\"Olhar fixo no escuro de nossa época\": notas sobre melancolia, arte e parresia na contemporaneidade
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17/09/2015
"Olhar fixo no escuro de nossa época": notas sobre melancolia, arte e parresia na contemporaneidade Correio APPOA
Temática "Olhar fixo no escuro de nossa época": notas sobre melancolia, arte e parresia na contemporaneidade Lívia Santiago Moreira [...] Não servirei àquilo em que não acredito mais quer isso se chame minha família, minha terra natal ou minha Igreja; e procurarei me expressar por meio de uma certa forma de vida ou de arte tão livremente quanto possa e tão totalmente quanto possa, usando em minha defesa as únicas armas que me permito usar: o silêncio, o exílio e a astúcia. Joyce, J. O retrato do artista quando jovem. Neste trabalho gostaríamos de pensar com Agamben e Foucault a contemporaneidade da relação existente entre a melancolia, a arte e a parresia. A pergunta de Aristóteles também poderia ser feita na atualidade : “Por que todos os homens que particularmente brilharam em filosofia, em política, em poesia ou nas artes são melancólicos?” O filósofo Agamben (2009, p.6264) aponta para essa aproximação da melancolia ao homem de gênio, contemplativo e contribui para nossa argumentação: Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo, é justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente. [...] O contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelálo, algo que, mais do que toda luz, dirigese direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo. Com o autor iremos perceber a intimidade existente entre o gesto parrésico, a melancolia – como movimento de resistência aos impasses da contemporaneidade – e a arte. Para Agamben (2009), ser contemporâneo é, antes de tudo, uma questão de coragem. Ter coragem significa “ser capaz não apenas de manter fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para nós, distanciase infinitamente de nós” (p. 65). Assim, nos diz ele: “O poeta, que devia pagar a sua contemporaneidade com a vida, é aquele que deve manter fixo o olhar nos olhos do seu século, soldar com o seu sangue o dorso quebrado do tempo” (p.60). Esse risco assumido pelo poeta contemporâneo nos faz retomar a noção de parresia que Foucