora prostituídas, por parte dos clientes prostituidores que, por sua vez, pagam um preço em troca do serviço previamente acordado. Referido discurso em nada atende à dinâmica do fenômeno da prostituição e, somente, reforça a teoria da distinção entre o exercício e a exploração, posto que se fundamenta na representação de um conjunto pré-ordenado de conceitos fundamentados na ideia de que a prostituição não estabelece benefício as pessoas prostituídas, mas, tão somente, aos clientes prostituidores e à indústria ilegal do sexo. A coisificação da pessoa prostituída deve, então, estar fundamentada em uma circunstância anterior ao desfrute de seu corpo como objeto, qual seja, no debate que antecede a opção dessa pessoa em exercício de sua sexualidade pela realização da prostituição, ou seja, na existência ou inexistência de autonomia para a eleição do exercício da prostituição e, aqui, entenda-se autonomia como capacidade de tomar decisões próprias, o que requer capacidade para conhecer e assimilar uma informação e uma ausência de coações internas e/ou externas. (CUENCA, 2007, p. 64). Dessa maneira, pode-se sustentar que a coisificação deve estar fundamentada na teoria que “nos sugere a ideia de um ser em si e, como consequência, uma mulher isenta de liberdade e de possibilidade de que esta prática seja produto da decisão de um ser para si”. (PRECIOSO, 2007, p. 89). O fato é que, se passamos a observar, sob esse ponto de vista, podemos intuir que, em pouquíssimos casos (si é que existe algum), a prostituição é, verdadeiramente, uma opção livremente escolhida por pessoas realmente autônomas, já que, na grande maioria das vezes, ou, quiçá, na totalidade, a liberdade para eleição da prostituição parte sempre de uma situação que é produto da contingência, de modo que não existe liberdade sem situação, nem existe situação sem liberdade. Cumpre esclarecer que a situação a que nos referimos neste momento não consiste, simplesmente, em um conjunto de circunstâncias sociais, culturais e econômicas, mas em uma determinada forma de apreender o mundo, que termina por permitir a definição do que se pode comerciar, explorar e exercer. (GIMENO, 2001, 246)3. 3 Um diálogo apropriado para esse momento é aquele realizado entre a viúva ateniense Crobil e sua filha, a virgem Corina, narrado pelo escritor clássico Luciano de Samósata (125 d.C.

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Por outro lado, faz-se necessário refletir sobre a real possibilidade de uma pessoa completamente autônoma e livre de toda e qualquer situação e/ou contingência, vir a ter o anseio, o desejo de dedicar-se à prostituição como uma forma de vida. Ora, estaria, então, justificado regulamentar tal atividade? O discurso proibicionista vem defendendo que não, pois não estaria justificado regulamentar uma atividade que legitima uma prática que somente tem representado o menoscabo do que se refere aos avanços dos direitos humanos. Por outro lado cumpre perguntar se relegar a essas pessoas consideradas prostituídas a condição de cidadãs de segundo plano - já que, uma vez, não regulamentadas estariam submetidas a toda e qualquer sorte, pois não podem ser alvo das políticas de saúde e previdência social – não é caminhar na contra mão da defesa dos direitos humanos? No que se refere ao Brasil a resposta seria negativa, pois a mulher prostituída uma vez contribuindo para a previdência social na condição de autônoma tem seus direitos previdenciários garantidos como todo e qualquer trabalhador, bem como é alvo das políticas públicas de saúde e educação nesse mesmo país. O que se pode questionar é a qualidade de tais serviços. Porém, tal questionamento não está, exclusivamente, para a sua prestação à pessoa prostituída, mas para todo e qualquer cidadão, seja ele autônomo, professor ou funcionário público, etc. Assim, é possível afirmar que o consentimento da pessoa prostituída, a ausência de elementos e/ou situações que impulsionem a pessoa para tal prática e, ainda, o discurso moralizador da sociedade dos bons não são argumentos suficiente para uma política de regulamentação de referido exercício como atividade profissional.

- 181 d.C.) onde diz: CROBIL: Tudo o que você tem de fazer é sair com os rapazes, beber com eles e dormir com eles por dinheiro. CORINA: Do jeito que faz Lira, filha de Dafne! CROBIL: Exatamente! CORINA: Mas ela é uma prostituta! CROBIL: Bem, e isso é uma coisa assim tão terrível? Significa que você será rica como ela é, e terá muitos amantes. Por que você está chorando, Corina? Não vê quantos homens vão atrás das prostitutas, e mesmo assim há tantas delas? E como elas ficam ricas! Olhe, eu posso me lembrar de quando Dafne estava na penúria. Agora, olhe a sua classe! Ela tem montes de ouro, roupas maravilhosas e quatro criados. (PEREIRA, 2011). Note-se que mesmo sabendo de toda a riqueza que pode disfrutar e dos conselhos da sua mãe para o exercício livre da prostituição, a virgem Corina se desespera em choro e até questiona a sua mãe sobre a condição de prostituta. Não se trata, portanto, de uma questão moral, econômica, cultural, mas principiológica do que se compreende por intimidade. volume

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Neste mesmo sentido, cumpre destacar que a venda propriamente dita de serviços sexuais em nossa sociedade é uma realidade em extremo sórdida e degradante para as mulheres prostituídas, pois, ademais de relegá-las a uma condição marginalizada da sociedade, ou seja, àquela parte da sociedade formada pelos indecentes, a prostituição se fundamenta em relações imperantes de gênero. Se não, note-se que a imensa maioria das pessoas prostituídas são mulheres e crianças e, até mesmo quando se fala na prostituição masculina, o indivíduo prostituidor, ou seja, o aliciador, bem como o cliente é, na grande maioria das vezes, também, um homem. (CUENCA, 2007, p. 65/66). Ora, dessa afirmativa, pode-se observar duas problemáticas essenciais, quais sejam: a primeira fundamentada na ideia de que a prostituição não pode ser considerada uma profissão, pois nela não se valora a força do trabalho das pessoas prostituídas, mas a disponibilidade do seu próprio corpo para que outra pessoa obtenha prazer, anulando, assim, a sua própria sexualidade em uma relação clara de sexismo. Se não, note-se que a pessoa prostituída é, por vezes, mantida à mercê dos caprichos sexuais daquele que detém o valor do pagamento pelo serviço prestado, colocando-se, portanto, o referido agente, em uma situação de dominação sobre a prostituída, que, muitas vezes, se vê obrigada a aceitar intromissões não desejadas em sua integridade e intimidade corporal. (CUENCA, 2006, p. 68). Já a segunda problemática faz menção ao fato de que é, no mínimo, antagônico, pregar diariamente a necessidade do reconhecimento da abertura das relações sexuais entre homens e mulheres, ao mesmo tempo em que se reclama do Estado a necessidade de reconhecer a prostituição, posto que essa, como antes dito, se fundamenta em relações de gênero dominante e imperante. 5. conclusões Ademais de tudo o que foi dito no deslindar deste trabalho, a autora considera necessário acrescentar a ideia de que, ao seu modo de ver, a atividade sexual, deve ser compreendida como uma fonte de prazer para os dois lados envolvidos na relação. 20

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Importante, também, ter em mente que tal pratica, é dizer, a relação sexual, consiste na forma como o indivíduo se comporta na sociedade, bem como perante essa mesma sociedade da qual o cidadão é parte, posto que a sexualidade humana é fruto da intimidade e da personalidade de cada um e, portanto, deve ser considerada um bem extracomércio. Por outro lado, não se pode ignorar ou desmerecer a realidade da prostituição. Continuar atribuindo à condição de marginal – entenda-se marginal no que se refere a estar à margem do sistema político social – as pessoas que exercem tal atividade é, no mínimo, uma política de afundamento do processo de desenvolvimento social desejado pelos diferentes Estados. É mais que urgente e necessário conceder a essas mulheres prostituídas o direito de conviver na condição de sociedade decente e não, à margem dela. Sem embargo, não é estabelecendo teorias especificas ou genéricas de disciplina da prostituição ou, ainda, proclamando a regularização de referida atividade como profissão, que se conseguirá conferir a essas pessoas, sejam elas mulheres ou homens ora prostituídas a condição de cidadãos de primeira classe (se é que já não o são), posto que a regulamentação do exercício dessas atividade sexuais mediante pagamento não ajudam a criar um futuro diferente para os cidadãos prostituídos, isto é, não apresenta alternativas para estes homens e mulheres. Determinada circunstancia, somente levantam problemáticas outras, cuja discussão é de interesse dos Estados considerados centrais, posto que - como se pôde observar no primeiro apartado desse trabalho, que trata do deslindar das correntes que disciplinam o fenômeno da prostituição - essas referidas teorias sempre terminam por discutir as problemáticas decorrentes do tráfico de seres humanos para a posterior exploração sexual comercial e não, da prostituição propriamente dita. É em outras palavras dizer, que o debate em torno da regularização da prostituição termina gerando uma discursão que vai além da preservação dos direitos considerados humanos a que todos os homens e mulheres são detentor por direito, pois que fundamenta o debate em torno da proteção das fronteiras dos Estados centrais. É privilegiar uma política de fronteira dos países desenvolvidos em detrimento dos direitos dos cidadãos de países periféricos. volume

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O debate sobre a prostituição, então, deve estar fundamentado na persecução dos elementos que fundamentam a autonomia da prática da atividade de prostituta, posto que referida circunstância é consequência prévia ao exercício dessa atividade, no intuito de que ela não venha a ser alvo ou objeto de exploração posterior. Tal matéria, ao que parece, não tem sido de essencial interesse para os Estados centrais e quiçá periféricos. Fato que nos leva a reflexão de que se não mudamos nosso modo de compreender a sexualidade humana, seguiremos, infelizmente, atentando contra o direito dessas mulheres e homens ora prostituídos. 6. referências BINDEL, Julie. Modelo holandés. In: Explotación Sexual y Trata de mujeres. MARCOS, Liliana (ed.). Libro editado como resultado del I Congreso Internacional “Trata de mujeres y explotación sexual”que tuvo lugar en Madrid, organizado por AFESIP España con el apoyo y respaldo de la Universidad Complutense de Madrid, 2006. CEPEDA, Ana Isabel Pérez. Globalización, tráfico internacional de personas y derecho penal. Estudios de Derecho Penal dirigidos por Carlos María Romeo Casabona. Granada: editoria Comares, 2004. DANNA, Daniela. Le politiche prostituzionali in Europa. In: Prostituzione e tratta: Manuale di intervento sociale. Milano: Associazione On The Road. 2002. CUENCA, Encarna Camona. ¿Es la prostitución una vulneración de derechos fundamentales? In: Prostitución y trata: Marco jurídico y régimen de derechos. Rosario Serra Cristóbal (coord). Valencia: Tirant monografias, 2007. GIBSON, Mary. Stato e Prostituzione in Italia. Milano: Il Saggitore, 1986. GIMENO, Marta Azpeitia. Viejas y nuevas metáforas: feminismo y filosofía a vueltas con el cuerpo. In: Piel que habla: viaje a través de los cuerpos femeninos. Barcelona: Icaria, 2001. MARTÍNEZ, Fernando Rey; MATÍN, Ricardo Mata & ARGÜELLO, Noemí Serrano. Prostitución y Derecho. Navarra: Thomson Aranzadi, 2004, p. 17. 22

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NGALIKPIMA, Matiada. La trata y la explotación sexual de las mujeres y de los niños en Europa: aspectos represivos. In: Explotación Sexual y Trata de mujeres. MARCOS, Liliana (ed.). Libro editado como resultado del I Congreso Internacional “Trata de mujeres y explotación sexual” que tuvo lugar en Madrid, organizado por AFESIP España con el apoyo y respaldo de la Universidad Complutense de Madrid, 2006. PADOVANI, Tulio. Il testo único sull’immigrazione e le strategie di contrasto allo sfruttamento sessuale: l’innovazione legislativa del programma di protezione sociale e l’impatto prodotto nel contesto sociale. In: Stop tratta: Atti del Convegno Internazionale. Bologna, 23/24 de maggio de 2002. PRECIOSO, Magdalena López. Debate Feminista: Teorías, practices y realidades. In: Prostitución y trata: Marco jurídico y régimen de derechos. Rosario Serra Cristóbal (coord). Valencia: Tirant monografias, 2007. RAYMOND, Janice. La trata de mujeres y la igualdad de género. In: MARCOS, Liliana (ed. ). Explotación sexual y trata de mujeres. Libro editado como resultado del I Congreso Internacional “Trata de mujeres y explotación sexual”que tuvo lugar en Madrid, organizado por AFESIP España con el apoyo y respaldo de la Universidad Complutense de Madrid, 2006. VILLALBA, Francisco Javier de León. Tráfico de personas e inmigración ilegal. Valencia: Tirant lo blach. 2003. Outra fonte Informe do Budapest Group (junio 1999). The Relationship Between Organized Crime and Trafficking in Aliens. Austria: Centro Internacional para el Desarrollo de Políticas migratorias. PEREIRA, Patrícia. De deusas à escória da humanidade. In. Revista Leituras da História. Portal Ciência & Vida Página eletrônica: http:// filosofiacienciaevida.uol.com.br/ ESLH/Edicoes/15/imprime119600.asp (Acesso em 15/06/2014 às 10:58).

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novas vulner abilidades no processo de globalização: par adigmas da cidade standard1 Rosângela Lunardelli Cavallazzi2 Gabriela Fauth3

Resumo Com o tema Novas Vulnerabilidades no Processo de Globalização: Paradigmas da Cidade Standard, o presente trabalho objetiva realizar um debate, segundo uma leitura interdisciplinar, em torno de paradigmas da cidade standard4, no contexto do processo de globalização das cidades contemporâneas. O diálogo pretende atingir um arco temático e institucional representativo de estudos nacionais e internacionais5 que compreendem contextos de vulnerabilidades em cidade contemporâneas, destacando casos-referência significativos, visando explicitar situações fáticas exemplares. Os mencionados casosreferências são o projeto olímpico Porto Maravilha na zona portuária do Rio de Janeiro e o já realizado projeto olímpico de 1992 também na zona portuária da cidade de Barcelona. O caso-referência não é uma comparação de modelo, e sim uma comparação de experiências e resultados. O projeto urbanístico de Barcelona foi escolhido por representar importante exemplo de transformação 1 Pesquisa realizada no âmbito do Grupo de Pesquisa Direito e Urbanismo nas Práticas Sociais Instituintes vinculado ao Diretório do Grupo de Pesquisa do CNPq vinculado aos Programas de Pós-graduação em Direito (PUC-Rio) e de Urbanismo (PROURB/UFRJ). O referido Grupo de Pesquisa desenvolve projetos de pesquisas e a formação de pesquisadores nos níveis de Doutorado, Mestrado e Iniciação Científica, através de pesquisa coletiva interinstitucional com instituições nacionais e estrangeiras. 2 Rosângela Lunardelli Cavallazzi, doutora em Direito, professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Direito da PUC-Rio e do Programa de Pós-graduação em Urbanismo da UFRJ. 3 Gabriela Fauth, doutoranda do Departamento de Direito Público da Universitat Rovira i Virgili. 4 Cidades contemporâneas submetidas à lógica da globalização, formatadas a exemplo dos contratos de adesão padronizados. 5 O estudo compreende a interpretação das normativas brasileira e espanhola no sentido de identificar núcleos de recepção de práticas sociais institucionalizadas. volume

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urbana dentro dos paradigmas da cidade standard e por constituir-se em um modelo replicado em outras cidades, como o Rio de Janeiro.

Palavras-chave Novas Vulnerabilidades, Direitos sociais; Direitos Humanos; Processo de Globalização; Eficácia social da norma; Novos paradigmas; Práticas Sociais Instituintes.

Resumen A partir del tema Nuevas Vulnerabilidades em el Proceso de Globalización: Paradigmas de la Ciudad Standard, el presente trabajo objetiva realizar un debate, según una lectura  interdisciplinar, en torno de los paradigmas de la ciudad standard, en el contexto del proceso de globalización de las ciudades contemporáneas. El dialogo pretende alcanzar un marco tematico e institucional representativo de estudios nacionales e internacionales que comprenden contextos de vulnerabilidades en ciudades contemporáneas, resaltando casos referencia significativos que buscan explicitar situaciones fácticas exemplares. Los mencionados casos referencias son el proyecto olímpico Porto Maravilha em la zona portuaria de Rio de Janeiro y el ya realizado proyecto olímpico de 1992 igualmente en la zona portuaria de la ciudad de Barcelona. El caso referencia no se refiere a una comparación de modelos, sino una comparación de experiencias y resultados. El proyecto urbanístico de Barcelona fue elejido por representar importante ejemplo de transformación urbana dentro de los paradigmas de la ciudad standard y por constituirse en un modelo replicado en otras ciudades, como Rio de Janeiro.

Palabras clave Nuevas Vulnerabilidades, Derechos sociales; Derechos Humanos; Proceso de Globalización; Eficacia social de la norma; Nuevos paradigmas; Prácticas Sociales Instituintes. 1. introdução Este artigo adota uma abordagem interdisciplinar adotando um diálogo que realiza um arco temático e institucional representativo dentro do contexto de vulnerabilidades nas cidades contemporâneas. 26

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Reconhecendo a importância da relação entre a realidade social e a contruçao teórica, os dois casos-referência se justificam, a fim de realizar uma análise teóricoprática fundamental para a compreensão do processo de globalização nas cidades e nos contextos sociais que nos rodeiam. Portanto, os casos-referência ganham sentido no contexto da cidade comtemporânea, padronizada e uniformizada6, pois são casos que explicitam realidades próprias do processo de globalização atual. Este processo de hoje se difere daquele surgido no século XX e se caracteriza como um contínuo processo de captura da realidade, do tempo, do espaço7, em uma constante uniformização, tanto das relações como dos sujeitos. O referido processo de globalização, ao mesmo tempo que uniformiza, também gera fragmentação, de espaços e tempos, percebidos na ampliação dos espaços de segregação e exclusão, bem como no sentido das intervenções que privilegiam a construção dos espaços de uso privado na cidade. 2. objetivos e delimitação teórico-metodológica O artigo, segundo a perspectiva do I Encontro de Internacionalização do CONPEDI pretende compreender o papel dos atores do desenvolvimento econômico, político e social diante do Direito do século XXI, a partir do reconhecimento de novas vulnerabilidades no complexo processo de globalização de cidades contemporâneas. O desafio contemporâneo inclui o enfrentamento de novas vulnerabilidades8, uma vez que consideramos os processos que tornam os sujeitos 6 Conforme o conceito de cidades standard, construído pelo já mencionado Grupo de Pesquisa Direito e Urbanismo nas Práticas Sociais Instituintes. 7 Conceitos interpretados a partir dos estudos de Eric Hobsbawm. Vid. HOBSBAWM, Eric. O novo século: entrevista a Antonio Polito. Tradução do italiano para o inglês de Allan Cameron; tradução do inglês para o português e cotejo com a edição italiana de Claudio Marcondes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 8 “A vulnerabilidade é uma noção relativa – está normalmente associada à exposição aos riscos e designa a maior ou menor susceptibilidade de pessoas, lugares, infraestruturas ou ecossistemas sofrerem algum tipo particular de agravo. [...] Nas definições mais correntes, a condição apontada está posta nos sujeitos sociais e não nos processos que os tornam vulneráveis”. ACSELRAD, Henri. Vulnerabilidade ambiental, processos e relações. In: Encontro volume

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sociais com a vulnerabilidade agravada (a chamada hipervulnerabilidade), que atingem espaços e relações sociais, no complexo processo de globalização, no contexto das políticas públicas e dos modelos econômicos hegemônicos. A partir da dimensão do atual processo de globalização que gera novas vulnerabilidades, tanto sociais como ambientais, se observa a relevância de contextualizar situações e sujeitos vulneráveis. Nessa perspectiva, o estudo considera as práticas jurídicas instituintes9 campo privilegiado, na qualidade de instrumento de transformação social, tornando imprescindível a eficácia social da norma10 como categoria analítica por permitir o diálogo entre teoria e prática. No campo jurídico a questão envolve o confronto entre os paradigmas que espelham a lógica formal e novos paradigmas que espelham a lógica coletiva e plural das demandas contemporâneas. O jurista contemporâneo deve enfrentar nas suas reflexões o impacto inexorável que o processo de globalização impõe, especialmente, no que tange à uniformização pretendida e alcançada pela sociedade de mercado, mas que, a contrário senso, é explicitado sob a forma de fragmentação de normas, de direitos, de identidades, de espaços públicos e privados, de tutelas jurídicas. Ocorre, na realidade contemporânea, um efeito de fragmentação, a exemplo da lógica pós-moderna, das políticas de planejamento e de urbanismo no sentido inverso da proteção do patrimônio cultural, quando, por exemplo, às esferas

Nacional de produtores e usuários de informação sociais, econômicas e territoriais, 2006, Rio de Janeiro: FIBGE, 2006. Disponível em: .

“[...] a vulnerabilidade fática ou socioeconômica, o ponto de concentração é o outro parceiro contratual, o fornecedor, que, por sua posição de monopólio, fático ou jurídico, por seu grande poder econômico ou em razão da essencialidade do serviço, impõe sua superioridade a todos que com ele contratam [...].” (MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 320) 9 Práticas sociais instituintes, ver CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli, A plasticidade na teoria contratual, Tesis doctoral, Faculdade de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1993. 10 Ver, sobre a eficácia social da norma urbanística, CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli, O estatuto epistemológico do Direito Urbanístico Brasileiro: possibilidades e obstáculos na tutela do Direito à Cidade. In: COUTINHO, R.; BONIZZATO, L. (Org.). Direito da cidade: novas concepções sobre as relações jurídicas no espaço social urbano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 53-69.

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municipal, estadual e federal sobrepõem projetos, ações e omissões, ressaltando lacunas mutuamente11. Assim, o fenômeno da fragmentação, independentemente de seus efeitos dispersores de direitos e segregadores de espaços, pela via da mudança do seu eixo do mercado para o homem, da forma para o conteúdo, poderá dar visibilidade a novos direitos, a novas demandas, e construir outros espaços mesmo que a partir das novas vulnerabilidades da cidade standard. A fragmentação, portanto, é reconhecida como código próprio do movimento de globalização. Constitui também estratégia, pois as partes deslocadas do todo perdem sentido. Assim acontece, por exemplo, no caso dos direitos sociais que compõem o direito à cidade12. Evidentemente, a efetividade de um desses direitos é importante e de imediato indica tutela jurídica; entretanto, a realização do direito à cidade somente ocorre quando, articuladamente, todos os direitos sociais que constituem o feixe de direitos são efetivados13. A fragmentação da norma e da forma, no contexto da globalização, conforme o senso comum reconhece, desmantela unidades e alcança não apenas à dimensão econômica, mas, sobretudo as dimensões político e social. Esse processo gera espacialização dos riscos urbanos e fragiliza os direitos que compõem o direito à cidade. No processo de fragmentação da norma ocorre, necessariamente, uma espacialização, uma ocupação e registro no espaço simbólico do campo jurídico e, simultaneamente, a cristalização de uma nova forma no espaço da cidade. Estabelece-se assim, provavelmente, uma concorrência entre o direito codificado, uniformizador de sentidos, de conteúdos normativos, e o pluralismo intrínseco das práticas sociais instituintes. Constatadas as condições de vulnerabilidade que atravessam espaços e relações das cidades standard, considerar a paisagem urbana como princípio de 11 Vide “alinhamento” das esferas da União, Estados e Municípios no caso dos bens públicos da zona portuária do Rio de Janeiro submetida ao projeto Porto Maravilha. 12 LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 3. ed. São Paulo: Centauro, 2004b, p. 74. 13 Ver em CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli, Novas Fronteiras do Direito Urbanístico. In: LIRA, R-C. P.; TEPEDINO, G.; FACHIN, L. E. (Org.). O Direito e o tempo. Embates jurídicos e utopias contemporâneas – Estudos em homenagem ao Professor Ricardo-César Pereira Lira. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 683-709 volume

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interpretação (segundo plano a ser levado em conta no conceito de paisagem urbana) constitui, sem dúvida, uma estratégia para a preservação do espaço público. Uma opção no sentido da tutela dos vulneráveis14-15. A condição de vulnerabilidade dos sujeitos e das relações nas cidades contemporâneas induz o intérprete da norma urbanística no sentido de reconhecer cidade nas favelas, na periferia, nos inúmeros espaços de exclusão, ganhando todo o sentido considerar a paisagem como princípio de interpretação. A inclusão social no ambiente de vulnerabilidade acontece no cotidiano, no lugar da vida, nos espaços da dignidade, liberdade e confiança. A novidade nos parece estar, nos códigos da cidade no atual processo de globalização, onde, como muito bem esclarece Hobsbawn16, o tempo é capturado, roubado mesmo, tornado perdido, e, nesse contexto as cidades são formatadas e, a mercê da lógica da globalização a exemplo dos contratos de adesão e padronizados ficam engessadas no modelo do mercado - cidades standard. 3. conclusões O fenômeno da fragmentação, independentemente de seus efeitos dispersores de direitos e segregadores de espaços, pela via da mudança do seu eixo do mercado para o homem, da forma para o conteúdo, poderá dar visibilidade a novos direitos, a novas demandas, e construir outros espaços mesmo que a partir das novas vulnerabilidades da cidade standard. Neste sentido, constatar a contribuição do campo jurídico na compreensão das novas vulnerabilidades ocasionadas a raiz do processo de globalização contemporâneo é essencial. O reconhecimento de que está presente nos tempos de hoje uma nova lógica, 14 Ver KOVARICK, Lúcio. Sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil dos Estados Unidos, França e Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 18, n. 51, fev. 2003. 15 Segundo a doutrina de Claudia Lima Marques, existem quatro tipos de vulnerabilidade: a técnica, a jurídica, a fática ou socioeconômica e a informacional. A vulnerabilidade fática ou socioeconômica diz respeito à relação de desequilíbrio em razão da essencialidade do serviço ou da superioridade econômica de uma das partes. MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 320-323; 325 e 329-330. 16 O novo século: entrevista a Antonio Polito / Eric Hobsbawm. Tradução do italiano para o inglês de Allan Cameron; tradução do inglês para o português e cotejo com a edição italiana de Claudio Marcondes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 71.

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diferente daquela advinda dos poderes hegemônicos, distinta da globalização uniformizadora, mas derivada a partir do homem, da coletividade e da pluralidade, pode sem dúvida ser transformadora. Assim, tanto a hipervulnerabilidade como a fragmentação no campo do Direito, explicitam outros direitos que igualmente devem ser institucionalizados. 4. referências ACSELRAD, Henri. Vulnerabilidade ambiental, processos e relações. In: Encontro Nacional de produtores e usuários de informação sociais, econômicas e territoriais, 2006, Rio de Janeiro: FIBGE, 2006. Disponível em: . AYRES, Madalena Junqueira. A operação urbana consorciada da zona portuária do Rio de Janeiro e o direito à moradia: questionamentos e reflexões. In: CAVALLAZZI, R. L.; AYRES, M. (Org). Construções normativas e códigos da cidade na zona portuária. Rio de janeiro: PROURB, 2012, pp. 199-224. BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2009. BOURDIEU. O poder simbólico. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli. O Plano da Plasticidade na teoria Contratual. Rio de Janeiro, 1993. Tese (Doutoramento) – UFRJ, Rio de Janeiro, 1993. _______. O estatuto epistemológico do Direito Urbanístico Brasileiro: possibilidades e obstáculos na tutela do Direito à Cidade. In: COUTINHO, R.; BONIZZATO, L. (Org.). Direito da cidade: novas concepções sobre as relações jurídicas no espaço social urbano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 53-69. _______. Novas Fronteiras do Direito Urbanístico. In: LIRA, R-C. P.; TEPEDINO, G.; FACHIN, L. E. (Org.). O Direito e o tempo. Embates jurídicos e utopias contemporâneas – Estudos em homenagem ao Professor Ricardo-César Pereira Lira. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 683-709. HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2000. volume

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_______. Espaços de esperança. São Paulo: Loyola, 2004. HARVEY, David. Rebel Cities: From the Right to the City to the Urban Revolution, e-book, 2012. HOBSBAWM, Eric. O novo século: entrevista a Antonio Polito. Tradução do italiano para o inglês de Allan Cameron; tradução do inglês para o português e cotejo com a edição italiana de Claudio Marcondes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. KOVARICK, Lúcio. Sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil: Estados Unidos, França e Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 18, n. 51, fev. 2003. LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 3. ed. São Paulo: Centauro, 2004. MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. SANTOS, Milton. Espaço e Método. São Paulo: Nobel, 1985. _______. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000. TOURAINE, Alain. La Mirada social: un marco de pensamiento distinto para el siglo XXI. Trad. María José Furió Sancho. Barcelona: Paidós, 2009. TSIOMIS, Yannis. O projeto urbano hoje: entre situações e tensões. In: MACHADO, D. B. P.; PEREIRA, M. da S.; SILVA, R. C. M. (Org.). Urbanismo em questão. Rio de Janeiro: PROURB/UFRJ, 2003.

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o br asil e o sistema inter americano de direitos humanos1 Camila Barreto Pinto Silva 2 Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini3

Resumo O tema central da presente pesquisa é a proteção interna e internacional dos direitos humanos no Brasil, sendo o seu objeto o modo de aplicação e implementação das decisões do Sistema Interamericano de Direitos Humanos pelos tribunais brasileiros. O problema enfrentado é como se dá no Brasil a internalização das normas e tratados de direitos humanos oriundos do Sistema Interamericano, em especial como se dá o cumprimento das sentenças emanadas da Corte Interamericana de Direitos Humanos? Para responder ao problema o artigo dividir-se-á em dois itens que compõem o seu desenvolvimento. No primeiro será estudado o processo de internacionalização dos direitos humanos e o surgimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos e no segundo item será estudado, em específico, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos e duas decisões paradigmáticas da Corte Interamericana de Direitos Humanos, nas quais o Brasil é condenado a uma série de ações no sentido de investigar, punir e indenizar situações de violações a direitos humanos. O método de abordagem adotado no desenvolvimento da presente pesquisa é o indutivo com pesquisa bibliográfica e documental. 1 Trabalho apresentado no I ENCONTRO DE INTERNACIONALIZAÇÃO DO CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito, realizado em Barcelona – Espanha, de 8 a 10 de outubro de 2014, com o apoio da CAPES pela outorga de Apoio em Participação em Eventos no Exterior (AEX). 2 Doutora e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Bolsista PNPD Capes. Pós-Doutoranda pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE). Professora Titular da UNIP - Universidade Paulista de Direito Internacional Público e Privado, Direito Empresarial e Direito do Consumidor. Professora na FAPAN - Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, desenvolvendo o CIC - Centro de Iniciação Científica. 3 Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, pesquisadora e professora do Curso de Mestrado em Direito da Universidade Nove de Julho (UNINOVE), professora colaboradora do Mestrado em Direito do UNIVEM. volume

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Palavras-chave Direito Internacional dos Direitos Humanos; Sistema Interamericano de Direitos Humanos; Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Resumen El tema central de esta investigación es la protección nacional e internacional de los derechos humanos en Brasil, su objeto el modo de aplicación y ejecución de las decisiones del Sistema Interamericano de Derechos Humanos en los tribunales brasileños. El problema que enfrentan es cómo es Brasil, en la interiorización de normas y tratados en materia de derechos humanos derivadas del sistema interamericano, en particular, cómo es el cumplimiento de las decisiones de sentencias de la Corte Interamericana de Derechos Humanos? Para responder, este artículo se dividirá en dos elementos que conforman su desarrollo. Al principio será estudiado el proceso de internacionalización de los derechos humanos y el surgimiento del derecho internacional de los derechos humanos y el segundo punto se estudiará, en particular, el sistema interamericano de derechos humanos y dos decisiones paradigmáticas de la Corte Interamericana de Derechos Humanos, en la que Brasil es condenado a una serie de acciones para investigar, sancionar y compensar situaciones de violaciónes de los derechos humanos. El método de la solución adoptada en el desarrollo de esta investigación es inductivo con la literatura y los documentos.

Palabras clave Derecho Internacional de los Derechos Humanos; Sistema Interamericano de Derechos Humanos; Corte Interamericana de Derechos Humanos. 1. introdução O tema da presente pesquisa é a proteção interna e internacional dos direitos humanos no Brasil, sendo o seu objeto o modo de aplicação e implementação das decisões do Sistema Interamericano de Direitos Humanos pelos tribunais brasileiros. O Brasil possui longa tradição de aceitação e ratificação de normas internacionais protetoras de direitos humanos, porém, isso não se verifica quando 34

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se trata de implementar essas normas no sentido de garantir e fiscalizar a proteção desses direitos. Desta realidade é que surge o problema da presente pesquisa: como se dá no Brasil a internalização das normas e tratados de direitos humanos oriundos do Sistema Interamericano, em especial como se dá o cumprimento das sentenças emanadas da Corte Interamericana de Direitos Humanos? Para responder ao problema enfrentado, o artigo dividir-se-á em dois itens que compõem o seu desenvolvimento. No primeiro será estudado o processo de internacionalização dos direitos humanos e o surgimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos e no segundo item será estudado, em específico, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos e duas decisões paradigmáticas da Corte Interamericana de Direitos Humanos, nas quais o Brasil é condenado a uma série de ações no sentido de investigar, punir e indenizar situações de violações a direitos humanos. O método de abordagem adotado no desenvolvimento da presente pesquisa é o indutivo com pesquisa bibliográfica e documental. Trata-se de um artigo de caráter descritivo e exploratório que objetiva lançar informações para futuras pesquisas. 2. direito internacional dos direitos humanos Com o fim da Segunda Guerra Mundial inicia-se o processo de universalização e internacionalização dos Direitos Humanos, uma vez que se tornaram uma legítima preocupação internacional, encerrando-se um período no qual perdurou a concepção de que a forma como o Estado tratava seu povo era concebida como um problema de jurisdição exclusivamente doméstica devido à soberania. Ao contrário, a relação do Estado com os seus nacionais passou a ser uma problemática internacional4. O processo de universalização e internacionalização dos Direitos Humanos trouxe a necessidade de implementação desses mediante a criação de um Sistema 4 Trindade, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. 2ª ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 2003. volume

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Internacional de proteção, monitoramento e controle, o qual foi dividido em Sistema Global de proteção e Sistema Regional de proteção, complementares e indivisíveis esses não substituem os tribunais internos e não são tribunais de recurso ou cassação, ao contrário, trata-se de direito complementar ao direito nacional5. O Estado tem a responsabilidade primária pela proteção desses direitos e a comunidade internacional tem a responsabilidade subsidiária, porém os atos internos dos Estados podem vir a ser objeto de exame dos tribunais internacionais.6 O Sistema Global de proteção é composto pela Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 e pelos dois Pactos Internacionais de 1966: o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Ambos os Pactos possuem como principal objetivo dar concretude aos direitos já consagrados na Declaração Universal, “atribuindo-lhes valor jurídico na acepção positivista – o que os tornaria obrigatórios. No mesmo sentido, criou vinculações para os Estados-partes, abrindo a possibilidade de responsabilizá-los no plano internacional por atos atentatórios aos direitos humanos.”7 O Sistema Internacional de Proteção da Pessoa Humana, ao longo do tempo, foi se aperfeiçoando e complementando, fazendo surgir um novo ramo do Direito Internacional: o Direito Internacional dos Direitos Humanos8. Louis Henkin afirma que

5 SILVEIRA, Vladmir Oliveira. NASPOLINI SANCHES, Samyra Haydêe Dal Farra. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos e a sua relação com o s Países da América do Sul. Seminário Latino Americano de Direitos Humanos. 1ed.Fortaleza: UNIFOR, 2013, v. , p. 100-120. 6 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e justiça internacional. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. 7 SILVEIRA, Vladmir Oliveira; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos Humanos: conceitos, significados e funções. São Paulo: Saraiva, 2010.p. 158. 8 O Direito Internacional dos Direitos Humanos surge no pós-segunda guerra mundial, sendo seu desenvolvimento atribuído às atrocidades praticadas por Hitler e ao entendimento de que tais violações aos direitos humanos poderiam ter sido prevenidas se houvesse um efetivo sistema internacional de proteção aos direitos humanos. Cf. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 2ª ed. ver., atual e ampl.,São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 680. PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 22.

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O emergente Direito Internacional dos Direitos Humanos institui obrigações aos Estados para com todas as pessoas humanas e não apenas para com estrangeiros. Este Direito reflete a aceitação geral de que todo individuo deve ter direitos, os quais todos os Estados devem respeitar e proteger. Logo, a observância dos direitos humanos é não apenas um assunto de interesse particular do Estado (e relacionado à jurisdição doméstica), mas é matéria de interesse internacional e objeto próprio de regulação do Direito Internacional9”.

O cenário aponta para a ideia de que a proteção dos direitos humanos não estará somente reservada aos Estados, implicando, inclusive com restrição de soberania nacional, por revelar interesse legítimo da ordem internacional.10 Neste sentido, Antônio Augusto Cançado Trindade, se posiciona nos seguintes termos: O tratamento dispensado aos seres humanos pelo poder público não é mais algo estranho ao Direito Internacional. Muito ao contrário, é algo que lhe diz respeito, porque os direitos de que são titulares todos os seres humanos emanam diretamente do Direito Internacional. Os indivíduos são, efetivamente, sujeitos do direito tanto interno como internacional. E ocupam posição central no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, sejam ou não vítimas de violações de seus direitos internacionalmente consagrados11”.

Assim, podemos afirmar que o poder público deve dispensar tratamento digno aos seres humanos, pois seus direitos estão fundamentados no direito internacional e, encontrando proteção a tais direitos importante posição internacional. Continua Cançado Trindade

9 Apud PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 22. 10 AMARAL JUNIOR, Alberto do. A institucionalização dos direitos humanos: conquistas e desafios, pp. 644,645. In: PIOVESAN, Flávia. (Coord). Direitos humanos, globalização econômica e integração regional: desafios do direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 2002. 11 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, tomo III, Porto Alegre, Fabris Ed., 2003, pp. 434-436, parágrafos 48 e 50. volume

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Há que ter sempre presente que, distintamente das questões regidas pelo Direito Internacional Público, em sua maioria levantadas horizontalmente sobretudo em nível inter-estatal, as questões atinentes aos direitos humanos situam-se verticalmente em nível intra-estatal, na contraposição entre os Estados e os seres humanos sob suas respectivas jurisdições. Por conseguinte, pretender que os órgãos de proteção internacional não possam verificar a compatibilidade das normas e práticas de direito interno, e suas omissões, com as normas internacionais de proteção, seria um contrasenso. Também aqui a especificidade do Direito Internacional dos Direitos Humanos torna-se evidente.(...) O Direito Internacional dos Direitos Humanos vem assim afirmar a aptidão do Direito Internacional Público para assegurar, no presente contexto, o cumprimento das obrigações internacionais de proteção por parte dos Estados vis-à-vis todos os seres humanos sob suas jurisdições12.

O processo de surgimento desse novo ramo contou com o balizamento de tratados que visam garantir a efetiva realização dos direitos humanos e a reconstrução da paz duradoura no mundo13. Para tentar resolver os problemas relativos às relações do direito internacional com o direito interno, duas grandes concepções doutrinárias surgiram: a monista e a dualista14. 12 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A Consolidação da Capacidade Processual dos Indivíduos na Evolução da Proteção Internacional dos Direitos Humanos: Quadro Atual e Perspectivas na Passagem do Século. Disponível em:http://www.dhnet.org.br/direitos/ militantes/cancadotrindade/cancado3.html. Acesso em: 30 mar. 2011. 13 Carlos Weiss explica que a Convenção Americana de Direitos Humanos indica a necessidade de adoção de medidas concretas pelo Estado a fim de garantir o pleno exercício dos direitos civis e políticos, “proposição que colide com a teoria clássica dos direitos humanos, para a qual os direitos civis e políticos têm seu traço distintivo justamente por demandarem uma abstenção estatal. Na realidade o que se vê é o texto americano filiar-se ao pensamento atual, segundo o qual o importante é garantir a observância máxima de todos direitos humanos, pouco importando a natureza jurídica ou a classificação de tais medidas”. WEISS, Carlos. Direitos Humanos Contemporâneos. 2 ed. São Paulo: Malheiros Editores. 2010, pp. 139,140. 14 A esse respeito, Antônio Augusto Cançado Trindade ensina que [...] desvencilhamo-nos das amarras da velha e ociosa polêmica entre monistas e dualistas; neste campo de proteção, não se trata de primazia do direito internacional ou do direito interno, aqui em constante interação: primazia é, no presente domínio, da norma que melhor proteja, em cada caso, os direitos consagrados da pessoa humana, seja ela uma norma de direito internacional ou de direito interno”. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado A proteção dos direitos humanos nos planos nacional e internacional: perspectivas brasileiras. San Jose da Costa Rica/Brasília: Instituto Interamericano de Derechos Humanos, 1992, pp. 317- 318.

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Para a doutrina dualista o direito interno e internacional constituem dois sistemas autônomos e distintos, ou seja, constituem círculos que não se interceptam, muito embora sejam igualmente válidos. O direito internacional teria a função de regular as relações entre os Estados, ao passo que ao direito interno seria destinada a regulação da conduta do Estado com os indivíduos e, por regularem matérias diferentes, entre eles não poderia haver conflito. Francisco Rezek representa a posição dualista e eis seu entendimento: Ao se estabelecer a necessidade imperiosa de incorporação, independente da posição que assumirá posteriormente a norma, evidentemente adota o direito brasileiro uma forma de dualismo, mesmo que na modalidade moderada. Somente depois de incorporados ao ordenamento jurídico interno podem as normas de origem internacional criar direitos e deveres para os particulares, ainda que antes disso tenha o Estado relevado aos seus co-contratantes ter assumido suas obrigações naquele plano, através da ratificação e depósito do instrumento próprio15.

Contrariamente à concepção dualista, na doutrina monista a ordem jurídica interna e internacional coexistem, sobrepondo-se, formando assim, uma escala hierárquica em que o direito internacional, subordina o direito interno e o direito interno subordina o direito internacional. Para os doutrinadores monistas caso o Estado assine e ratifique um tratado, o fez por estar se comprometendo juridicamente a cumpri-lo. Aqui o direito internacional e o direito interno formam uma unidade jurídica, que não pode ser afastada em detrimento dos compromissos assumidos pelo Estado no âmbito internacional. Demonstrando a superioridade do direito internacional diante do direito interno dos Estados foi declarada pela Corte Permanente de Justiça Internacional, em seu artigo 38, in verbis: 1 A Corte, cuja função seja decidir conforme o direito internacional as controvérsias que sejam submetidas, deverá aplicar; 15 REZEK, Jose Francisco. Direito internacional público. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 04. volume

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2. As convenções internacionais, sejam gerais ou particulares, que estabeleçam regras expressamente reconhecidas pelos Estados litigantes; 3. O costume internacional como prova de uma prática geralmente aceita como direito; 4. Os princípios gerais do direito reconhecidos pelas nações civilizadas; 5. As decisões judiciais e as doutrinas dos publicitários de maior competência das diversas nações, como meio auxiliar para a determinação das regras de direito, sem prejuízo do disposto no Artigo 59. 6. A presente disposição não restringe a faculdade da Corte para decidir um litígio ex aequo et bono, se convier às partes.

Certamente a primazia do direito internacional sobre o direito interno demonstra ser uma solução necessária ao progresso e ao desenvolvimento do direito internacional, de acordo com a nova tendência constitucional contemporânea. Observando a evolução do direito internacional, percebe-se o estreitamento das relações internacionais, traçando um sistema internacional mais integrado. Esses movimentos que têm levado à crescente integração do sistema internacional, chamados de movimentos globalizantes, têm imposto novas formas de relacionamento aos sujeitos internacionais. Portanto, cada vez mais, o Direito internacional vai se tornando, ao mesmo tempo, um elemento de coesão e de tensão nas relações entre os sujeitos internacionais. 3. o br asil e a corte inter americana de direitos humanos Os Sistemas Regionais buscam internacionalizar os Direitos Humanos no plano regional. Enquanto o Sistema Global fornece um parâmetro normativo mínimo, o regional deve ir além, buscando concretizar os direitos já existentes e adicionar novos, tudo isso levando em consideração as diferenças entre as regiões. Atualmente a Europa, a América e a África já possuem aparato jurídico próprio16. 16 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e justiça internacional. São Paulo: Saraiva, 2007.

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Na América, em novembro de 1969, foi realizada em São José de Costa Rica a Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos. Nessa oportunidade, os Estados americanos assinaram a Convenção Americana dos Direitos Humanos, que criou o Sistema Interamericano dos Direitos Humanos, composto por sua legislação, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. As decisões da Corte têm força jurídica vinculante e obrigatória, cabendo ao estado condenado o seu imediato cumprimento sob pena de lhe ser imposta uma sanção17e em casos de extrema gravidade e urgência e quando necessário para evitar danos irreparáveis a pessoas, a Corte pode adotar medidas provisórias. Trata-se de um princípio básico do direito a responsabilidade internacional do Estado, amparado no Direito Internacional dos Direitos Humanos, que todo Estado é internacionalmente responsável por atos ou omissões de qualquer de seus poderes ou órgãos em violação dos direitos internacionais consagrados, de acordo com o artigo 1.1 da Convenção Americana18.

17 “Se uma norma de Direito Internacional é superior a outras[...] é porque os Estados aceitaram que assim deva ser. Além do mais inexiste no plano internacional os poderes Executivo, Legislativo e inclusive Judiciário (uma vez que o “Judiciário” internacional depende do aceite dos Estados para que possa atuar, ao contrário do que ocorre no âmbito interno, em que o poder jurisdicional advém de um órgão autônomo e independente), o que faz com que o direito das gentes desconheça, sob o aspecto formal, o princípio da hierarquia das leis, o que só é compreensível sob o aspecto material e, mesmo assim, com um núcleo de regras advindas do costume (de que são exemplos as normas de jus cogens). A subordinação – clássica na ordem interna – dá lugar à coordenação na ordem internacional, motivo pelo qual a vontade (ou consentimento) dos Estados ainda é o motor da sociedade internacional contemporâneo. Salvo no que tange ao fundamento do Direito Internacional – que não pode ficar à mercê da vontade isolada dos Estados -, o regime de consentimento estatal (consensus) é bastante claro na ordem jurídica externa, podendo ser bem visualizado na hipótese em que um Estado rechaça a jurisdição de um tribunal internacional ou quando não se submete à eventual decisão internacional. A vontade do Estado apenas sucumbe caso tenha ele anteriormente reconhecido a possibilidade de a vontade coletiva de outros Estados ser vinculante em relação a si, tal como ocorre em relação à votação nas assembléias de organizações internacionais, quando se trata de assuntos de menor interesse”. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 2 ed. ver., atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 33. 18 Neste sentido, Carlos Weiss ressalta que “[...] o art. 1º do Tratado gera para os EstadosPartes o dever de “garantir seu livre pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição” – o que vem sendo utilizado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos para responsabilizar os Países não só pela violação ao direito humano material, como pelo volume

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A efetividade da proteção internacional dos direitos humanos na América do Sul está absolutamente condicionada ao aperfeiçoamento das medidas nacionais de implementação do Sistema Interamericano em seus países, uma vez que, por questões históricas, a efetividade dos direitos humanos nesta região requer o enfrentamento do elevado padrão de violação dos direitos econômicos, sociais e culturais que elevam os índices da desigualdade social, mãe de outras tantas violações aos direitos humanos. O Brasil ao se tornar signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, abriu mão de sua soberania em prol dos direitos humanos. A primeira decisão que influenciou profundamente o entendimento da prevalência da aplicação de tratado de direito internacional de direitos humanos no ordenamento jurídico pátrio foi a proferida pelo STF que estabeleceu que o depositário infiel não seria preso em virtude de dívida. Posteriormente a este, houve o Caso do Damião Ximenes Lopes que foi julgado pela CIDH e que condenou o Brasil, pela primeira vez em um tribunal internacional, por violação de direitos humanos. A Sentença de mérito, reparações e custas de 4 de julho de 2006, proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, determinou por unanimidade, que: 6. O Estado deve garantir, em um prazo razoável, que o processo interno destinado a investigar e sancionar os responsáveis pelos fatos deste caso surta seus devidos efeitos, nos termos dos parágrafos 245 a 248 da presente Sentença.19.

descumprimento do direito de garantia, notadamente quando o Estado falha gravemente quanto à tomada de medidas (legislativas, administrativas ou judiciais) voltadas a dar plena eficácia aos direitos previstos. Neste ponto combinam-se os arts. 1º e 2º do Pacto, visto que é obrigação jurídica internacional dos Estados-Partes adotarem, de acordo com suas normas constitucionais e com as disposições dessa Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.[...] os governos têm deveres positivos como negativos. Por outro lado, têm a obrigação de não violar os direitos das pessoas; mas este dever pode implicar a adoção de medidas positivas, necessárias e razoáveis para garantir o pleno exercício dos direitos reconhecidos pela Convenção”. WEISS, Carlos. Direitos Humanos Contemporâneos. 2 ed. São Paulo: Malheiros Editores. 2010, p. 139. 19 Corte IDH., Caso Damião Ximenes Lopes VS. Brasil. Sentença de mérito, reparações e custas de 4 de julho de 2006, parágrafos 6 a 12, p. 84. Disponível em: < http://www.corteidh.or.cr/ docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf>. Acesso em 13 fev. 2011.

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8. O Estado deve continuar a desenvolver um programa de formação e capacitação para o pessoal médico, de psiquiatria e psicologia, de enfermagem e auxiliares de enfermagem e para todas as pessoas vinculadas ao atendimento de saúde mental, em especial sobre os princípios que devem reger o trato das pessoas portadoras de deficiência mental, conforme os padrões internacionais sobre a matéria e aqueles dispostos nesta Sentença, nos termos do parágrafo 250 da presente Sentença. 9. O Estado deve pagar em dinheiro para as senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda, no prazo de um ano, a título de indenização por dano material, a quantia fixada nos parágrafos 225 e 226, nos termos dos parágrafos 224 a 226 da presente Sentença. 10. O Estado deve pagar em dinheiro para as senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda e para os senhores Francisco Leopoldino Lopes e Cosme Ximenes Lopes, no prazo de um ano, a título de indenização por dano imaterial, a quantia fixada no parágrafo 238, nos termos dos parágrafos 237 a 239 da presente Sentença.

Em continuidade ao acompanhamento do caso, em 17 de maio de 2010, a Corte Interamericana na resolução de supervisão de cumprimento de sentença decidiu: 1. Requerer ao Estado que adote todas as medidas que sejam necessárias para dar efetivo e pronto cumprimento às reparações ordenadas na Sentença de mérito, reparações e custas de 4 de julho de 2006 que se encontram pendentes de cumprimento,(...) 2. Solicitar ao Estado que apresente à Corte Interamericana de Direitos Humanos, no mais tardar até 6 de agosto de 2010, um relatório no qual indique as medidas adotadas para cumprir as reparações ordenadas por esta Corte que se encontram pendentes de cumprimento (...) 3. Solicitar aos representantes da vítima e dos seus familiares e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos que apresentem as observações que considerem pertinentes ao relatório do Estado mencionado no parágrafo resolutivo anterior, no prazo de duas e quatro semanas, respectivamente, contados a partir do recebimento do relatório estatal. volume

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4. Continuar supervisionando os pontos pendentes de cumprimento da Sentença sobre o mérito, reparações e custas de 4 de julho de 2006. 5. Requerer à Secretaria que notifique a presente Resolução ao Estado, aos representantes da vítima e dos seus familiares, e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos20.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, por ter como finalidade a defesa dos direitos humanos, tem caráter de Constituição supranacional atinente a Direitos Humanos, ou seja, “todos os poderes públicos e esferas nacionais, bem como as respectivas legislações federais, estaduais e municipais de todos os Estados aderentes estão obrigados a respeitá-la e a ela se adequar”21-22. Para demonstrar o entendimento vigente no sistema jurídico internacional a esse respeito, basta consultar decisões proferidas pela Corte Europeia de Direitos Humanos, que são cumpridas integralmente pelos Estados infratores23.

20 Corte IDH., Caso Ximenes Lopes VS. Brasil. Resolução de Supervisão de Cumprimento da Sentença de 17 de maio de 2010. p. 8. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/ supervisiones/ximenes_17_05_10_%20por.pdf. Acesso em 13 fev. 2011. 21 Corte IDH., Caso Gomes Lund e outros (guerrilha do Araguaia) VS. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010. Trecho do voto do juiz ad hoc Roberto de Figueiredo Caldas, parágrafo 6, p.3. Disponível em: < http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por. pdf>. Acesso em 13 fev. 2011. 22 A responsabilidade internacional do Estado por violações comprovadas de direitos humanas permanece intangível, independentemente dos malabarismos pseudo-jurídicos de certos publicistas (como a criação de distintas modalidades de prévia aprovação parlamentar de determinados tratados com pretendidas conseqüências jurídicas, a previsão de pré-requisitos para a aplicabilidade direta de tratados humanitários no direito interno, dentre outros), que nada mais fazem do que oferecer subterfúgios vazios aos Estados para tentar evadir-se de seus compromissos de proteção do ser humano no âmbito do contencioso internacional dos direitos humanos. Em definitivo, a proteção internacional dos direitos humanos constitui uma conquista humana irreversível, e não se deixará abalar por melancólicos acidentes de percurso do gênero. Parágrafo 35, do voto em separado de A.A. Cançado Trindade no caso Damião Ximenes Lopes VS. Brasil. Sentença de mérito, reparações e custas de 4 de julho de 2006, parágrafo 35, p. 11. Disponível em: < http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/ seriec_149_por.pdf>. Acesso em 13 fev. 2011. 23 Como o acórdão Winterwerp/Holanda, de 24 de Outubro de 1979, que trata de caso paradigmático por ser o primeiro “a versar sobre a temática dos doentes mentais e do internamento compulsório”. Decisão cumprida pela Holanda e que posteriormente foi aplicada aos demais integrantes da Comunidade Europeia. GONÇALVES, Pedro Correia. O Estatuto Jurídico do Doente Mental com referência à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Lisboa: Quid Juris. 2009, pp. 41-42.

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Recentemente, a CIDH decidiu, no caso Araguaia, que os crimes cometidos pelos agentes do Estado, durante a ditadura brasileira (1964-1985), são crimes contra a humanidade. Logo, imprescritíveis e não anistiáveis. A Corte anulou a eficácia da Lei de Anistia brasileira, que tinha sido convalidada pelo STF, na ADPF n. 15324 ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil, que por ser signatário da Convenção Americana sobre Direito Humanos é obrigado a cumprir a decisão da Corte. Houve manifestação por parte do Ministério das Relações Exteriores que afirmou que irá cumprir a decisão. É importante lembrar que o Brasil tem um sonho de ter uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU. Esse sonho perderia força se não cumprisse as determinações internacionais, além de não querer criar problemas internacionais. Com o implemento da Emenda Constitucional n. 45/2004, o sistema jurídico brasileiro foi totalmente modificado, pois erigiu os tratados internacionais de direitos humanos à categoria de emendas constitucionais. Assim, a Justiça internacional está acima da jurisdição brasileira, em matéria de direitos humanos. Esse é o sistema do “international concern”, tendo sido abandonado o “domestic affair”.25 Assim, equivocou-se duplamente o Ministro Nelson Jobim26. Primeiramente ao afirmar que a Corte não podia examinar crimes anteriores a 1998, pois crimes 24 Em outubro de 2008, a Ordem dos Advogados do Brasil interpôs uma ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental mediante a qual solicitou ao Supremo Tribunal Federal que confira à Lei de Anistia uma interpretação conforme com a Constituição de modo que declare que a anistia concedida por essa lei aos crimes políticos ou conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes de repressão contra opositores políticos, durante o regime militar. 25 “Os direitos humanos tornam-se objeto de interesse internacional, que extrapola a competência exclusiva dos Estados. Essa evolução somente foi possível graças à existência de mecanismos que permitiam a compatibilização e a prevenção de conflitos entre as jurisdições nacionais e internacionais. A proteção internacional dos direitos humanos assume, sob esse aspecto, função subsidiária, pois cabe aos Estados a tarefa de promovê-la no plano interno”. AMARAL JUNIOR, Alberto do. A institucionalização dos direitos humanos: conquistas e desafios. In: Direitos humanos, globalização econômica e integração regional: desafios do direito constitucional internacional. PIOVESAN, Flávia. (Coord). São Paulo: Max Limonad, 2002, pp. 644-645. 26 CANTANHÊDE, E. General que falou de desaparecidos errou, afirma Jobim. Folha de São Paulo, São Paulo, p. A8, 09 jan. 2011. volume

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de desaparecimento de pessoas são permanentes, podendo ser examinados em qualquer tempo; e em um segundo momento ao afirmar que a CIDH não tem jurisdição sobre o STF. A esse respeito Norberto Bobbio ensina que entre os direitos humanos [...] há direitos com estatutos muito diversos entre si. Há alguns que valem em qualquer situação e para todos os homens indistintamente: são os direitos acerca dos quais há a exigência de não serem limitados nem diante de casos excepcionais, nem com relação a esta ou àquela categoria, mesmo restrita, de membros do gênero humano (é o caso, por exemplo, do direito de não ser escravizado e de não sofrer tortura). Esses direitos são privilegiados porque não são postos em concorrência com outros direitos, ainda que também fundamentais27.

Relativamente à transnacionalidade Dalmo de Abreu Dallari entende que Os direitos fundamentais da pessoa humana são reconhecidos e protegidos em todos os Estados, embora existam algumas variações quanto à enumeração desses direitos, bem como quanto à forma de protegê-los. Esses direitos não dependem da nacionalidade ou cidadania, sendo assegurados a qualquer pessoa 28.

Portanto, como decorrência da transnacionalidade Carlos Weiss conclui que “se à pessoa não forem garantidos os direitos fundamentais, tem a ordem internacional o dever de intervir, em face do caráter transcendental dos direitos humanos29”. Eis a declaração do Ministro Cesar Peluso, Presidente do STF, que no dia 18.01.11, disse: “Nenhuma corte internacional tem competência para rever, cassar, reformar ou interferir em qualquer decisão do STF” (O Globo de 19.01.11, p. 5). 27 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992, p. 20. 28 DALLARI, Dalmo de Abreu. O que são direitos da pessoa. São Paulo: Abril Cultural/ Brasiliense. Coleção Primeiros Passos – 14. 1984, p. 22. 29 WEISS, Carlos. Direitos Humanos Contemporâneos. 2 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 176.

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As declarações do Ministro Nelson Jobim e do Ministro Presidente do STF, Cezar Peluso, em país mais civilizado, gerariam um transtorno internacional gigantesco e inenarrável. Seria o caso de ministros europeus dizendo que seu país não vai cumprir uma decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos.30. As decisões do CIDH são obrigatórias (não puramente morais ou políticas), pois o Sistema Interamericano de Direitos Humanos está acima da jurisdição brasileira. Assim, foi determinada pela CIDH a investigação de todos os crimes contra a humanidade cometidos por agentes públicos do Estado Brasileiro, determinação que deve ser cumprida pelo Estado Brasileiro31. Essa decisão da Corte consagra o processo de universalização dos Direitos Humanos iniciado após a Segunda Guerra mundial, quando os Direitos Humanos tornam-se uma legítima preocupação internacional, encerrando-se a concepção de que a forma como o Estado tratava seu povo era concebida como um problema de jurisdição doméstica devido à soberania. A necessidade de implementação dos Direitos Humanos mediante a criação de um sistema internacional de monitoramento e controle não substitui os tribunais internos e não são tribunais de recurso ou cassação, mas os atos internos dos Estados podem vir a ser sim, objeto de exame dos tribunais internacionais, dessa forma a relação do Estado com os seus nacionais passa a ser uma problemática internacional. Neste sentido, a Corte entendeu que o exame da Lei de Anistia para saber se está de acordo com a Constituição Nacional do Estado é questão de direito interno que não lhe compete, porém é sua competência e dever realizar um controle de

30 GOMES, Luiz Flávio. Crimes da ditadura: glorificação, vergonha e retaliação. Disponível em: . Acesso em: 12.02.2011. 31 Nas palavras de Alberto do Amaral Junior: “A soberania deixa de ser vista como capa protetora para os governantes que cometem graves violações dos direitos humanos. O uso do principio da não-ingerência para acobertar crimes contra a humanidade é desacreditado, à medida que o direito de olhar parece servir de fundamento à ideia de responsabilidade sem fronteira”. AMARAL JUNIOR, Alberto do. A institucionalização dos direitos humanos: conquistas e desafios, p. 648. In: Direitos humanos, globalização econômica e integração regional: desafios do direito constitucional internacional. PIOVESAN, Flávia. (Coord). São Paulo: Max Limonad, 2002. volume

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convencionalidade, ou seja, analisar a compatibilidade, ou não, daquela lei com as obrigações internacionais do Brasil contidas na Convenção Americana. Assim, a Corte entendeu que as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana e não podem ser obstáculo para a investigação dos fatos nem para a identificação e punição dos responsáveis. Portanto o Brasil deve realizar a investigação penal dos fatos ocorridos durante a ditadura militar, com o objetivo de esclarecê-los, determinar as responsabilidades penais e aplicar as devidas sanções. Nesse sentido, é o entendimento de Célia Rosenthal Zisman: As normas internacionais, sejam particulares ou comunitárias, consagrando o direito internacional consuetudinário, há que ser obrigatórias quando se trata da proteção da dignidade da pessoa. A obrigatoriedade seria de aplicar as normas comunitárias que tratam de proteger os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa, independente do que prevê a norma constitucional interna.(...). Uma vez que a soberania não é sinônimo de poder absoluto, o ordenamento estatal se submeteria ao principio da dignidade da pessoa, estabelecido pela ordem internacional por meio da formalização do direito internacional consuetudinário, independentemente do reconhecimento32.

O direito na era da pós-modernidade mudou completamente sua característica. Toda lei, hoje, está sujeita a dois tipos de controle (vertical)33: de constitucionalidade e de convencionalidade. O STF fez o primeiro controle (e validou a lei). A CIDH celebrou o segundo (e declarou inválida referida lei de anistia)34. 32 ZISMAN, Célia Rosenthal. O principio da dignidade da pessoa humana. São Paulo: IOB Thomson. 2005, pp. 268-269. 33 A esse respeito Valério de Oliveira Mazzuoli ensina que “[...] a ordem jurídica da sociedade internacional difere da ordem interna estatal por estar estruturada de forma horizontal, sem conhecer poder central autônomo com capacidade de criação de suas normas jurídicas e que garanta a sua efetiva aplicação, a exemplo do que ocorre no âmbito do ordenamento jurídico interno”. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 2 ed. ver., atual.e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2007, p. 33. 34 GOMES, Luiz Flávio. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Presidente Peluso equivocadamente nega força da decisão da Corte Interamericana. Disponível em:. Acesso em 12 fev 2011. 35 Corte IDH., Caso Gomes Lund e outros (guerrilha do Araguaia) VS. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010. Trecho do voto do juiz ad hoc Roberto de Figueiredo Caldas, parágrafos 30 e 31, p.8-9. Disponível em: < http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/ seriec_219_por.pdf>. Acesso em 13 fev. 2011. 36 GOMES, Luiz Flávio. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Presidente Peluso equivocadamente nega força da decisão da Corte Interamericana. Disponível em:. Acesso em 12 fev 2011. volume

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Não há mais como admitir que o Brasil ratifique tratados de direito humanos e se recuse a aceitar o aparato normativo internacional de garantia, implementação e fiscalização desses direitos. Superar esta postura de recuo e retrocesso é fundamental à plena e integral proteção dos direitos humanos no âmbito nacional37.

Nas palavras de Norberto Bobbio “Os direitos do homem nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais38”. Não seria o momento do Estado Brasileiro buscar a concretude da parte final dessa afirmação? 4. conclusões Como visto no presente estudo, o processo de universalização e internacionalização dos Direitos Humanos trouxe a necessidade de implementação desses mediante a criação de um Sistema Internacional de proteção, monitoramento e controle, o qual foi dividido em Sistema Global de proteção e Sistema Regional de proteção. Os Sistemas de proteção não substituem os tribunais internos, ao contrário atuam de maneira complementar e indivisível, porém os atos internos dos Estados podem vir a ser objeto de exame dos tribunais internacionais O Sistema Internacional de Proteção da Pessoa Humana, ao longo do tempo, foi se aperfeiçoando e complementando, fazendo surgir um novo ramo do Direito Internacional: o Direito Internacional dos Direitos Humanos. A primazia do direito internacional sobre o direito interno demonstra ser uma solução necessária ao progresso e ao desenvolvimento do direito internacional, de acordo com a nova tendência constitucional contemporânea. O Brasil ao se tornar signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos submeteu-se à jurisdição do Sistema Interamericano, ou seja, aos Relatórios da Comissão Interamericana e às sentenças da Corte Interamericana. 37 PIOVESAN, Flavia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad. 1998, p. 76. 38 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 30.

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As decisões da CIDH são, portanto, obrigatórias e vinculantes ao Brasil, pois o Sistema Interamericano de Direitos Humanos está acima da jurisdição brasileira. Nos dois casos analisados, nos quais o Brasil foi condenado pela Corte, constatou-se que não houve o cumprimento total pelo Estado Brasileiro das decisões contidas nas sentenças, inclusive com argumentos exarados pelo Supremo Tribunal Federal. Tal posicionamento confirma a tradição brasileira de assinar e aderir a Tratados Internacionais que versem sobre Direitos Humanos, mas pouco fazer para dar-lhes efetividade prática. 5. referências AMARAL JUNIOR, Alberto do. A institucionalização dos direitos humanos: conquistas e desafios, pp. 644,645. In: PIOVESAN, Flávia. (Coord). Direitos humanos, globalização econômica e integração regional: desafios do direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 2002. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2010. CANTANHÊDE, E. General que falou de desaparecidos errou, afirma Jobim. Folha de São Paulo, São Paulo, p. A8, 09 jan. 2011. COMPARATO, Fábio Konder. Afirmação histórica dos direitos humanos. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2004. Corte IDH., Caso Gomes Lund e outros (guerrilha do Araguaia) VS. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010. Trecho do voto do juiz ad hoc Roberto de Figueiredo Caldas, parágrafos 30 e 31, p.8-9. Disponível em: < http:// www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf>. Acesso em 13 fev. 2011. DALLARI, Dalmo de Abreu. O que são direitos da pessoa. São Paulo: Abril Cultural/Brasiliense. Coleção Primeiros Passos – 14. 1984. GOMES, Luiz Flávio. Crimes da ditadura: glorificação, vergonha e retaliação. Disponível em: . 12.02.2011.

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GOMES, Luiz Flávio. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Presidente Peluso equivocadamente nega força da decisão da Corte Interamericana. Disponível em:. Acesso em 12 fev 2011. GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Crimes da ditadura militar. São Paulo: Editora Livraria dos Tribunais, 2011. GONÇALVES, Pedro Correia. O Estatuto Jurídico do Doente Mental com referência à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Lisboa: Quid Juris. 2009. LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das letras, 1988. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 2ª ed. ver., atual e ampl., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. MEZZAROBA, Orides; MONTEIRO, Cláudia Sevilha. Manual de metodologia da pesquisa no direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998. _______. Direitos Humanos e justiça internacional. São Paulo: Saraiva, 2007. _______. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. REZEK, Jose Francisco. Direito internacional público. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural de direitos humanos. São Paulo: Revista Lua Nova, 1997, v. 39, p. 105-123. SILVEIRA, Vladmir Oliveira; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos Humanos: conceitos, significados e funções. São Paulo: Saraiva, 2010. SILVEIRA, Vladmir Oliveira. NASPOLINI SANCHES, Samyra Haydêe Dal Farra. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos e a sua relação com 52

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o diálogo entre jurisdições frente a uma concepção contempor ânea de direitos humanos: ainda a questão da anistia no br asil Andréa Regina de Morais Benedetti1 Tatyana Scheila Friedrich2

Resumo Este artigo propõe que, à luz de uma concepção contemporânea de direitos humanos, a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) deve prevalecer sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), no Brasil, no caso da Lei de Anistia. Para tanto, divide-se em três partes: delimita o que se entende por uma concepção contemporânea de direitos humanos; analisa aspectos importantes do diálogo de jurisdições, com ênfase no sistema americano de proteção de direitos humanos; e, por fim, expõe os argumentos que demonstram a necessidade de revisão da Lei de Anistia no país. A concepção contemporânea de direitos humanos traz o argumento da dignidade humana, enquanto mínimo ético irredutível alcançado no pós-guerra, que relativiza a soberania do Estado. Esta relativização de soberania atrai para o Estado a responsabilidade internacional e abre espaço, inclusive, para o diálogo entre jurisdições. Neste diálogo, muitos desafios são enfrentados, especialmente na seara da efetividade da proteção dos direitos humanos no sistema interamericano, face à atuação dos juízes internamente. A questão da Lei de Anistia no Brasil é problematizada por se entender que o emblemático caso é, até o momento, o maior obstáculo que o diálogo entre Jurisdições no Brasil precisará enfrentar. 1 Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Docente da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Membro do Núcleo de Pesquisa em Direito Público do Mercosul (NUPESUL). E-mail: deiabenedetti@ hotmail.com. 2 Doutora. Professora de Direito Internacional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Membro do Núcleo de Pesquisa em Direito Público do Mercosul (NUPESUL). Apoio: Itaipu Binacional e Fundação Parque Tecnológico Itaipu-Brasil pelo convênio nº 4500021500. E-mail: [email protected] volume

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Palavras-chave Diálogo de jurisdições; Direitos Humanos; Anistia.

Abstract Based on a contemporary conception of human rights, this article proposes that the decision of the Inter-American Court of Human Rights should prevail over the decision of the Brazilian Supreme Court related to the Amnesty Law. For this purpose, it is divided into three parts: defines what a contemporary conception of human rights means; analyzes important aspects of the dialogue between jurisdictions, with emphasis on the Inter-American human rights system protection; and finally presents the arguments that demonstrate the need for Brazilian Amnesty Law review. The contemporary conception of human rights brings the argument of human dignity, as an irreducible and ethical minimum, achieved in post-war, which relativizes state sovereignty. This sovereignty relativization draws for the state the international responsibility and allows the dialogue between jurisdictions. In this dialogue, many challenges are faced, especially those related to the effectiveness of the protection of human rights in the Inter-American system. Moreover, the performance of internally judges is a challenge. Study the issue of the Amnesty Law in Brazil is important because it is, so far, the biggest obstacle that dialogue between jurisdictions in Brazil need to overcome.

Key words Dialogue between Jurisdiction; Human Rights; Amnesty. 1. introdução O presente artigo pretende demonstrar que, à luz de uma concepção contemporânea de direitos humanos, a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos na questão da Lei de Anistia no Brasil, deve prevalecer sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal. Para tal empreitada, divide-se em três momentos. Primeiramente, descreve o que entende por uma concepção contemporânea de direitos humanos. Neste passo, situa a dignidade da pessoa humana enquanto 56

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mínimo ético irredutível e unificador, que faz frente até mesmo à questão do relativismo cultural. Da dignidade perdida na Segunda Guerra e, reencontrada (ao menos) no discurso da Declaração Universal de Direitos Humanos, decorre a relativização da soberania dos Estados, o que faz surgir, em progressiva expansão, a responsabilização internacional dos mesmos perante órgãos jurisdicionais supranacionais. Na sequência, de modo sumário, analisa alguns aspectos importantes do diálogo de jurisdições, com ênfase no sistema interamericano de proteção de direitos humanos. Neste ponto, colaciona alguns dos principais desafios a serem enfrentados na harmonia/dissonância entre as Cortes, especialmente o tema da efetividade do sistema interamericano no que concerne à atuação dos juízes internamente. Por fim, problematiza a questão da anistia no Brasil. Isso porque entende que no emblemático caso do julgamento da Lei de Anistia, encontra-se até o momento, o maior obstáculo que o diálogo entre jurisdições, no Brasil, precisará enfrentar. A questão envolve definir se a Lei n° 6.683, conhecida como Lei de Anistia, promulgada no ocaso do regime militar no Brasil, anistiou ou não os agentes políticos responsáveis por crimes durante a ditadura e sua recepção pela nova ordem constitucional. Posta a discussão à análise do Supremo Tribunal Federal (STF), a Corte Constitucional brasileira entendeu, em 29 de abril de 2010, que a lei anistiou também os torturadores que atuaram contra movimentos de resistência à ditadura militar, como fruto de um acordo político. Em 24 de novembro de 2010, contudo, no caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) versus Brasil, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que possui jurisdição obrigatória no país, por aplicar a Lei de Anistia como empecilho à investigação, julgamento e punição dos crimes de violação de direitos humanos e garantias judiciais ocorridos durante a ditadura militar. Frente a este choque de decisões, o artigo enfrenta o argumento da Corte interna acerca da transição conciliada, com vistas a demonstrar que esta racionalidade volume

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não sobrevive ao crivo da concepção contemporânea de direitos humanos. A decisão interna ainda pode ser revista, haja vista restarem pendentes de julgamento embargos declaratórios opostos à ADPF 153. A decisão internacional, ao seu turno, carece de efetivo e total cumprimento no Brasil e a questão do diálogo entre jurisdições está definitivamente, na ordem do dia. 2. a concepção contempor ânea de direitos humanos O instigante debate sobre a proteção universal dos direitos humanos gravita em torno da busca de argumentos racionais, válidos em todas as culturas, acerca de seu fundamento, não encontrando concordância entre as concepções relativistas e universalistas. Universalistas como John Rawls, Jürgen Habermas, Norberto Bobbio e Luigi Ferrajoli propugnam a existência de uma moral geral, universal, baseada em valores comuns aos diversos agrupamentos humanos, atemporal e apriorística, corolário da essência humana. Particularistas, como Johann Gottfried Herder, Karl Marx, Otto Bauer, Giorgio Agamben e Michel Walzer, cada qual a seu modo, levam em conta questões locais, de modo que reconhecem uma dimensão individual e universal em cada indivíduo, decorrente de sua própria humanidade, mas sempre vinculada “a dimensão social ou coletiva que se forma no âmbito da comunidade política com a qual o indivíduo compartilha memórias, valores e perspectivas de futuro”. (WALZER, 2003, p. 19). A celeuma envolve saber, em síntese, se os direitos humanos têm como titulares todos os homens, sem exceção, ainda que inseridos em contexto cultural diverso. É um debate de fôlego, que pode ser balanceado em gradações, como propõe Jack Donelly (2003)3 ou mesmo se apoiar na “racionalidade de resistência” de Herrera Flores (2002), que apresenta um universalismo de contrastes, de mesclas, que propõe a inter-relação e não a superposição. 3 Jack Donnelly (2003, p. 110) propõe uma gradação dos níveis do universalismo e do relativismo em universalismo fraco; universalismo forte; universalismo radical; relativismo fraco; relativismo forte e relativismo radical.

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O presente artigo não despreza a riqueza da discussão, mas prefere partir da estação seguinte, proposta por Norberto Bobbio, para quem “não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual sua natureza e seu fundamento, se são naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual o modo mais seguro para garanti-los e impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados” (BOBBIO, 2004, p. 25). Tendo como pano de fundo, pois, a efetiva proteção dos direitos humanos, impende analisar a concepção contemporânea de direitos humanos e, a partir dela, evidenciar o modo pelo qual, o reconhecimento da dignidade humana como um mínimo ético intangível relativizou a soberania dos Estados, oportunizando o, hoje presente, diálogo de jurisdições. Tem-se, pois, que o Direito Internacional dos Direitos Humanos se edifica tendo como base a dignidade humana. Trata-se de um valor que se revela na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que pressupõe o respeito por parte das demais pessoas. É um mínimo intangível de proteção a que faz jus o ser humano, sendo a “síntese, a substância, o enunciado de todos os valores morais e espirituais [...] o qual compõe também a alma da democracia e dos direitos do homem” (BONAVIDES, 2008, p. 19). Não por acaso, portanto, o afloramento do Direito Internacional dos Direitos Humanos se dá no pós-guerra. Foi no contexto de indignação posterior à Segunda Guerra Mundial, em reação ao nazismo e ao fascismo, que a dignidade da pessoa humana ascendeu ao plano interno e internacional, como valor máximo dos ordenamentos jurídicos. A destruição completa do piso da dignidade humana, com os sofrimentos indizíveis impingidos ao outro, sobretudo na Segunda Guerra Mundial, forçaram um comportamento de proteção do ser humano. “A terrível facilidade com que milhares de pessoas – não apenas alemãs, diga-se, mas de diversas nacionalidades europeias – abraçaram a ideia de que o extermínio puro e simples de seres humanos podia consistir em uma política válida de governo” (BARCELLOS, 2000, p. 161) alterou o modo de pensar o Direito. O Direito Internacional dos Direitos Humanos, forjado no pós-guerra, desenvolveu-se a partir da crença que as terríveis violações à dignidade humana volume

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poderiam ter sido minimizadas se existisse um efetivo sistema de proteção internacional de direitos humanos, com valores que transcendessem os interesses puramente estatais. (BUERGENTHAL, 1988, p 17). Celso Lafer (1988, p. 20-22), analisando Hannah Arendt, assevera que “o valor da pessoa humana enquanto ‘valor-fonte’ da ordem de vida em sociedade encontra sua expressão jurídica nos direitos fundamentais do homem” e guarda relação direta com a cidadania enquanto princípio substantivo, ou seja, a possibilidade de que o ser humano, ainda que privado de seu estatuto político, “seja tratado pelos Outros como um semelhante”. Assim, como herança deste marco histórico o direito constitucional e o direito internacional receberam a centralidade da pessoa humana nos sistemas jurídicos. E isto se justifica tendo em vista que “Direito Internacional e Direito Constitucional, em sintonia, atuam como instrumentos para a exteriorização do elenco de direitos, garantias e deveres que devem ser respeitados para se realizar a concreta efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana”. (FRIEDRICH, 2008, p. 21). Ademais, dentre os fatores relevantes que contribuíram para que se fortalecesse o processo de internacionalização dos direitos humanos, o mais importante “foi a maciça expansão de organizações internacionais com propósitos de cooperação internacional”. (PIOVESAN, 2010, p. 130). Assim, na surge uma nova ordem internacional, preocupada com a manutenção da paz mundial, a segurança internacional e a consequente proteção dos direitos humanos mundialmente. Tal movimento de internacionalização dos direitos humanos é consolidado com a Carta das Nações Unidas de 1945 ondem definitivamente, “ a relação de um Estado com seus nacionais passa a ser uma problemática internacional, objeto de instituições internacionais e do Direito Internacional.” (PIOVESAN, 2010, p. 135). Ainda, a adoção da Declaração Universal de Direitos Humanos em 1948 estabeleceu, dada sua ampla aprovação, uma plataforma comum de ação, consolidando uma ética universal e consagrando “um consenso sobre valores de cunho universal a serem seguidos pelos Estados” (PIOVESAN, 2010, p. 143), delineando uma ordem pública mundial fundada no respeito à dignidade humana e conjugando liberdade e igualdade. 60

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É o que Flávia Piovesan (2010) qualifica como o estabelecimento de um paradigma ético capaz de restaurar a lógica do razoável, em face da negação total do valor da pessoa humana como fonte de Direito no Estado Totalitário, cunhando a expressão concepção contemporânea de direitos humanos. É assim, pois, que se configura a concepção contemporânea de direitos humanos, com o ser humano ocupando a centralidade do discurso e do sistema e, disto decorrendo a relativização da soberania, haja vista sua proteção deixar de ser estritamente doméstica e passar a ter relevo internacional. A universalidade e a positividade dos direitos fundamentais e humanos são a marca desta concepção. E deste novo paradigma também decorre a criação de cortes judiciais supranacionais, estabelecidas diante da nova conformação da sociedade, que passou a ser complexa, globalizada, com intensa circulação de pessoas, mercadorias e serviços entre os Estados, fatores que terminaram por relativizar o conceito por muito tempo tido como absoluto: a soberania (KOLLER, 2003, p. 322-334). A chamada relativização da soberania abriu espaço a novas interações entre os Estados, que juntos buscam discutir e solucionar problemas comuns e a disciplinar as novas relações sociais emergentes. Desta queda de barreiras transnacionais, o padrão de interação e defesa global dos direitos humanos ganhou força pois, como já repisado, o gênero humano passa a ser o centro e a pessoa, sua dignidade e seus direitos fundamentais romperam os limites do território e passaram a exigir uma nova instância de proteção, agora internacional, em sede de direitos humanos. E mais, do Direito Internacional decorrem regras que, ainda que de natureza costumeira, não inibem a aplicação de sanções às suas violações, de modo que o princípio fundamental que norteia a matéria é o de que toda violação do direito internacional – ato ilícito internacional – gera a responsabilidade internacional do Estado que a cometeu. E sendo a responsabilidade internacional um princípio reconhecido na jurisprudência internacional, desde a pretérita Corte Permanente de Justiça Internacional, reiterado pela Corte Internacional de Justiça, os Estados são, na prática, obrigados a observá-lo. volume

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Assim, esta cessão de espaço da soberania em favor da pessoa humana traz uma possibilidade, própria de uma concepção contemporânea de direitos humanos, jamais vista na história da proteção da pessoa. O Estado passa a responder fora de suas fronteiras e de seu domínio, por atos praticados internamente, contra seus outrora súditos, hoje tidos como cidadãos. Neste sentido, o princípio fundamental que norteia a matéria é o de que toda violação do direito internacional – ato ilícito internacional – gera a responsabilidade internacional do Estado que a cometeu. A análise do tema da responsabilidade internacional envolve, então, quatro elementos: a) uma conduta do Estado; b) a imputabilidade desta conduta ao Estado; c) a existência de um dano e d) o nexo de causalidade, ligando a conduta do Estado ao dano causado (TEIXEIRA, 2007, p. 38). Ademais, a responsabilidade internacional pode ser atribuída em face de condutas comissivas e omissivas do Estado e pode ser direta (ação ou omissão dos próprios órgãos e agentes do Estado) ou indireta (ação ou omissão da administração indireta), nos mesmos moldes que a responsabilidade interna (MIRANDA, 2010), assemelhando-se muito à responsabilidade civil, prevista na ordem nacional. Assemelha-se, por certo, mas aqui decorre de atos regidos pelo Direito internacional, podendo ser atribuída a qualquer dos poderes do Estado, ainda que no cumprimento da sanção seja ele, o Estado, que venha a responder. Deste modo, é entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, por exemplo, que a distribuição de competências na ordem interna e o princípio da separação dos poderes “são da maior relevância no âmbito do direito constitucional, mas no direito internacional não passam de fatos que não incidem na configuração da responsabilidade internacional do Estado” (SOUZA; DA ROS, 2005, p. 57). A responsabilidade internacional pode ser dar ainda, por atos no interior do Estado (regra) ou dentro de outro ente, especialmente quando se trata de ocupação de outro território (MIRANDA, 2010). Em resumo, a responsabilidade internacional é tema de interesse de todos os Estados e se relaciona diretamente com a defesa dos direitos humanos já que a todos interessa preservar um piso mínimo de dignidade humana. 62

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Em síntese, a marca da concepção contemporânea de direitos humanos é o reconhecimento da dignidade humana como valor inexpugnável, a relativização da soberania dos Estados, ante a necessidade de proteção internacional da pessoa e a consequente institucionalização de Cortes Internacionais, como instrumento de garantia desta proteção, sempre temperados pelo princípio da tolerância, como observa Melina Fachin (2008, p. 171). Se as Cortes supranacionais constituem uma realidade presente, sem prejuízo da atuação das Cortes Constitucionais de cada país, cumpre analisar, doravante, em que termos se dá o diálogo entre as jurisdições interna e internacional, para posterior discussão sobre a Lei de Anistia. 3. diálogo de jurisdições A necessidade de uma ação internacional impulsionou a criação dos sistemas global e regionais de proteção dos direitos humanos, tornando possível a efetiva responsabilização dos Estados no âmbito internacional. Em termos de órgãos jurisdicionais de âmbito global, a Organização das Nações Unidas (ONU), por meio de seu principal órgão Judiciário, a Corte Internacional de Justiça4, só atua em litígios em que as partes sejam Estados (MELLO, 2004, p. 685). O homem e as organizações internacionais não podem se submeter, diretamente, à Corte Internacional de Justiça. A concepção contemporânea de direitos humanos admite, contudo, a tese de que o indivíduo possui a faculdade de recorrer a instâncias internacionais para assegurar o respeito aos direitos humanos, após esgotar os recursos internos em que poderia se valer para garantir estes direitos. Resta consagrada, portanto no campo do direito internacional, a inclusão do indivíduo como sujeito de direito internacional, ocupando lugar de destinatário direto de normas jurídicas internacionais, que lhe outorgam direitos específicos e capacidade processual - ainda que limitada - de comparecer perante Cortes e 4 “Devemos assinalar inicialmente que a palavra ‘principal’ significa não ser ela o único tribunal”. O artigo 95 da Carta das Nações Unidas declara expressamente que os membros das Nações Unidas poderão submeter seus litígios a outros tribunais (MELLO, 2004, p. 682). volume

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comissões internacionais, denunciando a violação de seus direitos (LEDESMA, 1992, p. 21-22). Assim, a admissão de denúncias de pessoas ou grupos contra um Estado perante uma instância internacional exige o reconhecimento de personalidade jurídica internacional, razão pela qual, também para Basso (1986, p. 50) merece aceite a tese de que o homem é sujeito de direito internacional, também esta uma marca da concepção contemporânea de direitos humanos. Tem-se, ainda, que na ordem internacional, as experiências do Tribunal de Nuremberg, bem como dos tribunais ad hoc para a ex-Ioguslávia e para Ruanda e, posteriormente, a criação do Tribunal penal Internacional são os precedentes de proteção dos direitos humanos perante órgãos judiciais internacionais. (PIOVESAN, 2006, p. 33). Destarte, o legado deixado pelo Tribunal de Nuremberg, convocado na forma de um Tribunal Militar Internacional para julgar os criminosos da Segunda Guerra Mundial, segundo Flávia Piovesan (2006, p. 33) se traduz no forte incentivo ao processo de justicialização dos direitos humanos. Nuremberg não apenas consolidou a ideia de limitação da soberania nacional como reconheceu que os indivíduos e não apenas os Estados, possuem direitos assegurados pelo Direito Internacional. Também os Tribunais para a ex-Ioguslávia, instalado em 1993 pelo Conselho de Segurança da ONU para investigar violações do Direito Humanitário cometidas naquele país desde 1991 e o Tribunal ad hoc, instalado em julho de 1994, para julgar os crimes cometidos de janeiro a dezembro de 1994, demonstram a significativa contribuição das Nações Unidas para promoção e proteção dos direitos humanos. Com relação a uma Corte permanente e com jurisdição independente, ainda que complementar às cortes nacionais, em 1998 foi aprovado o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, tendo entrado em vigor em julho de 2002. Considerado um passo de forte expressão na defesa dos direitos humanos em escala global, com conformação inédita na história mundial, deixa patente a responsabilidade primária dos Estados para com a violação de direitos humanos em seu território. De modo subsidiário, todavia, coloca toda a comunidade 64

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internacional como responsável pelo combate e punição a estas violações o que torna a reflexão acerca do diálogo entre as Cortes uma pauta inescapável. Deste modo, ainda que não se tenha um Tribunal Internacional de Direitos Humanos, o sistema global de proteção caminha a passos largos na defesa da pessoa humana. Mas é no bojo dos sistemas regionais de proteção dos direitos humanos, sobretudo Europeu e Americano, que as decisões contra os Estados têm se manifestado em maior proporção e, é neste cenário, que o diálogo entre jurisdições tem apresentado questões de relevo. Neste sentido, são cinco sistemas regionais de proteção de direitos humanos: Europeu, Americano, Africano, Árabe e Asiático. Dentre eles, apenas os sistemas Europeu e Americano contam com Cortes Judiciais instaladas e atuantes. O Sistema Africano inicia seus passos com recente instalação de sua Corte Judicial. Já os Sistemas Árabe e Asiático são incipientes na seara de defesa dos direitos humanos. No que tange à Corte Europeia de Direitos Humanos, seu principal diploma internacional no sistema europeu de proteção dos direitos humanos é a Convenção Europeia de Direitos Humanos, celebrada em Roma em 04 de janeiro de 1950 e elaborada no Conselho da Europa, na sequência das gravíssimas atrocidades e violações dos direitos humanos perpetradas durante a Segunda Guerra Mundial, aqui já referidos. Após modificações em seu sistema inicial, a Corte Europeia funciona com sede em Estrasburgo, na França, permitindo o ingresso direto das vítimas à Corte, com uma jurisdicionalização total do processo de proteção, acompanhada, necessariamente, “pelo direito de qualquer indivíduo que se encontre em um dos Estados-parte, a demandar diretamente contra os Estados ante um Tribunal internacional”. (BICUDO, 2003, p. 228). Já no sistema Americano (ou interamericano) de Direitos Humanos, foi aprovada em 22 de novembro de 1969, na Conferência de São José da Costa Rica, a Convenção Americana de Direitos Humanos, que reproduz a maior parte das declarações de direitos constantes do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966. Com relação aos órgãos de fiscalização e julgamento, a Convenção seguiu, de modo geral, o modelo europeu, criando além de uma volume

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comissão encarregada de investigação dos fatos de violações a suas normas, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, com sede na Costa Rica, em San José, consistente em um tribunal especial para julgar os litígios decorrentes daquelas violações, cuja jurisdição só é obrigatória, no entanto, para os Estados-Partes que a aceitem expressamente (COMPARATTO, 2008, p.372). O Sistema Africano de Proteção de Direitos Humanos, por sua vez, se institucionalizou com a aprovação em Nairóbi, no Quênia, em junho de 1981, na 18ª Conferência de Chefes de Estado e Governo, da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. Tal Carta trouxe como grande novidade a afirmação de que os povos também são titulares de direitos humanos, tanto no plano interno como internacional, sendo que até então a eles só se reconhecia o direito a autodeterminação (COMPARATTO, 2008, p. 395). Em termos judiciais, a Corte Africana de Direitos Humanos foi criada por um protocolo adicional à Carta de Banjul (como também é chamada a Carta Africana de Direitos Humanos) aprovado em junho de 1998, que entrou em vigor em 2004. Possui sede em Arusha, na Tanzânia. Por fim, quanto aos Sistemas Árabe e Asiático de Direitos Humanos, entendese que são incipientes e, apenas para registro, anote-se que em 1945 foi criada A Liga dos Estados Árabes que, em 1994, adotou a Carta Árabe de Direitos Humanos. Tal Carta “reflete a lei islâmica da sharia e outras tradições religiosas (PIOVESAN, 2006, p. 52)”. Quanto à proposta de criação de um sistema regional asiático, por fim, “destaca-se a Carta Asiática de Direitos Humanos, em 1997, sob a forma de uma declaração feita por expressivas ONGs”, endossando princípios como direito ao desenvolvimento sustentável, democracia, paz, dentre outros (PIOVESAN, 2006, p. 52-53). Estes dois sistemas, todavia, não possuem uma Corte jurisdicional implantada. De posse destes dados, percebe-se que o aprimoramento das Cortes Judiciais supranacionais goza de franca expansão. Isto não autoriza, contudo, concluir que o diálogo entre Cortes ocorre de forma tranquila. No âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, em específico, novamente é Flávia Piovesan (2013) quem aponta os principais desafios a serem enfrentados, quais sejam: a universalidade do sistema interamericano, a 66

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independência dos órgãos do sistema interamericano, a jurisdição automática e compulsória da Corte Interamericana, a efetividade do sistema interamericano, a sustentabilidade do sistema interamericano, a adoção de medidas internas visando à plena implementação das decisões internacionais no plano doméstico e o fortalecimento do regime doméstico de proteção dos direitos humanos. Dentre os desafios elencados, no caso do Brasil, a pedra de toque no momento, em termos de diálogo entre jurisdições, parece ser a efetividade do sistema interamericano, dado o conflito das decisões do STF e da CIDH, já referido. Tal efetividade perpassa, ademais, pela postura dos Juízes internamente. Neste sentido, Camilla Capucio (2014) assevera que as responsabilidades do juiz nacional não estão limitadas “à cooperação com os órgãos jurisdicionais internacionais, tampouco à aplicação fática e preponderante da normatividade internacional aos fatos que lhe são apresentados internamente”. A responsabilidade dos juízes nacionais abarcaria “a obrigação de interpretação e concreção do Direito Internacional de maneira sólida, unitária e consistente, observando seus parâmetros autênticos de legitimidade e escapando da tentação de adequá-los aos interesses especificamente nacionais”. Parece simples, mas não é. Primeiramente, a cooperação entre os órgãos jurisdicionais neste nível exige desde logo que se conheça e estude Direito Internacional. Segundo, conhecendo em profundidade a teoria do Direito Internacional e, sobretudo, do Direito Internacional dos Direitos Humanos, exige-se que o Juiz nacional filie-se a esta corrente. Novamente, parece fácil, dada à franca expansão destes ramos do Direito atualmente. Contudo, se assim fosse, não estariam sendo publicadas com regularidade, decisões judiciais que afrontam tratados internacionais, como é o caso do não recebimento de denúncias contra réus acusados de crimes (imprescritíveis) lesa-humanidade. Não é simples, por certo, exigir do juiz a atuação na dupla função nos moldes prescritos por George Scelle5. O Juiz nacional, aquele mesmo convidado a exercer 5 SCELLE (1932, p. 94) defende o instituto do “desdobramento funcional”  (dédoublement fonctionnel), segundo o qual, ante a  falta de estrutura hierárquica institucional da volume

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a função Hercúlea de conferir integridade ao Direito em Dworkin, agora é convidado a fazê-lo sem afrontar as leis internacionais. Beiraria o impossível, não fosse o fato de que a dignidade humana, na concepção contemporânea de direitos humanos, é única, una, indivisível e, portanto, bebe, interna e internacionalmente na mesma fonte. Pois bem, no âmbito do Sistema Americano de Proteção de Direitos Humanos estudos percebem uma abertura para o diálogo entre as Cortes. É o que demonstra a pesquisa de Freitas e Marçal (2014), que analisa o diálogo sob o enfoque da troca de jurisprudências. Os autores examinam as Constituições e Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezue­la e decisões da Corte e entendem que “existe um diálogo trans­constitucional entre a Corte Interamericana de Direitos Humanos e os Estados que compõe o Sistema Interamericano”. Identificam, sobretudo, uma “troca de experiência jurisprudencial no assunto concernente às leis de anistia de crimes cometidos durante a ditadura militar, para utilizar como fundamentação do processo decisório do crime de desaparecimento forçado” (FREITAS E MARÇAL, 2014, p. 226). Ainda, demonstram que a troca de experiências não está limitada à utilização pela Corte, de jurisprudência e legislação dos Estados,” mas também há casos em que as Cortes dos Estados evocam a jurisprudência da Corte Interamericana como fundamento da decisão”. (FREITAS E MARÇAL, 2014, p. 225). Flávia Piovesan (2013, p. 177) destaca, ademais, o chamado “controle de convencionalidade”6, enquanto reflexo de um novo paradigma a nortear a cultura jurídica latino-americana na atualidade: “da hermética pirâmide centrada no State approach à permeabilidade do trapézio centrado no Human rights approach”. Ou seja, “aos parâmetros constitucionais somam-se os parâmetros convencionais, na composição de um trapézio jurídico aberto ao diálogo, aos empréstimos e à interdisciplinariedade, a resignificar o fenômeno jurídico sob a inspiração do human rights approach”. sociedade internacional, um órgão estatal deve se prestar tanto ao Estado como à sociedade internacional, ou seja, os governos nacionais desempenham funções legais e administrativas internacionalmente, constituindo-se em autoridades nacionais e internacionais. 6 No Brasil, sobre o tema da teoria do controle de convencionalidade vide Valério Mazzuoli (2008).

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O diálogo entre as Cortes pressupõe, portanto, o compromisso com as normas de proteção dos direitos humanos. No caso brasileiro o STF pareceu transitar de braços dados com esta filosofia, tanto que reconheceu a supralegalidade dos tratados de direitos humanos, no findar do ano de 2008. Poderia ter ido além, por certo, equiparando os tratados de direitos humanos às normas constitucionais, mas de todo modo, não se divorciou, por completo de uma concepção contemporânea de direitos humanos. O nó górdio, contudo, se apresenta no emblemático caso da Lei de Anistia, configurando-se até o momento, no obstáculo de maior envergadura que o diálogo entre Cortes no Brasil precisará enfrentar. Cabe perquirir, porquê, afinal, a revisão da Lei de Anistia é medida que se impõe, nos termos aqui defendidos. 4. o embate entre cortes no br asil e a revisão da lei de anistia Segundo Flávia Piovesan (2013, p. 18) “Cortes nacionais exercem o controle da convencionalidade na esfera doméstica, mediante a incorporação da normatividade, principiologia e jurisprudência protetiva internacional em matéria de direitos humanos no contexto latino-americano”. Para a autora todos os órgãos do poder estatal se vinculam a um tratado, quando um Estado o ratifica, comprometendo-se a cumpri-lo de boa fé. De posse desta premissa, cumpre analisar o mais recente (e ainda pendente) caso de diálogo (ou dissonância?)7 entre Cortes envolvendo o Brasil: a questão da Anistia. 7 E aqui cabe o importante alerta de André Ramos Tavares (2011) para quem “há tanto harmonia quanto dissonância no encontro das normas internacionais e nacionais. A busca de parâmetros para estimular a harmonia (parâmetros do diálogo das cortes) e mecanismo para contornar o dissenso (a teoria do duplo controle) permite antever um relacionamento mais convergente entre as ordens jurídicas plurais. Sem contar que, se os fenômenos associados à dissonância aumentarem, há sempre o risco da solução de ruptura, que vem a ser a denúncia de tratados e o isolamento do Estado. Claro que esse risco é cada vez menor em países com ambições de protagonismo no plano internacional, como o Brasil, mas já ocorreram casos no passado. No que tange à Corte Interamericana de Direitos Humanos, há o fantasma de Trinidad e Tobago: insatisfeita com as decisões da Corte IDH, Trinidad simplesmente denunciou a Convenção Americana de Direitos Humanos, estando até hoje dela afastada. volume

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A Lei n° 6.683, conhecida como Lei de Anistia, foi promulgada pelo então presidente, João Batista de Figueiredo, em de 28 de agosto de 1979, no seio do movimento social pela anistia ampla, geral e irrestrita aos presos políticos, banidos e exilados, no ocaso do regime militar no Brasil. Nos termos da lei, concedeu-se anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares. A controvérsia envolve a inserção do § 1º, no artigo 1º, que considera conexos, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política sendo que, após o advento da Constituição de 1988, ganhou relevância a discussão pública acerca do alcance da referida lei, no sentido de se estabelecer se houve ou não, anistia aos agentes políticos responsáveis por crimes durante a ditadura e sua recepção pela nova ordem constitucional. Em 21 de outubro de 2008 o Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) propôs, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153 objetivando a declaração pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do não recebimento, pela Constituição Federal do Brasil de 1988, do disposto no § 1º do artigo 1º da Lei n° 6.683/79 (Lei de Anistia). Requereu a OAB ao STF que, dando interpretação conforme a Constituição, declarasse que a anistia concedida pela Lei n° 6.683/79 aos crimes políticos ou conexos, não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes de repressão contra opositores políticos, durante o regime militar no Brasil (1964/1985). Em 29 de abril de 2010 o voto do relator Eros Grau, acompanhado por sete dos nove ministros que participaram do julgamento, levou à improcedência o pedido, decidindo o STF que a lei anistiou também os torturadores que atuaram contra movimentos de resistência à ditadura militar. Evitar a ruptura e estimular a convergência em prol da humanidade é uma tarefa que se impõe aos estudiosos da pluralidade das ordens jurídicas.

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Noutra margem, em instância supranacional, no caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) versus Brasil, em sentença8 proferida em 24 de novembro de 2010, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, pelo desaparecimento forçado de 62 pessoas durante a Guerrilha do Araguaia (1967-1974). Dentre as várias determinações da Corte, o país foi obrigado a “investigar os fatos, julgar e, se for o caso, punir os responsáveis e de determinar o paradeiro das vítimas” e o dever de possibilitar “o acesso, a sistematização e publicação de documentos em poder do Estado” sobre a guerrilha. Com isso, o Brasil foi responsabilizado internacionalmente pela violação de direitos humanos e garantias judiciais nesse conflito ocorrido durante a ditadura militar. O Brasil foi condenado, sobretudo, por violar a Convenção Americana de Direitos Humanos, ao aplicar a Lei de Anistia como “empecilho à investigação, julgamento e punição dos crimes – violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial”. (CIDH, 2010, p. 119-120). Evidente, pois o choque com o entendimento da Corte Constitucional Brasileira. Sobre a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil, indene de dúvidas sua obrigatoriedade, uma vez que o Estado brasileiro reconheceu sua competência em 1998, por meio do Decreto Legislativo n° 89, de 1998, obrigando-se a cumprir suas decisões. Além disso, já havia aprovado a Convenção Americana sobre Direitos Humanos pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 27, de 27 de maio de 1992, promulgado mediante o Decreto nº 678, de 06 de novembro do mesmo ano. Ainda, a Constituição Federal de 1988 dispôs em seu artigo 4º como um dos princípios regentes de suas relações internacionais, a prevalência dos direitos humanos e no § 2º do artigo 5º que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Por fim, a Emenda Constitucional 45/2004 acrescentou ao artigo 5º seu § 3º dispondo que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos 8 Inteiro teor da sentença: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf volume

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que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. Todos estes dispositivos legais apontam para o necessário respeito, pelo Brasil, aos tratados internacionais que assina. Evidenciam o reconhecimento, ao menos legislativo e executivo, pelo Estado brasileiro, da validade prática das normas internacionais de proteção aos direitos humanos. Resta evidente, portanto, a validade daquela decisão internacional no país. Diante deste choque de jurisdições verifica-se, pois, que, materialmente, a análise do tema Anistia no Brasil, foi adequadamente enfrentada pela CIDH, a saber: Conforme já exposto, o cerne da concepção contemporânea de direitos humanos está, sobretudo, no reconhecimento da dignidade humana como valor maior. Ainda, no fato de que o desenvolvimento de um Direito Internacional dos Direitos Humanos se deu, sobretudo, para evitar que novas atrocidades contra o ser humano sejam cometidas, haja vista a crença de que se houvesse um sistema internacional eficaz, os crimes lesa-humanidade do Totalitarismo poderiam ter sido ao menos em parte, evitados. Pois bem, desde logo cabe confrontar o argumento da suposta transação conciliada na saída do período ditatorial no Brasil, na medida em que o já referido voto prescreve que “há momentos históricos em que o caráter de um povo se manifesta com plena nitidez. Talvez o nosso, cordial, se desnude na sucessão das frequentes anistias concedidas entre nós”. Ainda, [...] a expressão crimes conexos a crimes políticos “conta sentido a ser sindicado no momento histórico da sanção da lei. Sempre há de ter sido assim. A chamada Lei de Anistia diz com uma conexão sui generis própria ao momento histórico da transição para a democracia”. (STF, 2010, p. 26;30). No que se refere à afronta ao preceito fundamental da dignidade da pessoa humana e do povo brasileiro, em que se questionava o acordo que permitiu a transição do regime militar ao Estado de Direito o voto declara que “trata-se, também neste ponto, de argumentação exclusivamente política, não jurídica, argumentação que entra em testilhas com a História e com o tempo.” (STF, 2012, p. 21). 72

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Para Grau (STF, 2010, p. 22), questionar a anistia aos torturadores, implica desqualificar fatos históricos que antecederam a Lei de Anistia, ignorando o momento talvez mais importante da luta pela redemocratização do país de modo que “a formidável luta pela anistia é expressiva da página mais vibrante de resistência e atividade democrática da nossa História”. Cabe discordar. Primeiramente porque no fim do período ditatorial, embora presente o movimento pela anistia ampla, geral e irrestrita, a Lei de Anistia não parece ter nascido no seio de uma vontade coletiva, especialmente quanto ao parágrafo primeiro que isentava todos os agentes da repressão de responsabilidade. A livre manifestação da vontade não era uma prática corrente nos anos de chumbo. O discurso carece de fundamentação e afronta a dignidade humana na medida em que consolida a impunidade daqueles perpetraram torturas e mortes, durante o estado de exceção brasileiro. Aquele mínimo ético irredutível da dignidade, propugnado pela visão contemporânea dos direitos humanos não resiste a um julgamento que se imiscui de responsabilizar violadores de direitos humanos. Diante disso, a relativização da soberania autoriza a prevalência da decisão supranacional ao acórdão nacional, sobretudo por estar materialmente harmonizado ao Direito Internacional dos Direitos Humanos. Autoriza, ainda, que magistrados de primeiro grau no país recebam denúncias contra tais violadores, mesmo que em conflito com a decisão da Corte Constitucional brasileira. Autoriza a “reconhecer que a prática de tortura e homicídios contra dissidentes políticos naquele período fazia parte de uma política de Estado, conhecida, desejada e coordenada pela mais alta cúpula governamental”. (BRASIL, 2014). As decisões judiciais internas que reconhecerem a imprescritibilidade de crimes lesa-humanidade, praticados durante o período militar, como um princípio geral de direito internacional incorporado aos costumes internacionais, estará em consonância com valores contemporâneos de direitos humanos, pois, trata-se de verdadeiro ius cogens, que não pode ser ignorado pelos Estados. Em sede de delimitação do conceito de ius cogens, algumas características básicas do instituto podem ser reunidas: deve ser norma imperativa, ou seja, um volume

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direito de imposição, irrecusável. Deve constituir norma de Direito Internacional geral, por seu aspecto universalista. Ainda, “O ‘jus cogens’ exprime valores éticos, que só se podem impor com força imperativa se forem absolutos e universais”. (RODAS, 1974, p. 125). Destarte, o ius cogens deve ser aceito e reconhecido pela comunidade internacional dos Estados no seu conjunto, característica que apresenta duas implicações: a norma de jus cogens precisa do consentimento dos Estados, mas ao mesmo tempo não necessita unanimidade, apesar de não se saber quantos devem aceitá-la e reconhecê-la. Diante dos requisitos acima, percebe-se que a imprescritibilidade dos crimes lesa-humanidade, dada sua flagrante imbricação com a dignidade humana é norma imperativa, absoluta e universal. A intransigência com relação à responsabilização de crimes contra os direitos humanos é medida fulcral para a não repetição dos erros do passado. Qualquer margem de escape para o violador, não se trata de testilha com o tempo e sim de flerte perigoso com a possibilidade de anulação de direitos fundamentais. Possui caráter universalista, portanto. Para exemplificar o quanto é necessário reprimir e punir o erros cometidos no período ditatorial, analise-se a questão não apenas no âmbito da tortura e desaparecimento forçado, que por si só já bastariam a justificar a necessidade de reprimenda que homenageasse também a justiça, a memória e a verdade. Mas outros direitos inerentes à dignidade também foram violados, como a questão da cidadania. Perceba-se, pois que, no âmbito dos direitos de participação política, a simples menção aos Atos Institucionais baixados durante a Ditadura, especialmente o AI-5, vigente até outubro de 1978, pode clarear a questão. Que tipo de debate democrático prévio e transição negociada é possível se verificar após anos de Congresso Nacional em recesso e Assembleias Legislativas fechadas? Como aceitar contemporaneamente que fiquem impunes violadores de toda sorte de direitos encetados como mínimo ético irredutível? Trata-se, portanto, a imprescritibilidade dos crimes no período ditatorial brasileiro, de uma norma de fundamental importância, porque imperativa, aceita e reconhecida pela comunidade internacional. Não por acaso na América Latina 74

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a anistia foi passada a limpo na maioria dos países. Tratando-se, por de ius cogens, nenhum acordo celebrado entre países pode violar essa normas, tampouco uma decisão judicial poderia fazê-lo. Há, pois consentimento dos Estados, em torno de seu reconhecimento. Existe, portanto, uma relação intrínseca entre os direitos humanos e as normas imperativas. As palavras de Cançado Trindade (2001, p. 423-425) ilustram a importância e a força que elas podem representar na luta pela promoção e preservação dos direitos fundamentais de todas as pessoas: En síntesis y como conclusión, nuestro propósito debe residir en definitiva en el desarrollo doctrinal y jurisprudencial de las normas perentorias de derecho internacional (jus cogens) y de las correspondientes obligaciones erga omnes de protección del ser humano, con todas la consecuencias jurídicas en caso de su violación. Mediante este desarrollo lograremos sobreponermos a los abstáculos y dogmas del pasado y crear una verdadera ordre public internacional, y, en última instancia, una cultura universal de respecto y observância de los derechos humanos. Solo así nos aproximaremos a la plenitud de la protección de los derechos inherentes al ser humano.

Noutro giro, o voto do ministro Eros Grau aduz, ainda, que a história é a fonte para entender o contexto em que a Lei da Anistia foi assinada e as razões pelas quais mereceu ser mantida integralmente. A história ,contudo, traz outras páginas que parecem ter sido ignoradas na decisão interna brasileira, sobre a anistia. Não se trata de revanchismo, é importante frisar. “Trata-se, isso sim, de não repetir os mesmos erros cometidos durante o período ditatorial.” (BASTOS, 2009, p. 27). Ora, que tipo de acordo político ou manifestação de vontade poderia florescer no Estado de exceção? Qual a capacidade de reação popular naquele momento, contra a Anistia aos torturadores? O fato é que a defesa intransigente da dignidade humana conduziria a Corte Constitucional a corrigir, ainda que tardiamente, o procedimento democrático capenga e a forma autoritária de formação política da opinião e da vontade forjados na Anistia brasileira. Assim agindo, estaria a Corte Constitucional harmonizada aos preceitos do Direito Internacional, sem qualquer traço de diminuição de sua independência. volume

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Ao contrário, estaria alinhada aos mais altos valores protegidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos. Uma concepção contemporânea de direitos humanos exige uma decisão interna que reconheça a responsabilidade penal dos agentes de Estados perpetradores de crimes contra os direitos humanos. Cinquenta anos separam o STF do golpe miliar e a oportunidade de passar a limpo a história deste período obscuro está no reconhecimento (ainda que em sede de embargos) que a prática de tortura e morte contra dissidentes políticos era parte da política de Estado. O reconhecimento da imprescritibilidade de crimes de lesa-humanidade como um princípio geral de direito internacional, é medida que se impõe. 5. conclusões Deve a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos prevalecer sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal, na questão da Lei de Anistia, no Brasil? Pelas lentes da concepção contemporânea de direitos humano sim. A dignidade da pessoa humana, catapultada à centralidade do discurso jurídico em termos de direitos humanos a partir da Segunda Guerra, é o mínimo ético irredutível que faz frente, até mesmo ao relativismo cultural. Tamanha é a força da dignidade humana que, se é capaz de fazer frente até mesmo as dimensões culturais que distinguem os povos, como não seria hábil a reparar erros do passado? O STF já perdeu o primeiro round na batalha da Anistia ao atrair para o Estado brasileiro a responsabilidade internacional perante a CIDH. Caminha-se atualmente para um discurso de vocação universal de proteção dos direitos humanos e as Cortes supranacionais estão aptas a fazê-lo, sempre que o Estado não o fizer. Mas à CIDH pertence, sempre, a última palavra? Não fosse este um tema para outras sendas, arriscaria-se a dizer sim, sempre que, ao contrário do Estado, caminhar de mãos dadas com a dignidade. 6. referências BARCELLOS, A. P. de. Normatividade dos princípios e o princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição de 1988. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 221, p. 159-188, jul./set. 2000. 76

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o diálogo hermenêutico como horizonte de uma nova paisagem no direito: crítica à r acionalidade autoritária dispensada aos tr atados de direitos humanos no br asil Rafael Fonseca Ferreira1 Têmis Limberger2

Resumo O trabalho é guiado por uma análise de caráter fenomenológico-hermenêutica, a partir do referencial teórico de Gadamer e a ideia de diálogo. A dinâmica da pergunta e da resposta numa mediação (contínua) entre o passado e o presente orientado ao futuro, que permitirá o encontro da tradição. Com esta base, desenvolve-se a proposição principal: a necessidade de inauguração de uma nova paisagem para constitucionalização do direito internacional e a internacionalização do direito constitucional, que já deveria ter iniciado, desde a Constituição Federal de 1988. Elabora-se uma crítica dirigida à deficiência teórico-interpretativa, que prevalece calcada no entendimento dominante do Supremo Tribunal Federal, acerca da definição do status hierárquico-normativo da supralegalidade dos tratados e convenções de direitos humanos, a partir da Emenda Constitucional nº 45/2004, que introduziu o § 3º no artigo 5º. Para tanto, procede-se a estudos de caso encontrados na jurisprudência constitucional. Por fim, sob a desconstrução do paradigma hierárquico-normativista, busca-se demonstrar a inadequada compreensão (teórico-normativa) da Constituição, atualmente. Por isso, entende-se que o constitucionalismo destoa de suas possibilidades de transformação da realidade social e de abertura internacional,

1 Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Professor de Hermenêutica e Jurisdição Constitucional na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande – FURG, Rio Grande, RS. e-mail: [email protected] 2 Pós-doutora pela Universidade de Sevilha, doutora pela Universidade Pompeu Fabra de Barcelona, mestra e bacharela pela UFRGS. Professora junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos e Procuradora de Justiça MP/RS. e-mail: [email protected] volume

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pois reduzem o debate do Direito aos argumentos de autoridade e verticalidade do sistema. Propugna-se que existe espaço para o desenvolvimento de outras narrativas, sob uma nova perspectiva de diálogo (hermenêutico) entre as fontes (Constituição, tratados e convenções de direitos humanos).

Palavras-chave Diálogos; Direitos Humanos; Constituição; Tratados Internacionais; Supralegalidade; Internacionalização do Direito.

Resúmen El trabajo está guiado por un análisis de carácter fenomenológico-hermenéutico, desde el marco teórico de Gadamer y la idea del diálogo. La dinámica de la cuestión y de la respuesta en una mediación (continua) entre el pasado y el presente orientado al futuro, lo que permite el encuentro de la tradición. Con esta base, se desarrolla la tesis principal: la necesidad de abrir un nuevo paisaje para la constitucionalización del derecho internacional y la internacionalización del derecho constitucional, que ya debería haber comenzado, desde la vigencia de la Constitución de 1988. Se elabora una crítica de la deficiencia teórico-interpretativa, prevaleciente basada en la comprensión dominante de la Corte Suprema de Justicia, bajo la definición de status jerárquico-normativo de supralegalidad de los tratados y convenciones sobre derechos humanos, por la Enmienda Constitucional Nº 45/2004, que introdujo el § 3º al artículo 5º. Con este fin, se presentan estudios de casos que se encuentran en la jurisprudencia constitucional. Por último, en la deconstrucción del paradigma jerárquico-normativista, se busca enseñar la comprensión insuficiente (teórico-normativa) de la Constitución, en la actualidad. Por eso, se entiende que los enfrentamientos constitucionales, con sus posibilidades de transformación de la realidad social y de apertura internacional, reducen el debate del Derecho a los argumentos de la autoridad y la verticalidad del sistema. Se propugna que existe espacio para el desarrollo de otras narrativas, bajo una nueva perspectiva de diálogo (hermenéutico) entre las fuentes (Constitución, tratados y convenciones de derechos humanos).

Palabras clave Diálogos; Derechos Humanos; Constitución; Tratados Internacionales; Supralegalidad; Internacionalización del Derecho. 82

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1. introdução Primeiramente, é importante esclarecer que as proposições traçadas neste artigo, são partes integrantes de um projeto maior, onde se buscará consolidar em que termos elas são viáveis do ponto de vista hermenêutico (filosófico). Tomar-se-á por vetor investigação a dinâmica da pergunta e da resposta que constitui a ideia de diálogos em Gadamer, onde a estreita relação que se mostra entre perguntar e compreender é a única forma capaz de conferir real dimensão à experiência hermenêutica3. Assim, as críticas hermenêuticas, a seguir lançadas, são uma instigação à necessidade de inauguração de uma nova paisagem (hermenêutica), a qual já deveria ter se iniciado a partir da Constituição de 1988. Porém, em razão do déficit teórico-interpretativo, que contamina o imaginário jurídico dominante no Brasil, as possibilidades do acontecer conteudístico da Constituição e de seus objetivos fundamentais - interno e internacional – em especial, no que diz respeito ao compromisso com os direitos humanos, restam ofuscadas pelas verdades autoritárias, que não se submetem ao crivo da alteridade democrática do conhecimento. Em particular, as críticas se dirigem ao tratamento dispensado aos tratados e convenções de direitos humanos no Brasil, seja por ocasião da introdução do § 3º no art. 5º da Constituição Federal via Emenda Constitucional nº 45/2004, seja por ocasião dos julgamentos proferidos pelo plenário do Supremo Tribunal Federal4 onde restou assentada a tese da supralegalidade (em superação a tese da legalidade ordinária vigente até então) daqueles instrumentos jurídicos num defendido avanço em relação a anterior tese dominante de hierarquia legal. Ou seja, aquilo que era para ser construído, do ponto de vista interpretativo, acabou sendo ‘entificado’ pela emenda constitucional e ‘coroado’ nos julgados referidos, resumindo-se o debate a uma verificação de status normativo ou a uma redução à lógica hierárquico-normativista de cunho liberal-individualista. A presença enraizada de uma matriz liberal e individualista enraizada desde o século XVI, de maneira geral, constituiu-se um empecilho velado 3 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 12ª ed. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 487-9. 4 Cf. Acórdãos dos RE’s 466343/SP e 349703/RS e do HC 87585/TO julgados em 03/12/2008. volume

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para o afloramento de um Direito de caráter mais publicístico, democrático, programático e dirigente como o Direito Constitucional, particularmente, em sua interface internacional, no mais das vezes, bloqueada por discursos ideológicos de soberania e centralidade estatal5, como um paliativo ao dever hermenêutico com os direitos humanos. A busca de um novo caminho que não permita reverberar a premissa hierárquica de conhecimento que se quer excetuar, não pode, por certo, assentar-se numa mesma matriz hegemônico–autoritária, que por si alimenta os discursos ideológicos (de poder) de bloqueio do acontecer das Constituições, especialmente, em países de modernidade tardia como o Brasil. Com efeito, o desafio na busca de resposta à problemática apresentada, encontra no diálogo hermenêutico gadameriano uma dinâmica capaz de proporcionar, a partir da mediação horizôntica entre a tradição e o presente, outra(s) possibilidade(s) democrática(s) de produção de sentido para o tema dos direitos humanos. Diante disso, na construção dessa proposta só haverá sentido em falar em ‘diálogo’ se for com o propósito hermenêutico – em contraponto aos diálogos de sistema de justiça ou interjurisdicionais6 –, isto é, comprometido 5 Cf. BOLZAN DE MORAIS, J. L.; VIEIRA, Gustavo Oliveira. Estado e Constituição em tempos de abertura: a crise conceitual e a transição paradigmática num ambiente intercultural. In Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD). Vol. 5, no. 2, julho-dezembro 2013, p. 133-140. 6 Cf. GARCÍA ROCA, Javier. El diálogo entre el Tribunal Europeo de Derechos Humanos y los Tribunales Constitucionales en la construcción de un orden público europeo. Teoría y realidade constitucional, no. 30. Madrid: ENED, 2012, p. 183-224; ALCALÁ, Humberto Nogueira. Diálogo interjurisdiccional, control de convencionalidad y jurisprudencia del Tribunal Constitucional en período 2006-2011. Estudios Constitucionales, Año 10, Nº 2. ISSN 0718-0195. Centro de Estudios Constitucionales de Chile Universidad de Talca; BUSTOS GISBERT, Rafael. Diálogos jurisdiccionales en escenarios de pluralismo constitucional: la protección supranacional de los derechos en Europa. In Ferrer MacGregor, Eduardo; Zaldívar Lelo de Larrea, Arturo (coord.) La ciencia del derecho procesal constitucional. Estudios en homenaje a Héctor Fix-Zamudio en sus cincuenta años como investigador del derecho, T. IX,: Derechos humanos y tribunales internacionales. México: UNAM/Instituto de Investigaciones Jurídicas, 2008 e Pluralismo Constitucional y Diálogos Jurisprudenciales. México: Porrúa, 2012. BURGORGUE-LARSEN, Laurence. De l’internationalisation du dialogue des juges. Missive doctrinale à l’attention de Bruno Genevois. Le dialogue des juges. Mélanges en l’honneur du président Bruno Genevois, Paris, Dalloz, 2009, pp. 95-130. In http://www.univ-paris1.fr/fileadmin/IREDIES/Contributions_ en_ligne/L._BURGORGUE-LARSEN/M%C3%A9langes/LBL_M%C3%A9langes_ Genevois-1.pdf Acesso em 03 de maio 2014.

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democraticamente com a produção do conhecimento, jamais com a manutenção de uma ideologia hierárquica, de afirmação de espaços de poder e de elitização do debate acerca das conquistas sociais aos fluxos judiciais e ao arrepio da normatividade constitucional. A tarefa hermenêutica será, portanto, o restabelecimento do acordo, a partir do revolvimento do chão linguístico sob o qual está assentada a tradição inautêntica dessas ‘verdades’ legislativas e jurisprudenciais e que contam com a complacência de grande parcela da doutrina, para ao fim, recolocá-las em nova paisagem hermenêutica e diante de outras possibilidades teóricas. 2. a dificuldade de mudança substancial: a redução do direito à lógica hier árquico-normativista e de como os direitos humanos não alcançam a realidade br asileir a A história recente da América Latina, particularmente, a partir das últimas três décadas aponta para uma trajetória de modificação em termos de reconhecimento de uma condição jurídica preocupada com a dignidade da pessoa humana, após a experiência de longos períodos de negação e violação de direitos decorrentes de regimes autoritários e ditatoriais tanto na Europa como na América Latina. Por conta disso, após a Segunda Guerra mundial, em razão da consciência ética introduzida pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) desencadeou no mundo ocidental uma democratização – constitucional – baseada no comprometimento e promoção dos direitos humanos, numa nítida tendência de reconhecimento e assunção de tratados e convenções internacionais e, em última análise, também, na positivação de direitos fundamentais na ordem interna dos Estados. No entanto, o propósito não se resumia à instauração de uma nova realidade baseada na legalidade dos direitos humanos, mas de se materializar política, filosófica e juridicamente as ações de garantia e proteção e onde os instrumentos jurídicos internacionais de direitos humanos atuariam na condição de marcos normativos internacionais com forte influência e condicionamento no/do movimento de constitucionalização democrática do direito internacional. volume

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De fato, essas premissas que integrariam talvez a esperança última depositada naquele que se diz guardião da interpretação constitucional, o Poder Judiciário, foram sufragadas, em mais de uma oportunidade, pela negativa de reconhecer a eficácia automática, plena e constitucional aos tratados de direitos humanos no Brasil. Ao fim e ao cabo, para o Brasil, não há direito internacional, mas, em última ratio, sempre e somente direito interno ou, no máximo, direito internacional ‘nacionalizado’, enfim, a mesma coisa, porém não a coisa mesma! A dificuldade observável está no fato de como as instituições brasileiras lidam com os compromissos internacionais de direitos humanos, onde os poderes políticos e o judiciário, acompanhados de uma doutrina ‘instrumentalista’ (que não doutrina), em face de um notado déficit de constitucionalidade acabam, voluntária ou involuntariamente por violar ou favorecer a violação de direitos humanos (e fundamentais). A ausência de diálogo hermenêutico que permita produzir uma relação coerente entre ordens e fontes jurídicas nesse atual momento interconectado da sociedade mundial ofusca outras possibilidades de efetivação e tratamento democrático dos direitos humanos, hoje, resumidos à lógica verificativa do status hierárquico-normativista dos instrumentos internacionais. Portanto, da tese que confere status de hierarquia legal à tese da hierarquia supralegal dos tratados e convenções de direitos humanos, a única consagração que se pode auferir é a presença linear da herança positivista de matriz kelseniana (normativista) orientada pela presença do Estado como única fonte racional de onde ele emana7 e que las fuentes jurídicas son siempre directamente vinculantes, las no jurídicas no lo son hasta que una forma jurídica positiva no las reconoce como fuentes del Derecho8, onde, nestas condições, o direito internacional não pode ser considerado vinculante9. A partir disso, é possível se defender que a tarefa dos pensadores do Direito deveria caminhar no sentido de demonstrar a necessidade de se desconstruir 7 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 8ª. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 246 et seq. 8 PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. El desbordamiento de las fuentes del derecho. Madrid: La Ley, 2011, p. 21. 9 Cf. LOSANO, Mario G. Sistema e estrutura no Direito. Vol. II: o século XX. Trad. Luca Lamberti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 54-55.

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a realidade reinante para (re)significar a compreensão das (novas) fontes e espaços de atuação e produção da densidade e normatividade jurídicas. E nesse contexto, a adequada compreensão da normatividade da Constituição será o elemento nuclear de qualquer movimento teórico para a internacionalização do Direito e constitucionalização do Direito Internacional, a partir do necessário reconhecimento de um pluralismo jurídico potencializador de novas possibilidades conteudísticas (novos horizontes e parâmetros hermenêuticos) em sede de direitos humanos. 3. de como as pretensões hier árquico-normativistas (e dedutivistas) dominam o imaginário da comunidade jurídica e condicionam o tr atamento dispensado os tr atados e convenções de direitos humanos no br asil A busca pelo desvelamento dos discursos aqui epitetados de hierárquiconormativistas (e dedutivistas) trazem em sua essência a defesa de um controle e da qualidade conteudística, em especial, das decisões judiciais em relação a Constituição e aos Tratados de Direitos Humanos. Trata-se, portanto, de um exercício de aprimoramento da maturidade institucional-democrática voltado para o compromisso com a dignidade da pessoa humana e da autonomia do Direito, pedras fundamentais do constitucionalismo democrático contemporâneo, obscurecidas pelos discursos ideologizantes produzidos sob a herança das ‘racionalidades positivistas’. A Constituição Federal de 1988 inaugurou um novo paradigma normativo ao instituir o Estado Democrático de Direito e ao ter proclamado como seus fundamentos a dignidade da pessoa humana10, a promoção do bem estar social11 e, nas relações internacionais, a prevalência dos direitos humanos e a defesa dos direitos fundamentais, sem exclusão de outros estabelecidos por tratados internacionais que o Brasil seja parte12. 10 Art. 1º, III, CF/1988. 11 Art. 3º, CF/1988. 12 Art. 5º e § 2º, CF/1988. volume

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Diante isso, é preciso convir que não estabeleceu-se qualquer diálogo, especialmente, hermenêutico, com a edição da Emenda Constitucional (EC) nº 45/2004, no que diz respeito à introdução do § 3º no art. 5º da Constituição. A referida emenda é qualificável como um objetivo retrocesso social, considerando os diversos efeitos colaterais os quais vão desde a contradição normativoprincipiológica dentro da própria Constituição, passando pelo (des)compromisso político-jurídico instituído pelo pacto constitucional, chegando-se ao problema hermenêutico do agravamento da cisão (imprópria) entre direitos humanos e direitos fundamentais e problemas sistemáticos como a dicotomia entre tratados internacional antes e depois da EC nº 45/2004. A lógica dominante de dependência jurídico-política da metodologização procedimentalista e da herança autoritária de nossas instituições se confirma quando, em última análise, ao esperar-se da doutrina e do Supremo Tribunal Federal a adequada repressão epistemológica ao retrocesso social do tema, ao contrário, observou-se um esforço ‘institucional’ no sentido de se justificar a utilidade ‘prática’ da emenda e, por conta dela, a vindicação de uma nova posição do Tribunal sobre o ‘novo’ status normativo dos tratados de direitos humanos na ordem interna nacional. Na realidade, renderam-se ao procedimentalismo e objetificaram o papel da Constituição, onde nem mesmo a jurisdição constitucional ofertou resistência ao legislador constitucional derivado, não obstante o risco trazido à eficácia dos direitos humanos (e fundamentais), reduzindo o Direito à instrumentalidade de ‘combate’ dos conflitos sociais, descolado de qualquer compromisso teórico-hermenêutico. 3.1. o ‘tr atamento hier árquico’ dos tr atados e convenções de direitos humanos na jurisprudência do supremo tribunal federal pós-constituição de 1988 A Emenda Constitucional nº 45/2004 trouxe no seu conteúdo, em particular, a introdução dos parágrafos 3º e 4º no art. 5º da Constituição Federal de 198813.

13 Art. 5º (...) § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

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Com efeito, a alteração legislativa, como narrado, acabou por estimular o Supremo Tribunal Federal a se pronunciar novamente sobre o tratamento que deveria ser dispensado aos tratados de direitos humanos no Brasil embora, registre-se, até então, a sua jurisprudência, mesmo pós-Constituição de 1988, já não contasse exatamente com a melhor compreensão. É bem verdade que a história recente do Supremo Tribunal Federal tem revelado certa ausência de hábito tanto por parte dos Ministros, em estimular/ invocar instrumentos internacionais de direitos humanos em seus discursos, mas, todavia, sempre que se oportunizou o debate naquele Tribunal ele foi reduzido a definição do status normativo na ordem jurídica interna, sem maiores aprofundamentos teóricos, acerca de seu papel ou de seu conteúdo na história institucional do direito contemporâneo. Utilizando-se a ferramenta eletrônica de busca de jurisprudência disponível no próprio site do Tribunal (www.stf.jus.br), com base na combinação das expressões “tratados internacionais + direitos humanos + hierarquia”, o resultado objetivo, dentro da proposta, foi de 11 (onze) acórdãos em 01/06/2014. E, numa breve análise da jurisprudência consolidada no plenário do Supremo Tribunal Federal, a partir do ano de 1988, marco do processo de redemocratização do Brasil e do exigível compromisso efetivo (material) com o processo de afirmação dos direitos humanos até 2008, ano em que se firmou um ‘novo’ entendimento sobre o status normativo dos tratados internacionais de direitos humanos, foi possível confirmar que, de fato, a interpretação jurisprudencial constitucional não sofreu alteração substancial. 3.1.1. Os julgamentos do plenário Supremo Tribunal Federal envolvendo os tratados e convenções de direitos humanos antes da Emenda Constitucional nº 45/2004 De início, pode-se registrar que até 1988, ou mesmo, até o primeiro julgamento que envolveu a questão da hierarquia dos tratados internacionais em geral na ordem jurídica brasileira pós-1988, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal já era no sentido da hierarquia legal, desde o ano de 197714.

§ 4º O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão. 14 Cf. RE 80.004/SE, de relatoria do Ministro Xavier de Albuquerque (julgado em 1º.6.1977; DJ 29.12.1977). volume

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Entretanto, o julgamento precursor da jurisprudência pós-Constituição de 1988 sobre o tema foi no Habeas Corpus (HC) nº 72131/RJ, julgado em 23/11/1995 e relatado pelo Ministro Marco Aurélio, o tribunal embora não tenha se pronunciado objetivamente sobre o status da Convenção Americana na ordem interna e/ou a sua confrontação com o texto de 1988, referendou, no mérito, a sua jurisprudência afirmando que a recepção de tratados e convenções internacionais, em geral, ocorre na forma de lei ordinária (hierarquia legal), afastando-lhes qualquer primazia hierárquico-normativa ou equiparação de natureza constitucional15. Em particular, de trechos dos votos, destaca-se a afirmação de que num possível conflito entre a Convenção e a Constituição, é sempre a primeira que deve ser sacrificada, embora, no caso dos autos não tenha vislumbrado um conflito real entre a Convenção e a Carta16. O Ministro Celso de Mello, antes, um dos grandes defensores da tese da hierarquia legal, argumentou que por uma questão central de soberania da Constituição Federal, o Pacto de São José da Costa Rica lhe desempenha o papel de peça do caráter complementar17. A mesma racionalidade, projetou-se, ainda, por longo período, conforme se pode verificar nos julgamentos da ADI nº 1480 MC/DF julgada em 04/09/1997, relatada pelo Ministro Celso de Mello, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 206482/SP julgado em 27/05/1998, sob a relatoria do Ministro Maurício Corrêa e no julgamento do Habeas Corpus nº 77527/MG julgado em 23/09/1998 relatado pelo Ministro Marco Aurélio. De forma geral, mas, sobretudo, muitas vezes de forma remissiva aos termos do julgado proferido no HC nº 72131/RJ18, os Ministros sempre referendaram o entendimento da irrecusável supremacia da Constituição19 e o fato de que o sistema 15 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas-corpus no. 72131, plenário, Brasília, DF, 23 de novembro de 1995, p. 8726. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador. jsp?docTP=AC&docID=73573. Acesso em: 01 jun. 2014. 16 Id. Ibid., p. 8695 e 8696. 17 Id. Ibid., p. 8725. 18 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário no. 206482, plenário, Brasília, DF, 27 de maio de 1998, p. 677. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/ paginador.jsp?docTP=AC&docID=240509. Acesso em: 01 jun. 2014. 19 Id. ADI no.1480 MC, plenário, Brasília, DF, 04 de setembro de 1997, p. 231. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=347083. Acesso em: 01 jun. 2014.

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jurídico brasileiro não confere qualquer precedência hierárquico-normativa aos atos internacionais sobre o ordenamento constitucional20, diante da necessária submissão dos tratados a normatividade emergente da Constituição21. Ainda no início da década passada os julgamentos do Recurso em Habeas Corpus nº 79.785/RJ datado de 29/03/2000, relatado pelo Ministro Sepúlveda Pertence e no Habeas Corpus nº 81319/GO julgado em 24/04/2002 relatado pelo Ministro Celso de Mello, contavam com as mesmas premissas ‘interpretativas’ de antes da Constituição de 1988 e sem qualquer distinção teórico-normativa entre os tratados internacionais em geral e os tratados de direitos humanos. Porém, o destaque se extrai dos votos proferidos pelo Ministro Sepúlveda Pertence onde consignando uma importante ressalva, embora ainda incipiente, estaria se aproximando do entendimento de conferir força supralegal as convenções de direitos humanos (distinguindo-os dos demais tratados internacionais), de modo a dar-lhes aplicação direta e contra a lei ordinária, sem prejuízo da Constituição22. Porém, não obstante a divergência da tese vigente desde o HC nº 72131/RJ, o Ministro aduziu que se curvava a solidez da jurisprudência23. Num balanço intermediário dever-se-ia, preliminarmente, considerar que o Supremo Tribunal Federal manteve a composição de Ministros em todos os julgados que foram objeto de comentário, o que denuncia a dificuldade de modificação/evolução de entendimento. Também, é preciso considerar que, em sendo momentos iniciais de virada constitucional, soaria como natural, a presença forte de argumentos de natureza jusprivatista, especialmente, em razão do pensamento trazido pela composição do tribunal, o qual em grande parte tomou posse em tempo anterior à promulgação da Constituição Federal de 198824. 20 21 22 23 24

Id. Ibid., p. 232; 236. Id. Ibid., p. 238-240. Id. Ibid., p. 301. Id. Ibid., p. 226. Ministros: Moreira Alves (1975-2003); Neri da Silveira (1981-2002); Francisco Rezek (19831990), exonerou-se a pedido, depois foi novamente nomeado (1992-1997); Octávio Gallotti (1984-2000); Sydney Sanches (1984-2003); Carlos Velloso (1990-2006); Sepúlveda Pertence (1989-2007); Marco Aurélio (1990 - ); Celso de Mello (1989 - ). Fonte: Linha Sucessória dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. In: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto. asp?servico=sobreStfComposicaoMinistroApresentacao&pagina=linhasucessoria Acesso em 20 de mai. 2014.

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Outra questão bastante peculiar é o fato de que, não obstante a existência de unanimidade de entendimento nos julgados comentados, acerca da hierarquia legal dos tratados e convenções internacionais em geral, os Ministros se dividiram em relação às conclusões do que isso representava nos contextos em análise. Em alguns casos, por exemplo, assentado a hierarquia legal dos tratados internacional, chegaram a compreensões diferentes sobre a derrogação (na minoria) ou não derrogação (na maioria) dos termos do Decreto-Lei nº 911/69 e a equiparação (ou não) dos institutos da alienação fiduciária e do depósito, assim, em última análise, ou manteve-se a prisão civil do depositário ou a possibilidade de sua execução. Também, na essência de alguns votos, ainda que se vislumbrassem alguns indícios de defesa de uma concepção materialmente constitucional aos tratados de direitos humanos, ainda, permanecia-se segregada ao nível da hierarquia legal, pois sempre vistos como abaixo da Constituição. Naquele momento, essa ideia foi o que motivou a ressalva do Ministro Sepúlveda Pertence no julgamento do HC nº 79785/RJ que, embora aquiescendo à jurisprudência sedimentada, começava a pensar no caráter de supralegalidade dos tratados de direitos humanos, o qual viria a vingar em 2008 conforme será analisado, posteriormente. Por fim, também, é preciso consignar que até aqui o art. 5º da Constituição ainda não contava com a alteração da EC nº 45/2004, que lhe introduziu a regra do § 3º no mesmo artigo. 3.1.2. Os julgamentos do plenário Supremo Tribunal Federal envolvendo os tratados e convenções de direitos humanos pós EC nº 45/2004 Agora, já sob a égide de uma nova disposição constitucional (§ 3º) no art. 5º inserida pela EC nº 45/2004, o cenário começa a se modificar, embora, hermeneuticamente, não se tenha muito que comemorar na ‘evolução’ na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Primeiramente, no Agravo Regimental no Mandado de Injunção nº 772/RJ relatado pelo Ministro Celso de Mello, julgado em 24/10/2007, não houve, de fato, debate acerca da questão dos tratados e convenções de direitos humanos, mas o Ministro Celso de Mello - ainda fazia questão de consignar que era irrecusável 92

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a supremacia da Constituição sobre todos os tratados internacionais celebrados pelo Estado brasileiro25. Contudo, passou-se um longo período desde a primeira vez que o plenário da Corte havia se dedicado ao debate que trazia como pano de fundo o status hierárquico dos tratados e convenções de direitos humanos. Foi somente em 03/12/2008, data em que consolidaram-se, em plenário, os julgados do Recurso Extraordinário (RE) nº 466.343, relatado por Cezar Peluso, do Recurso Extraordinário (RE) nº 349.703, relatado originalmente pelo Ministro Ilmar Galvão, depois sucedido pelo Ministro Carlos Britto e dos Habeas Corpus nºs 87585 e 92.566, ambos relatados pelo Ministro Marco Aurélio. A partir desse momento foi que o Supremo Tribunal Federal passou a aplicar o entendimento que conferiu caráter supralegal aos tratados de direitos humanos em que Brasil seja signatário. Nos julgamentos em epígrafe, o Tribunal por maioria superou a tese da hierarquia legal e passou a acolher da tese da supralegalidade, defendida pelo Ministro Gilmar Mendes. Entre os votos dos Ministros, observou-se a proposição de uma nova leitura da tese da hierarquia constitucional em que, agora, seu maior expoente passou a ser o Ministro Celso de Mello. Os debates mais complexos se deram no julgamento do RE nº 466343/SP e no do HC nº 87.585/TO, onde, novamente, o tema da vez era a legalidade constitucional da prisão civil do depositário (infiel), em razão dos termos do Pacto de São José da Costa Rica. O Ministro Gilmar Mendes, em seu voto, fez uma análise sistemática das possibilidades do § 2º do art. 5º da Constituição sobre o status hierárquico dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos, o qual poderia ser sistematizado em quatro correntes principais: a) supraconstitucional, b) constitucional, c) legal e d) supralegal. Afastando a pertinência de uma a uma, o Ministro disse primeiro a impossibilidade de conferir status supraconstitucional aos tratados de direitos humanos em razão da dificuldade imposta pela supremacia formal e material 25 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Mandado de Injunção no. 772, plenário, Brasília, DF, 24 de abril de 2002, p. 61. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/ paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=582646. Acesso em: 01 jun. 2014. volume

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da Constituição, não se revestiria de possibilidade por inviabilizar o controle de constitucionalidade26. Em segundo lugar, afastou a possibilidade do o status constitucional dos tratados de direitos humanos, pois, de certa forma, fora esvaziado pela promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004, com a introdução do § 3º no art. 5º da Constituição27 e que os tratados já ratificados pelo Brasil, anteriormente à mudança constitucional, e não submetidos ao processo legislativo especial de aprovação no Congresso Nacional, não poderiam ser comparados às normas constitucionais28. Em terceiro lugar, a tese da hierarquia legal dominante até aquele momento na jurisprudência do Tribunal, em razão da alteração imposta pela EC nº 45/2004, teria ficado cada vez mais difícil de ser sustentada29. Logo, restou a tese da hierarquia supralegal, onde, após o esforço teóricodogmático para descaracterizar as outras correntes, o Ministro asseverou que lhe parece mais consistente a interpretação, que atribui a característica de supralegalidade aos tratados e convenções de direitos humanos não internalizados nos termos da EC nº 45/2004. Essa tese pugna pelo argumento, de que os tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, seriam dotados de um atributo de supralegalidade, isto é, estariam abaixo da Constituição, mas acima das demais normas legais. O Ministro Gilmar Mendes, basicamente, ancorou o seu discurso numa analogia com o direito comparado mencionando que a qualificação de supralegalidade foi consagrada na Constituição da Alemanha (art. 25), na da França de 1958 (art. 55) e na Constituição da Grécia de 1975 (art. 28)30, aduzindo, por outro lado, que na jurisprudência do tribunal, durante certo momento histórico imperou, inclusive, o entendimento da supremacia do direito internacional sobre as normas infraconstitucionais, citando a título exemplificativo, os julgamentos das 26 Id. Recurso Extraordinário no. 466.343, plenário, Brasília, DF, 03 de dezembro de 2008, p. 1139. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador. jsp?docTP=AC&docID=595444. Acesso em: 01 jun. 2014. 27 Id. Ibid., p. 1144. 28 Id. Ibid., loc. cit. 29 Id. Ibid., p. 1145. 30 Id. Ibid., p. 1155.

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Apelações Cíveis n° 9.587, de 1951, Rel. Min. Orozimbo Nonato, e 7.872, de 1943, Rel. Min. Philadelpho Azevedo31. Ao fim, sumarizou que a premente necessidade de se dar efetividade à proteção dos direitos humanos nos planos interno e internacional tornou imperiosa uma mudança de posição, quanto ao papel dos tratados internacionais sobre direitos humanos na ordem jurídica nacional, de maneira que seria necessário assumir uma postura jurisdicional mais adequada às realidades emergentes em âmbitos supranacionais, voltadas primordialmente à proteção do ser humano32, no caso, se conferindo status supralegal ao referidos instrumentos. De sua vez o Ministro Celso de Mello se disse compelido a distinguir para efeito de posição hierárquica, em face do ordenamento positivo interno, entre convenções internacionais de direitos humanos e tratados internacionais diversos33, segundo a existência de expressivas lições doutrinárias, que sustentaram com sólida fundamentação teórica que os tratados internacionais de direitos humanos assumem, na ordem positiva interna brasileira, qualificação constitucional. Em face disso, o Ministro Celso de Mello, reconsiderando o seu anterior entendimento, destacou, que o § 2º do art. 5º da Constituição – verdadeira cláusula geral de recepção – autoriza o reconhecimento de que os tratados internacionais de direitos humanos possuem hierarquia constitucional, em face da relevantíssima circunstância de que viabilizam a incorporação, ao catálogo constitucional de direitos e garantias individuais, de outras prerrogativas e liberdades fundamentais, que passam a integrar subsumindo-se ao seu conceito, o conjunto normativo configurador do bloco de constitucionalidade34. Nessa perspectiva, segundo o Ministro, valorizar-se-ia o sistema de proteção dos direitos humanos mediante atribuição aos atos de direito internacional público de hierarquia superior à legislação comum sempre que se cuide de tratados internacionais de direitos humanos35. Assim, sumarizando as posições dos Ministros nos julgados referidos teve-se: os Ministros Celso de Mello, Cézar Peluso, Eros Grau e Ellen Gracie que perfilaram31 32 33 34 35

Id. Ibid., 1156 et seq. Id. Ibid., p. 1160. Id. Ibid., p. 1230. Id. Ibid., p. 1260. Id. Ibid., p. 1250.

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se à tese da hierarquia constitucional; os Ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Menezes Direito, Carlos Britto e Cármen Lúcia perfilaram-se a tese da supralegalidade; o Ministro Marco Aurélio não se perfilou a nenhuma das teses; e o Ministro Joaquim Barbosa não se pronunciou especificamente sobre a questão36. A título de balanço final, pode-se dizer que passados mais de 25 anos de Constituição e que uma vez, substancialmente, modificada a composição do Supremo Tribunal Federal37 seria natural que o entendimento sobre o tema auferisse novos rumos. Mas, também, inexorável que, após a introdução do § 3º no art. 5º da Constituição pela EC n° 45/2004, que o Tribunal viesse a ser pronunciar de forma diferente sobre a questão. De fato, foi observado que houve uma nítida tendência de natureza juspublicista nos votos, caminhando-se no sentido de dar relevo as declarações e instrumentos internacionais de direitos humanos e o compromisso das Constituições com a afirmação dos direitos humanos e fundamentais, nada obstante as conclusões levadas a efeito. Também reforça, neste sentido, o fato de que a presença de duas teses dominantes na atual composição - hierarquia constitucional e hierarquia supralegal – esta última garantida apenas pela maioria (não absoluta), estão intimamente ligadas às condições instituídas pelo § 3º do art. 5º da Constituição. Isto é, para tratados de direitos humanos recepcionados antes da Emenda e, mesmo para aqueles pós-Emenda, mas, que não tenham se submetido à ritualística nela prevista, possuem status supralegal, ao passo que aqueles que, depois da EC n° 45/2004, tenham se submetido ao rito, passarão a gozar de status de equivalência constitucional formal e material.

36 Cf. Id. Habeas Corpus no. 92.566, plenário, Brasília, DF, 03 de dezembro de 2008, p. 466 et. seq. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador. jsp?docTP=AC&docID=595384. Acesso em: 01 jun. 2014. 37 Ministros: Ellen Gracie (2000-2011); Gilmar Mendes (2002- ); Cezar Peluso (20032012); Menezes Direito (2007-2009); Ayres Britto (2003-2012); Eros Grau (20042010); Cármen Lúcia (2006 - ); Ricardo Lewandowski (2006 - ); Joaquim Barbosa (2003 - ), embora não tenha se posicionado nos julgados. Fonte: Linha Sucessória dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. In: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto. asp?servico=sobreStfComposicaoMinistroApresentacao&pagina=linhasucessoria Acesso em 20 de mai. 2014.

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Em termos comparativos com o desfecho do balanço anterior, pode-se concluir que, novamente, a preocupação central que permeia os votos num e noutro sentido – constitucional e supralegal – é a higidez sistemática da ordem jurídica e a supremacia (vertical) constitucional e que se perde em meios aos discursos autoritários, descompromissados com o caráter hermenêutico dos direitos humanos e produtivo da Constituição. A perspectiva numa e noutra tese defendida pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal são de natureza semântica e procedimental-normativista, carecendo de um melhor enfrentamento do ponto de vista teórico, especialmente, no que diz respeito ao tratamento dispensado aos tratados de direitos humanos frente à (in)adequada compreensão de ‘supremacia constitucional’ no cenário de internacionalização crescente. Por isso, a expectativa de que o Supremo Tribunal Federal viesse a estabelecer um entendimento consonante com esse processo, objetivando um acréscimo mais incisivo da normatividade constitucional tendo por mira os tratados de direitos humanos. Mas, o tribunal acabou por reafirmar o comportamento ‘imperialista’ presente no imaginário jurídico, optando pela primazia formal da Constituição e a adoção de um tertium genus, que não dialoga (hermeneuticamente) com nosso constitucionalismo, culminando, além de tudo, com a criação ad hoc de uma ‘espécie normativa’ até então inexistente, senão inconstitucional, a supralegalidade. A questão sintomática é que, se não houve a superação do imaginário positivista-normativista, as conclusões levadas a efeitos pelos ministros do Supremo Tribunal Federal, quanto ao status da recepção dos tratados de direitos humanos em nosso constitucionalismo, invariavelmente, resultará em recurso à discricionariedade, não importando, em última análise, se a ‘opção’ hierárquica será legal, supralegal ou constitucional. As posições baseadas no status hierárquico-normativo sempre irão falecer de uma análise verdadeiramente hermenêutica, pois acabam se satisfazendo por discursos ideológicos, autoritários e de ocasião que obscurecem o adequado diálogo sobre os direitos humanos. Neste cenário, a invocação da ‘supremacia’ da Constituição – formal e/ ou material – obviamente se presta apenas para esconder argumentos que não passam de ‘reservas de poder’, isto é, no sentido hermenêutico, argumentos que não respondem a nenhuma pergunta dialógica democraticamente posta volume

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pela própria autonomia da Constituição. A própria possibilidade de um ‘bloco de constitucionalidade’ aventada pelos Ministros que defenderam o caráter materialmente constitucional dos tratados de direitos humanos, porém em nível inferior a Constituição, não passa de uma falácia ou de retórica de ocasião. Isso porque, não faz sentido referir-se a ideia de bloco de constitucionalidade, quando os tratados internacionais se encontram, acaso não admitidos na forma do § 3º do art. 5º da Constituição, em nível hierárquico abaixo da Constituição. Por isso, é que se afirma que existe espaço para o desenvolvimento de outras narrativas sob uma nova perspectiva de dialogal-hermenêutica para auferir a produtividade escondida pelas premissas inadequadas do positivismo que reduzem o papel das fontes nesse novo ambiente plural e internacionalizado, inclusive, no que diz respeito uma adequada ideia de bloco de constitucionalidade, enquanto conceito eminentemente hermenêutico. O diálogo (hermenêutico) representa um plus à adequada filtragem e reconstrução de um novo cenário para o Direito em detrimento do encobridor e limitado debate hierárquico-normativo, em prol da eficácia dos tratados de direitos humanos na ordem jurídica dos Estados. Mesmo porque um direito que se pretenda como acessível a todos não pode ser imposto como verdade revelada, mas consagrado como verdade compartilhada38. 4. as ‘inovações’ da ec n° 45/2004 e a supr alegalidade na jurisprudência do stf: a passividade da doutrina e a crítica dialógico-hermenêutica Com raríssimas exceções se conseguiu observar na doutrina alguma resistência consistente às alterações introduzidas pela EC n° 45/2004, em particular, ao § 3º do art. 5º, da Constituição Federal e a decisão plenária do Supremo Tribunal Federal que passou adotar a tese da supralegalidade hierárquica dos tratados de direitos humanos no constitucionalismo brasileiro. Em regra geral, a doutrina se limitou a explicar o impacto da EC n° 45/2004 para os tratados e convenções de direitos humanos e da mesma maneira, a decisão do STF, quanto à supralegalidade destes instrumentos internacionais quando, porventura, não tenham se submetido à nova sistemática constitucional. 38 DELMAS-MARTY, Mireille. Por um direito comum. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. IX.

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Talvez, a maior expressão de resistência doutrinária as ‘inovações’ pode ser vista em Cançado Trindade, o qual criticou duramente o texto da emenda, qualificando-a como uma introdução mal concebida, mal redigida e mal formulada e um retrocesso em relação ao modelo aberto consagrado pelo art. 5º § 2º, que coloca em risco a interrelação ou indivisibilidade dos direitos protegidos em nosso país (previstos nos tratados que o vinculam), em favor dos excessos de um formalismo e hermetismos jurídicos eivados de obscurantismo39. Com razão, pois é fato que toda e qualquer medida tendente a instituir a criação de mecanismos reducionistas ou de anteparo à aplicação e qualidade dos tratados de direitos humanos é sempre ilegítima, não apenas em razão do nível moral das instituições políticas nacionais, mas, sobretudo, por descredibilizar a amplitude democrática que permeia esses instrumentos no âmbito internacional e o compromisso constitucional pós-Segunda Guerra com os direitos humanos, enquanto garantias oponíveis, inclusive, contra o próprio Estado. Num cenário de afirmação constitucional e de democracia, qualquer espécie de restrição sobre a admissão ou aplicação de instrumentos internacionais de direitos humanos não passa de um paliativo que sustenta a manutenção dos espaços de poder dos discursos de ocasião políticos e judiciais. Notadamente, constitui-se um desprestígio com a dimensão normativa da dignidade da pessoa humana naquilo que orienta a principiologia constitucional de nosso tempo e por onde deveria resistir uma doutrina que se diga solidamente crítica. De sua vez, quanto à tese da supralegalidade, não obstante a inexistência de qualquer afinidade com a história institucional de nosso direito, também não encontra respaldo doutrinário, exceto na própria concepção ad hoc dos Ministros que contribuíram para a formação da nova jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Eis aqui o espaço para a grande crítica que se pode fazer às hierarquizações, pois o critério formal estabelecido pela EC nº 45/2004, apenas facilitou, a partir daquilo que é o traço comum das concepções positivistas - a discricionariedade – a defesa de uma tese que não tem qualquer identidade com nosso sistema ou com a história institucional do Direito. 39 Cf. nota 4. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Desafios e conquistas do direito internacional dos direitos humanos no início do século XXI, nota 4, p. 410-411. Disponível em acesso em 17 mai. 2014. volume

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Ora, não há como defender uma tese (supralegalidade) que não é resultado de uma mediação entre nossa tradição e o atual momento compromissório e dirigente das Constituições e o papel dos direitos humanos no constitucionalismo contemporâneo. O assentamento da tese da supralegalidade revela um descompromisso democrático, pois não se determina por nenhum compartilhamento mínimo de compreensão, senão por casuísmo ad hoc, pragmatismo puro! No atual momento constitucional e político do país, uma revisão judicial de posicionamento deveria apontar, no mínimo, para a hierarquia constitucional, mesmo que sob as ressalvas aos vícios positivistas em que baseada, contudo, jamais uma supralegalidade. Por isso, do ponto de vista hermenêutico, a supralegalidade é uma resposta sem pergunta, em última análise, sem diálogo hermenêutico, é uma resposta casuístico-ideológica. Hermeneuticamente, não se pode compartilhar que a defesa da especialidade dos direitos humanos e o seu destacado papel no constitucionalismo contemporâneo, tenham pretendido colocar os tratados de direitos humanos no ‘meio termo’, ao menos não parece ter sido essa a “vontade normativa” da Constituição40 nessa quadra da história. Não se sustenta a justificativa do Ministro Gilmar Mendes de que os tratados de direitos humanos precisam subjugar-se a supremacia hierárquica da Constituição, sob o risco de frustração do controle de constitucionalidade41, justamente pelo fato de que dos direitos humanos formalmente ou não, serem, em qualquer circunstância, a própria medida, em última análise, do controle de constitucionalidade de qualquer ato normativo. A supralegalidade é inconstitucional, um objeto estranho em nossa realidade jurídica, pois, carece, tanto de partilha identitária em nossa história jurídicoinstitucional, quanto de uma adequada analogia ‘importada’ de legislação comparada de países de gozam de outra maturidade institucional. Basta analisar a importância do Tribunal Europeu de Direitos Humanos naquele continente. Não há espaço em no constitucionalismo brasileiro, que permita se dispensar caráter supralegal aos tratados de direitos humanos, sob a pena de esvaziamento material

40 Cf. HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1991. 41 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário no. 466.343, plenário, Brasília, DF, 03 de dezembro de 2008, p. 1139. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/ paginador.jsp?docTP=AC&docID=595444. Acesso em: 01 jun. 2014.

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e formal dos §§ 1º e 2º do art. 5º da Constituição e graves efeitos colaterais doutrinários sobre o tema. Não é preciso maiores reflexões para verificar essa incompatibilidade, basta indagar o fato de que se há uma norma que goza de status supralegal, ao menos, prima facie, não teríamos qualquer correspondente meio adequado para alterála ou revogá-la. Logo, se supralegalidade, como se profetiza, está acima da lei ordinária e da lei complementar, isso determina que eventual incongruência de um tratado de internacional direitos humanos, ainda que não internalizado como emenda constitucional, precise de uma emenda constitucional para ser alterado e revogado. Ao menos, a priori, essa (i)lógica é possível. O internacionalista Mazzuoli, embora tenha afirmado que: a tese da supralegalidade vigorante no STF seria nova, apenas, no que diz respeito aos tratados de direitos humanos, já que, ao seu juízo, qualquer tratado internacional comum já gozaria desse status de supralegalidade42. Discordava da categorização entre os tratados internacionais de direito humanos (constitucional e supralegal). O autor observou que o posicionamento do STF, especialmente, em razão do voto-vista do Ministro Gilmar Mendes foi insuficiente43, resultando em dois níveis de compatibilidade vertical para a produção normativa infraconstitucional, um de nível constitucional e outro de nível supralegal44, uma ‘nova pirâmide jurídica’45. Todavia, embora essas afirmações soem como uma crítica, não se pode olvidar que foi essa insuficiência teórico-jurídica da tese da supralegalidade que acabou por oportunizar a tese dominante e instituída pelo próprio Mazzuoli acerca do controle de convencionalidade no Brasil. O controle de convencionalidade defendido pelo autor é diretamente dependente da visão estabelecida no Supremo Tribunal Federal, já que parte de uma obrigatória e hierárquica distinção entre o controle de constitucionalidade e de convencionalidade (supralegalidade), qualificado como ‘duplo controle vertical’46. Isso quer dizer que embora Mazzuoli 42 MAZZUOLI, Valério. Curso de Direito Internacional Público. 3.ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2009, p. 373. 43 Id. Ibid., p. 374. 44 Id. Ibid., p. 375. 45 Cf. Id. Ibid., p. 377. 46 Id. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 2ª. ed. rev., atual. e ampl. (coleção direito e ciências afins v. 4). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 116 e et seq. volume

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defenda a índole constitucional dos tratados, rende-se ao posicionamento prevalente no Supremo Tribunal Federal47, por não conseguir superar a discussão semântico-formalista, acerca da concepção de admissão formal e material e de igualdade e equivalência entre emenda e tratado48: Ora, se a visão de Mazzuoli é a de hierarquia constitucional de tratados e convenções de direitos humanos, defender a tese do controle de convencionalidade, não passa de um pragmatismo-teórico-casual, uma vez que se a hierarquia dos referidos tratados é constitucional, controle de constitucionalidade se teria! O controle de convencionalidade na forma proposta não passa de um mero controle ‘semântico’ daquilo que se diz como supralegal, pois na realidade, isso não passaria do que ordinariamente os tribunais fazem em seu cotidiano, análise de legalidade. Eis a grande dificuldade (hermenêutica) da doutrina no estágio contemporâneo! Buscar em preciosismos sintático-semânticos o oportunismo para as soluções dos problemas interpretativos, como se permanecer mergulhado no positivismo – legislativo e jurisprudencial – fosse uma fatalidade inexorável. Por sua vez, a também internacionalista Flávia Piovesan, embora sempre tenha divergido da paridade entre tratado de direito internacional de direitos humanos e a legislação federal em razão da previsão constitucional do art. 5º, § 2º da Constituição de 1988, sua tese da hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos estaria assentada numa dita interpretação sistemática e teleológica que lhe assegura privilégio hierárquico49. Mais, respondendo a problemática da inovação trazida pela EC nº 45/2004 (§ 3º, art. 5º), a autora criticou a inadequação da emenda por não ter endossado a hierarquia formalmente constitucional dos tratados de direitos humanos anteriormente ratificados50. Na realidade, a autora buscando reforçar o aspecto materialmente constitucional dos tratados de direitos humanos ratificados antes da EC nº 45/2004, chega a asseverar que a introdução do § 3º no art. 5º não revogou o § 2º (digo eu, nem poderia), mas que por lógica e racionalidade, prevenção de intepretações 47 Id. Ibid., p. 39. 48 Id. Ibid., p. 52. 49 Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 13ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2102, p. 115 et. seq. 50 PIOVESAN, Flávia. Ibid., p. 127-128.

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anacrônicas e pela ‘teoria geral da recepção do direito brasileiro’, a intepretação mais harmoniosa e teleológica é a que permite a ‘constitucionalização formal dos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil51. Com efeito, para a autora, por ocasião da nova sistemática introduzida pela emenda, surgiram duas categorias de tratados internacionais de proteção de direitos humanos: os materialmente constitucionais e os material e formalmente constitucionais, mas que todos são, no mínimo, materialmente constitucionais52. Mas a questão fulcral é que não é possível, ao menos hermeneuticamente, inverter a lógica de que o caráter procedimental dos textos constitucionais, aliado à metodologia positivista – em suas diversas matizes – condicionar os direitos humanos que orientam a materialidade constitucional aos ‘poréns’ (sic) dos discursos hierárquicos e semântico-formalistas. Ao que parece, faltou quem objetivamente dissesse que a tese da supralegalidade é uma arbitrariedade interpretativa, uma criação ad hoc de uma ‘nova espécie’ de tipicidade legislativa ao arrepio da Constituição, fruto de desse positivismo reducionista e decisionista de direito. Não basta sustentar a tese que defende doutrinariamente, pois isso é permanecer no pensamento monológico! O constrangimento epistemológico somente se opera a partir da desconstrução das premissas inadequadas, isto é, quando no diálogo (hermenêutico) as partes são capazes de suspender seus pré-juízos e colocar em jogo suas expectativas de compreensão na realidade compartilhado do mundo com a finalidade de testar a autenticidade de suas pré-compreensões. Não há diálogo quando as partes estão cegas em seus discursos! Aliás, foi justamente essa cegueira que permitiu que, no caso concreto, se tenha encontrado uma solução ad hoc ou justificativa de ‘bom senso’ para os tratados e convenções de direitos humanos no Brasil. A supralegalidade, portanto, não responde, mais uma vez, a nenhuma pergunta hermenêutica, ao menos adequadamente formulada. Talvez a pergunta adequada não seja no sentido da hierarquização dos tratados internacionais na ordem interna, mas qual o papel dos direitos humanos no/para o constitucionalismo contemporâneo. 51 Id. Ibid., p. 128-129 52 Id. Ibid., p. 139. volume

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Além disso, seria importante consignar que nunca se questionou a constitucionalidade do § 3º introduzido pela EC nº 45/2004 na Constituição Federal, nem mesmo para se buscar, talvez, mediante as técnicas interpretativas, uma interpretação, conforme a Constituição ou uma nulidade parcial sem redução de texto em controle por via de ação, pois não é admissível se conviver com uma emenda que não atingiu o fim que se propugnou, muito pelo contrário, trouxe mais dúvidas e proporcionou a possibilidade de uma decisão mais inconstitucional ainda. Outrossim, é importante dizer que a possível solução ou proposta para o tema passa ao largo do ultrapassado debate entre monistas e dualistas sobre as relações do direito interno e internacional, as quais remontam a era liberal de início da dualização da soberania estatal (interna e externa), sacralizadas, nos séculos XIX e XX, a primeira por Kelsen e a segunda por Heinrich Triepel53. Na realidade, a bipolarização que sempre circundou a ideia de soberania no mundo moderno (inferior/superior, amigo/inimigo, formal/material, monistas/dualistas) sempre se satisfez nos argumentos de autoridade das hierarquizações/verticalizações, alicerçada no fetiche de se desvelar o vértice: o soberano ou fundamental, seja ele um poder ou uma norma54. Os direitos humanos, portanto, possuem um caráter próprio e diferenciado para fundarem um novo espaço (de cariz ontológico-hermenêutico), pois são direitos conquistados em face dos Estados, e não impostos por eles55, e por isso, possuem uma legitimidade precedente em relação, inclusive, ao ‘direito posto’, e como tais, suficientes para conferir crédito à possibilidade do desenvolvimento de um debate baseado no diálogo (hermenêutico) e democrático, despojado das lógicas formais e dos discursos autoritários, ao fim de desconstruir o paradigma formado doutrinária e jurisprudencialmente no Brasil. É nesse espaço que se perfura que reside a objetiva justificativa de que a hermenêutica não pode ser acusada de ingênua ou acrítica, muito pelo contrário, 53 FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do estado nacional. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 27-38. 54 Cfe. CAMPILONGO, Celso Fernandes. Apresentação. FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do estado nacional. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 55 DELMAS-MARTY, Mireille. Ibid., p. X.

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ela favorece a consciência crítica, pois na medida em que ela é responsável por formar nossa consciência histórica, nos permite, também, assumir uma situação histórica determinada. Na reivindicação de um movimento dialógico de fusão e diluição de horizontes, onde o intérprete conquista a oportunidade de se libertar de seus pré-conceitos, ainda que não totalmente razão de nossa condição histórico-fática56 é que se estrutura a racionalidade crítica aos discursos autoritários postos como verdades absolutas, como é o caso da supralegalidade e da dependência formal como condição para normatividade dos tratados de direitos humanos. A busca pela unificação de sentidos enquanto verdade compartilhada é, portanto, resultado de um diálogo condicionado pela tradição, preocupado com o que se afirmará no presente e de como isso chegará no futuro, próximo encontro com a coisa mesma. Por isso, que o diálogo (hermenêutico) nada tem a ver com consenso ou qualquer forma de comunicação pragmático-casual, na realidade é um acontecimento anterior (estrutural) que, a partir da linguagem comum torna-se condição de possibilidade do próprio compreender, pois é o elo entre o que nos leva a perguntar e sua respectiva resposta. Para Gadamer, a dinâmica da pergunta e resposta, enquanto mediação (contínua) entre o passado e o presente com orientação ao futuro, é que permitirá o encontro com a tradição. Assim, ainda que seja correto dizer que o indivíduo é o portador de linguagem, a própria falta de entendimento dela é que inviabiliza o diálogo. A linguagem é condição do diálogo e o diálogo é a nossa condição existencial, de forma que a linguagem sem interlocutor de nada serve, não há crescimento, pois não somos ab-solutos e viver é plural57. Logo, se o tema dos direitos humanos em nosso constitucionalismo se restringe a definição do seu status hierárquico e se essa definição se impõe sem qualquer partilha identitária (partilha) o diálogo hermenêutico-produtivo está prejudicado!

56 STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, p. 74. 57 ROHDEN, Luiz. Hermenêutica filosófica: uma configuração entre a amizade aristotélica e dialética dialógica. Síntese, Belo Horizonte, v. 31, no. 100, 2004, p. 193. volume

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5. à guisa de conclusão: o diálogo na linguagem e a linguagem no diálogo e a perspectiva produtiva da alteridade (crítica) do/no direito e o tr atamento dos direitos humanos no br asil Ora, com o fim da segunda guerra, inicia nas democracias ocidentais um paulatino processo compromissado com os direitos humanos, destinado a judicializar o conteúdo das Constituições, repercutindo, também, na necessidade de transformação no tratamento das fontes jurídicas, especialmente, no que diz respeito ao monopólio de sua criação e determinação, em face de um pluralismo58 comprometido com a construção dialógico-hermenêutica do Direito. Uma adequada compreensão desse fenômeno levaria ao que, na visão de Delmas-Marty, constitui-se o locus de compartilhamento de sentidos ou mesmo o enriquecimento de sentidos pela troca de culturas enquanto modo mais democrático de interpenetração e crescimento e até mesmo da humanização da globalização59, pois é por meio dos direitos humanos, que se legitimam como democrático o constitucionalismo contemporâneo. Por isso, é consenso que a positivação dos direitos fundamentais indica o resultado de uma opção democraticamente instituída pelo Estado na defesa dos direitos humanos, os quais determinam, mais do que orientam, a sua vinculação (e de seus agentes) seja contra atos normativos ou mesmo não-normativos, internos e internacionais. Porém, os discursos formalistas e estatalistas não podem segurar a substancialização que o debate exige, sobretudo, ao se considerar que as controvérsias sobre os direitos humanos decorrem da possibilidade de leituras diversas do conceito, da pluralidade conflituosa de interpretações/concretizações das normas e da incongruência prática dos diferentes tipos de direitos humanos60. Conforme adverte Häberle a unidade, coerência e hierarquia do sistema jurídico não podem ser corolário de um único princípio dominante e do qual 58 Cf. PÉREZ LÚNO, Antonio Enrique. El desbordamiento de las fuentes del derecho. Madrid: La Ley, 2011, p. 82 et seq; HÄBERLE, Peter. Pluralismo y constituición: estúdios de teoria constitucional de la sociedad aberta. Madrid: Tecnos, 2002. 59 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um direito mundial. Trad. Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003. p. 19-20. 60 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 256.

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mecanicamente se derivam os demais. No Estado Constitucional, que é o Estado de uma ‘sociedade aberta’, o sistema jurídico e seus postulados básicos exigem de seu intérprete uma atitude aberta e a hermenêutica como instância crítica – baseada em um processo dinâmico baseado em alternativas práticas e num pensamento de possibilidades - em detrimento de um monopólio metodológico cerrado e hermético61. É inexorável, portanto, a (inter)relação entre Direitos Humanos, Estado de Direito e Constituição conforme teoriza Perez Luño, para quem o estreitamento da relação entre esses elementos é que se vai lograr a superação da ideia estritamente ética dos direitos humanos à sua elevação a caráter jurídico e político legitimador dos Estados de Direito e de suas Constituições62. No entanto, dizer isso, não é suficiente para evitar as violações de direitos humanos e fundamentais, seja por parte do Estado como por parte de pessoas ou grupos, nacionais ou internacionais, por isso a necessidade de una esfera que rebasara el arbítrio de la jurisdicción interna de cada Estado63. A dificuldade de superação de um modelo hierárquico-normativista, especialmente, em países em sistema de base romano-germânica como ocorre na América Latina tem grande repercussão nas decisões políticas e no alcance dos objetivos fundamentais das Constituições. No caso do Brasil, por exemplo, isso se verifica muito claramente na questão do tratamento dispensado aos tratados e convenções internacionais de direitos humanos como foi até aqui longamente demonstrado. Como já fora destacado, o tema direitos humanos requer a máxima prudência histórica, especialmente em países, como o Brasil, onde seu tratamento teórico e normativo tem dado indicativos de não ter atingido um nível autêntico dos discursos, aprisionado nas ‘compreensões’ baseadas em preconceitos improdutivos ou modelos autoritários, os quais somente servem a reprodução da desigualdade social. Nesse cenário, há muito espaço (hermenêutico) para recuperar a tradição 61 Pluralismo y constituición: estúdios de teoria constitucional de la sociedad aberta. Madrid: Tecnos, 2002, p. 45 et seq. 62 PEREZ LUÑO, A. E. Derechos humanos, Estado de Derecho y Constituición. 10ª. ed. Madrid: Tecnos, 2010. 63 Id. Ibid., p. 131. volume

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(autêntica), a partir de um exercício fenomenológico, buscando ilidir aquilo que foi perdido na pretensa objetividade da regra e na subjetividade dos intérpretes, nos discursos autoritários ou de ocasião que obscurecem a normatividade dos direitos humanos. A ideia do diálogo em Gadamer está assentada na (dia)lógica de que: é somente através de outros que entendemos a nós mesmos, já que através dos outros podemos encontrar uma autocrítica à nossa compreensão histórica64, numa espécie de instância crítica do processo interpretativo, a qual opera como se fosse um teste permanente do elemento fundamental do ser humano, a compreensão. O homem enquanto ser hermenêutico (finito e histórico) e que determina sua experiência de mundo através da linguagem65, só o é na linguagem, isto é, a linguagem é, enfim, constitutiva do homem e da sociedade, pois é na linguagem que o mundo nos aparece e se dá enquanto mundo66. A grande virtude do diálogo hermenêutico na forma em que defendido é seu comprometimento com a tradição, não como uma verdade absoluta, mas aberta permanentemente a possibilidade de enriquecê-la, confirmá-la ou modificála, até mesmo como modo de se contribuir para a descoberta de nossa própria identidade67. Há, portanto, nesse diálogo um horizonte que nos orienta e nos compromete evolutivamente, na medida em que interroga e/ou deixa interrogarse pelas práticas cotidianas do ser humano, inclusive, no Direito. Se a experiência da existência humana em Gadamer atua como ‘interlocutor’ do homem na sua cotidianidade e das coisas no mundo, via linguagem, que não tem linguagem, não tem compreensão, logo, sem linguagem não há entendimento e nem sentido, estamos à deriva do conhecimento. No fundo, são essas típicas deficiências positivistas que em nome das logicidade das formas e na aposta no protagonismo autoritário do intérprete abdica do debate hermenêutico e da construção produtiva e democrática do direito. 64 GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Pierre Fruchon (Org.). Tradução Paulo César Duque Estrada. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p. 12-13. 65 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea. 3ª. ed. São Paulo: Loyola, 2006, p. 226. 66 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 10ª ed., rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 223. 67 GADAMER, Hans-Georg. Ibid., p. 13.

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A complexidade do diálogo de Gadamer nos vai exigir que num encontro (com o texto ou uma pessoa) a pré-compreensão que nos determina e modela nossos preconceitos seja colocada em suspenso, de maneira a permitir a abertura para novas expectativas de sentido do outro, numa espécie de desafio crítico de nossa experiência. É assim porque toda a verdadeira experiência (dialógica) é um confronto, onde se opõe o novo ao antigo e nunca se sabe se o novo prevalecerá ao fim de tornar-se experiência, ou se o antigo, reconquistará finalmente sua consistência68. Por isso é que Gadamer vai dizer que estar-em-conversação significa estaralém-de-si-mesmo, pensar com o outro e voltar sobre si mesmo como outro69, pois o diálogo é mais que uma metodologia para o conhecimento, mas um modode-ser e que se vive toda vez que ele realmente se instaura70. O diálogo é, portanto, uma experiência de fusão de horizontes que se apresenta como reflexão ontológico-hermenêutica, uma vez que a questionabilidade de algo põe a descoberto a limitação de nossa experiência de mundo e a necessidade de estarmos abertos a novas expectativas de sentido, responsáveis por ampliar nosso horizonte hermenêutico. Trata-se, notadamente, de uma dinâmica comprometida com a alteridade que atravessa o fenômeno da compreensão crítica ou fusão dialógica, de onde a verdade emerge como revelação de um acontecimento mundano daquele(s) que se dispõem a experiência de colocar à prova seu horizonte ao encontro da (nova) experiência do texto ou do interlocutor. Não seria exagero, assim, dizer que o diálogo, por ser um modo de ser constante, é quem dá sentido a vida, pois a circularidade da compreensão se movimenta (inicia) toda a vez que se é interpelado por aquilo que é estranho em nossa experiência e que, por consequência, nos mobiliza ir ao encontro de novas possibilidades de ser na linguagem. Fundamentalmente é isso, o que sustenta a universalidade da hermenêutica em Gadamer.

68 GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. [...], p. 14. 69 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II: complementos e índice. Trad. Ênio Paulo Giachini. 6ª. ed. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 428. 70 KOSELLECK, Reinhart. GADAMER, Hans-Georg. Historia y hermenéutica. Barcelona, Paidós, 1997, p. 121 et seq. volume

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Onde a linguagem munda o sujeito, toda vez que o texto ou o interlocutor os falam, faz parte da dinâmica do diálogo colocar em suspenso os preconceitos do intérprete e a disponibilidade de revisar o horizonte hermenêutico da sua experiência. A verdade é aqui, portanto, produto de um acontecer estruturado e comprometido com a alteridade enquanto crítica (ontológica) ao modo de conhecimento do sujeito solipsista da modernidade presente no Direito. O que se quer destacar é que no diálogo é capaz de produzir a verdade como acontecer histórico (não dedutivo) resultado da mediação da experiência linguística – entre passado e presente –, daí porque não é uma verdade metódico-artificialepistemológica. É um acontecer, e como tal, ametódico, não-manipulável ou não assujeitável, como uma revelação de que pertencemos a história e não ela que nos pertence. A tradição a que se pertence não é objetificável, portanto, insuscetível de manipulação arbitrária, como reflexamente se produziu no acoplamento do caráter supralegal aos tratados de direitos humanos no Brasil. A questionabilidade (pergunta) que instaura o diálogo busca desvelar o que está velado em nossa experiência (reencontro com a coisa mesma), colocando novamente em movimento nossa parada (hermenêutica) em busca de novas possibilidades de sentido, mas que não se descuida da historicidade do ser, apenas o recoloca em jogo no presente e o projeta para futuro. Todavia, a opção do legislador, a decisão do STF (supralegalidade) e a omissão na doutrina acabaram por objetificar a experiência hermenêutica e, assim, sufocar as expectativas de sentido, sem permitir que sobre o ser do sentido se garanta a expectativa de um novo diálogo. Essa, portanto, é a grande dificuldade das metodologias de cunho lógico-formal ou generalizantes, as quais se caracterizam por desprestigiar o caráter histórico da compreensão, suas histórias são sempre falhadas, recortadas, assujeitadas no nível epistemológico - não há um compromisso com aquilo que se herdou da tradição, enfim, um prejuízo em se pensar sob a mira da metáfora do romance em cadeia de que nos apregoou Ronald Dworkin71. Mais agudamente no Direito, enquanto ciência interpretativa, a prática dominante que ainda acredita no modo dedutivo de conhecimento das hermenêuticas clássicas e/ou especiais, a probabilidade de acerto interpretativo 71 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 275.

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somente se dá mediante consenso, pois a (re)produção de sentidos nestes casos não encontram nenhum enraizamento ontológico-hermenêutico. O compreender, neste contexto, passa a ser um existencial daquele que interpreta, numa espécie de autocompreensão e realização da vida social, onde nenhuma experiência escapa a comunidade de diálogo72, de maneira que não há metodologia que dê conta da obtenção de uma totalidade interpretativa, pois sempre escapa algo, é inevitável73, é da faticidade humana. A compreensão está diretamente relacionada com as experiências do homem e ao recurso do diálogo com a tradição – enquanto saber existente –, pois a historicidade do homem é quem permitirá o encontro entre a racionalidade e a linguagem. Assim, por exemplo, a atribuição de sentido (sinngebung) de um texto, irá sempre questionar qual o significado da tradição histórica ao intérprete frente à realidade do cotidiano. No entanto, esse processo produtivo, não se enquadra na cientifização metodológica das verdades absolutas (monológicas) de sentidos reproduzidos (auslegung) pelo sujeito, mas sim num processo dialógico (prático), que favorece novas possibilidades de sentido sem prejuízo da tradição e da consciência histórica, enquanto interlocutores do presente e direção para o futuro. Todavia, isso só é possível através da linguagem (não como instrumento), pois é ela quem permite essa intersubjetividade dialógica de manifestação de sentido entre a tradição e o presente e o projeto futuro. Por isso, é que se afirma que existe espaço para o desenvolvimento de outras narrativas sob uma nova perspectiva de diálogo (hermenêutico) entre fontes (Constituição e tratados e convenções de direitos humanos) em detrimento do encobridor debate de cunho hierárquico-normativista. Numa linha hermenêutica, a ‘ordem’ dos sistemas, desaparece na linguagem, pois não passa de uma abstração-ficcionalizante construída sob uma idolatria à neutralização científica ocultadora das ideologias de ocasião. É preciso revolver o chão linguístico, que sustenta essa tradição inautêntica, para buscar revelar a essência das novas faces da normatividade jurídica. 72 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II: [...], p. 159 e 297. 73 STRECK, Lenio Luiz. Ibid., p. 236. volume

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Neste passo, é irrefreável a mudança do papel do Estado no constitucionalismo contemporâneo mediante a opção soberana pela prevalência dos direitos humanos. Nisso se valida a busca por novos horizontes para uma refundação jurídico-filosófica de tutela dos direitos humanos (e fundamentais), fenômenos os quais não podem ser olvidados por discursos retórico-ideológicos que insistem em operar numa ‘hermenêutica’ de baixa constitucionalidade. A internacionalização do Direito deverá encontrar nas Constituições – e o Brasil não foge a regra -, a face normativa, invasora da legalidade e fundadora do espaço público democrático, como fundamento para a atenuação da singularidade estatal favorecedora do pluralismo jurídico e da autonomização do Direito, aberto a universalidade e transcendência dos direitos humanos em todas as dimensões constitutivas da sociedade. Trata-se, portanto, de um compromisso hermenêutico orientado para a reflexão produtivo-emancipatória sobre novas racionalidades políticas, jurídicas e filosóficas, do que propriamente, a busca por mais um ‘fundamento último’ de cunho sistemático-procedimental. As análises teóricas apontam que é possível se construir uma nova racionalidade para excetuar ou ultrapassar a lógica hierárquica dominante, que reduz o papel transformador do Direito e alienam o imaginário da comunidade jurídica e política. Enfim, o caminho está aberto, é preciso trilhar. 6. referências ALCALÁ, Humberto Nogueira. Diálogo interjurisdiccional, control de convencionalidad y jurisprudencia del Tribunal Constitucional en período 2006-2011. Estudios Constitucionales, Año 10, Nº 2. ISSN 0718-0195. Centro de Estudios Constitucionales de Chile Universidad de Talca. BOLZAN DE MORAIS, J. L.; VIEIRA, Gustavo Oliveira. Estado e Constituição em tempos de abertura: a crise conceitual e a transição paradigmática num ambiente intercultural. In Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD). Vol. 5, no. 2, julhodezembro 2013. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas-corpus no. 72131, plenário, Brasília, DF, 23 de novembro de 1995. Disponível em: http://redir.stf.jus. 112

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o direito à educação superior na constituição br asileir a de 1988: uma leitur a gar antista1 Horácio Wanderlei Rodrigues2 Leilane Serratine Grubba 3

Resumo O objeto do artigo é a análise do Direito de acesso à educação superior e seus desdobramentos relativamente à permanência, à transferência, ao aproveitamento de estudos e ao desligamento do estudante inserido no sistema. O objetivo do artigo é situar o seu objeto, o direito à educação, no âmbito de uma análise do garantismo jurídico. A análise é realizada fundamentalmente no âmbito normativo, partindo dos princípios constitucionais aplicáveis para estudar as regras específicas existentes no campo do Direito Educacional. A conclusão central é no sentido de que as normas educacionais, de forma geral, devem ser interpretadas no sentido de garantir o acesso; uma vez assegurado esse acesso, deve ser garantida a permanência do aluno no sistema, e mesmo sua reintegração, até que possa concluir o curso.

1 Este trabalho constitui uma versão revisada, ampliada e atualizada do artigo Direito à educação: acesso, permanência e desligamento de alunos do ensino superior (RODRIGUES, 2006), realizada por Leilane Serratine Grubba. Além da análise sob o prisma do Garantismo inclui, em relação ao texto original, questões relativas ao novo Plano Nacional de Educação, à Lei de Cotas nas IFES e a algumas decisões do STF em matéria de direito à educação. 2 Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com estágio de Pós-doutorado em Filosofia na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS. Professor Titular do Departamento de Direito da UFSC, lecionando no Curso de Graduação e no Programa de Pós-graduação (PPGD - Mestrado e Doutorado). Sócio fundador do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI) e da Associação Brasileira de Ensino do Direito (ABEDi). Membro do Instituto Iberomericano de Derecho Procesal (IIDP). Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Coordenador do Núcleo de Estudos Conhecer Direito (NECODI). 3 Doutoranda em Direito e Mestre em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora Substituta do Curso de Graduação em Direito da UFSC. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Conhecer Direito (NECODI) e do Grupo de Estudos Direito e Literatura (LITERATO). Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). volume

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Palavras-chave Educação superior; Ensino superior; Aproveitamento de estudos; Transferência; Jubilamento; Garantismo.

Abstract The article aim is the analysis of the Brazilian constitutional right of access to higher education and its consequences regarding the stay, transfer, studies and the student shutdown. The objective proposed is to situate the right to education in the context of an analysis of the legal garantism. The analysis is performed primarily at the normative level, based on Brazilian constitutional principles applicable to study the specific rules existing in the field of Educational Law. The central conclusion is the sense that educational standards must be interpreted to guarantee the access of the student; once assured that access, to guarantee that the student will remain in the system, and even reinstatement until the student can complete the course.

Key words Higher education; Higher education; Harnessing studies; Transfer; Expulsion due time; Garantism. 1. introdução O objeto deste artigo é a análise do direito de acesso à educação superior e seus desdobramentos relativamente à permanência, à transferência, ao aproveitamento de estudos e ao desligamento do estudante inserido no sistema. O objetivo do artigo é situar o direito à educação no âmbito de uma abordagem garantista – garantia e tutela do direito subjetivo à educação. Nesse sentido, busca-se elucidar essas questões, recorrentes na discussão administrativa no âmbito do ensino superior, e para as quais nem sempre são apresentadas as soluções mais adequadas. Diante disso, o conteúdo a ser trabalhado nas próximas páginas destina-se à utilização por dirigentes de Instituições de Ensino Superior (IES) e, em especial, pelos coordenadores de cursos. A análise realizada tem por base fundamentalmente o campo normativo, partindo dos princípios constitucionais aplicáveis para 118

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estudar as regras específicas existentes no campo do Direito Educacional, à luz do garantismo jurídico – a teoria geral do direito proposta por Luigi Ferrajoli. O artigo está dividido em cinco seções, além da introdução e da conclusão. A primeira trata de considerações básicas acerca do garantismo jurídico e da ideia de garantias. A segunda trata do direito de acesso ao ensino superior, em sentido amplo, incluindo o ingresso inicial, as diversas formas de reingresso e as transferências; a terceira trata especificamente da questão das transferências ex officio dos servidos públicos; a quarta do aproveitamento de estudos nas situações de transferências e reingressos; e a última da possibilidade de desligamento de estudantes por jubilamento. 2. consider ações iniciais sobre a noção de gar antismo jurídico Garantia, no pensamento do criador da teoria garantista enquanto uma teoria geral do direito, Luigi Ferrajoli (2008, p. 60), significa uma expressão do léxico jurídico com que se aponta quaisquer técnicas normativas de tutela de direito subjetivo. Conforme o supramencionado filósofo e teórico do direito, originariamente, o termo garantia tinha um significado mais restritivo: Por garantía se entiende, en el lenguaje de los civilistas, un tipo de instituto, derivado del derecho romano, dirigido a asegurar el cumplimiento de las obligaciones y la tutela de los correspondientes derechos patrimoniales. Justamente en relación con estos derechos, se distinguen dos clases de garantías: las garantías reales, como son la prenda o la hipoteca, mediante las cuales el deudor pone a disposición del acreedor un bien – mueble, en el primer caso, inmueble, en el segundo – con el que resarcirse en caso de incumplimiento; y las garantías personales, como la fianza y el aval, a través de las cuales un tercero se obliga, en caso de incumplimiento de la obligación, a satisfacerla en el lugar del deudor. (FERRAJOLI, 2008, p. 60-61).

É recente, por conseguinte, a ampliação do significado do termo garantia e a introdução do neologismo garantismo, que conforme Ferrajoli, se refere às técnicas de tutela dos direitos fundamentais – direitos universais, indispensáveis e inalienáveis, atribuídos normativamente a todas as pessoas, como o direito de volume

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liberdade e os direitos sociais, ou seja, são direitos de cunho negativo, no qual o Estado se abstém de interferir na vida do cidadão (liberdade) e direitos de cunho positivo, os quais implicam numa prestação por parte dos poderes públicos. (2008, p. 61). De fato, segundo Cademartori e Strapazzon (2010, p. 286) o desafio recente é “produzir uma teoria garantista dos direitos subjetivos enquanto direitos fundamentais, ou seja, que explique as técnicas disponíveis no sistema de direito positivo atual para garantir os direitos universais de liberdade e direitos sociais fundamentais”. A partir da concepção filosófico-política sobre quais os direitos que deveriam ser considerados e garantidos como fundamentais, Ferrajoli (2007, p. 73-74) desenvolveu uma resposta de caráter normativo. Para ele, a primeira resposta é oferecida pela teoria do direito – plano teórico-jurídico –, ou seja, aduz que direitos fundamentais são aqueles adstritos universalmente a todos enquanto pessoas ou enquanto cidadãos com capacidade de obrar. São, por isso, indisponíveis e inalienáveis. A segunda resposta é oferecida pelo direito positivo – dogmática constitucional ou internacional – e aduz que direitos fundamentais são direitos universais e indisponíveis, estabelecidos nos ordenamentos jurídicos ou na Declaração Universal dos direitos humanos de 1948 ou nos Pactos internacionais de 1966 e nas demais convenções internacionais de direitos humanos. A terceira resposta, oferecida pela filosofia política, implica que direitos fundamentais estão fundamentados na dimensão normativa4. No intuito de sintetizar a concepção de Ferrajoli (2001, p. 19) a respeito dos direitos fundamentais, devemos salientar que, em última instância, a partir de uma definição formal, eles são direitos de todos, isto é, direitos subjetivos que correspondem universalmente a todos os seres humanos enquanto seres dotados de personalidade – cidadãos –, sendo entendido o direito subjetivo como qualquer expectativa, seja ela positiva de prestação ou negativa, de não sofrer qualquer tipo de lesão, por exemplo; adstrita a um sujeito por uma norma jurídica. 4 Para saber mais sobre Direitos Fundamentais, vide: ALEXY, Robert. Los derechos fundamentales en el estado constitucional democrático. In: CARBONEL, Miguel (Ed.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003.

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Conforme Ferrajoli, essa definição apresentada no parágrafo anterior deve ser considerada uma definição teórica: [...] aun estando estipulada con referencia a los derechos fundamentales positivamente sancionados por leyes y constituciones en las actuales democracia, prescinde de la circunstancia de hecho de que en este o en aquel ordenamiento tales derechos se encuentren o no formulados en cartas constitucionales o leyes fundamentales, e incluso del hecho de que aparezcan o no enunciados en normas de derecho positivo. En otras palabras, no se trata se una definición dogmática, es decir, formulada con referencia a las normas de un ordenamiento concreto, como, por ejemplo, la Constitución italiana o la española. Conforme a esto, diremos que son los derechos adstritos por un ordenamiento jurídico a todas las personas físicas en cuanto tales, en cuanto ciudadanos o en cuanto capaces de obrar. Pero diremos también, sin que nuestra definición resulte desnaturalizada, que un determinado ordenamiento jurídico, por ejemplo totalitario, carece de derechos fundamentales. La previsión de tales derechos por parte del derecho positivo de un determinado ordenamiento es, en suma, condición de su existencia o vigencia en aquel ordenamiento, pero no incide en el significado del concepto de derechos fundamentales. Incide, todavía, menos sobre tal significado la previsión de un texto constitucional, que es sólo una garantía de su observancia por parte del legislador ordinario: son fundamentales, por ejemplo, también los derechos adscritos al imputado por el conjunto de las garantías procesales díctalas por el código procesal penal, que es una ley ordinaria. (2001, p. 19-20). En segundo lugar, la nuestra es una definición formal o estructural, en el sentido de que prescinde de la naturaliza de los intereses y de las necesidades tutelados mediante su reconocimiento como derechos fundamentales, y se basa únicamente en el carácter universal de su imputación: entiendo en el sentido puramente lógico y avalorativo de la cuantificación universal de la clase de los sujetos que son titulares de los mismos. De hecho son tutelados como universales, y por consiguiente fundamentales, la libertad personal, la libertad de pensamiento, los derechos políticos, los derechos sociales y similares; Pero allí donde tales derechos fueran alienables y por tanto virtualmente no universales, como acontecerá, por ejemplo, en una sociedad esclavista o totalmente volume

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mercantilista, éstos no serían universales ni, en consecuencia, fundamentales. A la inversa, si fuera establecido como universal un derecho absolutamente fútil, como por ejemplo el derecho a ser saludados por calle por los propios conocidos o el derecho a fumar, el mismo sería un derecho fundamental. (2001, p. 20-21).

Segundo Ferrajoli (2001, p. 21), a vantagem de uma definição dos direitos fundamentais que seja formal ou estrutural, como a sua, reside em sua validez universal – válida para qualquer ordenamento jurídico –, inclusive em ordenamentos totalitários ou pré-modernos. Isso porque, conforme o autor, independem os bens a serem tutelados por direitos fundamentais – é válida qualquer filosofia jurídica ou política, seja ela positivista, jusnaturalista, liberal, socialista, antiliberal, antidemocrática, etc. Nesse sentido, não importam os bens tutelados, mas que haja a tutela de bens valorados como direitos fundamentais e garantidos pelo ordenamento jurídico. Importante ressaltar que, a partir da década de 1930, o mundo jurídico suscitou uma polêmica constitucionalista centrada no problema da normatização e auferimento da densidade relativa aos direitos fundamentais. Conforme Grubba e Cademartori: Tal empreitada compre­endeu não somente os originários direitos de liberdade, mas igualmente direitos sociais, políticos, econômicos e cívicos. Contudo, não obstante sua importância, grande parte das problematizações teóricas sobre tais Direitos, ao afirmar genericamente sua universalidade e necessária implementação, reduzem sua riqueza de conteúdos e complexidade temática, ao deixar de analisar-se o caráter ideológico, político, social, econômico e cultu­ral que decorre da sua dimensão normativa de direitos constitucionalmente positivados. Paradoxalmente, à medida em que se multiplicou, paulatinamente, a regulação dos Direitos Fundamentais, aumentaram significativamente suas próprias violações e tentativas governamentais de supressão, visando à eliminação de uma variada gama de conquistas sociais, econômicas e culturais, oriundas destes mesmos direitos. Nesse sentido, qualquer análise teórica que desvincule as ficções normativas da práxis social, vale dizer, da realidade concretamente vivenciada, além de se configurar em diletantismo teórico, contribui, mesmo que indiretamente, para 122

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legitimar a violação dos Direitos Fundamentais e sua não garantia. (2012, p. 158).

De fato, o garantismo jurídico surgiu, nesse sentido, com a promessa de garantia dos direitos fundamentais, primeiramente na seara penal, ante um débil sistema de garantias processuais penais5. Sequencialmente, segundo Ferrajoli, o garatismo passou a abarcar os demais ramos do direito e configurou-se numa teoria geral do direito, extensível a todos os campos do direito subjetivo, sejam patrimoniais ou fundamentais, e a todos o conjunto dos poderes públicos e privados, estatais ou internacionais. No entender do pensador, isso implica que “todas as garantias tem, em comum, o fato de terem sido previstas e sabe-se que sua falta daria lugar à violação do direito que, em casa caso, constitui o seu objeto”. (2008, p. 62). Existem, conforme Ferrajoli, diversos modelos de garantismo, conforme o tipo de direitos que se dispõe a proteger com técnicas idôneas para assegurar a sua efetiva tutela ou satisfação. Ainda assim, em geral, pode-se falar de garantismo para designar o conjunto total de limites e vínculos impostos a todos os poderes, sejam eles públicos ou privados, estatal ou internacional, mediante os quais se tutelam, por meio da supremacia da lei e, em concreto, supremacia dos direitos fundamentais estabelecidos em lei, tanto as dimensões privadas frente aos poderes públicos, como as dimensões públicas frente aos poderes privados. (2008, p. 61). Nesse sentido, Sérgio Cademartori e Daniela Cademartori afirmam que o garantismo “[...] consiste na tutela de todos esses direitos fundamentais, que representam os alicerces da existência do Estado e do direito, que os justificam, e que propiciam a base substancial da democracia.” (2006, p. 151-152). Ainda segundo os pensadores, o Estado tem a obrigação de garantir os direitos fundamentais por ele tutelados. Isso porque os direitos fundamentais devem ser vistos como garantias dos cidadãos, instituídas contra a maioria e contra os poderes. (2006, p. 152). A teoria garantista de Ferrajoli nos permite verificar a eficácia do princípio da legalidade no Estado Constitucional de Direito, como o Estado brasileiro, 5 Sobre o assunto, vide CADEMARTORI, Sérgio; STRAPAZZON, Carlos Luiz. Principia Iuris: uma teoria normativa do direito e da democracia. Revista Pensar, Fortaleza, v. 15, n. 1, p. 278-302, jan./jul. 2010. volume

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tanto no que tange à inflação legislativa quanto no que tange ao cumprimento da garantia dos direitos das constituições – a garantia dos direitos por meio de uma teoria cognoscitiva que afirma a submissão e vinculação de todos os poderes aos direitos fundamentais. 3. o acesso à educação superior no direito br asileiro O acesso inicial à educação superior, segundo a Constituição Federal (CF), deve ocorrer considerando a capacidade individual: Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: [...] V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um; [...]

Ainda sobre o acesso à educação superior de graduação, assim se manifesta a Lei de Diretrizes e Bases na Educação Nacional (LDB): Art. 44. A educação superior abrangerá os seguintes cursos e programas: [...] II - de graduação, abertos a candidatos que tenham concluído o ensino médio ou equivalente e tenham sido classificados em processo seletivo; [...]

Em 2012 foi editada a Lei nº 12.711, que trata das cotas nas Instituições Federais de Educação Superior (IFES). Essa Lei reservou 50% das vagas nessas instituições para alunos oriundos de Escolas Públicas. A Lei privilegia ainda a destinação de vagas para pretos, pardos e indígenas, e para aqueles cuja renda familiar seja inferior a 1,5 salário-mínimo per capita. Art. 1º As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. 124

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Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita. [...]. Art. 3º Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Parágrafo único. No caso de não preenchimento das vagas segundo os critérios estabelecidos no caput deste artigo, aquelas remanescentes deverão ser completadas por estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. [...]. Art. 7º O Poder Executivo promoverá, no prazo de 10 (dez) anos, a contar da publicação desta Lei, a revisão do programa especial para o acesso de estudantes pretos, pardos e indígenas, bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, às instituições de educação superior. Art. 8º As instituições de que trata o art. 1º desta Lei deverão implementar, no mínimo, 25% (vinte e cinco por cento) da reserva de vagas prevista nesta Lei, a cada ano, e terão o prazo máximo de 4 (quatro) anos, a partir da data de sua publicação, para o cumprimento integral do disposto nesta Lei.

Em razão do disposto na Constituição Federal, no artigo 208, inciso V (acesso segundo a capacidade de cada um), no artigo 3º, inciso IV (é objetivo do Estado brasileiro: “promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”) e no caput do artigo 5º (exigência de isonomia), foi questionada na doutrina e nos tribunais a definição de cotas tendo por base o critério racial.6 Essa questão, entretanto, já está pacificada, 6 Cabe destacar que o acesso considerando cotas fixadas com base em critério socioeconômico, considerando o disposto no artigo 3º, inciso III (é objetivo do Estado brasileiro: “erradicar volume

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tendo em vista as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido de sua constitucionalidade, entre as quais pode se destacar a decisão proferida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPV) 186 e a decisão proferida no Recurso Extraordinário (RE) 597285. No que diz respeito ao Plano Nacional de Educação (PNE), exigência presente do artigo 214 da Constituição de 1988, em termos de ampliação do acesso ao ensino superior, sua versão 2001-2010 traçou alguns objetivos e metas, que deveriam ser efetivados através de políticas públicas específicas. Dentre os listados no item 4.3 do PNE 2001-2010, pode-se destacar: 1. Prover, até o final da década, a oferta de educação superior para, pelo menos, 30% da faixa etária de 18 a 24 anos. [...] 3. Estabelecer uma política de expansão que diminua as desigualdades de oferta existentes entre as diferentes regiões do País. 4. Estabelecer um amplo sistema interativo de educação a distância, utilizando-o, inclusive, para ampliar as possibilidades de atendimento nos cursos presenciais, regulares ou de educação continuada. [...] 19. Criar políticas que facilitem às minorias, vítimas de discriminação, o acesso à educação superior, através de programas de compensação de deficiências de sua formação escolar anterior, permitindo-lhes, desta forma, competir em igualdade de condições nos processos de seleção e admissão a esse nível de ensino. [...]

Já do novo Plano Nacional de Educação para o período 2011-20207 constam 20 metas, destacando-se relativamente à Educação Superior: Meta 12: elevar a taxa bruta de matrícula na educação superior para 50% (cinquenta por cento) e a taxa líquida para 33% (trinta e três por cento) da população de 18 (dezoito) a 24 (vinte e quatro) anos, assegurada a qualidade da oferta e expansão para, a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”), sofreu e sofre contestação bem menor. 7 O PNE 2011-2020 foi aprovado em sua versão final, pela Câmara do Deputados, em 3 de junho de 2014; encontra-se na data de conclusão deste artigo na Presidência da República para sanção.

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pelo menos, 40% (quarenta por cento) das novas matrículas, no segmento público. Meta 13: elevar a qualidade da educação superior pela ampliação da proporção de mestres e doutores do corpo docente em efetivo exercício no conjunto do sistema de educação superior para 75% (setenta e cinco por cento), sendo, do total, no mínimo, 35% (trinta e cinco por cento) doutores. Meta 14: elevar gradualmente o número de matrículas na pósgraduação stricto sensu, de modo a atingir a titulação anual de 60.000 (sessenta mil) mestres e 25.000 (vinte e cinco mil) doutores. [...]. Meta 20: ampliar o investimento público em educação pública de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% (sete por cento) do Produto Interno Bruto - PIB do País no 5º (quinto) ano de vigência desta Lei e, no mínimo, o equivalente a 10% (dez por cento) do PIB ao final do decênio.

Esse conjunto de disposições estabelece alguns princípios centrais relativamente à questão do acesso: a) o acesso, segundo a CF, deve decorrer de mérito individual do candidato; b) o objetivo do Estado brasileiro, segundo o PNE 2001-2010 e também segundo o novo PNE 2011-2020, é ampliar o acesso; c) o mecanismo, segundo a LDB, para selecionar, considerando o mérito, aqueles que ingressarão no sistema é o processo seletivo; d) considerando-se a característica meritocrática do acesso à educação superior, o PNE 2001-2010 estabeleceu a necessidade de criar para as minorias e grupos vítimas de discriminação, programas de compensação de deficiências de sua formação escolar anterior. Posteriormente houve a implementação do Sistema de Cotas nas IFES, já considerado constitucional pelo STF. 4. o acesso à educação superior e suas formas Quando se trata do acesso à Educação Superior é possível tratar de situações diversas. Há o ingresso inicial e há o retorno do aluno que trancou o curso ou volume

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simplesmente desistiu. E há o reingresso daqueles que já concluíram um curso, bem como a situação daqueles que decidem trocar de curso. É disso que tratarse-á nas próximas páginas. Antes de ingressar especificamente nos mecanismos de acesso, é importante ressaltar que as normas educacionais, de forma geral, devem ser interpretadas no sentido de garantir o acesso (ingresso inicial e reingresso) e, uma vez assegurado esse acesso, garantir a permanência do aluno no sistema e mesmo sua reintegração. Qualquer interpretação que contrarie esse grande princípio, que permeia todo o Direito Educacional brasileiro, não deve ser considerada. Isso porque, o Estado Brasileiro, democrático e garantista, elegeu em sua Constituição Federal o direito social à educação, em seu artigo sexto, como direito fundamental que requer a prestação dos poderes estatais. Nesse sentido, as normas educacionais devem ser emanadas e interpretadas tão somente no sentido da garantia do acesso do acadêmico à educação e de sua posterior permanência no sistema de ensino. 4.1. o ingresso inicial O processo seletivo tradicional na história da educação superior brasileira é o vestibular, realizado através de provas de ingresso, com número definido de vagas. Entretanto, novas alternativas para ingresso vêm sendo utilizadas de forma crescente, entre as quais se destacam a utilização da nota do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e análise de histórico escolar. Nesses dois casos há uma análise necessária de mérito, comprovada por um instrumento de avaliação, e o ingresso se dá utilizando vaga inicial, tendo em vista que o aluno ingressará necessariamente no primeiro período do curso. Atualmente diversas IFES integram o Sistema de Seleção Unificada (SiSU)8 que adota o ENEM como instrumento de processo seletivo, destinando-lhe milhares de vagas; outras inúmeras instituições utilizam sistemas mistos, entrando o ENEM como um dos elementos que compõem processo seletivo. Destaque-se ainda a necessidade de publicidade do processo seletivo, tendo em vista que as vagas no âmbito da educação superior são públicas, mesmo que 8 Para conhecer o SiSU acesse:

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pertencentes a cursos de instituições privadas. Essa situação traz a exigência de transparência dos critérios adotados e de isonomia na disputa das vagas existentes. 4.2. o retorno e o reingresso Nas situações de retorno de graduado e retorno de aluno desligado por abandono considera-se que aquele que já iniciou ou concluiu um curso superior já obteve o ingresso à educação superior, não havendo necessidade de provar novamente sua capacidade individual relativamente a outros candidatos que nunca ingressaram no sistema. Nesse sentido, o que se exige é a definição de um conjunto de critérios qualitativos para a classificação dos candidatos, visando estabelecer a ordem de preenchimento das vagas existentes. E em se tratando de vagas, para esses ingressantes, que já obtiveram anteriormente acesso ao sistema, podem ser utilizadas as vagas sobrantes, ou seja aquelas que o curso possui em razão das desistências, transferências e outras formas de desligamento9. Também, como esse aluno já obteve ingresso no sistema, o retorno pode se dar em qualquer instituição que integre o sistema e não apenas naquela na qual realizou o processo seletivo de ingresso inicial. 4.3. a tr ansferência Quando se fala de transferência, dentro do sistema de educação superior, há pelo menos duas situações diferentes: transferência de instituição e transferência de curso. Primeiramente é necessário destacar que, da mesma forma que no item anterior, aqui ocorre reingresso (em um novo curso ou em uma nova IES) de quem já obteve, em algum momento, a aceitação no sistema. Sobre a questão das transferências, a LDB contém o seguinte dispositivo: Art. 49. As instituições de educação superior aceitarão a transferência de alunos regulares, para cursos afins, na hipótese de existência de vagas, e mediante processo seletivo.

9 Exemplo: se um curso possui 200 vagas autorizadas e 5 anos de duração, pode possuir 1.000 alunos matriculados; havendo 850, o curso possui 150 vagas disponíveis. Essas vagas não podem, a princípio, ser utilizadas para processo seletivo de ingresso inicial, mas podem ser utilizadas para preenchê-las todas as demais formas de reingresso e transferências. volume

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Parágrafo único. As transferências ex officio dar-se-ão na forma da lei. É necessário, nesse tema, considerar duas situações distintas: a existência ou inexistência de vaga para a concessão. No que diz respeito à segunda (ausência de vaga), ela apenas poderá ser concedida para servidos públicos federais transferidos ex officio, na forma da Lei n.º 9.536/9710. Relativamente à primeira, a LDB estabelece sua possibilidade para alunos regulares, para cursos afins, havendo vaga, e mediante processo seletivo. Saliente-se ainda que a transferência pode ser interna (na mesma instituição, de um curso para outro), ou externa (de uma instituição para outra, para o mesmo curso ou para outro curso). No que diz respeito a alunos regulares, estão nessa situação os alunos matriculados e aqueles com a matrícula trancada na forma do regimento de cada instituição. Quanto à existência de vaga, é preciso que fique claro que a norma não se refere a vaga inicial, tendo em vista que o aluno já é integrante do sistema de educação superior, mas sim às vagas totais de cada Curso, ou seja, o número de vagas anuais autorizadas, multiplicado pelo número de anos de duração do respectivo Curso. Nesse caso, como no do reingresso, a exigência em termos de processo seletivo é a definição de um conjunto de critérios qualitativos para a classificação dos candidatos, visando estabelecer a ordem de preenchimento das vagas existentes. A situação que a primeira vista pode parecer mais complexa é a relativa ao requisito de que a transferência ocorra para curso afim. Mas em realidade não o é; pelo contrário. É necessário primeiro que se entenda que a educação é atividade de interesse público, motivo pelo qual o grau de intervenção do Estado é maior do que em outras atividades; em seguida, é necessário que se perceba que, no campo educacional, o objetivo contemporâneo do Estado brasileiro é a ampliação do acesso, não sua restrição; a manutenção de quem está no sistema, não sua exclusão. Nesse sentido caminham todas as políticas públicas atuais no campo da educação. Dentro desse contexto, a norma contida na LDB deve ser lida no sentido de que, havendo vaga e afinidade, deve a instituição receber a transferência (ou seja, não pode negá-la), pois o direito de acesso é um direito subjetivo público, 10 Sobre essa questão ver a seção 5 deste artigo.

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apenas sendo permitido à IES definir a forma de processo seletivo. Nesse sentido, a utilização do verbo “aceitarão”, no futuro do presente, tempo que no campo normativo indica um imperativo. Não havendo afinidade, a instituição não é obrigada a receber a transferência (o direito subjetivo público do participante do sistema a transitar horizontalmente dentro dele existe quando há a afinidade de curso), mas não existe também nenhuma proibição legal de fazê-lo; ou seja, pode a instituição receber a transferência (quer seja interna, quer seja externa) – nessa situação, e apenas nela, há uma opção que decorre da vontade da instituição e não de um direito pleno do requerente. Além da interpretação acima esposada, é necessário que se tenha presente que no mundo contemporâneo, o acesso ao conhecimento pertinente exige uma interpretação que considere o contexto, o global, o multidimensional e o complexo11. Nessa situação, é extremamente difícil falar de ausência de afinidade – é fundamental lembrar que para se falar em afinidade é necessário que se aceite a idéia de ausência de afinidade12. 5. tr ansferência coercitiva de servidores públicos É necessário, para compreender adequadamente as diversas questões relativas às possibilidades e limites do direito de transferência coercitiva dos servidores público, considerar em primeiro lugar a existência, no âmbito da educação superior, de instituições pertencentes a diferentes categorias administrativas. Nesse sentido, a Lei n.º 9.394/1996 (LDB) estabelece: Art. 19. As instituições de ensino dos diferentes níveis classificamse nas seguintes categorias administrativas: I - públicas, assim entendidas as criadas ou incorporadas, mantidas e administradas pelo Poder Público; 11 Conforme MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília: Unesco; 2000. 12 Já no século XIX, uma das principais teorias jurídica brasileiras da época, o Evolucionismo Jurídico (na Escola do Recife), foi construída considerando as descobertas de Darwin, no campo da Biologia. No século XX, um dos maiores juristas brasileiros, Pontes de Miranda, estruturou seu Fisicalismo Jurídico com base em uma análise que relacionava o Direito e as Leis da Física. Contemporaneamente, a partir da Física Quântica e de uma visão sistêmica, praticamente todos os conhecimentos podem ser relacionados. volume

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II - privadas, assim entendidas as mantidas e administradas por pessoas físicas ou jurídicas de direito privado.

Também é necessário considerar que essas diversas categorias de IES pertencem ou podem pertencer a diferentes sistemas de ensino, como estabelece a Constituição Federal: Art. 211. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino.

O direito à transferência aparece na LDB, em seu artigo 49; e o parágrafo único desse artigo remete a regulamentação das transferências ex officio para lei especial: Art. 49. As instituições de educação superior aceitarão a transferência de alunos regulares, para cursos afins, na hipótese de existência de vagas, e mediante processo seletivo. Parágrafo único. As transferências ex officio dar-se-ão na forma da lei.

Essa regulamentação aparece na Lei n.º 9.9536/1997, nos seguintes termos: Art. 1o A transferência ex officio a que se refere o parágrafo único do art. 49 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, será efetivada, entre instituições vinculadas a qualquer sistema de ensino, em qualquer época do ano e independente da existência de vaga, quando se tratar de servidor público federal civil ou militar estudante, ou seu dependente estudante, se requerida em razão de comprovada remoção ou transferência de ofício, que acarrete mudança de domicílio para o município onde se situe a instituição recebedora, ou para localidade mais próxima desta. Parágrafo único. A regra do caput não se aplica quando o interessado na transferência se deslocar para assumir cargo efetivo em razão de concurso público, cargo comissionado ou função de confiança.

E também está contemplado na Lei n.o 8.112/90: Art. 99. Ao servidor estudante que mudar de sede no interesse da administração é assegurada, na localidade da nova residência ou 132

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na mais próxima, matrícula em instituição de ensino congênere, em qualquer época, independentemente de vaga. Parágrafo único. O disposto neste artigo estende-se ao cônjuge ou companheiro, aos filhos, ou enteados do servidor que vivam na sua companhia, bem como aos menores sob sua guarda, com autorização judicial.

Nesse contexto específico é necessário considerar que o acesso ao ensino público gratuito somente pode ocorrer havendo o atendimento dos princípios constitucionais da “igualdade de condições para o acesso e permanência” (CF, art. 206, I) e de “acesso ... segundo a capacidade da cada um” (CF, art. 208, V). O acesso ao ensino público gratuito, por parte de servidor público, civil ou militar, não pode ferir esses princípios constitucionais, independentemente do que contenha a legislação infraconstitucional. A Lei n.o 9.536/97 regulamentou as transferências coercitivas, garantindo aos servidores públicos federais, civis e militares, que ela “será efetivada, entre instituições vinculadas a qualquer sistema de ensino”. Tendo em vista o que dispõe a constituição Federal, em seu artigo 211, os diferentes sistemas de ensino existentes no país são os organizados pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios. Não garante esse dispositivo, portanto, transferências de IES privadas para IES públicas, denominadas pela LDB, em seu artigo 19, de categorias administrativas; nem poderia fazê-lo, tendo em vista os princípios constitucionais antes referidos. A transferência para cursos afins, a que se refere o caput do artigo 49 da LDB, não se aplica às transferências coercitivas, tratadas em lei específica. Isso fica claro da leitura do texto, que se refere à “transferência de alunos regulares, para cursos afins, na hipótese de existência de vagas, e mediante processo seletivo”. Esse dispositivo traz expressamente duas exigências para a concessão da transferência para curso afim, (a) a existência de vaga, e (b) a realização de processo seletivo, inaplicáveis nas transferências coercitivas. A concessão de transferência para curso afim, em situações de transferência coercitiva, somente poderá ser concedida, por analogia, em situações excepcionais, quando inexistir, na localidade de destino do servidor, o mesmo curso no qual estava matriculado na localidade de origem, sob pena de quebra dos princípios constitucionais já mencionados anteriormente, e visando, de outro lado, não prejudicar o servidor removido no interesse da administração; volume

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Relativamente aos servidores públicos civis o RJU (art. 99) determina que a transferência coercitiva ocorra para “matrícula em instituição de ensino congênere”, ou seja, de IES pública para IES pública e de IES privada para IES privada, cumprindo dessa forma os princípios constitucionais já listados; No que se refere aos servidores públicos militares utiliza-se a mesma regra aplicável aos servidores públicos civis, pois embora não abrangidos pelo RJU, o direito à transferência coercitiva prevista na Lei n.º 9.536/97 deve ser interpretado à luz dos princípios constitucionais já expostos, o que impede tratamento diferenciado para essa categoria. Além disso, na ausência de norma específica para os militares, o princípio estatuído no RJU, de que a transferência coercitiva se dará entre instituições congêneres, constitui-se em norma de sobredireito, a ser aplicada a todos os servidores públicos federais; O direito à transferência coercitiva, com base na Lei n.º 9.536/97, é apenas dos servidores públicos federais (civis ou militares) estudantes (e seus dependentes estudantes) com “comprovada remoção ou transferência de ofício, que acarrete mudança de domicílio”. É discutível a sua aplicação, por analogia, para os servidores públicos estaduais - ocorrendo, deve a mesma respeitar os princípios constitucionais já referidos e o disposto no RJU, sob pena de atribuir-se maior direito ao servidor público estadual (a quem a lei somente se aplica por analogia) do que ao servidor público federal (para quem a lei foi expressamente editada); Em qualquer situação é necessário considerar que a própria Lei n.º 9.536/97, no parágrafo único do artigo 1º, estabelece que a transferência coercitiva “não se aplica quando o interessado na transferência se deslocar para assumir cargo efetivo em razão de concurso público, cargo comissionado ou função de confiança”. Ou seja, há três situações expressamente previstas na lei, nas quais o servidor não terá direito à transferência coercitiva: (a) quando o deslocamento ocorrer para assumir cargo efetivo em razão de concurso público; (b) quando o deslocamento ocorrer para assumir cargo comissionado; e (c) quando o deslocamento ocorrer para assumir função de confiança; A interpretação sistemática do conjunto normativo que trata das transferências coercitivas impõe as seguintes conclusões: (a) só possui o direito a transferência o servidor público (e seus dependentes), quando houver “comprovada remoção ou transferência de ofício, que acarrete mudança de domicílio” (Lei n. 134

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9.536/97, art. 1º), excluídas as situações de mudança de domicílio “para assumir cargo efetivo em razão de concurso público, cargo comissionado ou função de confiança” (Lei n.º 9.536/97, art. 1º, parágrafo único); (b) de forma expressa, somente possuem o direito definido na referida lei os servidores públicos federais (civis e militares) e seus dependentes; (c) o direito à transferência coercitiva só existe entre instituições que pertençam à mesma categoria administrativa, ou seja, de IES privada para IES privada e de IES pública para IES pública, sendo possível entre IES pertencentes a diferentes categorias administrativas apenas quando inexistir, na localidade de destino, em instituição congênere, o mesmo curso no qual o servidor ou seu dependente estava matriculado na localidade de origem; (d) o direito à transferência coercitiva para curso afim não está previsto na legislação que trata das transferências coercitivas e é possível unicamente quando não houver na localidade de destino o mesmo curso no qual o seu titular estava matriculado na localidade de origem; (e) em qualquer situação, independentemente da legislação infraconstitucional, o acesso ao ensino público gratuito somente pode ocorrer quando houver o atendimento dos princípios constitucionais da “igualdade de condições para o acesso e permanência” (CF, art. 206, I) e de “acesso ... segundo a capacidade da cada um” (CF, art. 208, V). Especificamente no que diz respeito às transferências coercitivas, de IES privada para IES pública, já há a posição expressa do STF quanto à sua inconstitucionalidade: ADI 3324/DF, Rel. Min. Marco Aurélio Melo, decisão de 16.12.2004, transitada em julgado em 17.08.2005 e publicada no DJ e no DOU em 24.08.2005. JULGAMENTO DO PLENO - PROCEDENTE EM PARTE DECISÃO: O TRIBUNAL, POR UNANIMIDADE, JULGOU PROCEDENTE, EM PARTE, A AÇÃO PARA, SEM REDUÇÃO DO TEXTO DO ARTIGO 1º DA LEI Nº 9.536, DE 11 DE DEZEMBRO DE 1997, ASSENTAR A INCONSTITUCIONALIDADE NO QUE SE LHE EMPRESTE O ALCANCE DE PERMITIR A MUDANÇA, NELE DISCIPLINADA, DE INSTITUIÇÃO PARTICULAR PARA PÚBLICA, ENCERRANDO A CLÁUSULA “ENTRE INSTITUIÇÕES VINCULADAS A QUALQUER SISTEMA DE ENSINO” A OBSERVÂNCIA DA NATUREZA PRIVADA volume

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OU PÚBLICA DAQUELA DE ORIGEM, VIABILIZADA A MATRÍCULA NA CONGÊNERE. EM SÍNTESE, DARSE-Á A MATRÍCULA, SEGUNDO O ARTIGO 1º DA LEI Nº 9.536/97, EM INSTITUIÇÃO PRIVADA SE ASSIM O FOR A DE ORIGEM E EM PÚBLICA SE O SERVIDOR OU O DEPENDENTE FOR EGRESSO DE INSTITUIÇÃO PÚBLICA, TUDO NOS TERMOS DO VOTO DO RELATOR. VOTOU O PRESIDENTE, MINISTRO NELSON JOBIM. FALARAM, PELO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, O DR. CLÁUDIO LEMOS FONTELES, PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA E, PELA ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO, O DR. ÁLVARO AUGUSTO RIBEIRO COSTA, ADVOGADOGERAL DA UNIÃO. PLENÁRIO, 16.12.2004. (grifamos).

Ou seja, o direito a transferência “entre instituições vinculadas a qualquer sistema de ensino” significa que o direito existe mesmo entre as instituições pertencentes a diferentes sistemas de ensino, que são o da União, os dos Estados, o do Distrito Federal e os dos Municípios (CF, art. 211) e não o direito à transferência entre diferentes categorias administrativas (IES privada para pública – LDB, art. 19). A garantia da transferência coercitiva – a que tem direito os servidores públicos civis e militares e seus dependentes – embora privilegie o interesse da administração pública, não pode ser oposta aos princípios constitucionais da “igualdade de condições para o acesso e permanência” (CF, art. 206, I) e de “acesso ... segundo a capacidade da cada um” (CF, art. 208, V), que fundamentam a realização de processo seletivo público, para ingresso nas IES públicas, bem mais concorridas que as IES privadas, e às quais todos tem direito de acesso e permanência em igualdade de condições, sendo avaliados pela sua capacidade individual. Essa decisão, em cumprimento ao que determina o § 2º do artigo 102 da Constituição Federal, possui efeito vinculante, não podendo ser descumprida pela administração pública e nem mesmo pelos órgãos inferiores ao STF. 6. aproveitamento de estudos Todos aqueles que em algum momento ocuparam a Coordenação de um Curso, já passaram pela experiência de ter de analisar históricos escolares de alunos transferidos ou que já iniciaram um Curso Superior e não o concluíram, 136

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ou mesmo de alunos que já possuem outro Curso Superior, para realizar o aproveitamento de estudos. Não há na legislação federal nenhuma norma que trate especificamente do tema. Isso tem gerado um tratamento muito diferenciado pelas Instituições de Ensino Superior (IES), que vai do rigorismo extremado ao vale tudo. Nesse sentido, se busca aqui resumir as orientações contidas no Parecer n.º 224/84, do antigo Conselho Federal de Educação (CFE). Esse Parecer foi elaborado para fixar critérios para transferência de alunos e contém alguns elementos claros sobre o aproveitamento de estudos. Como o referido Parecer foi aprovado e o tema não foi mais tratado posteriormente, quer pelo CFE, quer pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), pelo menos de forma expressa, seu conteúdo continua sendo a orientação oficial nessa matéria. O Parecer CFE n.º 224/84 define que: [...] na transferência o vínculo inicial – a matrícula – acrescida de novos elementos, inscrição e aprovação em séries e em disciplinas ou créditos obtidos, é transferido ‘como se saldo fosse’ para o estabelecimento de destino. (grifo do autor) Esse vínculo institucional, ampliado e enriquecido, desloca-se de um para outro estabelecimento de ensino, na transferência, cabendo ao estabelecimento que recebe o aluno, ajustá-lo à nova situação, enquadrando-o no novo plano de estudos, fazendo, concomitantemente, o aproveitamento de todos os estudos compatíveis com os objetivos do curso. (grifo nosso). Nem sempre será fácil a tarefa de ajustar a vinculação transferida e classificá-la em relação aos padrões de ensino do estabelecimento de destino e, para tanto, vale menos a multiplicação das normas do que a aplicação do bom senso. (grifo nosso).

Desse trecho do Parecer depreende-se a obrigatoriedade do aproveitamento e a necessidade de que se tenha bom senso na sua realização, evitando excessivos formalismos que possam prejudicar o aluno transferido. Também estabelece o Parecer CFE n.º 224/84 que: O reconhecimento automático de matéria do currículo mínimo, estudada com aprovação na escola de origem, será feito independentemente de adaptação. volume

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Nesse sentido, é importante deixar claro em primeiro lugar alguns conceitos, quais sejam os de conteúdo, matéria e disciplina: a) conteúdo: um determinado conhecimento ou conjunto de conhecimentos – regra geral uma área ou subárea do conhecimento (ex.: Direito Civil); é a categoria utilizada nas atuais diretrizes curriculares; b) matéria: possui fundamentalmente o mesmo sentido da categoria conteúdo e era utilizada nos currículos mínimos; a diferença está em que nos currículos mínimos, as matérias listadas tinham de se constituir, expressamente, em uma ou mais disciplinas da grade curricular. Com os conteúdos listados nas novas diretrizes curriculares é distinto: o conteúdo tem ser obrigatoriamente trabalhado, mas onde localizá-lo na grade (em disciplina específica, dentro de uma disciplina que contenha outros conteúdos, como tema transversal, como atividade complementar, etc.) é uma opção da IES, presente no Projeto Pedagógico do Curso. Ou seja, as matérias tinham de constar formalmente da grade curricular; os conteúdos têm de constar substancialmente; c) disciplina: no período dos currículos mínimos, significava cada uma das divisões de uma mesma matéria (Ex.: Direito Civil I, Direito Civil II, etc.); contemporaneamente significa a organização pedagógica de um ou mais conteúdos, para fins de sua inclusão na grade curricular de um determinado Curso. A orientação contida no Parecer CFE n.º 224/84 significava que se um aluno, ao ser transferido, tinha cursado integralmente uma matéria na IES de origem, ela tinha de ser obrigatoriamente aproveitada pela IES recebedora, inclusive com a dispensa de qualquer forma de adaptação ou de suplementação da carga horária. Ou seja, trata-se de garantir o acesso à educação de maneira ampla e no âmbito de uma visão garantista do direito, conforme escrito o artigo 6º da Constituição Federal enquanto direito fundamental de cunho social. O cumprimento integral da matéria, a adicionava ao seu patrimônio acadêmico de forma definitiva. Hoje, as diretrizes curriculares, que substituíram os antigos currículos mínimos, não contêm mais uma lista de matérias, mas sim um conjunto de conteúdos mínimos. A regra de aproveitamento deve, entretanto, ser observada 138

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da mesma forma. A IES recebendo o aluno transferido, recebe com ele o seu patrimônio acadêmico e precisa respeitá-lo, ainda nos moldes da teoria garantista – garantia do direito subjetivo do acadêmico, isto é, o direito fundamental à educação, previsto pela Constituição Federal, artigo 6º. Deve-se, entretanto, destacar o que consta de outro Parecer do CFE, de n.º 912/79, citado pelo Parecer em análise: Cabe distinguir, no entanto, que o cumprimento de carga horária adicional, em termos globais, poderá ser exigida para efeito de integralização curricular, em função do mínimo obrigatório para expedição de diploma e não para completar a carga horária destinada a determinada disciplina.

Isso significa que embora o aproveitamento dos conteúdos e atividades mínimos integralmente cumpridos no IES de origem deva ser realizado, independentemente da carga horária cursada, Pode a IES recebedora exigir que o aluno cumpra carga horária adicional, em disciplinas optativas ou em outras atividades, para atingir a carga horária global prevista para o Curso específico, exigida para a emissão do diploma. Resta o problema dos conteúdos não integralmente cumpridos, aqueles que se desdobram em duas ou mais disciplinas (ou atividades) na grade curricular. Para esses, deve ser utilizado o critério de correspondência de conteúdos entre as disciplinas e atividades do Curso da IES de origem e as disciplinas e atividades do Curso da IES recebedora. Ainda no que diz respeito às cargas horárias, é necessário lembrar que as cargas horárias que tiverem sobrado em determinadas disciplinas ou atividades (quando a carga horária na IES de origem era maior do que na IES recebedora) devem ser consideradas para fins de carga horária total do Curso, pois integram o patrimônio acadêmico do aluno. Nesse sentido, antes de determinar que o mesmo tenha de cursar novas disciplinas optativas ou realizar outras atividades para complementála, é necessário fazer a compensação entre as cargas horárias faltantes e as cargas horárias que sobraram. A complementação apenas poderá ser exigida se, realizada essa compensação, ainda existir um saldo devedor. As orientações contidas no Parecer CFE n.º 224/84 estão destinadas ao aproveitamento de estudos de alunos transferidos. Recomenda-se, entretanto, que volume

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sejam utilizadas também para todas as situações em que os conteúdos cursados o foram em Curso da mesma área do Curso onde estão eles sendo aproveitados. Quanto ao aproveitamento de conteúdos cursados em Curso de uma área, para um Curso de outra área, há a necessidade de uma análise mais apurada dos conteúdos e enfoques trabalhados; nessa situação, deve-se agir, conforme referido anteriormente, considerando a compatibilidade com os objetivos do Curso e utilizando o bom senso. 7. desligamento de alunos por decurso de pr azo O jubilamento, entendido como o desligamento ou afastamento de aluno de Instituição de Ensino Superior (IES) por ter ultrapassado o prazo máximo permitido para a conclusão do curso, foi introduzido no direito brasileiro através da Lei n.º 5.789/1972, que dava nova redação ao artigo 6º do Decreto-lei n.º 464/196913, nos seguintes termos: Art. 1º O artigo 6º do Decreto-lei n.º 464, de 11 de fevereiro de 1969, passa a vigorar com a seguinte redação: ‘Art. 6º Na forma dos estatutos ou dos regimentos, será recusada nova matrícula, nas instituições oficiais de ensino superior, ao aluno que não concluir o curso completo de graduação, incluindo o 1º ciclo, no prazo máximo fixado para integralização do respectivo currículo. § 1º O prazo máximo a que se refere este artigo será estabelecido pelo Conselho Federal de Educação quando for o caso de currículo mínimo, devendo constar dos estatutos ou regimentos na hipótese de 1º ciclo e de cursos criados na forma do artigo 18 da Lei n.º 5.540, de 28 de novembro de 1968. § 2º Não será computado no prazo de integralização de ciclo ou curso o período correspondente a trancamento de matrícula feita na forma regimental.’ Art. 2º Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

A Lei n.º 9.394/1996 (LDB), em seu artigo 92, revogou expressamente a Lei n.º 5.540/1968 e também as demais leis e decretos-lei que a modificaram (entre

13 Esse Decreto-lei estabelecia normas complementares à Lei n.º 5.540/1968.

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os quais a Lei e o Decreto-lei acima referidos) e quaisquer outras disposições em contrário14. Nesse sentido, no plano das normas gerais do Direito Educacional brasileiro, não há mais qualquer base legal para desligar estudantes, no âmbito da educação superior, tendo por base o argumento de que ultrapassaram o prazo máximo para a conclusão dos cursos aos quais estariam vinculados. A legislação que trazia essa obrigatoriedade de desligamento foi revogada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996. Some-se a essa revogação também outras inovações trazidas na legislação educacional, dentre as quais cabe destacar a substituição dos currículos mínimos pelas diretrizes curriculares15. E as diretrizes curriculares definidas pela Câmara de Ensino Superior (CES) do Conselho Nacional de Educação (CFE) nos últimos anos, para os diversos cursos superiores, não mais fazem referência aos seus tempos de duração, sejam os mínimos, sejam os máximos. Também é necessário destacar que o Parecer CNE/CES n.º 184/2006, na proposta de Resolução que o integra, institui as cargas horárias mínimas para os cursos de graduação, bacharelados, na modalidade presencial; entretanto não fixa prazos, nem mínimos e nem máximos, para a duração desses mesmos cursos16. Sintetizando pode-se dizer, no plano jurídico, que o jubilamento não existe mais porque a Lei que o instituía foi revogada e também porque as novas diretrizes curriculares sequer fixam tempo máximo para a duração de qualquer curso superior.

14 A Lei n.º 9.394/1996 (LDB), em seu artigo 92, também revogou expressamente as Leis n.º 4.024/1961, n.º 5.692/1971 e n.º 7.044/1982, bem como as demais leis e decretos-lei que as modificaram e quaisquer outras disposições em contrário. 15 A Lei n.º 4.024/1961, com a redação dada pela Lei n.º 9.131/1995 ao seu artigo 9º, parágrafo 1º, alínea “c”, estabelece ser competência da Câmara de Ensino Superior (CES) do Conselho Nacional de Educação (CFE) “deliberar sobre as diretrizes curriculares propostas pelo Ministério da Educação e do Desporto, para os cursos de graduação”. 16 No artigo Tempo de duração do curso de Direito (Revista @prender, Marília, n. 26, p.58-59, set./out. 2005) Rodrigues defende a posição de que continua aplicável o tempo de duração do Curso de Direito fixado na Portaria n.º 1.886/1994, tendo em vista que as novas diretrizes não tratam da matéria; continuo mantendo essa interpretação, mas ela perde qualquer sentido no momento em que a minuta de resolução que segue em anexo ao Parecer CNE/CES n.º 184/2006 for editada. volume

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No plano político é importante destacar que a criação desse instituto ocorreu durante o regime militar e era um forte instrumento político de combate aos “estudantes profissionais”, entendidos como os militantes que permaneciam matriculados em cursos superiores por um longo período de tempo, com o objetivo de participar do movimento estudantil e fazer política no âmbito das IES, em especial as Universidades. Também nesse período a política oficial era, pelo menos em parte, de restrição à criação de novos cursos e instituições; não havia uma política de expansão do sistema e do número de vagas ou qualquer incentivo à ampliação do acesso à educação superior. Dentro dessa realidade, a manutenção, por tempo indeterminado, de um mesmo estudante ocupando uma vaga na educação superior significava a impossibilidade de outro candidato ocupá-la. Contemporaneamente a política educacional está centrada em uma perspectiva totalmente diversa: a da ampliação do acesso17. Nesse sentido o próprio texto da Constituição Federal: Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; [...]

Em um contexto em que em muitos dos cursos públicos e em grande parte dos cursos privados há sobra de vagas, não guarda qualquer sentido afastar da sala de aula estudantes que, pelos mais diversos motivos, não podem concluir o curso dentro de um período determinado de tempo – até porque não havendo essa fixação por parte do CNE, a sua fixação pelas próprias IES pode ser absolutamente arbitrária, sem a adoção de qualquer parâmetro homogêneo entre elas. Deve-se considerar, ainda, a situação financeira de grande parte daqueles que contemporaneamente tem acesso ao ensino superior, estudantes com renda de um a três salários mínimos. Esses estudantes possuem, de um lado, o direito de acesso à educação superior e, de outro, a impossibilidade de o exercerem em 17 Ver RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Acesso à educação superior e transferência entre cursos e instituições. Revista @prender, Marília, n. 31, p. 60-61, p. 66-67, jul./ago. 2006.

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tempo integral e até mesmo de cursar, a cada ano ou semestre, todas as disciplinas de uma mesma fase ou período. Sua permanência no sistema por um prazo longo deriva não da sua simples vontade ou da ausência de condições intelectuais, mas sim de uma impossibilidade material: precisam viver com o pouco que ganham, sendo o curso superior “levado” dentro das possibilidades de um orçamento extremamente limitado. Desligá-los do sistema, por decurso de prazo, não possui qualquer sentido. Situação que talvez mereça uma reflexão mais acurada diz respeito ao jubilamento nas IES públicas. Nelas se pode alegar que a manutenção de um estudante além de um prazo razoável (já que a princípio não mais existe prazo legal) para a conclusão do curso significa gastar dinheiro público sem um retorno objetivo, bem como ocupar uma vaga que poderia estar sendo utilizada por outro estudante. Essa argumentação omite, em primeiro lugar, que a ocupação de vaga, adquirida mediante processo seletivo próprio, não reduz o número de vagas para os novos processos seletivos; e também, em segundo lugar, que o desperdício do dinheiro público ocorre exatamente quando se jubila o aluno, pois nessa situação o dinheiro público já investido é perdido, quando seria muito mais adequado, em termos de seu aproveitamento, permitir a conclusão do curso por parte do estudante que muitas vezes já se encontra em sua fase final. Pode-se, com base no exposto, afirmar que: a) não há hoje, considerando-se a edição da LDB de 1996 e as novas diretrizes curriculares, nenhuma base jurídica para o desligamento de qualquer aluno de curso superior tendo por argumento o fato de ter ultrapassado o tempo limite para a sua conclusão; e b) não há hoje também qualquer motivação social ou política que justifique esse desligamento18.

18 Já não havia no passado; a utilização do jubilamento como instrumento político de combate à militância política no âmbito das IES era à época profundamente antidemocrática, como o era o próprio regime no qual foi instituído. volume

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Ressalte-se, novamente, que as normas educacionais, de forma geral, devem ser interpretadas no sentido de garantir o acesso (ingresso inicial e reingresso) e, uma vez assegurado esse acesso, garantir a permanência do aluno no sistema, e mesmo sua reintegração, até que possa concluir o curso. Qualquer mecanismo de desligamento de alunos de curso superior deve levar em consideração critérios qualitativos – mérito19 – e não critérios meramente quantitativos, como o tempo de vinculação ao curso. 8. conclusões Este artigo teve por objeto a análise do direito de acesso à educação superior e seus desdobramentos relativamente à permanência, à transferência, ao aproveitamento de estudos e ao desligamento do estudante inserido no sistema. O objetivo do artigo foi situar o direito à educação no âmbito de uma abordagem garantista – garantia e tutela do direito subjetivo à educação. Isto é, optou-se por analisa o objeto do artigo a partir do garantismo enquanto teoria do direito – significa que o Estado é obrigado a garantir os direitos subjetivos e fundamentais por ele tutelados, como o direito social do acesso à educação, mantendo a eficácia do princípio da legalidade no Estado Constitucional de Direito brasileiro. No âmbito da visão garantista, as normas educacionais, de forma geral, devem ser interpretadas no sentido de garantir o acesso (ingresso inicial e reingresso) e, uma vez assegurado esse acesso, garantir a permanência do aluno no sistema, até que possa concluir o curso; quanto ao processo seletivo para ingresso e reingresso no sistema, deve ele utilizar critérios qualitativos. Além disso, relativamente às transferências ex officio (dos servidores públicos civis e militares e seus dependentes), o direito à ela existe mesmo entre as instituições pertencentes a diferentes sistemas de ensino (da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios), mas não existe para a transferência entre diferentes categorias administrativas (IES privada para pública); servidor público, estudante de IES 19 O acesso inicial à educação superior, segundo a Constituição Federal (CF), deve ocorrer considerando a capacidade individual: “Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: [...] V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um; [...]”. Esse mesmo critério deve ser também aquele a ser adotado para o desligamento.

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privada, possui o direito à transferência coercitiva oponível apenas perante IES enquadradas nessa categoria administrativa. Posteriormente, considerou-se que o aproveitamento de estudos já realizados é obrigatório quando se tratar de alunos transferidos. Dentro de uma visão garantista dos direitos fundamentais, é necessário que também seja realizado esse aproveitamento em situações de reingresso de alunos no sistema, tendo em vista que os conteúdos e atividades já cumpridos integram os seus respectivos patrimônios acadêmicos. Finalmente, entendeu-se que o jubilamento não mais existe porque a Lei que o instituía foi revogada e também porque as novas diretrizes curriculares sequer fixam tempo máximo para a duração de qualquer curso superior; qualquer mecanismo de desligamento de alunos de curso superior deve levar em consideração critérios qualitativos – mérito – e não critérios meramente quantitativos, como o tempo de vinculação ao curso. Mais do que isso, uma vez que inexiste previsão legal para a adoção de tal medida, seria ela uma afronta ao Estado Constitucional de Direito brasileiro, o qual adotou a visão garantista ao eleger o direito ao acesso à educação como direito fundamental, de cunho social, que deve ser garantido por parte de seus poderes. Resumindo: o princípio geral vigente é o da garantia de acesso, permanência, transferência e aproveitamento de estudos; apenas em situações de exceção ou naquelas em que houver outros princípios constitucionais a serem considerados poderão ser colocados limites à sua integral aplicação. 9. referências ALEXY, Robert. Los derechos fundamentales en el estado constitucional democrático. In: CARBONEL, Miguel (Ed.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003. BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2013. volume

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o estado social democr ático de direito, o estado ecológico ou socioambiental e o desenvolvimento sustentável na constituição da república feder ativa do br asil: concretização dos direitos humanos Grasiele Augusta F. Nascimento1 Regina Vera Villas Bôas2 “Os direitos humanos surgem num contexto específico de divisão social, sexual, étnica e territorial do fazer humano que condiciona negativa e desigualmente o acesso de todos aos bens necessários para uma vida digna. Sua validade, portanto, não dependerá de alguma esfera evolutivo/geracional, nem de uma esfera moral pessoal incondicionada, mas de sua eficácia ou ineficácia na hora de luta contra dita forma de dividir e hierarquizar o acesso a tais bens” (Joaquín Herrera Flores, 2009).

Resumo O presente estudo apresenta breves reflexões introdutórias sobre a Constituição da República Federativa do Brasil, os direitos geracionais e a função 1 Pós-doutoranda em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra. Mestre e Doutora em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Professora e Coordenadora do Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL); líder do Grupo de Pesquisa “Minorias, discriminação e efetividade de direitos” e integrante do Observatório de Violência nas Escolas (UNESCO/UNISAL). Professora da FEG/UNESP. Membro da Academia de Letras de Lorena/SP. contato@grasielenascimento. com.br. 2 Pós-doutora em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra. Graduada, Mestre e Doutora em Direito Civil pela PUC/SP. Doutora em Direito Difusos e Coletivos pela PUC/SP. Professora e Pesquisadora nos Programas de Graduação e de Pós-graduação lato e stricto sensu na PUC/SP. Pesquisadora do Projeto de Pesquisas de Direito Minerário (convênio PUC/ SP e VALE), coordenando as Pesquisas sobre as “cavidades naturais subterrâneas”. Professora e Pesquisadora no Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL), integrando o Grupo de Pesquisa “Minorias, discriminação e efetividade de direitos” e o Observatório de Violência nas Escolas (UNESCO/UNISAL). Avaliadora do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais. [email protected]. volume

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dos princípios ambientais, realizando o Estado Social Democrático de Direito e o Estado Ecológico, reportando-se à importância do Direito Ambiental e seus princípios constitucionais, todos considerados responsáveis pela salvaguarda da vida do Planeta. Partindo da afirmação de que a preservação do meio ambiente é uma obrigação e um dever de todos, o texto observa que a sociedade contemporânea necessita concretizar o princípio do desenvolvimento sustentável para possibilitar a existência de vida saudável às presentes e futuras gerações, realizando o Estado Social Democrático de Direito e o Estado Socioambiental ou Estado Ecológico. Ao referir-se à preservação da vida no Planeta, o trabalho faz breves considerações sobre a Constituição Ecológica, enaltecida nas lições de José Joaquim Gomes Canotilho; sobre os direitos humanos ecológicos, na ótica de Klaus Bosselmann; e sobre o princípio do desenvolvimento sustentável à luz dos ensinamentos de Maria Alexandra de Sousa Aragão. Por fim, antes de apresentar as referências utilizadas para os estudos, traz à baila breves e importantes reflexões finais sobre o valor da vida ( humana ou não) do meio ambiente e da proteção jurídica dos bens da vida.

Palavras-chave Estado Ecológico; Estado socioambiental; Estado Social Democrático de Direito; Direito Ambiental; Desenvolvimento Sustentável; Direitos Humanos e Fundamentais; Dignidade da pessoa humana.

Abstracto Este estudio presenta breves reflexiones introductorias sobre la Constitución de la República Federativa del Brasil, los derechos generacionales y el papel de los principios ambientales, por lo que el Estado Democrático y Social de Derecho y del Estado Ecológico, en referencia a la importancia de la legislación ambiental y los principios constitucionales, toda considerado responsable de salvaguardar la vida del planeta. A partir de la afirmación de que la preservación del medio ambiente es una obligación y un deber de todos, el texto señala que la sociedad actual tiene que darse cuenta el principio de desarrollo sostenible para permitir la existencia de vida saludable para las generaciones presentes y futuras, la realización del Estado de Bienestar Derecho Democrático y Socio estado o Estado Ecológico. Al referirse a la preservación de la vida en el planeta, el trabajo 150

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hace breves observaciones sobre la construcción ecológica, elogiaron las lecciones de José Joaquim Gomes Canotilho; sobre los derechos humanos ecológicos, en opinión de Klaus Bosselmann; y el principio de desarrollo sostenible a la luz de las enseñanzas de Maria de Sousa Alexandra Aragão. Por último, antes de presentar las referencias utilizadas para los estudios y breve pone de manifiesto importantes reflexiones finales sobre el valor de la protección de la vida (humana o no) del entorno y jurídica de los bienes de la vida.

Palabras clave Estado Ecológico; Estado del medio ambiente; Estado Social Democrático de Derecho; Derecho Ambiental; Desarrollo Sostenible; Derechos Humanos y Fundamentales; La dignidad humana. 1. breves reflexões introdutórias - a constituição da república feder ativa do br asil, os direitos ger acionais e a função dos princípios ambientais: a realização do estado social democr ático de direito e do estado ecológico Com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 reforça-se o rompimento do paradigma do individualismo que dá lugar a “dois novos Estados”: o Estado Social Democrático de Direito seguido, mais adiante, do Estado Socioambiental ou Estado Ecológico. Esses novos Estados refletem a enorme transformação nacional, que se repete no plano internacional, fazendo arvorar respeito a novos valores, que se somam à liberdade e à igualdade já conquistadas, quais sejam: a solidariedade, a fraternidade, a dignidade da pessoa, humana ou não, e o desenvolvimento sustentável garantidor da vida sadia no planeta. O Título I da Constituição da República Federativa do Brasil (arts.1º a 4º) abrange os “princípios fundamentais constitucionais”, os quais são considerados verdadeiros fundamentos das regras prescritas à sua efetivação na ordem sóciojurídica e, também, princípios sobre os quais a ordem constitucional brasileira é construída e alicerçada. O caput do artigo 1º estabelece a “identidade” – revelada pelo nome República Federativa do Brasil -, e os “fundamentos” ou bases estruturais dessa República que são: a) a Democracia (o povo é soberano e detentor do poder volume

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político); b) a Federação Nacional (que estabelece autonomia determinada aos Estados, Distrito federal e Municípios), garantida a indissolubilidade do vínculo federativo à luz da soberania da República Federativa do Brasil; c) o Estado de Direito (com a separação dos Poderes do Estado e a organização das relações entre eles e a sociedade, de maneira que a atuação dos Poderes seja limitada pela prescrição das liberdades públicas, e que a efetividade dos institutos seja concretizada pelos instrumentos fornecidos pelo legislador ordinário e/ou pela legislação infraconstitucional. Dessa maneira, revela o disposto no art. 1º da Carta Constitucional que a República Federativa do Brasil criada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, se constitui em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I) a soberania (observada pelas ordens interna e internacional e pela ótica do povo); II) a cidadania (estado político ofertado pelo direito à pessoa humana que lhe garante a capacidade de participação da vida política e civil do Estado); III) a dignidade da pessoa humana (considerada fundamento, alicerce e finalidade de toda a ordem socio-políticoambiental, ou ainda, valor-fonte dos valores fundamentais); IV) os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (existência de harmonia nas relações entre os patrões e os empregados, concretizando uma economia de mercado sustentável); V) o pluralismo político (faz funcionar a democracia, concretizando valores das opiniões das pessoas e dos partidos, conquistados por lutas democráticas). O Título II da Constituição Federativa do Brasil (arts. 5º a 17) se refere aos “Direitos e Garantias Fundamentais”, trazendo dezessete artigos, dispostos em cinco Capítulos, que tratam, entre outros, “Dos direitos e deveres individuais e coletivos” (Cap. I, art. 5º) e “Dos direitos sociais” (Cap. II, art. 6º a 11). O Título VIII trata “Da ordem social” (arts. 193 a 232), constituído por oito Capítulos, tendo o Capítulo VI, cuidado “Do meio ambiente”, art. 225. O caput do artigo 225 da Constituição Federal brasileira reconhece o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e o considera bem de uso comum do povo, compreendido juntamente com a proteção da saúde, da vida e da dignidade da pessoa humana, todos atrelados à função socioambiental ou ecológica da propriedade, realizada em prol da vida sustentável das presentes e futuras gerações. 152

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O ordenamento jurídico nacional, interpretado a partir de diversas esferas de interesses, põe à disposição um conjunto de normas, princípios e regras, que estabelecem procedimentos e condutas que impõem inúmeros deveres, entre os quais se destacam o respeito aos objetivos da República (CF, art.3º); à dignidade humana (ou não); à preservação ambiental. No que toca especificamente à preservação ambiental, a nossa Carta Magna, em seu art.170, VI, impôs a defesa do meio ambiente como um dos princípios gerais da atividade econômica. Considerados conjuntamente, os direitos fundamentais e os fundamentos da República Federativa são fontes de legitimidade do Estado Constitucional nacional, lembrando-se que a Democracia, o Estado de Federação e o Estado de Direito, são os alicerces da República e se relacionam internamente, instituindo valores essenciais à identificação das funções primordiais da Constituição. Os direitos fundamentais são apreciados como espécies de valores políticos e jurídicos, originários da dignidade da pessoa humana, contendo valores humanos essenciais que aderem aos interesses individuais, sociais coletivos e/ou difusos, entre os quais releva o meio ambiente ecologicamente equilibrado como bem essencial à sadia qualidade de vida das presentes e das futuras gerações. Os direitos humanos ocupam lugar de destaque junto aos outros direitos subjetivos, consagrados por legislações e códigos jurídicos. Observe-se que os direitos humanos já conquistados – que sempre serviram de porto seguro das garantias e direitos fundamentais – enfrentam a grande crise contemporânea da segurança jurídica, apesar da posição sobrelevada deles no cenário sócio jurídico mundial. Efetivamente, sendo os direitos humanos e os direitos fundamentais considerados indispensáveis e primordiais à existência saudável do homem, torna-se imperiosa a necessidade de os ordenamentos jurídicos posicionaremnos no rol constitucional dos direitos e garantias fundamentais do homem. As lutas sociais encaminham os direitos humanos a ocuparem assento especial nas Constituições nacionais, que os transforma em direitos fundamentais, porque dizem respeito aos bens mais relevantes à fruição do homem, relacionados notadamente à vida, à saúde, à liberdade, à igualdade, entre outros juridicamente protegidos. Pode-se dizer que os direitos fundamentais designam direitos humanos conquistados e positivados, constitucionalmente. volume

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Nessa toada, pode-se afirmar que a dignidade do homem está presente em todos os âmbitos de conquistas dos direitos humanos, e que as novas conquistas são cumuladas aos direitos e garantias já consagrados pelos ordenamentos jurídicos vigentes, razão pela qual a liberdade, a igualdade, a fraternidade e a solidariedade integram e são respeitadas por todas as dimensões dos direitos, perpetuando a trajetória ética e ecológica do homem no planeta. O direito à dignidade da pessoa humana traz na sua essência os valores da liberdade e da vida e busca ser respeitado como um “direito prioritário a todos os povos”, apesar de suas ideologias e crenças distintas. Contemporaneamente, a dignidade da pessoa humana pode ser exaltada como um princípio, uma norma jurídica, um direito, um fundamento ou um postulado, protegidos pelos ordenamentos jurídicos atuais. É no contexto do respeito à dignidade da pessoa humana que se dá a inserção da proteção do meio ambiente pelo texto constitucional, impondo-se uma reformulação do modelo de Estado de Direito nacional, na medida em que se agregando novo destaque ao bem ambiental – determinante da proteção da vida, humana ou não –, simultaneamente valora-se o meio ambiente, ofertandolhe primazia na ordem constitucional nacional, razão pela qual se entende mais adequada a utilização da expressão “Estado Socioambiental”, ou “Estado Ecológico”, protegido pelo Direito. Hodiernamente, pode-se afirmar que é necessária a agregação do bem-estar social, coletivo e ambiental ao bem-estar individual, garantindo-se ao indivíduo, à sua família e à coletividade a participação no bem comum – bem de todos e de cada um –, o qual se encontra alicerçado no respeito e na proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado, que pode garantir a qualidade e a sustentação da vida. O modelo de Estado Socioambiental ou Estado Ecológico (de Direito) incorpora às conquistas dos modelos antecedentes - direitos e garantias individuais e sociais -, os direitos transindividuais; valora a solidariedade humana; e destaca o meio ambiente como valor de âmbito nacional e internacional. Diz-se, assim, que as conquistas do Estado Liberal e do Estado Social somam-se às do Estado Socioambiental ou Ecológico, o qual agrega em seu modelo o conceito hodierno de ecologia, que considera a proteção e o equilíbrio entre o homem e o 154

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seu meio natural, observando as relações dos seres vivos entre si e/ou com o meio em que vivem e as relações entre o homem e seu meio moral, econômico, social e ambiental. Entendida a existência do Estado Socioambiental ou Ecológico reconhece-se dimensão de igual nome, que como as outras dimensões – a individual, a social e a coletiva -, busca tornar digna a existência, humana ou não, respeitando e protegendo a ecologia - alicerce e fundamento axiológico, cultural e jurídiconormativo do novo Estado de Direito. Canotilho (2001, pp. 10-11), reportando-se ao Estado Constitucional Ecológico e a Democracia Sustentada, procura compreender a problemática da proteção ambiental e o postulado globalista, afirmando que: “(...) a proteção do ambiente não deve ser feita no nível de sistemas jurídicos isolados (estatais ou não) mas sim no nível de sistemas jurídico-políticos, internacionais e supranacionais, de forma a que se alcance um standard ecológico ambiental razoável a nível planetário e, ao mesmo tempo, se estruture uma responsabilidade global (de estados, organizações, grupos) quanto às exigências de sustentabilidade ambiental. Por outras palavras: o globalismo ambiental visa ou procura formatar uma espécie de WeltUmweltrecht (direito de ambiente mundial). Isto não significa que se desprezem as estruturas estatais e as instituições locais. Lá onde as instâncias nacionais e locais consignam densificações positivas dos standards ecológicos, impõe-se a autocontenção da ‘RepúblicaAmbiental Planetária’.

Importante, ainda, reflexionar a respeito dos interesses e direitos nascidos e/ ou consubstanciados no âmbito do Estado Socioambiental ou Ecológico, quais sejam, os interesses e direitos reconhecidos pela doutrina e jurisprudência nacional e estrangeira -, que emolduram situação jurídica consolidadora desses bens juridicamente reconhecidos dentro da esfera do “mínimo existencial”. Dentre esses bens, além do meio ambiente ecologicamente equilibrado, se destacam a alimentação, a saúde, a educação (básica), e a moradia digna, e todos os outros direitos fundamentais que concretizam a sadia qualidade de vida. A disciplina do Direito Ambiental compreende vários princípios no seu âmbito de estudo, como os da precaução, da prevenção e do desenvolvimento sustentável, volume

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entre outros, todos relevantes à formação e sustentação do Estado Socioambiental ou Ecológico. Apesar de não estarem todos os princípios ambientais previstos expressamente na Constituição da República Federativa do Brasil, uma coisa é certa: todos eles se encontram ancorados nas normas dispositivas constitucionais e harmonizados com o sistema jurídico nacional. A doutrina nacional e estrangeira conclama o princípio da precaução e da prevenção a partir da relevância ambiental apresentada por eles, cada um exercendo função de destaque diante das questões contemporâneas: o princípio da prevenção - função de atuação preventiva - se refere à antecipação de medidas que inibam ou impeçam que males já conhecidos, que podem causar danos ambientais efetivos, se concretizem (ameaça concreta); o princípio da precaução função de atuação inibitória, antecipatória e acautelatória - cuida de evitar males que, embora ainda desconhecidos, mas com potencialidade de se desabrochar e causar danos ambientais, possam se concretizar (risco abstrato). Pode-se afirmar que as principais diferenças entre os dois princípios residem, notadamente: a) no grau de previsibilidade da ocorrência do dano ambiental; b) no momento em que esses princípios devem ser efetivados, concretizados, para que se evite a ocorrência desses males ambientais. Assim, o exercício das funções de atuação antecipatória, inibitória ou acautelatória, que concretizam os princípios da prevenção e da precaução, exige que o meio ambiente seja protegido de maneira antecipada, de tal modo que este momento se encontre situado em tempo anterior à ocorrência de qualquer dano ambiental. O desenvolvimento sustentável, na esteira de Professora Aragão, é abordado de maneira abrangente e não pontual pela moderna Política Ambiental, a qual deve ser: “Objetiva quanto aos fins; eficaz quanto aos meios; rigorosa quanto aos instrumentos; comparável quanto aos encargos; contabilizável quanto aos efeitos; coerente na aplicação; controlável quanto aos resultados. Em uma palavra: Sustentável” (ARAGÃO, 2003, p. 12). O princípio do desenvolvimento sustentável está diretamente ligado ao fim buscado pela proteção ambiental, ou seja, deverá a proteção se dar enquanto fim em si mesma, ou enquanto meio de garantir uma existência condigna? A resposta a essa questão só pode ser dada após a ponderação atribuída a cada uma das dimensões do desenvolvimento sustentável – dimensão ambiental, dimensão 156

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social e dimensão econômica. Esta ponderação é que vai melhor determinar a melhor resposta à questão. Lembre-se, porém, a necessidade de se atribuir um peso especial ao ambiente, tendo em vista ser ele sustentáculo da vida (ARAGÃO, 2013, p. 450). Alerta ARAGÃO (2013, pp. 451/452) que, no tempo e no espaço, o princípio do desenvolvimento sustentável aponta a ideia de justiça intergeracional, que remete as gerações atuais à uma responsabilidade com as gerações futuras, afirmando que quando o assunto é a utilização dos bens ecológicos escassos ou o desenvolvimento de atividades ambientais impactantes, os legítimos interesses das gerações futuras devem ser considerados. Relativamente à ideia de justiça, em sentido espacial, os Tratados mostram a aproximação interna e externa das relações entre regiões, indivíduos e povos, seguindo propostas que, ao buscarem a erradicação da pobreza acabam garantindo o desenvolvimento sustentável, contribuindo assim para o desenvolvimento de medidas internacionais que buscam preservar e melhorar a qualidade do ambiente e a gestão sustentável dos recursos naturais em escala mundial. 2. o estado social democr ático de direito, o estado socioambiental ou ecológico e o direito ambiental na constituição feder al: importância contempor ânea da sustentabilidade Nenhum direito humano é conquistado sem o enfrentamento de árduas lutas. E o que faz a luta dos homens, se não garantir o fruto da sua conquista nas ordens social, jurídica, econômica e ambiental, entre outras? E o que significa a inserção de um novo direito humano conquistado nestas ordens, senão exaltar o Estado Democrático de Direito? E quando é que um novo direito humano concretiza, pela primeira vez, o Estado Socioambiental ou Ecológico (de Direito)? Seria por meio da sua inserção na Constituição - Lei Magna nacional, responsável e guardiã dos direitos e garantias fundamentais dos homens e cidadãos? A Constituição da República Federativa do Brasil, Lei Soberana da nação, deve cumprir a sua função de garantidora dos poderes trazidos em seu bojo, sendo considerada marco obrigatório referencial, conformador, da validade de todas as demais normas jurídicas pertencentes ao sistema jurídico nacional. volume

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E basta à efetivação do Estado Socioambiental ou Ecológico (de Direito) a simples afirmação de que a Lei Soberana garante e é responsável pelos poderes da nação? Ou melhor: de que maneira os direitos fundamentais constitucionalizados são concretizados em benefício dos homens, dos cidadãos, da sociedade e da natureza? Existem várias ordens normativas das quais o homem participa diuturnamente, entre elas a jurídica, a moral, a costumeira, a da fé e a dos tratos sociais. Todas elas são frequentadas e compartilhadas pelos homens, que necessitam delas participar. A ordem normativa jurídica, na sua formação, interage com inúmeras disciplinas e ciências, devendo se harmonizar com todas delas, como nos casos das disciplinas e ciências que estudam o homem, a natureza e a sociedade. Busca ela - a ordem normativa jurídica - organizar, ordenar, normatizar e controlar os comportamentos do homem, do seu grupo e da sua coletividade, razão pela qual deve conhecê-lo (ao homem) na sua essência e, também, os inúmeros papéis ocupados por ele, no cenário social. Esta ordem não pode afastar do conhecimento humano o saber necessário sobre a natureza, sobre o ambiente em que todos vivem, sobre a necessidade da sua proteção (do ambiente) com a finalidade da salvaguarda da vida. O homem social respeita, admira e protege o meio ambiente, compreendendo que ele (homem), junto com ela (natureza) concretiza uma única unidade, já que “a natureza do homem é dual, na medida em que é cem por cento cultura e cem por cento natureza” (MORIN, 2007). Variadas questões são levantadas a respeito da integração da “ordem normativa jurídica com as demais disciplinas e ciências sociais e humanas que envolvem conhecimentos sobre o homem, a sociedade e o meio ambiente (a natureza)”, estando todas – as perguntas e, também, as respostas - inseridas no contexto da sociedade contemporânea, conhecida como a sociedade dos riscos, das violências, das poluições e degradações ambientais, dos conflitos nacionais e transnacionais, sociedade esta carente da concretização do princípio do desenvolvimento sustentável. Lembra-se que, de maneira direta ou indireta, todas as disciplinas científicas estudadas, integram as ordens do conhecimento, aproximando a ordem normativa jurídica das outras ordens de conhecimento, amadurecendo os conhecimentos jurídicos sobre o homem, a sociedade e o meio ambiente. 158

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Ao situar o homem contemporâneo na sociedade de risco, importante considerar-se a problemática ambiental, trazendo à baila questões cotidianas que envolvem as ordens e as esferas em que as questões ambientais são apreciadas. Na esfera jurídica, por exemplo, do conteúdo da norma do art. 225, da Constituição da República federativa do Brasil extrai-se um dever e um direito à preservação e à defesa do meio ambiente, que é do homem, do Poder Público, e da coletividade. Importante, no contexto, é observar que o Direito Ambiental exerce uma função relevante no ordenamento sócio-jurídico, conforme explica Paulo Affonso Leme Machado: “(...) Direito Ambiental é um Direito sistematizador, que faz a articulação da Legislação, da Doutrina e da Jurisprudência concernentes aos elementos que integram o meio ambiente. Procurar evitar o isolamento dos temas ambientais e sua abordagem antagônica. Não se trata mais de construir o Direito das águas, um Direito da atmosfera, um Direito do solo, um Direito florestal, um Direito da fauna ou um Direito da biodiversidade. O Direito Ambiental não ignora o que cada matéria tem de especifico, mas busca interligar estes temas com a argamassa da identidade de instrumentos jurídicos de prevenção e de reparação, de informação, de monitoramento e de participação” (MACHADO, 2009, p. 54-55).

Assim, a preservação do meio ambiente, a partir da aceitação da existência de uma função socioambiental ou ecológica do Direito Ambiental, corrobora a participação de todos na dinâmica sócio-juridicoambiental, tornando-os responsáveis pelo dever de preservar o meio ambiente em prol da sustentação da vida presente e futura, vislumbrada pelo Estado Socioambiental ou Ecológico (de Direito), garantido constitucionalmente. A existência desse Estado Socioambiental ou Ecológico funda-se em valores não só ambientais, mas também, solidários, sociais, econômicos, éticos, jurídicos, os quais devem enaltecer e salvaguardar os recursos naturais e a qualidade de vida de todos, permitindo-lhes uma existência atual saudável e a possibilidade de vida futura sustentável. Nesse sentido, dispõe o item 26 da Carta de Johanesburgo: “Reconhecemos que o desenvolvimento sustentável requer uma perspectiva de longo prazo e participação ampla na formulação de volume

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políticas, tomada de decisões e implementação em todos os níveis. Na condição de parceiros sociais, continuaremos a trabalhar por parcerias estáveis com todos os grupos principais, respeitando os papéis independentes e relevantes de cada um deles”.

O texto, acima citado, refere-se à Carta de Johanesburgo (África do Sul), e foi concretizado na Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentável, ocorrida em 2002, em que os Estados participantes, reafirmaram seu comprometimento com o desenvolvimento, focalizado a partir de participação social no estabelecimento das políticas públicas e nos procedimentos - em todos os níveis -, das decisões relativas à sustentabilidade. E, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, na declaração de Estocolmo/72, já afirmava o direito fundamental do homem de desfrutar de condições adequadas de vida, em meio ambiente de qualidade. A presente pesquisa ao colocar o “homem, a sociedade e a natureza” no centro dos debates, se preocupa, de fato, com a proteção e preservação do meio ambiente e com a garantia da vida saudável no Planeta. Considera, também, no âmbito da garantia da dignidade da pessoa humana, algumas importantes características do lugar em que o homem está situado. O homem é “aquele que busca modificar o mundo a partir da sua própria transformação”, alcançando a compreensão da importância da Terra, Pátria-Mãe da qual o filho homem retira o seu proveito e a sua subsistência (BOFF, 2002). O caput do artigo 225 da Constituição Federal revela a preocupação com um direito que ocupa a todos os seres, humanos ou não, ao dispor ser “o meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”. A legislação ambiental brasileira com a promulgação da lei 6.938/81, Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, avança ao introduzir a Política do desenvolvimento sustentável no ordenamento jurídico nacional, trazendo como objetivos principais dessa filosofia a realização da compatibilidade entre o desenvolvimento econômico-social, a preservação da qualidade do meio ambiente, a preservação dos recursos ambientais e o equilíbrio ecológico. A proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado significa a proteção da vida; a garantia do respeito aos direitos humanos e fundamentais, notadamente da existência sadia das presentes e futuras gerações. O meio ambiente ecologicamente equilibrado possibilita o desenvolvimento socioeconômico, reco160

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nhecido na conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada em 1992, no Rio de Janeiro, que no Capítulo 1, preâmbulo, dispõe que: A humanidade se encontra em um momento de definição histórica. Defrontamo-nos com a perpetuação das disparidades existentes entre as nações e no interior delas, o agravamento da pobreza, da fome, das doenças e do analfabetismo, e com a deterioração continua dos ecossistemas de que depende o nosso bem estar. Não obstante, caso se integrem as preocupações relativas ao meio ambiente e desenvolvimento e a elas se dedique mais atenção, será possível satisfazer ás necessidades básicas, elevar o nível da vida de todos, obter ecossistemas melhor protegidos e gerenciados, além de construir um futuro mais prospero e seguro. São metas que nação alguma pode atingir sozinha; juntos, porém, podemos – em uma associação mundial, em prol do desenvolvimento sustentável”.

Nesse sentido, Michel Prieur (2004, p.27) adverte que não respeitar as normas que protegem o meio ambiente, conduz à interpretação de que aquele que assim se comporta pratica uma conduta socialmente perigosa. O autor leciona que o Direito Ambiental apresenta a função relevante de salvaguarda da natureza e dos recursos naturais, buscando eliminar e/ou limitar o impacto das atividades humanas sobre os meios naturais, o que lhe impõem regulamentar as atividades potencialmente agressivas do meio ambiente e elaborar uma “política de preservação e de gestão coletiva dos seres vivos e dos recursos naturais”, com a finalidade de sua proteção. O homem habita o planeta Terra e com todos os outros habitantes da natureza compartilha a sua moradia. A interação do homem com a Terra e seus ecossistemas é contínua e diuturna, deles dependendo o seu alimento, a sua moradia e sua subsistência, razão pela qual o homem tem o dever de nutrir, cultivar, cuidar e proteger a Terra de violências que ele próprio pratica, ao agredi-la, degradá-la, poluila, caminhando para devastar os seus recursos naturais (VILLAS BÔAS, 2013/2014). 3. breves reflexões finais: o valor da vida, humana ou não; o valor do meio ambiente; o valor da proteção jurídica dos bens da vida Mas, o que acontece à dignidade da pessoa humana ao longo da trajetória da vida? Nos últimos tempos, nas sociedades globalizadas - ocidentais e orientais volume

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- que atravessam constantes crises de identidade e de valores, exacerbam-se os comportamentos contrários ao respeito à dignidade dos seres, estando presentes, nessa crise de valores, questões contundentes que se relacionam a três realidades de valores: 1 – a realidade dos valores da essência humana, considerada no mundo globalizado; 2 – a realidade dos valores do meio ambiente a partir da sociedade do risco; 3 – a realidade dos valores da sustentabilidade que busca a integração das esferas jurídica, econômica, social e ambiental, em proveito da vida das presentes gerações e da possibilidade de existência das futuras gerações. O homem, ser racional e equilibrado que é, reflexiona constantemente sobre os problemas que envolvem as três realidades citadas, tendo a consciência de que todas elas se ligam, diretamente, à proteção de sua dignidade. Atualmente, tem-se à mostra sinais expressivos de esgotamento ambiental. A natureza vem revelando situações crônicas de desgaste ambiental, de devastação de bens da natureza. Estão presentes no ambiente, sequelas da poluição (sonora, do ar, das águas), por exemplo, que já não conseguem ser sanadas espontaneamente, e que reclamam tratamento adequado, cuidadoso e especializado para combater os males que já atingiram o ambiente. A falta de cuidados com a natureza pode conduzi-la a não resistir à crise ecológica, fazendo-lhe sucumbir, e leva, consigo, o homem e a sua dignidade. Por isso, se torna necessária a conscientização do homem de que o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado deve ser respeitado, incondicionalmente, já que ele (meio ambiente ecologicamente equilibrado) sustenta a vida das presentes gerações e possibilita a existência das gerações futuras. Necessário o respeito e cumprimento do dever constitucional de proteção, defesa, preservação, prevenção, proteção e tutela do meio ambiente, que deve ser mantido saudável para realizar a vida e dignidade, humanas ou não. Assim, compreendidos os cenários do Estado Democrático de Direito, do Estado Socioambiental ou Ecológico e da necessidade de concretização do Desenvolvimento Sustentável, pode-se refletir sobre a afirmação do Professor Canotilho que aproxima o direito de cidadania ambiental do dever de cidadania, na defesa do ambiente, assim dispondo: O globalismo aponta para um direito de cidadania ambiental em termos intergeracionais. Como o patrimônio natural não foi criado 162

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por nenhuma geração e como, dentro de cada geração, se deve assegurar igualdade e justiça ambientais, o direito ao ambiente de cada um é também um dever de cidadania na defesa do ambiente” (CANOTILHO, 2001, p. 11).

Vale a pena, também, se meditar na doutrina de Aragão sobre a prioridade a ser dada à prevenção, se limitando as possibilidades do desenvolvimento de atividades que produzam impactos ambientais, o que se consegue se adotando medidas compensatórias e proteção proativa do ambiente, e não somente mero afastamento das ações danosas (ARAGÃO, 2013, p. 458). Invocando-se Klaus Bosselmann, que estudou com profundidade a temática do “desenvolvimento sustentável”, pode-se valorizá-lo como um princípio jurídico ecocêntrico e considera-lo fundamental (BOSSELMANN, 2008, pp. 27 e 28). Merece reflexão a existência de um projeto de direitos humanos ecológicos, conciliador dos fundamentos filosóficos dos direitos humanos com os princípios ecológicos, com a finalidade de que os direitos humanos levem os indivíduos - que operam tanto em ambiente social como natural –, a valorizar e respeitar o valor intrínseco dos outros seres, humanos ou não. Lembra que a relevância moral e o respeito - valores intrínsecos do homem – alicerçam as obrigações pessoais, que embasam os debates éticos contemporâneos, encontrando-se na base dos direitos humanos, nada impedindo, porém, que as entidades não humanas sejam nesta base incluídas (BOSSELMANN, 2008, pp. 28, 37 e 38). Mas, as instituições contemporâneas devem se harmonizar aos novos interesses e direitos, principalmente aos interesses e direitos ecológicos em prol da existência e sobrevivência, humana ou não. Nesse sentido, se observe as indagações feitas por Klaus Bosselmann (2008, pp. 32-35 e 38), ao afirmar que a abordagem ecológica dos direitos humanos deve reconhecer uma interdependência entre direitos e deveres, que deve ser justificada pelo fato de que: a) os homens usam recursos naturais porque deles dependem, absolutamente, e sofrem restrições das ordens práticas e normativas; b) “posições jurídicas subjetivas” relativas aos recursos naturais e ao ambiente saudável que, por conveniência, são consideradas jurídicas, não podem ser entendidas como puramente antropocêntricas; c) os direitos humanos devem respeitar os limites ecológicos legais e éticos que definem os seus domínios e volume

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conteúdos a partir do reconhecimento da existência do valor intrínseco da vida. Há uma tendência nacional e internacional contemporânea de proteção da natureza, a partir da visão ecológica, elevando-se a ecologia a um princípio fundamental, ao lado da liberdade individual, da justiça e da democracia, reconhecendo-se que o valor intrínseco da vida justifica as limitações de ordem ecológica, legalmente e eticamente. Os direitos humanos e fundamentais reconhecem a dignidade humana, que necessita de vida para poder continuar a existir, razão pela qual é necessária a proteção, a garantia e a tutela jurídica do meio ambiente ecologicamente equilibrado, de maneira que ele consiga continuar a sustentação da vida das presentes e futuras gerações, protegendo a todos, humanos ou não. Por derradeiro, é necessário pensar o ambiente como um valor não absoluto, mas de importância vital à continuidade da existência, existindo para todos um dever de cuidado a ser respeitado e uma responsabilidade a ser imputada pela utilização imprudente e/ou negligente dos poderes de controle, exploração e transformação relativa ao desenvolvimento ambiental, o que na lição de Aragão, assim é lecionado: “Mas o que é certo, é que o ambiente não é um valor absoluto, ao qual todas as restantes dimensões da vida humana devam subjugar-se. Não somos meros componentes de um Planeta intocável, uma máquina perfeita, que o Homem não pode perturbar. Para o bem e para o mal, o Homem é parte do Planeta, embora seja, inegavelmente, um elemento muito especial. E o seu lugar de destaque não resulta de algum privilégio humano no acesso aos recursos naturais, mas de uma predominância fáctica sobre o conjunto dos elementos ambientais do Planeta. Quantitativamente, não só o Homem é uma espécie hiperabundante, como, qualitativamente, a sua capacidade científica e tecnológica de interferência com todos os sistemas naturais – do mais ínfimo ADN, ao mais complexo sistema meteorológico planetário – permitem confirmar definitivamente a entrada no Período Antropocêntrico como nova era geológica e fazem emergir um dever de cuidado e uma responsabilidade pela não utilização imprudente dos poderes de controlo, exploração e transformação que tem vindo a desenvolver” ( 2013, p.458).

O Estado Social Democrático de Direito e o Estado Ecológico ou Socioambiental (de Direito) podem e devem se complementar e se realizar, 164

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harmoniosamente, com a aplicação do princípio do desenvolvimento sustentável, previsto na Constituição da República Federativa do Brasil, salvaguardando direitos fundamentais individuais, sociais e ambientais e concretizando a luta pelos direitos humanos (ou não). Os direitos humanos, na leitura de Joaquín Herrera Flores (2009), se manifestam no contexto de divisão étnica, social, territorial e/ou sexual da atuação humana, que limita de maneira desigual, o acesso de todos aos bens necessários à existência digna, fato que implica a não vinculação da sua validade ao ambiente evolutivo/geracional, e nem à esfera moral pessoal, mas sim à sua eficácia (ou não) no momento da divisão e hierarquização do acesso a referidos bens. 4. referências ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4ª Edição. Trad. Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ALEXY, Robert. A Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2012. ANDRADE, Adriano. Interesses Difusos e Coletivos Esquematizado/ Adriano Andrade, Cleber Masson, Landolfo Andrade. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012. ARAGÃO, Maria Alexandra Sousa. O princípio do nível elevado de proteção ecológica: resíduos, fluxos de materiais e justiça ecológica. Tese de Doutoramento. FDUC. Coimbra, 2003. _______. Anotação ao artigo 37º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, in: PORTUGAL. Leis, Decretos, etc. Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia Comentada, coordenada por SILVEIRA Alessandra, e CANOTILHO Mariana, Coimbra: Edições Almedina, ISBN 978-972-40-5120-82013, 2013, pp. 447-458. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: Da Definição à Aplicação dos Princípios Jurídicos. 7ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2007. BARROSO, Luis Roberto (Organização). A Nova Interpretação Constitucional. São Paulo: Renovar, 2007. volume

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Ed. Revista dos Tribunais – Ano 13 - nº 51 – Julho/Setembro – 2012 – Coordenação de Nelson Nery e Rosa Maria de _______. Violência Ética e Socioambiental: macula dignidade da condição humana e desafia a proteção dos interesses difusos e coletivos, in Obra Coletiva” Direito e a Dignidade Humana: Aspectos éticos e socioambientais” – Orgs: Consuelo Yoshida e Lino Rampazzo, Campinas, SP: Editora Alínea, 2012 (Cap. 3º - p. 101 a 122), ISBN 978-85-7516-599-7. _______. Concretização dos postulados da Dignidade da Condição Humana e da Justiça – Revista de Direito Privado – Ed. Rev. dos Tribunais, coord. Nelson Nery Jr. e Rosa Maria Nery, SP: Ed. RT. Ano 12, nº 47 – jul-set/2011.

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o grito na linguagem da dor: o que não falar quer dizer? Silvana Beline1

Resumo A estrutura de dominação masculina inserida em todos os âmbitos sociais deve necessariamente ser discutida pelo Direito. Como produtor de sentidos e campo fértil para discussões concernentes às relações de gênero, tem o campo jurídico um papel fundamental na produção social de significados, pois as representações sócio-culturais relativas ao masculino e feminino fazem que seja sacramentada a desigualdade, transmitida como natural. Deve-se lembrar que a construção da igualdade passa pela desestruturação da ordem social que hierarquiza as diferenças e as transforma em desigualdades. O objetivo deste trabalho é discutir o paradigma dominante que se percebe nos direitos humanos uma vez que estes são construídos com base nos direitos civis e políticos, deixando excluídos os direitos do espaço privado, impedindo uma cidadania plena das mulheres relativamente aos seus direitos reprodutivos. A discussão far-se-á a partir das abordagens de gênero e justiça interpretadas a partir dos conceitos de heterodoxia e ortodoxia como dimensões antagônicas para pensar a manutenção da criminalização do aborto no Brasil.

Palavras-chave Aborto; Cidadania; Direitos humanos.

Abstract The cry in the language of pain: what do not talk mean? The structure embedded in all social spheres male dominance must necessarily be discussed by law. As a producer of meanings and fertile ground for pertaining to gender relations discussions, the legal field has a key role in the social production 1 Professora adjunta do Curso de Direito da Universidade Federal de Goiás /Regional Goiás. volume

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of meanings, as the socio-cultural representations of the male and female are to be enshrined inequality, transmitted as natural. It must be remembered that the construction of equality involves the breakdown of social order that ranks the differences and changes in inequality. The objective of this paper is to discuss the dominant paradigm that perceives human rights as they are built based on civil and political rights, leaving excluded the rights of private space, preventing full citizenship of women in relation to their reproductive rights. The discussion will be done with the approaches to gender and justice interpreted with concepts of orthodoxy and heterodoxy as antagonistic dimensions to consider maintaining the criminalization of abortion in Brazil.

Key words Abortion; Citizenship; Human rights. 1. introdução No século V a.C. Sófocles ao falar de Antígona em uma perspectiva trágica, traz para a discussão um dos problemas fundamentais do Direito na vida humana. A literatura grega imortalizou a tragédia de Antígona ao postular sobre a existência de uma lei não isenta e imutável que se encontra acima de todas as outras leis. Antígona resolve contrariar as ordens do rei Creonte e para não ferir a lei dos deuses dá sepultura a seu irmão Polínice. De acordo com o rei Creonte, Polínice não poderia ser sepultado porque morrera combatendo sua pátria (Tebas). De modo antagônico ao rei, Antígona entenderia que o corpo insepulto de seu irmão feria a lei dos deuses, e que era uma norma divina o direito de sepultar os cadáveres. Diante disso, interrogada por Creonte sobre a audácia de desobedecer a essa determinação, Antígona reafirma: Sim, Porque não foi Júpiter que a promulgou; e a justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir de ontem ou hoje; são eternas, sim! e ninguém sabe desde quando vigoram! ( Sófocles, 1998, p.86) 170

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Fica evidente o caráter indomável de Antígona, caráter que traz para si o título de heroína eterna do direito natural ao deixar claro o conflito que acompanha toda a vida do Direito: o conflito entre o direito positivo, o direito criado pelo homem e o direito natural. Antígona desafia o direito positivo, mas se apropria da voz da lei Natural para cometer um ato contra a lei Positiva. Grita à lei natural. Ainda que Antígona tenha perdido a vida, seu ato permanece na linguagem, permanece no dizer, permanece no seu grito. Após a acusação do guarda de que Antígona deu sepultura a Polínice, Creonte a indaga: “...confessas ou negas, ter feito o que ele diz? Antígona ergue-se, e fita-o de frente, com desassombro. Confesso o que fiz! Confesso-o claramente!” (Sófocles, 1998, p.85). Antígona pagou com a vida sua opção, mas deixa postulado seu caráter quando diante do rei Creonte não se abate, questiona, protesta, indaga, age e assume seu ato. Parece-nos que ao pensar na problemática do aborto e precisamente no movimento feminista e de mulheres no Brasil, deve-se reconhecer que a forma de enfrentamento difere do grito de Antígona, por questões históricas inclusive, pois esta confronta, desafia o direito positivo, daí o ressoar do grito, enquanto o movimento feminista busca a legitimidade do Estado na adesão das políticas postuladas pelo movimento para que este atenda a partir do direito positivo. Entendemos que esta postura não descaracteriza o grito embora impetrado de forma diferente. Para se pensar estas questões a discussão neste trabalho far-se-á a partir das abordagens de gênero e justiça interpretada a partir dos conceitos de heterodoxia e ortodoxia como dimensões antagônicas para pensar a manutenção da criminalização do aborto no Brasil. Lembrando que de um lado, tem-se o grito silencioso das estatísticas evidenciadas a partir do sistema único de saúde e os movimentos feministas e de mulheres tentando fazer com que o referido grito alcance a sensibilização da sociedade e do Estado, para que percebam o problema como uma questão de gênero e de saúde pública; e por outro, aqueles que ouvem somente as estruturas estruturantes das instituições reconstruídas a partir do patriarcado. No Brasil, o aborto está descrito na lei penal como crime, sendo possível notar que há permissivos legais para a prática do aborto com os incisos I e II do artigo 128 do código de 1940. Na primeira legislatura que sucedeu à abertura do Congresso volume

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Nacional em 1949, houve manifestações contrárias aos dois permissivos legais por parte de setores da Igreja Católica com o Projeto Lei de Monsenhor Arruda Câmara (PDC/PE) com alegações baseadas na moralidade cristã com a retórica de que o aborto seria um atentado contra a vida humana, que já existia desde a concepção. Em 1995, a proposta de Emenda Constitucional n.25/95 de Severino Cavalcanti tinha por objetivo proibir o aborto em todos os casos (Rocha, 1996). As interdições construídas no campo jurídico pelas forças que lhe dão manutenção como a religião, não consegue impedir a prática clandestina e insegura do aborto2, que leva mulheres economicamente desprivilegiadas, em grande maioria negra, a recorrer ao aborto clandestino e ter como consequências infecções, sequelas e até morte. Mulheres de poder aquisitivo maior recorrem a serviços prestados por clínicas particulares que mantém um risco de saúde baixo. Fica claro então, que a criminalização do aborto além de não evitar sua realização levando à prática clandestina em condições péssimas de higiene, acentua as desigualdades de classe e contribui para aumentar a invisibilidade social desta problemática, impondo como pano de fundo, uma experiência marcada por conflitos, culpa, medo e solidão, já que poucos homens compartilham essa experiência com as mulheres (Cortês, 2002). O direito a saúde sexual e reprodutiva da mulher tem se constituído em elemento fundamental dos direitos humanos discutidos em diferentes documentos elaborados nas conferências internacionais das Nações Unidas a partir da década de 1990. Com a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Cairo, 1994) e com a IV Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995) fica instituído que os direitos sexuais e reprodutivos são essenciais para os direitos humanos. O aborto inseguro passa a ser reconhecido pela comunidade internacional como um grave problema de saúde pública, e faz recomendação aos governos que revisem as leis de caráter punitivo contra as mulheres que porventura passem pela vivência de um aborto ilegal, além de propiciar serviços de qualidade para tratar de complicações dele decorrente (Rocha, 2003).

2 Aborto inseguro se define como um procedimento para interromper a gravidez não desejada, realizado por pessoas que não possuem as habilidades necessárias ou num ambiente que nao cumpre os padrões médicos mínimos, ou ambos (OMS).

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A proibição legal do aborto está longe de conseguir a diminuição da morte de mulheres e muito menos de inibir sua prática, além do que, sua criminalização tira a autonomia das mulheres, sua liberdade individual, e, ainda demonstra o quanto a democracia brasileira está permeada por valores religiosos que tentam impor seus dogmas aos indivíduos com maior prejuízo às mulheres. O movimento feminista, inconformado, politizou-se e desfez a relação obrigatória entre sexualidade e reprodução, considerando a descriminalização/ legalização do aborto, um marco fundamental na luta por direitos reprodutivos, direitos sexuais e por uma democracia plural, que seja vivenciada por homens e mulheres. 2. direito aos direitos reprodutivos De acordo com Jelin (1994) o corpo da mulher recebe valor social especial pelo fato de gerar vida. A necessidade de controle do corpo da mulher advém da propriedade e da transmissão hereditária desta propriedade. Mudanças na modalidade de apropriação ocorreram com a industrialização e a modernidade trazendo novas técnicas para evitar gravidez e combate da esterilidade, novo ideal de família com poucos filhos e os meios de comunicação de massa que transformaram o corpo da mulher num objeto de consumo. No entanto, sexualidade e reprodução são campos que apenas recentemente foram diferenciados e somente a pouco tempo começaram as mulheres a reivindicar direito sobre o seu próprio corpo. Até a emergência do feminismo de segunda onda, o que se falava do corpo das mulheres não era produto de suas próprias vozes. “Los discursos disciplinadores de ese cuerpo y la construcción de la naturaleza feminina a partir de alli, son representations masculinas, hechas por los hombres e introjectadas por las mujeres” (Ávila, 1999, p.64). Para Nunes (2005) a reprodução humana colocada como escolha tão livre quanto possível, colocando-a no campo dos direitos reprodutivos, nos permite tratá-la como uma questão tanto do campo da cidadania, como do campo da ética e da moral. Talvez esteja aí “elementos para enfrentarmos de maneira adequada as forças fundamentalistas - religiosas e laicas, isto é, não-religiosas - que parecem querer minar as bases de uma sociedade justa, pluralista e democrática” (Nunes, 2005, p.106). volume

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Nos anos de 1970 a expressão ‘nosso corpo nos pertence’ reivindicava um lugar de constituição de existência própria como indivíduo (Ávila, 1999). A garantia de que o corpo da mulher não será submetido a práticas sem o consentimento e vontade implica no reconhecimento dos direitos humanos básicos. (...) Neste sentido, a violação é uma forma extremada de violência corporal, como é o caso também da imposição de métodos anticoncepcionais. (...) e o seu oposto, a negação do direito de contar com serviços de saúde que assegurem a capacidade de regulação da sexualidade e da reprodução (...) o direito de uma mulher violentada de interromper a gravidez não é reconhecido em muitos países, a sexualidade das mulheres poucas vezes é exercida como prática de liberdade. (Jelin, 1994, p. 140)

A questão que se coloca quanto ao direito à interrupção de uma gravidez não desejada parte-se necessariamente de dois pontos que se entrelaçam. O primeiro, baseado na autonomia da vontade que gera poder de decisão sobre a vida reprodutiva como princípio básico para uma democratização da vida privada e, o segundo, baseia-se numa dimensão fundamental da democracia moderna fundada na concepção de Estado laico. Mas é exatamente nesta questão que se percebe que, determinadas dimensões sofrem entraves maiores que outras para serem nomeadas e reconhecidas enquanto parte do universo dos direitos humanos. A introdução de dimensões como reprodução e sexualidade na esfera de direitos humanos ainda suscita grandes controvérsias (...) existem assim diversas frentes de luta, voltadas para ampliar ou refrear o escopo deste universo. (Pitanguy 2002, p.117)

No Brasil a Igreja Católica tem vetado sobre vários pontos dos direitos reprodutivos, colocando sua maior força repressiva na tentativa de impedir a descriminalização da prática do aborto. “Esse poder da Igreja sobre o Estado afeta o exercício da democracia uma vez que seguir a norma da Igreja em lugar da liberdade de escolha torna-se imposição garantida pelo Estado para todas as pessoas, independente de sua crença ou filiação religiosa” (Ávila, 2002, p.136). Com isso, o discurso moral do campo religioso busca apoio do Estado no campo político e jurídico que, com sanções legais, estabelece elementos através de valores transcendentes criando normas para o corpo do outro – precisamente da outra. 174

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Deixando assim indivíduos com corpos femininos vinculados compulsoriamente aos valores construídos pela moral do outro, ou seja, uma mulher de qualquer religião ou não-religião, tem no seu próprio corpo as marcas de um discurso que não é o seu, mas que em muitos casos a partir da violência simbólica (Bourdieu, 1999) acaba tendo uma atitude de conformidade com o discurso dominante. No caso do aborto impor a uma mulher católica ou de qualquer outra religião “uma norma que restringe sua liberdade é impedi-la de exercer direitos de cidadania. É desrespeitar sua capacidade moral de julgamento e decisão. É negar-lhe sua humanidade” (Nunes, 2005, p.111). O aborto entendido como uma experiência que ocorre especificamente no corpo da mulher, tem sido discutido na trajetória de lutas para sua descriminalização pelos movimentos feministas no Brasil a partir de direitos sociais como a questão da saúde pública, as realizações em condições precárias, o índice de mortalidade e sequelas decorrentes de aborto mal sucedido, assim como a injustiça que a restrição legal gera às mulheres pobres, obviamente as principais vítimas. Tal procedimento “parecem melhor traduzir as necessidades da maioria das mulheres, mobilizar apoios e promover coalizões, do que a formulação que valida o acesso ao aborto como um exercício de soberania das mulheres sobre seus corpos” (Sorj, 2002, p.102). Entende-se ser esta uma estratégia importante que atende ao contexto brasileiro devido às forças conservadoras contrárias ao aborto3 que estão, tanto nas instituições jurídicas e religiosas, quanto pulverizadas na sociedade brasileira como um todo4. Porém, a grande questão em relação às mulheres é a normatização moral e jurídica sobre seus corpos, impedindo o exercício pleno da cidadania a partir dos direitos individuais que se expressam numa questão de ordem primária: a soberania dos indivíduos sobre seus corpos. Neste caso no Brasil deixa-se de lado ou pouco menciona este tema como ocorre em outros países onde a questão 3 Ao argumentar que a vida fetal é um dom divino, as forças conservadoras e religiosas procuram mobilizar apoio para a afirmação e execução de sanções legais na defesa de um valor moral cuja autoridade é intemporal e inegociável, adotando assim uma moralidade absolutista e fundamentalista. (Sorj, 2002) 4 Em pesquisa elaborada entre os dias 28 e 30 de abril de 2007, a Vox Populi constatou um índice de 81% de entrevistados que são contra a permissão do aborto quando a gravidez não for desejada. volume

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é colocada a partir da política dos direitos individuais das mulheres de decidirem sobre seus corpos. Pois, “o Estado não pode regular a vida social a partir da norma de uma igreja sem prejuízo da liberdade dos indivíduos” (Àvila, 1999, p.71-2). As questões discutidas no Brasil são reais, mas secundárias, no momento em que o acessório é colocado em pauta como questão principal tirando do foco o direito individual de decisão da mulher sobre seu corpo, questão que se resolvida desconstrói e reorganiza uma grande parte das outras. Para Bourdieu (1999) as relações de gênero são relações de dominação e em relação à esta lógica, deve-se procurar apreender o modo como foi sendo construída a legitimação da sociedade em termos de gênero, e buscar uma forma de transformação a partir de um trabalho de socioanálise do inconsciente androcêntrico capaz de operar a objetivação das categorias desse inconsciente” (Bourdieu, 1999, p. 13). Para estudar as relações indivíduo/sociedade e mais precisamente questões relativas à violência simbólica com suas múltiplas manifestações, Pierre Bourdieu elabora alguns conceitos como de habitus e campo que se mostram bastantes produtivos para refletirmos a respeito do aborto sob a perspectiva das relações de gênero. Para Bourdieu, a ciência social constantemente tropeça no problema indivíduo/sociedade e esclarece que, a sociedade existe sob duas formas inseparáveis: de um lado as instituições que podem revestir a forma de coisas físicas, monumentos, livros, instrumentos, etc.; do outro as disposições adquiridas, as maneiras duradouras de ser ou fazer que encarnam em corpos (e a que eu chamo os habitus). O corpo socializado (aquilo a que se chama o indivíduo ou pessoa) não se opõe à sociedade: é uma das suas formas de existência. (Bourdieu, 2003, p. 33) O habitus, como o termo diz é o que se adquiriu, mas encarnou de modo duradouro no corpo sob a forma de disposições permanentes (...) é um produto dos condicionamentos que tende a reproduzir a lógica objetiva dos condicionamentos, mas fazendo-a sofrer uma transformação; é uma espécie de máquina transformadora que faz com que “reproduzamos” as condições sociais da nossa própria produção, mas de uma maneira relativamente imprevisível, de uma maneira tal que não podemos 176

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passar simples e mecanicamente do conhecimento das condições de produção ao conhecimento dos produtos. (Bourdieu, 2003, p. 140)

Ao discutir o conceito de habitus no processo de subordinação da mulher, afirma o autor ser a violência simbólica o mecanismo utilizado para que a dominação masculina se dê num processo lento e organizado a partir de categorias androcêntricas, que podem ser percebidas pelo modo de pensar, falar e sentir inscritos nos corpos e mentes dos indivíduos. As diferenças anatômicas percebidas nos corpos de homens e mulheres são uma das divisões utilizadas para que os poderes entre ambos se dêem de maneira desigual tendo o princípio masculino como parâmetro para todas as coisas e contribuindo com o aumento do capital simbólico em poder dos homens (Bourdieu, 1999). O princípio da visão dominante nas relações de gênero não se reduz a “uma simples representação mental, uma fantasia (‘idéias na cabeça’), uma ‘ideologia’, e sim um sistema de estruturas duradouramente inscritas nas coisas e nos corpos” (Bourdieu, 1999, p.53-4), pois estão incorporados nos habitus alicerçando as relações de dominação. O que pode ser visto nas relações desiguais de trabalho, no acesso a determinadas carreiras, nas legislações, nas relações econômicas, nas instituições de educação, familiares, assim como a maneira de uso do corpo que é feita diferentemente por homens e mulheres. Fazer uma reflexão sobre o aborto a partir da perspectiva das relações de gênero pede o reconhecimento dos poderes desiguais entre homens e mulheres, a começar pela forma como os individuos vivenciam as representações que os orientam na vida social, assim como especificamente na construção social sobre a maternidade. A interdição ao aborto evidencia o poder referente aos direitos sexuais e reprodutivos postulados diferentemente para homens e mulheres nos espaços sociais. Na questão da maternidade deve-se pensá-la não somente como um caráter natural-biológico, mas sociológico e antropológico para se compreender suas múltiplas faces (Scavone, 2004, p.143). Para a autora, além da responsabilidade feminina na reprodução humana desde a responsabilidade pelos corpos gerados na gravidez, no parto, na amamentação e na vida da criança, há a responsabilidade do controle da concepção pelos métodos contraceptivos serem majoritariamente volume

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para mulheres. Importante lembrar que, a contracepção e o aborto são a face da negação da maternidade como possibilidadede dizer não, embora um nao difícil para as mulheres à maternidade como fato biológico irreversível (Scavone, 2004, p.144). Pode-se notar que historicamente a partir de métodos contraceptivos naturais, do aborto e do infanticídio (Pedro, 2003; Kitzinger, 1978), as mulheres negaram a maternidade como imposição natural e como fator determinante para a construção do ser mulher (Scavone, 2004). A maternidade e o aborto e suas significações segundo Cortês (2002), enquadram-se em oposições binárias, em dicotomias, pois de um lado a maternidade reveste-se de um habitus baseado em representação positiva ligada a idéia do bem e a sexualidade regrada e moralizada, e, por outro, o aborto ligado ao mal, ao pecado, ao crime e a uma sexualidade desregrada e condenável. Considerando-se que as relações de gênero são relações de dominação nas quais a proibição ao aborto aparece na instituição jurídica como uma forma de violência simbólica, (Bourdieu,1999, p. 7), que faz a submissão não ser visível para as suas próprias vítimas, que, por muitas vezes acabam assumindo uma atitude encantada com os dominadores, ou seja, as mulheres neste caso acabam reproduzindo um discurso construído pela visão dominante como se fosse o seu. Neste caso, o discurso jurídico que tem por objetivo primeiro regulamentar a vida em sociedade, faz com que seja aceito sem questionamento o texto legal, no qual, a assimetria entre homens e mulheres fica ressaltada, pois legitima uma cidadania restringida, pois se avança em alguns direitos como, por exemplo, algumas mudanças constitucionais de 1988, como também o Código Civil de 2002, mas mantém ou colocam-se impedimentos na conquista de outros, como é o caso da manutenção da penalização do aborto no Código Penal Brasileiro representando a partir do não direito ao corpo, uma cidadania que não integra o indivíduo por inteiro. Diante das questões legais impostas pelo campo jurídico, muitas mulheres tornam-se também portadoras do habitus adquirido junto a ele dando continuidade a aceitação do texto legal sem questionamento e acolhendo a criminalização do aborto como uma questão jurídica e não como um direito da mulher a escolha de uma maternidade não imposta. 178

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Complementar a noção de habitus, o conceito de campo é relativo a um espaço de forças sociais no qual se manifestam as relações de poder. Assim, o campo é entendido como um “sistema de desvios de níveis diferentes e nada nem nas instituições ou nos agentes nem nos atos ou nos discursos que eles produzem, tem sentido se não relacionalmente, por meio do jogo das oposições e das distinções” (Bourdieu, 2000, p. 179). Cada campo possui características que o diferem dos outros tendo seus interesses específicos e sua regulamentação própria. O campo social é delimitado, tem sua conjuntura, é um espaço estruturado, espaço de forças que em todas as relações sociais está embutida as relações de poder, entendidas como capital econômico, simbólico, cultural e social. Assim todo campo é um espaço de lutas pela apropriação do capital que em cada circunstância mostra em determinada relação de força o seu objetivo. Para Bourdieu, A estrutura do campo é um estado da relação de força entre os agentes ou as instituições envolvidas na luta ou, se se preferir, da distribuição do capital específico que, acumulado no decorrer das lutas anteriores, orienta as estratégias posteriores. Esta estrutura, que está no princípio das estratégias destinadas a transformá-la, está ela própria sempre em jogo: as lutas cujo lugar é o campo têm por parada em jogo o monopólio da violência legítima (autoridade específica) que é característica do campo considerado, quer dizer, em última análise, a conservação ou a subversão da estrutura da distribuição do capital específico. (Bourdieu, 2003, p. 120)

O campo nesta concepção é dividido em dois polos significativos: de um lado, o polo dominante que com capital específico inclina-se para estratégias de conservação que correspondem à defesa da ortodoxia; e de outro, o polo dominado com menor poder de capital volta-se para as práticas heterodoxas, pois, procura manifestar sua insatisfação por meio de estratégias de subversão. Assim, a estrutura do campo está sempre em luta, pois os agentes sociais ao adotar estratégias de conservação ou de subversão determinam uma nova distribuição do capital dentro do campo. Para se compreender a lógica social de um campo, é preciso apreender o que faz a necessidade específica da crença que lhe dá suporte, do jogo de linguagem que se joga, das coisas materiais e simbólicas que estão em jogo (Bourdieu, 2000, p. 69). volume

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Na questão do aborto vários campos concorrem para a manutenção de valores específicos para manutenção de sua interdição, mas nos campos jurídico e religioso estão precisamente as leis e os dogmas que são sempre lembrados nas situações em que o tema aborto é mencionado. Tanto o Direito como a Religiao são instituições sociais que estruturam as relações de poder, contribuindo para a manutenção da assimetria entre mulheres e homens. Por outro lado, pode-se perceber o campo da política feminista, que tem buscado elementos para desconstruir e reconstruir os olhares sobre o direito das mulheres ao seu próprio corpo, pois, as estruturas das relações que constituem o campo religioso tem um mecanismo externo de legitimação da ordem estabelecida na medida em que a manutenção da ordem simbólica contribui de forma direta para a manutenção da ordem política e a subversão desta ordem só consegue atingi-la no momento em que se faz uma subversão política desta ordem (Bourdieu,1987, p.69). Monteiro (2003) considera o Direito como um discurso fundado em valores e noções atinentes a direitos e obrigações que participa primeiramente da estruturação das relações sociais ao definir ‘estatutos’ e sancionar ‘papéis’; realiza uma escolha política por determinados valores aos quais atribuindo um caráter de consenso legitima ideologicamente pelo recurso legal-racional as distribuições de privilégios e encargos; e por fim, garante na forma da lei, os direitos conforme as hierarquias sociais e os ditames das estratégias de dominação (Monteiro, 2003, p. 29). É importante ressaltar que ao dar caráter de consenso, o Direito incorpora as definições socialmente impostas quanto às ações, comportamentos e expectativas referentes aos papéis sociais de ‘pai’, ‘marido’, ‘mãe’, ‘esposa’, ‘filho’, etc, redobrando assim juridicamente a força normativa sociológica desses fenômenos sociais. (Monteiro, 2003, p. 30)

A naturalização das diferenças sexuais é útil no Direito para excluir, tentar corrigir ou criminalizar os comportamentos que não se enquadrem nos modelos normativos dominantes de família e de heterossexualidade que se encontra enunciado de diversos modos, como nas abordagens que sustentam ‘o caráter falocêntrico do Direito’ ou aquelas que falam da ‘estrutura patriarcal dos direitos’ “aludindo aos modos como os aparelhos jurídicos ‘sexualizam, desqualificando’ os 180

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corpos femininos, enfatizando os processos pelos quais o Direito e os seus agentes contribuem para reforçar as assimetrias e as desigualdades de gênero e de poder previamente existentes na ordem social” (Machado, 2004, p. 20). Importante lembrar que se refere aqui não somente ao direito teórico, mas também as decisões do Poder Judiciário que exprimem uma visão de mundo calcada nos valores sociais. Neste sentido Barsted e Garcez (1999, p. 15) afirmam que há um direito previsto, teórico, e um direito aplicado, prático, mas que, tanto em um quanto em outro, estão presentes cargas de preconceito de diferentes espécies que devem ser sempre examinadas e denunciadas. Ao incorporar ao sistema jurídico os predicados socialmente definidos para as identidades de gênero, o Direito os torna obrigatório o que lhe faz mudar de estatuto, pois passa a ser legitimador das estratégias de dominação masculina, pois a assimetria de gênero que está pulverizada na sociedade toma corpo e legitima-se a partir da incorporação ao texto legal. Fraser (2002) afirma que, indicando construções legais de privacidade, autonomia, autodefesa e igualdade, expressamente codificadas em várias áreas do Direito, os padrões de valores androcêntricos, tendem a ser constantemente institucionalizados, e acabam criando amplos sulcros de interação social. Para Machado, o direito constitui uma forma de institucionalização das relações sociais de gênero que não opera de modo homogêneo, mas antes socorrendo-se de uma diversidade de práticas e discursos interrelacionados com outros poderes e saberes provenientes de outras esferas da vida em sociedade (da família, da política, da religião, da ciência). Esta tomada de posição implica percepcionar o direito como um conjunto de práticas e de discursos profundamente enraizados na sociedade, em permanente intersecção com práticas e discursos provenientes de outros campos de acção e de conhecimento. (Machado, 2004, p. 20)

Temos que lembrar que a construção do corpus legal ocorre no campo jurídico e que segundo Bourdieu este campo “é o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito, quer dizer a boa distribuição ou a boa ordem (nomos) na qual defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnico” (Bourdieu, 2000, p. 212). O campo jurídico é o lugar onde o poder define-se numa relação determinada entre os que exercem o poder e os que lhe volume

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são sujeitos na própria estrutura do campo em que se produz e se reproduz a crença. Neste caso “o que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de subvertê-la, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras” (Bourdieu, 2000, p. 15). O não questionamento do texto legal acentua a naturalização da desigualdade fazendo com que a ausência de uma relação dialética de oposição, mascare o problema e desempodere qualquer possibilidade de uma ação política do dominado. Bourdieu discute sobre a importância da religião nos processos sociais como um espaço comparável ao mercado segundo lógicas singulares e próprias com seu comércio de símbolos, denominando-os de campo religioso (Bourdieu, 1987, p. 57). Este campo funciona como princípio de estruturação que constrói a experiência na medida em que a expressa assumindo uma função prática e política de legitimação do arbitrário, fazendo com que o habitus religioso mantenha criando e recriando pensamentos, percepções e ações segundo as normas de uma representação religiosa do mundo natural e sobrenatural (Bourdieu, 1987, p. 45-6). Em qualquer campo encontraremos tanto espaços privilegiados de poder como a luta declarada ou não para o seu exercício. Importa-nos a questão dos espaços que dão manutenção a coercibilidade pela prática do aborto porque o saber religioso é capaz de produzir o direcionamento da ação tanto dos fiéis como além deles, no momento em que cria regras para todas as mulheres independentemente do credo religioso. O campo jurídico e religioso podem ser entendidos como terrenos férteis para o desenvolvimento, afirmação e perpetuação de valores androcêntricos, no momento em que o campo religioso, entra em espaços do campo jurídico, efetuando-se a partir de valores e normas interiorizadas por instrumentos legais. Neste momento há uma retroalimentação pelos campos na medida em que um se beneficia do discurso do outro para a manutenção da ortodoxia de ambos. O processo que legitima o poder no campo religioso assume características tipicamente jurídicas, visto pressupor três elementos essenciais do Direito Positivo: coação, sanção e garantia jurídica5. (Nader, 1998, p. 59-67) como 5 É constituído pelo conjunto de normas elaboradas por uma determinada sociedade, para reger sua vida interna, com a proteção da força social.

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elemento chave para compreendermos o processo de formação e consolidação do poder pela coercibilidade que ameaça e inibe as mulheres, mantendo-os na condição de rés em potencial e juízas de si mesmas na medida em que trabalham com a culpa6 e o remorso nos casos de aborto provocado. A recíproca torna-se verdadeira quando no campo jurídico argumentos religiosos são utilizados para a manutenção do campo. No caso do aborto isto torna quase que naturalizado no momento em que conceitos como o de vida, alma e direitos do nascituro são invocados a partir de argumentos religiosos. A partir da disciplina busca-se cumprir rigorosamente uma função de legitimação da dominação que contribui significativamente no campo religioso para a domesticação dos dominados e concretização das estratégias do habitus. Acoerção se institui por meio de uma adesão que o dominado outorga ao dominante a partir de um reconhecimento tácito. Aparece esta violência de forma suave, invisível que “se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou mais precisamente, do desconhecimento ou, em última instância do sentimento” (Bourdieu, 1999, p. 7). Embora tal situação não seja concedida voluntariamente a partir de um ato consciente e deliberado, não tem a dominação seu poder simplesmente pela imposição do dominante, mas principalmente pelo ato de desconhecimento da dominação, pois há uma interação entre os grupos dominantes que são mantidos a partir das relações construídas com os grupos dominados tanto no campo juridico como religioso. Para garantir a permanência da dominação, Bourdieu (1999), ressalta o trabalho de eternização competentes a instituições interligadas que concorrem para garanti-la, ou seja, igreja, Estado, escola, Direito, etc., que em diversos momentos, com pesos e medidas diferentes, contribuíram para a manutenção da estrutura de dominação masculina. Instituições e agentes particulares que estrategicamente dão continuidade no curso de uma história bastante longa, à estrutura dessas relações. 6 Importante salientar que o elemento psicológico coativo no campo religioso possui o instrumento da coercibilidade que assim como no fenômeno jurídico difere da coação por se tratar de uma reserva de força ou potencialidade do uso da força. A coercibilidade religiosa é aquele instrumento poderoso de intimidação e constrangimento psicológico que condiciona o fiel a uma conduta positiva ou negativa, visto estar obrigado a fazer ou não fazer, norteada por um sistema baseado em dogmas. volume

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O autor sugere que, para apreender a lógica da dominação deve-se, em relação à nossa própria sociedade, assumir o olhar do antropólogo “capaz de ao mesmo tempo, devolver à diferença entre o masculino e o feminino, tal como a (des) conhecemos, seu caráter arbitrário, contingente, e também simultaneamente, sua necessidade sócio-lógica” (Bourdieu, 1999, p. 8). Deve-se, portanto, buscar a compreensão do modo como foi sendo construída a legitimação da sociedade em termos masculinos, ou seja, buscar uma análise que se transforma em “instrumento de um trabalho de socioanálise do inconsciente androcêntrico capaz de operar a objetivação das categorias desse inconsciente” (Bourdieu, 1999, p. 13). A violência simbólica, como diz Bourdieu, escapa aos domínios das decisões conscientes, quer em homens ou em mulheres, propiciando que um inconsciente androcêntrico, construído ao longo da história, faça as estruturas cognitivas e as estruturas sociais não entrarem em desacordo. Ao longo da história foi-se construindo a visão dominante como masculina, privilegiando os homens ao mesmo tempo em que se desabonavam as mulheres. Bourdieu entende que o “eterno na história não pode ser senão produto de um trabalho histórico de eternização” (Bourdieu, 1999, p. 100). Portanto, isso não significa, que, o processo de des-historização da dominação, ao arrancar da história elementos que garantem sua sustentação, seja tranquilo, sem luta dos dominados para (re) tomar o poder. Sobre a atuação do dominado, ao tomar consciência de sua subordinação, “dá o troco ao dominador sempre que pode fazê-lo” (Saffioti 1987, p. 54). Uma questão importante e, que deve ser ressaltada, é que, por mais exata que seja a aplicação de esquemas de dominação, “há sempre lugar para uma luta cognitiva a propósito do sentido das coisas do mundo particularmente das realidades sexuais” (Bourdieu, 1999, p. 22). Neste caso pode haver interpretações antagônicas, que oferecem aos dominados, possibilidades de resistência contra o efeito da dominação simbólica, pois o habitus é entendido como disposições duráveis, mas não intransponíveis. Isso nos remete necessariamente a emancipação, pois, a ideia de emancipação pressupõe, desde logo, a existência de relações desiguais de poder, uma vez que, se o poder não fosse exercido de uma forma excludente, não haveria necessidade de se lutar pela igualdade de oportunidades e direitos, pelo direito à 184

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diferença ou pela inclusão. Por outras palavras, a desigualdade e a exclusão criam as condições – de inferiorização e exploração – indispensáveis (embora não suficientes) para a emergência de uma vontade de emancipação. (Santos, 2004, p. 281)

Bourdieu reconhece a possibilidade de se efetuar uma transferência de capital cultural, pois o dominado pode buscar a mobilização coletiva e a ação subversiva contra a ordem estabelecida. Para que isso ocorra, seria necessário para se libertar de níveis da dominação, denunciar a arbitrariedade que escamoteia a realidade. Deve-se então pontuar a lógica que define e redefine a manutenção de uma cidadania inacabada, construída e mantida por um Estado que se propõe laico, mas permite que poderes religiosos decidam sobre o que as mulheres podem ou não fazer de seus corpos, de seu poder de gestar, não as reconhecendo como agentes morais de pleno direito com capacidade de escolher. Necessário desmascarar as forças ortodoxas que tentam impedir o ressoar do não-dito das mulheres, (como o polêmico Estatuto do Nascituro, projeto que derrubará qualquer direito de a mulher decidir pela interrupção da gravidez, mesmo em caso de risco à sua vida, anomalia grave (como anencefalia) e estupro, situações já garantidas pelo direito brasileiro), assim como o grito dos movimentos feministas propostos pela heterodoxia. 3. conclusões Diferentemente de Antígona, as mulheres desafiam o Estado cometendo um ato contra a lei. Deve-se reconhecer que as vozes são muito diferentes. Antígona ao ser questionada por Creonte, diz: fui eu. Eu o fiz. As mulheres que vivenciam o não-difícil do/no isolamento apropriam-se do não-dito, do oculto, do invisível, para sobreviver a experiência do aborto. Seu grito é na linguagem da dor. Silenciam no isolamento da solidão, da dúvida, do não-difícil porque são induzidas socialmente – socializadas debaixo do peso do pecado a partir do campo religioso e do crime no campo jurídico. E quando há alguma verbalização, o peso construído pela influência dos referidos campos aparecem como uma experiência trágica e lamentável. Cabe ressaltar que enquanto as mulheres passam pela experiência do aborto, gritam em vários silêncios, silenciam em várias vozes. Mas, o que tem ecoado volume

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frente ao Estado e a sociedade é o som dos movimentos feministas e de mulheres que utilizam entre outras argumentações as estatísticas do SUS (Sistema Único de Saúde). A mudança de paradigma/ a desestruturação do habitus é necessário para que não ocorra novos gritos consecutivos de novas Antígonas. A ilegalidade do aborto, além de ser uma hipocrisia social, representa o silenciar de várias vozes. A omissão do Estado legitima a clandestinidade que invisibiliza o ouvir do grito, autentica o grito do não direito, o grito da não cidadania. Viola os Direitos Humanos e os direitos reprodutivos das mulheres, além de golpear sua autonomia e dignidade. A ausência da cidadania gera o grito do/no silencio. Isso somente terá fim quando forem assegurados às mulheres seus direitos sexuais e reprodutivos e enfim serem seres humanos por inteiro. E que o grito – deixe de ser o grito do silêncio, do não-dito e ecoe como o grito de Antígona, mas sem passar necessariamente pela morte. Antígona entendia que o corpo insepulto de seu irmão feria a lei dos deuses. Entendemos que a ausência de direitos humanos das mulheres fere a lei da deusa, da deusa da justiça. 4. referências SÓFOCLES. Rei Èdipo; Antígone. Rio de janeiro: Ediouro, 1998. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. _______. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 2000. MONTEIRO, Geraldo Tadeu Moreira. Construção jurídica das relações de gênero: o processo de codificação civil na instauração da ordem liberal conservadora no Brasil. Rio de janeiro: Renovar, 2003. NUNES, Maria José Rosado. Pensando eticamente sobre concepção, anticoncepçao e aborto. In: CUNHA, Teresa & SANTOS, Celina M. dos. (org). Nós de outras teias: solidariedade feminista. Coleção Art. feminino, n.1, Mar da Palavra – Edições Lda, 2005. ROCHA, Maria Isabel Baltar da. A questão do aborto no Brasil: o debate no congresso. In: Revistas Estudos Feministas, vol 4, n. 2. São Paulo: 1996. 186

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_______. A discussão política sobre o aborto no Brasil: uma síntese. In: Revista Brasileira de Estudos sobre a População. São Paulo, v.23, n.2, 2006. ROCHA, Maria Isabel Baltar da & Neto, Jorge Andalafat. A questão do aborto: aspectos clínicos, legislativos e políticos. In: BERQUÓ, Elza (org). Sexo e vida: panorama da saúde reprodutiva no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências.14 ed., Porto: Edições Afrontamento, 1987. _______. Introdução a uma ciência pós-moderna. 6 ed., Porto: Edições Afrontamento, 1989. _______. A Construção multicultural da igualdade e da diferença. Oficina do CES, 135, 1999. XAVIER, Dulce (Org). Em defesa da vida: aborto e direitos humanos. Sâo Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir, 2006.

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o novo regime constitucional da defensoria pública no br asil Cleber Francisco Alves1 Bárbara Gomes Lupetti Baptista 2

Resumo Este trabalho pretende discutir o modelo de serviço público estatal de assistência jurídica gratuita no Brasil, prestado através da Defensoria Pública, que já se encontrava esboçado, em linhas gerais, no texto originário da Constituição Federal de 1988, e que vem se consolidando neste primeiro quarto de século de vigência da atual Carta Magna, através da produção legislativa do Congresso Nacional, especialmente pela recente promulgação da Emenda Constitucional nº 80, de 04 de junho de 2014, e também via Judiciário, mediante a prolação de decisões proferidas em sede de controle concentrado de constitucionalidade, pelo STF. O trabalho traduz uma perspectiva teórica e outra de base empírica, esta realizada com base na análise de decisões judiciais proferidas em ações declaratórias de inconstitucionalidade que explicitaram a relevância da Defensoria Pública como instituição essencial à Justiça e que contribuíram para a implementação de um regime constitucional que expressa o reconhecimento do papel social da Defensoria Pública e de sua contribuição para o desenvolvimento da sociedade e para o recrudescimento do respeito à igualdade e aos direitos humanos.

Palavras-chave Acesso à Justiça; Regime Constitucional; Defensoria Pública; Assistência Jurídica Gratuita. 1 Doutor em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio. Professor Titular da graduação e do mestrado em Direito da Universidade Católica de Petrópolis (UCP). Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Defensor Público no Estado do Rio de Janeiro. 2 Doutora em Direito pela UGF-RJ. Professora Adjunta da graduação e do mestrado em Direito da Universidade Católica de Petrópolis (UCP). Advogada no Rio de Janeiro. Pesquisadora do INCT-InEAC. volume

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Resumen Este trabajo pretende discutir el modelo de servicio público estatal de asistencia jurídica gratuita en Brasil prestado por la Defensoría Pública y que ya se encontraba esbozado, en líneas generales, en el texto originario de la Constitución Brasileña del año de 1988 pero que viene se consolidando en este primer cuarto siglo de su vigencia con la producción legislativa del Parlamento, especialmente por la recién promulgación de la Enmienda Constitucional nº 80, de 04 de junio de 2014, bien como por el Poder Judicial ante las decisiones proferidas en sed de control de constitucionalidad por la Suprema Corte brasileña. El texto traduce una perspectiva teórica y otra de base empírica, esa apoyada en el analice de las decisiones judiciales proferidas en acciones declaratorias de inconstitucionalidad que demuestran la importancia de la Defensa Pública como institución esencial a la Justicia, contribuyendo para la implementación de un régimen constitucional que se expresa en el reconocimiento del rol social de la Defensa Pública y de su contribución para el desarrollo de una sociedad con el respeto a la igualdad y a los derechos humanos.

Palabras clave Acceso a la Justicia; Régimen Constitucional; Defensoría Pública; Asistencia Jurídica Gratuita. 1. introdução O presente artigo pretende incorporar a discussão central proposta para este pioneiro evento de internacionalização do CONPEDI, cujo tema é: “Atores do desenvolvimento econômico, político e social diante do Direito do século XXI”. Especificamente, pretende-se destacar a importância do papel institucional da Defensoria Pública brasileira, que representa um desses “atores de desenvolvimento social”, referenciados no título deste Congresso. O paper consiste em um estudo acerca do desenho institucional do modelo brasileiro de serviço público de assistência jurídica gratuita integral aos necessitados, assistência esta que é reconhecida como direito fundamental no Artigo 5º, Inciso LXXIV, da Constituição brasileira de 1988. Tal modelo está assentado na 190

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institucionalização de um órgão estatal, qual seja a Defensoria Pública, cujo regime constitucional e respectiva estruturação vêm sendo consolidados e aprimorados ao longo dos últimos anos, como se procurará demonstrar ao longo do trabalho. A relevância deste estudo se justifica e se torna ainda mais significativa com a recente promulgação da Emenda Constitucional nº 80, de 04 de junho de 2014, que consolida uma trajetória de valorização e de fortalecimento da instituição, que já fora sinalizada pela Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, e que traz novas perspectivas para a compreensão do papel a ser desempenhado pela Defensoria Pública no cenário nacional. A Constituição Federal de 1988, como se sabe, resultou de um intenso processo de mobilização da sociedade brasileira, num movimento que ganhou força no final dos anos setenta e início dos anos oitenta do século passado, de luta pela instauração de uma nova ordem política e jurídica, de cunho verdadeiramente democrático, comprometida com a efetivação dos direitos fundamentais. Certamente por esse motivo, os membros da Assembleia Nacional Constituinte tiveram uma nítida preocupação de evitar que as conquistas normativas asseguradas na Carta Magna ficassem apenas no campo das abstrações jurídicas. Assim, inúmeros foram os instrumentos criados com o propósito de que tais conquistas produzissem efeitos concretos, especialmente em prol das grandes massas de cidadãos, historicamente excluídos da fruição dos bens sociais e do exercício dos direitos fundamentais. Nessa nova arquitetura institucional, um papel decisivo foi reconhecido ao Poder Judiciário. Tradicionalmente os magistrados brasileiros costumavam assumir uma posição de total discrição e distanciamento com relação às questões de ordem social e política, limitando-se a desempenhar um papel estritamente técnicojurídico de caráter “formal”, voltado primordialmente para a solução dos conflitos individuais de natureza privada. O regime constitucional inaugurado em 1988 lançou novos desafios ao Judiciário, trazendo-o para o proscênio da vida pública nacional. Entretanto, como diz a máxima latina: nemo iudex sine actore, quer dizer, não há juiz sem autor, ou seja, o juiz somente pode atuar se for provocado por quem tenha legítima capacidade para tanto. Exatamente em razão da natureza inercial que é própria e intrínseca à atuação do Judiciário tornava-se imprescindível a previsão dos mecanismos próprios, capazes de deflagrar a intervenção dos órgãos da Justiça, permitindo que volume

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cumpram esse novo papel no cenário político-institucional desenhado pela Constituição. Esses mecanismos foram alçados pela Carta de 1988 à categoria de “funções essenciais à Justiça”, que abrangem, na visão de Devisate (2004, p.365), “a totalidade do universo daqueles que têm a capacidade para estar em Juízo, provocando a jurisdição, ressalvado os casos de competência dos juizados especiais e os habeas corpus, os quais permitem que o próprio interessado provoque a jurisdição”. O propósito evidente do legislador constituinte de 1988 foi o de garantir efetividade no acesso à Justiça, permitindo que todos os diferentes interesses juridicamente relevantes que legitimamente podem emergir no seio da sociedade viessem a encontrar os canais adequados para serem levados à instância judicial. Assim, foi consolidado na Constituição o papel institucional dos membros do Ministério Público como “advogados da sociedade”, reforçando-se suas garantias e prerrogativas, de modo que possam cumprir com sua missão de defesa dos interesses indisponíveis, sociais e individuais, não apenas no campo da persecução penal, como tradicionalmente já estava assentado, mas também no campo dos interesses coletivos e difusos na área extrapenal e de respeito à ordem jurídica e ao regime democrático. Também os interesses específicos da Administração Pública foram resguardados, passando ao encargo da chamada Advocacia Pública, estruturada institucionalmente através da Advocacia Geral da União3 e das Procuradorias Gerais dos Estados e dos Municípios. No que se refere aos interesses disponíveis das pessoas físicas e jurídicas de direito privado, considerados tanto individualmente como coletivamente, foi confirmada em sede constitucional a essencialidade do papel institucional da Advocacia, reconhecida como atividade liberal, revestida de garantias de independência necessária ao pleno desempenho de sua missão. Ocorre que o legislador constituinte brasileiro reconheceu que apenas essas três instituições acima apontadas não eram suficientes para garantir de modo efetivo e pleno o acesso de todos os cidadãos à Justiça. Na verdade, mesmo com 3 Pelo novo regime constitucional a tarefa de representação judicial da União foi totalmente excluída das atribuições da Procuradoria Geral da República, quer dizer, do Ministério Público Federal, criando-se um novo órgão estatal especificamente encarregado da missão de representar judicial e extrajudicialmente a União Federal, incluídas as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.

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essa estrutura institucional do Ministério Público, da Advocacia Pública, e da Advocacia Privada, uma larga parcela da população nacional – aliás, a esmagadora maioria quantitativa do povo brasileiro – continuaria totalmente à margem do sistema judiciário, devido a barreiras de diversas naturezas, principalmente as de ordem econômica, mas também as de ordem cultural e social. Devido a tais barreiras, para que os interesses de cunho jurídico da maioria do povo brasileiro pudessem ser adequadamente resguardados e tutelados revelava-se imprescindível que o próprio Estado suprisse esse vácuo, instituindo órgão próprio revestido das condições necessárias para dar vazão à demanda de assistência jurídica integral em prol dessa grande massa populacional. Com efeito, valendo-nos das palavras da Professora Maria Teresa Sadek (2001, p. 9), é preciso lembrar que: Não se adentram as portas do Judiciário sem o cumprimento de ritos e a obediência a procedimentos. Entre estes está a necessidade de defesa por profissionais especializados – os advogados. Ora, o acesso aos advogados, por sua vez, depende de recursos que, na maior parte das vezes, os mais carentes não possuem. Assim, para que a desigualdade social não produza efeitos desastrosos sobre a titularidade de direitos, foi concebido um serviço de assistência jurídica gratuita – a Defensoria Pública.

Temos, pois, que uma das grandes novidades da Constituição Federal de 1988 foi exatamente a previsão expressa da criação da Defensoria Pública, no Art. 134, erigida como órgão estatal especificamente encarregado de propiciar condições de igualdade para que as pessoas das classes desfavorecidas economicamente e culturalmente tivessem assegurado o acesso à Justiça, em sentido pleno. Porém, embora já estivesse latente no texto originário da “Constituição Cidadã”4 ou, em outras palavras, na mens legis dos legisladores constituintes primitivos, foi necessário percorrer um longo um processo, que tem se revelado contínuo e linear, para a construção e de definição dos contornos institucionais e da natureza jurídica da Defensoria Pública no Brasil. Esse processo, contínuo e linear, acima mencionado pode ser claramente percebido pela análise atenta da atuação dos Três Poderes da República 4 Expressão que foi cunhada por Ulisses Guimarães, Presidente da Assembleia Nacional Constituinte que promulgou a atual Constituição Brasileira. volume

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nesses pouco mais de cinco lustros de vigência da Constituição de 1988. Isto se deu através da produção normativa do Congresso Nacional, de algumas impactantes decisões emanadas dos órgãos do Poder Judiciário, especialmente do Supremo Tribunal Federal, e dos avanços significativos nas políticas públicas implementadas por órgãos do Poder Executivo, seja no âmbito da União Federal ou dos Estados-membros. A afirmação da autonomia funcional, administrativa e orçamentária, da Defensoria Pública, através da Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 20045, representou igualmente um marco importante nessa trajetória de construção/delineamento do modelo brasileiro de serviço estatal de assistência jurídica gratuita integral aos necessitados. Tal modelo, explicitado inicialmente pelo texto da Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994, foi ainda mais aprimorado e enriquecido com as modificações introduzidas pela Lei Complementar nº 132, de 07 de outubro de 20096. Finalmente, parece inequívoco que a recente promulgação da Emenda Constitucional nº 80, de 04 de junho de 2014 - que altera o texto do Artigo 134 da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988 e introduz outros importantes dispositivos, inclusive no sentido de fixar um prazo limite para a implantação efetiva da Defensoria em todo o território nacional - consolida formalmente no texto da Carta Magna brasileira essa trajetória de construção e de (re)definição dos contornos institucionais da Defensoria Pública, assegurando que a promessa de “justiça para todos” enfim se concretize (ALVES, 2006). 2. a defensoria pública como função essencial à justiça no br asil Desde logo, parece oportuno salientar que, embora o Art. 134 da Constituição Federal, nos mesmos moldes do dispositivo constitucional que define a missão do Ministério Público (Art. 127), indique que a Defensoria Pública é instituição permanente “essencial à função jurisdicional do Estado” essa “essencialidade” deve ser compreendida cum grano salis, ou seja, não se pode 5 Originariamente tal autonomia foi assegurada apenas às Defensorias Públicas dos Estados, mas com a Emenda Constitucional nº 69/2012, depois ratificada pela Emenda Constitucional nº 74/2013, passou a valer também para a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal. 6 Para uma visão mais abrangente sobre o alcance das inovações trazidas pela Lei Complementar nº 132/2009, recomenda-se a leitura do livro organizado por Sousa (2011).

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entender que o Ministério Público e a Defensoria Pública devam atuar em “todos” os processos judiciais. Atuarão apenas naqueles em que os interesses específicos que lhes cabe resguardar estejam sendo postos em cheque. Por outro lado, embora tais dispositivos estabeleçam como essencial a atuação apenas no desempenho da “função jurisdicional” do Estado e o título do capítulo IV, do Título IV, fale em “funções essenciais à Justiça”, entende-se que a Constituição Federal não quis restringir a atuação, tanto da Defensoria Pública como do Ministério Público, à esfera judicial. Como ensinou o Professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto (1993, p. 32), “A Justiça aqui está no sentido de que o Estado tem que realizar este valor no sentido mais amplo possível. A realização da Justiça é uma finalidade do Estado. Só se pode entender Justiça no sentido amplo e não no sentido estrito, de órgão judiciário”. Essa ideia de “funções essenciais à Justiça” traduz uma nova categoria no contexto do direito constitucional. Foi esta a primeira vez em que se utilizou essa expressão. E parece que a inovação de se estabelecer na Carta Magna os lineamentos gerais das instituições encarregadas de pleitear a prestação jurisdicional foi bastante oportuna, na medida em que preserva o princípio da inércia que deve continuar marcando a atuação do Judiciário, de modo a que possa conservar a imparcialidade e a equidistância necessárias para dirimir conflitos de interesses que lhe são apresentados, quaisquer que sejam sua natureza e as partes envolvidas7. Torna-se imprescindível, todavia, uma reflexão mais profunda sobre o sentido e o significado do adjetivo “essencial” que qualifica essas funções do Ministério Público, da Advocacia Pública, da Defensoria Pública e da Advocacia Privada, tal como indicado pela Constituição de 1988. Tais funções não são mais denominadas de “auxiliares” da Justiça. Assim, como nos fala o Professor Jean Menezes de Aguiar (1997, p. 176), é interessante que a Constituição tenha trazido para a “jurisdicionalidade”, por azo da “essencialidade”, e não da hierarquia, subordinação ou auxiliaridade – como costuma ser tratada a matéria em outros ordenamentos jurídicos – funções que ostensivamente não apresentam igual natureza jurídica, nem identidade tipológica de operação. E completa o referido jurista, explicitando que essas funções essenciais: 7 Acerca de uma visão empírica sobre o Princípio da Imparcialidade, ver: LUPETTI BAPTISTA, 2013. volume

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[...] devem existir (!) completamente imbricadas com aquela [a jurisdicional], numa tal essencialidade que, se violada desexistencializaria totalmente a função jurisdicional. De aí, conclusões: 1. não é (!) função jurisdicional a que exista desvinculada minimamente da Defesa; 2. não há (!) Poder Judiciário, num sistema democrático, se em toda a sua plenitude existencial (como resolvedor do conflito), não for minimamente concebida a função de Defesa em sua também plenitude (repare-se os planos são os da existência e não os da validade, retirando-se assim, não a legitimidade da situação, mas a própria inferencialidade teleológica da existência dela).” (grifos no original)

Diante da linha argumentativa do referido autor, parece inequívoco que a ideia de essencialidade traz ínsita a ideia de “dependência”8. Por isso, cabe repetir, o Advogado, o Defensor Público, o membro do Ministério Público e o membro da Advocacia Estatal não são meros “auxiliares” da Justiça, como soe ocorrer noutros ordenamentos jurídicos. O exercício de cada uma dessas funções, incluída a função jurisdicional, somente pode ocorrer numa relação de absoluta interdependência9. 8 Em seu raciocínio, que nos parece extremamente lógico, o Prof. Jean Menezes de Aguiar (1997) chega ao ponto de argumentar que seria até possível admitir a existência de defesa sem julgamento, mas jamais de julgamento sem defesa. Eis o que afirma: “Se, então, ambos não diferem em nada para as suas existências (a rigor, chegar-se-ia ao ponto de se falar em possibilidade de Defesa sem julgamento, v.g. a defesa administrativa, a intervenção preventiva, etc. mas nunca a possibilidade de julgamento sem defesa, o que, se se dosimetrasse, acabaria priorizando a Defesa em relação à função julgadora, ou seja, poderia haver Defensoria Pública e Advocacia sem Poder Judiciário, não este sem aquelas; a relação de dependência então existe: está deste Poder com relação àquelas instituições, não ao contrário!), ter-se-á que se concluir pela necessidade de se atribuir o mesmo grau tipológico de tratamento constitucional que tem a função jurisdicional à função defensiva”. (AGUIAR, 1997, p. 176) 9 Num quadro crescente do fenômeno da judicialização da política e das relações sociais, em que as conquistas de efetividade dos direitos passa frequentemente pela via judicial, e em que a Constituição Federal restringe a capacidade postulatória para acionar o Judiciário aos profissionais legalmente habilitados, em particular o advogado, o papel da Defensoria Pública atinge relevância ímpar para possibilitar a todos condições de igualdade no exercício da cidadania. O próprio interesse da eficiência na prestação jurisdicional, a complexidade e tecnicismo de que se reveste, supõe tal interdependência entre os profissionais jurídicos. O Juiz, sem o Advogado/Defensor Público e sem o Ministério Público não poderá cumprir de modo satisfatório sua função peculiar. A função de julgar “depende” da função de pleitear/ defender.

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Isso é o que dispõe o texto constitucional brasileiro. E esse status de “essencialidade” estabelecido na Carta Magna impõe ao ordenamento jurídico um tratamento institucional compatível com tal condição, ou seja, sendo um desses órgãos “tão essencial” quanto o outro, já que a própria ideia de essencialidade não comporta a noção de gradação, de diferenciação quanto à importância e relevância, nada justifica que não recebam do Estado, principalmente do Poder Executivo e do Poder Legislativo, absoluta isonomia de tratamento em todos os aspectos. É preciso reconhecer, porém, que essa não é a realidade que tem sido vista no Brasil. Ressalvado o que normalmente tem ocorrido com o Ministério Público que, de fato, tem merecido tratamento de isonomia em relação à magistratura, as demais instituições estatais consideradas essenciais à Justiça vêm recebendo tratamento ostensivamente discriminatório, seja em termos de infraestrutura e condições de trabalho, seja em termos de política remuneratória. Por diversas razões, o Ministério Público deve ser tomado como paradigma para definição das garantias e prerrogativas conferidas aos membros das demais instituições públicas também consideradas pela Constituição como essenciais à justiça. Repita-se, na dicção constitucional, nenhuma delas é mais “essencial” que as outras. No que se refere à Defensoria Pública, essa isonomia de tratamento é indispensável inclusive por razões de ordem simbólica: não seria admissível dar tratamento – remuneratório, funcional, e orçamentário – distinto àqueles que atuam na garantia do “direito de defesa” do que se dá aos que desempenham o munus da acusação. Além do mais, ambas as instituições são encarregadas da postulação de interesses dos cidadãos e não do propriamente do Estado. O Ministério Público tem a missão de resguardar os interesses indisponíveis dos membros da sociedade (individual ou coletivamente), inclusive – e na maioria das vezes – opondo-se ao Estado. Já a Defensoria Pública tem a missão de resguardar os interesses disponíveis (ou, eventualmente, até mesmo os indisponíveis, se necessários for) desses membros da sociedade (também individual ou coletivamente), sempre que as pessoas, físicas ou jurídicas, não tenham condições para fazê-lo às suas expensas. Mesmo no que se refere à Advocacia Pública, a paridade institucional com o Ministério Público é evidente inclusive pelo fato de que, no plano federal, por exemplo, a Advocacia Geral da União representa um desmembramento de certas atribuições que eram próprias do Ministério Público antes da Constituição de 1988. Esse desmembramento volume

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foi feito não com o objetivo de desprestigiar a carreira desmembrada, mas com o propósito de assegurar maior qualidade e especialidade no desempenho de funções públicas de igual relevância, tanto que antes eram cumpridas pelos mesmos agentes políticos. Também no caso das Defensorias Públicas de alguns Estados da Federação tiveram como “matriz” o Ministério Público, circunstância que reforça o entendimento de que devem merecer tratamento isonômico no seu regime jurídico funcional e remuneratório. 3. a defensoria pública como órgão estatal autônomo desvinculado dos demais poderes do estado Na medida em que são consideradas funções reciprocamente essenciais, um questionamento que surge diz respeito ao posicionamento que tais instituições devem ocupar na estrutura organizacional do Estado. É certo que a Constituição de 1988 manteve a tradição baseada na doutrina de Montesquieu de repartição das funções estatais em três Poderes distintos e harmônicos entre si. E tais Poderes, como se sabe, são o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Entretanto, sem indicar com clareza a respectiva classificação, tratou, num Capítulo distinto dentro do Título referente à Organização dos Poderes, dessas outras funções que considerou essenciais, indispensáveis, ou inexoravelmente vinculadas ao exercício da função jurisdicional do Estado. Ou seja, embora sejam três os Poderes, o Título próprio da Constituição que trata da Organização dos Poderes tem quatro capítulos, um para cada um dos Poderes e mais um quarto para as “Funções Essenciais à Justiça”, colocadas todas dentro do mesmo patamar de importância como órgãos do Estado. Na tradição histórica brasileira, os órgãos estatais que vinham desempenhando essas funções hoje reconhecidas como “essenciais” à Justiça sempre se situaram no âmbito do Poder Executivo. E assim de fato pareceu ser o mais adequado, já que não desempenham, em absoluto, função que possa ser reconhecida como de natureza judicante ou legiferante, típicas dos outros dois Poderes do Estado. Seu papel se situa mais próximo do âmbito da atuação correspondente à aplicação e execução das leis e à busca de sua efetividade, atividades que são típicas do Poder Executivo. Além disso, esses órgãos estatais considerados funções essenciais à Justiça têm em comum o fato de que sua chefia institucional é escolhida privativamente 198

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pelo Chefe do Poder Executivo10. A prerrogativa, porém, de serem revestidas de independência funcional e autonomia administrativa e orçamentário-financeira, em face dos demais Poderes Estatais coloca tais instituições numa posição sui generis. Há quem proponha, inclusive, um enquadramento na categoria que a doutrina denomina de “Instituições Quase-Poder”11, na esteira dos ensinamentos de Gerard Lebrun e Bertrand Du Jouvenel citados por Castro (1992, p. 22-23)12. 10 O promotor de justiça Celso Quintella Aleixo sustenta uma interessante argumentação apontando os inconvenientes da forma atual de nomeação do chefe institucional do Ministério Público, que fica politicamente jungido a interesses políticos do chefe do Poder Executivo. Para acessar o artigo que discute esta problemática, ver: ALEIXO, 2004. 11 JOHNSON JR. (1981, p. 184-215), em um artigo muito interessante que escreveu para o livro “Access to Justice and the Welfare State” (1981), editado por Mauro Cappelletti, apresentou, à moda de ficção científica, o que ele imaginou como sendo quatro cenários possíveis para o sistema judiciário norte-americano. O artigo foi escrito no início da década dos anos setenta e trazia “prognósticos” para o então longínquo século XXI. Num dos cenários que imaginou em seu trabalho, Johnson Jr. descreveu exatamente uma possível criação de um “quarto” poder exatamente para cuidar da assistência jurídica. Eis o que disse, então, o Dr. Johnson, repita-se, num ensaio de “futurologia”, sem nenhum compromisso com a realidade: “Only recently has the national legal service solved the major problem that has plagued it since its birth more than a decade ago – independence from real or imagined political domination. Less than a year ago, the United States Constitution was amended to create a fourth branch of government, the so-called advocacy branch. This branch is headed by a Chief Advocate who stands on a par with the President, the Chief Justice, and the Speaker of the House. Although the advocacy branch has other responsibilities and divisions, including providing citizen representation before legislatures, over 80 percent of its funds and more than two-thirds of its personnel are involved in the national legal service. The constitutional amendment that created the advocacy branch also provides a secure base of government funding not subject to legislative or executive interference.” Noutra passagem, do mesmo texto, o autor descrevia outra conquista que, no seu exercício de futurólogo, poderia vir a ocorrer: “Moreover, the national legal service will pay for legal advice and other nonlitigation-related legal assistance for lower and middle class individuals.” Após haver estudado o sistema de assistência jurídica norte-americano atualmente em operação naquele país, verificamos que os prognósticos feitos pelo Dr. Johnson em 1981 realmente continuam tendo ares de longínqua “ficção científica”. Todavia, se comparado esse prognóstico com o modelo brasileiro, podemos perceber que, ao menos em termos normativos, o sistema preconizado na recente Emenda Constitucional nº 45/2004 não está longe do que fora imaginado pelo Dr. Johnson. Falta “apenas” a parte mais difícil que é a destinação de recursos adequados para que o sistema possa funcionar tal como concebido em sede constitucional. No Rio de Janeiro está em deliberação na Assembleia Legislativa um projeto de lei que cria um fundo de custeio para a Defensoria Pública cuja inspiração e justificativa estão muito próximas do que fora imaginado pelo Dr. Johnson no texto acima. Esses são os paradoxos da realidade nacional. Estamos na vanguarda das ideias e mesmo da positivação no ordenamento jurídico de certos direitos ímpares em comparação com outros países do mundo, mas temos imensa dificuldade de dar efetividade prática a tais direitos. 12 A respeito desse ponto, vale transcrever a precisa lição do Professor Carlos Roberto de Siqueira Castro, que cita Lebrun e Du Jouvenel (1992, p. 22-23): “[...] as instituições que representam volume

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Parece inequívoco que a sistematização adotada pela Constituição Federal brasileira de 1988, no que se refere ao Título da Organização dos Poderes quis indicar a conveniência de que tais órgãos, especificamente o Ministério Público e a Defensoria Pública, não sejam mais considerados como formalmente integrantes do Poder Executivo13. Essas entidades devem ser revestidas de efetiva autonomia, em razão de sua condição peculiar de órgãos detentores de uma parcela da soberania do Estado, no desempenho de seu munus constitucional. Esse entendimento inclusive fica mais evidente em razão do contraste que pode ser feito com o tratamento dado pela Constituição, por exemplo, aos Tribunais de Contas, que – embora também gozem de certa autonomia – foram expressamente regulados dentro do capítulo do Poder Legislativo, numa indicação expressa de sua vinculação e caráter de “acessoriedade” à missão própria dos órgãos parlamentares. Não foi esse o caso da Defensoria Pública e do Ministério Público que receberam tratamento diferenciado, sendo que ambas as instituições foram ou tutelam, por força de mandato constitucional, interesses e direitos fundamentais da ordem jurídica, sejam eles titulados pelo Estado ou pela sociedade, disponíveis ou não, mas desde que intocável a própria essência da outorga de confiança manifestada pelo Poder Constituinte, tendem a constituir-se naquilo que Gerard Lebrun e Bertrand Du Jouvenel, em festejadas obras acerca da institucionalização do poder político, designam de “INSTITUIÇÕES QUASE PODER”. É o caso notório das instituições exercentes das funções essenciais à Justiça, de que trata o Título IV, Capítulo IV, da nova Constituição brasileira, destacadamente o Ministério Público, a Advocacia d’Estado e a Defensoria Pública. É que embora essas instituições não tenham se aperfeiçoado como um autêntico “Poder Orgânico da soberania”, perseverando enquanto instituições “intra-Poder”, passaram a assumir, por exigência da evolução do constitucionalismo democrático, traços que são peculiares aos Departamentos Funcionais da Soberania, ou seja, aos Três Poderes do Estado. Por isso mesmo, essas instituições passaram a exibir, dentre outras, características vitais, à independência orgânica, tais como: a) estruturação básica em matriz constitucional; definição de princípios institucionais expressivos da autonomia técnica e da independência orgânico-funcional em face dos Poderes constituídos, em tudo semelhantes àqueles aplicáveis à magistratura; c) regime estatutário próprio para os membros da carreira e diferenciado da generalidade do funcionalismo; d) exercício de funções institucionais e indelegáveis do Estado; e) conjunto de garantias, prerrogativas e impedimentos singularizados; f) exclusividade de suas competências em face de outros agentes do Poder Público; g) iniciativa das leis que toquem ao seu funcionamento; h) legitimação participativa no sistema de controle de constitucionalidade dos atos normativos que afetem sua esfera de atribuições; i) participação cativa na composição dos órgãos superiores do Poder Judiciário.” 13 No que se refere à Advocacia Pública, embora esteja prevista também neste Capítulo “avulso” das chamadas “Funções Essenciais à Justiça”, parece-nos que sua vinculação ao Poder Executivo não pode ser desconsiderada em razão do que dispõe o próprio texto constitucional, ao estabelecer que compete a tal instituição prestar consultoria e assessoramento jurídico ao Poder Executivo.

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disciplinadas em seções próprias de um mesmo capítulo fora dos três Poderes clássicos. Não parece razoável admitir que isso tenha ocorrido por mero acaso. Por esse motivo, entendemos que não mais podem ser consideradas tais instituições como órgãos do Poder Executivo. Há que se ter presente que o novo status constitucional conferido à Defensoria Pública, como órgão de Estado, aos defensores públicos como agentes políticos do Estado14, implica no estabelecimento de uma nova sistemática na prestação do serviço, cabendo a esse órgão a prerrogativa da autonomia funcional, administrativa e financeira asseguradas pela Carta Magna para estruturação de seu funcionamento e para definição de sua política institucional. No caso da Defensoria Pública, essa autonomia administrativa, funcional e orçamentária, que era uma inexorável decorrência lógica do status institucional conferido pela Carta Constitucional de 1988, foi confirmada através da Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, que acrescentou ao Art. 134, o § 2º, cujo teor passou a assegurar expressamente tal autonomia, embora tenha mencionado apenas as Defensorias Estaduais. Porém, no entendimento de um dos autores deste trabalho, por uma interpretação sistemática e teleológica, sustentava-se que não era compatível com a lógica de organização dos Poderes adotada pela Constituição de 1988 o entendimento de que à Defensoria Pública da União, fosse denegada a autonomia administrativa e financeira explicitamente assegurada às Defensorias Públicas Estaduais. Consolidando esse ponto de vista, o Congresso Nacional promulgou, em 06 de agosto de 2013, a Emenda Constitucional nº 74, pela qual foi introduzido um novo parágrafo no Art. 134 14 Essa é a lição de Hely Lopes Meirelles (1993), segundo o qual os agentes políticos do Estado “atuam com plena liberdade funcional, desempenhando suas atribuições com prerrogativas e responsabilidades próprias estabelecidas na Constituição e em leis especiais (...) equiparável à independência dos juízes nos seus julgamentos”. (MEIRELLES, 1993, p. 72-73). Tal entendimento, porém, não é pacífico entre os estudiosos do Direito Administrativo. No entendimento de José dos Santos Carvalho Filho (2007), a classificação mais adequada para enquadramento de todas as carreiras jurídicas de Estado (incluindo-se a Magistratura, o Ministério Publico e a Defensoria Pública), seria a de “servidores públicos especiais”, que seriam “aqueles que executam certas funções de especial relevância no contexto geral das funções do Estado, sendo, por isso mesmo, sujeitos a regime jurídico funcional diferenciado, sempre estatutário, e instituído por diploma normativo específico, organizador de seu estatuto. Pela inegável importância de que se reveste sua atuação, a Constituição contempla regras específicas que compõem seu regime jurídico supralegal.” (CARVALHO FILHO, 2007, p. 517) volume

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em que se determinou expressamente a aplicação do § 2º acima mencionado tanto à Defensoria Pública da União quanto à do Distrito Federal15. As prerrogativas inerentes à autonomia administrativa e orçamentária devem ser limitadas unicamente pelos ditames da lei e da Constituição, sem nenhuma dependência às oscilações e programas político-partidários dos governantes que estejam eventualmente no exercício do governo. Isto significa que não pode ser admitida, no âmbito dos Estados, a vinculação do órgão próprio encarregado de prestar a assistência jurídica integral a qualquer outro órgão administrativo. Tal entendimento restou consagrado na decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 3569-0/PE16, julgada em 02 de abril de 2007, tendo como Relator o Ministro Sepúlveda Pertence, em que foi declarada a inconstitucionalidade da vinculação da Defensoria Pública à Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos, por violação do dispositivo constante do § 2º do Art. 134 da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro 2004. A Defensoria Pública é, pois, instituição17 autônoma e o seu chefe institucional tem status jurídico diferenciado, equiparável ao dos 15 Já desde o ano de 2012 havia sido promulgada a Emenda Constitucional nº 69 que, implicitamente, havia conferido à Defensoria Pública do Distrito Federal equiparação de tratamento constitucional com as Defensorias Públicas Estaduais, o que abrangeria, por óbvio, a autonomia administrativa e financeira. Mas com a Emenda Constitucional nº 74, de 2013, isto ficou explícito. 16 STF, ADI 3569/PE, Relator: Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, julgada em 02/04/2007, publicada no DJe-013, de 11/05/2007. EMENTA: I. Ação direta de inconstitucionalidade: art. 2º, inciso IV, alínea c, da L. est. 12.755, de 22 de março de 2005, do Estado de Pernambuco, que estabelece a vinculação da Defensoria Pública estadual à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos: violação do art. 134, § 2º, da Constituição Federal, com a redação da EC 45/04: inconstitucionalidade declarada. 1. A EC 45/04 outorgou expressamente autonomia funcional e administrativa às defensorias públicas estaduais, além da iniciativa para a propositura de seus orçamentos (art. 134, § 2º): donde, ser inconstitucional a norma local que estabelece a vinculação da Defensoria Pública a Secretaria de Estado. 2. A norma de autonomia inscrita no art. 134, § 2º, da Constituição Federal pela EC 45/04 é de eficácia plena e aplicabilidade imediata, dado ser a Defensoria Pública um instrumento de efetivação dos direitos humanos. II. Defensoria Pública: vinculação à Secretaria de Justiça, por força da LC (PE) 20/98: revogação, dada a incompatibilidade com o novo texto constitucional 1. É da jurisprudência do Supremo Tribunal - malgrado o dissenso do Relator - que a antinomia entre norma ordinária anterior e a Constituição superveniente se resolve em mera revogação da primeira, a cuja declaração não se presta a ação direta. 2. O mesmo raciocínio é aplicado quando, por força de emenda à Constituição, a lei ordinária ou complementar anterior se torna incompatível com o texto constitucional modificado: precedentes. 17 Para um aprofundamento a respeito da discussão sobre a natureza jurídica da Defensoria Pública, como “instituição” e não como simples órgão público, ver: ALVES; PEREIRA FILHO, 2014.

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chefes dos três Poderes tradicionais, não se justificando mais sequer eventual equiparação com o status de Secretário de Estado, uma vez que não tem a natureza jurídica de órgão “auxiliar” do Poder Executivo que é própria das Secretarias de Estado. Esta questão específica também já foi enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 2903-7/PB. Na longa ementa do elucidativo voto do Ministro Celso de Mello, endossado, por unanimidade, pelos demais julgadores, ficou consignado expressamente que “o Defensor Público-Geral local – por constituir cargo privativo de membro da carreira – não é, efetivamente, não obstante a equivalência funcional, Secretário de Estado (grifos no original)”. Também, parece-nos, que na esfera da União Federal, para respeito à vontade evidente da norma constitucional, há que se tomar as medidas adequadas à total desvinculação da Defensoria Pública da União da estrutura do Ministério da Justiça, o que se impõe em razão do que consta do novo parágrafo 3º, do Art. 134, da Constituição, introduzido pela Emenda Constitucional nº 74, de 06 de agosto de 2013. Mesmo em face da Presidência da República há que ser mantido um vínculo de total independência, salvo apenas no que se refere à nomeação do Chefe Institucional da Defensoria Pública da União, que – tal como previsto em sede de Lei Complementar – por analogia com o tratamento estabelecido pela Constituição para o Chefe Institucional do Ministério Público, deve continuar sendo escolhido pelo Presidente da República, dentre os membros estáveis da Carreira, e maiores de 35 (trinta e cinco anos), escolhidos em lista tríplice formada pelo voto direto, secreto, plurinominal e obrigatório de seus membros. Ao fazê-lo, o Presidente da República está desempenhando uma função que é própria de sua condição de Chefe de Estado (e não de mero Chefe de Governo), dependendo inclusive de prévia aprovação do Senado Federal. Isto é o que determinar o Art. 6º, da Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994. Esse novo enquadramento da vinculação institucional da Defensoria Pública representa, como lembra Breno Cruz Mascarenhas Filho (1992), sensível avanço, se considerarmos os regimes pretéritos, nos quais era permitido aos Estados aglutinar num único departamento estatal, como geralmente o faziam, sob a direção da Procuradoria-Geral do Estado, do Ministério Público, da Secretaria de volume

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Justiça ou até, em alguns casos, de Secretarias de Assistência Social, as atividades próprias da Defensoria Pública18. Em suma, pelo regime estabelecido na Constituição de 1988 e Emendas Constitucionais nº 45, de 08 de dezembro de 2004, e nº 74, de 06 de agosto de 2013, ratificado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não é mais possível vincular o serviço estatal de assistência jurídica gratuita a qualquer outra agência que não seja a Defensoria Pública, nem tampouco é possível vincular esta a outro órgão administrativo19. A Defensoria Pública integra a categoria dos órgãos que podem ser classificados como “órgãos independentes do Estado” os quais, segundo a lição de Hely Lopes Meirelles (1993, p. 66) são aqueles: 18 Nesses casos em que o órgão estatal de assistência jurídica gratuita era colocado dentro da estrutura de outros departamentos administrativos, era frequente, como lembra Mascarenhas (1992), que estivessem sob a mesma linha de comando “atribuições tão especializadas e antagônicas quanto a defesa dos interesses patrimoniais do Estado em face do cidadão e a defesa dos interesses patrimoniais do cidadão em face do Estado (não raro no mesmo processo), a acusação e a defesa criminal e a prática de atos administrativos visando a execução de leis (atribuição típica de Secretários de Estado) e a representação de necessitados que impugnavam a constitucionalidade de leis ou atos normativos do Executivo” (MASCARENHAS, 1992, p. 77). Disso resultava, naturalmente, “não ser difícil para a chefia comum dos agentes estatais envolvidos em tais atividades intervir no sentido de favorecer um ou outro interesse em conflito, com prejuízo da administração pública ou da prestação jurisdicional”. 19 Nesse sentido, discordamos do entendimento de José Afonso da Silva (2005), que, com a devida vênia, a este que é reconhecidamente um dos maiores constitucionalistas do país, nos parece até mesmo contraditório. Eis o que diz o Mestre (SILVA, 2005, p. 615): “Se [a Defensoria Pública] é uma instituição [...] a toda evidência não pode ser órgão subordinado, ou parte de uma outra instituição, que não ao próprio Estado, com autonomia ou subordinada a uma Secretaria [da Justiça ou Promoção Social] segundo dispuser a lei estadual”. (grifo nosso). Ora, como o próprio autor afirma, a Defensoria, por ser autônoma, assim como o Ministério Público, a Defensoria Pública não está mais subordinada nem mesmo ao Governador. Então como admitir que ela seja subordinada a uma Secretaria, que é órgão administrativo do Poder Executivo, diretamente subordinado ao Governador? Não parece contraditório? O Defensor-Geral tem um status superior ao de Secretário de Estado. Nenhum Secretário de Estado pode enviar seu orçamento diretamente para a Assembleia Legislativa, sem passar pelo crivo do Chefe do Executivo. Nenhum Secretário de Estado recebe duodécimos para executar de modo autônomo o próprio orçamento da Secretaria. Isso só ocorre com o ProcuradorGeral de Justiça e, em razão do que foi estabelecido na Emenda Constitucional 45/2004, com o Defensor Público-Geral. Tal prerrogativa será “letra morta” se admitida a hipótese cogitada pelo Prof. José Afonso da Silva de que a lei estadual estabeleça a Defensoria Pública como instituição vinculada a uma mera Secretaria de Estado. Nesse caso, seu orçamento, e a respectiva execução financeira, seriam subordinadas ao respectivo Secretário que, pela Constituição Federal, não tem autonomia perante o Governador.

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[...] originários da Constituição e representativos dos Poderes do Estado – Legislativo, Executivo e Judiciário – colocados no ápice da pirâmide governamental, sem qualquer subordinação hierárquica ou funcional, e só sujeitos aos controles constitucionais de um Poder pelo outro. Por isso, são também chamados órgãos primários do Estado. Esses órgãos detém e exercem precipuamente as funções políticas, judiciais, e quase judiciais outorgadas diretamente pela Constituição, para serem desempenhadas pessoalmente por seus membros (agentes políticos, distintos de seus servidores que são agentes administrativos), segundo normas especiais e regimentais.

A análise da evolução da Defensoria Pública brasileira nos últimos anos, verificada através da comparação dos dados constantes dos Diagnósticos publicados pelo Ministério da Justiça indica que a Emenda Constitucional no 45, de 08 de dezembro de 2004, e as decisões emanadas do Supremo Tribunal Federal têm produzido significativo impacto, com a adoção de medidas concretas para efetivar a autonomia administrativa e financeira das Defensorias Públicas20. E a recente aprovação da Emenda Constitucional nº 80, de 04 de junho de 2014, certamente contribuirá ainda mais para tal consolidação, na medida em que estabelece expressamente que devem ser aplicados à Defensoria, no que couber, as normas constantes do Art. 93 e, especialmente, as do Inciso II, do Art. 96 da Constituição. Essa inovação confirma o que já vinha sendo reconhecido pela doutrina, adotando-se um critério de interpretação analógica relativamente ao que já estava consolidado quanto ao Ministério Público, pois, como ensina José Afonso da

20 No levantamento feito pelo I Diagnóstico – Defensoria Pública no Brasil, publicado pelo Ministério da Justiça, referente a dados de 2003, havia ainda cinco Estados em que a Defensoria Pública estava subordinada a alguma Secretaria de Estado: Pernambuco, Tocantins, Rondônia, Distrito Federal e Pará, sendo certo que naquela época ainda não estavam instaladas as Defensorias dos Estados de São Paulo, Goiás, Santa Catarina e Paraná. Em 2005, pouco depois da promulgação da EC 45/2004, pelas informações constantes do II Diagnóstico publicado pelo Ministério da Justiça, apenas três Defensorias estavam vinculadas a alguma Secretaria Estadual: Distrito Federal, Minas Gerais e Pernambuco. Já no III Diagnóstico, publicado em 2009, constatou-se que apenas o Distrito Federal e o Paraná mantinham suas Defensorias Públicas atreladas a alguma Secretaria de Estado. A íntegra dos três Diagnósticos sobre a Defensoria Pública no Brasil, publicados pelo Ministério da Justiça, nos anos de 2004, 2006, 2009 está disponível para consulta em http://www.anadep.org.br/ wtk/pagina/diagnosticos volume

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Silva, “já que o conceito (de autonomia administrativa) é idêntico, seu conteúdo também há de sê-lo”21. 4. da ausência de respaldo constitucional par a que os municípios possam criar serviços de assistência jurídica A Defensoria Pública deve seguir o mesmo padrão constitucional de organização do Poder Judiciário22 brasileiro, com estrutura própria e diferenciada para atuar no âmbito da esfera de competências judiciais da União Federal23 e também na esfera das competências judiciais dos Estados. Portanto, do mesmo modo como não há previsão de um Poder Judiciário municipal ou de um Ministério Público municipal, entendemos que, igualmente, também não seria admissível uma Defensoria Pública municipal. Esse entendimento tem respaldo inclusive na evolução histórica, no plano constitucional, dos serviços públicos de assistência judiciária no Brasil. Assim, o Art. 113, da Constituição de 1934, estabelecia textualmente que a assistência judiciária aos necessitados seria prestada pela “União e pelos Estados”. Embora as Constituições posteriores não tenham sido assim tão explícitas, utilizando-se os termos “poder público” (na 21 Em textual, este é o entendimento de José Afonso da Silva (2005, p. 615-616): “A Emenda 45/2004 não foi tão explícita ao conceder essa autonomia às Defensorias Públicas Estaduais, como o fora o Art. 127 em relação ao Ministério Público, porque ali se indicou seu conteúdo básico. A identidade de situações nos permite dizer que os conceitos expendidos em relação ao Ministério Público valem também aqui [...] A autonomia administrativa significa que cabe à Instituição organizar sua administração, suas unidades administrativas, praticar seus atos de gestão, decidir sobre situação funcional de seu pessoal, propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus serviços auxiliares, prover cargos nos termos da lei, estabelecer a política remuneratória, observado o Art. 169, e os planos de carreira de seu pessoal, tal como está previsto para o Ministério Público. Já que o conceito é idêntico, seu conteúdo também há de sê-lo.” 22 Isto não significa que deva necessariamente ser um mero “espelho” da estrutura do Judiciário. A Defensoria Pública tem que ter um perfil próprio, capaz de atender sua finalidade específica, embora não possa ser privada das garantias institucionais simétricas às que são concedidas às demais carreiras jurídicas. 23 Diferentemente do que ocorre com o Ministério Público, a Defensoria da União é unitária, não comportando segmentos específicos para atuar perante as Justiças Especializadas (Justiça Federal, do Trabalho, Eleitoral, Militar, Tribunais Superiores, além do Tribunal Marítimo que é órgão auxiliar do Poder Judiciário, vinculado ao Ministério da Marinha). Isso se depreende do Art. 14, caput, da Lei Complementar nº 80/94, em confronto com o dispositivo do Art. 128, I, da Constituição Federal.

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Constituição de 1946) e “Estado” (em 1988) numa acepção genérica24, estamos convencidos de que a melhor interpretação é no sentido de que a vontade da Constituição indica que, neste caso, o termo “Estado” abrange tão somente a União Federal, os Estados membros e o Distrito Federal25. Isso se conclui também por uma interpretação sistemática e teleológica do texto constitucional. Dentre as competências constitucionais dos Municípios estabelecidas no Art. 30, nenhuma delas abrange a prestação de assistência jurídica ou judiciária aos necessitados. Por sua vez, o Art. 25, §1º, da mesma Constituição estabelece que os Estados têm “reservadas” para si todas as competências que não lhes sejam vedadas, ou seja, têm competência residual. Além do mais, os diversos dispositivos constitucionais somente preveem a existência de Defensorias Públicas Estaduais, do Distrito Federal, dos Territórios e da União26. Não há, em nenhum dispositivo, qualquer referência a Defensorias Públicas Municipais. Temos a convicção de que esse silêncio é eloquente e não por acaso ou por esquecimento. Até mesmo no que se refere à competência legislativa, foi expressamente previsto no Art. 24, XIII, que somente a União e os Estados têm atribuição para legislar concorrentemente sobre assistência jurídica e defensoria pública. E, se fosse o caso, para criar uma “Defensoria Pública” ou mesmo um serviço municipal de assistência jurídica gratuita seria necessário que o Município tivesse competência legislativa para tanto, pois somente o poderia fazer através de lei. E a Constituição não confere tal competência legislativa aos Municípios. 24 O art. 134 diz que a Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional “do Estado”, com a incumbência de prestar a assistência jurídica integral e gratuita nos termos do Art. 5º, LXXIV. Ora, só o Estado membro e a União possuem função jurisdicional. O Município não. Além dos mais os parágrafos desse mesmo dispositivo são eloquentes ao indicar que a organização das Defensorias ocorrerá no âmbito da União, do Distrito Federal e dos Estados. 25 O Professor José Carlos Barbosa Moreira (1993) sustenta uma interpretação mais abrangente no sentido de que o dispositivo constitucional deve ser interpretado no sentido de conferir também ao Município a competência para a prestação da assistência jurídica. Pelos argumentos aqui expostos, ousamos discordar do eminente mestre. 26 De se destacar que até a promulgação da Emenda Constitucional nº 69/2012, cabia à União Federal organizar e manter a Defensoria Pública do Distrito Federal, com a competência legislativa inerente a tal encargo. Porém, esse regime jurídico foi alterado, devendo ser consideradas não recepcionadas as normas constantes da Lei Complementar nº 80/1994 que dispõem sobre a regulamentação da Defensoria do DF. Sobre o tema, ver: ( REIS; ZVEIBIL; JUNQUEIRA, 2013). volume

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Impõe-se, neste passo, uma reflexão que indique respostas para justificar essa interpretação no sentido de que é vedado aos Municípios instituírem serviços de assistência jurídica ou judiciária. Não bastassem os argumentos de cunho institucional, no sentido de que o modelo de estruturação da Defensoria Pública deve observar como paradigma – no que for aplicável – o do Ministério Público e o do Judiciário, há também que se levar em conta outros aspectos que dizem respeito às condições indispensáveis para favorecer a autonomia e independência necessárias para que seus agentes possam desempenhar seu mister. Uma Defensoria Pública Municipal, ou mesmo qualquer outro órgão prestador de assistência jurídica e judiciária em nível municipal, dificilmente poderia conceder a seus membros as condições institucionais indispensáveis para o bom exercício de suas funções, notadamente no que se refere à independência e autonomia. Ficariam os “advogados” integrantes desse tipo de serviço muito mais vulneráveis às pressões e interesses locais; isto fatalmente comprometeria o desempenho de suas atribuições, circunstância que ocorreria igualmente se houvesse a figura do juiz municipal ou do promotor de Justiça municipal. Exatamente para evitar esses dissabores, a tradição jurídica brasileira sempre optou pela colocação da assistência judiciária e, agora, da Defensoria Pública, no âmbito da competência estadual27. Diante desses argumentos, parece-nos que não é possível aos Municípios a criação de nenhuma espécie de serviço público para prestação de assistência judiciária, sob pena de incidir em inconstitucionalidade. O que se admite, apenas, também com base na tradição jurídica brasileira, nos termos do Art. 1º, da Lei nº 1060/50, é que as Prefeituras prestem “colaboração” aos poderes públicos

27 No trabalho elaborado por Michael Zander (1981), o autor enumera o que ele chama de “the desiderata for a Legal Aid Scheme”, ou seja, algumas características importantes para a configuração de um sistema ideal de assistência jurídica. Citando precedentes ocorridos na Inglaterra, o autor informa que: “In England many law centres have drawn the whole or a part of their moneys from local government sources. The disadvantage is that they have, in some instances, found themselves subjected directly or indirectly to political pressures to desist from particular forms of action. The Law Centres Federation has concluded that, on balance, theyu would be better insulated from the impact of such pressures by central funding. Even then, the risk of the funds being reduced at the behest of enemies of legal services remains. But sophistication about the value of and need for legal services is likely to be greater at the central than the local level. It may also be easier to mobilize counter-pressures against a threatened reduction in funding for legal aid at a central than a local level – through the press, the professional bodies, members of Parliament, etc.” (ZANDER, 1981, p. 40-41).

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federal e estadual no desempenho de sua atribuição constitucional de prover os serviços de assistência jurídica e judiciária. Essa “colaboração” deve se traduzir em parcerias para melhorar a infraestrutura física dos locais de funcionamento da Defensoria Pública, na cessão de recursos humanos, especialmente estagiários de direito, para apoiar o trabalho dos Defensores Públicos, além de auxílio para o melhor aparelhamento tecnológico inclusive com a cessão de equipamentos, de mobiliário, etc. Entretanto, jamais se admitiria a figura de um “Defensor Público municipal”. Temos a convicção de que a prestação desses serviços diretamente pelos Municípios acarretaria despesas que se configurariam como manifestamente inconstitucionais e ilegais, devendo por isso ser coibidas pelos Poderes Legislativos e Tribunais de Contas no exercício de sua função fiscalizadora dos gastos municipais. Os Municípios não podem se desviar das competências que lhe são assinaladas pela Constituição e pelas Leis. No direito público, como se sabe, o administrador, mesmo que bem intencionado, não é livre para fazer o que acha oportuno. É preciso contar com respaldo legal e constitucional. E, no caso dos Municípios, não há nenhum amparo em sede constitucional para justificar a criação de órgãos próprios para esse tipo de serviço. Essa atribuição é privativa dos Estados e da União. Inclusive, acerca deste tema, o Supremo Tribunal Federal julgará a recentemente proposta Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 279, em que a Procuradoria Geral da República (PGR) questiona justamente leis municipais de Diadema (SP) que tratam da prestação do serviço de assistência jurídica e da Defensoria Pública. A ministra relatora da ADPF, Ministra Carmem Lúcia, adotou, para a análise do caso, o rito abreviado, previsto no artigo 12 da Lei das ADIs (Lei 9.868/99), que permite que a decisão seja tomada em caráter definitivo pelo Plenário do STF. A tese central da ação é a de que a atuação dos municípios na edição de leis sobre assistência jurídica e Defensoria Pública viola o princípio do pacto federativo. Isso porque, trata-se de matéria de competência legislativa concorrente (artigo 24, inciso XIII, da Constituição Federal), cabendo à União estabelecer as normas gerais e aos estados e ao Distrito Federal disporem de forma suplementar (artigo 24, parágrafos 1º e 2º, da CF). “Tal princípio deve ser considerado como preceito fundamental”, argumenta a PGR na petição inicial da ação (Disponível em: www.stf.jus.br). volume

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5. o desenho do regime constitucional da defensoria pública: uma análise das adis 4270, 4163 e 3643 e a inconstitucionalidade dos convênios par a assistência judiciária Como cediço, especialmente após a promulgação da Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, tem prevalecido o entendimento de que a Defensoria Pública goza de total autonomia e independência, não integrando formalmente quaisquer dos três Poderes estruturais da República, alocada em patamar equivalente ao do Ministério Público. Dessa maneira, a importância dos valores constitucionalmente protegidos pela Defensoria Pública, a pujança do exercício de seu mister e a atual redação do art. 134 da Constituição Federal não a tornam somente um órgão “condecorado”, mas verdadeira instituição, dotada de personalidade jurídica e independência plena. (ALVES; PEREIRA FILHO: 2014). À Defensoria Pública são atribuídas funções essenciais à justiça, e à prestação jurisdicional do Estado, diretamente pela Constituição que a conceitua expressamente como sendo instituição e a confere autonomia funcional, administrativa e financeira. A desconsideração a esta realidade, no entanto, não é capaz de alterar sua essência. É certo que algumas normas, eventualmente, tentam deslocar a importância do papel da Defensoria Pública e concorrer com as suas funções institucionais, o que constitui violação expressa ao texto constitucional. Não têm sido raras as circunstâncias em que se tenta vincular a Defensoria Pública a uma pessoa jurídica diversa, relegando-a o papel de mero órgão administrativo. Porém, o STF tem empreendido um papel importante na consolidação do reconhecimento da Defensoria Pública, proferindo decisões, em sede de Ações Diretas e/ou Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade, que acabam por reforçar e corroborar a importância institucional da Defensoria, fato que nos parece ter contribuído sobremaneira até mesmo para a constitucionalização deste reconhecimento, via Emenda Constitucional nº 80, de 04 de junho de 2014. 210

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Exemplo disso, é a ADI 4270/SC28, de Relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, proposta pela ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS – ANADEP e pela ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS DA UNIÃO – ANDPU, julgada pelo Pleno do STF em 14/03/2012, na qual se discutiu a inconstitucionalidade do Art. 104 da Constituição do Estado de Santa Catarina, bem como da Lei Complementar Estadual 155/1997, que permitiam a realização de Convênios com a Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SC) para a prestação de serviço de “defensoria pública dativa”, em substituição à defensoria pública, em função da inexistência, no Estado de Santa Catarina, de órgão estatal destinado à orientação jurídica e à defesa dos necessitados. A ADI foi julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do art. 104 da constituição do Estado de Santa Catarina e da lei complementar estadual 155/1997 e, nos termos do artigo 27 da Lei 9.868, modular temporalmente pro futuro os efeitos da decisão. Isto é, o STF restringiu temporalmente a continuidade dos serviços à época prestados pelo Estado de Santa Catarina mediante convênio com a OAB/SC pelo prazo máximo de 1 (um) ano da data do julgamento da ADI, ao fim do qual deveria estar – como de fato está - em funcionamento órgão estadual de defensoria pública estruturado de acordo com a Constituição de 1988 e em estrita observância à legislação complementar nacional (LC 80/1994). Outro exemplo que ilustra a mesma problemática, embora a partir de fatos distintos, advém da análise da ADI 4163/SP29, de Relatoria do Ministro Cezar 28 STF, ADI 4270/SC, Relator: Ministro JOAQUIM BARBOSA, julgada em 14/03/2012, publicada no DJe-188, de 25/09/2012. EMENTA: Art. 104 da constituição do Estado de Santa Catarina. Lei complementar estadual 155/1997. Convênio com a seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SC) para prestação de serviço de “defensoria pública dativa”. Inexistência, no Estado de Santa Catarina, de órgão estatal destinado à orientação jurídica e à defesa dos necessitados. Situação institucional que configura severo ataque à dignidade do ser humano. Violação do inc. LXXIV do art. 5º e do art. 134, caput, da redação originária da Constituição de 1988. Ações diretas julgadas procedentes para declarar a inconstitucionalidade do art. 104 da constituição do Estado de Santa Catarina e da lei complementar estadual 155/1997 e admitir a continuidade dos serviços atualmente prestados pelo Estado de Santa Catarina mediante convênio com a OAB/SC pelo prazo máximo de 1 (um) ano da data do julgamento da presente ação, ao fim do qual deverá estar em funcionamento órgão estadual de defensoria pública estruturado de acordo com a Constituição de 1988 e em estrita observância à legislação complementar nacional (LC 80/1994). 29 STF, ADI nº 4163, Relator Ministro CEZAR PELUSO, julgado em 29/02/2012, publicado no DJ-e nº 50, de 09/03/2012. DECISÃO: “O Tribunal, por maioria e nos termos do volume

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Peluso, proposta pelo PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA, na qual se discutiu a inconstitucionalidade do Art. 109 da Constituição do Estado de São Paulo, bem como do art. 234 da Lei Complementar estadual nº 988/2006, que impunham à Defensoria Pública Estadual a obrigatoriedade de assinatura de convênio exclusivo com a Ordem dos Advogados do Brasil para a prestação de serviço jurídico integral e gratuito aos necessitados. A ADI foi convertida em arguição de descumprimento de preceito fundamental – ADPF pelos ministros, entendendo, o plenário do STF, pela inconstitucionalidade do art. 234 da Lei Complementar nº 988 de 2006 do Estado de São Paulo, mas pela constitucionalidade do art. 109 da Constituição deste Estado, desde que interpretado conforme a Carta Magna, afastando-se a exclusividade e a obrigatoriedade do acordo com a OAB, mas permitindo que a Defensoria Pública firmasse convênios com quaisquer entidades, de acordo com sua autonomia e capacidade de autogestão, vencido o Ministro Marco Aurélio, que julgava totalmente procedente o pedido como Ação Direta de Inconstitucionalidade.  A síntese da conclusão dos Ministros caminhou no sentido de que a estruturação da Defensoria vinha sendo concretizada dia-a-dia, de forma paulatina, razão pela qual a atuação de outros entes que pudessem auxiliá-la no cumprimento de seu mister seria fundamental para que a população percebesse a prestação do direito fundamental de acesso à justiça. No entanto, o Ministro Marco Aurélio sustentou, em seu voto vencido, que “a Defensoria Pública não pode terceirizar a atribuição essencial que lhe voto do Relator, Ministro Cezar Peluso (Presidente), conheceu da ação como Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, julgando-a, em parte, procedente, para declarar a ilegitimidade ou não-recepção do artigo 234 e seus parágrafos, da Lei Complementar Estadual Paulista nº 988, de 9 de janeiro de 2006, e declarar constitucional o artigo 109 da Constituição do Estado de São Paulo, desde que interpretado conforme a Constituição, no sentido de apenas autorizar, sem obrigatoriedade nem exclusividade, a Defensoria a celebrar convênio com a OAB-SP, contra o voto do Senhor Ministro Marco Aurélio, que julgava procedente o pedido como Ação Direta de Inconstitucionalidade. Ausente, justificadamente, o Senhor Ministro Celso de Mello. Falaram, pelo Ministério Público Federal, a ViceProcuradora-Geral da República, Dra. Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira; pela interessada Defensoria Pública do Estado de São Paulo, a Dra. Daniela Sollberger Cembranelli, Defensora Pública Geral do Estado; pela interessada Associação Nacional dos Defensores Públicos-ANADEP, o Professor Luís Roberto Barroso; e, pela interessada Seccional São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil, o Dr. Oswaldo Pinheiro Júnior.

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foi atribuída”. Segundo ele, “a Defensoria não pode terceirizar um serviço que deve prestar diretamente” e, muito mais do que isso, disse que o STF não pode autorizar essa terceirização. Independentemente da análise dos argumentos expendidos por cada um dos Ministros, o interessante de destacar neste trabalho é que foi uniforme nas discussões de todos eles, perpassando toda a motivação da decisão da ADI, o reconhecimento da Defensoria como instituição fundamental e essencial à Justiça. Os votos das Ministras Rosa Weber e Carmem Lúcia traduzem de forma bastante lúcida o que aqui se pretende demonstrar: Na pesquisa que fiz sobre a jurisprudência da Corte, verifiquei que todos ou quase todos os demais Ministros presentes já participaram de inúmeros julgamentos onde a questão das defensorias públicas estaduais veio à tona, por diversos enfoques. Eu ainda não tive oportunidade de fazê-lo; mas na pauta de hoje, temos cinco ADIs que versam, em linhas gerais, sobre esse tema. Cada uma delas, sem dúvida, tem as suas peculiaridades - que certamente vão ser analisadas ao devido tempo, como agora fizemos com esta questão da fungibilidade; de qualquer sorte, o que eu gostaria de ressaltar, em brevíssimas considerações, não é o que há de diferente, mas aquilo que, em todos esses processos, pode ser identificado como uma aspiração única quanto ao posicionamento das defensorias públicas estaduais, não só no seu aspecto estrutural, ou seja, no contexto da sua autonomia em face do Poder Executivo, mas, principalmente, em relação ao espaço que a instituição precisa ocupar, a meu juízo, na prestação de um serviço social dos mais relevantes, que é a efetivação do fornecimento de assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos, nos termos do artigo 5º LXXIV, da Constituição da República [...] A Defensoria Pública tem um papel social que só será efetivamente cumprido quando sua atuação concreta for suficientemente eficaz para fazer dela uma parte fundamental de um objetivo muito maior, qual seja, o da busca de uma sociedade livre, justa e solidária, conforme o comando do artigo 3º, inciso I, da Constituição da República. MINISTRA ROSA WEBER – VOTO NA ADI 4.163/SP Senhor Presidente, também tenho como pertinente tudo o que foi dito, e acho que estamos todos de acordo - mesmo os que volume

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ainda não se manifestaram - sobre a importância da Defensoria, porque é a importância da efetivação de direito fundamental como inscrito na Constituição. A Defensoria Pública é a garantia conferida ao carente de poder lutar, judicialmente, em condições de igualdade, pelos seus direitos. Daí a importância conferida constitucionalmente à instituição. O art. 134 da Constituição determina seja estruturada a Defensoria, pelo que, para se cumprir a norma, há que se “institucionalizar” verdadeiramente a instituição, não apenas formal, mas também materialmente. A inanição administrativa, como ocorre em algumas situações, não faz definhar apenas a Defensoria Pública, mas o próprio quadro de desvalia social dos mais carentes. Sem as condições materiais, a Defensoria Pública não consegue cumprir as suas funções [...] Quanto à preocupação que se põe aqui relativa aos vinte e três anos de vigência da Constituição sem cumprir devidamente uma norma que era de garantir a Defensoria Pública para todos que dela precisassem, faço anotação brevíssima [...] Não é de 1988 a luta que se tem no Brasil para se chegar a este órgão que hoje se chama Defensoria Pública; tem sido uma luta contínua, e que continua, e o nosso debate hoje é apenas demonstração disso. A Defensoria Pública é a garantia que o carente tem, portanto, de poder lutar pelos seus direitos. MINISTRA CARMEM LÚCIA – VOTO NA ADI 4.163/SP

Nesta mesma linha de argumentação, sempre tendo como referência o papel que vem sendo desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal na interpretação que decorre dos dispositivos constitucionais e legais que tratam da Defensoria Pública, está consolidado o entendimento que reconhece a impossibilidade de que os Estados e a União criem cargos e órgãos administrativos outros que não a própria Defensoria Pública para que prestem esses serviços de assistência jurídica integral (seja no âmbito judicial ou extrajudicial). Isto é o que se pode conferir nas decisões proferidas pela Suprema Corte brasileira nas ADI nº 2.229/ES30 e da 30 STF, ADI nº 2229, relator Ministro CARLOS VELLOSO, julgado em 09/06/2004, publicado no DJ nº 158, de 17/08/2004. Ementa: “CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO: DEFENSOR PÚBLICO: CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA. C.F., ART. 37, II E IX. LEI 6.094, DE 2000, DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO: INCONSTITUCIONALIDADE. I. - A regra é a admissão de servidor público mediante concurso público: C.F., art. 37, II. As duas exceções à regra são para os cargos em comissão referidos no inciso II do art. 37, e a contratação de pessoal por tempo determinado para

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ADI nº 3700/RN31. Em outras palavras, tem sido consagrado o entendimento de que somente através da Defensoria Pública pode legitimamente o Estado prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que dela necessitarem. Nenhuma outra modalidade de prestação desses serviços organizada pelos Estados e pela União terá o necessário respaldo constitucional. Assim, por exemplo, os serviços paralelos de assistência jurídica prestados por entidades de assistência social da administração direta, ou mesmo os serviços de assistência jurídica aos internos do sistema penitenciário que, em muitos Estados, são prestados por advogados ou assistentes jurídicos integrantes de carreiras outras que não a da Defensoria Pública estão em total desconformidade com o paradigma desejado pelo legislador constituinte32. Tais serviços devem ser paulatinamente extintos, incorporando-se à estrutura das Defensorias Públicas, a quem deve competir o gerenciamento e supervisão de todas as suas ações, sempre sob a responsabilidade de um membro da Defensoria Pública, que esteja devidamente revestido das garantias legais e constitucionais necessárias para o pleno desempenho de suas atribuições próprias. Esse entendimento tem amparo inclusive no ensinamento de Celso Ribeiro Bastos (1997, p. 259-260): “o que é certo é que se excluem outras modalidades de atender a necessidade temporária de excepcional interesse público. CF, art. 37, IX. Nessa hipótese, deverão ser atendidas as seguintes condições: a) previsão em lei dos cargos; b) tempo determinado; c) necessidade temporária de interesse público; d) interesse público excepcional. II. - Lei 6.094/2000, do Estado do Espírito Santo, que autoriza o Poder Executivo a contratar, temporariamente, defensores públicos: inconstitucionalidade. III. - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente”. 31 STF, ADI nº 3700, relator Ministro AYRES BRITTO, julgado em 15/10/2008, publicado no DJ nº 61, de 31/03/2009. Ementa: “CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 8.742, DE 30 DE NOVEMBRO DE 2005, DO ESTADO DO RIO GRANDE NORTE, QUE “DISPÕE SOBRE A CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA DE ADVOGADOS PARA O EXERCÍCIO DA FUNÇÃO DE DEFENSOR PÚBLICO, NO ÂMBITO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO”. 1. A Defensoria Pública se revela como instrumento de democratização do acesso às instâncias judiciárias, de modo a efetivar o valor constitucional da universalização da justiça (inciso XXXV do art. 5º da CF/88). 2. Por desempenhar, com exclusividade, um mister estatal genuíno e essencial à jurisdição, a Defensoria Pública não convive com a possibilidade de que seus agentes sejam recrutados em caráter precário. Urge estruturá-la em cargos de provimento efetivo e, mais que isso, cargos de carreira. 3. A estruturação da Defensoria Pública em cargos de carreira, providos mediante concurso público de provas e títulos, opera como garantia da independência técnica da instituição, a se refletir na boa qualidade da assistência a que fazem jus os estratos mais economicamente débeis da coletividade. 4. Ação direta julgada procedente.”. 32 Ver a respeito a decisão do Supremo Tribunal Federal nas ADIs 2113/MG e 3819/MG. volume

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assistência jurídica aos necessitados que não seja a da própria Defensoria Pública. Esta detém, com exclusividade, a função de orientar juridicamente e de defender, em todos os graus, os necessitados”. De nossa parte, o que se quer destacar é que atitudes paliativas eternizam uma política de “provisoriedade definitiva”, que é inconveniente e inoportuna sob o ponto de vista da garantia constitucional de assistência gratuita aos necessitados. A discussão aqui, portanto, não é de concorrência de poder, status e/ou autoridade, nem tampouco de disputa em prol dos melhores argumentos e teses. Nossa problematização não perpassa a discussão que visa prestigiar a Defensoria Pública em prol da advocacia privada ou vice-versa. Trata-se, para além disso, de uma discussão de índole constitucional, que visa garantir a eficácia do estado democrático de direito e implementar a efetividade das garantias da cidadania. Sustentar a relevância do papel da Defensoria Pública não anula a igualmente importante função da advocacia privada. As funções de ambas as instituições são complementares, não excludentes. A consolidação e o reconhecimento constitucional da Defensoria Pública como instituição genuinamente responsável pela defesa dos necessitados visa garantir a efetividade da defesa jurídica dos interesses dos cidadãos mais carentes. A vasta experiência brasileira explicita que, uma vez feito o convênio privado que exclui a necessidade de criação da Defensoria Pública, nunca mais os órgãos públicos se comprometem com a criação da instituição naquele Estado da Federação. Os convênios nascidos para serem provisórios tornam-se definitivos e as políticas públicas de efetivação dos direitos da cidadania dos brasileiros mais carentes são olvidadas. Se os institutos funcionassem, na prática, da maneira como foram idealizados abstratamente, sem dúvida os convênios seriam alternativas aceitáveis, enquanto a Defensoria Pública se interiorizaria. Entretanto, até isso se tornar realidade, não se pode deixar qualquer brecha para que se trilhe os mesmos tortuosos caminhos já percorridos e já desvirtuados33. 33 Cleber Francisco Alves e Ricardo de Mattos Pereira Filho (2014, p. 63) expressam um entendimento um pouco mais “radical” do que aquele adotado pelo STF, acerca da questão

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Destaque-se acerca disso, o voto do Ministro Marco Aurélio na ADI 4270/ SC, acima referenciada, no qual ele explicita o seu espanto com a demora de mais de 20 anos na criação da Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina, imputando, de certo modo, à existência dos convênios, a responsabilidade pela inércia daquele Estado, que “provisoriamente” torna definitiva a sua omissão: A cada dia, fico mais e mais em dúvida quanto à rigidez da Carta Federal. Não houve tempo para legislar-se e criar-se a Defensoria Pública no Estado de Santa Catarina passados mais de vinte anos do documento básico da República que impôs a criação, visando a assistência jurídica e judiciária aos menos afortunados [?].

Por tudo isso é que sustentamos aqui a importância da EC 80/2014, que, após um longo percurso histórico, consolida um regime constitucional que reconhece a importante da função da Defensoria Pública como instituição essencial à Justiça e à consolidação da igualdade e dos direitos humanos. A análise da jurisprudência do STF durante todo esse percurso34 demonstra que o julgamento de tantas ações reconhecendo a importância da Defensoria Pública e equiparando-a ao Ministério Público, ainda que sob os mais distintos vieses, tornou possível um desenho constitucional e uma legitimidade de sua função essencial que redundaram na promulgação da EC 80/2014 e, como de fundo que levou ao ajuizamento das ações de inconstitucionalidade mencionadas: “[...] Data maxima venia, ousamos discordar dos eminentes ministros no que tange à última interpretação. É verdade que não se trata de hipótese semelhante às duas anteriores, pois a possibilidade de convênio em questão seria entre a OAB e a própria Defensoria Pública, em vez do Poder Executivo estadual, como no caso dos Estados do Espírito Santo e do Rio Grande do Norte. Porém, entendemos que não deveria ser possível sequer que a Defensoria Pública firmasse tais avenças, uma vez que não pode se desincumbir de seu dever constitucional de prestar a assistência jurídica aos necessitados. Eventual alternativa, de cunho pragmático, para enfrentamento de situações concretas em que tais convênios ainda estejam sendo adotados poderia, no máximo, enquadrar-se na hipótese que doutrinariamente se costuma designar “inconstitucionalidade progressiva”. Mas, tal situação não deixa de afirmar a ocorrência efetiva de “inconstitucionalidade”. As lacunas geográficas [Comarcas em que não há órgão da Defensoria Pública em funcionamento] devem ser preenchidas com o aporte de verbas à instituição, permitindo que esta se ramifique, e a criação de novos órgãos de atuação em sua estrutura, bem como a realização de concursos públicos de provas e títulos para ampliação de seus quadros.” 34 Decisões disponíveis para consulta integral no site do STF – www.stf.jus.br: ADI 2.229, ADI 3.700, ADI 4.163, ADI 3.643, ADI 4.246, ADI 3.028, ADI 291, ADI 4.270, ADI 4.163, ADI 3.569, ADI 3.043, ADI 2.903, ADI 3.022, RE 599.620. volume

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esperamos, em seu empoderamento institucional, a fim de garantir a cidadania de brasileiros normalmente esquecidos pelas políticas públicas. 6. conclusões As recentes mudanças que vêm sendo implementadas no regime constitucional brasileiro relativamente à Defensoria Pública - seja através da produção legislativa do Congresso Nacional, especialmente pela recente promulgação da Emenda Constitucional nº 80, de 04 de junho de 2014, seja também por via do Judiciário, mediante a prolação de decisões proferidas em sede de controle concentrado de constitucionalidade, pelo Supremo Tribunal Federal - parecem indicar o reconhecimento do seu papel social e de sua contribuição para o desenvolvimento da sociedade e para o recrudescimento do respeito à igualdade e aos direitos humanos. O modelo de serviço público estatal de assistência jurídica gratuita no Brasil, prestado através da Defensoria Pública, já se encontrava esboçado, em linhas gerais, no texto originário da Constituição Federal de 1988. No entanto, a sua efetiva consolidação vem sendo lenta e gradual. Nessa linha, o Supremo Tribunal Federal tem empreendido um papel muito importante na consolidação do reconhecimento da Defensoria Pública, proferindo decisões, em sede de Ações Diretas e/ou Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade, que acabam por reforçar e corroborar a importância dessa instituição, fato que nos parece ter contribuído sobremaneira até mesmo para a constitucionalização deste reconhecimento, mediante a recente promulgação da Emenda Constitucional nº 80, de 04 de junho de 2014. A Emenda Constitucional nº 80, de 04 de junho de 2014, alterou a redação do artigo 134 da Constituição Federal de 1988, para fazer constar, expressamente, que a Defensoria Pública é instituição permanente, à qual incumbe “a promoção dos direitos humanos” e a defesa judicial e extrajudicial dos necessitados, determinando-se, no §1º do artigo 98, que também foi alterado pela referida Emenda Constitucional, o prazo máximo de 8 (oito) anos para que a União, os Estados e o Distrito Federal contem com Defensores Públicos em todas as suas unidades jurisdicionais. 218

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Na linha da tese sustentada pelo Professor Marcelo Neves, em sua “Constitucionalização Simbólica” (2007, p. xi), a luta do direito deve ser para efetivar as normas constitucionais, evitando a criação de um mundo normativo “falso”, que seja mais eficiente que o “mundo verdadeiro”. O esforço, notadamente, no que se refere à recente Emenda Constitucional nº 80, de 04 de junho de 2014, é internalizar o reconhecimento da função institucional da Defensoria Pública e impedir que esta seja mais uma “legislaçãoálibi”, no sentido atribuído por Marcelo Neves (2007, p. 39). Ou seja, é preciso que a Emenda Constitucional nº 80, de 04 de junho de 2014, no lugar de “dar a aparência de uma solução dos problemas sociais” e de configurar simples “boas intenções do legislador”, represente efetivamente uma conquista democrática e cumpra o papel de assegurar garantias civis, sociais e políticas aos cidadãos brasileiros. 7. referências AGUIAR, Jean Menezes de. Considerações acerca do Defensor Público como agente político do Estado: a vez de todos. Revista de Direito da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, ano 7, n. 10, p. 173-180, 1997. ALEIXO, Celso Quintella. Uma nova perspectiva sobre a nomeação do Procurador-Geral de Justiça e o princípio do Promotor Natural. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, ano 20, p. 51-58, Jul./Dez-2004. ALVES, Cleber Francisco. JUSTIÇA PARA TODOS! Assistência Jurídica Gratuita nos Estados Unidos, na França e no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. _______ e PEREIRA FILHO, Ricardo de Mattos. Temas Aprofundados de Defensoria Pública. Volume 2. Bahia: Editora Juspodium, 2014. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O Direito à Assistência Jurídica: evolução no ordenamento brasileiro de nosso tempo In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo de (org.). As Garantias do Cidadão na Justiça. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 207-218. volume

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o papel do br asil na construção da paz internacional: os desafios e avanços da missão das nações unidas par a a estabilização do haiti (minustah) Karine de Souza Silva1

Resumo O presente artigo situa-se no campo temático das missões de paz capitaneadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), e concede um enfoque especial à participação do Brasil como líder militar da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH). O objetivo deste trabalho é apresentar a atuação do Brasil nas missões de paz da ONU, enfatizando a sua influência nas negociações e na definição dos termos do mandato da MINUSTAH. O primeiro item apresenta o histórico da inserção brasileira no mecanismo de Segurança Coletiva das Nações Unidas, em especial as gestões empreendidas para aprovação da missão no Haiti. Na sequência, são apontadas as principais características do mandato da MINUSTAH . Por fim, são abordados alguns logros e desafios atuais da operação.

Palavras-chave Brasil; MINUSTAH; Nações Unidas.

Resumen Este artículo se encuentra en el campo temático de las misiones de mantenimiento de la paz gestionadas por la Organización de las Naciones Unidas (ONU), y hace especial énfasis en la participación de Brasil como un líder militar de la Misión de las Naciones Unidas para la Estabilización de Haití 1 Professora dos Programas de Pós-graduação em Direito e em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisadora Produtividade Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Esta pesquisa foi desenvolvida no Eirenè – Núcleo de Pesquisas sobre Integração Regional, Paz e Segurança Internacionais, e conta com o financiamento do CNPq. E-mail: [email protected] volume

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(MINUSTAH). El objetivo de este trabajo es presentar el papel de Brasil en las misiones de paz de la ONU, destacando su influencia en la negociación y la definición de los términos del mandato de la MINUSTAH. El primer apartado aprecia la historia de la inserción de Brasil en el mecanismo de seguridad colectiva de las Naciones Unidas y se focaliza, particularmente, en los esfuerzos realizados por el mencionado país para la aprobación, por parte de la ONU, de la creación de la misión en Haití. En la segunda sección, se presentan las principales características del mandato de la MINUSTAH. Por último, se discuten algunos de los logros y retos de la operación de paz.

Palabras claves Brasil; MINUSTAH; Naciones Unidas. 1. introdução O presente artigo situa-se no campo temático das missões de paz capitaneadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), e concede um enfoque especial à participação do Brasil como líder militar da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH). O objetivo deste trabalho é apresentar a atuação do Brasil nas missões de paz da ONU, enfatizando a sua influência nas negociações e na definição dos termos do mandato da MINUSTAH. O primeiro item do artigo apresenta o histórico da inserção brasileira no mecanismo de Segurança Coletiva das Nações Unidas, em especial as gestões empreendidas para aprovação da missão no Haiti. Na sequência, são apontadas as principais características do mandato da MINUSTAH. Por fim, são abordados alguns logros e desafios atuais da operação. 2. a participação do br asil nas missões de paz da onu e a lider ança militar da minustah O longo histórico brasileiro na participação em missões de paz da ONU e sua atuação ativa no Conselho de Segurança, na condição de membro eletivo, foram 224

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elementos fundamentais para a sua nomeação para liderar o componente militar da MINUSTAH. No currículo brasileiro, sobressai-se ainda a colaboração com mais de trinta operações em locais como Angola, Moçambique, Timor-Leste, El Salvador, Macedônia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Chipre, Libéria, Ruanda, EtiópiaEritreia, Saara Ocidental, Chade, Haiti, entre outros. Na primeira grande missão de paz da ONU, a UNEF-I, que separou israelenses e egípcios no Canal de Suez, entre 1957 e 1967, o país cedeu cerca de seis mil militares, em revezamento, que formaram o chamado Batalhão de Suez. O Brasil teve participação mais efetiva, com desdobramentos de tropas, nas missões da ONU em Suez (UNEF I), em Angola (UNAVEM III), em Moçambique (ONUMOZ), no Timor Leste (UNTAET/UNMISET) e no Haiti (MINUSTAH)2. Também foi politicamente atuante na criação do Escritório de Apoio à construção da Paz (UNOGBIS) em Guiné-Bissau3. Atualmente, a nação ocupa a posição de 13º maior contribuinte de tropas, contando com um efetivo de 1.977 (mil novecentos e setenta e sete) pessoas no terreno, distribuídas entre nove missões de paz sob a égide da ONU.4 Além da relativa experiência diplomática a respeito do funcionamento do CSNU, haja vista que o país já cumpriu dez mandatos no Conselho de Segurança da ONU, - número equiparado apenas ao do Japão - o seu peso político lhe concede credenciais para agir de modo significativo na condução dos processos de paz debatidos no referido órgão e interferir na configuração dos mandatos das missões. 2 “O Brasil não tem tradição em atuar em forças multinacionais, e tem optado, portanto em colaborar com as operações de manutenção da paz, principalmente porque as tais forças são autorizadas a utilizar-se do recurso da força em situações onde não há cessar-fogo e os integrantes das forças não contam com apoio logístico do Secretariado. A exceção foi a participação brasileira no Timor-Leste (INTERFET) e na República Democrática do Congo (FMEI). O país assegurou-se que havia o consentimento das partes envolvidas no conflito para a participação na força”. UZIEL, Eduardo. O Conselho de Segurança, as Operações de Manutenção da Paz e a Inserção do Brasil no Mecanismo de Segurança Coletiva das Nações Unidas, p. 97. 3 Consultar: FONTOURA, P. R. C. T. O Brasil e as Operações de Manutenção da Paz das Nações Unidas. Brasília: Funag, 2005. 4 Neste sentido, consultar: ONU. http://www.un.org/en/peacekeeping/resources/statistics/ contributors.shtml . Acesso em 06 maio 2013. volume

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Vários fatores têm conduzido Brasília a atuar positivamente no mecanismo de segurança coletiva das Nações Unidas5: 1) normativo, em obediência do disposto no artigo 4º da Constituição Federal que enumera os princípios que norteiam a sua política externa e sublinha a vocação para a solução pacífica de controvérsias e o respeito à igualdade soberana dos Estados; 2) histórica, em decorrência da participação do Brasil na ONU, desde os seus primórdios, e seu envolvimento efetivo em defesa do fortalecimento da organização internacional e do melhoramento de suas capacidades para manter a ordem na cena mundial; 3) realista, devido ao seu interesse em otimizar recursos de poder para conseguir militar em arranjos multilaterais estáveis e, conseqüentemente, conquistar novos espaços no intricado jogo das potências no tabuleiro global. Eduardo Uziel assevera que a MINUSTAH é um dos mais relevantes investimentos políticos e materiais do país em prol da manutenção da paz e segurança mundiais6. O número expressivo de tropas no terreno, a influência na definição do mandato e as gestões para a inserção de novos elementos de promoção aos direitos humanos e ajuda ao desenvolvimento, representam a capacidade de interlocução do Itamaraty junto ao P-5 (países titulares de assento permanente no Conselho de Segurança). Segundo assevera o diplomata, é marcante “a percepção brasileira de que existe um tripé segurança/ reconciliação política/desenvolvimento que é essencial no Haiti e em qualquer missão multidimensional”. De fato, o país tem militado nos órgãos da ONU pela viabilização de “Projetos de Impacto Rápido” (Quick 5 UZIEL, Eduardo. O Conselho de Segurança, as Operações de Manutenção da Paz e a Inserção do Brasil no Mecanismo de Segurança Coletiva das Nações Unidas. Brasília: FUNAG, 2010. Segundo o autor as motivações brasileiras para participação nas missões são: “1) inserir plenamente o país no mecanismo de segurança coletiva das Nações Unidas, que voltou a ser atuante após o fim da Guerra Fria; 2) aumentar a influência brasileira nos órgãos de tomada de decisão das Nações Unidas; 3) cumprir os preceitos que regem as relações internacionais do Brasil constantes do artigo 4º da Constituição Federal; 4) reforçar a própria ideia de multilateralismo e inserir os interesses brasileiros entre aqueles que orientam as decisões, inclusive para minimizar questões como o double standards do CSNU; 5) validar a candidatura brasileira a membro permanente do Conselho de Segurança; 6) aproveitar oportunidades de cooperação identificadas no curso da implementação dos processos de paz; 7) proporcionar maior experiência internacional para as Forças Armadas”. 6 UZIEL, Eduardo. O Conselho de Segurança, as Operações de Manutenção da Paz e a Inserção do Brasil no Mecanismo de Segurança Coletiva das Nações Unidas. Brasília: FUNAG, 2010.

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Impact Projects)7 nas missões, “como forma de estabelecer boas relações com as comunidades e como gesto inicial para favorecer o desenvolvimento”8. O Itamaraty tem advogado, também, pela inserção de tarefas de peacebuilding nos mandatos das operações. O referido autor ainda informa que a implantação da MINUSTAH foi, decisivamente, marcada pela gestão brasileira em dois aspectos fundamentais: a) “a inclusão de elementos específicos no mandato da missão; b) construção de uma capacidade de influência nos rumos da operação, em colaboração com outros Estados latino-americanos”9. No decurso do processo decisório foi instituído um “Grupo de Amigos”10, que foi formado por Estados Unidos, Canadá, França, Chile e Brasil. Embora os EUA tenham figurado como líder do Grupo, era visível que as opiniões do país que ofereceria a maior contribuição militar para a missão, o Brasil, deveriam ser consideradas. É certo que a superpotência tenha sido um dos principais incentivadores da presença brasileira no Haiti, mas também está claro que houve discrepâncias de entendimentos entre as duas nações durante os debates. Entre as principais diferenças estava a insistência estadunidense em dotar o texto do mandato de um caráter predominantemente militarista, sob o auspício do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas. O Brasil, apoiado pelo Chile, defendia uma missão abrigada pelo Capítulo VI. O ponto de consenso se deu através da adoção de uma resolução gerida pelo capítulo VI, com o quesito “segurança” regido pelo Capítulo VII, o que permite a utilização da força quando necessário11. Durante as gestões para a aprovação do mandato da MINUSTAH, Brasília desempenhou um papel fundamental e atuou em diversas frentes com vistas 7 Projetos patrocinados pela ONU, realizados em áreas sensíveis que estão sendo pacificadas, logo após uma considerável melhora do nível de segurança. São projetos de rápida execução e objetiva ganhar a confiança da população civil e, consequentemente, acelerar o processo de pacificação. São exemplos de QIP: reformas de escolas, frentes de trabalho para a limpeza pública e perfuração de poços artesianos, pavimentação de estradas. 8 UZIEL, Eduardo. O Conselho de Segurança, as Operações de Manutenção da Paz e a Inserção do Brasil no Mecanismo de Segurança Coletiva das Nações Unidas. P. 107-108. 9 Idem, ibidem. 10 “São associações ad hoc de Estados, que se reúnem informalmente para oferecer bons ofícios, apoiar decisões do Conselho ou do SGNU e, nos casos que mais interessam, auxiliar na formulação de mandatos de operações de manutenção da paz”. Idem, p. 141. 11 AMORIM, Celso. Conversa com jovens diplomatas. São Paulo: Benvirá, 2011. P. 39 volume

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a dissociar a nova missão das anteriores12 e a inserir funções de caráter mais holístico, como as ações em prol do desenvolvimento, do combate à pobreza e do fortalecimento institucional do Haiti. Propôs uma elevação das funções humanitárias e de fortalecimento das instituições ao mesmo nível das tarefas militares e defendeu, ostensivamente, a inserção de referências a peacebuilding no mandato, apesar de resistências dos EUA em atribuir essas tarefas a missões de paz13. O Itamaraty procurou, decisivamente, evitar que, dentro da própria região, emergissem rumores e atos de resistências políticas que deslegitimassem o esforço da ONU. Para tal, manteve diálogos com a Comunidade do Caribe (CARICOM) para demonstrar que não se tratava de uma ocupação de um de Estados-membros. Segundo Celso Amorim, a percepção era a de que o CARICOM deveria atuar de modo relevante devido aos vínculos étnicos e culturais e porque é fundamental considerar que o país anfitrião está inserido em uma região14. Neste sentido, Brasília, também, intercedeu junto ao CSNU em prol de uma definição de papéis mais robustos para a Organização dos Estados Americanos (OEA) na execução da missão, para fortalecer a presença e a atuação dos países latinos. O CARICOM e a OEA, desde logo, ofereceram suas capacidades diplomáticas e agiram como mediadoras junto ao governo haitiano15. A nação brasileira também se engajou na promoção de articulações com outros possíveis contribuintes de tropas, com as instituições financeiras internacionais, nomeadamente, com o Banco Mundial e o BID, com a comunidade de doadores e, sobretudo, com o governo haitiano16. 12 As missões dos anos 1990 foram vinculadas à liderança dos EUA e seus mandatos não foram finalizados de modo satisfatório. 13 “EUA, França e Canadá militavam a favor de abordagem militarista e de curto prazo, com ações ostensivas e retirada rápida de cenários potencialmente complicados. Em contraste, o Brasil e Chile defenderam a introdução no mandato de elementos mais complexos como a promoção do desenvolvimento sustentável e o fortalecimento institucional. Os EUA pretendiam adoção no texto da Resolução a expressão “acting under Chapter VII” da Carta da ONU, enquanto que o Brasil era partidário de uma ação em consonância com Capítulo VI, devido ao convite recebido do Governo haitiano e para garantir que não se tratava de ocupação estrangeira”. Neste sentido, consultar: UZIEL, Eduardo. Op. Cit. 2010. 14 AMORIM, Celso. Conversa com jovens diplomatas. São Paulo: Benvirá, 2011. P. 43. 15 CONSEJO DE SEGURIDAD. Informe del Secretario General sobre la Misión de Estabilización de las Naciones Unidas en Haití. (S/2004/300). Disponível em: http:// www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/2004/300&referer=http://www.un.org/en/ peacekeeping/missions/minustah/reports.shtml&Lang=S . Acesso em 29 julho 2013. 16 AMORIM, Celso. Conversa com jovens diplomatas. São Paulo: Benvirá, 2011. P. 44.

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Todas essas iniciativas brasileiras foram fundamentais para a construção do mandato da missão que ganhou um caráter fortemente multidimensional, como se pode observar nas Resoluções aprovadas no CSNU. O Brasil aceitou liderar o componente militar da MINUSTAH e conta com mais de mil homens e mulheres desdobrados no terreno, que se revezam semestralmente, atendendo à determinação da ONU. O país é o maior doador de tropas para a MINUSTAH, organizadas em dois batalhões de Infantaria de Força de Paz (Brabatt 1 e Brabatt 2) e uma Companhia de Engenharia de Força de Paz (Braengcoy). O Brabatt 2 foi instituído após o terremoto de 2010, devido à necessidade de reforço para a realização das tarefas da operação, tais como ajuda humanitária e remoção de escombros. Com isso, o país ampliou sua participação militar no Haiti. As principais atividades realizadas pelos militares no terreno são: patrulhas (a pé, motorizadas, mecanizadas); escolta e segurança de comboios e autoridades; static e check points; assistência humanitária; reconhecimento aéreo; realização de Projetos de Impacto Rápido; operação de distribuição de alimentos; controle de distúrbios; segurança de campos de deslocados; segurança de instalações e atividades de coordenação civil-militar (CIMIC). Além da efetiva participação na MINUSTAH, Brasília também está envolvida em várias ações de cooperação internacional. A nação doou US$ 55 milhões ao Fundo de Reconstrução do Haiti do Banco Mundial17, desenvolve programas de cooperação técnica em diversos domínios e aportou montantes significantes para alguns Ministérios encetarem projetos dedicados ao desenvolvimento e à reconstrução do país. A situação no Haiti ainda é complicada, mas os últimos relatórios do Secretário-geral da ONU18 já deixam transparecer uma melhora significativa da situação no terreno, o que torna possível efetivar as primeiras ações de redução do contingente e iniciar a discussão sobre possíveis cenários de finalização da missão. 17 MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Nota n. 291. Disponível em: http:// www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/cerimonia-de-adesao-do-brasilao-fundo-de . Acesso em 29 julho 2013. 18 CONSEJO DE SEGURIDAD. Informe del Secretario General sobre la Misión de Estabilización de las Naciones Unidas en Haití. Disponível em: http://daccess-dds-ny.un.org/ doc/UNDOC/GEN/N12/473/18/PDF/N1247318.pdf?OpenElement . Acesso em 10 maio 2013. volume

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O representante especial do secretário-geral da ONU para o Haiti, o canadense Nigel Fisher, esteve no Brasil, em maio de 2013 para negociar com o Itamaraty e o Ministério da Defesa o calendário de retirada gradual das tropas do país. Em abril deste ano, o Brabatt 2 começou a ser desmobilizado, com a retirada de 430 soldados, assim como toneladas de equipamentos19. Assim, desde de junho de 2013 a MINUSTAH conta com 1200 militares brasileiros que estão disponíveis para efetivar o mandato e vencer os desafios que ainda se apresentam no terreno. 3. o mandato da minustah Conforme visto, o Itamaraty esteve completamente engajado nas negociações para definição de um mandato multidimensional para a MINUSTAH, cristalizado nas Resoluções do CSNU. A Missão das Nações Unidas de Estabilização do Haiti foi aprovada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) através da Resolução 1542 de 30 de abril de 200420. O mandato da MINUSTAH, que teve seu fundamento nos Capítulos VI e VII da Carta da ONU, prevê a utilização da força em caso de legítima defesa e foi estabelecido, inicialmente, para um período de seis meses. Nos últimos nove anos o CSNU renovou e reformulou o mandato várias vezes com intuito de ajustar as competências às necessidades que tem surgido no terreno21. 19 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL. Em visita ao Brasil, chefe de Missão de Paz da ONU no Haiti discute retirada das tropas. Disponível em: http://www. onu.org.br/em-visita-ao-brasil-chefe-de-missao-de-paz-da-onu-no-haiti-discute-retirada-dastropas/ Acesso em 13 maio 2013. 20 “As razões pelas quais a ONU decidiu intervir no Haiti aparecem expressas na Resolução 1529 de 2004 quando o Conselho de Segurança afirma estar: “preocupado com a deterioração da situação política, humanitária e de segurança no país; e preocupado com as perdas humanas e a persistência da violência, assim como com a possibilidade de uma rápida deterioração da situação humanitária no país e seus efeitos desestabilizadores para a região. Neste sentido, CSNU sublinha a necessidade de criar um entorno seguro no Haiti e na região que permita o respeito aos direitos humanos, incluído o bem-estar da população civil”. Conselho de Segurança das Nações Unidas. Resolução 1529 (2004). Disponível em: http://www.un.org/ ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/1529(2004)&referer=http://www.un.org/en/peace keeping/missions/minustah/resolutions.shtml&Lang=S Acesso em 24 maio 2013. 21 O Conselho de Segurança aprovou 16 Resoluções a respeito do mandato da MINUSTAH. São elas:

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O mandato é fortemente inspirado no Relatório Brahimi22 do ano de 2000 que introduziu uma série de medidas para garantir a eficácia das operações de paz da ONU e melhorar a imagem da organização, depois do fracasso das ações empreendidas em Ruanda e na Bósnia. A Resolução 1542 dota a missão com uma característica multidimensional23 e, por isso, prevê ações destinadas a promover um ambiente estável e seguro, o respeito aos direitos humanos e conceder suporte necessário ao processo de transição política. A multidimensionalidade baseia-se no tripé: segurança, reconciliação política e desenvolvimento24. Para tal, conta-se com o apoio de componentes civis e militares. Na esfera do “ambiente seguro e estável” a missão de paz deve: “a) conceder suporte ao governo transitório no sentido de garantir um ambiente seguro e estável no qual o processo político e constitucional possa ocorrer; b) assistir o Governo Transitório no monitoramento, na reestruturação e reforma da Polícia Nacional haitiana (...); c) assistir o Governo Transitório nos processos de Desarmamento, Desmobilização e Reintegração (...); d) apoiar a restauração e manutenção do Estado de Direito e a segurança pública no Haiti (...); e) proteger o pessoal, as instalações e equipamentos das Nações Unidas e assegurar a liberdade

Resolução 1529 (2004); Resolução 1542 (2004); Resolução 1576 (2004); Resolução 1601 (2005); Resolução1608 (2005); Resolução 1658 (2006); Resolução 1702 (2006); Resolução 1743 (2007); Resolução 1780 (2007); Resolução 1840 (2008); Resolução 1892 (2009); Resolução 1908 (2010); Resolução 1927 (2010); Resolução1944 (2010); Resolução 2012 (2011); e Resolução 2070 (2012) . 22 NAÇÕES UNIDAS. A/55/305. Relatório Brahimi, 2000. Disponível em: Acesso em julho 2013. 23 “As quatro operações de paz anteriores no Haiti, ao longo dos anos 90, não haviam sido capazes de assegurar uma paz duradoura para o povo haitiano, talvez por se concentrarem excessivamente na vertente da segurança. Talvez também porque, uma vez vencida essa etapa, a comunidade internacional simplesmente se afastava, deixando o Haiti frente aos mesmos problemas que haviam gerado a crise”. AMORIM, C. Discurso do Ministro de Estado das Relações Exteriores por ocasião da abertura do “Seminário de Alto Nível sobre Operações de Manutenção da Paz”. Disponível em http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/ discursos-artigos-entrevistas-e-outras-comunicacoes/ministro-estado-relacoes-exteriores/ discurso-do-do-ministro-de-estado-das-relacoes. Acesso em 25 maio 2013. 24 AMORIM, C. Discurso do Ministro de Estado das Relações Exteriores por ocasião da abertura do “Seminário de Alto Nível sobre Operações de Manutenção da Paz”. Disponível em Disponível em http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/discursos-artigos-entrevistase-outras-comunicacoes/ministro-estado-relacoes-exteriores/discurso-do-do-ministro-de-esta do-das-relacoes. Acesso em 25 maio 2013. volume

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de circulação destas pessoas, levando em consideração a responsabilidade do Governo Transitório de auxiliar com essa segurança; f ) defender civis sob ameaça de iminente violência, de acordo com as capacidades e áreas de desdobramento da missão (...)”25. No quesito “processo político”, o mandato prevê as seguintes tarefas: “a) apoiar o processo político e constitucional em curso (...); b) ajudar o Governo Transitório nos seus esforços favorecer um processo de diálogo nacional e de reconciliação política; c) assistir o Governo Transitório na sua política de organizar, monitorar e executar eleições municipais, parlamentares e presidenciais livres e justas o mais rápido possível, auxiliando, particularmente, nas áreas técnicas, logísticas e administrativas, provendo a segurança, e dando o apoio necessário a um processo eleitoral aberto à participação de eleitores que represente a realidade demográfica nacional, incluindo a participação das mulheres; d) auxiliar o Governo Transitório a estender a autoridade estatal em todo o Haiti e apoiar a boa governança a nível local”26. Segundo Juan Gabriel Valdés27 o eixo político da MINUSTAH é o mais relevante, uma vez que se mostra superior, inclusive, ao militar. Ele considera que o mandato da MINUSTAH assenta-se em três princípios: respeito aos direitos humanos dos haitianos; reconstrução do Estado de Direito e da legitimidade governamental, sobretudo por meio da realização de eleições democráticas; apoio ao desenvolvimento econômico do Estado como meio de garantir a paz. O reforço institucional e o consequente fortalecimento da autoridade governamental são condições essenciais para minar a violência doméstica. Essa abordagem política é uma característica típica de uma missão de paz multidimensional, uma vez que privilegia a restauração das instituições nacionais e as ações destinadas ao desenvolvimento econômico, como meio de atingir uma paz autossustentável.28 Por último, no item “direitos humanos” o mandato encarrega à missão: 25 Conselho de Segurança das Nações Unidas. Resolução 1542, 2004. 26 Conselho de Segurança das Nações Unidas. Resolução 1542, 2004. 27 VALDÉS, Juan Gabriel. La MINUSTAH y la Reconstrucción del Estado haitiano. Santiago: Instituto de Estudios Internacionales, 2008. 28 DOYLE, Michael W.; SAMBANIS, Nicholas. International Peacebuilding: a theoretical and quantitative analysis. American Political Science Association, 2000.

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“a) apoiar o Governo Transitório assim como as instituições haitianas de promoção dos direitos humanos nos seus esforços para promover e proteger esses direitos, particularmente de mulheres e crianças, a fim de assegurar as responsabilidades individuais por abusos e a reparação para as vítimas; b) monitorar as violações de direitos humanos, em cooperação com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, incluindo a situação dos refugiados e deslocados internos.”29 A Resolução 1542 também propõe que a promoção do desenvolvimento econômico social e econômico do Haiti seja uma tarefa conjunta dos Estadosmembros, órgãos das Nações Unidas, das demais organizações internacionais e regionais (em particular, a OEA e o CARICOM), instituições financeiras internacionais e organizações não-governamentais. Assim, o estímulo ao desenvolvimento econômico e à assistência humanitária são vistos como mecanismo de redução da pobreza e promoção da paz. Ainda sobre as atividades, é necessário enfatizar que a Resolução 1702 do Conselho de Segurança30, que foi aprovada em 2006 após as eleições presidenciais, congregou novas atribuições ao mandato da MINUSTAH, em especial no que diz respeito ao apoio à reforma dos sistemas judiciário e penitenciário. Neste sentido, a missão deverá: “proporcionar assistência e assessoramento às autoridades haitianas, em consulta com as partes competentes, na supervisão, reestruturação, reforma e fortalecimento do poder judiciário, inclusive mediante assistência técnica para estudar toda a legislação pertinente, na busca por especialistas que prestem serviços profissionais, na rápida aplicação de meios para eliminar a superlotação nas prisões e detenções prolongadas antes do julgamento”. A Resolução 160831 sublinha a necessidade de reforço à capacidade de realização dos “Projetos de Impacto Rápido”. Tal exortação é reiterada na Resolução 1702 que chama atenção para desenvolvimento de tais atividades após as eleições, 29 Conselho de Segurança das Nações Unidas. Resolução 1542, 2004. 30 Conselho de Segurança das Nações Unidas. Resolução 1702. Disponível em: http://www. un.org/es/comun/docs/?symbol=S/RES/1702%20(2006). Acesso em 24 maio 2013. 31 Conselho de Segurança das Nações Unidas. Resolução 1608. Disponível em: http://daccessdds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N05/395/57/PDF/N0539557.pdf?OpenElement . Acesso em 24 maio 2013. volume

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para se resolver, a curto prazo, problemas econômico-sociais a partir da criação de novos empregos, e para melhorar a visibilidade da missão. A partir do ano de 2007 a situação começou a se tornar mais estável no terreno32 e, por isso, os mandatos da MINUSTAH passaram a ser prorrogados anualmente, ao invés de semestralmente como antes, e os seus conteúdos passaram a sofrer poucas alterações. Até 2009, o contingente foi-se reduzindo, ao passo que o contingente civil foi-se ampliando33. Entretanto, em 12 de janeiro de 2010 o Haiti foi acometido por um grave terremoto de magnitude 7, que resultou na morte de 220 mil pessoas - incluindo 96 “peacekeepers”-, deixou 1,5 milhão de deslocados e causou um forte abalo na infra-estrutura e na economia da nação. Este foi o maior desastre da história das Nações Unidas. Por tais razões, a ONU decidiu ampliar, emergencialmente, tanto o número de militares quanto o de civis para auxiliarem na reconstrução do Estado e no socorro às vítimas. A Resolução 1927 (2010) aumentou o componente militar para 8.940 efetivos, entre oficiais e tropas, e o componente policial passou a contar com 4.391 integrantes. A Resolução concedeu novas competências à missão para fazer frente à situação pós-desastre natural. Passada a fase mais crítica da catástrofe, a ONU, através da Resolução 2070 (2012)34 MINUSTAH diminuiu o número de desdobrados para 6.270 pessoas e determinou a retirada equilibrada dos efetivos de infantaria e engenharia, e os policiais foram reduzidos ao número de 2.601. São dezenove países que cedem militares35 para a MINUSTAH e quarenta e dois são doadores de policiais, sendo que o Brasil lidera o componente militar,

32 KAMINSKI, Anelise Gomes Vaz. As Limitações das Intervenções Humanitárias da ONU: o caso do Haiti. 2011. 33 De 2006 até 2009, o contingente militar descendeu de 7200 para 6940. O contingente civil aumentou de 1951 para 2211. Consultar: Resoluções 1702 e 1892. 34 Conselho de Segurança das Nações Unidas. Resolução 2070 (2012). Disponível em: http:// www.un.org/es/comun/docs/?symbol=S/RES/2070%20(2012) . Acesso em 24 maio 2013. 35 Os países que participam do componente militar são: Argentina, Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Equador, Estados Unidos, França, Guatemala, Japão, Jordânia, Nepal, Paraguai, Peru, Filipinas, Coreia do Sul, Sri Lanka e Uruguai. Os Estados que cedem contingentes civis são:

Argentina, Bangladesh, Benin, Brazil, Burkina Faso, Burundi, Cameroon, Canada, Central African Republic, Chad, Chile, Colombia, Côte d’Ivoire, Croatia, Egypt, El Salvador,

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composto por 19 nações que enfrentam os variados desafios que ora se apresentam no terreno. 4. as conquistas e os desafios da minustah A MINUSTAH completou nove anos em junho de 2013. Tanto o governo brasileiro como as Nações Unidas têm manifestado algum contentamento com os resultados até então alcançados. O ex-Ministro de Relações Exteriores Celso Amorim evidenciou que: “os resultados (da missão) têm sido muito positivos. Visitei Porto Príncipe várias vezes. A cada ocasião, notava-se melhora crescente nas condições de segurança. A vida no bairro/favela de Cité Soleil, outrora dominado por gangues e bandidos, aos poucos volta ao normal. Não é ainda o cenário ideal, mas houve, sem dúvida, uma evolução. Estamos fortalecendo a polícia nacional e as demais instituições do Estado haitiano. Continuamos engajados em projetos de cooperação, bilateralmente ou em parceira com terceiros países e instituições.”36 Na mesma linha, posiciona-se o Secretário Geral Ban Ki-moon nos seus relatórios dirigidos ao CSNU. Segundo ele, a missão já alcançou “logros políticos importantes e longamente esperados”. Cita como exemplos a realização de eleições, a posse de um novo governo, a aprovação de emendas constitucionais, a criação do Conselho Superior do Poder Judiciário e melhora evidente nos setores de polícia nacional, entre outros. Com a autoridade governamental estabelecida, a pacificação das comunidades violentas foi o próximo passo. Os projetos de infraestrutura estão sendo executados à medida do possível. Somente no período 2011-2012, a MINUSTAH realizou 265 projetos de impacto rápido37. France, Guinea, India, Indonesia, Jordan, Mali, Nepal, Niger, Nigeria, Norway, Pakistan, Philippines, Romania, Russian Federation, Rwanda, Senegal, Serbia, Sierra Leone, Spain, Sri Lanka, Togo, Tunisia, Turkey, United States, Uruguay and Yemen. Neste sentido, consultar: http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/minustah/facts.shtml . Acesso em 06 maio 2013. 36 AMORIM, Celso. A diplomacia multilateral do Brasil: Um tributo a Rui Barbosa. Disponível em: http://www.funag.gov.br/biblioteca/dmdocuments/0548.pdf Acesso em 06 maio 2013. 37 CONSEJO DE SEGURIDAD. Informe del Secretario General sobre la Misión de Estabilización de las Naciones Unidas en Haití. Disponível em: http://daccess-dds-ny.un.org/ doc/UNDOC/GEN/N12/473/18/PDF/N1247318.pdf?OpenElement . Acesso em 10 maio 2013. volume

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Todos esses esforços foram empreendidos no país com o apoio da ONU na tentativa de fortalecer as instituições democráticas e o estado de direito. A situação geral em matéria de segurança “tem se mantido relativamente estável, com distúrbios civis esporádicos, vinculados, principalmente, a reivindicações sócio-econômicas e à instabilidade provocada por elementos das antigas forças armadas e novos recrutas.38” Por esse motivo, o Secretário Geral já solicitou que a diminuição do contingente seja gradual para que não haja o perigo de retorno à situação caótica vivida pelos haitianos há alguns anos e de se prejudicar todo o trabalho realizado. Ainda no âmbito internacional, a União Europeia (UE) vê com bons olhos o desempenho brasileiro na MINUSTAH. Neste sentido, ganha destaque a assinatura do Termo de Parceria Estratégica entre Brasil e a UE que objetiva, entre outros, a promoção de troca de experiências no campo da reconstrução pósconflito, principalmente, em relação à atuação brasileira no Haiti e a cooperação tripartite para empregar em outros contextos, em particular, em Guiné-Bissau, os ensinamentos obtidos no Haiti39. Por outro lado, há alguns descontentamentos. Embora a missão tenha sido aprovada formalmente pelo governo haitiano, o que descarta a caracterização de ocupação, o Senado haitiano e alguns setores locais, com apoio de organizações da sociedade civil do Haiti, do Brasil (PSTU, CUT, Movimento dos Trabalhadores Sem Terra - MST) e de outras partes do mundo, têm se mobilizado para exigir à ONU que determine o fim do mandato e a retirada total e imediata das tropas do país40. Estes grupos acusam a MINUSTAH de atentar contra a soberania do 38 CONSEJO DE SEGURIDAD. Informe del Secretario General sobre la Misión de Estabilización de las Naciones Unidas en Haití. Disponível em: http://daccess-dds-ny.un.org/ doc/UNDOC/GEN/N12/473/18/PDF/N1247318.pdf?OpenElement . Acesso em 10 maio 2013. 39 Neste sentido, consultar: SILVA, Karine de Souza. The Strategic Partnership between Brazil and the European Union: the cooperation in United Nations peacekeeping and stabilization operations. In: The EU and Emerging Powers, 2013, Bruxelas. The EU and Emerging Powers, 2013. Disponível em: http://www.usaintlouis.be/fr/pdf/150e/paper_karine_de_souza.pdf 40 PSTU. Trê s prêm ios Nobel e c entena s de org a n i z aç õe s e x igem a ret irad a d a s t ropa s do Ha it i. Disponível em: http://www.pstu.org.br/node/16857. Acesso em 25 maio 2013. Ver também: MOVIMENTO DOS TRATABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Campanha faz jornada em defesa da retirada das tropas brasileiras do Haiti. Disponível em:

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Estado e a autodeterminação do povo e de alastrar a epidemia de cólera entre a população41. Entretanto, a ONU considera que ainda não há condições de encerrar a missão. O governo brasileiro concorda com o desengajamento gradativo, mas não completo42 uma vez que “o preço a pagar por retirar uma missão antes da hora é muito superior ao de permanecer por um tempo maior e assegurar o caráter sustentável da paz”.43 Não há mesmo condições de retirar o contingente de maneira total. Segundo dados registrados pela própria Polícia Nacional do Haiti (PNH) e pela MINUSTAH a violência ainda continua concentrada, sobretudo, nos grandes centros urbanos44. Apesar do fortalecimento da PNH, a instituição ainda não tem condições de assumir sozinha a responsabilidade pela salvaguarda da segurança doméstica. O país ainda continua enfrentando graves problemas humanitários. O número de pessoas deslocadas e desabrigadas por conta do terremoto diminuiu cerca de 73% desde 2010, mas ainda existem quase 390.000 (trezentos e noventa mil) deslocados, dependentes de ajuda externa para sobrevivência. Essa população, maior do que muitas cidades brasileiras, vive em 575 (quinhentos e setenta e cinco) acampamentos, onde as condições sanitárias são extremamente precárias, http://www.mst.org.br/content/campanha-faz-jornada-em-defesa-da-retirada-das-tropas-bra sileiras-do-haiti . Acesso em: 23 maio 2013. 41 Cerca de 2.120 pessoas morreram em decorrência do Cólera e cerca de 100 mil foram infectados. BBC BRASIL. Soldados da ONU levaram cólera ao Haiti, diz Relatório. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/12/101207_haiti_colera_ jf.shtml . Acesso em 13 maio 2013. 42 “Para Celso Amorim, o plano de retirada definitiva, no entanto, tem de ser feito com a coordenação da ONU e depende do investimento internacional.” BBC BRASIL. Amorim critica presença de tropas no Haiti por tempo indeterminado. Disponível em: http://www. bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/12/121215_amorim_russia_bg.shtml . Acesso em 25 maio 2013. 43 UZIEL, Eduardo. O Conselho de Segurança, as Operações de Manutenção da Paz e a Inserção do Brasil no Mecanismo de Segurança Coletiva das Nações Unidas. Brasília: FUNAG, 2010. p. 171. 44 CONSEJO DE SEGURIDAD. Informe del Secretario General sobre la Misión de Estabilización de las Naciones Unidas en Haití. Disponível em: http://daccess-dds-ny.un.org/ doc/UNDOC/GEN/N12/473/18/PDF/N1247318.pdf?OpenElement . Acesso em 10 maio 2013. volume

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e estão vulneráveis aos perigos naturais, a doenças infecciosas e todo a sorte de violências, principalmente contra as mulheres e crianças45. A MINUSTAH ainda recebe constantes denúncias de violações de direitos humanos, sendo que os mais corriqueiros são os casos de estupros de mulheres e crianças, tráfico de pessoas, homicídios, lesões provocadas por tiroteios entre gangues rivais, outros tipos de violências de gênero, etc46. Isso significa que o processo político ainda continua instável e as garantias de respeito aos direitos ainda não são efetivas. Além dos graves problemas de infra-estrutura e na rede de comunicações, a geração e distribuição de energia são ineficientes. As condições de higiene, de saneamento básico e saúde pública são extremamente precárias. Desta forma, ainda há dependência do concerto internacional para garantir a paz e a estabilidade da região. 5. conclusões Da análise da participação brasileira no mecanismo de segurança coletiva das Nações Unidas, depreende-se que o país prefere participar de missões que possam proporcionar alguns ganhos efetivos como experiência militar, aprofundamento de relações bilaterais (com países doadores de tropas, com o anfitrião e vizinhos) e apoio político em outros foros. Mas há uma clara preferência pelo envio de observadores, já que a cessão de tropas importa em grande esforço político, além de comprometimento financeiro e logístico. O Estado preocupa-se em participar de operações cujos mandatos são claros e exequíveis, com amplo respeito aos princípios de imparcialidade, da defesa da soberania, do uso da força somente em legítima defesa e do consentimento das partes. Ainda assim, é favorável às missões de paz que, como a MINUSTAH, 45 CONSEJO DE SEGURIDAD. Informe del Secretario General sobre la Misión de Estabilización de las Naciones Unidas en Haití. Disponível em: http://daccess-dds-ny.un.org/ doc/UNDOC/GEN/N12/473/18/PDF/N1247318.pdf?OpenElement . Acesso em 10 maio 2013. 46 CONSEJO DE SEGURIDAD. Informe del Secretario General sobre la Misión de Estabilización de las Naciones Unidas en Haití. Disponível em: http://daccess-dds-ny.un.org/ doc/UNDOC/GEN/N12/473/18/PDF/N1247318.pdf?OpenElement . Acesso em 10 maio 2013.

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abordam o conflito de maneira holística, uma vez que tentam lidar com as causas reais e que estabelecem um processo político que propicie um consenso sobre a paz. O Itamaraty milita pela inserção de elementos de peacebuilding nos mandatos e pela dotação de recursos humanos e financeiros adequados para que o Secretariado possa efetivar as ações especificadas no mandato. Efetivamente, o Brasil não somente é um dos grandes doadores de tropas, como também participa ativamente do C-34 (Comitê Especial de Operações de Manutenção da Paz) e das negociações levadas a cabo pelo Conselho de Segurança e pela Assembleia Geral. No caso da MINUSTAH, o elemento “segurança” foi associado a outras tarefas de apoio à população civil, diálogo político, reconstrução da infraestrutura, de comunicações e o fortalecimento institucional. Mas a multidimensionalidade é, de fato, complexa e difícil de ser implantada estritamente de acordo as orientações do Relatório Brahimi da ONU, em virtude, principalmente, de problemas domésticos, de dificuldades orçamentárias da missão e falhas estruturais da organização internacional. Assim, é necessário afirmar que embora a multidimensionalidade seja fundamental a um mandato, a ONU ainda não tem condições operacionais para efetivá-la totalmente. O momento de iniciar ou finalizar uma missão nem sempre é consensual porque depende das condições do terreno e das conveniências postas à mesa de negociações. É necessário atentar para o fato de que são inúmeros interesses escusos envolvidos em conflitos internacionais, como o haitiano. Há um jogo político cujas articulações perigosas envolvem Estados, os órgãos das Nações Unidas, as organizações não-governamentais e, sobretudo, as elites políticas e econômicas do Haiti. Qualquer análise que desmereça este fato, corre o risco de ser simplista. Entretanto, não se pode deixar de admitir a importância dos ações empreendidas pela MINUSTAH no país e dos esforços empreendidos no terreno pelas partes (nacionais e estrangeiras) que estão empenhadas em alcançar uma estabilidade sustentável e garantir uma paz a longo prazo. volume

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6. referências AMORIM, Celso. Conversas com jovens diplomatas. São Paulo: Benvirá, 2011. AMORIM, C. Discurso do Ministro de Estado das Relações Exteriores por ocasião da abertura do “Seminário de Alto Nível sobre Operações de Manutenção da Paz”. Disponível em Disponível em http://www.itamaraty.gov.br/sala-deimprensa/discursos-artigos-entrevistas-e-outras-comunicacoes/ministroestado-relacoes-exteriores/discurso-do-do-ministro-de-estado-das-relacoes. Acesso em 25 maio 2013. AMORIM, Celso. A diplomacia multilateral do Brasil: Um tributo a Rui Barbosa. Disponível em: http://www.funag.gov.br/biblioteca/dmdocuments/05 48.pdf. Acesso em 06 maio 2013. BBC BRASIL. Soldados da ONU levaram cólera ao Haiti, diz Relatório. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/12/101207_haiti_co lera_jf.shtml. Acesso em 13 maio 2013. BBC BRASIL. Amorim critica presença de tropas no Haiti por tempo indeterminado. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/20 12/12/ 121215_amorim_russia_bg.shtml . Acesso em 25 maio 2013. CONSEJO DE SEGURIDAD. Informe del Secretario General sobre la Misión de Estabilización de las Naciones Unidas en Haití. Disponível em: http://daccessdds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N12/473/18/PDF/N1247318. pdf?OpenElement. Acesso em 10 maio 2013. CONSEJO DE SEGURIDAD. Resolução 1529 (2004); Resolução 1542 (2004); Resolução 1576 (2004); Resolução 1601 (2005); Resolução1608 (2005); Resolução 1658 (2006); Resolução 1702 (2006); Resolução 1743 (2007); Resolução 1780 (2007); Resolução 1840 (2008); Resolução 1892 (2009); Resolução 1908 (2010); Resolução 1927 (2010); Resolução1944 (2010); Resolução 2012 (2011); e Resolução 2070 (2012). Disponíveis em: http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/minustah/resolutions.shtml. Acesso em 12 maio 2013. CONSEJO DE SEGURIDAD. Informe del Secretario General sobre la Misión de Estabilización de las Naciones Unidas en Haití. 240

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(S/2004/300). Disponível em: http://www.un.org/ga/search/view_doc. asp?symbol=S/2004/300&referer=http://www.un.org/en/peacekeeping/ missions/minustah/reports.shtml&Lang=S . Acesso em 29 julho 2013. DOYLE, Michael W.; SAMBANIS, Nicholas. International Peacebuilding: a theoretical and quantitative analysis. American Political Science Association, 2000. KAMINSKI, Anelise Gomes Vaz. As Limitações das Intervenções Humanitárias da ONU: o caso do Haiti. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-graduação em Sociologia Política. Florianópolis, 2011. FONTOURA, P. R. C. T. O Brasil e as Operações de Manutenção da Paz das Nações Unidas. Brasília: Funag, 1999. GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Desafios brasileiros na Era dos Gigantes. Rio de Janeiro, Contraponto, 2005. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Nota n. 291. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/cerimonia -de-adesao-do-brasil-ao-fundo-de . Acesso em 29 julho 2013. MOVIMENTO DOS TRATABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Campanha faz jornada em defesa da retirada das tropas brasileiras do Haiti. Disponível em: http://www.mst.org.br/content/campanha-faz-jornadaem-defesa-da-retirada-das-tropas-brasileiras-do-haiti . Acesso em: 23 maio 2013. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL. Em visita ao Brasil, chefe de Missão de Paz da ONU no Haiti discute retirada das tropas. Disponível em: http://www.onu.org.br/em-visita-ao-brasil-chefe-de-missao-de-paz-daonu-no-haiti-discute-retirada-das-tropas/ Acesso em 13 maio 2013. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Troop and police contributors. Disponível em: http://www.un.org/en/peacekeeping/resources/statistics/ contributors.shtml . Acesso em 06 maio 201. NAÇÕES UNIDAS. A/55/305. Relatório Brahimi, 2000. Disponível em: Acesso em julho 2013. volume

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PSTU. Três prêmios Nobel e centenas de organizações exigem a retirada das tropas do Haiti. Disponível em: http://www.pstu.org.br/node/16857. Acesso em 25 maio 2013. SOUSA, Sarah-Lea John. Brazil as an emerging security actor and its relations with the EU. European Security review. Number 43, March, 2009. SILVA, Karine de Souza; COSTA, Rogério. Organizações Internacionais de Integração Regional: União Europeia, Mercosul e UNASUL. Florianópolis: Ed UFSC, 2013. SILVA, Karine de Souza. The Strategic Partnership between Brazil and the European Union: the cooperation in United Nations peacekeeping and stabilization operations. In: The EU and Emerging Powers, 2013, Bruxelas. The EU and Emerging Powers, 2013. Disponível em: http://www. usaintlouis.be/fr/pdf/150e/paper_karine_de_souza.pdf UZIEL, Eduardo. O Conselho de Segurança, as Operações de Manutenção da Paz e a Inserção do Brasil no Mecanismo de Segurança Coletiva das Nações Unidas. Brasília: FUNAG, 2010. VALDÉS, Juan Gabriel. La MINUSTAH y la Reconstrucción del Estado haitiano. Santiago: Instituto de Estudios Internacionales, 2008. VERENHITATCH, Gabriela. D. A MINUSTAH e a política externa brasileira: motivações e conseqüências. Dissertação. Universidade Federal de Santa Maria. 2008.

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o povo como ator constitucional: diálogos institucionais, manifestações populares e o controle de constitucionalidade no br asil Leonardo Martins Wykrota1 Rafhael Frattari2

Resumo O trabalho aborda duas propostas teóricas de análise do espaço político e de implementação de direitos fundamentais. A primeira, encampada por Ricardo Sanín Restrepo, está voltada ao aspecto individual do excluído e da necessidade de se deixar aflorar o dissenso em uma democracia. Não confia, pois, nas instituições, em especial as jurídicas, as quais estariam contaminadas por uma racionalidade liberal universalizante e excludente. A segunda, é desenvolvida nos trabalhos de mestrado e doutorado de Conrado Hübner Mendes, com destaque para a necessidade de se repensar a crença irrefletida no judiciário como “última trincheira da democracia”. A segunda proposta tem o mérito de expandir o diálogo para o âmbito inter-institucional, a partir do exame crítico das teorias da última palavra e do diálogo, que busca conciliar. O exame de ambas as teorias têm como pano de fundo a Proposta de Emenda Constitucional n. 33, aprovada em abril de 2013 pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, a partir de uma crise entre o Legislativo e o Judiciário. Uma crise que, na perspectiva deste trabalho, expõe a necessidade de se repensar a legitimidade da atuação das Cortes em geral, especialmente do Supremo Tribunal Federal. Embora o trabalho não se fie às propostas teóricas que examina, reconhece o mérito de se chamar a atenção para a utilização política do direito e para a necessidade de se aprimorar o diálogo intra e interinstitucional. Tece, contudo, uma crítica a tais propostas, apoiado na preocupação do procedimentalismo com a legitimidade das decisões 1 Mestre em Direito Processual e Doutorando em Direito Público pela PUC-MG. Professor do Instituto Metodista Izabela Hendrix. Advogado. 2 Doutor e mestre em Direito pela UFMG. Professor dos cursos de mestrado e de graduação em Direito da Universidade Fumec/MG. volume

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judiciais. Uma crítica que, no entender dos autores, passou ao largo da maioria das discussões travadas sobre a PEC 33.

Palavras-chave PEC33; Controle de constitucionalidade; Constituição criptografada; Diálogo institucional.

Abstract This paper addresses two theoretical proposals of analysis of the political space and the law itself, considered as a science, concerning the implementation of fundamental rights. The first one, proposed by Ricardo Sanin Restrepo, is geared to the individual aspect of the excluded and the need to let flourish dissent in a democracy. It does not trust, then, in institutions, in particular the legal ones, which would be contaminated by a universalizing and exclusionary liberal rationality. The second is developed by Conrado Hübner Mendes in his masters and doctorate thesis, highlighting the need to rethink the thoughtless belief in the judiciary as “last democracy ditch”. The second one finds its merits in expanding the dialogue for the inter-institutional framework, from the critical exam of the theories on the last word and dialogue, which it seeks to reconcile. The examination of both theories have as background the Proposal of Constitutional Amendment n. 33 (“PEC 33”), approved in April 2013 by the Commission of Constitution and Justice of the Brazilian House of Representatives, from a crisis between the legislative and judicial powers. A crisis that, in the perspective of this paper, exposes a need to rethink the legitimacy of the action of the courts in general, particularly the Supreme Court. Although the paper do not rely on the theoretical propositions that it exams, it recognizes the merit of drawing attention to the political use of the law and the need to enhance intra and interinstitutional dialogue. It does not deny, however, the criticism to such proposals, based on the concerns of proceduralism with the legitimacy of judicial decisions. A criticism that, in the opinion of the authors, was ignored by the majority of discussions on the PEC 33.

Key words PEC33; Judicial review; Encrypted constitution; Institutional dialogue. 244

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1. introdução Em 2013, o Brasil foi surpreendido por diversas manifestações populares, que levaram mais de um milhão de pessoas às ruas de diversas cidades do país. A população parece ter assumido o seu papel de interprete da Constituição, concretizando, em parte, a noção de sociedade aberta de que fala Peter Häberle (1997). Um tema recorrente dentre as principais reinvindicações populares foi a vigorosa campanha contra a Proposta de Emenda à Constituição 33 de 2011 – PEC 33 – que propunha a alteração substancial do controle de constitucionalidade, submetendo o Supremo Tribunal Federal ao Poder Legislativo. A PEC33 já havia atraído os holofotes quando de sua aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados (CCJ) em 24 de 2013. Na ocasião, acirraram-se os ânimos entre o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional, diante da clara tentativa deste último em responder com a aprovação da PEC às recentes atitudes do primeiro.3 Sem ingressar no mérito da questionável constitucionalidade da Proposta, o fato é que essa iniciativa da Câmara dos Deputados expôs uma crise de legitimidade que, como nos lembra MENDES (2008), conquanto já estivesse presente no nascedouro do judicial review, ficou como um ponto cego da grande maioria da doutrina constitucional brasileira.4 3 É verdade que a PEC foi proposta em 2011, por iniciativa do Deputado Nazareno Fonteles (PT-PI), quando a conjuntura política não estava tão acirrada como no período em que foi enviada à Comissão de Constituição e Justiça, quando ainda marcavam as mídias o julgamento do mensalão, o debate sobre royalties do petróleo dentre outros assuntos. Mas em dezembro de 2012, o então presidente do Supremo, Joaquim Barbosa, havia determinado a cassação de deputados condenados no mensalão João Paulo Cunha (PT), Valdemar da Costa Neto (PR) e Pedro Henry (PP), a despeito de julgamento pelo Congresso; e no mesmo mês de abril, Gilmar Mendes havia deferido liminar para suspender o andamento da proposta de autoria do deputado Edinho Araújo (PMDB-SP) que impedia que parlamentares, ao mudarem de partido no meio do mandato, transferissem para a nova agremiação parte do fundo partidário e do tempo no rádio e na TV da sigla de origem. Essas circunstâncias se somaram aos relatos de ativismo judicial que já constavam da justificativa da PEC 33. 4 A esse respeito, MENDES (2008) afirma que “[a] teoria constitucional é razoavelmente unânime na consideração das virtudes do controle de constitucionalidade. Nos Estados Unidos, país que fundou e que tem hoje a tradição mais consolidada e elogiada da instituição, ao contrário do que pode aparentar, um conjunto respeitado de estudiosos sempre criticou, volume

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Em certa medida, este trabalho busca resgatar essa questão, discutindo as concepções que tratam dessa crise. Com isso, busca-se testar a hipótese de que o controle de constitucionalidade deve ser encarado como um ato judicial e não político, tal qual defendem BAHIA; CATTONI e NUNES (2013), e também de CRUZ (2004) e CRUZ, MEYER e RODRIGUES (2012). A questão é interessante não só pelo relevante pano de fundo históricohermenêutico de concretização de uma sociedade aberta de intérpretes constitucionais, mas, principalmente, por colocar em discussão uma crise que esconde graves problemas de legitimidade no controle de constitucionalidade brasileiro. Não serão exploradas, contudo, questões específicas do dia a dia da revisão judicial no Brasil.5 O debate será travado sob o ângulo específico de duas propostas teóricas a respeito da legitimidade do controle de constitucionalidade, na expectativa de problematizar a convenção acerca do papel do Supremo Tribunal Federal. A metodologia utilizada para enfrentar essa questão foi a revisão bibliográfica de obras que resgataram esse debate sobre o judicial review, trazido à tona pela PEC 33, bem como o exame pontual de casos decididos pelo Supremo Tribunal Federal e da própria estrutura normativa da Proposta de Emenda Constitucional aqui discutida. Como técnica, adotou-se a análise de conteúdo6, pela qual se buscou: a) definir as condições de produção dos discursos analisados, sejam eles trabalhos teóricos, com maior ou menor veemência, a extensão da revisão judicial e os relevantes problemas acerca de sua legitimidade. Por aqui, o consenso é tão disseminado que chega a inibir ou a fragilizar a tentativa de pensar diferentemente.” (MENDES, 2008, p. 144). 5 Questões interessantes como a modulação no tempo das decisões que reconhecem a inconstitucionalidade de leis ou a existência ou não de um processo “abstrato” no controle de constitucionalidade não serão objeto de exame, mas encontram, dentre outros, assuntos rico debate na obra de CRUZ, MEYER e RODRIGUES (2012). 6 A análise discursiva de conteúdo ora é tratada como método em sentido amplo, ora como técnica de pesquisa. Sobre o tema, cf. DEMO (2001) e MINAYO (2004). Para efeitos deste trabalho, buscou-se verificar as condições de produção de cada discurso (texto doutrinário, legislação, jurisprudência), para que as informações sejam analisadas de acordo com as inclinações teóricas, políticas e ideológicas dos seus produtores, como também para averiguar eventuais contextos histórico-sociais relevantes. Após a análise textual preliminar, buscouse identificar as unidades de informação que seriam requeridas no trabalho, quase sempre retiradas dos objetivos específicos já descritos. De posse de uma infinidade de “unidades de informação”, iniciou-se a tarefa hermenêutica propriamente dita. A terceira etapa partiu das

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leis ou decisões judiciais; b) identificar as unidades de informação relevantes para a investigação e c) relacioná-las com o problema sugerido, tendo como pano de fundo a legitimidade do controle de Constitucionalidade à luz da Constituição Federal de 1988. 2. o interesse das manifestações populares pela pec 33 A PEC 33 foi apresentada ao Congresso Nacional com a justificativa de combater a judicialização das relações sociais e o ativismo judicial. No entender da Proposta, haveria uma “hipertrofia do Poder Judiciário”, responsável por absorver boa parte dos debates de questões relevantes próprios do âmbito legislativo, em prejuízo da democracia.7 Para enfrentar essa situação, a PEC propõe: (a) alterar o quórum para declaração de inconstitucionalidade de leis nos tribunais;8 (b) condicionar o efeito vinculante de súmulas aprovadas pelo Supremo Tribunal Federal à aprovação pelo Poder Legislativo;9 (c) e submeter a decisão sobre a inconstitucionalidade de emendas à Constituição ao Congresso Nacional10. unidades de informação recolhidas nos textos doutrinários, nas posições jurisprudenciais e nas normas positivas, relacionando-as com o problema escolhido. 7 Nesse sentido, a justificativa da PEC 33 afirma que: “[...] Há muito o STF deixou de ser um legislador negativo e passou a ser um legislador positivo. E diga-se, sem legitimidade eleitoral. O certo é que o Supremo vem se tornando um superlegislativo” (BRASIL, 2011). 8 Artigo 1º. O art. 97 da Constituição Federal de 1988 passará a vigorar com a seguinte redação:”Art. 97 Somente pelo voto de quatro quintos de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou do ato normativo do poder público. ...(NR)”. 9 Artigo 2º. O art. 103-A da Constituição Federal de 1988 passará a vigorar com a seguinte redação: “Art. 103-A O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de quatro quintos de seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, propor súmula que, após aprovação pelo Congresso Nacional, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.” [...] 10 Artigo 3º. O art. 102 da Constituição Federal de 1988 passará a vigorar acrescido dos seguintes parágrafos: “Art. 102. ... ... § 2º-A As decisões definitivas de mérito proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nas ações diretas de inconstitucionalidade que declarem a inconstitucionalidade material de emendas à Constituição Federal não produzem imediato efeito vinculante e eficácia contra todos, e serão encaminhadas à apreciação do Congresso Nacional que, manifestando-se contrariamente à decisão judicial, deverá submeter a controvérsia à consulta popular. volume

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Ao ser aprovada na CCJ com o endosso de suas justificativas,11 a PEC suscitou fortes reações, especialmente entre judiciário e legislativo. Mas o assunto não ficou circunscrito às farpas trocadas de lado a lado. Também as manifestações que ganharam as ruas no período da Copa das Confederações foram implacáveis ao endereçar, à unanimidade, um vigoroso “não!” à PEC 33. É bem possível que essa ojeriza seja resultado dos episódios midiáticos que remontam à aprovação da Proposta pela CCJ. Foram inúmeros os comentários dos jornais sobre o tema. O Ministro Gilmar Mendes chegou a declarar no dia seguinte à aprovação: “Não há nenhuma dúvida, ela é inconstitucional do começo ao fim, de Deus ao último constituinte que assinou a Constituição. É evidente que é isso. Eles [CCJ] rasgaram a Constituição. Se um dia essa emenda vier a ser aprovada é melhor que se feche o Supremo Tribunal Federal. É disso que se cuida.”12

A dureza dessa colocação, porém, empresta uma falsa singeleza ao tema e reforça a perspectiva de um modelo de controle de constitucionalidade como algo simplesmente dado pela Constituição e praticamente imune a críticas. Essa perspectiva deve ser vista com cuidado, pois afasta as discussões sobre a legitimidade das decisões de natureza constitucional e de apropriação do espaço político pelo direito. 11 O Relator da Proposta foi o Deputado João Campos. A aprovação se deu, dentre outras justificativas, com apoio nos seguintes argumentos: “[...] submeter ao Congresso Nacional a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a inconstitucionalidade de proposta de emenda à Constituição [... é] manifesta inovação. Ao valorizar a soberania popular, reforçando o comando constitucional previsto no parágrafo único do art.1º da CF, contribui sobremaneira para o diálogo e a harmonia entre os Poderes Judiciário e Legislativo, bem como preserva a separação dos Poderes. E deixa claro que no caso de conflito entre estes Poderes, a decisão cabe soberanamente ao Povo, através de consulta popular. No mais, importa salientar que a quadra atual é, sem dúvida, de exacerbado ativismo judicial da Constituição. Nesse contexto, a autocontenção pelos tribunais (“judicial self-restraint”) não tem sido capaz de deter o protagonismo do Poder Judiciário. Essa circunstância apenas reforça a necessidade de alterações constitucionais, com vistas a valorizar o papel do Poder Legislativo de titular soberano da função de legislar. Acresce que não pode o Congresso Nacional abdicar do zelo de preservar sua competência legislativa em face da atribuição normativa de outros Poderes, consoante o que dispõe o art. 49, XI, da Constituição da República.” (BRASIL, 2011). 12 “Se PEC 33 passar, ‘melhor que se feche o Supremo’, diz Gilmar Mendes”. G1. reportagem disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/04/se-pec-33-passar-melhor-quese-feche-o-supremo-diz-gilmar-mendes.html. Acesso em 18.07.2013)

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Em artigo intitulado “A Emenda e o Supremo”, Virgílio Afonso da Silva (SILVA, 2013) expõe a ferida: A PEC analisada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara é polêmica, com certeza. Sua constitucionalidade é questionável, não há dúvidas. Mas, do ponto de vista jurídico, da separação de poderes e do direito comparado, a decisão do STF, que bloqueou o debate no Senado sobre as novas regras de acesso dos partidos políticos à TV e ao fundo partidário, é muito mais chocante. (SILVA, 2013)

A favor dessa atitude do Supremo, advoga-se (e.g. TELES FILHO, 2013) a prerrogativa de interferência no processamento de lei ou emenda constitucional, quando a inconstitucionalidade estiver supostamente presente já no andamento do processo legislativo, com a intenção de evitar a própria deliberação de ato normativo contrário a direitos fundamentais. Essa prerrogativa estaria confirmada pela jurisprudência13 do próprio Supremo e se estriba no alegado direito público subjetivo de não se ver deliberada matéria cujo processo legislativo seja vedado pela Constituição como decorrência da proteção das cláusulas pétreas (TELES FILHO, 2013). Ninguém duvida da necessidade de proteção dos direitos fundamentais, mas como evitar que essa justificativa se transforme numa carta em branco para interferência no jogo político das deliberações de um parlamento pelo Judiciário? Em outros termos: qual o papel do controle de constitucionalidade e do próprio direito frente ao espaço político em uma democracia? São muitos os desdobramentos que se extraem desses questionamentos. As teses de Dworkin, Waldron e Habermas, para ficar apenas nestes, oferecem cada

13 Em 1996, o ministro Marco Aurélio concedeu liminar suspendendo o trâmite da PEC 33A/95, a Reforma da Previdência. A liminar havia sido requerida pelos deputados federais Jandira Feghalli, Humberto Costa, Aldo Rebelo, Agnelo Queiroz, Miro Teixeira, entre outros [MS 22.503 MC, 12.4.1996]. Já em 1999, o ministro Néri da Silveira reconheceu o cabimento do mandado de segurança impetrado pelo deputado federal José Genoíno pedindo a suspensão da PEC 1/88, que instituía a pena de morte no Brasil. Apesar de reconhecido o cabimento, o pedido foi julgado prejudicado[MS 21.311, 13.05.1999]” (TELES FILHO, 2013). volume

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qual sua resposta.14 Não é nossa intenção, porém, enfrentar o extenso leque de possíveis discussões que elas oferecem. Opta-se, aqui, tão somente pelo exame crítico das propostas de Ricardo Sanin Restrepo (HICAPIE e RESTREPO, 2012; RESTREPO, 2012) e Conrado Hübner Mendes (MENDES, 2008 e 2008a) e suas visões sobre o papel da revisão judicial na democracia, em estreita conexão com a discussão de fundo da PEC 33. Nessa trilha, observa-se que ambos retomam as origens do controle de constitucionalidade no direito norte americano, para, cada um ao seu modo, expor a ferida na legitimidade democrática desse mecanismo. Algo que o vigoroso “não” das ruas talvez não tenha percebido. Contudo, é importante ressaltar, desde logo, que não nos filiamos a nenhuma dessas propostas, tampouco pretendemos defender a constitucionalidade da PEC 33. Apenas reconhecemos que essas ideias ajudam a substituir a questionável unanimidade por detrás do “não” por um debate construtivo sobre os avanços do nosso modelo de controle de constitucionalidade nestes últimos vinte e cinco anos. 3. constituição criptogr afada, o papel do judicial review na r acionalidade liber al e os problemas da teoria dialógica segundo restrepo A PEC 33 deixa claro em sua justificativa o conflito institucional entre o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, ou entre o político e o jurídico, para simplificar. Diante desse enfrentamento, o mais comum é ver na revisão judicial a proteção aos arroubos políticos de uma maioria legiferante (papel contramajoritário). Nessa lógica, os direitos fundamentais seriam a linha de corte, a baliza para se aferir a atuação política da maioria (papel garantidor). Em caso de excesso, o direito atuaria. A proposta de Restrepo (HINCAPÍE e RESTREPO, 2012; RETREPO, 2012) pretende questionar ferozmente essa circunstância, a partir de premissas teóricas bem delineadas, conforme se vê a seguir.15 14 A própria PEC 33 se apoia nas teorias de Waldron para responder essas questões, mas, como veremos, parece recair na mesma armadilha contra a qual se insurge, ao pretender um controle político ex post das decisões do Supremo. 15 Ainda que entendamos que “[d]ireitos fundamentais não são limites externos à formação legítima do poder político, mas são constitutivos da geração legitima da opinião e da vontade

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3.1. constituição criptogr afada Em artigo intitulado La constitución encriptada: Nuevas formas de emancipación del poder global, HINCAPIE e RESTREPO (2012) procuram conectar as principais teses de estudos críticos de direito, a economia-política global, a geopolítica crítica e a teoria política da descolonialidade em torno de um conceito unificador que escape da hegemonia16 dos modelos eurocêntricos de discussão desses assuntos: a “constituição criptografada” (“constitución encriptada”).17 Tentam mostrar que, por força dos imperativos do capitalismo, haveria total dependência do indivíduo em relação ao mercado e que os processos de acumulação de capital e de integração global não funcionariam simplesmente para estreitar laços globais e sim para reforçar ou levantar novos muros e divisões. O ato de se emancipar, nessa perspectiva, se dedicaria à libertação dos indivíduos dessa dependência, contra as forças de um liberalismo subserviente ao capitalismo. Para eles, o liberalismo seria uma força encarregada de impedir a democracia e de neutralizar quaisquer ameaças às condições de existência do capitalismo: Contra la democracia, el liberalismo ha actuado, específicamente, o bien extirpándola por completo y previniendo su reaparición maligna, o en sus formas más sofisticadas y eficaces, en un gesto de torsión simbólica del Estado liberal, apoderándose de su nombre como fórmula para amansarla y transformarla en su propia negación y preservando la como un signo que sirve más como un placebo, cuando no como anestésico político. (HINCAPÍE e RESTREPO, 2012, p. 102) – são criados pelo processo político, mas são também, co-originariamente, condições de possibilidade deste” (BAHIA, CATTONI e NUNES; 2013), o aspecto ideológico por detrás da atuação do próprio direito permanece oculto. A escolha das propostas de MENDES e RESTREPO tem o objetivo de discutir esse ponto cego e não tanto o modus operandi da proteção dos direitos fundamentais. 16 Sobre a hegemonia eurocêntrica-norte-americana confira-se, por exemplo, José Luiz Quadros Magalhães (2013). 17 A conexão com a política e com a economia global se mostra já na colocação do conceito de constituição criptografada conceito no contexto de uma “soberania porosa”, entendida como: “[…] la transformación progresiva de la soberanía a favor de métodos que acompañan la expansión del imperio del capital. En general, se trata de las nuevas políticas de seguridad que determinan usos y ámbitos inéditos de aplicación de la fuerza en directa consonancia con la defensa de los intereses de empresas multinacionales que favorecen la dependencia total de cualquier forma de vida al mercado global” (HINCAPÍE e RESTREPO, 2012, p. 98) volume

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Nesse processo de negação da democracia, as constituições teriam um papel primordialmente contra-democrático, com três agendas claras: (a) uma intensa e progressiva privatização do público;18 (b) uma permanente despolitização dos conflitos sociais19 e (c) a promessa falida de inclusão democrática20 (HINCAPÍE e RESTREPO, 2012, p. 102-103). Sob essa perspectiva, a constituição dos Estados Unidos da América (EUA) seria o esforço mais sistemático e sofisticado (também o mais bem sucedido) para desmantelar a democracia e sua ameaça constante sobre o capitalismo, a partir dessas agendas.21 Diante dela e da tradição da interpretação constitucional (isenta do caráter político) a clássica divisão do texto constitucional em uma 18 O liberalismo promoveria a união entre economia-política e o direito para garantir a existência de duas esferas: (i) uma de proteção e garantias com alguma operacionalidade e (ii) outra na qual o direito evapora progressivamente, submetendo indivíduos e relações sociais às leis de mercado: o direito apareceria e desapareceria segundo relações de mercado, que se torna um dos fundamentos de negociação da democracia. (HINCAPÍE e RESTREPO, 2012, p. 102-103) 19 A economia-política e o direito seriam os responsáveis por retirar o conteúdo político do capitalismo. A própria história do capitalismo e do liberalismo passa a ser imposta como algo natural e necessário. O direito liberal garante a despolitização de todo e qualquer conflito, submetendo-o a intensas zonas de codificação. Diferenças e assimetrias deixariam de ser problemas de inequidade, justiça ou opressão, para se tornarem normalizações controladas por super-esquemas jurídicos (HINCAPÍE e RESTREPO, 2012, p. 103-104). 20 Para HINCAPÍE e RESTETRO (2012) a promessa falida de inclusão capitaneada por um discurso de direitos fundamentais destilado como axioma jurídico imposto seria o auge da ideologia liberal. O reconhecimento, a identidade de todo ser na modernidade, se transformaria em algo jurídico. O “ser” excluído passa a um “não-ser” (não-consumidor, nãotrabalhador, não-branco, não-votante). Assim se imporia (velada e arbitrariamente) o modelo de cultura europeu-ocidental como um universal que “demarca el adentro y afuera de la verdad política para luego fijar el modelo inflexible del ser de los derechos humanos” (HINCAPÍE e RESTREPO, 2012, p. 105). Daí decorreria que “La teoría liberal en su glorificación del modelo individualista niega la dependencia del ser con el mundo, borra artificialmente la alteridad e impone la aberración según la cual el ser es simétrico e idéntico con su deseo de identidad en la norma.14 El individualismo y utilitarismo marcado de los derechos olvida que cada ser es un mundo en sí mismo que se construye en común con otros seres. El reproche aquí es que el modelo individualista fuerza a que todas las diferencias desaparezcan en pro de un modelo uniforme y detallado.” (HINCAPÍE e RESTREPO, 2012, p. 105) 21 A república instituída nos EUA esconderia o medo dos founding fathers de que a democracia levasse à desordem infinita e não seria apenas a antítese da monarquia, mas também a antítese da democracia em pelo menos dois sentidos: (a) criaria um estado de exceção permanente no âmbito internacional conferindo validade e legitimidade aos dispositivos legais nesse âmbito pelo Império do capital; (b) promoveria um giro pelo qual a democracia representativa, escorada no direito ao voto, subtrairia do indivíduo seu caráter crítico e político, na medida em que a representação parlamentar permitiria que uma fração da classe dominante fosse substituída por outra sem que alterados os fundamentos da ordem social (HINCAPÍE e RESTETRO, 2012, p. 105-107.

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parte dogmática e outra sistemática ou orgânica deveria ser repensada. O mais adequado seria operar com (a) uma parte transparente da constituição: “[...] abierta a la sociedad en la medida en que sus disposiciones son medianamente comprensibles, una literatura repleta de principios, garantías y derechos que permiten que los individuos e incluso los grupos interactúen con los poderes constituidos y logren la protección de sus derechos, la inclusión de sus identidades y la defensa de la constitución misma. (HINCAPÍE e RESTREPO, 2012, p. 111);

e (b) uma parte criptografada, responsável por “desativar” a parte transparente, pela conversão da interpretação do texto constitucional em capital exclusivo de especialistas (iniciados).22 Em verdade, a parte transparente já seria desenhada para ser desativada pela parte criptografada, a partir da crescente especialização da linguagem técnico-jurídica dos procedimentos e regras que levam à decisão de âmbito constitucional. (HINCAPÍE e RESTREPO, 2012, p. 111). Assim, decisões que são notadamente ideológicas seriam tomadas como se fossem decisões puramente técnicas, provenientes de uma aplicação meticulosa de métodos científicos e sem possibilidade de oposição. O engodo consistiria em se criar uma fantasia, um fetiche de onipotência e infalibilidade, no qual só os especialistas poderiam entender e, portanto, resolver os problemas mais complexos da sociedade como as questões climáticas globais, as bolhas financeiras, etc. (HINCAPÍE e RESTREPO, 2012, p. 112).23 3.2. o papel do judicial review e os problemas da teoria dialógica O processo de criptografia seria derivado do próprio controle de constitucionalidade, pois, ao contrário do que teria se dado em países da Eu22 A ideia de criptografia supõe uma chave criptográfica. Um código que, numa ponta, codifica e, n’outra, descodifica a informação que permanece sempre visível (embora codificada), sendo, pois, um fenômeno distinto do secreto. Na codificação, se oculta apenas o significado e não o texto. Isso permite que o emprego da criptografia dissimule manifestações sensíveis de poder. O exercício do poder como fenômeno se tornaria indecifrável para os não-especialistas, os não-iniciados, na medida em que se torna técnico-jurídico. 23 A criptografia é colocada como um problema endógeno do sistema jurídico, umbilicalmente ligado à racionalidade liberal e sem condições, portanto, de ser resolvido “de dentro”, ou seja, a partir desse mesmo sistema. Nem mesmo a proposta dialógica de Habermas escaparia dessa circunstância e, por isso, seria incapaz de resolver os problemas de desigualdade e exclusão atuais do capitalismo. A solução seria apostar em uma “democracia radical”. volume

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ropa, nos EUA, o fenômeno constitucional seria co-originário ao Estado, criando a ilusão de que o Estado e a sociedade nasceriam da Constituição. (HINCAPÍE e RESTREPO, 2012, p. 102-105) Essa ilusão de co-originariedade invocada por Restrepo (2012) faria com que o “we the people” acabasse dissolvido no poder constituído. Haveria uma transformação do político em jurídico, cujo expoente seria a revisão judicial inaugurada em Marbury vs. Madson. A lógica seria colocar a Corte Suprema num lugar de neutralização dos conflitos políticos, já que detentora da “última palavra”, para converter a constituição política em técnico-jurídica. 24 Desde a decisão em Marbury vs. Madison, portanto, o conteúdo político da constituição se comprimiria e transformaria num conteúdo notadamente técnicojurídico. Daí em diante, tomaria forma uma tradição na qual a metodologia de interpretação constitucional seria reduzida à interpretação da constituição política, como se fosse um conjunto de regras jurídicas convencionais, até que apenas um punhado de especialistas (“en las artes oscuras de la adjudicación”) pudesse operar dentro de uma constituição já sem qualquer brilho político. (HINCAPÍE e RESTREPO, 2012, p. 110) Por tudo isso, Restrepo (2012) acha um devaneio infantil acreditar que um Tribunal possa, a partir da interpretação do texto constitucional, mudar a realidade de um sistema edificado sobre a ganância.25 Seria preciso continuar na luta por justiça social, mas Restrepo questiona a capacidade de um discurso constitucional nacional para tanto.26 A teoria dialógica de Habermas, enquanto modelo teórico dominante de resposta a esse questionamento, é seu alvo. 24 Entretanto, para se entender esse cenário, seria fundamental compreender que “[…] el marco de legalidad constitucional que define la labor interpretativa de los jueces y expertos en estos dispositivos antidemocráticos está anclada en una forma particular de libertad, la libertad del liberalismo condensada en la propiedad privada de la tradición kantiana de los derechos naturales como pertenecientes a un sujeto autónomo que se produce fuera de lo social, de la mano de lo que podemos categorizar como una simulación egalitaria que presupone la igualdad entre seres políticamente asimétricos, cuando no la igualdad forzada jurídicamente entre incluidos y excluidos como punto de partida de la protección de los derechos e índice de inclusión al sistema. (HINCAPÍE e RESTREPO, 2012, p. 110) 25 Que más narcisismo y desvarío infantil que creer que nueve personas interpretando un texto sagrado local van a cambiar una realidad poseída por un sistema que se edifica en la codicia. (RESTREPO, 2012, p. 265). 26 “Por supuesto el mensaje es que la lucha por la justicia social debe continuar, la pregunta es por la capacidad que posee un discurso constitucional nacional para concretarlo”. (RESTREPO, 2012, p. 265)

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Entende que essa opção teórica não se adequa à realidade de países emergentes,27 equivocando-se ao tratar a democracia como um processo deliberativo dentro de uma comunidade dialógica que concretiza um consenso racional (RESTREPO, 2012, p. 266-268). O processo engendrado por Habermas afastaria o conflito como elemento constitutivo da política.28 Essa seria a primeira crítica à teoria dialógica, explicada pela crença de que o sujeito em Habermas seria colhido fora da sociedade “[...] como um robô que domina a linguagem antes que a linguagem sequer seja social” (RESTREPO, 2012, p.269. tradução nossa). Apareceria como alguém já pronto para a ação política, razoável (sensato) e que aderiria desde o início aos fundamentos do liberalismo, que, por sua vez, funcionam como pressupostos para se alcançar o consenso, numa patologia especial de circularidade.29 RESTREPO (2012) acredita que a intenção da teoria dialógica seria anular ficticiamente as assimetrias e o conflito, como que desconsiderando o passado histórico pela criação de presunções de igualdade e simetria entre os dialogadores. Problemas como assimetria e desigualdade sociais seriam abordados “por fora” de seu conteúdo político, como meras formas do discurso. Isso intensificaria 27 “Con toda sinceridad, creo que la teoría dialógica es tan desencajada y absurda para nuestra realidad política colonial y marginal, que de no ser por que goza de un inmenso prestigio global, no merecería tenerse en cuenta, pero es precisamente ese prestigio global y su intensa aplicación en nuestras prácticas políticas y legales lo que nos debería alarmar y servir como primer rastro de sospecha sobre su sustrato ideológico particular, que el mismo Habermas anuncia con increíble arrogancia cuando afirma que el primer mundo (occidente) debería servir como meridiano del presente, como medida de todos los demás mundos que deberían someter sus avances y desarrollos a la regla del primer mundo”. (RESTREPO, 2012, p. 266) 28 Um processo no qual os participantes abandonariam seus interesses particulares para que seu discurso possa coincidir com o (“ser”) universal e, assim, se alcançar uma deliberação racional em termos razoáveis e, consequentemente, uma decisão unânime que refletisse plenamente o interesse de todos (RESTREPO, 2012, p.268). 29 “En términos netamente lógicos el consenso alcanzado es correcto sí y solo sí se aceptan las premisas reducidas del liberalismo como idea regulativa, como esquema que controla internamente la diversidad de posibilidades atadas a un desenlace. Se trata entonces de formalismo en su sentido más lato que se despliega en algo como esto: El consenso, para que sea moralmente válido debe seguir un proceso que está informado por unos principios como idea regulativa, el consenso solo se puede alcanzar mediante la intervención de dialogantes razonables, pero solo cuenta como razonable quien se adhiera desde el principio a la validez de la idea regulativa del proceso, pero la idea regulativa del proceso es simplemente la cara enmascarada del liberalismo, pues si no se suscriben sus valores, el proceso y el consenso carecen de sentido pues serían irrazonables”. (RESTREPO, 2012, p.270) volume

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a própria desigualdade, então adstrita apenas ao âmbito discursivo (igualdade discursiva). Para RESTREPO (2012), seria preciso começar num passo anterior ao da deliberação discursiva, pois a preocupação não seria propriamente sobre como deliberam sujeitos livres e iguais, mas sim sobre como se poderia chegar a discutir sobre a liberdade e a igualdade em realidades antagônicas e desiguais.30 Apoiado em Chantall Mouffe, sustenta que o grande vício da teoria dialógica estaria no fato de que a discussão de sua validade mesma somente poderia se dar sob suas próprias premissas discursivas (RESTREPO, 2012, p. 273). A ideia de uma constituição como sistema fechado e autoatributivo, por sua vez, seria a “mitologia fundamental do liberalismo” (RESTREPO, 2012, p. 275). Acabaria criando uma pós-política em que só seria admitida a discussão pela pressuposição de regras discursivas impostas unilateralmente, em que qualquer domínio político que estabelecesse diferenças é extirpado. O próprio “respeito multiculturalista” seria uma forma de afirmação de superioridade, daquele que se coloca num lugar vazio e privilegiado de universal para apreciar outras culturas particulares. (RESTREPO, 2012, p. 275-276) Nesse cenário, RESTREPO vê um abismo entre poder constituinte e constituído. No primeiro, estaria o momento político, incompreensível e fora da normalidade do sistema anterior. No segundo, estaria o jurídico, explicado e encapsulado dentro de sua própria lógica e valores. O lugar do poder constituinte seria o lugar da crise. Uma crise que se manifesta na impossibilidade de síntese histórica entre poder constituinte e constituído (RESTREPO, 2012, p. 277). A obra do liberalismo seria dissolver o poder constituinte no espaço representacional do poder constituído, evitando a subversão da ordem constituída e levando a um quadro no qual: “El sueño liberal del Estado al servicio de la sociedad se convierte en la pesadilla de lo social al servicio del Estado y el Estado como control de la desmesura de lo democrático.” (RESTREPO, 2012, p. 278) 30 “El primer requisito de un verdadero dialogo debe ser presuponer la asimetría y la parcialidad, si no, la historia particular de los dialogantes es ecualizada de una manera artificiosa, y es aquí donde podemos concluir que la gran preocupación subyacente de Habermas es forzar fraudulentamente la decisión de unos pocos, de una élite, a nombre de la colectividad, del común, se trata así de una usurpación del espacio colectivo”. (RESTREPO, 2012, p. 272)

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O combate a esse quadro exigiria levar a democracia a sério, adotá-la como única política, cujo fundamento passa a ser o dissenso e não o consenso, já que “[l]os consensos son prefabricados, el disenso no es la confrontación entre intereses y opiniones, sino la manifestación de la distancia que existe entre lo sensible y su enunciación que hace colisionar los mundos, es la distancia insalvable entre poder constituido y poder constituyente” (RESTREPO, 2012, p. 283) Trata-se, pois, de uma aposta que procura desconstruir os fundamentos atuais do modelo liberal, voltando-se para o dissenso, numa oposição forte entre constitucionalismo e democracia. É, sem dúvida, uma aposta radical e que ainda carece de maiores explicações: como, afinal, se comporia o dissenso? Acreditar que essa composição simplesmente emerja do conflito não parece de acordo com a experiência histórica, rica de exemplos nos quais o dissenso serviu como escada para a subida de regimes totalitários. As críticas a essa proposta serão detalhadas mais adiante. Por ora, cabe examinar uma alternativa menos radical. 4. direitos fundamentais, separ ação de poderes e deliber ação A oposição entre constitucionalismo e democracia em MENDES (2008 e 2008a) é mais branda,31 que se mostra mais preocupado em questionar o status do Supremo Tribunal Federal como “última trincheira da democracia” (e a revisão judicial a arma da corte entrincheirada contra os arroubos do legislador), especialmente contra emendas constitucionais. 32 Para isso, trabalha tanto numa perspectiva mais de curto prazo, preocupada com cada “rodada procedimental”33, 31 MENDES (2008 e 2008a) aceita compatibilizar um governo de maioria (primazia do parlamento) com direitos fundamentais. Advoga que a maioria das democracias constitucionais contemporâneas apresentaria alguma versão da explicação de Dworkin para a divisão de trabalho entre legislativo e corte suprema: a defesa dos direitos fundamentais seria a tarefa principal das cortes (“fórum do princípio”) e a deliberação de políticas públicas (“policies”) o papel principal dos parlamentos. 32 Para MENDES, “[...] as objeções à revisão judicial devem ser tratadas de maneira franca e transparente, e não escondias por argumentos que dissimulam o problema pintam um quadro cor-de-rosa” (MENDES, 2008a, p. 13) 33 A rodada procedimental é desenhada pelo circuito constitucional que, de maneira simplificada, prevê que uma lei é aprovada pelo Congresso, em seguida é declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. A Lei voltaria na forma de emenda constitucional (ou já começaria volume

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quanto numa perspectiva mais de longo prazo, pensando a continuidade dessas rodadas procedimentais. A intenção é investigar qual seria o modelo normativo que serviria como guia tanto para orientar a atuação da corte quanto para avaliar seu desempenho. MENDES (2008a) quer “[...] ilustrar como as discussões sobre o papel da revisão judicial na democracia não podem ignorar a pergunta complexa que a teoria da separação de poderes deve enfrentar: quem decide o que e como e quando e porque numa democracia?” (MENDES, 2008a, p. 3). São esses os pontos explorados adiante. 4.1. controle de constitucionalidade, teorias da última palavr a e teorias do diálogo MENDES (2008a) começa retomando o argumento em favor de uma “razão prudencial” que vê o controle de constitucionalidade como “contra-poder e operador de veto” e não como “reserva de justiça”, que seria própria de uma “razão messiânica” embutida na justificativa contra-majoritária tradicional. Esse veto seria admitido não pelo conteúdo, mas pela mera garantia de se acautelar o sistema político contra sobressaltos majoritários, assegurando o mínimo ético do regime democrático. Um veto “pela linguagem dos direitos”, o que enriqueceria a qualidade argumentativa da democracia e propiciaria a “interlocução institucional” (MENDES, 2008a, p. 11). Acredita que a explicação da revisão judicial seria mais convincente se se olha para a constituição “[...] como máquina procedimental que dilui as funções da soberania para que elas se controlem mutuamente, e não para que tenham missões substantivas” (MENDES, 2008a, p. 10). Mostra que, mesmo nessa perspectiva, a revisão constitucional de emendas careceria de uma justificativa convincente, na medida em que a escolha por esse mecanismo não poderia vir no mesmo pacote da validade moral das cláusulas pétreas, isso é: a mera proteção de direitos (conteúdo substantivo) não seria aceitável como justificativa e as razões residuais de contrapeso também não poderiam ir tão longe (Cf. também MENDES 2008 p. 128 e 156). dessa forma) e é novamente declarada inconstitucional, encerrando-se a rodada. (MENDES, 2008)

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Uma vez que o circuito decisório no sistema constitucional brasileiro terminaria em uma instituição desprovida de lastro representativo (para ele dotada apenas de capacidade de vetar, não de estatuir), permaneceria em aberto a pergunta sobre quem teria o direito de “errar por último” (já que instituições são falíveis). Nesse cenário, a aposta no papel do Supremo seria a de um “quaseguardião”, como desenhado por Robert Dahl34. No exame dessa proposta, MENDES (2008a) reconstrói as teorias preocupadas com quem tem a “última palavra”, nas quais constata algumas mais inclinadas por cortes e juízes e outras mais inclinadas por parlamentos e legisladores. No primeiro caso, a inclinação se justificaria, em síntese, numa presunção de infalibilidade do julgador (“deliberação genuína”). No segundo, a justificativa viria da combinação da regra da maioria com a representação eleitoral. Dworkin e Waldron, respectivamente, continuam a ser personagens-símbolo de cada uma dessas correntes. Neste, predomina uma visão procedimental, que rejeita limites substantivos, naquele, a substancial. Segundo MENDES, Waldron: [...] se opõe a esta forma de descrever a revisão judicial: ‘protege direitos’ ou ‘assegura o conteúdo de justiça da democracia’. A questão, segundo ele, é de procedimento, não de substância. Defende que a abordagem mais sincera e correta da revisão judicial é a procedimental. Não há arranjo político que necessariamente produza decisões justas. [...Mas] Há necessidade de definir instituições em termos procedimentais. Se insistirmos numa visão não-procedimental da revisão judicial, dado o desacordo moral, teríamos de prever um novo procedimento para decidir qual a visão sobre a decisão da Corte deve prevalecer. E aí há uma regressão ao infinito. Alguém decide por último. Essa é a regra de ouro da teoria da autoridade. Quem guarda o guardião? Quem vigia o vigia? Quem controla o controlador? Ninguém. Se o vigia (Tribunal) decidir errado, conforme manda a lógica elementar da autoridade, não há a quem recorrer. Simplesmente há que se conviver com o erro. (MENDES, 2008, p. 99) 34 Dahl teria demonstrado empiricamente “[...] que a Corte americana só conseguiu impor alguns poucos empecilhos à decisão legislativa, os quais somente adiaram a vitória de uma maioria estável, ou impediram a vitória de uma maioria frágil e episódica” (MENDES, 2008a, p. 13). Em síntese, a Corte teria o ônus argumentativo de demonstrar a existência de certas circunstâncias (e.g. “tirania da maioria”) para vetar as escolhas morais feitas pelo legislador, em favor de quem militaria a presunção de legitimidade para esse tipo de escolha. volume

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Já Dworkin teria uma leitura moral da Constituição: Para Dworkin, a política do mundo civilizado deve estar subordinada ao império do direito, princípio, da integridade. Deve respeitar não apenas o direito posto, legislado, como também suas premissas morais. E os juízes seriam um veículo institucional adequado para carregar e impor a dimensão de princípio às decisões políticas. Não nega que o legislador também deve ser guardião dos princípios, e que tenha a responsabilidade de não produzir decisões inconstitucionais. Mas o ambiente legislativo não seria o ideal para questões de escolha insensível.[...] Democracia não pode ser somente policy, somente forma, somente regra da maioria. Um regime que se proclama democrático porque toma decisões orientadas por esses critérios carrega uma noção muito pouco promissora de democracia. Uma democracia decente também requer esses mecanismos. (MENDES, 2008, p. 77-78)

Depois MENDES (2008a) avalia as “teorias do diálogo institucional”, as quais sustentam, em resumo, não haver competição ou conflito pela última palavra, mas um diálogo permanente e cooperativo entre instituições, as quais [...] por meio de suas singulares expertises e contextos decisões, são parceiros na busca do melhor significado constitucional. Assim, não haveria prioridade, hierarquia ou verticalidade entre instituições lutando pelo monopólio decisório sobre direitos fundamentais. Haveria, ao contrário, uma cadeia de contribuições horizontais que ajudariam a refinar, com a passagem do tempo, boas respostas para questões coletivas. Separação de poderes, nesse sentido, envolveria circularidade e complementaridade infinitas. (MENDES, 2008a, p. 15)

Alexander Bickel seria o personagem-símbolo neste caso. Mas nesse ponto a teia de argumentos seria mais variada, exigindo de MENDES uma empresa conceitual mais completa em busca do que ele chama de uma “visão de longo alcance” (MENDES, 2008a, p. 15). É a partir daí que constrói sua proposta. 4.2. diálogo inter-institucional MENDES (2008a) segue investigando o modo como cada uma das posições desenhadas (última palavra e diálogo) responde à questão de sabedoria política 260

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acerca da falibilidade de qualquer desenho institucional. Entende que a noção de “justiça procedimental imperfeita” em Raws mostraria que a teoria da última palavra corresponderia ao direito de “errar por último”. Já a proposta dialógica dissiparia essa preocupação com o “último erro” diluindo-a em meio a uma cadeia de diferentes decisões distribuídas no tempo. Isso transformaria a preocupação com a última palavra num problema exclusivo de curto prazo nas teorias do diálogo. Mas o diálogo, por si só, não resolve todos os problemas que demandam a decisão de um conflito: [...] dizer que a revisão judicial não tem a última palavra, já que as instituições estão dialogando e a história continua, não enfrenta a constatação óbvia de que nem todos os tipos de diálogo são aceitáveis na democracia e que cada decisão coletiva tem custos e efeitos que precisam de justificativa adequada. Entre tais custos, algumas teorias do diálogo subestimam especialmente o “custo temporal” de “novas rodadas procedimentais”. (MENDES, 2008a, p. 17)

Em algum momento, a deliberação precisaria se encerrar e abrir espaço para uma decisão, em razão de um desacordo persistente. Não esconder o conflito institucional, o desacordo, seria a forma mais frutífera de teorizar sobre a separação de poderes. Haveria uma complementaridade entre a perspectiva do diálogo e as teorias da última palavra, donde viria a contribuição para ajudar a resolver “[...] a objeção do déficit democrático da revisão judicial” (MENDES, 2008a, p. 16). Eis a chave para se compreender o diálogo interinstitucional. Segundo MENDES (2008a), seria preciso conceituar padrões desejáveis de diálogo, que permitissem uma deliberação interinstitucional (entre parlamentos e corte) ao invés da deliberação intra-institucional (dentro de parlamentos e cortes). Sob essa premissa, MENDES (2008a) desenha um diálogo que busca maximizar a capacidade da democracia de produzir respostas melhores em direitos fundamentais, levando o potencial epistêmico da deliberação interinstitucional a sério, como o dilema real e mais importante da teoria democrática. Não se mostra tão preocupado com a perspectiva substancial de erro ou acerto das decisões no curto prazo, mas sim com o diálogo que permita alcançar o bom conteúdo. Porém, conforme tentaremos demonstrar adiante, isso acaba volume

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privilegiando a dimensão interinstitucional em detrimento da possibilidade de construção participada do provimento em uma mesma rodada procedimental (diálogo intra-institucional). 5. a pec 33 e as propostas de mendes e restrepo RESTREPO (2012) nos mostra os problemas de judicialização da política, a partir de uma visão ácida e carregada do liberalismo. Sua especial preocupação com a apropriação do (espaço) político pelo direito traz uma denúncia contundente da despolitização dos debates sobre direitos fundamentais. Mas, daí a colocar na conta do liberalismo a manutenção de todo processo de exclusão de minorias, em favor de uma racionalidade constantemente excludente, há um abismo. Recuperar esse espaço político diante da colonização pelo direito é uma clara preocupação da PEC 33. Contudo, essa é uma preocupação que precisa ser vista com reserva. Concordamos, portanto, com BAHIA, CATTONI e NUNES (2013), no sentido de que Numa democracia, é o Parlamento o centro do regime político, sendo que ele também deve zelar pela sua legitimidade, representativa e abertura ao debate público, assim como zelar por suas competências constitucionais (v.g., art. 49, XI, CR/88). Nesse sentido, compartilhamos das preocupações subjacentes às PECs suscitadas, embora discordemos do modo com que, por meio dela se pretenda lidar com o problema da chamada judicialização da política mediante a PEC em comento. (BAHIA, CATTONI e NUNES; 2012)

Assim, por mais que admitamos críticas ao liberalismo, consideramos um equívoco a radicalização da democracia pelo dissenso, pela simples rejeição ao diálogo (supostamente contaminado pela racionalidade liberal). E mesmo que essa racionalidade, como entende RESTREPO (2012), tenha “contaminado” a teoria dialógica de Habermas, não acreditamos que daí decorra qualquer incapacidade de se promover a emancipação do sujeito.35 35 Conforme nos lembra Cruz (2008): “[...] Habermas é herdeiro do projeto da modernidade de emancipação do homem por meio do esclarecimento (Aufklärung), ou seja, que a única saída para a emancipação humana se centraria na razão” (CRUZ, 2008, p. 25).

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Em nossa opinião, RESTREPO (2012) não faz justiça ao frankfurtiano. A própria crítica de que a teoria discursivo-procedimentalista não poderia ser aplicada à realidade de países emergentes, com déficit de implementação de direitos típicos do Estado Social, trabalhada também por Lênio Streck (2004, p. 174), mostra que RESTREPO não vê Habermas em sua melhor luz.36 A esse respeito, CRUZ (2008) ensina, em obra de indispensável leitura, que: Representante maior da segunda geração de cientistas da Escola de Frankfurt, Habermas persegue, ao longo de toda sua trajetória, um projeto de esclarecimento iluminista de ‘libertação’ do homem de todas as formas de violência sejam elas morais, físicas, sociais, políticas ou econômicas. Ao contrário do que supõe Streck, Habermas tem absoluta noção que as promessas do Estado Social se deram de maneira muito distinta no globo. Por conseguinte, nem de longe sua obra pode ser adjetivada de insensível. Quando o autor sustenta o advento do Estado Democrático de Direito não sugere serem abolidas ou esquecidas as políticas de intervenção estatal em prol da inclusão de toda e qualquer minoria, seja ela econômica, étnica, religiosa, de gênero, de opção sexual, de origem. [...] o que se nota é um esforço constante pelo aprimoramento do projeto iluminista de emancipação, em bases de uma hermenêutica macroscópica da evolução da sociedade entendida como mecanismo de aprendizagem e integramente vazada na filosofia da linguagem. (CRUZ, 2008, p. 249-250)

Ainda quanto à inadequação da teoria habermasiana ao Brasil, CRUZ (2008) lembra que todo modelo teórico está sujeito a reducionismos e, assim, a críticas, mas a reconstrução da obra de Habermas revela notável esforço para a conciliação 36 Para Lênino Streck (2004) “[...] Habermas cai em um certo sociologismo ao ignorar a especificidade do jurídico presente nas Constituições, que gerou todo um processo de revitalização do jurídico, naquilo que diz respeito à função social do Direito. O constitucionalismo do Estado Democrático de Direito acrescenta um ‘mais’ ao Direito do estado Social, porque estabelece no próprio texto constitucional – e esse é o ponto que Habermas deixa de considerar – os diversos mecanismos para resgate das promessas da modernidade) (STRECK, 2004, p. 165). Conforme explica Cruz (2008), na visão de Lênio, “[...] Habermas estaria se opondo às noções mais caras do constitucionalismo da efetividade, especialmente à exigência de um Judiciário comprometido/engajado com causas sociais, pois os milhões de marginalizados no país estaria esperando pela materialização real de direitos sociais, coletivos e difusos, o que somente poderia ocorrer por meio de um claro ativismo da magistratura” (CRUZ, 2008, p.19) volume

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da teoria com a prática, do abstrato com o concreto, do geral com o particular. Nesse contexto, “[a] colocação de que ‘um país de analfabetos não teria condições de participar de um discurso em simétricas condições de paridade com os demais participantes’ nada mais é do que um reducionismo acrítico da teoria discursiva” (CRUZ, 2008, p. 252) Noutra banda, não está claro na proposta de RESTREPO (2012) como se articulariam as forças em um confronto decorrente do dissenso, já que a própria ideia de representatividade seria uma das responsáveis pela diluição do poder constituinte em constituído e por isso deveria ser descartada. Veja que, ao tratar o direito como subserviente ao liberalismo, prestandose apenas ao manejo de especialistas, para justificar o conceito de criptografia, RESTREPO (2012) não aponta claramente qual seria a fronteira entre a parte “transparente” e a “criptografada”.37 Apenas dizer que a criptografia da constituição serviria para desativar aquela que seria a parte transparente do texto constitucional, sugere que a decisão caberia ao sistema em qualquer caso. A nosso ver, RESTREPO acaba substituindo o intérprete pelo sistema, recaindo, assim, em um determinismo estrutural que não nos parece o melhor espelho do constitucionalismo brasileiro.38 Sua proposta pressupõe que haveria sempre o domínio da atividade interpretativa da constituição exclusivamente por especialistas em direito, notadamente a Corte Suprema, a quem caberia a “última palavra” em conflitos políticos e a técnicajurídica, a judicialização de questões políticas sempre provocaria a despolitização 37 Além disso, o processo de universalização excludente no qual o direito se encarregaria de criptografar a constituição e criar um engodo técnico-jurídico é colocado como barreira constante e velada de acesso a direitos. Supõe um discurso jurídico não só contaminado pela racionalidade liberal (e sempre a serviço do capitalismo), mas sempre inoperante quando o assunto é a implementação de direitos fundamentais. Isso conduz a uma visão em que a judicialização da política é vista sempre como algo ruim, na contramão do que entendemos ser parte da evolução do constitucionalismo nacional. Colocar o próprio controle de constitucionalidade como mecanismo colonizador automático do espaço político pelo direito é desprezar as etapas de afirmação do movimento constitucionalista do pós-guerra. 38 Os problemas da linguagem no direito, especialmente os decorrentes das aporias no processo interpretativo-decisório não podem ser adequadamente enfrentados sob um ângulo único, no qual o liberalismo constantemente se apropria dessas aporias com um fim estratégico único de impedir a implementação de direitos fundamentais.

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desses conflitos. Esse fatalismo impediria qualquer proposta discursiva – porque contaminada pela racionalidade liberal – com o que não concordamos. A possibilidade de construção discursiva do provimento e a ideia de uma sociedade aberta de intérpretes não podem perder seu valor, ainda que inseridas num modelo tachado de liberal. Colocar a “radicalização da democracia” como única solução possível nos parece justificável apenas quando se supõe nisso a formação participada da norma. A radicalização, nesse caso, deve recair sobre o discurso (não sobre o consenso ou dissenso)! A aposta cega na livre composição do dissenso, decorrente da articulação política de questões morais importantes em uma sociedade, não nos parece a única via de emancipação possível para livrar o sujeito de sua alegada dependência do capitalismo e da lógica econômica do mercado. Longe disso, sugere o retorno ao braço armado. Afinal, como se daria a ruptura com o sistema representativo? Quais os mecanismos de conciliação do dissenso nessa esfera? Qual o custo pessoal e social do entendimento nessa arena? São perguntas que permanecem em aberto na proposta de RESTREPO, quando se supõe que o entendimento “surja” do dissenso... Refletindo historicamente, temos dúvidas de uma possível livre composição harmoniosa do dissenso nessas condições. Talvez sejamos vistos como alguém já contaminado pela racionalidade liberal, tal qual estaria Habermas. Mas em termos de escolha, a opção por outro modelo parece nos remeter, como já dissemos, ao braço armado, ao conflito aberto, à supressão do diálogo, por sua vez, dando espaço a regimes totalitários de fartos exemplos na história... A proposta de MENDES (2008, 2008a) enfrenta melhor, a nosso ver, a necessidade de equilíbrio entre os poderes do Estado e o papel da Suprema Corte em uma democracia. A interação entre poderes (e entre direito e política), para ele, não precisaria ser necessariamente adversarial. Adotar uma postura de caráter deliberativo daria maiores chances de se produzir boas respostas sobre direitos fundamentais, tornando a separação de poderes sensível ao bom argumento. Assim, consegue explorar melhor a questão do dissenso. Percebe que ele existe e é importante, mas não o trabalha no plano individual e sim no plano institucional. Confia num arranjo mínimo institucional que compatibilize volume

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democracia e constitucionalismo. Sofistica a noção de diálogo institucional para sugerir condições que permitam tanto uma atuação de curto prazo (definição de quem tem a última palavra), quanto de longo prazo (diálogo institucional), para a implementação de direitos fundamentais na democracia. A ideia de diálogo inter-institucional supõe o legislador corajoso de que nos falam BAHIA, CATTONI e NUNES (2013), o que nos agrada. Deixa em aberto, porém, a questão do ativismo judicial. Ao pretender livrar-se do fardo de definir os limites entre aplicação da lei e atividade legislativa na atuação do Supremo, deixa o flanco aberto para o uso político do direito, autorizando o ativismo judicial exacerbado. Opera, por isso, segundo premissas do comunitarismo nacional39, que vê na argumentação jurídica [...] um caso da discursividade prática geral, fundindo os discursos jurisdicionais e legislativos numa espécie única, [... o que aniquilaria...] definitivamente a perspectiva clássica de divisão dos poderes, vez que não haveria distinção qualitativa na forma de argumentação condizente com provimentos legislativos e judiciários. Logo, as Cortes Constitucionais assumem um caráter incondicionalmente político na condução de suas práticas hermenêuticas, especialmente no controle da constitucionalidade. (CRUZ, 2009, p.11)

Parece-nos mais interessante investir no diálogo intra-institucional, que, mesmo com todos os seus problemas, não pode ser menosprezado, tendo em vista as possibilidades de formação participada do provimento, fortalecendo uma proposta procedimentalista.40 A esse respeito, Cruz (2009) dá notícia que 39 Sobre o tema, Cruz (2009) explica que “[a]o contrário do comunitarismo americano, ligado às noções cooperativas entre as esferas múltiplas na sociedade, de modo a fazê-las compartilhar com o Estado a tarefa de proteger não apenas o bem-estar social, mas, essencialmente, o modo de cida de uma coletividade, como se exemplifica pelo american way of life, o chamado ‘comunitarismo’ brasileiro coaduna-se melhor com uma concepção estatizante e intervencionista, ‘jogando exclusivamente nas costas’ do Estado tarefas positivas de promoção de prestações sociais por meio de serviços públicos e de fomento à atividade econômica dos menos favorecidos, com a finalidade de redução de desigualdades econômicas regionais. A inclusão social e regional seria, pois, a função essencial do Estado brasileiro.” (CRUZ, 2009, p. 8-9) 40 Trata-se de uma visão procedimentalista que “[...] se enquadra no contexto de um constituciolismo filosófico que assume a reviravolta linguístico-pragmática promovida

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[...] o procedimentalismio surge no contexto nacional, ainda que de forma incipiente, como uma corrente minoritária do constitucionalismo da efetividade. Algumas de nossas posições já foram vistas e são claras: a Constituição não é uma tábua de valores que permita ao intérprete o emprego da ponderação de valores, da regra da proporcionalidade e da razoabilidade em seus aspectos neoaristotélicos. Tampouco admite-se a figura idealizante/ idealizada da Constituição dirigente acaba por tornar os direitos fundamentais, essencialmente os sociais e coletivos em metas de políticas públicas e não como pretensões jurídicas deônticas. Assim desnecessária e ilegítima tanto as posturas passivista ou ativista do Judiciário, eis que o Estado Democrático de Direito não pode se estabelecer pela supremacia de uma instituição estatal, eis que a equiprimordialidade da autonomia pública e privada constitui-se em pressuposto da visão procedimentalista. (CRUZ, 2009, p. 13)

O exame detalhado do procedimentalismo não é nosso objetivo.41 Serve exclusivamente para apontar uma alternativa que, esperamos, possa servir cada vez mais como norte para os debates políticos em torno do papel do Supremo Tribunal Federal. Nos concentramos nas propostas analisadas anteriormente, confiantes de que têm o valor de se preocupar com esse papel e sua legitimidade; de serem, ao seu modo, um alerta para que se preste atenção na atuação dos Tribunais em geral e no uso que fazem do Direito. 6. conclusões A PEC 33, a despeito de sua questionável constitucionalidade, expõe uma ferida aberta na legitimidade da atuação do Supremo Tribunal Federal, notapelos trabalhos de Heidegger, Gadamer e Wittgenstein como condição de possibilidade para o conhecimento do Direito. Contudo, pretende ir além, sustentando a insuficiência dos conceitos de verdade ligados apenas ao desvelamento do entre e sua dissociação do ser heideggerianos, assim como a noção gadameriana de história efeitual como distanciamento para fins de depuração” (CRUZ, 2009, p. 6). 41 Anotamos, porém, que “[p]ara os procedimentalistas, o círculo hermenêutico deve procurar depurar e não aprofundar uma aplicação do Direito que permaneça em torno de valores pessoas do julgador. Para tanto, nenhum método ou regra de aplicação é suficiente, tal como sustenta Alexy. De fato, não se nega que qualquer norma jurídica tenha em si um valor humano. Contudo, não se admite que a lógica de aplicação do ordenamento jurídico passe por justificativas essencialmente ligadas ao caráter de preferência/gosto/utilidade que a norma tenha para o juiz. Um Direito legítimo deve depurar fundamentações desse tipo e aí está uma diferença importante entre essas Escolas. (CRUZ, 2009, p. 16) volume

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damente pelo ativismo exacerbado desta Corte. Mas, novamente comungamos com a tese de BAHIA, CATTONI e NUNES (2013) de que a PEC seria uma solução tão ruim quanto o problema que pretende enfrentar, pois partilha dos mesmos pressupostos que pautam a atuação do STF, no lugar de procurar uma mudança mais profunda no sistema.42 A proposta deste trabalho foi abordar duas propostas que reputamos fora do senso comum jurídico na análise do espaço político e do próprio direito, enquanto ciência, no que toca à implementação de direitos fundamentais. A de RESTREPO (2012; HINCAPIE e RESTREPO, 2012), sem dúvida a mais radical, volta-se para o aspecto individual do excluído e da necessidade de se deixar aflorar o dissenso em uma democracia. Não confia nas instituições, em especial as jurídicas, as quais estariam contaminadas por uma racionalidade liberal universalizante e excludente. Não compartilhamos da posição teórica de RESTREPO (2012), especialmente com a crítica que nos parece apressada e injusta à Habermas. Mas reconhecemos o mérito de se chamar a atenção para a utilização do direito não como um mecanismo de implementação de direitos fundamentais, como assim é comum enxergálo, mas como uma forma de criptografia desses direitos que passam a ser acessíveis somente a uma camada privilegiada de especialistas, apenas aos iniciados. Entendemos, porém, que, ao menos no caso brasileiro, esse é um problema resultante muito mais do desconhecimento de questões da linguagem e da adoção canhestra de um modelo comunitarista, que permite o julgamento com base em valores que o juiz possui, no lugar de um procedimentalismo que reputamos mais adequado. O que falta, em verdade, é o investimento necessário na concretização de direitos fundamentais que consagrem o acesso da população ao aprendizado (inclusive o aprendizado do Direito), à efetiva condição de cidadão. O trabalho de MENDES (2008 e 2008a), por sua vez, chama a atenção também para o espaço político, mas com destaque para a necessidade de se 42 “Nossa tese é que a PEC 33 compartilha dos mesmos pressupostos paradigmáticos daqueles julgados tachados de “ativistas” do STF a que pretende se contrapor. A PEC trata a questão do controle de constitucionalidade como disputa pela soberania legislativa e não como questão judicial de garantia da Constituição, sendo, então, nesse sentido, a “solução” tão ruim quanto o problema” (BAHIA, CATTONI e NUNES; 2013)

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repensar a crença irrefletida no judiciário como “última trincheira da democracia”. Tem o mérito de expandir o diálogo para o âmbito inter-institucional. Para tanto, primeiro expõe as principais características das teorias da última palavra e do diálogo, depois busca uma articulação entre última palavra e diálogo dentro da separação de poderes e a demonstração do potencial da deliberação entre instituições como critério normativo que qualifica este arranjo. Deixa o flanco aberto, porém, para o ativismo judicial. Ambas as teorias, contudo, têm em comum com a PEC 33 a preocupação com a legitimidade da atuação das Cortes (no caso o Supremo Tribunal Federal). Essa é uma preocupação especial do procedimentalismo, em relação ao qual continuamos na expectativa de que seja cada vez mais levado em conta como alternativa para o constitucionalismo e para uma atuação legítima das Cortes. 7. referências BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco; OLIVEIRA Marcelo Andrade Cattoni de; NUNES Dierle José Coelho. Controle de constitucionalidade é judicial, não político. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013abr-30/sistema-controle-constitucionalidade-judicial-nao-politico. Acessado em 18.07.2013. BRASIL. Proposta de emenda à constituição n. 33. Congresso Nacional, 2011. CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Habermas e o Direito Brasileiro. 2ª ed. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2008. CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Uma nova alternativa para o Direito Brasileiro: O procedimentalismo. In SARMENTO, Daniel. (Coord.) Filosofia e Teoria Constitucional Contemporânea. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2009. Pp. 1-27 CRUZ, Álvaro; MEYER, Emílio Peluso Neder; RODRIGUES, Éder Bomfim. Desafios Contemporâneos do Controle de Constitucionalidade no Brasil. Belo Horizonte: Arraes, 2012 volume

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DEMO, Pedro. Pesquisa e informação qualitativa. Campinas: Papirus, 2001; HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para uma interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Editora Sérgio Antônio Fabris, 1997. HINCAPÍE, Grabriel Méndez; RESTREPO, Ricardo Sanín. La constitución encriptada: Nuevas formas de emancipación del poder global. In revista de Derechos Humanos y Estudios Sociales, San Luis Potosí, México, ano IV n. 8, jul-Dez. 2012. MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Pluralismo epistemológico e modernidade. Disponível em http://joseluizquadrosdemagalhaes.blogspot. com.br/2012/12/1274-pluralismo-epistemologico-e.html MENDES, Conrado Hübner. Controle de constitucionalidade e democracia. Rio de Janeiro: Elsevier: 2008. MENDES, Conrado Hübner. Direitos Fundamentais, separação de poderes e fundamentação. 2008a. 219f. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas. São Paulo. MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 8. ed. São Paulo: Hucitec, 2004 RESTREPO, Ricardo Sanin. Porqué no Habermas: Del engaño liberal a la democracia radical. In revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 12, n. 12 p. 264-284, jul/dez 2012. SILVA, Luis Virgílio Afonso da. A Emenda e o Supremo. Valor Econômico, São Paulo, 3 de maio de 2013. TELES FILHO, Eliardo. Suspensão de trâmite de PL não deveria surpreender. Disponível em http://www.conjur.com.br/2013-mai-11/observato rio-constitucional-suspensao-tramite-pl-nao-deveria-surpreender, acessado em 18.07.2013. STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma nova crítica. 2ª ed. Rio de Janeiro, 2004. 270

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o princípio da r azoável dur ação no br asil e na espanha Maria Cristina Zainaghi1 Alexandre Luna da Cunha 2

Resumo O trabalho tratará dos princípios processuais constitucionais, dando ênfase ao princípio da razoável duração. Nos dias de hoje, este é um dos principais norteadores do andamento processual e, uma preocupação mundial, pois o provimento jurisdicional moroso implica na inexistência da Justiça. O princípio da razoável duração no ordenamento brasileiro, inserido como princípio processual constitucional no inciso LXXVIII do artigo 5º da Constituição Federal e a discussão da existência do princípio no ordenamento pátrio desde que ratificamos o Pacto da Costa Rica. Em paralelo discutiremos o princípio da razoável duração no processo espanhol, sua inserção constitucional, bem como a preocupação e possibilidade de indenizações nas hipóteses de seu descumprimento.

Palavras-chave Princípio; Razoável; Duração; Constitucional; Processo.

Resumen La obra trata de los principios procesales constitucionales, haciendo hincapié en el principio de duración razonable es, hoy en día, uno de los principales guia del tramite procesal y, una preocupación internacional, porque la demanda despacia implica la ausencia de Justicia.

1 Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Coordenadora dos cursos de Pós-Graduação em Direito da Universidade Nove de Julho. 2 Doutorando em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo. Coordenador do curso de graduação em Direito da Universidade Nove de Julho. volume

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La duración razonable en el derecho brasileño, y su inserción en principio constitucional e inclusión expresadas en lo LXXX artículo 5º de la CF y la discusión de la existencia del principio del duracion razionable, em el Pacto de Costa Rica. Paralelamente vamos a discutir el principio de duración razonable en el proceso constitucional español, su inserción así como la preocupación y la posibilidad de indemnizaciones en los casos de incumplimiento.

Palabras clave Principio; Razonable; Duracion; Constitucional; Proceso. 1. introdução No presente trabalho pretendemos trazer o histórico do princípio da razoável duração no ordenamento Brasileiro, bem como a discussão do princípio da razoável duração, no direito processual civil, e, ainda, como devemos entendê-lo e interpretá-lo. Faremos também uma análise dos princípios processuais constitucionais e, a relação deles com o princípio tema, a exemplo, o princípio da economia processual onde temos que obviamente uma justiça mais barata, certamente terá um tempo menor. O trabalho ainda tratará do tema no âmbito do direito estrangeiro, dando ênfase ao princípio no caso do direito espanhol. Tema de grande relevância, foi introduzido como garantia fundamental, em dezembro de 2004, quando da Emenda nº 45. A Emenda também se preocupou em distinguir a razoável duração da celeridade, dando a esses expressões, as vezes entendidas como sinônimos, entendimento distinto, conforme verificamos pela simples leitura da segunda parte do inciso LXXVIII, fala em garantir a celeridade da tramitação. 2. como devemos entender a dur ação r azoável A primeira questão que surge quando tratamos da razoável duração do processo é entender o que devemos entender por razoável duração. Qual é o prazo razoável para se obter o provimento jurisdicional? 272

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Neste questionamento muito se discute, pois como podemos quantificar o que é razoável para responder ao provimento jurisdicional pretendido. Neste sentido a Corte Européia dos Direitos Dos Homens entendeu que para se poder avaliar a duração razoável, deverá levar em conta três fatores, ou seja: a) Complexidade do tema discutido. b) Atuação das partes na demanda. c) Atuação do julgador no processo. Temos que levar em conta esses fatores para que possamos verificar se a duração do processo foi razoável. “Assim, é evidente que se uma determinada questão envolve, por exemplo, a apuração de um crime de natureza fiscal ou econômica, a prova pericial a ser produzida poderá exigir muitas diligências que justificarão duração mais prolongada da fase instrutória.” (Tucci. 1997)

Assim é certo que uma demanda que tenha grande complexidade temática exigirá que o provimento jurisdicional seja concedido após uma produção probatória mais exauriente e que venha demonstrar o direito da parte. No tocante a atuação das partes em regra as mesmas querem que o provimento jurisdicional pretendido o seja no menor tempo possível. É certo, porém, que algumas vezes uma das partes tem interesse na procrastinação do feito, o que, também sabemos, é punível no ordenamento jurídico, pela falta de probidade ou como prevê a lei, quando a parte agir como litigante de má-fé, assim compreendido no artigo 17 do Código de Processo Civil, como aquele que deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso; alterar a verdade dos fatos; usar do processo para conseguir objetivo ilegal; opuser resistência injustificada ao andamento do processo; proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; provocar incidentes manifestamente infundados ou interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório. Vemos que também quanto à parte a postergação é elidida, podendo ser objeto de pena pecuniária caso a parte não aja com a probidade que se espera no processo. volume

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Talvez o maior problema surja quanto ao cumprimento dos prazos estipulados aos Agentes da jurisdição. Pois os prazos estabelecidos no Código de Processo Civil, nos artigo 189 e 1903 Vemos por exemplo, com uma rápida pesquisa no site do Conselho Nacional de Justiça, que o Foro da Freguesia do Ó, um foro com todos os processos virtuais, tem 3776 processos aguardando andamento (juntada ou sentença) há mais de 100 dias. Note-se que isso demonstra uma realidade muito presente na justiça bandeirante, onde, as vezes uma juntada demora até seis meses. - anexo 14. Para nosso ordenamento, talvez esse seja o maior problema que temos para o cumprimento da razoável duração do processo, de forma que, como trataremos mais detidamente adiante o Supremo Tribunal Federal, vem se manifestando em diversas demandas em que a demora na concessão do provimento jurisdicional se deve exclusivamente ao emperramento da “máquina do judiciário”. 3 Art. 189. O juiz proferirá:

I - os despachos de expediente, no prazo de 2 (dois) dias;



II - as decisões, no prazo de 10 (dez) dias.



Art. 190. Incumbirá ao serventuário remeter os autos conclusos no prazo de 24 (vinte e quatro) horas e executar os atos processuais no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, contados:



I - da data em que houver concluído o ato processual anterior, se lhe foi imposto pela lei;



II - da data em que tiver ciência da ordem, quando determinada pelo juiz.



Parágrafo único. Ao receber os autos, certificará o serventuário o dia e a hora em que ficou ciente da ordem, referida no nº. Il.

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Neste sentido o Ministro Celso de Melo em decisão proferida no HC nº 1211405, julgado em 30 de maio de 2014, afirmou que a demora na prestação

5 DECISÃO: Registro, preliminarmente, por necessário, que o Supremo Tribunal Federal, mediante edição da Emenda Regimental nº 30, de 29 de maio de 2009, delegou expressa competência ao Relator da causa para, em sede de julgamento monocrático, denegar ou conceder a ordem de “habeas corpus”, “ainda que de ofício”, desde que a matéria versada no “writ” em questão constitua “objeto de jurisprudência consolidada do Tribunal” (RISTF, art. 192, “caput”, na redação dada pela ER nº 30/2009). Ao assim proceder, fazendo-o mediante interna delegação de atribuições jurisdicionais, esta Suprema Corte, atenta às exigências de celeridade e de racionalização do processo decisório, limitou-se a reafirmar princípio consagrado em nosso ordenamento positivo (RISTF, art. 21, § 1º; Lei nº 8.038/90, art. 38; CPC, art. 557) que autoriza o Relator da causa a decidir, monocraticamente, o litígio, sempre que este referir-se a tema já definido em “jurisprudência dominante” no Supremo Tribunal Federal. Nem se alegue que essa orientação implicaria transgressão ao princípio da colegialidade, eis que o postulado em questão sempre restará preservado ante a possibilidade de submissão da decisão singular ao controle recursal dos órgãos colegiados no âmbito do Supremo Tribunal Federal, consoante esta Corte tem reiteradamente proclamado (RTJ 181/1133-1134, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – AI 159.892-AgR/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.). A legitimidade jurídica desse entendimento decorre da circunstância de o Relator da causa, no desempenho de seus poderes processuais, dispor de plena competência para exercer, monocraticamente, o controle das ações, pedidos ou recursos dirigidos ao Supremo Tribunal Federal, justificando-se, em consequência, os atos decisórios que, nessa condição, venha a praticar (RTJ 139/53 – RTJ 168/174-175 – RTJ 173/948), valendo assinalar, quanto ao aspecto ora ressaltado, que este Tribunal, em decisões colegiadas (HC 96.821/SP, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI – HC 104.241-AgR/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO), reafirmou a possibilidade processual do julgamento monocrático do próprio mérito da ação de “habeas corpus”, desde que observados os requisitos estabelecidos no art. 192 do RISTF, na redação dada pela Emenda Regimental nº 30/2009. Tendo em vista essa delegação regimental de competência ao Relator da causa, impõe-se reconhecer que a controvérsia ora em exame ajusta-se à jurisprudência que o Supremo Tribunal Federal firmou na matéria em análise, o que possibilita seja proferida decisão monocrática sobre o litígio em questão. Passo, desse modo, a examinar a pretensão ora deduzida na presente sede processual. Trata-se de “habeas corpus” impetrado contra decisão emanada da Quinta Turma do E. Superior Tribunal de Justiça que, não obstante havendo concedido, em parte, o “writ”, nos autos do HC 243.252/PB, manteve, ainda assim, a prisão cautelar do ora paciente, preso, em flagrante, desde 02/08/2010. Busca-se, em síntese, nesta impetração, “assegurar ao paciente o direito de permanecer em liberdade até o julgamento final do presente ‘mandamus’”, apoiando-se, os ora impetrantes, na alegação de que “o paciente está sofrendo constrangimento ilegal por parte do Superior Tribunal de Justiça em razão do excesso do prazo da prisão cautelar”. O Ministério Público Federal, em pronunciamento da lavra da ilustre Subprocuradora-Geral da República Dra. DEBORAH MACEDO DUPRAT DE BRITTO PEREIRA, ao opinar pela concessão da ordem de “habeas corpus”, o fez em parecer assim ementado: “‘Habeas corpus’. Tráfico de drogas. Excesso de prazo. Supressão de instância. Cabimento excepcional. Prisão cautelar que perdura por mais de três anos. Constrangimento ilegal. Ocorrência. Demora não imputável à defesa. Concessão da ordem (grifei).” Passo, desse modo, a analisar a pretensão deduzida na presente sede processual. E, ao fazê-lo, entendo volume

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jurisdicional, por culpa do Judiciário fere o princípio da dignidade da pessoa assistir razão à douta Procuradoria-Geral da República, eis que os fundamentos em que se apoia seu douto parecer ajustam-se, com integral fidelidade, à orientação firmada por esta Suprema Corte. É que o exame dos elementos trazidos aos autos, considerada a sequência cronológica dos dados juridicamente relevantes, permite reconhecer a efetiva ocorrência, na espécie, de superação irrazoável dos prazos processuais, pois o ora paciente – consoante informação existente nestes autos – encontra-se preso desde 02/08/2010. Em consequência de tal situação, o ora paciente permanece, na prisão, por período superior àquele que a jurisprudência dos Tribunais tolera, dando ensejo, assim, à situação de injusto constrangimento a que alude o ordenamento positivo (CPP, art. 648, II). É que o paciente – insista-se – está preso, cautelarmente, há mais de três (03) anos e nove (09) meses, o que permite reconhecer a ocorrência, na espécie, de superação irrazoável dos prazos processuais. Tenho ressaltado, em diversos julgamentos, que o réu – especialmente aquele que se acha sujeito, como sucede com o ora paciente, a medidas cautelares de privação de sua liberdade – tem o direito público subjetivo de ser julgado, pelo Poder Público, dentro de um prazo razoável, sob pena de caracterizar-se situação de injusto constrangimento ao seu “status libertatis” (HC 84.254/PI, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.). Como bem acentua JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI (“Tempo e Processo – Uma análise empírica das repercussões do tempo na fenomenologia processual – civil e penal”, p. 87/88, item n. 3.5, 1998, RT), “o direito ao processo sem dilações indevidas” – além de qualificar-se como prerrogativa reconhecida por importantes Declarações de Direitos (Convenção Americana sobre Direitos Humanos, art. 7º, ns. 5 e 6; Convenção Europeia para Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, art. 5, n. 3, v.g.) – representa expressiva consequência de ordem jurídica que decorre da cláusula constitucional que a todos assegura a garantia do devido processo legal. Isso significa, portanto, que o excesso de prazo, analisado na perspectiva dos efeitos lesivos que dele emanam – notadamente daqueles que afetam, de maneira grave, a posição jurídica de quem se acha cautelarmente privado de sua liberdade – traduz, na concreção de seu alcance, situação configuradora de injusta restrição à garantia constitucional do “due process of law”, pois evidencia, de um lado, a incapacidade do Poder Público de cumprir o seu dever de conferir celeridade aos procedimentos judiciais e representa, de outro, ofensa inequívoca ao “status libertatis” de quem sofre a persecução penal movida pelo Estado. Esse entendimento encontra pleno apoio na jurisprudência constitucional que o Supremo Tribunal Federal firmou na matéria ora em exame: “O JULGAMENTO SEM DILAÇÕES INDEVIDAS CONSTITUI PROJEÇÃO DO PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. - O direito ao julgamento, sem dilações indevidas, qualifica-se como prerrogativa fundamental que decorre da garantia constitucional do ‘due process of law’. O réu – especialmente aquele que se acha sujeito a medidas cautelares de privação da sua liberdade – tem o direito público subjetivo de ser julgado, pelo Poder Público, dentro de prazo razoável, sem demora excessiva nem dilações indevidas. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, ns. 5 e 6). Doutrina. Jurisprudência. - O excesso de prazo, quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário – não derivando, portanto, de qualquer fato procrastinatório causalmente atribuível ao réu – traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois, além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional. (…).” (RTJ 187/933-934, Rel. Min. CELSO DE MELLO) É sempre importante relembrar, neste ponto, que ninguém pode permanecer preso por lapso temporal que supere, de modo excessivo, os padrões de

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humana. In verbis: razoabilidade acolhidos pela jurisprudência que o Supremo Tribunal Federal firmou na matéria ora em exame, especialmente quando inexistir sentença penal condenatória (RTJ 198/1113-1114, Rel. Min. GILMAR MENDES – RTJ 201/663, Rel. p/ o acórdão Min. CEZAR PELUSO – HC 87.721/PE, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA – HC 89.202/BA, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – HC 99.672/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO, v.g.) ou, como sucede no caso, a condenação penal vier a ser desconstituída por decisão emanada de Tribunal de jurisdição superior (HC 100.574/MG, Rel. Min. CELSO DE MELLO): “O EXCESSO DE PRAZO, MESMO TRATANDO-SE DE DELITO HEDIONDO (OU A ESTE EQUIPARADO), NÃO PODE SER TOLERADO, IMPONDO-SE, AO PODER JUDICIÁRIO, EM OBSÉQUIO AOS PRINCÍPIOS CONSAGRADOS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, O IMEDIATO RELAXAMENTO DA PRISÃO CAUTELAR DO INDICIADO OU DO RÉU. - Nada pode justificar a permanência de uma pessoa na prisão, sem culpa formada, quando configurado excesso irrazoável no tempo de sua segregação cautelar (RTJ 137/287 – RTJ 157/633 – RTJ 180/262-264 – RTJ 187/933934), considerada a excepcionalidade de que se reveste, em nosso sistema jurídico, a prisão meramente processual do indiciado ou do réu, mesmo que se trate de crime hediondo ou de delito a este equiparado. - O excesso de prazo, quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário – não derivando, portanto, de qualquer fato procrastinatório causalmente atribuível ao réu – traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois, além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas (CF, art. 5º, LXXVIII) e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional, inclusive a de não sofrer o arbítrio da coerção estatal representado pela privação cautelar da liberdade por tempo irrazoável ou superior àquele estabelecido em lei. - A duração prolongada, abusiva e irrazoável da prisão cautelar de alguém ofende, de modo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa – considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Constituição Federal (Art. 5º, incisos LIV e LXXVIII). EC 45/2004. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, ns. 5 e 6). Doutrina. Jurisprudência. - O indiciado ou o réu, quando configurado excesso irrazoável na duração de sua prisão cautelar, não podem permanecer expostos a tal situação de evidente abusividade, ainda que se cuide de pessoas acusadas da suposta prática de crime hediondo (Súmula 697/STF), sob pena de o instrumento processual da tutela cautelar penal transmudar-se, mediante subversão dos fins que o legitimam, em inaceitável (e inconstitucional) meio de antecipação executória da própria sanção penal. Precedentes.” (RTJ 195/212-213, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno) O excesso de prazo, portanto, deve ser repelido pelo Poder Judiciário, pois é intolerável admitir que persista, no tempo, sem razão legítima, a duração da prisão cautelar do réu, em cujo benefício – é sempre importante relembrar – milita a presunção constitucional, ainda que “juris tantum”, de inocência. Daí a razão de a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não admitir – porque absolutamente inaceitável – a subsistência de situações, como a que se registra nestes autos, que se mostram gravosas e ofensivas ao “status libertatis” do acusado, bastando referir, nesse sentido, inúmeras decisões emanadas desta Corte Suprema (RTJ 118/484, Rel. Min. CARLOS MADEIRA – RTJ 187/933-934, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RTJ 193/1050, Rel. Min. EROS GRAU – HC 79.789/AM, Rel. Min. ILMAR GALVÃO – HC 83.867/PB, Rel. Min. MARCO volume

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- O excesso de prazo, quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário – não derivando, portanto, de qualquer fato procrastinatório causalmente atribuível ao réu – traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois, além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas (CF, art. 5º, LXXVIII) e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional, inclusive a de não sofrer o arbítrio da coerção estatal representado pela privação cautelar da liberdade por tempo irrazoável ou superior àquele estabelecido em lei. - A duração prolongada, abusiva e irrazoável da prisão cautelar de alguém ofende, de modo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa – considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Constituição Federal (Art. 5º, incisos LIV e LXXVIII). EC 45/2004. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, ns. 5 e 6). Doutrina. Jurisprudência.

3. histórico da dur ação r azoável O princípio da razoável duração vem mencionado em diversos ordenamentos, como por exemplo, na Convenção Americana dos Direitos e Deveres do Homem, datada de 1948, em seu artigo 18, estabelece:



AURÉLIO – HC 84.181/RJ, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – HC 84.907/SP, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, v.g.). Sendo assim pelas razões expostas e acolhendo, ainda, o parecer da douta Procuradoria-Geral da República, defiro o pedido de “habeas corpus”, para garantir, ao ora paciente, o direito de ser colocado em liberdade, se por al não estiver preso, até o trânsito em julgado da condenação penal que lhe foi imposta, proferida nos autos do Processo-crime nº 001.2010.021.953-2, ora em curso perante o Juízo de Direito da Vara de Entorpecentes da comarca de Campina Grande/PB. Comunique-se, com urgência, transmitindo-se cópia da presente decisão ao E. Superior Tribunal de Justiça (HC 243.252/ PB), ao E. Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba (Apelação Criminal nº 001.2010.021.953.2/004) e ao Juízo de Direito da Vara de Entorpecentes da comarca de Campina Grande/PB (Processo-crime nº 001.2010.021.953-2). Arquivem-se os presentes autos. Publique-se. Brasília, 30 de maio de 2014. Ministro CELSO DE MELLO Relator. (HC 121140, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, julgado em 30/05/2014, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-107 DIVULG 03/06/2014 PUBLIC 04/06/2014).

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“Toda pessoa pode recorrer aos tribunais para fazer respeitar os seus direitos. Deve poder contar, outrossim, com processo simples e breve, mediante o qual a justiça a proteja contra atos de autoridade que violem, em seu prejuízo, qualquer dos direitos fundamentais consagrados constitucionalmente.”

Outro diploma legislativo a mencionar a necessidade de se informar rapidamente, no caso ao réu, foi o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, como se vê no item “a”, do inciso 3, do artigo 14.6 6 ARTIGO 14

1. Todas as pessoas são iguais perante os tribunais e as cortes de justiça. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com devidas garantias por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil. A imprensa e o público poderão ser excluídos de parte da totalidade de um julgamento, quer por motivo de moral pública, de ordem pública ou de segurança nacional em uma sociedade democrática, quer quando o interesse da vida privada das Partes o exija, que na medida em que isso seja estritamente necessário na opinião da justiça, em circunstâncias específicas, nas quais a publicidade venha a prejudicar os interesses da justiça; entretanto, qualquer sentença proferida em matéria penal ou civil deverá torna-se pública, a menos que o interesse de menores exija procedimento oposto, ou processo diga respeito à controvérsia matrimoniais ou à tutela de menores.



2. Toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa.



3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualmente, a, pelo menos, as seguintes garantias:



a) De ser informado, sem demora, numa língua que compreenda e de forma minuciosa, da natureza e dos motivos da acusação contra ela formulada;



b) De dispor do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa e a comunicar-se com defensor de sua escolha;



c) De ser julgado sem dilações indevidas;



d) De estar presente no julgamento e de defender-se pessoalmente ou por intermédio de defensor de sua escolha; de ser informado, caso não tenha defensor, do direito que lhe assiste de tê-lo e, sempre que o interesse da justiça assim exija, de ter um defensor designado exoffício gratuitamente, se não tiver meios para remunerá-lo;



e) De interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e de obter o comparecimento e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições de que dispõem as de acusação;



f) De ser assistida gratuitamente por um intérprete, caso não compreenda ou não fale a língua empregada durante o julgamento;



g) De não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.

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Na Constituição Federal, a razoável duração do processo foi inserida com a inclusão do inciso LXXVIII, no artigo 5º, por determinação da Emenda Constitucional nº 45 de 2004. Assim tivemos esse princípio, inserido como um direito fundamental, que in verbis assevera: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”

A inclusão expressa, não elidiu a afirmativa que tal princípio já existia no direito brasileiro desde 1992, quando o Brasil subscreveu o Pacto de São José da Costa Rica, pois em seu artigo 8º assevera que: “1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.”

4. a r azoável dur ação e os princípios processuais constitucionais Quando falamos de um processo finalizado em um prazo razoável, devemos entender que este princípio, está ligado também ao princípio do devido processo legal, pois quando pensamos no processo justa, a justiça também deve estar atrelado o prazo para a concessão da resposta por parte do órgão jurisdicional. Nelson Nery Junior, falando sobre o devido processo lega, assevera: “O devido processo legal (processo justo) pressupõe a incidência da isonomia; do contraditório; do direito à prova; da igualdade de armas; da motivação das decisões administrativas e judiciais; do direito ao silêncio; do direito de não produzir prova contra si mesmo e de não se auto incriminar; do direito de estar presente em todos os atos do processo; da presunção de inocência; do direito ao duplo grau de jurisdição no processo penal; do direito à publicidade dos atos processuais; do direito à duração razoável do processo...” (Nery.2013) 280

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Temos ainda, como importante princípio norteador da razoável duração, o contraditório e a ampla defesa, pois a resposta deve ser concedida em prazo razoável, sem deixar, todavia, de respeitar o contraditório e a ampla defesa. Assim o processo a ser concedido em tempo razoável deverá também, ser obtida com respeito à publicidade, a motivação das decisões judiciais, como garantidor do próprio devido processo legal. 5. a r azoável dur ação no supremo tribunal feder al O Supremo Tribunal Federal vem se manifestado sobre a razoável duração do processo em diversas decisões. Assim no habeas corpus nº 117166, que teve como relator o Ministro Teori Zavascki, se asseverou: Ementa: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. ALEGAÇÃO DE DEMORA NO JULGAMENTO DO MÉRITO DE WRIT MANEJADO NO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. SITUAÇÃO CONFIGURADORA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEM CONCEDIDA. I – O impetrante sustenta a demora para o julgamento de habeas corpus ajuizado no Superior Tribunal de Justiça. II – O excesso de trabalho que assoberba o STJ permite a flexibilização, em alguma medida, do princípio constitucional da razoável duração do processo. Precedentes. III – Contudo, no caso dos autos, a situação caracteriza evidente constrangimento ilegal, uma vez que, passado quase 1 ano do oferecimento do parecer pela Procuradoria-Geral da República, o writ ainda não foi levado a julgamento. IV – A demora para o julgamento do feito naquela Corte Superior configura negativa de prestação jurisdicional e flagrante constrangimento ilegal sofrido pelo paciente, apto a justificar a concessão da ordem para se determinar o imediato julgamento daquela ação. V – Habeas corpus conhecido, concedendo-se a ordem para determinar ao Superior Tribunal de Justiça que apresente o writ em mesa, para julgamento até a 10ª sessão, ordinária ou extraordinária, subsequente à comunicação da ordem. (HC 117166, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Relator(a) p/ Acórdão: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 20/08/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-251 DIVULG 18-12-2013 PUBLIC 19-12-2013)

Analisando a decisão proferida claramente notamos que a Suprema Corte vem exigindo que se cumpra o princípio da razoável duração, de forma que o volume

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mesmo não se torne uma letra morta na Constituição Federal, nem tão pouco seja visto como uma norma programática cuja aplicabilidade se pretende que um dia ocorra. Notamos que o posicionamento da rapidez da concessão jurisdicional, está presente também em decisões de origem processual civil, nestes temos o Ministro Dias Toffoli, no Recurso Extraordinário nº 535436 - AgR, não deu provimento ao recurso, asseverando: EMENTA: Agravo regimental no recurso extraordinário. Inconstitucionalidade do art. 4º da LC nº 118/05. Violação da cláusula de reserva de plenário. Afastamento. Prevalência, no caso, dos princípios da celeridade e da razoável duração do processo. 1. Em consonância com os princípios constitucionais da celeridade e da razoável duração do processo, não se justifica o retorno dos autos ao Tribunal de origem para que esse, ainda com maior delonga, se curve ao posicionamento já consagrado por este Supremo Tribunal Federal sobre o tema. 2. Ademais, tal proceder não acarreta prejuízo à recorrente, pois se vislumbra o julgamento final da demanda, recaindo na mesma conclusão de feito já julgado por esta Corte. 3. Existência de entendimento pacífico deste Supremo Tribunal Federal sobre o tema, pois, na sessão de 4 de agosto de 2011, o Plenário, ao apreciar o mérito do RE nº 566.621, Relatora a Ministra Ellen Gracie, declarou a inconstitucionalidade do art. 4º da LC nº 118/05. 4. Agravo regimental ao qual se nega provimento. (RE 535436 AgR, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 30/10/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-238 DIVULG 04-12-2012 PUBLIC 05-12-2012)

Vemos, pois que em inúmeros casos tem os Tribunais se empenhado em garantir que o princípio da razoável duração seja cumprido, inclusive como no primeiro exemplo, entendendo que a demora representa o constrangimento ilegal da parte que espera o provimento jurisdicional pleiteado. 6. a dur ação r azoável no tribunal constitucional espanhol A razoável duração do processo já é uma preocupação no direito espanhol a muito tempo, pois lá se tem os princípios processuais constitucionais, que vemos 282

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dispostos em diversos incisos do artigo 5º, concentrado em um único artigo, qual seja o artigo 24 que diz: “1.Todas las personas tienen derecho a obtener la tutela efectiva de los jueces y tribunales en el ejercicio de sus derechos e intereses legítimos, sin que, en ningún caso, pueda producirse indefensión. 2.Asimismo, todos tienen derecho al Juez ordinario predeterminado por la ley, a la defensa y a la asistencia de letrado, a ser informados de la acusación formulada contra ellos, a un proceso público sin dilaciones indebidas y con todas las garantías, a utilizar los medios de prueba pertinentes para su defensa, a no declarar contra sí mismos, a no confesarse culpables y a la presunción de inocencia. 3.La ley regulará los casos en que, por razón de parentesco o de secreto profesional, no se estará obligado a declarar sobre hechos presuntamente delictivos.”7

A razoável duração já é questionada em julgados como o proferido na sentencia 1338 de 18 de julho de 1988, a 1ª Sala do Tribunal Constitucional, quando se 7 Artigo 24 – Todas as pessoas têm direito a obter a tutela efetiva dos juízes e tribunais em exercício de seus direitos e interesses legítimos, sem que, em nenhum caso, possa produzir à impotência.

Todos também têm direito ao juiz ordinário predeterminado pela lei, à defesa e à assistência de um advogado, para ser informado sobre a acusação contra eles, de um processo público, sem demora e com todas as garantias, usar os meios de ensaio pertinentes para sua defesa, para não testemunhar contra si próprios, para não confessar culpado e a presunção de inocência.



A lei rege casos onde, por motivo de parentesco ou sigilo profissional, não será obrigado a testemunhar sobre alegados atos criminosos (tradução livre). 8 SENTENCIA 133/1988, de 4 de julio de 1988

La Sala Primera del Tribunal Constitucional compuesta por don Francisco Tomás y Valiente, Presidente, y don Francisco Rubio Llorente, don Luis Díez-Picazo y Ponce de León, don Antonio Truyol Serra, don Eugenio Díaz Eimil y don Miguel Rodríguez Piñero y BravoFerrer, Magistrados, ha pronunciado



EN NOMBRE DEL REY



la siguiente

SENTENCIA

En el recurso de amparo 612/87 formulado por doña María Luz Albacar Medina, en nombre y representación de don Juan Carrillo Redondo, bajo dirección de Letrado, por dilación indebida en la tramitación de las diligencias previas núm. 2.159/84 incoadas por el Juzgado de Instrucción núm. 13 de Barcelona en virtud de querella del recurrente. En el recurso ha comparecido el Ministerio Fiscal. Ha sido Ponente el Magistrado don Miguel RodríguezPiñero y Bravo-Ferrer quien expresa el parecer de la Sala.

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I. Antecedentes



1. Por escrito presentado en este Tribunal el día 8 de mayo de 1987, doña María Luz Albacar Medina, Procuradora de los Tribunales, en nombre de don Juan Carrillo Redondo, interpone recurso de amparo constitucional, por la violación del art. 24.2 de la Constitución, frente a la pasividad procesal del Juzgado de Instrucción núm. 13 de Barcelona, en la tramitación de las diligencias previas núm. 2.159/84 de la que es querellante el señor Carrillo Redondo, por los delitos de calumnia, usurpación de funciones y allanamiento de morada.



2. La demanda se basa en los siguientes hechos:



a) Don Juan Carrillo Redondo formuló querella el día 29 de marzo de 1984 por los delitos de calumnia, usurpación de funciones y allanamiento de morada contra el Director de la revista «Interviú», el representante de Ediciones Zeta, los periodistas señores Rubio y Alegre y contra el fotógrafo señor Parra, solicitando, como diligencias, que se le recibiera declaración a los querellados y se recabara de la policía determinada acta de entrada y de registro.



El Juzgado de Instrucción núm. 13 de los de Barcelona al que correspondió el reparto, admitió la querella por Auto de 18 de abril de 1984, incoando las diligencias previas núm. 2.159/84, en las que tuvo por parte al querellante, ordenando que se les recibiera declaración a los querellados, y se librara oficio a la policía. El 25 de abril de 1984 declaran los querellados señores Rubio, Alegre, que lo volvieron a hacer el 7 de junio de 1984, entregando una cinta magnetofónica que el Juez oye y les devuelve precintada. El 18 de mayo de 1984 declaran el querellado señor Parra, y por «Interviú» el señor Alvarez Puga. También declara el representante de Ediciones Zeta, el 24 de mayo siguiente.



Por Auto de 22 de mayo de 1984, se acuerda el sobreseimiento provisional para los señores Alvarez Puga y Asensio, en virtud de lo dispuesto en el art. 15, en relación con el 13, del Código Penal. Aunque se dice por diligencia de dicho Auto se notifica a la Procuradora del querellante con entrega de copia, no aparece la firma de la Procuradora.



El 7 de junio de 1984, declara el querellante. El 24 de julio siguiente se emite informe pericial sobre la cinta magnetofónica solicitada por el Juez al señor Rubio.



El 10 de agosto de 1984, el querellante presenta escrito alegando indefensión por no haber intervenido en la audición de la cinta y pide que se repita en su presencia.



El Juzgado no provee a esta petición, ni impulsa ninguna actividad procesal en los seis meses siguientes. Cuando éstos se van a cumplir, el querellante presenta escrito el 8 de febrero de 1985, instando que se provea lo pedido en agosto de 1984, esto es -según dice- el procesamiento de los autores del artículo periodístico, extremo al que, sin embargo, no se refería el aludido escrito de agosto de 1984. Alega indefensión por no haberse proveído nada «debido al excesivo trabajo de este Juzgado».



Por providencia de 25 de marzo de 1985, se acuerda «quede sobre la mesa para acordar lo procedente». Nada se acuerda hasta el 3 de octubre de 1985, en que se recaba de la policía el acta sobre entrada y registro en el domicilio del querellante, informando la policía el 12 de noviembre siguiente, que el acta se mandó al Juzgado de Instrucción número 9 que fue el que ordenó la entrada y registro, por mandamiento de 9 de agosto de 1983. De nuevo se paraliza la tramitación, al no existir ninguna diligencia judicial posterior.



El 25 de junio de 1986 solicita la representación del querellante que se continúe la tramitación de las diligencias que carecen de la adecuada agilidad procesal. No se dicta ninguna resolución al respecto y el 29 de septiembre de 1986 el querellante reitera, por nuevo escrito,

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preocuparam com o tempo que se gastaria com a instrução, e como isso poderia que se provea sobre los anteriores y que las diligencias sigan su curso normal, dado que las últimas providencias dictadas lo fueron en 1985 (25 de marzo y 3 de octubre). Tampoco se provee nada, y el querellante presenta nuevo escrito el 16 de octubre de 1986 en el que invoca expresamente el art. 24 de la Constitución y su derecho a un proceso sin dilaciones indebidas, reiterando, una vez más, la petición de que se provean sus escritos. El Juzgado nada resuelve hasta el 2 de marzo de 1987 en que dicta providencia recabando informes del Ministerio Fiscal, el cual al día siguiente se limita a interesar que se notifique a las partes el Auto de 22 de mayo de 1984. Nada se resuelve y por diligencia de 30 de junio de 1987 se hace constar que fueron devueltos por Fiscalía aproximadamente el 30 de mayo y que las diligencias se habían archivado por error.

3. La demanda de amparo solicita que se reconozca el derecho del recurrente de obtener un proceso sin dilaciones indebidas en cumplimiento del art. 24 de la Constitución dada la pasividad procesal del Juzgado de Instrucción y la evidente dilación de las actuaciones. Destaca que tal y como se encuentra regulado el delito de calumnias cuenta con un plazo de prescripción de un año, por lo que se ha tenido que ir presentando sucesivos escritos al objeto de evitar que se declararan prescritos los delitos de calumnia, puestos de manifiesto en la querella criminal.



En el suplico solicita se dicte Sentencia otorgando el amparo solicitado reconociendo el derecho de obtener el proceso sin dilaciones indebidas.



4. Por providencia de 17 de junio de 1987 la Sección acordó admitir a trámite la demanda de amparo, y solicitar del Juzgado de Instrucción núm. 13 de los de Barcelona, la remisión de las actuaciones, así como el emplazamiento de quienes sean parte en la vía judicial.



El Juzgado de Instrucción tras averiguar el paradero de los querellados a fin de emplazarlos envía las actuaciones, sin que hayan comparecido ante este Tribunal ninguno de los querellados.



Por providencia de 7 de octubre de 1987 se acordó conceder un plazo común de veinte días a la representación del solicitante de amparo y al Ministerio Fiscal para la formulación de alegaciones.



La representación del solicitante de amparo no ha formulado alegaciones.



El Ministerio Fiscal en su escrito de alegaciones sostiene que la única cuestión a resolver en el presente recurso de amparo es la de si se ha vulnerado el derecho fundamental a un proceso sin dilaciones indebidas reconocido en el art. 24 de la Constitución, o a que la causa sea resuelta en un tiempo razonable, como establece el art. 6.1 del Convenio Europeo de 1950, teniendo en cuenta lo que dispone el art. 10.2 de nuestra Norma fundamental. Recuerda seguidamente la jurisprudencia constitucional sobre la cuestión, poniendo de relieve que es en el proceso penal donde el ámbito temporal de la efectividad de la tutela judicial tiene mayor relieve.



Sostiene que las dilaciones indebidas en el proceso judicial en que este constitucional trae causa son manifiestas y lesionaron el art. 24.2 de la Constitución, pues se debieron a una inactividad procesal no fundada ni razonable, imputada a órgano judicial, cualquiera que haya sido la impericia del querellante, que no obstante solicitó reiteradamente del Juzgado agilizar la resolución del proceso. Las diligencias del art. 789 de la Ley de Enjuiciamiento Criminal constituyen una instrucción inicial indiferenciada y han de practicarse sin demora y exclusivamente para determinar la naturaleza y circunstancias del hecho, las personas que han

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participado y el procedimiento aplicable, conducente a la salida que el propio artículo señala en las reglas primera a quinta. Son, por definición de la ley, «las esenciales» y no deben utilizarse nada más que para los fines señalados en el precepto ni por más tiempo del que sea preciso para ello, sin que se demoren más de lo necesario, ni puedan convertirse, por corruptela, en un nuevo procedimiento, desvirtuando su naturaleza, lo que en este caso ha ocurrido de forma notoria, pues iniciadas en marzo-abril de 1984 (querella y Auto de inadmisión) en mayo de 1987, cuando después de tres largos años se formula recurso de amparo, no se había adoptado ninguna de las resoluciones que el Juzgado imperativamente tenía que haber acordado para tres de los querellados por propio impulso, pues las diligencias previas, por su propio carácter son instrucción de oficio, a diferencia de las «diligencias preparatorias» o del «enjuiciamiento oral» en las que tienen entrada la rogación o iniciativa de la parte. Añádase a ello el que en estos tres años hubo al menos cuatro períodos de paralización total, de seis meses de promedio, a pesar de que los dos primeros meses desde su inicio ya se habían practicado «las esenciales» para acordar el archivo (como se hizo para dos de los imputados) o transformarlo en sumario ordinario o de urgencia o preparatoria (hoy enjuiciamiento oral de la Ley Orgánica 10/1980) para los otros tres querellados, tanto más cuanto uno de los delitos objeto de la querella, el de calumnia, prescribe al año, como establece el art. 113 del Código Penal y subraya el recurrente.

Esa transformación es la que debía haber solicitado el querellante para posteriormente pedir el procesamiento, o lo que procediera para formular la acusación según la clase de procedimiento que se hubiera incoado, a partir de la transformación de las diligencias previas. El no haberlo hecho así no puede justificar, en modo alguno, la inactividad judicial, a pesar de las reiteradas veces en que el querellante instó a la práctica de una diligencia concreta o la genérica actividad procesal. Debe reconocerse al solicitante de amparo su derecho a un proceso sin dilaciones indebidas, para lo cual el Juzgado debe acordar, sin demora, cualquiera de las soluciones que al respecto establece el art. 789 de la Ley de Enjuiciamiento Criminal.



5. Por providencia de 14 de marzo de 1988, la Sala acordó señalar para deliberación y votación del presente recurso, el día 4 de julio de 1988.



II. Fundamentos jurídicos



1. La única cuestión a resolver en el presente recurso de amparo es la de si se ha vulnerado el derecho fundamental a un proceso sin dilaciones indebidas reconocido en el art. 24.2 de la Constitución. Por su propia naturaleza el proceso está destinado a desarrollarse en el tiempo, por lo que la tutela judicial ha de prestarse «tempestivamente». Como este Tribunal ha venido afirmando, el derecho a la jurisdicción reconocido en el art. 24.1 de la Constitución no puede entenderse como algo desligado del tiempo en que la tutela judicial debe prestarse por los órganos judiciales, sino que ha de ser comprendido en el sentido que se otorgue por éstos dentro de los razonables términos temporales en que las personas lo reclaman en el ejercicio de sus derechos e intereses legítimos. Nuestra Constitución no sólo ha integrado el tiempo como exigencia objetiva de la justicia, sino que, además, ha reconocido como garantía individual el derecho fundamental a un proceso sin dilaciones indebidas, autónomo respecto al derecho a la tutela judicial efectiva (STC 36/1984, de 14 de marzo), aunque ello no significa negar la conexión entre ambos derechos (STC 26/1983, de 13 de abril), el derecho a un proceso sin dilaciones indebidas ha de ser considerado como un derecho autónomo.



Por «proceso sin dilaciones indebidas» hay que entender con la STC 43/1985, de 22 de marzo, el proceso que se desenvuelve en condiciones de normalidad dentro del tiempo requerido y en

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el que los intereses litigiosos pueden recibir pronta satisfacción. El mero incumplimiento de los plazos procesales no es constitutivo por si mismo de violación de este derecho fundamental, pues el art. 24.2 de la Constitución no ha constitucionalizado el derecho al respeto de esos plazos (STC 5/1985, de 23 de enero), por lo que no toda dilación o retraso en el proceso puede identificarse con tal violación constitucional, sino que las dilaciones indebidas han sido entendidas por este Tribunal como un supuesto extremo de funcionamiento anormal de la Administración de Justicia, con una irregularidad irrazonable en la duración mayor de lo previsible o tolerable, y además imputable a la negligencia o inactividad de los órganos encargados de la Administración de Justicia (Auto de 17 de julio de 1985). La razonabilidad de la duración del proceso debe tener en cuenta la especificidad del caso concreto y ponerse en relación con la correspondiente decisión que se pretende del órgano judicial y respecto a la cual se predica el excesivo retraso constitutivo de una dilación indebida.

Como ha dicho la STC 36/1984, de 14 de marzo, el concepto de proceso sin dilaciones indebidas es manifiestamente un concepto indeterminado o abierto que ha de ser dotado de contenido concreto en cada caso atendiendo a criterios objetos congruentes con su enunciado genérico. Requiere una concreción y apreciación de las circunstancias del caso para poder deducir de ellas la irrazonabilidad y el carácter excesivo del retraso, que sea causado por órganos encargados de la Administración de Justicia, mediante «tiempos muertos» en que no se realiza actividad alguna utilizable y utilizada a los fines del juicio.



El Tribunal Europeo de los Derechos Humanos ha establecido unos criterios que pueden ser útiles para apreciar el carácter indebido o irrazonable de la dilación al interpretar el art. 6.1 del Convenio Europeo para la Protección de los Derechos Humanos, según el cual toda persona tiene derecho a que su causa sea oída «dentro de un plazo razonable». En una consolidada jurisprudencia (entre otros, asuntos Zimmermann y Steiner, Sentencia de 13 de julio de 1983; Lechner y Hess, Sentencia de 23 de abril de 1987, y Capuano, Sentencia de 25 de junio de 1987), el Tribunal de Estrasburgo ha venido afirmando que el carácter razonable de la duración de un procedimiento debe apreciarse teniendo en cuenta las circunstancias de la causa y considerando una serie de criterios, como son los de la complejidad del asunto, la conducta de los reclamantes, la conducta de las autoridades implicadas y las consecuencias que de la demora se siguen para los litigantes.



Resulta necesario comprobar, a la luz de estos criterios, si en el presente caso se ha dado un funcionamiento anormal en el tiempo de la Administración de Justicia que, como dilación indebida, haya conculcado el derecho fundamental reconocido en el art. 24.2 de la Constitución.



2. No es ocioso recordar sintéticamente las fases del desarrollo del procedimiento penal, objeto del presente recurso de amparo, y del que se ha hecho ya mención más extensa en los antecedentes de esta Sentencia.



El solicitante de amparo formuló querella criminal contra determinadas personas ante el Juzgado de Instrucción correspondiente de Barcelona el 29 de marzo de 1984. La querella fue admitida por Auto de 18 de abril de 1984, incoándose unas diligencias previas en que fueron llamados a declarar, entre el 25 de abril y el 24 de mayo siguiente, y en fechas distintas los diversos querellados. Por Auto de 22 de mayo de 1984 se acuerda el sobreseimiento provisional para dos de los querellados en virtud de lo dispuesto en el art. 15, en relación con el 13, del Código Penal, Auto que según las actuaciones no resulta se hubiera notificado al querellante. Dos de los querellados, llamados a declarar de nuevo el 7 de junio siguiente entregan una cinta magnetofónica al Juez, y el 24 del mismo mes se emite informe pericial sobre la cinta.

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A partir de ese momento el procedimiento se paraliza, pese a que el 10 de agosto de 1984 el recurrente protestara por no haber oído la grabación que parece contener la exceptio veritatis, y pidiera su audición, petición que queda sin responder, y que se reitera el 8 de febrero de 1985 en que el querellante solicita además del procesamiento de los periodistas y alega indefensión. El 25 de marzo siguiente el órgano judicial acuerda que el escrito quede sobre la mesa y no se provee hasta siete meses después (3 de octubre de 1985) en que se recaba de la policía el acta sobre entrada y registro en el domicilio del querellante, lo que se ordena por providencia de 3 de octubre de 1985, informando la policía que tal acta se mandó en su momento al Juzgado de Instrucción núm. 9. De nuevo no hay ninguna actuación del órgano judicial y el procedimiento queda paralizado.



El 25 de julio de 1986 el querellante solicita por escrito que se continúe la tramitación de las diligencias y se practiquen las solicitadas en su día, sin recibir respuesta alguna. Reitera su petición el 29 de septiembre siguiente, repitiéndola el 6 de octubre de 1986 haciendo invocación expresa de su derecho a un proceso sin dilaciones indebidas. Sin embargo, el Juzgado nada resuelve hasta el 2 de marzo de 1987, en que recaba informe del Ministerio Fiscal, que lo emite el día siguiente interesando que se notificara a las partes el Auto de 22 de mayo de 1984. Nada se resuelve y, finalmente, por diligencia de 30 de junio de 1986 se hace constar que los autos fueron devueltos por la Fiscalía aproximadamente el 30 de mayo y que, por error, fueron archivados. También a partir de ese momento, y hasta el momento de recibirse las actuaciones en este Tribunal, no se produce ninguna actuación judicial en el procedimiento.



El solicitante de amparo limita su queja al desarrollo en el tiempo de las diligencias previas del art. 789 de la Ley de Enjuiciamiento Criminal, sin formular queja alguna frente a la anomalía de la posible falta de notificación del sobreseimiento provisional para dos de los querellados, en virtud de lo dispuesto en el art. 15, en relación con el 13, del Código Penal. Hemos de limitarnos por ello, en el marco de su pretensión, a examinar si en la tramitación de su querella y en el desarrollo en el tiempo de las diligencias previas, se ha producido la dilación indebida aquí denunciada.



3. Procede ahora valorar si tales retrasos han sido constitutivos de dilaciones indebidas a los efectos del art. 24.2 de la Constitución, para lo que hemos de utilizar los criterios objetivos anteriormente expuestos para valorar la razonabilidad de la duración del procedimiento.



Antes de entrar en el examen de los mismos resulta necesario hacer una consideración preliminar y es la de que los eventuales retrasos que se han producido en el presente caso han tenido lugar en el marco de las diligencias previstas en el art. 789 de la Ley de Enjuiciamiento Criminal, y por ello con antelación al inicio del proceso propiamente dicho. Sin embargo, en la medida que estos actos preparatorios, de carácter judicial, condicionan la posibilidad de apertura del proceso, y teniendo en cuenta, además, que la presentación de la querella implica el ejercicio de una pretensión, ha de entenderse que el retraso en tales diligencias se encuentra también protegido por el derecho reconocido en el art. 24.2 de la Constitución a un proceso sin dilaciones indebidas. Pues lo contrario supondría admitir el aplazamiento indefinido del ejercicio de la pretensión.



Resulta evidente que las diligencias previas del art. 789 de la Ley de Enjuiciamiento Criminal constituyen, como recuerda el Ministerio Fiscal, una instrucción inicial indiferenciada, sólo para determinar la naturaleza y circunstancias del hecho, las personas que en él han participado y el procedimiento aplicable conducente a las salidas que el propio artículo señala

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en sus reglas primera a quinta. Por definición, tales diligencias son, según la ley, sólo las «esenciales», y no pueden utilizarse para otros fines que los señalados en el precepto, ni más tiempo del que se precise para ello («sin demora»), so pena de convertirse, por una inaceptable corruptela, en un nuevo procedimiento, desvirtuando su naturaleza. En el presente caso, no cabe duda que la investigación estaba ya lo suficientemente madura para adoptar una decisión al respecto, ya sea para acordar el archivo (como se hizo para los dos imputados) o ya sea para transformar las diligencias en sumario ordinario o de urgencia o en preparatorios (hoy enjuiciamiento oral de la Ley Orgánica 10/1980) para los otros tres querellados, tanto más cuando uno de los delitos objeto de la querella, el de calumnia, prescribe al año (art. 113 del Código Penal). No debe olvidarse además que, aun en el caso de que la estructura del proceso se basase en la configuración de una fase instructora autónoma, el objetivo de una duración razonable del proceso se pone particularmente en peligro, si se dilata irrazonablemente dicha fase de instrucción por tener una relevancia directa sobre la propia apertura del juicio, como ha tenido ocasión de subrayar la Comisión Europea de Derechos Humanos (casos Haase, 12 de julio de 1977, y Buchholz, 6 de mayo de 1981). No se ha tratado pues de un asunto tan particularmente complejo que pudiera hacer razonable el dilatamiento de la decisión.

El retraso no puede imputarse, por otro lado, a la conducta del querellante. Tal sería si su conducta procesal pudiera considerarse objetivamente como un obstáculo para el desarrollo del procedimiento, para obedecer a una lógica injustificadamente dilatoria, de no colaboración o incluso de obstruccionismo. Es cierto que el querellante debería haber solicitado la transformación de las diligencias previas en sumario ordinario, de urgencia o preparatorias (hoy enjuiciamiento oral), para posteriormente pedir el procesamiento o lo que procediera para formular la acusación, según la clase de procedimiento que se hubiere incoado a partir de la transformación de las diligencias previas. Sin embargo, la impericia de la parte no puede justificar la inactividad del órgano judicial, dado el impulso de oficio que caracteriza esa fase de instrucción en el proceso penal, al ser plenamente perseguible ex officio dos de los tres presuntos delitos objeto de la querella. Aun más, la parte ha estado denunciando reiteradamente la inactividad del órgano judicial y ha realizado peticiones concretas que en la mayor parte de los casos no han merecido respuesta expresa alguna del Juzgado.



En tercer lugar y en relación con la actuación del órgano judicial, no consta en los autos explicación alguna que pueda considerar justificada la dilación. Antes bien, llama la atención que un primer momento, y al presentarse la querella, las actuaciones procesales se desarrollan normalmente en el tiempo, pero desde mediados de 1984, coincidiendo aproximadamente con dictarse el Auto de sobreseimiento parcial, se producen fases amplias de paralización de las actuaciones y, lo que es más grave, el órgano judicial no ha adoptado, tras más de tres años de formularse la querella, ninguna de las resoluciones que imperativamente según los términos de la ley, había de haber acordado, y por propio impulso, dado el carácter de instrucción de oficio de estas diligencias.



Finalmente ha de tenerse en cuenta que el retraso en la resolución de la pretensión del actor podría haber supuesto, en la medida en que la misma presuntamente estaban en juego algunos de sus derechos fundamentales (derecho al honor, a la inviolabilidad del domicilio, etc.) una desprotección judicial de tales derechos fundamentales que se intentaban tutelar a través del ejercicio de la acción penal. Por otro lado, la prolongación de esta situación puede haber perjudicado también a las personas frente a las que la querella se ejercita en cuanto que el retraso procesal les ha podido ocasionar una prolongación innecesaria de una situación de incertidumbre sobre la aceptación o rechazo definitivo de la acusación; precisamente por ello

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ser um impeditivo ao princípio da duração razoável.9 Em outra decisão, datada de janeiro de 2007, no recurso de amparo 7373, o Magistrado don Eugeni Gay Montalvo, em voto divergente entende que o recurso deveria ser provido, posto que, em três oportunidades distintas a parte denunciou o desrespeito a duração razoável, inclusive com reconhecimento da postergação na sentença do processo. Diz in verbis: En primer lugar, porque a lo largo del proceso tal denuncia se realizó en momentos diversos, que tan sólo dieron lugar a actuaciones judiciales de carácter estrictamente formal y carentes de eficacia alguna para dar impulso al proceso, frustrando así el propio órgano judicial el objetivo perseguido por la exigencia de advertencia previa. Comparto en este punto el parecer del Ministerio Fiscal es en el proceso penal donde ha de exigirse con mayor rigor la razonabilidad de la duración del proceso.

A la vista de las consideraciones precedentes ha de admitirse que en el presente caso ha existido un funcionamiento anormal en el tiempo de la Administración de Justicia que, como dilación indebida, viola el derecho reconocido en el art. 24.2 de la Constitución y ha impedido al justiciable obtener en un plazo razonable una decisión judicial sobre su querella. En la fase inicial en que se encontraba el procedimiento, la estimación del amparo sólo puede producir el efecto de imponer al órgano judicial el acordar la adopción «sin demora» alguna de las decisiones previstas en el art. 789 de la Ley de Enjuiciamiento Criminal, con las consecuencias que de esa resolución se derive, para que se siga tramitando, en su caso, y sin dilaciones indebidas, el correspondiente procedimiento penal.

Fallo

En atención a todo lo expuesto, el Tribunal Constitucional, POR LA AUTORIDAD QUE LE CONFIERE LA CONSTITUCION DE LA NACION ESPAÑOLA,



Ha decidido



Otorgar el amparo solicitado por don Juan Carrillo Redondo, y en su virtud:



1.° Reconocer el derecho del recurrente a un proceso sin dilaciones indebidas en cumplimiento del art. 24.2 de la Constitución.



2.° Ordenar al Juzgado de Instrucción núm. 13 de Barcelona que, en las diligencias previas núm. 2.159/84, adopte sin demora, de acuerdo a lo dispuesto en el art. 789 de la Ley de Enjuiciamiento Criminal, alguna de las resoluciones previstas en dicho artículo.



Publíquese esta Sentencia en el «Boletín Oficial del Estado».

Dada en Madrid, a cuatro de julio de mil novecientos ochenta y ocho. 9 No debe olvidarse además que, aun en el caso de que la estructura del proceso se basase en la configuración de una fase instructora autónoma, el objetivo de una duración razonable del proceso se pone particularmente en peligro, si se dilata irrazonablemente dicha fase de instrucción por tener una relevancia directa sobre la propia apertura del juicio, como ha tenido ocasión de subrayar la Comisión Europea de Derechos Humanos.

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cuando afirma que “no cabe atribuir comportamiento negligente a la parte que ha llegado denunciar las dilaciones en tres ocasiones en escritos de 24 de enero de 2001, 21 de mayo de 2001 y 11 de marzo de 2002, sin que los mismos hayan sido proveídos por la autoridad judicial ni hayan tenido efecto en orden a la aceleración del proceso”, o cuando señala que los actos procesales del Juzgado consecuencia de dichas denuncias dieron lugar a actos no útiles para el desarrollo y terminación del proceso habida cuenta de que las frases “se tienen por hechas las manifestaciones”, “procederse a verificar el estado de la causa”, o “líbrese el testimonio de lo actuado”, aunque cubren formalmente la secuencia procesal, no contribuyen a paliar el derecho fundamental de la parte a un proceso sin dilaciones indebidas, “dando la sensación de que se confunde el principio dispositivo del proceso civil con la pasividad del Juzgado en orden a preservar valores superiores del ordenamiento jurídico como lo son los derechos fundamentales”, que precisamente le corresponde, de manera muy especial, reparar al órgano jurisdiccional ante quién se impetra justicia. En estas circunstancias entiendo que no puede exigirse una denuncia reiterada y constante, cada vez que existe una mínima y formal actuación judicial, esquivando el problema para poder entender cumplidos los requisitos procesales de una demanda de amparo, so pena de incurrir en una visión excesivamente estanca y formal de los actos procesales que configuran el procedimiento. En casos tan llamativos como el presente, es oportuno y necesario tener una visión más horizontal y conjunta del proceso y de los actos que lo conforman. En mi opinión, por lo tanto, si la denuncia tiene como finalidad que el órgano judicial conozca el problema jurídico constitucional planteado, para que lo repare de modo efectivo y no de un modo meramente formal, pues sólo de esta forma considero que se cumple el mandato del art. 53.2 CE — que otorga una preferencia reparadora a la jurisdicción ordinaria y sólo subsidiaria a la constitucional—, que en el presente caso la recurrente cumplió sobradamente con la carga que le era propia, sin que se pueda pretender que reprodujera su queja hasta el infinito. Pero junto a ello, y dentro también de esta visión no formalista que propugno, considero, en segundo lugar, que el requisito procesal de la denuncia previa se produjo, además, en el acto procesal que, sin embargo, rechaza la Sentencia de la que discrepo. Me refiero al escrito firmado por la propia demandante y presentado el 25 de volume

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noviembre de 2003 ante el Juzgado Decano de Orihuela donde se solicitaba Abogado y Procurador de oficio para acudir en amparo ante este Tribunal por cuanto en el mismo se exponía que la causa del mismo eran las dilaciones indebidas y la superación de todo plazo razonable en el proceso del que trae su causa el presente recurso de amparo y se exponía que el escrito servía asimismo a modo de denuncia [“por las dilaciones indebidas producidas en los autos antes mencionados, como informo de ello a este Tribunal (de cuyo escrito acompaño fotocopia), solicito designación de abogado y procurador de oficio”]. Ciertamente no se trata de una advertencia al órgano judicial al que se imputan las dilaciones, pero en el marco de unas circunstancias como las presentes, caracterizadas por un activismo judicial inexistente y en cierto modo virtual, por estrictamente formal e ineficaz, la puesta en conocimiento de lo acaecido en el Decanato y la solicitud de asistencia a través de éste ante la “pasividad activa” del órgano judicial competente, en todo caso impiden detectar en la recurrente una actitud negligente o pasiva que, ahora, le hagan merecedora del reproche procesal.10

10 Em primeiro lugar, porque em todo o processo de denúncia foi feita em momentos diferentes, que só deram origem ao Judiciário estritamente formal e carente de eficácia qualquer performances para dar um impulso ao processo, frustrando corpo judicial então se o objetivo perseguido pela exigência de aviso prévio. Partilho a opinião do Ministério público neste ponto quando ele diz que “não podemos ser negligente comportamento atribuído à parte que tem vindo a denunciar os atrasos em três ocasiões nos escritos de 24 de janeiro de 2001, em 21 de maio de 2001 e 11 de março de 2002, a menos que eles foram fornecidos pela autoridade judicial nem tiveram efeito em ordem para a aceleração do processo”, ou quando disse que os atos processuais do resultado de tais alegações do Tribunal deram origem aos atos não é útil para o desenvolvimento e conclusão do processo, tendo em conta que as frases “manifestações são por feitos”, “proceder para verificar o status da causa”, ou “entregar o testemunho do processo”, embora formalmente cobrem a sequência processual, não contribui para corrigir o direito fundamental da parte de um processo sem demora, “dando a sensação de que confundiu o dispositivo do princípio do processo civil com a passividade do Tribunal a fim de preservar os valores mais altos do sistema legal como eles são direitos fundamentais”, que corresponde precisamente, de uma forma muito especial, reparando ao tribunal antes quem é justiça impetra.

Nestas circunstâncias, que entendo que não pode ser exigida uma queixa frequente e constante, sempre que há uma ação judicial formal e mínima, evitar o problema de entender cumprido os requisitos processuais de um pedido de amparo, sob pena de incorrer em excessivamente apertado e formal insight atos processuais que compõem o procedimento. Impressionante como o presente, é oportuno e necessário ter uma visão mais horizontal e processo conjunto e atos que integram. Na minha opinião, portanto, se a denúncia tem como propósito para o encontro de tribunal o problema jurídico constitucional levantado, então reparar eficazmente e não de uma forma puramente formal, porque só assim, acredito que está em conformidade com o mandato do artigo 53,2 CE - que dá uma reparação à jurisdição ordinária e apenas subsidiária à

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7. conclusões Após um breve estudo sobre o tema proposto verificamos que a razoável duração do processo é, inquestionavelmente uma das maiores preocupações do judiciário atual. Não se pode pensar em Justiça se a mesma não for concedida em um prazo razoável, onde o judiciário responde aos questionamentos que lhe são imposto com segurança, mas em um prazo tido como razoável, levando-se em conta a própria complexidade do pleito judicial, e assegurando-se as partes todos os demais princípios processuais constitucionais, mas principalmente não se admitindo que o órgão jurisdicional não seja diligente em sua manifestação quando a Justiça e aos direitos dos seus jurisdicionados. Cabe também ressaltarmos que no ordenamento brasileiro essa preocupação surgiu tarde, pois como vemos o direito espanhol já se preocupava com o tema muito tempo antes, com as primeiras decisões da corte constitucional espanhol, sendo datadas de 1988. 8. referências BACRE. Aldo. Teoria general del processo. Tomo I. Editora Abeledo-Perrot: Buenos Aires. preferência constitucional -que no presente caso o recorrente conheceu mais do que o fardo que foi você próprio, sem isso é fingir que você replicar sua reclamação para o infinito.

Mas ao lado dele e dentro também esta visão não formalista que eu apoio, eu acho que, em segundo lugar, que o requisito processual da reclamação anterior ocorreu, além disso, no ato processual que, no entanto, rejeita o julgamento do qual discordo. Eu referir-se a carta assinada pelo requerente em si e apresentado em 25 de novembro de 2003 ao tribunal o Dean de Orihuela, onde solicitar o advogado e o escritório do Procurador para vir para a proteção deste tribunal a medida delineou que a causa do mesmo foram os atrasos indevidos e superando o tempo todo razoável no processo que traz sua causa o presente recurso de amparo e que delineou a escrita Ele também serviu como uma queixa [“pelo atraso indevido produzido pelos carros acima mencionados, como eu informar ao tribunal (de cuja escrita acompanhada uma fotocópia), solicitar a nomeação de advogado e o escritório do procurador”]. Certamente não é um aviso para o judiciário que atraso é acusado, mas no contexto de circunstâncias tais como o presente, caracterizado por um ativismo judicial inexistente e de forma virtual, pelo conhecimento de aplicação estritamente formal e ineficaz do que aconteceu na reitoria e o pedido de assistência, por isso antes de “passividade ativa” do órgão judicial competente de qualquer forma impedir detecta no recorrente uma atitude negligente ou passiva que, agora, fazê-lo digno da reprovação processual (tradução livre).

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CANOTILHO. J J Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4ª edição. Livraria Almedina: Coimbra. s/d DI IORIO. Alfredo J. Lineamentos de la teoria general del derecho processal. Ediciones Depalma: Buenos Aires: 2000 ECHANDÍA. Devis. Teoria general del processo. 2ª edicion. Editorial universidad: Buenos Aires. 1997. NERY, Nelson . Princípios do processo na Constituição Federal. 2º edição e-book baseada na 11ª edição impressa. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo. 2013 TUCCI. José Rogério Cruz e. Tempo e processo. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo. 1997. Sites pesquisados http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OEA-Organiza%C3%A7% C3%A3o-dos-Estados-Americanos/declaracao-americana-dos-direitos-edeveres-do-homem.html, acessado dia 13 de junho às 22.48 hs. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm acessado dia 14 de junho às 2:00 hs.

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o que o processo coletivo e o direito fundamental de acesso à justiça ganham com a participação procedimental democr ática do amicus curiae? Patrícia da Costa Santana1

Resumo Mostra-se necessário e atual investigar um meio que pode favorecer ainda mais a participação social nos conflitos coletivos destacando-se a importância de buscar-se o devido cumprimento constitucional do direito fundamental do acesso à justiça. Justifica-se a pesquisa na necessidade de redimensionamento do processo coletivo brasileiro em bases democráticas, a exigir a abertura do debate judicial a todos os interessados. O presente artigo se propõe a resolver o seguinte problema: em que medida a intervenção do amicus curiae em processos de tutela coletiva viabiliza a garantia do acesso à justiça no Brasil? O estudo busca demonstrar que a participação do amicus curiae nos processos de tutela coletiva de direitos mais do que possível e viável, segundo princípios constitucionais e processuais, é necessária para a viabilização da garantia do mais amplo acesso à justiça no Brasil, pois fortalece a legitimidade democrática, enriquece o debate processual, e influencia as decisões dos magistrados em processos que interessem a todos ou a muitas pessoas, como auxiliar do juízo, visando à correta apreciação do litígio e melhor aplicação da norma ao caso concreto. Ressalta-se no Brasil a utilidade da participação do amicus curiae nos processos de tutela coletiva de direitos, pela necessidade da pluralização do debate, para a integração de mais intérpretes e o aperfeiçoamento da prestação jurisdicional, propiciando a maximização do acesso à justiça com base em um modelo participativo.

Palavras-chave Amicus curiae; Direito fundamental de acesso à justiça; Processo coletivo.

1 Doutora em Direito Público – UFBA. Mestre em Direito Público – UFBA. volume

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Abstract It´s necessary and current to investigate the way that can encourage even more social participation in collective conflicts highlighting the importance of getting the due fulfilment of constitutional access to justice. The research justifies the need for resizing of the collective process, in democratic bases to demand the opening of the judicial debate to all interested parties. This article sets out to solve the following problem: to what extent the amicus curiae intervention in collective trusteeship processes enables the guarantee of access to justice in Brazil? The study seeks to demonstrate that the involvement of amicus curiae in cases of guardianship collective rights more than possible and feasible, according to constitutional principles and procedures, it is necessary for the viability of the guarantee of wider access to justice in Brazil, because it strengthens the democratic legitimacy, enriches the procedural debate, and influences the decisions of magistrates in processes that interest all or many people, as a helper of judgment, seeking the correct appreciation of the litigation and better application of the standard to the case. It should be noted in Brazil the usefulness of the participation of amicus curiae in cases of guardianship rights by the necessity of pluralization of the debate, for the integration of more interpreters and improving jurisdictional provision, allowing the maximization of access to justice based on a participatory model.

Key words Amicus curiae; Fundamental right of access to justice; Collective process. 1. introdução Destaca-se no Brasil a utilidade da intervenção do amicus curiae nos processos em que se busca a tutela coletiva de direitos, em razão da necessidade da pluralização do debate, da incorporação de mais intérpretes e do aperfeiçoamento da prestação jurisdicional, propiciando mais acesso à justiça com base em um modelo participativo. Mostra-se necessário e atual investigar um meio que pode favorecer ainda mais a inserção social nos conflitos coletivos destacando-se a importância de buscar-se o devido cumprimento constitucional do acesso à justiça, além de respeitar o comando constitucional que reza reger-se a República Federativa do Brasil, constituída sob a forma de Estado Democrático de Direito, dentre outros, 296

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pelos fundamentos da cidadania e do pluralismo político. Justifica-se a pesquisa na necessidade de redimensionamento do processo coletivo brasileiro em bases democráticas, a exigir a abertura do debate judicial a todos os interessados. O presente artigo se propõe a resolver o seguinte problema: em que medida a intervenção do amicus curiae em processos de tutela coletiva viabiliza a garantia do acesso mais democrático à justiça no Brasil? A leitura de artigos e ensaios que tratam de assuntos correlatos à efetividade da tutela coletiva de direitos, além da curiosidade científica acerca dos instrumentos para a garantia de tais direitos instigam a realização da pesquisa. Acrescentase, verificado o interesse da matéria, a utilidade do transporte da análise para o plano de exercício da cidadania, efetividade e tutela dos direitos. A relevância e a utilidade da abordagem proposta ressoam nítidas, bem assim a atualidade da matéria, num momento histórico em que existe crescente preocupação com a proteção e a concretização de direitos, bem como com a viabilização de acesso à justiça do maior número possível de cidadãos. 2. dos direitos coletivos ao processo coletivo - instrumento essencial de acesso à justiça O processo coletivo nasceu com a marcante necessidade de viabilização do acesso à justiça, visando à tutela de direitos que tivessem muitos titulares, mas em que as parcelas devidas a cada um fossem inestimáveis ou indivisíveis para sua manifestação em juízo2, ou para permitir que com apenas um processo e uma decisão todos os potencialmente afetados fossem abrangidos. Na jurisdição da common law reporta-se que o desenvolvimento da legislação da class action ou regras da group action deu-se pela conscientização da necessidade de um mecanismo eficiente para resolver disputas de interesse público com um escopo social expansivo. Relata-se, também, que o desenvolvimento da legislação 2 Valendo ressaltar a distinção que faz Teori Albino Zavascki de que os direitos coletivos comportam sua acepção no singular, inclusive para fins de tutela. Assim, embora indivisível, é possível conceber uma única unidade da espécie; o que é múltipla e indeterminada é a sua titularidade e daí sua transindividualidade. ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 41. volume

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de classe foi uma consequência de problemas sociais em grande escala, resultantes da economia global, cada vez mais interdependente e multinacional3, apesar do ceticismo diante do modelo da class action e a persecução privada (adversarial system)4, que mesmo nos EUA funciona mal, em comparação com o sistema alemão, segundo relato de Rolf Stürner, pois duram muito tempo e raramente terminam em sentença, sendo de 95% os casos de acordos que abordam a questão de maneira muito diversa da situação jurídica posta5. Conforme Rodrigo Mazzei, no campo do direito material, a aferição de direitos afetos à sociedade abre espectro diferenciado ao caráter individual das normas de índole privada, com a criação de restrições ao exercício de algumas faculdades, em hipóteses com potencialidade de gerar prejuízo social, passando assim, a ocorrer intervenções cada vez maiores nas relações privadas, pois houve o surgimento de questões vinculadas não apenas à relação solitária, nascendo questões ligadas ao direito de grupos e classes6. Sob outra ótica, é possível dizer que essa nova ordem de interesses7 chamados difusos ou coletivos abrange relações voltadas ao aprimoramento da qualidade 3 MULLENIX, Linda. General report – common law. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda. Os Processos Coletivos nos países de Civil Law e Common Law: uma análise de direito comparado. Novas tendências em matéria de legitimação e coisa julgada nas ações coletivas. São Paulo: RT, 2008, p. 270-271. 4 Há que se ressalvar, como informam Hermes Zaneti Jr. e Claudio Ferreira Ferraz, que: “Nos Estados Unidos, as normas que regulam as ações para defesa de direitos individuais homogêneos (class actions), presentes na Rule 23 das Federal Rules of Civil Procedure, seguindo tradição liberal, atribui a um membro do grupo titular do direito de origem comum a legitimidade, o que está coerente com a tradição individualista do país, onde existe uma dificuldade de se admitir a defesa de um direito por quem não seja seu titular. Entretanto, a ausência de previsão na Rule 23 da possibilidade de órgãos públicos proporem ações coletivas para discutir direitos individuais homogêneos não impede que o Estado, movido pelo interesse público, possa fazê-lo. Nestas hipóteses, as Cortes americanas têm aceito a iniciativa estatal fundada em uma antiga doutrina da common law, a parens patriae [...].” ZANETI JR., Hermes; FERRAZ, Claudio Ferreira. Parens patriae: a doutrina da legitimação dos órgãos do Estado para tutela coletiva. Revista de Processo – RePro, São Paulo, ano 37, n. 212, out. 2012. 5 STÜRNER, Rolf. Sobre as reformas recentes no direito alemão e alguns pontos em comum com o projeto brasileiro para um novo Código de Processo Civil. Revista de Processo – RePro, São Paulo, ano 36, n. 193, mar. 2011, p. 362, 364. 6 MAZZEI, Rodrigo. Ação popular e o microssistema da tutela coletiva. In: DIDIER JR., Fredie; MOUTA, José Henrique (Coord.). Tutela jurisdicional coletiva. Salvador: JusPODIVM, 2009, p. 375-376. 7 Há quem faça a diferenciação, como informa Wilson Malcher, entre interesses e direitos, cabendo dizer que o Código de Defesa do Consumidor, assim como o Código Modelo de

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de vida geral da uma coletividade, isto é, um número indefinido de pessoas que fruem comumente de seus benefícios, de maneira indivisível8. Eles não pertencem a uma pessoa determinada, mas a uma comunidade amorfa, fluida e flexível, com identidade social, mas não personalidade jurídica9. São qualificados, portanto, pela indivisibilidade do objeto e indeterminação dos titulares. A respeito desta questão, José Manoel de Arruda Alvim Netto, resume que não se verifica uma opinião comum acerca da conceituação. O assunto é objeto de discussões intensas no plano da doutrina, diminuindo em certa escala, em face do direito positivo10. Do reconhecimento e necessidade de tutela desses interesses emergiram novas formas de gestão da coisa pública, em que se afirmaram grupos intermediários, com tarefas atribuídas a estes mesmos corpos intermediários e às formações sociais, dotados de autonomia e funções específicas11. Mas não bastando reconhecer os novos direitos era necessário passar à sua tutela efetiva, cabendo ao direito processual a renovação. Ora inspirando-se ao sistema das class actions da common law12, ora estruturando novas técnicas, partindo dos

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Processos para Ibero-América adotam a dupla terminologia. MALCHER, Wilson de Souza. Intervenção de terceiros nas ações coletivas. Curitiba: Juruá, 2008, p. 69, 70. Para José Manoel de Arruda Alvim Netto cuida-se de interesses quando a ação é promovida para que a coletividade não seja lesada, enquanto de direito fala-se de hipótese de responsabilidade civil objetiva, por danos. De qualquer forma o autor considera que o objetivo da lei foi aumentar o rol dos bens juridicamente protegíveis. ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Instrumentos constitucionais direcionados à proteção dos direitos coletivos: ação civil pública e ação popular. In: MOREIRA, Alberto Camiña; ALVAREZ, Anselmo Prieto; BRUSCHI, Gilberto Gomes (Coord.). Panorama atual das tutelas individual e coletiva: estudos em homenagem ao professor Sérgio Shimura. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 178-179. MATTOS, Fernando Pagani Acesso à Justiça: um princípio em busca de efetivação. 1ª reimpressão. Curitiba: Juruá, 2011, p. 124. GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 26. ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Op. Cit., p. 146. GRINOVER, Ada Pellegrini. Relatório geral – civil law. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda. Os Processos Coletivos nos países de Civil Law e Common Law: uma análise de direito comparado. Novas tendências em matéria de legitimação e coisa julgada nas ações coletivas. São Paulo: RT, 2008, p. 229-230. Embora, como afirme Ada Pellegrini Grinover, seja preciso observar que os processos coletivos, nos países de civil law, em geral ainda não alcançaram o estágio de amadurecimento e evolução das class actions norte-americanas, a tendência é no sentido de cada vez mais países criarem verdadeiros sistema de processos coletivos. GRINOVER, Ada Pellegrini. Idem, p. 233. É correto falar nas class actions americanas, conforme expressa Linda Mullenix. MULLENIX,

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exercícios teóricos da doutrina italiana dos anos setenta, o Brasil constituiu um sistema de tutela jurisdicional dos interesses difusos imediatamente operativo13. Detendo-se um pouco sobre o estudo dos interesses coletivos ou difusos, para os países de civil law, é sabido que surgiu e floresceu na Itália nos anos setenta, quando Denti, Cappelletti, Proto Pisani, Vigoriti, Trocker anteciparam no Congresso de Pavia de 1974 as suas características: indeterminados pela titularidade, indivisíveis com relação ao objeto, colocados a meio caminho entre os interesses públicos e os privados, próprios de uma sociedade de massa e resultado de conflitos de massa, carregados de relevância política e capazes de transformar ou resignificar conceitos jurídicos estratificados14, como a responsabilidade civil pelos danos causados (no lugar da responsabilidade civil pelos prejuízos sofridos), a legitimação, a coisa julgada, os poderes e a responsabilidade do juiz e do Ministério Público, o próprio sentido da jurisdição, da ação e do processo15. Assinala Márcio Flávio Mafra Leal que as ações coletivas desafiam os teóricos a justificar duas de suas principais características, que são: a representação concentrada em uma ou mais pessoas dos interesses e direitos de indivíduos que pertencem a uma classe; e a vinculação do comando da sentença a terceiros que não fazem parte formalmente do processo16. Mesmo assim, a doutrina inclina-se a justificar a ação coletiva como um instrumento essencial de acesso à justiça, além de proporcionar economia processual, o que a fundamenta sob o ponto de vista sociológico e político17. Linda. General report – common law. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda. Os Processos Coletivos nos países de Civil Law e Common Law: uma análise de direito comparado. Novas tendências em matéria de legitimação e coisa julgada nas ações coletivas. São Paulo: RT, 2008, p. 256, 261-262. 13 GRINOVER, Ada Pellegrini. Op. Cit., p. 230. 14 GRINOVER, Ada Pellegrini. Significado social, político e jurídico da tutela dos interesses difusos. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria (Org.). Doutrinas Essenciais - Direitos Humanos: instrumentos e garantias de proteção. Vol. 5, São Paulo: 2011, p. 1.095. Publicado originalmente na Revista de Processo – RePro, 97/9, jan./mar. 2000. 15 GRINOVER, Ada Pellegrini. Relatório geral – civil law. Relatório geral – civil law. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda. Os Processos Coletivos nos países de Civil Law e Common Law: uma análise de direito comparado. Novas tendências em matéria de legitimação e coisa julgada nas ações coletivas. São Paulo: RT, 2008, p. 229. 16 LEAL, Márcio Flávio Mafra. Ações coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 17. 17 Ibid., p. 17-18, 21.

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Do ponto de vista político, a tutela coletiva guarda direta relação com a democratização do acesso à justiça, já que esta deve ser utilizada como meio de economia judicial e processual, impossibilitando que demandas dificultosas sirvam de óbice ao direito de ação, permitindo, ainda, a diminuição da propositura de ações similares. A tutela coletiva, cujas características são a peculiaridade da natureza coletiva do objeto tutelado, do sujeito legitimado e da extensão da eficácia da decisão e abrangência da coisa julgada18, é um resultado, do ponto de vista sociológico, no plano processual, das modificações que ocorrem nas raízes da sociedade; de uma concepção baseada no liberalismo e individualismo, para uma visão coletivizada do Direito, ao que se alinha a inviabilidade prática da defesa ou do acesso à justiça, por exemplo, pelo consumidor, quando individualmente considerado19. Constatou-se que apesar da possibilidade de todos poderem levar suas demandas ao Poder Judiciário, independentemente de sua situação econômica, nem todos os interesses e posições jurídicas de vantagem eram ainda passíveis de proteção por meio da prestação jurisdicional, em especial porque o direito processual foi construído com base em um sistema filosófico e político dominante na Europa continental, no qual se instituiu um culto ao individualismo, somente permitindo que alguém fosse a juízo na defesa de seus próprios interesses20. Todavia, para os novos direitos21, fundamentais para o desenvolvimento da sociedade, não poderia o Estado mais tratar apenas dos direitos individuais, 18 Vale destacar a opinião divergente de Márcio Flávio Mafra Leal que expressa que a indivisibilidade dos direitos difusos independe de um regime especial para a coisa julgada, porque deflui do atendimento do direito material. Já para os direitos coletivos e individuais homogêneos a indivisibilidade decorre somente em razão de previsão legal de extensão. Ibid., p. 196 19 ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Op. Cit., 2011, p. 142-143. 20 ALMEIDA, Marcelo Pereira de. A efetividade do processo coletivo como garantia à ordem jurídica justa. In: CARNEIRO, Athos Gusmão; CALMON, Petrônio (Org.). Bases científicas para um renovado Direito Processual. 2ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2009, p. 81. 21 Compreendam-se novos direitos no sentido que atribui Elton Venturi: os interesses difusos devem ser compreendidos não como novos direito, no sentido de que tenham nascido contemporaneamente, mas como emergentes do plano da existência, dispersos no contexto social em função da inexistência de vínculos formais e rígido entre seus titulares. VENTURI, Elton. O problema conceitual da tutela coletiva: a proteção dos interesses ou direito difusos, coletivos e individuais homogêneos segundo o projeto de lei n. 5.130-2009. In: GOZZOLI, volume

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tornando-se imprescindível para proteger bens pertencentes a toda a comunidade, não apenas o surgimento de normas de direito material, objetivando dar-lhes conteúdo, mas novas formas de tutela jurisdicional22. Não é por outra razão a criação de formas processuais de tutela de interesses metaindividuais. À tendência do direito positivo de reconhecer novos direitos deve corresponder uma ampliação dos meios disponíveis para sua garantia23. Como diz José Manoel de Arruda Alvim Netto “somente com a emergência dos direitos de terceira dimensão é que se viram bem definidos os direitos coletivos num sentido amplo e, bem assim, as possibilidades da respectiva tutela pelo Estado”24. Como se extrai de Ada Pellegrini Grinover, passou-se de um modelo processual individualista a um modelo social; de esquemas abstratos a esquemas concretos; do plano estático ao plano dinâmico. O processo transformou-se de individual em coletivo, ora inspirando-se ao sistema das class actions da common law, ora estruturando novas técnicas, mais condizentes com a realidade social e política subjacente25.

Maria Clara et al. (Coord.). Em defesa de um novo sistema de Processos Coletivos: estudos em homenagem a Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 181. 22 MARINONI, Luiz Guilherme. Ações inibitória e de ressarcimento na forma específica no “anteproyecto de código modelo de procesos colectivos para Iberoamérica” (art. 7°). In: MAZZEI, Rodrigo; NOLASCO, Rita Dias (Coord.). Processo Civil Coletivo. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 778. É lição de Michele Taruffo que: ”[...] um ulteriore fattore di grande importanza à constituito dalla possibilità do adattare lo strumento processuale alle necessità del singolo caso, evitando lo spreco di ricorse quando per la natura della controversia queste non siano necessarie, ed impiegando líntero arsenale degli strumenti processuali soltanto quando la complessità della causa effettivamente lo richieda. Una finalità di questo genere può essere perseguita con varie strategie, alcune dele quali sono evidentemente errate mentre altre si rivelano efficaci. [...] Al di là di questi esempi particolari, pur molto significativi, il criterio generale che richiede di essere configurate ed interpretata in modo elastico e flessible per potersi adattare alle esigenze della singola controversia”. TARUFFO, Michele. Un´alternativa alle alternative: modeli di risoluzione dei confliti. Revista de Processo – RePro, São Paulo, ano 32, n. 152, out. 2007, p 326, 327. 23 DEL PRÁ, Carlos Gustavo Rodrigues. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e de aperfeiçoamento da prestação jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2008, introdução. 24 ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Op. Cit., p. 148. 25 GRINOVER, Ada Pellegrini. Significado social, político e jurídico da tutela dos interesses difusos. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria (Org.). Doutrinas Essenciais - Direitos Humanos: instrumentos e garantias de proteção. Vol. 5, São Paulo: 2011, p. 1097. Publicado originalmente na Revista de Processo – RePro, 97/9, jan./mar. 2000. Deve-se advertir que Carreira Alvim faz uma distinção entre o processo individual, o coletivo e o social. No processo coletivo busca-se a tutela de interesse de grupo, categoria ou classe, cujos

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Compreendeu-se que os paradigmas processuais individualistas não são adequados ao enfrentamento dos macroproblemas metaindividuais e econômicos dos tempos industriais, complexos e massificados em que vivemos. Disso decorre a necessária busca de macrossoluções jurídicas para as crescentes e muito complexas demandas sociais26. Onde antes se concebiam diplomas legais que pretendiam a completude, surgem os chamados microssistemas, leis especiais para a regulação de determinadas relações jurídicas, que por específicas e de regência própria de princípios não encontram lugar no seio das normas gerais, sejam as de natureza material, sejam as de natureza processual27. 3. o car áter especial dos processos coletivos: o tr ato menos egoísta das relações jurídicas É Aluisio Gonçalves de Castro Mendes que leciona que o Poder Judiciário vem sendo chamado a resolver problemas cada vez mais intrincados, sob o ponto de vista técnico e político, tornando o processo coletivo palco de conflitos internos da sociedade, relacionados com políticas públicas (ou inobservância de sua execução28) e com relevantes questões econômicas e, em certos casos, com complexidade científica29. beneficiários não são identificáveis. Já no processo social, tutelam-se os interesses sociais, ou da própria sociedade como tal considerada, para defesa de valores que lhe pertencem, como é o caso da ação popular e do processo penal. ALVIM, José Eduardo Carreira. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 238-239. 26 MINAS GERAIS. Ministério Público. Procuradoria-Geral de Justiça. Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional. Manual de Atuação Funcional do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. 2a ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Procuradoria-Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais, 2010, p. 335. 27 MAZZEI, Rodrigo. Ação popular e o microssistema da tutela coletiva. In: DIDIER JR., Fredie; MOUTA, José Henrique (Coord.). Tutela jurisdicional coletiva. Salvador: JusPODIVM, 2009, p. 376, 379. 28 LEAL, Márcio Flávio Mafra. Op. Cit., p. 116. 29 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. O direito processual coletivo e o anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos. In: DIDIER JR., Fredie; MOUTA, José Henrique (Coord.). Tutela jurisdicional coletiva. Salvador: JusPODIVM, 2009, p. 94. Afirma Teori Albino Zavascki que nos países do civil law a preocupação de aperfeiçoar os sistemas processuais tradicionais para dotá-los de mecanismos adequados a promover a tutela de direitos coletivos se faz notar de modo acentuado a partir do anos 70 do século passado, quando se tornou inadiável a operacionalização de medidas destinadas a preservar o meio ambiente, fortemente agredido pelo aumento cada vez maior do número de agentes poluidores volume

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Segundo Luiz Guilherme Marinoni tais ações permitem a tutela jurisdicional dos direitos fundamentais que exigem prestações sociais e a adequada proteção, mas além de tudo, constituem condutos dirigidos a permitir ao povo reivindicar os seus direitos fundamentais materiais. Seriam os procedimentos judiciais aptos à tutela dos direitos transindividuais30. Distancia-se, assim, na lição de Carlos Alberto Alvaro, da concepção tradicional que via os direitos fundamentais como simples garantias, como direito de defesa do cidadão em face do Estado, para compreendê-los como direitos constitutivos institucionais, com ampla e forte potencialização. Eles apresentamse como normas abertas, a estabelecerem pura e simplesmente um programa e indicarem certa direção finalística para a concretização jurisdicional31. A defesa coletiva de direitos individuais atende, conforme acentua Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, aos ditames da economia processual, além de representar medida necessária para desafogar o Poder Judiciário a fim de que cumpra com qualidade e em tempo hábil suas funções. Por outro lado, permite o acesso à justiça, em especial, de conflitos em que o valor diminuto do benefício pretendido significa desestímulo para a formulação da demanda, além de conferir tratamento igualitário a causas repetitivas que poderiam receber tratamento variado, se analisadas singularmente, e por fim tem-se que as ações coletivas podem ser instrumento efetivo de equilíbrio das partes no processo, atenuando as desigualdades entre os combatentes32. São praticamente as mesmas as razões, por outras palavras, colacionadas por Marilena Lazzarini, para quem as ações coletivas são extremamente importantes e a proteger os indivíduos na sua condição de consumidores, atingidos pelas consequências negativas de uma economia de mercado voltada para o lucro. ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 33, 4. 30 MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. 5ª ed. São Paulo: RT, 2011, p. 116. 31 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais. In: DIDIER JR., Fredie (Org.). Leituras complementares de Processo Civil. 6ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2008, p. 232, 233. 32 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. O código modelo de processos coletivos. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos (Coord.). Tutela Coletiva: 20 anos da Lei da Ação Civil Pública e do Fundo de Defesa de Direitos Difusos, 15 anos do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2006, p. 37-38, 47. Estas ideias estão expressas também em: MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas no direito comparado e nacional. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 226.

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pelos seguintes motivos: permitem o acesso à justiça amplo, uma vez que o direito tradicional e individualista impede que muitos busquem seus direitos por não terem como arcar com os custos de um processo, por desconhecimento dos caminhos para o ingresso na Justiça ou por ignorar seus direitos; evitam a propositura de milhares de ações idênticas, pois uma única ação beneficiará todos os titulares dos direitos lesados; evitam a existência de decisões contraditórias que promovam descrédito ao Poder Judiciário e insegurança aos jurisdicionados; fortalecem a organização social, porque estimulam os agrupamentos em torno de causas coletivas frente ao causador do dano que, em regra, é detentor de enorme capacidade econômica e política33. Tratando da segurança jurídica, diz Marcelo José Menezes Vigliar que o despertar da consciência da necessidade para este tema foi o principal motivo para o legislador de 1990, ao criar o Código de Defesa do Consumidor, no tocante aos direitos individuais homogêneos34. Como diz Elton Venturi, é a possibilidade de através das ações coletivas conseguirem-se decisões judiciais aptas a afetar diretamente milhares de pessoas, ou mesmo destas exigirem conjuntamente o cessamento de atividades nocivas ao convívio social35, não afastando o devido ressarcimento pelas atividades danosas praticadas, que ilustra a transformação operada, imprescindível à defesa dos new rights, entendendo-os não como interesses que inexistiam em tempos passados, mas que eram desconsiderados pelos ordenamentos jurídicos, e que com a evolução da sociedade, tornaram-se incomparavelmente mais atingidos, como é o caso dos bens relativos aos consumidores, ao meio-ambiente, ao patrimônio histórico, artístico e paisagístico36. 33 LAZZARINI, Marilena. As investidas contra as ações civis públicas. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos (Coord.). Tutela Coletiva: 20 anos da Lei da Ação Civil Pública e do Fundo de Defesa de Direitos Difusos, 15 anos do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2006, p. 161. 34 VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Interesses individuais homogêneos e seus aspectos polêmicos. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 127-128. 35 Devem-se mencionar as ações coletivas passivas. Contra esta possibilidade de utilização do micro sistema do Código de Defesa do Consumidor, preconizando a utilização do sistema processual do Código de Processo Civil, manifesta-se: ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Op. Cit., p. 173-174 36 VENTURI, Elton. Apontamentos sobre o processo coletivo, o acesso à justiça e o devido processo social. Revista de Direito Processual Civil Gênesis, Curitiba, ano II, n. 4, jan./ volume

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Estes new rights, ou novos bens jurídicos, referem-se a uma nova pauta de bens ou valores, que antes da Lei n. 7.347/1985 (conhecida como a lei da Ação Civil Pública) eram, em termos reais, insuscetíveis de tutela e ainda que houvesse algumas previsões, a proteção era inteiramente destituída de eficácia, mormente porque desprovida de instrumental preordenado a proporcionar autêntica salvaguarda37. Criado o direito, estabelece-se o dever de prestar a jurisdição; assim ação e jurisdição são institutos que nasceram um para o outro38, embora seja necessário esclarecer que a inafastabilidade do controle jurisdicional se limita a garantir o direito de ação, enquanto o acesso à justiça, sendo conceito bem mais amplo, leva em consideração o direito à decisão mediante o processo devido em direito, uma decisão em tempo razoável, fundamentada, eficaz etc.39. É fora de dúvida que os chamados interesses metaindividuais ou supraindividuais dizem respeito a interesses que estão acima dos interesses privados. Desenha-se aqui o que Hermes Zaneti Jr. chama de novas esferas de atuação do direito, definidas como esfera pública e esfera privada40. Na expressão de Fernando Cesar Bolque, com o desenvolvimento social chega-se à terceira fase do direito processual, em que, após a efetiva autonomia do processo, os doutrinadores passaram a identificar a necessidade de um trato menos egoísta das relações jurídicas41. A não existência de regras que disciplinassem lides coletivas poderia ser caracterizada como um dos óbices ao efetivo acesso a uma verdadeira ordem jurídica abr. 1997, p. 18. Convém esclarecer que ante o texto constitucional melhor seria falar em patrimônio cultural, porque igualmente abrangidos bens arqueológicos, de natureza imaterial etc. 37 ALVIM, Arruda. Ação civil pública: sua evolução normativa significou crescimento em prol da proteção às situações coletivas. In: GUERRA, Luiz (Coord.). Temas Contemporâneos do Direito: homenagem ao bicentenário do Supremo Tribunal Federal. Brasília: Guerra, 2011, p. 71. 38 DIDIER JR., Fredie. Notas sobre a garantia constitucional do acesso à justiça: o princípio do direito de ação ou da inafastabilidade do Poder Judiciário. Revista de Processo – RePro, São Paulo, ano 27, n. 108, out./dez. 2002, p. 23. 39 SOUZA, Wilson Alves de. Acesso à Justiça. Salvador: Dois de Julho, 2011, p. 166-167. 40 ZANETI JR., Hermes. Da lei à Constituição: a positivação dos direitos difusos e coletivos na Constituição brasileira. In: JEVEAUX, Geovany Cardoso (Org.). Uma teoria da Justiça para o acesso à justiça. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2012, p. 281. 41 BOLQUE, Fernando Cesar. Interesses difusos e coletivos: conceito e legitimidade para agir. Justitia, São Paulo, ano. 61, vols. 185-188, jan./dez. 1999, p. 183.

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justa42. Porém, especialmente para os chamados direitos de terceira geração criouse um sistema de proteção coletivo, uma vez que os interesses e direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos são insuscetíveis de serem protegidos pelo instrumental processual clássico ou individualista43. Observa Hermes Zaneti Jr. que um importante desdobramento da inclusão de direitos sociais na Constituição Federal e do reconhecimento de direitos materiais e processuais coletivos é o compromisso do Poder Judiciário em apreciar demandas fora da estrita dimensão credor/devedor. Assim os processos coletivos servem, também, à litigância de interesse público, máxime do interesse público primário, precisando caracterizarse como um processo de interesse público (public law litigation)44. Revisto o conceito de legitimação para a ação (seguindo o modelo norteamericano das class actions com a representatividade adequada45) adapta-se o quadro do acesso à justiça, permitindo que por meio dos portadores dos interesses transindividuais, com grande poder de representação e preparo econômico e organizacional, abram-se novas causas a uma multiplicidade de novos titulares de direitos46. Com efeito, embora esta preocupação pareça pouco presente no Brasil, a representatividade adequada possui um grande conteúdo legitimador da sentença coletiva; afinal se a decisão surtirá efeito sobre uma coletividade a qual não participou de fato do processo, exige-se que seu interesse tenha sido devidamente representado por quem litigou em seu nome. “Em outros termos, é a garantia de que a coletividade que se sujeitará ao quanto decidido no processo tenha sido satisfatoriamente ouvida e defendida”47. 42 Ibid., p. 176. 43 ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Op. Cit., p. 149. 44 ZANETI JR., Hermes. Op. Cit., p. 280, 284, 286. 45 Que é requisito preambular para a certificação da ação coletiva, sob pena de não haver vinculação dos membros da classe aos efeitos da sentença coletiva. WATANABE, Kazuo. Relatório síntese. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda. Os Processos Coletivos nos países de Civil Law e Common Law: uma análise de direito comparado. Novas tendências em matéria de legitimação e coisa julgada nas ações coletivas. São Paulo: RT, 2008, p. 303. 46 ALMEIDA, Marcelo Pereira de. A efetividade do processo coletivo como garantia à ordem jurídica justa. In: CARNEIRO, Athos Gusmão; CALMON, Petrônio (Org.). Bases científicas para um renovado Direito Processual. 2ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2009, p. 83. 47 COSTA, Susana Henriques da. A representatividade adequada e litisconsórcio – o projeto de Lei n 5.139/2009. In: GOZZOLI, Maria Clara et al. (Coord.). Em defesa de um novo volume

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Oriundo do direito norte-americano, esse pré-requisito, que diz respeito à seriedade, credibilidade, capacidade técnica e econômica do legitimado é de extrema importância nos sistemas que escolhem a extensão da coisa julgada a terceiros, seja na ação coletiva ativa, seja na ação coletiva passiva, aferível pelo juiz, caso a caso (como no já considerado abandonado projeto brasileiro de processo coletivo para o caso de legitimação de pessoa física), ou a depender de previsão legal48. De acordo com José Manoel de Arruda Alvim Netto a temática da legitimação coletiva envolve menos a análise da titularidade dos direitos que o enfoque ao sopesamento do que se pode designar de relação suficiente com tais direitos. Ao autor parece que o legislador objetivou conferir a mais ampla proteção, qualquer que seja a forma do agrupamento49. A opinião de Aluisio Gonçalves de Castro Mendes é de que no âmbito dos direitos individuais homogêneos as ações coletivas tem maior significação, visto que podem funcionar como solução para o problema da multiplicação e pulverização de ações individuais, possibilitando que o julgador leve em consideração todas as implicações decorrentes do julgamento50. Inevitavelmente, o Poder Judiciário vê-se frente ao fenômeno das demandas em massa, estando obrigado a adequar-se à situação, sob pena de ver esvaziada a sua função precípua de prestar a efetiva tutela jurisdicional necessária à paz social51. sistema de Processos Coletivos: estudos em homenagem a Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 627-628. 48 GRINOVER, Ada Pellegrini. Relatório geral – civil law. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda. Os Processos Coletivos nos países de Civil Law e Common Law: uma análise de direito comparado. Novas tendências em matéria de legitimação e coisa julgada nas ações coletivas. São Paulo: RT, 2008, p. 238. 49 ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Op. Cit., p. 147. 50 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas no direito comparado e nacional. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 24. 51 MORAIS, Dalton Santos. A abstrativização do controle difuso de constitucionalidade no Brasil e a participação do amicus curiae em seu processo. Revista de Processo – RePro, São Paulo, ano 33, n. 164, out. 2008, p. 196. Para Aluisio Gonçalves de Castro Mendes: “Na verdade, a necessidade de processos supra-individuais não é nova, pois há muito tempo ocorrem lesões a direitos, que atingem coletividades, grupos ou certa quantidade de indivíduos, que poderiam fazer valer os seus direitos de modo coletivo. A diferença é que, na atualidade, tanto na esfera da vida pública como privada, as relações de massa expandem-

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Há quem duvide da existência de uma paz social, considerando a sociedade complexa e plural como a atual, esperando-se, pelo menos, que o conflito seja disciplinado e os envolvidos tratados em igualdade de condições, garantido o espaço de diálogo indispensável numa democracia52. Outro não é o entendimento de Katya Kozicki, para quem se o direito quer servir efetivamente como instrumento de estabilização em uma sociedade democrática, é necessário que os direitos dos diversos grupos e indivíduos sejam reconhecidos como equivalentes53. Luís Fernando Guerrero diz que a necessidade de cumprimento do fim maior do processo civil, pacificação social, trouxe a necessidade ou, preocupação com os fenômenos extrínsecos da ciência; com a noção de processo civil de resultados54. Isto significa que o processo não deve ser pensado como um fim em si, mas como meio para o alcance de um objetivo. O processo coletivo é um dos mais expressivos instrumentos de acesso à justiça colocado à disposição pelo sistema processual civil brasileiro, para Joaquim Felipe Spadoni, constituindo um vigoroso meio de realização da isonomia constitucional, quando se trata da defesa de direitos individuais homogêneos. Isto porque uma ação coletiva objetiva tanto evitar o ajuizamento de inúmeras demandas individuais, como também dar tratamento único a situações jurídicas idênticas55. Com a pulverização das ações, ao contrário, a causa é fracionada, eis que decidida

se continuamente, bem como o alcance dos problemas correlatos, [...]”. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Op. Cit., p. 27. 52 SILVÉRIO JÚNIOR, João Porto. O processo constitucional como espaço dialogal discursivo da democracia. Revista de Direito Brasileira – RDBras, São Paulo, ano 2, n. 2, jan./jun. 2012, p. 44. 53 KOZICKI, Katia. Levando a Justiça a sério. Coleção Professor Álvaro Ricardo de Souza. Vol. 3. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012, p. 95. 54 GUERRERO, Luiz Fernando. Alternative dispute resolution e adequação ao momento histórico – a questão do acesso à justiça. In: CARNEIRO, Athos Gusmão; CALMON, Petrônio (Org.). Bases científicas para um renovado Direito Processual. 2ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2009, p. 264. 55 SPADONI, Joaquim Felipe. Assistência coletiva simples: a intervenção dos substituídos nas ações coletivas para defesa de direitos individuais homogêneos. In: DIDIER JR., Fredie; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Aspectos polêmicos e atuais sobre os terceiros no Processo Civil e assuntos afins. São Paulo: RT, 2004, p. 497, 499. volume

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simultaneamente por centenas de julgadores, passando a ter relevância apenas o pronunciamento final dos Tribunais Superiores56. As ações coletivas conduzem, ou devem conduzir, a uma unitariedade de manifestação judicial sobre uma dada situação, que a muitos afete57. Não é por outra razão mais poderosa a criação de formas processuais de tutela de interesses metaindividuais. Igualmente importante o papel que o processo coletivo pode ter, ao destacar a importância política de determinadas causas relacionadas, mais não apenas, com os direitos civis, de minorias etc.58. 4. o que o processo coletivo e o direito fundamental de acesso à justiça ganham com a participação do amicus curiae A lesão ao interesse individual pode ser considerada insignificante e não deduzível a pecúnia, se vista isoladamente, mas assume enorme vulto se observada globalmente: a mesma lesão que atinge um indivíduo geralmente alcança milhares de pessoas, como, por exemplo, nos casos de danos provocados por um produto defeituoso (um medicamento, um brinquedo, um automóvel), por uma publicidade enganosa, por uma cláusula abusiva inserida em um contrato, ou no caso de um dano ao meio ambiente ou ao patrimônio público59. Como enfatiza Hugo Nigro Mazzilli são interesses pulverizados, e essa dispersão impede ou inviabiliza o acesso de todos os lesados à Justiça60. A lesão mínima pode resultar numa litigiosidade contida61. Para Hermes Zaneti Jr. especialmente para a categoria dos direitos individuais homogêneos, categoria que considera a meio caminho entre o direito material

56 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas no direito comparado e nacional. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 32. 57 ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Op. Cit., p. 144. 58 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Op. Cit., p. 30. 59 MINAS GERAIS. Op. Cit., p. 335-336. 60 MAZZILLI, Hugo Nigro. A atuação do Ministério Público nas ações coletivas – o Ministério Público e a defesa dos interesses individuais homogêneos. In: GOZZOLI, Maria Clara et al. (Coord.). Em defesa de um novo sistema de Processos Coletivos: estudos em homenagem a Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 286. 61 SOUZA, Wilson Alves de. Acesso à Justiça. Salvador: Dois de Julho, 2011, p. 76.

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e o direito processual, pode-se imaginar o processo coletivo como uma forma de redução da litigiosidade contida e de garantia de efetividade e eficácia do ordenamento jurídico com a repressão dos ilícitos de massa62. Já vem sendo destacada no Brasil, em doutrina, a utilidade da participação do amicus curiae nos processos em que se busca a tutela coletiva de direitos, basicamente pelos mesmos fundamentos que sustentam sua acolhida nos processos objetivos, ou seja, a permissão da pluralização do debate, a participação de mais intérpretes na construção da solução e o aperfeiçoamento da prestação jurisdicional. Indica-se a hipótese de intervenção do amicus curiae nos processos coletivos e não nos individuais como meio de fomentar a utilização daqueles, que significam a forma mais razoável, econômica, célere e racional de solucionar litígios que dizem respeito a muitos cidadãos, e que desta forma podem mais facilmente obter acesso à jurisdição, com o incremento da possibilidade de intervenção para propiciar a máxima participação e real acesso à justiça. Com o aumento da complexidade normativa que impera na atualidade, a solução do sistema para o caso não pode partir tão-somente dos juízes, mas de todos os implicados dentro do processo. Na verdade, a solução deve passar pela busca de uma política de democratização do processo, do qual participem todos os seguimentos acadêmicos e profissionais63. Como diz Rodolfo de Camargo Mancuso é lícito intuir que a nítida expansão das ações com fim coletivo exige do magistrado, além da capacitação técnica, a sensibilidade para a correta adoção de opções que, por vezes, resvalam para o campo das escolhas primárias64. Impossível se desconsiderar que as decisões atingem pessoas distintas das partes de cada processo. Atualmente o sentido de interesse jurídico na causa, 62 ZANETI JR., Hermes. Os direitos individuais homogêneos e o neoprocessualismo. In: FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de; RODRIGUES, Marcelo Abelha (Coord.). O novo Processo Civil Coletivo. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2009, p. 146-147, 158. 63 NUNES, Dierle José Coelho; BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Por um paradigma democrático de processo. In: DIDIER JR., Fredie (Org.). Teoria do Processo: panorama doutrinário mundial. 2ª série. Salvador: JusPODIVM, 2010, p. 166. 64 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A projetada participação equânime dos co-legitimados à propositura da ação civil pública: da previsão normativa à realidade forense. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos (Coord.). Tutela Coletiva: 20 anos da Lei da Ação Civil Pública e do Fundo de Defesa de Direitos Difusos, 15 anos do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2006, p. 225. volume

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como já frisado, no Estado Democrático de Direito extrapola o conceito técnicojurídico de parte, na medida em que, de alguma maneira a sociedade sofre os efeitos da decisão proferida interpartes, sobretudo quando as mesmas interferem diretamente na construção do direito sumular65. Luiz Marinoni diz que esta transformação da ciência jurídica, ao dar ao jurista uma tarefa de construção, confere-lhe maior dignidade e responsabilidade, uma vez que dele se espera uma atividade essencial para dar efetividade aos planos da Constituição, seja aos projetos do Estado, seja às aspirações da sociedade66. Podese dizer, com Dhenis Cruz Madeira, que no paradigma democrático, é preciso conferir ao destinatário a oportunidade de discutir os fundamentos da norma jurídica, até para rejeitá-la. O entendimento do que venha a ser justo, injusto, certo ou errado deve ser compartilhado e não imposto67. A participação do amicus curiae torna-se ainda mais relevante quando o objeto da lide envolve direitos e garantias fundamentais, quando se discute a efetividade de normas indisponíveis e quando o objeto da lide diz respeito à parcela de natureza existencial68. Querer que o processo seja efetivo significa querer que seja eficiente no seu papel de instrumento apto a realizar o direito material. A efetividade se traduz pela sua capacidade de fazer valer a pretensão da parte69. Tem forte ligação com o princípio do acesso à justiça70. Para José Carlos Barbosa Moreira, será socialmente efetivo o processo que constitua instrumento eficiente de realização do direito material, de modo tanto a se mostrar capaz de veicular aspirações da sociedade como um todo e de permitir-lhe a satisfação por meio da Justiça, 65 EÇA, Vitor Salino de Moura; MAGALHÃES, Aline Carneiro. Jurisdição trabalhista democrática: a construção do provimento jurisdicional, a partir dos anseios da sociedade e a intervenção do amicus curiae no Direito Processual do Trabalho, importa em promoção de justiça social. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, n. 5, 2011, p. 16. 66 MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. 5ª ed. São Paulo: RT, 2011, p. 48. 67 MADEIRA, Dhenis Cruz. Teoria do processo e discurso normativo: digressões democráticas. In: DIDIER JR., Fredie (Org.). Teoria do Processo: panorama doutrinário mundial. 2ª série. Salvador: JusPODIVM, 2010, p. 139-140. 68 EÇA, Vitor Salino de Moura; MAGALHÃES, Aline Carneiro. Op. Cit., p. 18. 69 LUNARDI, Soraya Regina Gasparetto. As ideologias do processo e a ação civil pública. In: MAZZEI, Rodrigo; NOLASCO, Rita Dias (Coord.). Processo Civil Coletivo. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 204. 70 SOUZA, Wilson Alves de. Acesso à Justiça. Salvador: Dois de Julho, 2011, p. 337.

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quanto a consentir que membros menos aquinhoados da comunidade consigam a persecução judicial de seus interesses em pé de igualdade com os dotados de maiores forças, sejam elas políticas, econômicas e culturais71. Danilo Vital de Oliveira entende que apesar da desnecessária (porque passível de ser extraída de interpretação dos art. 335, 339 e 341 do Código de Processo Civil vigente) previsão normativa expressa no projeto de novo Código de Processo Civil da presença do amicus curiae, há inconvenientes na sua admissão generalizada, ampliando as hipóteses de atuação em todo e qualquer grau de jurisdição. É que a crescente abertura e a cada vez maior complexidade das normas jurídicas não estão a justificar, sozinhas, a intervenção do amicus curiae. O ingresso desse terceiro parece encontrar respaldo principalmente no fato de que algumas decisões judiciais afetam o que será e como serão decididos os casos futuros, ou seja, os precedentes, que não se confundem com jurisprudência dominante, nem súmula vinculante. Para o autor isto significa esquecer que o principal motivo justificador dessa intervenção é a aptidão que a decisão a ser proferida no processo possui de influir na situação de sujeitos estranhos ao feito. Aludida preocupação com os efeitos provenientes das decisões jurisdicionais ganhou um novo impulso com o advento da Emenda Constitucional n. 45/2004 que instituiu o requisito da repercussão geral para a admissibilidade do Recurso Extraordinário, além de atribuir caráter vinculante a algumas Súmulas editadas pelo Supremo Tribunal Federal72. Mas é possível afirmar que o autor pensa, prioritariamente, na intervenção de amicus curiae em processo individual, não obstante conclua somente se poder falar em intervenção de amicus curiae naqueles processos cujos provimentos jurisdicionais possam afetar, direta ou indiretamente, a situação de terceiros que, de outra forma, deles não participariam, diferentemente da hipótese acolhida no presente artigo. Este não é receio que se apresenta apenas na Doutrina, visto que julgado recente, revela um temor pela inclusão do amicus curiae na litispendência, 71 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Por um processo socialmente efetivo. Revista de Processo – RePro, São Paulo, ano 27, n. 105, jan./mar. 2002, p. 181. 72 OLIVEIRA, Danilo Vital de. O projeto do novo Código de Processo Civil e a generalização do amicus curiae: limites e possibilidades. Anais do XX Congresso Nacional do CONPEDI, realizado de 16 a 19 de novembro de 2011 em Vitória. Disponível em: . Acesso em: 7 out. 2012, p. 6.284-6.309. volume

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escudado pela falta de previsão legal, embora seja reconhecido que já se comenta o ingresso do amicus em litígio de natureza coletiva73. Assinala Cassio Scarpinella Bueno que é possível e necessário o alargamento da admissão do terceiro para além dos casos que vem sendo utilizados pela doutrina, como forma de “suprir o que pode ser chamado de déficit democrático da atuação do Judiciário brasileiro”, valendo a ênfase quando os precedentes jurisdicionais advêm não apenas dos Tribunais Superiores, mas dos Tribunais de segundo grau de jurisdição, ou seja, dos Tribunais de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais, e até mesmo das sentenças dos juízos, de acordo com a possibilidade de julgamento de mérito antes da citação do réu, na forma do art. 285-A, do Código de Processo Civil, visto que vinculam os resultados ali alcançados74. Entende Wilson Alves de Souza que a ampla participação das partes no processo jurisdicional, embora não se confunda com a participação política, com a exigência dos princípios da publicidade, da fundamentação da decisão e do duplo grau de jurisdição, legitima o poder judiciário, minorando o fato de seus membros não serem investidos no cargo por eleição popular75. Deve-se mencionar, em acréscimo, que os magistrados do Supremo Tribunal Federal gozam de uma legitimidade democrática de segundo grau, pois são escolhidos pelos representantes do povo76. Há que se adicionar como fatores que incrementam a participação do Judiciário no processo democrático a atribuição de julgar litígios que envolvem a necessidade de controlar atos da Administração, assim como a atribuição de controlar a constitucionalidade de leis77. Ademais, os princípios constitucionais que declaram direitos fundamentais são formulados em termos vagos, abstratos 73 Acórdão. Agravo de Instrumento, Processo: 0005808-51.2011.404.0000-PR, Terceira Turma, Data da decisão: 26/05/2011. Disponível em: . Acesso em: 11 nov. 2012. 74 BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae: uma homenagem a Athos Gusmão Carneiro. In: DIDIER JR., Fredie et al. (Coord.). O terceiro no Processo Civil Brasileiro e assuntos correlatos: estudos em homenagem ao Professor Athos Gusmão Carneiro. São Paulo: RT, 2010, p. 165. 75 SOUZA, Wilson Alves de. Sentença Civil imotivada. 2ª ed. Salvador: Dois de Julho, 2012, p. 65. 76 DIAS, Cibele Fernandes. A justiça constitucional em mutação. Coleção Professor Álvaro Ricardo de Souza Cruz. Vol. 4. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012, p. 64. 77 SOUZA, Wilson Alves de. Acesso à Justiça. Salvador: Dois de Julho, 2011, p. 189.

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e ideologicamente carregados, dependendo da teoria da argumentação e do discurso para serem formulados e lidos78. A este respeito Geovany Cardoso Jeveaux levanta várias objeções à ideia de que o Judiciário tem caráter não majoritário e antidemocrático: 1) o consenso da maioria é uma utopia, não é em verdade o resultado do interesse da maioria, mas de acordos somente chancelados nos parlamentos; 2) a composição da corte suprema expressa a representação do Senado, que aprova ou não indicação do Executivo e confere representatividade política indireta ao judiciário; 3) a fundamentação e publicidade das decisões garantem a prestação de contas exigida pela representatividade democrática; 4) o acesso à justiça de grupos sem a representação adequada é um meio de justificação da representatividade democrática nos tribunais; 5) a exigência do contraditório torna o processo mais participativo que os processos legislativo e executivo; 6) a edição de emendas constitucionais comprova que as decisões das cortes não são definitivas, e estão sujeitas ao controle de uma maioria qualificada; 7) as regras de inércia, de imparcialidade e do contraditório são garantias de legitimidade democrática das decisões; 8) as decisões podem interessar a mais pessoas do que as partes, tornando-se uma espécie de razão pública; 9) o judiciário deve ser um órgão que controla o abuso do argumento da maioria em nome dos direitos fundamentais79. Deve-se mencionar, ainda, que a eleição não é elemento suficiente para a democracia, tendo-se em conta que em sociedades compostas majoritariamente por excluídos de mínimas condições sociais, de saúde, educacionais, econômicas, culturais etc., os pleitos não passam de formalidade80. O ideal de democracia representativa como governo do povo, pelo povo, não se tem revelado mais do que ficção, vez que ele não governa senão no sentido da escolha dos governantes81.

78 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Traducão Carlos Bernal Pulido. 2ª ed. Madri: Centro de Estudios Politicos y Constitucionales, 2007, p. 489. 79 JEVEAUX, Geovany Cardoso. Uma teoria da Justiça para o acesso à justiça. In: JEVEAUX, Geovany Cardoso (Org.). Uma teoría da Justiça para o acesso à justiça. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2012, p. 30-32. 80 SOUZA, Wilson Alves de. Sentença Civil imotivada. 2ª ed. Salvador: Dois de Julho, 2012, p. 63. 81 VIANNA, Rodrigo. A legitimidade democrática da justiça constitucional. Direito Público, Porto Alegre; Brasília, ano 9, N. 47, set./out. 2012, p. 26. volume

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Voltando ao tema central, é opinião de Aderbal Torres de Amorim que o amicus deve ser recebido em qualquer grau de jurisdição, havendo vulneração da Constituição Federal pelo legislador na Lei n. 9.868/1999, que dá ao Relator poder para em decisão monocrática irrecorrível indeferir o seu ingresso, e em seu Regimento Interno, que concede ao Relator o poder de decisão irrecorrível para admitir ou não a manifestação de terceiros sobre a questão da repercussão geral. No primeiro caso a vulneração acontece por ferir a princípio da colegialidade, do juiz natural, da ampla defesa e contraditório; no segundo por ofender a competência para legislar sobre processo e o princípio da cooperação82. A aceitação do amicus curiae é forma de ouvir previamente a sociedade civil organizada para permitir o exame dos mais variados ângulos das questões de fato e de direito que influenciarão o conteúdo da decisão judicial, que pode, mesmo não sendo o caso de efeito vinculante ou criação de precedente obrigatório, criar regra de julgamento procedimental ou de conteúdo83. A tese, como informa

82 AMORIM, Aderbal Torres de. Amicus curiae, ações constitucionais e recurso extraordinário: inconstitucionalidades flagrantes. Revista de Processo – RePro, São Paulo, ano 35, n. 188, out. 2010, p. 283-287. 83 Tendência que vem grassando no direito processual civil brasileiro, bastando para isso consultar a redação do Código de Processo Civil no art. 557, alterado pela Lei n. 9.756/1998, ou no art. 518, § 1°, com a redação da Lei n. 11.276/2006, ou, ainda, no art. 285-A, incluído pela Lei n. 11.277/2006. BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae: uma homenagem a Athos Gusmão Carneiro. In: DIDIER JR., Fredie et al. (Coord.). O terceiro no Processo Civil Brasileiro e assuntos correlatos: estudos em homenagem ao Professor Athos Gusmão Carneiro. São Paulo: RT, 2010, p. 166. No mesmo sentido já se manifestou Fredie Didier Jr.: “A decisão reforça, ainda, uma percepção que tenho há tempo: o Direito brasileiro vem sendo reestruturado a cada dia para dar aos precedentes judiciais força vinculativa. Ao lado disso, parece inexorável a tendência de adaptar o processo individual ao julgamento de causas repetitivas (art. 285-A e 543-B, por exemplo).” DIDIER JR. Fredie. Revisão do conceito de interesse jurídico que autoriza a assistência simples: intervenção para colaborar com a criação de precedente judicial. Análise de recente decisão do STF. Revista de Processo – RePro, São Paulo, ano 33, n. 158, abr. 2008, p. 281. Também publicada em DIDIER JR. Fredie. Revisão do conceito de interesse jurídico que autoriza a assistência simples: intervenção para colaborar com a criação de precedente judicial. Análise de recente decisão do STF. Revista Jurídica, Porto Alegre, ano 56, n. 371, abr. 2008, p. 29. Conferir, ainda, o que diz Ricardo de Barros Leonel: “De outro lado, as recentes modificações no sistema processual – a implantação da repercussão geral como pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário, bem como o procedimento diferenciado para o julgamento de recursos extraordinários e especiais repetitivos [...] produzirão ainda o fortalecimento da eficácia dos precedentes decorrentes do julgamento de ambos, numa, por assim dizer, ‘quase vinculação’”. LEONEL, Ricardo de Barros. Recursos de sobreposição: novo procedimento e intervenção do amicus curiae. In:

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Luiz Guilherme Marinoni, de que a decisão proferida em recurso extraordinário atinge unicamente os litigantes tem sido mitigada pela prática do STF. Destacase que não é recente no Supremo Tribunal orientação que nega expressamente a equivalência entre controle incidental e eficácia da decisão restrita às partes do processo84. Mesmo antes da EC 45/2004, normas como a do parágrafo único do art. 481, do Código de Processo Civil já apontavam para a necessidade de vinculação dos tribunais inferiores85. Ademais, são praticamente idênticos os procedimentos para a declaração de inconstitucionalidade nos modelos concentrado e difuso, não havendo razão para discrímen quanto aos efeitos das decisões86. Para Ana Letícia Queiroga de Mattos é inadmissível uma interpretação da Constituição que se faça apartada dos verdadeiros interessados, isto é, dos cidadãos e entidades ativos, visto que não é a simples aplicação do texto positivado que vai lhe garantir eficácia, atualidade e concretude, mas a atuação efetiva e articulada do grupo de forças produtivas de interpretação87. A ideia de democracia é que inspira a necessidade de que “as decisões do Judiciário espelhem a vontade do povo, estejam de acordo com os valores DIDIER JR., Fredie et al. (Coord.). O terceiro no Processo Civil Brasileiro e assuntos correlatos: estudos em homenagem ao Professor Athos Gusmão Carneiro. São Paulo: RT, 2010, p. 436. Por fim, conferir Teresa Arruda Alvim Wambier: “O fato de os tribunais brasileiros interpretarem diferentemente a mesma norma jurídica, decidindo casos idênticos de formas diversas, gera descrédito em relação ao Poder Judiciário e uma indesejável sensação, no jurisdicionado, de que está sofrendo uma ‘injustiça’. Há algum tempo, se vem sentido (sic) no direito brasileiro uma tendência no sentido de se criarem regras para se evitar essa situação. Sintomas dessa tendência são os art. 557, 285-A, 543-B e C, e a figura da súmula vinculante da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.” WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Anotações sobre o projeto de lei n. 166/2010, para um novo Código de Processo Civil. In: MOREIRA, Alberto Camiña; ALVAREZ, Anselmo Prieto; BRUSCHI, Gilberto Gomes (Coord.). Panorama atual das tutelas individual e coletiva: estudos em homenagem ao professor Sérgio Shimura. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 726. 84 O autor destaca o julgamento proferido no RE 376.852, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJU 24.10.2003. 85 MARINONI, Luiz Guilherme. Aproximação crítica entre as jurisdições de civil law e de common law e a necessidade de respeito aos precedentes no Brasil. In: DIDIER JR., Fredie (Org.). Teoria do Processo: panorama doutrinário mundial. 2ª série. Salvador: JusPODIVM, 2010, p. 565, 569. 86 Ibid., p. 571. 87 MATTOS, Ana Letícia Queiroga de. Amicus curiae: hermenêutica e jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2011, p. 153. volume

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adotados pela sociedade, em grande parte assumidos expressa e explicitamente pela Constituição Federal”88. Embora seja necessário advertir, como o faz Friedrich Müller, que povo não é um conceito unívoco, mas plurívoco, não se podendo reduzir politicamente a um só entendimento, uma só opinião ou vontade89, embora seja evidentemente sempre, de forma objetiva, a legitimação do sistema político constituído, ainda que idealizado90. Isto porque o poder não está no povo, mas emana dele, embora sua participação, como demonstra Müller, seja menos autônoma do que se pode supor, uma vez que o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular de lei dependem sempre da boa vontade do Congresso Nacional ou da Câmara dos Deputados, conforme art. 14 c/c art. 49 e 61, da Constituição Federal de 198891. Se a matéria objeto da lide, por sua relevância ou natureza, puder refletir na sociedade como um todo, há de existir a possibilidade do ingresso do amicus curiae no processo, com a finalidade de trazer informações que auxiliem o magistrado a solucionar a lide, mesmo que sua tese favoreça indiretamente uma das partes92. José Carlos Barbosa Moreira chama a atenção para o fato de que há setor da doutrina ao qual desagrada a concessão de muitos poderes ao órgão judicial. Para os que pensam assim, as coisas melhor andarão, especialmente no que dizem respeito às provas, quanto mais forem deixadas aos cuidados dos próprios litigantes, repelindo como antigarantistas juízes que se aventuram em buscar dados capazes de lhes propiciar conhecimento mais completo dos fatos relevantes para a decisão93. Porém, ao determinar a realização de prova para melhor esclarecimento 88 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Amicus Curiae: afinal quem é ele? Revista do Instituto dos advogados do Paraná, Curitiba, n. 34, dez. 2006, p. 243. 89 COMPARATO, Fábio Konder. Prefácio à 1ª ed. MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Tradução Peter Naumann. 6ª ed. São Paulo, RT, 2011, p. 16. 90 MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Tradução Peter Naumann. 6ª ed. São Paulo, RT, 2011, p. 49, 54. 91 Ibid., p. 68. Observação igualmente feita por CRUZ, Tiago Setti Xavier da. A democracia como direito social, o coto vedado e a tutela da participação efetiva no processo democrático. Direito Público, Porto Alegre; Brasília, ano 9, n. 46, jul.-ago. 2012, p. 135. 92 EÇA, Vitor Salino de Moura; MAGALHÃES, Aline Carneiro. Op. Cit., p. 19. 93 MOREIRA, José Carlos Barbosa. O neoprivatismo no processo civil. In: DIDIER JR., Fredie (Org.). Teoria do processo: panorama doutrinário mundial. 2ª série. Salvador: JusPODIVM, 2010, p. 394. Também publicado em: DIDIER JR., Fredie (Org.). Leituras complementares de Processo Civil. 6ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2008, p. 31-42.

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o magistrado não está usurpando função da parte, nem promovendo desigualdade quanto à distribuição do ônus de prova, mas exercendo algo inerente à sua função de julgador94. A dedução em juízo basta para cobrir de nova tonalidade qualquer conflito de interesses, porque sua decisão deixa de ser litígio cuja repercussão fique restrita ao âmbito estritamente privado95. A solução se espraia para campos impensados e provoca até mesmo o desenvolvimento do direito por meio de decisões judiciais. Antes do advento da EC n. 45/2004, Elton Venturi chamava a atenção para o fato de que a única forma de participação individual em ações coletivas era a habilitação de vítimas e sucessores como litisconsortes nas ações de tutela de direitos individuais homogêneos, não obstante a resistência à aceitação da formação de litisconsórcio ulterior96. E punha-se de acordo com a aceitação da intervenção o fato de que existe verdadeiro interesse jurídico legitimador de sua introdução na demanda coletiva; o fato de que a lide deduzida também lhe diz respeito, além da possibilidade de prestar auxílio significativo à entidade autora na tarefa de demonstrar e comprovar os fundamentos da responsabilização civil da parte ré, sendo razoável supor que algumas vítimas possuam maior capacidade técnica, econômica e política, quando comparadas às da entidade (associação civil, Procon, Ministério Público) proponente da ação. As entidades legalmente habilitadas por si só não se revelam capazes de traduzir no processo toda a complexidade fática e jurídica envolvida na demanda coletiva. E tais razões se apresentam de igual forma também no âmbito de ações propostas originariamente para a tutela de direitos genuinamente transindividuais, ou seja, os coletivos e 94 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op. Cit., p. 31-42. 95 Ibid., p. 31-42. 96 Como parece ser o caso de Joaquim Felipe Spadoni, que entende ser desnecessária, inconveniente e até mesmo contraproducente a autorização da intervenção, no art. 94, do CDC, nominando tal figura interventiva de assistência coletiva simples. Por outro lado, dá outra interpretação ao art. 103 § 2°, para reconhecer que a atuação do amigo da corte com os poderes limitados que entende possíveis (replicar a contestação, contra arrazoar recursos, não podendo aditar pedidos, nem recorrer, manifestações que são do exercício do direito de ação) não se coaduna com a proibição de ajuizamento de nova ação, desta feita individual, por pretensa vinculação a coisa julgada material. SPADONI, Joaquim Felipe. Assistência coletiva simples: a intervenção dos substituídos nas ações coletivas para defesa de direitos individuais homogêneos. In: DIDIER JR., Fredie; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Aspectos polêmicos e atuais sobre os terceiros no Processo Civil e assuntos afins. São Paulo: RT, 2004, p. 501-503, 510. volume

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difusos. Aliás, estando autorizado a propor ação popular, não haveria razão lógica para negar-lhe a participação na ação coletiva, caracterizando tal atuar não o desvirtuamento, mas a sua afirmação democrática97. Teresa Wambier e José Medina asseveram que a participação do amicus no processo liga-se à noção de direito de participação procedimental, situação inerente à ideia de Estado Democrático de Direito98. Já para Aderbal Torres de Amorim decorrente da constitucionalização do moderno processo civil, este ‘terceiro enigmático’ é ator indispensável no moderno Estado Democrático de Direito, sempre que as decisões judiciais derramarem-se para fora do processo e atingirem pessoas e interesses nele não presentes99. Cibele Fernandes Dias propugna um papel para o Judiciário maior do que o de simplesmente garantir a participação de todos no debate político; a Suprema Corte tem por função garantir o cumprimento do interesse de todos100. Em acréscimo, Carlos Gustavo Del Prá afirma que não só a fiscalização da constitucionalidade dos direitos fundamentais há de ser obra do cidadão, mas também outras questões que envolvem relevância social, quando estamos diante da gerência de assuntos de interesse público, como é o caso das ações coletivas101.

97 VENTURI, Elton. Sobre a intervenção individual nas ações coletivas. In: DIDIER JR., Fredie; WAMBIER, Teresa, Arruda Alvim. (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais sobre os terceiros no Processo Civil e assuntos afins. São Paulo, RT, 2004, p. 249-250, 257, 258, 260, 264. Posição contrária ostenta Fredie Didier Jr. para quem “não pode o particular intervir como assistente nas causas coletivas”, por absoluta ausência de interesse, já que o resultado do processo não pode jamais prejudicá-lo. Diferentemente ocorre com as causas que versem sobre direitos individuais homogêneos, devendo-se evitar um litisconsórcio ativo ulterior gigantesco, o que prejudicaria a celeridade e eficiência do mecanismo de tutela coletiva. DIDIER JR., Fredie. Assistência, recurso de terceiro e denunciação da lide em causas coletivas. In: DIDIER JR., Fredie; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais sobre os terceiros no Processo Civil e assuntos afins. São Paulo: RT, 2004, p. 415, 419-421. 98 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Amicus Curiae. In: DIDIER JR., Fredie et al. (Coord.). O terceiro no Processo Civil Brasileiro e assuntos correlatos: estudos em homenagem ao Professor Athos Gusmão Carneiro. São Paulo: RT, 2010, p. 496. 99 AMORIM, Aderbal Torres de. Amicus curiae, ações constitucionais e recurso extraordinário: inconstitucionalidades flagrantes. Revista de Processo – RePro, São Paulo, ano 35, n. 188, out. 2010, p. 290. 100 DIAS, Cibele Fernandes. A justiça constitucional em mutação. Coleção Professor Álvaro Ricardo de Souza Cruz. Vol. 4. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012, p. 39. 101 DEL PRÁ, Carlos Gustavo Rodrigues. Op. Cit., p. 168-169.

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Mas há quem aponte, amparado em estudo analítico da Jurisprudência do STF, uma necessária delimitação ao ingresso do amicus, vez que é indispensável que o interessado, no momento de requerer sua intervenção demonstre que contribuirá objetivamente com o debate processual, bem como a importância de sua participação. Acrescido aos aspectos supramencionados, cumpre apontar da mesma maneira que, além de dita capacidade para contribuir com informações úteis e pertinentes, a arguição da questão do mérito trazida pelo amicus curiae deve ser inédita, ou seja, versar sobre algum ponto ainda não levado a debate pelas partes, ou mesmo por qualquer integrante já admitido no processo, a fim de validar ainda mais a sua participação. Isso se deve à tentativa de bloquear a participação de terceiros que não trariam qualquer informação distinta àquelas já presentes no processo, o que serviria apenas para tumultuá-lo indevidamente102. O contraste das teses que podem ser aportadas ao processo com a abertura da via ao interveniente viabiliza a diminuição da falta de legitimação democrática das decisões judiciais que fixam entendimentos pretorianos. Haveria cooperação para a formação da complexa teia de informações, interesses, ideias, conceitos, compreensões e análises que se chocam e resultam na elaboração da decisão do caso. Desta forma qualifica-se o precedente judicial, com mais e melhores conteúdos. Há mesmo quem preconize as iniciativas no sentido de assegurar maior participação dos afetados na gestão dos assuntos dos seus interesses, no caso do amicus curiae, mormente espraiando a sua utilização ou pelo menos seus pressupostos para todas as instituições que se nutrem do necessário pleito de legitimidade de suas decisões, como é o caso dos tribunais de contas103. Contrariamente, Leonardo de Araújo Ferraz expõe que seria no mínimo ingenuidade acreditar que a figura do amicus curiae só incorpora os aspectos positivos da busca da legitimidade de uma esfera pública atuante104. Existe opinião de que mesmo as audiências públicas não constituem senão formas ficcionais de 102 SILVA, Eduardo Silva da; BRONSTRUP, Felipe Bauer. O requisito da representatividade no amicus curiae: a participação popular no debate judicial. Revista de Processo – RePro, São Paulo, ano 37, n. 207, maio 2012. 103 FERRAZ, Leonardo de Araújo. A adoção da figura do amicus curiae no âmbito dos tribunais de contas. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, ano XXVII, vol. 70, n. 1, jan./mar. 2009, p. 57-58, 61. 104 Ibid., p. 60. volume

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legitimação de decisões, porque na prática as opiniões trazidas pelos interessados, experts, entidades de classe etc., são ignoradas no momento da construção do provimento e não são levadas em consideração ao final105. O mesmo se diria da participação do amicus curiae, ainda que sua atuação se dê por memorial, existindo quem duvide que ele possa ser considerado um instrumento típico e efetivo de democratização do processo coletivo, acreditando tratar-se de aparência de participação na construção da decisão, porque a sua atuação depende sempre da aceitação do judiciário e também por continuar a ser modelo de sistema representativo, considerado incompatível com o modelo de processo coletivo democrático participativo106. Mas as críticas não lhe retiram o caráter inclusivo, plural e enriquecedor do debate. Como sua adoção não tem outro sentido a não ser o de gerar decisões que sejam representativas de uma prestação jurisdicional mais qualificada, não deve haver obstáculos à admissão da intervenção e manifestação do amicus curiae de maneira mais ampla e generalizada107. 5. conclusões O processo coletivo é um dos mais expressivos instrumentos de acesso à justiça colocado à disposição pelo sistema processual civil brasileiro, constituindo um vigoroso meio de realização da isonomia constitucional, quando se trata da defesa de direitos individuais homogêneos. É de interesse realçar que a participação dos amici no processo pode introduzir um instrumento válido para funcionar na resolução de questões controversas e que apresentem dilemas éticos ou, por exemplo, a análise constitucional de uma norma de importância ou sensibilidade públicas, em que a decisão seja suscetível de criar uma direção jurisprudencial para outros casos pendentes. Em outros termos, assuntos em que estão em jogo interesses públicos relevantes, cuja resolução judicial ostente uma forte transcendência coletiva, isto é, temas que excedam ao mero interesse das partes. 105 COSTA, Fabrício Veiga. Mérito processual: a formação participada nas ações coletivas. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012, p. 242. 106 Ibid., p. 243-244, 247-251. 107 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Amicus Curiae: afinal quem é ele? Revista do Instituto dos advogados do Paraná, Curitiba, n. 34, dez. 2006, p. 245.

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Deve-se ter em mente que por às claras os argumentos, os fatos, e fundamentos da defesa de qualquer dos litigantes torna mais cooperativo, aberto e dialético o processo, que se transforma em verdadeiro palco de discussões atendendo ao seu escopo político-social. No paradigma democrático, é preciso conferir ao destinatário a oportunidade de discutir os fundamentos da norma jurídica, até para rejeitá-la. A possibilidade de se exigirem judicialmente prestações constitutivas de direitos sociais, mediante a chamada ação coletiva confere à ação a característica de meio a serviço da realização desses direitos e de instrumento capaz de fomentar a participação na reivindicação. O entendimento do processo como ambiente político é de relevante importância para a firme compreensão do real significado do direito fundamental de acesso à justiça. Afirma-se que o amicus curiae é indispensável para fortalecer ainda mais a legitimidade democrática, enriquecer o debate, e influenciar as decisões dos magistrados em processos que interessem a muitos ou a todos, como auxiliar do juízo, visando a mais aprofundada apreciação do litígio e melhor aplicação da norma ao caso concreto, incrementando o acesso à justiça. Haverá sempre interesses juridicamente relevantes afastados do objeto do processo e das considerações postas à apreciação pelo juiz, mas que devem ser sopesados e incluídos no processo decisório no momento do julgamento. Quanto mais difícil e complexo o processo de construção da decisão judicial, mais relevante é a participação efetiva do autor, do réu e de terceiros, inclusive e principalmente o amicus curiae. De fato, uma verdadeira e nova legitimação ocorre com o ingresso do amicus curiae, já que passa a sustentar com seu arsenal argumentativo o mais amplo acesso à justiça, em condições que podem efetivamente abarcar situações em que se discutem direitos transindividuais, coletivos e individuais homogêneos. O direito de acesso à justiça não é só o direito de ingresso ou o direito à observância dos princípios constitucionais do processo, mas também o direito constitucional fundamental de obtenção de um resultado adequado da prestação jurisdicional (art. 5º, XXXV, da CF). E quanto mais debate e participação das partes no processo, melhores serão os resultados da prestação jurisdicional, tendo volume

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em conta o caráter transindividual da repercussão do que for decidido em processo de natureza coletiva. Há grande preocupação demonstrada para a representatividade adequada do grupo que sofrerá os efeitos favoráveis ou não da coisa julgada no feito coletivo; outra razão que autoriza ou demanda a atuação do amicus curiae para conferir legitimidade ao decidido. O Poder Judiciário deve repensar sua atuação ante as novas demandas sociais, especialmente as coletivizadas, visto que a decisão não tem mais a dimensão que antes possuía. Vive-se hoje numa sociedade extremamente dividida ou segmentada, em que os interesses se contrapõem de todos os ângulos; a concepção ideal de um interesse público geral não encontra eco na realidade. Além disso, não são incomuns atualmente os processos em que são exigidos conhecimentos específicos multidisciplinares. A solução judicial precisa ser construída também a partir do debate de ideias que jamais foram cotejadas, porque até então não agitadas no processo, compondo alternativas de fundamentação oferecidas ao magistrado. O amicus passa a ser o canal da comunicação entre o ambiente da sociedade civil organizada e o sistema jurídico-social, e a garantia institucional que os cidadãos possuem para levar seu ponto de vista ao processo de tomada de decisão da Corte. Sendo crescente a preocupação com a proteção e a concretização de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, bem como com a viabilização de acesso à justiça do maior número possível de cidadãos, busca-se evidenciar que a participação do amicus curiae nos processos de tutela coletiva de direitos, segundo princípios constitucionais e processuais, é necessária para garantia do mais amplo acesso à justiça no Brasil. É preciso respeitar o comando constitucional que reza reger-se a República Federativa do Brasil, constituída sob a forma de Estado Democrático de Direito, dentre outros, pelos fundamentos da cidadania e do pluralismo político. A representatividade adequada possui um grande conteúdo legitimador da sentença coletiva, pois, se a decisão surtirá efeito sobre uma coletividade a qual não participou de fato do processo, exige-se que seu interesse tenha sido devidamente representado por quem litigou em seu nome. Em outros termos, é 324

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a garantia de que a coletividade que se sujeitará ao quanto decidido no processo tenha sido satisfatoriamente ouvida e defendida. Ao atuar como um canal que facilita a participação nos processos jurisdicionais o amicus curiae contribui para o acesso à justiça em uma ordem jurídica justa e da diminuição da distância para o alcance dos órgãos jurisdicionais. 6. referências ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Traducão Carlos Bernal Pulido. 2ª ed. Madri: Centro de Estudios Politicos y Constitucionales, 2007. ALMEIDA, Marcelo Pereira de. A efetividade do processo coletivo como garantia à ordem jurídica justa. In: CARNEIRO, Athos Gusmão; CALMON, Petrônio (Org.). Bases científicas para um renovado Direito Processual. 2ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2009. ALVIM, Arruda. Ação civil pública: sua evolução normativa significou crescimento em prol da proteção às situações coletivas. In: GUERRA, Luiz (Coord.). Temas Contemporâneos do Direito: homenagem ao bicentenário do Supremo Tribunal Federal. Brasília: Guerra, 2011. ALVIM, José Eduardo Carreira. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2009. ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Instrumentos constitucionais direcionados à proteção dos direitos coletivos: ação civil pública e ação popular. In: MOREIRA, Alberto Camiña; ALVAREZ, Anselmo Prieto; BRUSCHI, Gilberto Gomes (Coord.). Panorama atual das tutelas individual e coletiva: estudos em homenagem ao professor Sérgio Shimura. São Paulo: Saraiva, 2011. AMORIM, Aderbal Torres de. Amicus curiae, ações constitucionais e recurso extraordinário: inconstitucionalidades flagrantes. Revista de Processo – RePro, São Paulo, ano 35, n. 188, out. 2010. BOLQUE, Fernando Cesar. Interesses difusos e coletivos: conceito e legitimidade para agir. Justitia, São Paulo, ano. 61, vols. 185-188, jan./dez. 1999. volume

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BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Acórdão.. Agravo de Instrumento, Processo: 0005808-51.2011.404.0000-PR, Terceira Turma, Des. Federal Maria Lúcia Luz Leiria, Relator . Data da decisão: 26/05/2011. Disponível em: . Acesso em: 11 nov. 2012. BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae: uma homenagem a Athos Gusmão Carneiro. In: DIDIER JR., Fredie et al. (Coord.). O terceiro no Processo Civil Brasileiro e assuntos correlatos: estudos em homenagem ao Professor Athos Gusmão Carneiro. São Paulo: RT, 2010. COMPARATO, Fábio Konder. Prefácio à 1ª ed. MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Tradução Peter Naumann. 6ª ed. São Paulo, RT, 2011. COSTA, Fabrício Veiga. Mérito processual: a formação participada nas ações coletivas. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012. COSTA, Susana Henriques da. A representatividade adequada e litisconsórcio – o projeto de Lei n 5.139/2009. In: GOZZOLI, Maria Clara et al. (Coord.). Em defesa de um novo sistema de Processos Coletivos: estudos em homenagem a Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: Saraiva, 2010. CRUZ, Tiago Setti Xavier da. A democracia como direito social, o coto vedado e a tutela da participação efetiva no processo democrático. Direito Público, Porto Alegre; Brasília, ano 9, n. 46, jul./ago. 2012. DEL PRÁ, Carlos Gustavo Rodrigues. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e de aperfeiçoamento da prestação jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2008. DIAS, Cibele Fernandes. A justiça constitucional em mutação. Coleção Professor Álvaro Ricardo de Souza Cruz. Vol. 4. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012. DIDIER JR., Fredie. Assistência, recurso de terceiro e denunciação da lide em causas coletivas. In: DIDIER JR., Fredie; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais sobre os terceiros no Processo Civil e assuntos afins. São Paulo: RT, 2004. 326

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Consumidor. São Paulo: Atlas, 2006. Estas ideias estão expressas também em: MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas no direito comparado e nacional. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. MINAS GERAIS. Ministério Público. Procuradoria-Geral de Justiça. Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional. Manual de Atuação Funcional do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. 2a ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Procuradoria-Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais, 2010. MORAIS, Dalton Santos. A abstrativização do controle difuso de constitucionalidade no Brasil e a participação do amicus curiae em seu processo. Revista de Processo – RePro, São Paulo, ano 33, n. 164, out. 2008. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Por um processo socialmente efetivo. Revista de Processo – RePro, São Paulo, ano 27, n. 105, jan./mar. 2002. _______. O neoprivatismo no processo civil. In: DIDIER JR., Fredie (Org.). Teoria do processo: panorama doutrinário mundial. 2ª série. Salvador: JusPODIVM, 2010. Também publicado em: DIDIER JR., Fredie (Org.). Leituras complementares de Processo Civil. 6ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2008. MULLENIX, Linda. General report – common law. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda. Os Processos Coletivos nos países de Civil Law e Common Law: uma análise de direito comparado. Novas tendências em matéria de legitimação e coisa julgada nas ações coletivas. São Paulo: RT, 2008. MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Tradução Peter Naumann. 6ª ed. São Paulo, RT, 2011. NUNES, Dierle José Coelho; BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Por um paradigma democrático de processo. In: DIDIER JR., Fredie (Org.). Teoria do Processo: panorama doutrinário mundial. 2ª série. Salvador: JusPODIVM, 2010. OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais. In: DIDIER JR., Fredie (Org.). Leituras complementares de Processo Civil. 6ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2008. 330

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n. 5.130-2009. In: GOZZOLI, Maria Clara et al. (Coord.). Em defesa de um novo sistema de Processos Coletivos: estudos em homenagem a Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: Saraiva, 2010. _______. Apontamentos sobre o processo coletivo, o acesso à justiça e o devido processo social. Revista de Direito Processual Civil Gênesis, Curitiba, ano II, n. 4, jan./abr. 1997. VIANNA, Rodrigo. A legitimidade democrática da justiça constitucional. Direito Público, Porto Alegre; Brasília, ano 9, N. 47, set./out. 2012. VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Interesses individuais homogêneos e seus aspectos polêmicos. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Anotações sobre o projeto de lei n. 166/2010, para um novo Código de Processo Civil. In: MOREIRA, Alberto Camiña; ALVAREZ, Anselmo Prieto; BRUSCHI, Gilberto Gomes (Coord.). Panorama atual das tutelas individual e coletiva: estudos em homenagem ao professor Sérgio Shimura. São Paulo: Saraiva, 2011. _______. Amicus Curiae: afinal quem é ele? Revista do Instituto dos advogados do Paraná, Curitiba, n. 34, dez. 2006. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Amicus Curiae. In: DIDIER JR., Fredie et al. (Coord.). O terceiro no Processo Civil Brasileiro e assuntos correlatos: estudos em homenagem ao Professor Athos Gusmão Carneiro. São Paulo: RT, 2010. WATANABE, Kazuo. Relatório síntese. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda. Os Processos Coletivos nos países de Civil Law e Common Law: uma análise de direito comparado. Novas tendências em matéria de legitimação e coisa julgada nas ações coletivas. São Paulo: RT, 2008. ZANETI JR., Hermes; FERRAZ, Claudio Ferreira. Parens patriae: a doutrina da legitimação dos órgãos do Estado para tutela coletiva. Revista de Processo – RePro, São Paulo, ano 37, n. 212, out. 2012. ZANETI JR., Hermes. Os direitos individuais homogêneos e o neoprocessualismo. In: FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de; RODRIGUES, 332

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Marcelo Abelha (Coord.). O novo Processo Civil Coletivo. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2009. _______. Da lei à Constituição: a positivação dos direitos difusos e coletivos na Constituição brasileira. In: JEVEAUX, Geovany Cardoso (Org.). Uma teoria da Justiça para o acesso à justiça. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2012. ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

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observatórios de jurisprudência: um modo de (re)pensar o direito do século xxi Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros1 Selma Rodrigues Petterle2

Resumo O problema central que norteia a presente pesquisa diz respeito a perquirir, no âmbito da construção de dois observatórios de jurisprudência quais são os conteúdos que têm sido delineados pelos juízes, no Brasil, a respeito de dois temas bem específicos, o primeiro, sobre a pesquisa clínica com medicamentos, e o segundo, sobre proteção dos animais não humanos. A partir da análise dos conteúdos dessas decisões judiciais pretende-se aportar elementos para que os vários atores possam repensar o Direito do século XXI. De tal sorte, a ideia aqui semeada é a de que os Observatórios de Jurisprudência se instauram na atividade de pesquisa como um misto de investigação científica e também de ferramenta de controle social.

Palavras-chave Observatório; Jurisprudência; Direito; Século XXI.

Abstract The central problem that guides the current research concerns the contents that have been outlined by the judges, in Brazil, about two very specific issues: the 1 Pesquisadora do CNPq. Doutora em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFSC. Doutoramento sanduíche pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC). Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da PUCRS. Professora Adjunta da Faculdade de Direito da PUCRS. Professora do Universitário La Salle (UNILASALLE), onde leciona nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito (Mestrado). Presidente do Instituto Piracema – Direitos Fundamentais, Ambiente e Biotecnologias. Advogada. 2 Pesquisadora do CNPq. Doutora em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da PUCRS. Doutoramento sanduíche pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC). Mestre em Direito pela PUCRS. Professora do Universitário La Salle (UNILASALLE), onde leciona nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito (Mestrado), Coordenadora Adjunta deste Programa. Vice-Presidente do Instituto Piracema – Direitos Fundamentais, Ambiente e Biotecnologias. Advogada. volume

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first one regards clinical research with drugs, and the second one, the protection of non-human animals. Based on the analysis of the contents of these judgments, the authors intend to contribute with elements for the various actors to rethink the Law of the 21st century. Therefore, the idea here presented is that the Observatories of Jurisprudence are established in research activity as a mixture of scientific research as well as tool of social control. Key words Observatory; Jurisprudence; Law; 21st Century. 1. introdução Os Observatórios de Jurisprudência se instauram na atividade de pesquisa como um misto de investigação e de ferramentas de controle social a serviço da área do Direito e, também, ou talvez principalmente, a serviço da dignidade da vida, da dignidade da cidadania. Hodiernamente, as decisões proferidas pelos Tribunais, sejam eles os Tribunais Superiores, ou mesmo os Tribunais Estaduais revelam um caráter de importância e de impacto na vida social capaz de modificar a postura do País a respeito de determinados temas. Nada mais natural de que a pesquisa jurídica se volte para as decisões proferidas dentro desses templos da atividade jurisdicional. A ideia de um observatório de jurisprudência está alicerçada na busca de justiça social e na perseguição de processos de transparência tanto na produção de conhecimento como no uso social que se dá ao mesmo. No que tange ao problema central que norteia o presente artigo, diz respeito a perquirir, no âmbito de dois observatórios sobre jurisprudência, quais são os conteúdos que têm sido delineados pelos juízes no Brasil, a respeito de temas bem específicos. Primeiro, sobre pesquisa clínica com medicamentos3, precedidos de 3 Essa matéria, qual seja, a pesquisa clínica, tem sido objeto de freqüentes discussões no Senado Federal, inclusive com Audiência Pública realizada recentemente, no dia 18.03.2014, na Comissão de Assuntos Sociais, para analisar o modelo regulatório da pesquisa clínica com medicamentos no Brasil. Em ordem cronológica, eis os projetos de lei, no Senado Federal: a) o PLS 323/2001, sobre normas e requisitos para a pesquisa médica em seres humanos); b) o PLS 25/1992, com proibição de realização de ensaios clínicos nas fases I e II no teste de fármacos produzido por tecnologia estrangeiras); c) o PLS 78/2006, que estabelece punições para as violações às diretrizes e normas concernentes às pesquisas que envolvem seres humanos e

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ensaios pré-clínicos (com animais não-humanos). E, segundo, sobre proteção dos animais não humanos. A partir da análise de conteúdos decisórios bem significativos, vislumbra-se o relevante papel desempenhado pelos juízes para a (re) construção do Direito, para um (re) pensar o Direito. Nesse contexto verifica-se, paradoxalmente, que uma violação ou a rejeição de um direito em realidade não o infirma, mas, ao contrário, o afirma, já que é a partir da negação de um direito, no contexto fático, que o próprio Direito, como sistema autopoiético, se reconstrói, notadamente a partir da decisão judicial, movimento que acaba por evidenciar as complexas zonas de interpretação entre os vários sistemas e o sistema jurídico (SCHWARTZ, 2004). Assim, se, por um lado, o Direito se retroalimenta, circular e internamente, por outro, sofre influências (ou provocações) quando em zonas limítrofes ou de contato com outros sistemas sociais, questão que também pode ser estudada à luz da ideia de o Direito se (re)constrói, a partir de suas fontes. Pautados na convicção de que o saber não é um valor em si mesmo e que, por tal razão, a academia tem de contribuir para que os seres humanos vivam mais e melhor, abrindo também as fronteiras do conhecimento para problemas concretos da vida dos homens. Quanto ao mérito científico, trata-se de pesquisa com evidente aplicação prática, na medida em que mapear as decisões judiciais e os fundamentos empreendidos pelos juízes nos possibilita aprofundar as reflexões acerca das formas de atuação dos demais poderes públicos (leia-se legislador e administrador), e também dos deveres dos particulares, que desempenham, conjuntamente, um relevante papel no que diz com a proteção de direitos. Quanto à relevância do projeto, está em analisar criticamente os principais argumentos aportados pela determina a co-responsabilidade do pesquisador, do patrocinador e da instituição pela indenização devida aos sujeitos das pesquisas por eventuais danos ou prejuízos, pronto para a pauta na CCTICI); d) o PLS 396/2007, dispondo sobre a obrigatoriedade da continuidade do tratamento de sujeito de pesquisa em seres humanos com fármaco, medicamento, nova formulação ou nova combinação de fármacos, por meio da sua dispensação gratuita pela instituição pesquisadora no decorrer da pesquisa até a efetiva comercialização, e pelo fabricante, quando já comercializado, e sobre a divulgação dos resultados da pesquisa). Na Câmara dos Deputados, também em ordem cronológica: a) o PL 3.569/1997, com incentivos fiscais para a pesquisa clínica e desenvolvimento tecnológico na área de saúde; b) o PL 7.086/2000, sobre Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas envolvendo Seres Humanos); c) o PL 2.473/2003, sobre Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas envolvendo Seres Humanos e requerimento REQ 229/2009, de audiência pública para discutir este PL. volume

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jurisprudência, mapear possíveis déficits de proteção jurídica, notadamente se pensada conjuntamente a proteção delineada no âmbito do direito internacional4, aportando elementos para rediscutir o marco regulatório brasileiro, quanto aos dois temas lançados. 2. uma análise do discurso par a auxiliar a reconstrução O presente estudo se apoia em metodologias, ainda que ancoradas em analise de conteúdo que ultrapassam via Análise de Discurso (AD). A Análise de Discurso como tal, como instância metodológica, raramente apresenta categorias ou passos pré-determinados. Esses passos são constituídos ao longo do caminho, em função da “teoria forte” que dá sustentação à AD, presente na instituição das questões de saber/poder/ética sob o foco da subjetividade socialmente construída. FOUCAULT faz uma história política dos corpos, de sua docilidade, resistência,

4 Quanto ao recorrente problema de buscar uma fundamentação ética para o agir humano, embora não seja o nosso objetivo neste artigo, cumpre ao menos explicitar que há padrões internacionais concebidos pela Associação Médica Mundial e constantes na Declaração de Helsinque, assim como duas contribuições do CIOMS, o Conselho de Organizações Internacionais de Ciências Médicas, relativamente à pesquisa científica (Diretrizes Internacionais para as Pesquisas Biomédicas e também as Diretrizes Internacionais para os Estudos Epidemiológicos), além da proposta da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS - OMS), conhecida como Documento das Américas sobre as Boas Práticas Clínicas. No plano do direito internacional há normas jurídicas internacionais no que tange à proteção dos direitos humanos na esfera das pesquisas científicas na área da saúde e das pesquisas biomédicas com seres humanos, mais especificamente três Declarações Internacionais da UNESCO, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, de 1997; Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos, de 2003; e a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos, de 2005). Considerando os instrumentos mais específicos sobre a matéria existentes no âmbito europeu, há que referir a Convenção sobre os Direitos do Homem e da Biomedicina (1997) e seu Protocolo Adicional sobre Pesquisa Biomédica (2005), assim como, no âmbito da União Europeia, a harmonização das legislações nacionais sobre a pesquisa científica com seres humanos (diretivas comunitárias específicas sobre ensaios clínicos com medicamentos e ensaios clínicos com dispositivos médicos, e atos normativos específicos de internalização nos Estados-membros). PETTERLE, Selma Rodrigues. Liberdade de pesquisar, pesquisas clínicas e outras pesquisas científicas de risco envolvendo seres humanos: uma proposta de reformulação do atual sistema de controle implementado pelo Conselho Nacional de Saúde, à luz da Constituição brasileira. Tese (Doutorado em Direito), Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.

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transgressão, enfim, de suas lutas pela liberdade (FOUCAULT, 1971, 1987, 1991, 1992, 1994, 1996, 1997), bem como de comentadores e estudiosos de suas obras. Roberto MACHADO (1982, p. XV-XVI), organizador de Microfísica do Poder, trabalha a questão de poder/saber, afirmando que “a idéia básica de FOUCAULT é de mostrar que as relações de poder não se passam fundamentalmente nem ao nível do direito, nem da violência; nem são basicamente contratuais nem unicamente repressivas”, o próprio FOUCAULT afirma que “é preciso parar de sempre descrever os efeitos do poder em termos negativos: ele ‘exclui’, ele ‘reprime’, ele ‘recalca’, ele ‘censura’, ele ‘mascara’, ele ‘esconde’. De fato, o poder produz; [...] produz domínios de objetos e rituais de verdade” (FOUCAULT, 1975, p. 196) Cabe ao analista de AD, ao cartografar um saber, dizer de onde fala, o contexto onde se inscreve, dialogando com o contexto e o texto do qual se apropria, inscrevendo-o atravessando-o em múltiplas direções e planos, escavando e questionando como se formam aqueles saberes com que estamos preocupados. Falar de um lugar ou de múltiplos lugares, enunciados e diversos dispositivos. Assume, dessa forma, significado o entendimento como questão que atribui ao discurso, como sendo um conjunto de regras, dado como um sistema de relações, em sua espessura e, como tal, descrito multifacetadamente, como um monumento e não como um documento. Reside a condição da prática, assumida como prática discursiva, na qual se inscrevem múltiplos olhares, múltiplos enunciados em bases não homogêneas. Ao examinar o modo de produção de saberes a partir da constituição dos próprios saberes de uma determinada época ou condição, começa a evidenciar a preocupação com outros princípios de organização de saberes. Nestes, busca as memórias locais, as discursividades locais, a partir das práticas discursivas sob as quais elas se mostram, mesmo que escapando do espaço do quadro, mesmo que se enrolando sobre si mesma, mesmo que aparentemente contraditórias. A descrição do discurso busca clarear, articular a prática ou acontecimento discursivo com a prática ou acontecimento não- discursivo. Na busca de esclarecer e clarear os enunciados, evidencia-se a existência de relações de saber/poder em um tempo e espaço determinados. Esse enunciado volume

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ou conjunto de enunciados são constituídos, sempre, em sua materialidade e na ordem institucional; dependem de um campo institucional. Ainda, nesse processo, somos desafiados a detectar como o poder intervém materialmente na produção do poder e do saber. Na investigação descritiva e na sua análise-interpretativa (FOUCAULT, In: RABINOW e DREYFUS, 1995), evidenciar como as práticas se constituem em regimes de verdade, valendo mesmo para a criação de “novos saberes”: a) detectar o discurso científico (seja verdadeiro ou não) como a forma geral de modalidade de apresentação dos saberes; b) detectar como essas mesmas práticas e saberes/poderes instituídos se constituem como necessários ao funcionamento econômico e político (podendo apresentar-se, inclusive, na busca de liberdade em oposição ou a favor do, por exemplo, neoliberalismo); c) detectar a constituição dessas práticas em objetos de consumo Institucional (sendo um tema freqüentemente trazido à qualquer discussão); d) detectar, finalmente, como essas práticas estão, permanentemente, no foco das discussões e debates nas diversificadas e incompatíveis lutas e enfrentamentos sociais (por suposição, a educação - como objeto, estratégia e enunciado - faz parte do discurso de partidos políticos antagônicos em suas propostas, assim como a idéia de cidadania, de reforma agrária, entre outros), como se existissem diferenças e que todos buscassem a real transformação. Finalmente, ao trabalhar com as práticas discursivas em suas práticas divisórias, analisar como é feito o ataque à tirania e aos discursos totalizadores, abrindo espaços de resistência ou ainda, como podemos fazer este ataque e este exercício de liberdade em sua ontologia ética, deixando-as aparecer em suas multiplicidades, em sua diferenças, em suas reversibilidades, em seus duplos, em suas dobras. A partir das ideias lançadas aqui, se pode salientar os pressupostos da análise de discurso. Primeiro, a AD não está limitada pelas categorizações prévias, pelas divisões possíveis já formuladas, pelos atributos provindos das ciências. Com isso, busca-se o estabelecimento das condições de existência de um determinado saber 340

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- na forma de objeto, de estratégia, de conceitos, de tipos enunciativos, buscando suas condições intrínsecas em seus múltiplos. Segundo, com outros princípios de organização dos saberes, FOUCAULT (1982, p. 113), reafirma que no fundo da prática científica existe um discurso que diz: “nem tudo é verdadeiro; mas em todo lugar e a todo momento existe uma verdade a ser dita e a ser vista, uma verdade talvez adormecida, mas que no entanto está somente à espera de nosso olhar para aparecer, à espera de nossa mão para ser desvelada”. Evidencia, da mesma forma, que o nexo situa-se no entendimento do discurso em sua prática. Terceiro, ainda na esteira dos pressupostos da análise do discurso, cumpre destacar que a análise histórica da condições e das possibilidades de constituição de saberes é produzida a partir da contemporaneidade, com o propósito de “dizer sobre um modo de ser”. Questiona e aponta contradicões, lacunas, “epistemes”, regimes de verdade, sem ordenar ou coagir, Quarto, Ao investigar e mesmo estabelecer a análise, busca as contradições dos saberes de uma determinada época acerca de um objeto, de um conceito, de uma estratégia ou de tipos de enunciados, detectando em que medida estas mesmas contradições são expressões de reais desejos de transformação ou se indicam ser um simples efeito de superfície, tendo, portanto, uma mesma base homogênea (MACHADO, 1981). Percorre essa estratégia em praticamente todas as suas investigações, seja a da loucura, de medicalização, das prisões, da sexualidade. Na linha da pesquisa desenvolvida, outro pressuposto de extrema relevância para análise das jurisprudências e do discurso nelas imbutido é o pressuposto que trabalha “a desconstrução das evidencias”, estando a certeza de questionamento da linearidade histórica, da oficialidade dessa mesma história. FOUCAULT (1971, p. 17-18) afirma que “temos o hábito de ligar entre si os pensamentos dos homens e seus discursos”; propõe, em contrapartida, a aceitação, em primeira instância, de tratar-se “de um conjunto de acontecimentos dispersos”, descontínuos. Foucault defende a idéia de que o discurso é descrito a partir de questões inteiramente diferente da tradicional: para além da língua, mesmo que historicizada, questiona “como um determinado enunciado apareceu e não outro em seu lugar?” Em uma outra reflexão pode-se destacar outro dos pressupostos fundamentais da análise do discurso, a análise dos enunciados, ou seja, as formações discursivas presentes nas práticas discursivas para, com volume

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eles e apesar deles, analisar as compatibilidades e incompatibilidades entre saberes e, o mais central, a microfísica do poder presente nesses saberes, em suas práticas divisórias. Nessa proposta emerge a “genealogia da alma moderna a partir da história política dos corpos” (MACHADO, 1981). No processo de análise interpretativa dos dispositivos em sua face genealógica, FOUCAULT, analisando Nietzsche, vai preocupar-se menos com a origem e mais com a proveniência e com a emergência das práticas discursivas e não-discursivas (FOUCAULT, 1982, p. 20-22). O referido autor auxilia, por meio da tese que defende, ao desenhar o sistema de racionalidades subjacente às práticas, cabe-nos questionar e apontar - sem ordenar ou coagir - como, realmente se institui e se exerce a verdade e a liberdade, analisando qual a nossa verdadeira condição e desejo de mudar, de transformar as práticas divisórias, por meio das quais nos constituímos. Dessa forma, defende a ideia de que, ao desentranhar como sujeitos coletivos mesmo que anônimos, sem com isso constituir uma nova política de verdade. E, finalmente, esta modalidade de AD privilegia no estudo das possibilidades de constituição de saberes, nas relações de poder, na ética uma preocupação muito maior com a subjetividade socialmente construída. É Foucault (1982, p. 170-172) quem afirma que na genealogia, trata-se “de ativar saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia depurá-los, hierarquizá-los [...]. As genealogias não são portanto retornos positivistas a uma forma de ciência mais exata [...]. Trata-se da insurreição dos saberes não tanto contra os conteúdos, os métodos e os conceitos de uma ciência, mas de uma insurreição dos saberes antes de tudo contra os efeitos de poder centralizadores que estão ligados à instituição de uma sociedade como a nossa. [...] São os efeitos de poder próprios a um discurso considerado como científico que a genealogia deve combater. [...] tornando-os capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico, unitário, formal e científico” Em a Genealogia do Racismo (FOUCAULT, 1992, p. 9), afirma a genealogia como “inscrita na tradição nietzscheana que articula as lutas com a memória. Descreve as forças históricas que, em seu enfrentamento tornaram possível as culturas e as formas de vida”. Segundo Tomas ABRAHAM (in FOUCAULT, 342

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1992, p. 13), ao analisar o racismo de Estado, nele incluindo todos os “considerados como perigosos”, não só em termos de raças, como afirma ABRAHAM (in FOUCAULT 1982, p. 14), que “o racismo é a condição de aceitabilidade da matança em uma sociedade em que a norma, a regularidade, a homogeneidade são as principais funções sociais. O racismo é a metafísica da morte do século XX. FOUCAULT não fala do ‘outro’, nem da alteridade ou do diferente; nem emprega nenhuma das figuras da moral de tolerância ou da hermenêutica da compreensão. Sabe que são outras figuras de poder. Seu projeto é genealógico, reconstrui a memória das lutas, postergadas pelo sorriso dos vencedores.” Foucault afirma que “(...) em vez de orientar a pesquisa sobre o poder no sentido do edifício jurídico da soberania, dos aparelhos do Estado e das ideologias que o acompanham, deve-se orientá-la para a dominação, os operadores materiais, as formas de sujeição, os usos e conexões da sujeição pelos sistemas locais e os dispositivos estratégicos.” (FOUCAULT, 1982, p. 1986). Nessa linha, (FOUCAULT, 1982, p. 182) propõe algumas precauções metodológicas: em primeiro lugar, “captar o poder em suas extremidades, em suas últimas ramificações, lá onde ele se torna capilar,” não só em suas formas regulamentares; segundo, “não analisar o poder no plano da intenção ou da decisão, não tentar abordá-lo pelo lado interno [...], mas estudar o poder onde sua intenção - se é que há uma intenção - está completamente investida em práticas reais e efetivas [...] em outras palavras, [a partir da soberania - como lugar do soberano] tentar saber como foram constituídos, pouco a pouco, progressivamente, real e materialmente os súditos, a partir da multiplicidade dos corpos, das forças...”; terceiro, analisar “o poder como algo que circula[...] o poder funciona e se exerce em rede.[...] o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles”; quarto, “fazer uma análise ascendente do poder: partir dos mecanismos infinitesimais [...] e depois examinar como esses mecanismos de poder foram e ainda são investidos, colonizados, utilizados, subjugados [...] por mecanismos cada vez mais gerais e por formas de dominação global”; quinto, [ a relação das grandes máquinas de poder com a ideologia], “não creio que aquilo que se forma na base sejam ideologias: é muito menos e muito mais do que isso. São instrumentos reais de formação e de acumulação do saber.” volume

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3. os observatórios como mecanismos de efetivação de direitos No presente artigo investigam-se o potencial das decisões judiciais envolvidas em dois observatórios de jurisprudência, como um primeiro resultado de dois projetos de pesquisa aprovados no Edital Universal MCTI/CNPq n. 14 – 2013. A linha condutora é explorar as duas temáticas já expostas nesse ensaio, decorrentes de processo de Pesquisa que investigam vertentes na area de dignidade e de direitos Fundamentais na realidade Brasileira. Um dos Observatórios de Jurisprudência objetiva mapear e analisar o fenômeno da judicialização do direito à saúde no Brasil, considerado um recorte específico, qual seja, o das pesquisas clínicas com medicamentos, construindo um observatório de jurisprudência sobre o tema. No contexto brasileiro, tal discussão necessariamente há de partir do marco jurídico-constitucional, já que a saúde foi consagrada expressamente como direito (e dever) fundamental, devendo o Estado garantir a sua prestação, instituindo-se o Sistema Único de Saúde, delineado por legislação concretizadora. Note-se que, especialmente em se tratando de pesquisas científicas de maior risco (como as pesquisas clínicas com medicamentos), é difícil pensar a proteção da liberdade de pesquisar sem, concomitantemente, proteger outros direitos e bens fundamentais. Considerado esse quadro normativo, impõe-se verificar se e como o Estado brasileiro vem atendendo ao desiderato constitucional no que diz com as pesquisas clínicas (abstraídas, portanto, outras mazelas concretas enfrentadas pelos cidadãos brasileiros), questão que, pelas demandas judiciais que se conhece sobre o tema, está a indicar a necessidade de aprofundar o estudo sobre o conteúdo dessas decisões judiciais. Ilustra-se o panorama com um conteúdo já construído em sede doutrinária e jurisprudencial (no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, TJRS), qual seja, o de que há obrigação do laboratório patrocinador de pesquisa clínica de fornecer o medicamento após a conclusão da pesquisa clínica, além da recomendação do Conselho Nacional de Justiça (no 31/2010), dirigida aos Tribunais de Justiça e aos Tribunais Regionais Federais, no sentido das corregedorias orientarem os magistrados a verificar, junto à CONEP (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos), se os demandantes em juízo participaram de pesquisa experimental, situação em que a continuidade do tratamento é de responsabilidade do laboratório. 344

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O panorama fático vivido pelas pessoas que participam de pesquisas clínicas com medicamentos tem desaguado em várias demandas (individuais e coletivas) propostas perante o Judiciário, inclusive com relação a pessoas provenientes de diferentes Estados da Federação e que participaram de uma mesma pesquisa clínica, o que ilustra o fenômeno do deslocamento de pacientes pelo Brasil. Tais situações inspiram o presente projeto que, mediante o mapeamento e análise dessas decisões judiciais, pretende contribuir para o desenvolvimento das pesquisas na área do Direito e Sociedade. O segundo observatório de jurisprudência, também com aderência a área dos direitos fundamentais, volta-se aos direitos de algo a ver com a vida e sustentabilidade do planeta. Refere-se ao Direito ambiental, no que concerne a proteção dos animais não-humanos no Brasil. É incontestável o avanço apresentado pela área de Direito Ambiental, em suas múltiplas ilações, para a promoção de uma qualidade coletiva de vida digna na sociedade brasileira. Paradoxalmente, no que tange à matéria ambiental, essa mesma dignidade é ainda dispersa e, por vezes, até mesmo contraditória, o que dificulta, senão inviabiliza, tanto a proteção do meio ambiente quanto o seu entendimento a uma vida sustentável, ai defendidas seja pelos cidadãos, seja pelo próprio poder público. Destaca-se que as componentes clássicas do antigo principio de realidade inflexibilidade da lei, imprevisibilidade do destino, impossibilidade de fugir ao sofrimento - foram, no projeto da modernidade, quando não abolidas, pelo menos reduzidas a grandezas residuais. A revolta ontológica dos tempos modernos põe em marcha contra essas “constantes” uma tripla revolução: uma revolução da mobilização, uma revolução da proteção e uma revolução do alijamento e da facilitação. Observa-se uma exploração unilateral e técnica do homem para com a natureza, comportamento esse, explorador e degradante. Como bem ressalta Sloterdijk (2002, p. 234), a velha ecologia do palco (no qual e do qual se retirava toda riqueza como cenário de um palco planetário como apetrechos) e da peça ficou transtornada. Já não se trata, desde então, de colocar de qualquer maneira figuras culturais arriscadas sobre fundos proporcionados pela Natureza e suspeitos de ser carregados sem limite. E, dessa forma, que a devida desdramatizacao da história estimula o redescobrimento de uma volume

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Natureza dramática. Caso a humanidade despertasse do seu narcisismo histórico, descobriria que já não tem mais missão nenhuma senão a de adotar como suas as causas da Natureza, por de mais finita. Devido aos êxitos conseguidos pela mobilização histórica, a Natureza e a civilização soldaram-se numa comum improbabilidade. O autor reforça, ainda, que essas condições equivalem a uma aceitação da solidariedade e que nela nasce, espontaneamente, o que denomina como um etos de cidadãos da Terra, fazendo com que se evitem exigências cegas à capacidade da Terra. Habermas (2004, p. 47) reafirma o entendimento do nexo teórico e prático de dignidade ao “demonstrar que “a dignidade humana”, em seu estrito sentido moral e jurídico, encontra-se ligada a uma simetria de relações. Ela não é uma propriedade que se pode “possuir” por natureza, como a inteligência ou os olhos azuis. Ela marca, antes, aquela “intangibilidade5 que só pode ter um significado nas relações interpessoais de reconhecimento recíproco e no relacionamento igualitário entre as pessoas.” Ainda na defesa dessa linha argumentativa, base tanto de éticas ambientais quanto de comunidades morais defensoras de animais e do ambiente em geral, encontra-se a proteção digna da vida intrauterina. À semelhança da responsabilidade dos pais para com a criança que cresce no útero materno, Habermas (2004) vem afirmar que mesmo “antes de ser inserida em contextos públicos de interação, a vida humana, enquanto ponto de referência dos nossos deveres, goza de proteção legal, sem ser, por si só, um sujeito de deveres e um portador de direitos humanos (…) Obviamente, temos para com ela e em consideração a ela deveres morais e jurídicos (Habermas, 2004, p.50). Habermas ainda interpreta, do ponto de vista da constituição de uma comunidade democrática, a relação vertical e horizontal. A primeira, vertical, entre o cidadão e o Estado e a rede horizontal das relações entre os cidadãos, para trabalhar tanto a intangibilidade, quanto a indisponibilidade da dignidade da vida no sentido da proteção da vida. Nesse direito fundamental está garantida a “consciência de autonomia, nomeadamente entendida pela autocompreensão moral 5 Nessa vertente, é, ainda o autor (Habermas, quem defende “o termo “intangibilidade” não com o sentido de “indisponibilidade”, pois uma resposta pós-metafísica (grifo do autor) à questão de como devemos lidar com a vida humana pré-pessoal não pode ser obtida ao preço de uma definição reducionista (grifo do autor) do homem e da moral.” (2004).

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que se deve esperar de todo membro de uma comunidade de direito, estruturada pela igualdade e pela liberdade, quando ele tem as mesmas chances de fazer uso de direitos subjetivos igualmente distribuídos” (Habermas, 2004, p. 107). A possibilidade desse direito fundada em relações intersubjetivas de reconhecimento recíproco abre caminho ao exercício de princípios complementares de justiça e de solidariedade (Habermas, 2000, p.20). Da mesma forma, vai nos orientar com a autoridade, assim como com a liberdade em relação a si e ao mundo. Entendemos, assim que a dignidade exige o esclarecimento dos limites do próprio significado do soberano e do biopolítico. Assume Agamben6, nos auxiliando nessa caminhada que uma das características essenciais da biopolítica moderna “(…) é a sua necessidade de redefinir continuamente na vida o limiar que articula e separa o que está dentro e o que está fora. Uma vez que a vida natural impolítica, tornada o fundamento da soberania, transpõe os muros do oikos e penetra cada vez mais profundamente na cidade, ela transforma-se ao, mesmo tempo numa linha em movimento que deve ser incessantemente reconfigurada” (AGAMBEN, 1998, p.126). Na linha da dignidade, essa é redesenhada por um jogo político como se todos fossem peças de uma grande/ pequena arena geopolítica, Agamben (1998), ainda vem mostrar a ordem jurídica de muitos Estados europeus, com normas que permitem a desnacionalização e a desnaturalização em massa de seus cidadãos7. Observa Habermas (1987), com base em princípios legais e morais, embora eticamente questionáveis, a opacidade da dignidade, uma vez que a mesma, juridicamente se permitia ser aplicada a alguns, sendo redesenhada ao sabor das 6 Com essa abordagem, Agamben vem enfatizar o poder do soberano de normatizar o excepcional, aquilo que estava sendo excluído, tornando-o ilegal de certa maneira. Paradoxalmente, esse entendimento de soberania vem ser trabalhado de modo a excluir parcelas da sociedade, sob a égide de uma inclusão. 7 Primeiro foi a França, em 1915, em relação a cidadãos naturalizados de origem “inimiga”, em 1922, o exemplo foi seguido pela Bélgica, que revogou a naturalização de cidadãos que tinham cometido “atos antinacionais” durante a guerra; em 1926, o regime fascista promulgou uma lei semelhante visando os cidadãos que se tinham mostrado “indignos da cidadania italiana”; em 1933 foi a vez da Áustria e assim por diante. Até que as leis de Nuremberg sobre a “cidadania do Reich” e sobre a “proteção do sangue e da honra alemães” levaram ao extremo este processo, dividindo os cidadãos alemães em cidadãos de pleno direito e cidadãos de segunda categoria, e introduzindo o princípio de que a cidadania era algo de que era necessário ser digno e que podia, portanto, ser sempre retirada. (AGAMBEN, 1998, p. 127). volume

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geografias e dos campos. Hodiernamente, lutam-se outras batalhas nos espaços ambientais, mas os caminhos de dignidade continuam a ser buscados na sua transparência, fugindo da opacidade em que a nova intransparência vem se delineando. São processos de ordem moral e ética que se atravessam para legitimar a correção das normas, assim como das afirmações que redesenham os Estados. É nele que Habermas vem postular outro modo de assinalar o sentido de soberania, pois não mais calcado na figura de um único ente, mas representado e regrado por normas intersubjetivamente estabelecidas de modo legítimo e democrático (HABERMAS, 1998, p. 661). De acordo com Habermas a questão fundamental da moral “a saber, que tipos de ação são “igualmente bons” para todos os membros, nos referimos a um mundo de relações interpessoais regradas de modo legítimo. A pretensão à correção de afirmações morais possui o sentido de que a normas correspondentes merecem reconhecimento geral no círculo dos destinatários. Diferentemente da pretensão de verdade, a pretensão de correção, que é análoga à de verdade, não possui um significado capaz de transcender a justificação; ela esgota seu sentido numa afirmabilidade justificada idealmente” (HABERMAS, 2007, p.101). Habermas nos desafia a buscar na correção das normas a validade por parte de seus diferentes integrantes, instigando com o benefício de todos, assim como com o uso do melhor argumento, desde que o mesmo não esteja fundado em processos coercitivos ou excludentes. Em casos de conflito, a aceitabilidade racional não é apenas uma prova para a validade, porquanto nela consiste também o sentido de validade de normas destinadas a fornecer, para as partes litigantes, argumentos imparciais, isto é, capazes de convencer a todos (HABERMAS, 2007, p.101). É uma perspectiva de uma concepção procedimental do direito, assim como se aborda a racionalidade nas argumentações para trabalhar e explorar o sentido de bom e de convencimento para todos (HABERMAS, 1998, p.11) Do ponto de vista da teoria da ação comunicativa, “o Direito, como sistema de ação pertence, como uma ordem legítima tornada reflexiva, à componente social do mundo da vida. E junto a esta, a cultura e a personalidade só se reproduz por meio da ação comunicativa. Assim, também as ações jurídicas constituem 348

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o meio pelo qual se reproduzem as instituições jurídicas simultaneamente com as tradições jurídicas intersubjectivamente compartilhadas e as capacidades subjetivas de interpretação e observâncias das regras jurídicas” (HABERMAS, 1998, p. 146). Segundo Habermas (2007, p. 304) o entrelaçamento da ideia republicana da soberania do povo com a ideia de um poder da lei, soletrada em direitos fundamentais, pode transformar, não destruir, as formas históricas de solidariedade. Os cidadãos do Estado entendem o etos político que os mantém coesos como nação, como sendo o resultado voluntarista da formação democrática da vontade de uma população acostumada à liberdade política. É, ainda, o autor, quem define que a própria lógica dos procedimentos democráticos internaliza a formação da vontade política que pressupõe a ideia de liberdades iguais para cada um, assim como a solidariedade para aqueles que não as possui. Geram-se, assim, figuras reflexivas no processo de autolegislação (HABERMAS, 2005, p. 306), criadas pela possibilidade de argumentação recíproca de parceiros com interesses comuns unidos sob determinadas circunstâncias específicas circunscritas e solidárias. Desse modo, a solidariedade de Cidadãos do Estado, a qual se produz, atualiza-se e se dá mediante um processo democrático, faz com que a viabilização igualitária de éticas de iguais liberdades assuma forma procedimental “(…) uma democracia enraizada na sociedade civil8 consegue criar uma caixa de ressonância 8 Somos questionados por Habermas com sua Teoria da Ação Comunicativa que, mesmo sem propor um sistema, vem desafiar-nos com uma proposta de uma ética em que privilegia um mundo no qual sujeitos buscam conscientemente sua emancipação, com base na linguagem, na ética discursiva. Para tanto, seu mundo subdivide-se em sistema e mundo da vida, sendo este fundado em operações integrativas de entendimento em espaços públicos de liberdade, construídos argumentativamente, mediados por construção de soberania popular, base sob a qual o próprio direito vai se apoiar, uma vez que esse mesmo mundo da vida não se deixe governar por duas das três esferas ou dimensões presentes na teoria, quais sejam o entendimento, fazendo parte do mundo da vida, e o poder e o dinheiro regulando a Administração e a Economia, respectivamente. O código que representa o direito não só mantém sua conexão com o meio que representa a linguagem comum, através da qual ocorrem operações sociointegrativas de entendimento intersubjetivo que se efetuam no mundo da vida; mas que também dá uma forma às mensagens procedentes do mundo da vida fazendoas resultarem inteligíveis aos códigos especiais com que opera uma Administração regulada pelo meio poder e uma economia regida, controlada e governada pelo dinheiro (Habermas Facticidade e Validez, p. 146). Entendida como parte de um Estado Social que busca, via reflexão, não só uma domesticação da economia capitalista, como do próprio Estado exige na leitura de Habermas uma nova distribuição dos poderes entre o sistema e o mundo da volume

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para o protesto, modulado em muitas vozes, daqueles que são tratados de modo desigual, dos subprivilegiados, desprezados” (Habermas, 2005, p. 306). É nessa linha que se inserem os modos de lidar, numa comunidade moral, com o ambiente em seu sentido amplo e altamente complexo. Para tanto, um paradigma jurídico ecosófico nos desafia na área de Direito Ambiental e, especialmente, no que se refere à proteção dos animais não humanos para vivenciar e efetivar o princípio da dignidade para além da vida humana. 4. tr ansformar com método 4.1. observatório de pesquisa clínica A pesquisa clínica, inclusive aquela em que se testa com medicamentos, é realizada no Brasil e em todo o mundo, diariamente. Diminuição do sofrimento, e, enfim, todo o caminho percorrido na luta contra as doenças humanas, tem sido o objetivo mais elevado das pesquisas científicas na área da saúde, especialmente da pesquisa biomédica. Como frutos dessas pesquisas é que foram concebidos novos medicamentos, novas vacinas, novas técnicas cirúrgicas e as terapêuticas atualmente conhecidas e disponíveis aos homens (sejam antigas ou novas), o que tem proporcionado uma melhoria tanto da quantidade quanto da qualidade de vida. Classicamente divide-se a investigação científica em pesquisa básica e pesquisa aplicada (CARNEIRO, 2008). Embora ambas tenham como escopo gerar conhecimentos científicos, a pesquisa básica (ou fundamental) é aquela pesquisa precursora e desenvolvida ainda em laboratório (e posteriormente com animais), na busca de (novos) conhecimentos que possam representar um avanço no campo científico. De outra banda, a pesquisa aplicada busca uma finalidade vida. Segundo ele, as sociedades modernas Dispõem de três fontes (…) para satisfazer suas necessidades de controle : o dinheiro, o poder e a solidariedade. (…) O poder integrador e social da solidariedade teria de se afirmar contra os “poderes” das outras duas fontes de controle, isto é, o dinheiro e o poder administrativo. Ora, as esferas da vida especializadas em transmitir valores tradicionais e saber cultural, em integrar grupos e em socializar (…) sempre dependeram da solidariedade. E penso que uma formação da vontade política também deveria beber da mesma fonte, uma vez que ela deve exercer, de um lado, influência na delimitação destas esferas da vida estruturadas comunicativamente e nas trocas entre elas; de outro lado, ela também deve influenciar o Estado e a economia (HABERMAS, 2005, p. 30).

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mais imediata: a aplicação prática desse conhecimento gerado inicialmente (pela pesquisa básica), que é o caso da pesquisa clínica. São quatro as fases das pesquisas clínicas9com medicamentos, sendo que as três primeiras antecedem o registro do produto perante as autoridades estatais competentes (PETTERLE, 2013, 2012). A pesquisa clínica de fase 1 é precursora e busca informações sobre a segurança, a tolerabilidade e os efeitos do novo medicamento em teste (FLETCHER, 2006). Envolve um pequeno número de (10 e 80) pessoas geralmente sadias (GOLDIM, 2011), à exceção de alguns estudos, em que não se admite tal inclusão, como, por exemplo, alguns estudos de câncer (GRACIA, 1998). Já na fase 2, com grupos maiores de (até 1.000) pessoas enfermas (GOLDIM, 2011), as pesquisas clínicas objetivam ampliar os conhecimentos sobre a segurança do medicamento, verificar a sua eficácia, calibrar a dose, conhecer efeitos adversos e riscos associados ao novo medicamento, bem como estabelecer relação entre benefício e dano. Essas informações serão essenciais no que diz com a decisão de avançar, ou não, para a pesquisa clínica de fase 3. Nesta, incrementa-se o tamanho da amostra, para 3.000 ou mais pessoas enfermas. Ademais, acontecem concomitantemente em diversos centros de pesquisa (FLETCHER, 2006; GOLDIM, 2011), com base em apenas um protocolo de pesquisa, razão pela qual se denominam de multicêntricas. Avalia-se, na fase 3, dentre outros aspectos, a relação risco-benefício (a curto e a longo prazo), o efeito terapêutico e as estatísticas, comparativamente às alternativas terapêuticas, o que, se positiva a avaliação, resultará em registro do medicamento. As pesquisas clínicas de fase 4 ocorrem após o registro, portanto com o medicamento disponível para comercialização, estudos que, dentre outros aspectos, avaliam possíveis efeitos secundários até então desconhecidos (FLETCHER, 2006) e novas possibilidade de indicações ou associações de medicamentos (GOLDIM, 2011). Pode-se verificar, a partir das características de cada uma das fases dos estudos científicos, que os ensaios clínicos consubstanciam intervenções diretas sobre

9 Alerte-se, quanto à relevância da definição das várias fases das pesquisas clínicas, que no Brasil há Resolução Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (RDC 39/2008) sobre pesquisa clínica com medicamentos ou produtos para a saúde passíveis de registro sanitário, no seguinte sentido: 1ª) fase I: estudos de farmacologia humana; 2ª) fase II: estudos terapêuticos ou profiláticos de exploração; 3ª) fase III: estudos terapêuticos ou profiláticos confirmatórios; 4ª) fase IV: ensaios pós-comercialização. volume

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seres humanos, o que, pelas características desses ensaios, analisadas anteriormente, indica tratar-se, por si só, de atividade de risco, tanto maior quanto menos avançadas estiverem as fases desses estudos científicos, como é o caso de estudos de fase 1, de elevado risco. Face ao panorama traçado, difícil não vislumbrar o papel dos juízes, decidindo conflitos. Em vários casos julgados se verificou que os demandantes que postularam medicamentos perante o Judiciário haviam participado previamente de pesquisa clínica (com o medicamento objeto do pedido), questão que passou a ser enfrentada pela jurisprudência, inclusive como matéria defensiva do ente estatal eleito para compor o pólo passivo da ação. Nesse contexto, um dos conteúdos que tem sido reconhecido é a obrigação (do laboratório patrocinador) de fornecer o medicamento após a conclusão da pesquisa clínica, em sede doutrinária (CEZAR, 2009) e em sede jurisprudencial, pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS)10-11-12, e, ainda que tangencialmente até mesmo pelo Supremo Tribunal Federal (STF)13 (tangencialmente na medida em que não 10 Apelação Cível no 70031235633, 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Diário de Justiça de 11.12.2009. Trata-se de menor com a doença mucopolissacaridose do tipo 1, que foi submetido a tratamento com medicamento experimental (nome comercial Aldurazyme, princípio ativo laronidase, que posteriormente foi registrado na ANVISA) em pesquisa clínica patrocinada por laboratório farmacêutico. 11 Na mesma linha, envolvendo outra menor que também participou da pesquisa clínica no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), no Estado do Rio Grande do Sul, com o mesmo medicamento (Aldurazyme), estudo patrocinado pelo mesmo laboratório (Genzyme do Brasil Ltda), foi a decisão da Oitava Câmara Cível do TJRS publicada no ano de 2009, que deu provimento a Agravo Interno 70025785486, restaurando o entendimento de que se impõe, no caso concreto, a participação do laboratório no processo (como litisconsorte necessário), na medida em que houve fornecimento do medicamento a título gratuito e experimental pelo laboratório, retomando posição adotada anteriormente, em Agravo de Instrumento, pela própria Oitava Câmara Cível do TJRS, sob outra relatoria (AGI 70023014772; relativo ao Processo no 001/5080148142-9, que tramitava perante a 1ª Vara da Infância e Juventude, com sentença de procedência e, posteriormente, o julgamento da Apelação Cível no 70056149131, que acolheu preliminar de perda de objeto da ação, face à morte da menina). 12 Em maio de 2010, em Agravo de Instrumento (AI nº 1.302.516 – RS, 2010/0073093-5), o Superior Tribunal de Justiça (STJ), por decisão monocrática o Ministro Castro Meira, deu provimento ao recurso interposto contra decisão do TJRS que negou seguimento ao Recurso Especial, decisão já referida anteriormente, que considerou existir litisconsórcio necessário (AI 70025785486) entre o Estado do Rio Grande do Sul e o Laboratório Genzyme Ltda, determinando a convolação do agravo de instrumento em Recurso Especial (RESP 1194529). 13 No ano de 2009 o Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), à época o Ministro Gilmar, manifestou-se, no julgamento de duas suspensões de tutela antecipada (STA 175

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é possível saber, pelo teor da decisão do STF se se travava especificamente de caso concreto envolvendo pessoas participantes de pesquisa clínica patrocinada por indústria farmacêutica, participação essa que é essencial à viabilização de um futuro registro do medicamento perante a autoridade sanitária, registre-se). Recorde-se, ademais, que na medida em que se ampliam as pesquisas clínicas com medicamentos (e também de outras pesquisas na área da saúde) aumenta-se, consequentemente, toda uma gama de novos produtos disponíveis, e com eles, toda a discussão em torno de como se fará tal incorporação no Sistema Único de Saúde. Por todo o exposto, pretende-se, com o mapeamento e análise das decisões judiciais sobre pesquisa clínica com medicamentos no Brasil, contribuir para o desenvolvimento das pesquisas na área do Direito e repensar acerca das mais variadas formas de atuação dos poderes públicos (e dos particulares) no que diz com o dever de respeitar, de proteger e de promover o direito à saúde. 4.2. observatório de proteção do animal não-humano Radica no mundo uma consciência cada vez mais aguda de parte do animal humano que sente na pele as ações de degradação gritante e acelerada do ambiente na maior parte das vezes como resultante de uma produção própria, “embora também se tenha consciência de que o país, Brasil, possui uma das biodiversidades e STA 244), no seguinte sentido de que relativamente a medicamentos ainda experimentais e medicamentos novos: “é preciso diferenciar os tratamentos puramente experimentais dos novos tratamentos ainda não testados pelo Sistema de Saúde brasileiro. Os tratamentos experimentais (sem comprovação científica de sua eficácia) são realizados por laboratórios ou centros médicos de ponta, consubstanciando-se em pesquisas clínicas. A participação nesses tratamentos rege-se pelas normas que regulam a pesquisa médica e, portanto, o Estado não pode ser condenado a fornecê-los. Como esclarecido pelo Médico Paulo Hoff na Audiência Pública realizada, Diretor Clínico do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, essas drogas não podem ser compradas em nenhum país, porque nunca foram aprovadas ou avaliadas, e o acesso a elas deve ser disponibilizado apenas no âmbito de estudos clínicos ou programas de acesso expandido, não sendo possível obrigar o SUS a custeá-las. No entanto, é preciso que o laboratório que realiza a pesquisa continue a fornecer o tratamento aos pacientes que participaram do estudo clínico, mesmo após seu término.” (grifos nossos). Posteriormente, a decisão foi confirmada pelo Plenário do STF, em 2010, constando, no voto do Ministro Gilmar Mendes (p. 27) que “é preciso que o laboratório que realiza a pesquisa continue a fornecer o tratamento aos pacientes que participaram do estudo clínico, mesmo após seu término.”(grifos nossos), sem manifestação dos demais Ministros acerca deste tema específico. volume

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mais ricas do mundo, tal como as maiores reservas de água doce do planeta, além de um terço das florestas tropicais restantes, estimando-se a existência de uma em cada 10 espécies de plantas ou animais vivos no planeta” (MEDEIROS & PETTERLE, 2013, p. 177). Dessa feita, o “grande desafio do Direito contemporâneo é conseguir abraçar os anseios de uma sociedade que está vivenciando mutações do seu modo de agir e de pensar em uma velocidade impressionante. Hodiernamente, (re)pensar a questão dos animais não-humanos e sua posição no ordenamento jurídico não é mais situação estabelecida em um pequeno nicho e, nessa seara, as provocações por enxergar o Direito de forma diferente é quase um imperativo” (MEDEIROS & ALBUQUERQUE, 2013, p. 154). As questões que emergem a partir desse debate contemporâneo acerca da proteção ambiental necessariamente (o imperativo) devem enfrentar a relação entre os animais humanos e os animais não-humanos. Tais relações “têm suscitado, como questão basilar para a regulação normativa sobre a matéria e para a interpretação da existência de um dever fundamental de cada um e da coletividade para com os animais não-humanos, da possibilidade de aplicação do princípio da dignidade para além da pessoa humana” (MEDEIROS, 2013, p. 17). A Constituição Federal, em seu artigo 225 avançou muito no que concerne a proteção dos animais não-humanos, em um primeiro momento já se pode salientar que toda e qualquer matéria relacionada, direta ou indiretamente, com a proteção do ambiente, projeta-se, portanto, no domínio dos direitos fundamentais (MEDEIROS, 2004). E o avanço não restou estanque ao caput do artigo 225, a Constituição brasileira, vanguardista, enfrentou a questão da proteção dos animais não-humanos, normatizando que é vedada qualquer pratica que submeta os animais à crueldade. Constitucionalizou-se a proteção da integridade física e moral dos animais não-humanos. A proteção dos animais não-humanos no âmbito da legislação infraconstitucional brasileira vem evoluindo, de maneira significativa, desde 1934, quando o então Presidente Getúlio Vargas decretou uma norma de proibição de maus tratos e crueldade contra os animais não-humanos (Decreto n. 24.645) elencando 31 formas de reconhecimento de maus tratos e determinando sanções em caso de descumprimento. Apesar de o Decreto n. 24.645/1934 não estar mais em vigor, 354

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deixou um legado que vem se alargando e criando raízes no trabalho do Poder Legislativo brasileiro. Desde 1934 até o presente momento é tranquilo observar uma mudança significativa, no âmbito da proteção dos animais não-humanos, a partir da legislação e, consequentemente, a partir das decisões judiciais. E essa mudança tem ocorrido com muita celeridade. A título de exemplificação pode-se trazer a Lei Arouca (Lei n. 11.794/2008) cujo teor é regular a utilização de animais não-humanos na docência e na pesquisa cientifica (seja esta para questões de saúde ou de cosmética) e o Projeto de Lei 6602/201314, de iniciativa do Deputado Ricardo Izar. A lei de 2008 admite e regula a realização de testes em animais não-humanos para o desenvolvimento de pesquisa para produtos cosméticos, no entanto menos de cinco anos depois já está tramitando no Congresso Nacional um Projeto de Lei para alterar a redação dos artigos 14, 17 e 18 da Lei nº 11.794 de 2008, para dispor sobre a vedação da utilização de animais em atividades de ensino, pesquisas e testes laboratoriais com substâncias para o desenvolvimento de produtos de uso cosmético em humanos e aumentar os valores de multa nos casos de violação de seus dispositivos. Importante salientar que a iniciativa já havia sido contemplada em leis estaduais e municipais, no município de Piracicaba, desde abril de 2014, há lei que proíbe maus tratos aos animais em laboratórios; no Estado de São Paulo, o Deputado Feliciano Filho encabeçou a Lei n. 15.316/14 que proíbe o uso de animais em testes de produtos cosméticos, higiene pessoal, perfumes e seus componentes no Estado de São Paulo, sendo que o mesmo já havia ocorrido no Estado do Mato Grosso do Sul. Em Minas Gerais, também em abril de 2014 foi aprovado um Projeto de Lei cria o selo “Minas sem Maus-Tratos: produto não testado em animais”, a ideia central do PL é a de criar um mecanismo de incentivo para que as empresas busquem outros métodos de pesquisa científica, sem a necessidade do uso de animais em testes de medicamentos ou de outras substâncias químicas. No Estado do Rio Grande do Sul, em 2013, foi aprovada por unanimidade a Lei n. 14.229, encabeçada pelo Deputado Paulo Odone, que proíbe o aluguel de cães de guarda para o serviço de vigilância e segurança. No Estado de São 14 O PL 6602/2013 já foi aprovado no Plenário da Câmara dos Deputados e, em 04/06/2014, enviado ao Senado Federal para seguir a tramitação. volume

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Paulo, capitaneadas pelo Deputado Feliciano Filho, já foram aprovadas as Leis Estaduais 12.916/2008 e 14.728/2012, respectivamente proibindo a matança indiscriminada de cães e gatos nos canis municipais e estendendo os benefícios do Programa de Estímulo à Cidadania Fiscal (Nota Fiscal Paulista) às entidades de proteção animal sem fins lucrativos. E neste caminho estão indo inúmeros projetos de lei nas Assembleias Legislativas estaduais e no Congresso Nacional. Nessa senda, também caminham os processos no Poder Judiciário, já se apresentam inúmeros julgados com importância significativa para a compreensão de um novo olhar no concernente à proteção dos animais não-humanos. Desde decisões acerca da proibição da farra do boi e da rinha de galo se está acompanhando uma mudança na forma de encarar e de julgar os processos que envolvem animais. Com escopo de manter e ampliar a sustentabilidade da vida a partir da análise da aplicação efetiva do princípio da dignidade para além da vida humana e de um olhar baseado na proibição de tratamento cruel, conforme a própria Constituição, se faz necessário uma análise crítica acerca do conteúdo ético, solidário e fraterno das decisões do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça acerca da proteção da fauna no Brasil, do prisma do direito constitucional, do direito civil e do direito penal, haja vista que a ausência do reconhecimento de um direito dos animais, como ramo do direito ambiental, assim como a ausência do reconhecimento do valor inerente dos animais não-humanos, acarreta um descompasso nas decisões em matéria de proteção dos animais não-humanos no Brasil, fazendo com que o desrespeito para com as demais formas de vida se perfectibilize ao invés de despertar o grau ético, solidário e fraterno que esse direito fundamental requer. Faz-se necessária a análise crítica acerca do sustentáculo, ético, solidário e fraterno que envolve as decisões judiciais acerca da proteção da fauna no Brasil como forma de um despertar para uma mudança de paradigma jurídico, vivenciando e efetivando o princípio da dignidade para além da vida humana. No concernente ao problema central que norteia este observatório, destacase a necessidade de conhecer e analisar quais são os conteúdos que têm sido desenhados pelos juízes e desembargadores no Brasil no que se refere a proteção dos animais não-humanos. O cerne da questão está na contemporaneidade do direito dos animais não-humanos e o dever fundamental relacionado à temática, bem como a possibilidade da aplicabilidade do princípio da dignidade para além 356

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da pessoa humana e, quem sabe, da possibilidade do reconhecimento da atribuição de direitos subjetivos. Assim, se faz necessária a apreensão do entendimento do Poder Judiciário sobre a temática a partir de olhares críticos do direito. 4.3. metodologia aplicada aos observatórios Quanto aos aspectos metodológicos para análise das decisões judiciais, foram adotados vários critérios, para os dois observatórios de jurisprudência. O primeiro critério se refere aos tribunais abrangidos. Como se pretende mapear a jurisprudência brasileira sobre os dois temas lançados, em jurisdição ordinária, especial e extraordinária, estipulou-se o universo da pesquisa jurisprudencial no âmbito da jurisdição ordinária de segundo grau, na justiça comum, em âmbito estadual e federal, mais especificamente nos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal e nos Tribunais Regionais Federais. No âmbito das cortes superiores a pesquisa abarcará a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, e, por derradeiro, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Como segundo critério, foi fixado o marco temporal das decisões judiciais que comporão os mencionados observatórios, que abrangerá as decisões proferidas a contar da Constituição Federal de 1988, tendo como marco inicial o dia 05.10.1988. O período previsto para realização dos projetos de construção dos observatórios de jurisprudência é de trinta e seis meses, que finalizarão, portanto, no ano de 2016. O terceiro critério consiste na definição de palavras-chave padrão para cada um dos observatórios. Face à amplitude desses filtros, possivelmente algumas decisões serão excluídas do universo da pesquisa, por não estarem diretamente vinculadas aos temas propostos, o que significa que, ao longo da construção dos observatórios, serão delineados critérios para exclusão de decisões, que poderão ser reformulados ao longo da caminhada. 5. conclusões Os observatórios de jurisprudência se apresentam como um importante instrumento de controle social. A partir de mecanismos como esse, é possível verificar a eficácia e a efetividade das decisões judiciais e ir além. A partir de uma volume

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análise quantitativa e qualitativa, para além de identificar tendências numéricas (quantidade) nas decisões de nossos Tribunais a partir de determinado caso concreto, se poderá analisar, criticamente, o conteúdo dessas decisões. Trabalha-se com a noção de observatório social na área do Direito. Com o intuito de explorar as condições de transparência e de garantia de Direitos Fundamentais, se constrói um observatório de jurisprudência, como verdadeiros mecanismos de efetividade, com a capacidade de se poder definir o melhor caminho a seguir. Os observatórios são valiosos instrumentos para se repensar os rumos do Direito no País. São espaços para análises que envolvem direitos dos cidadãos em pesquisa clínicas, assim como direitos garantidores de qualidade a todas as formas de vida. Através dos observatórios mapeam-se tendências, do ponto de vista jurídico, na busca por justiça e cidadania. Com isso, novas áreas de pesquisa e de controle social se anunciam para a garantia da efetividade dos direitos fundamentais e da dignidade da vida. Como dito anteriormente, o saber não é um valor em si mesmo. Por tal razão, a academia tem de contribuir para que os seres humanos, e os seres vivos, vivam melhor, abrindo também as fronteiras do conhecimento para problemas concretos da vida dos homens. Uma das formas encontradas para que o Direito possa auxiliar na realização desse papel é analisando o conteúdo das decisões proferidas nos nossos Tribunais, de forma sistematizada, mecanismo para (re) pensar e (re)construir o Direito. 6. referências AGAMBEN, Giorgio. O poder soberano e a vida nua. Homo sacer. Lisboa: 1998. ABRAHAM, Tomas. Prólogo. FOUCAULT, Michel. Genealogia del Racismo. Madrid: La Piqueta, 1992. CARNEIRO, António Vaz. Investigação clínica em seres humanos. Principais questões éticas. In: MARTINHO DA SILVA, Paula (Coord.). Investigação biomédica. Reflexões éticas. Lisboa: Gradiva, 2008. CEZAR, Denise Oliveira. Obrigação de fornecimento do medicamento após a conclusão de pesquisa. Tese de Doutorado. Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2009. 358

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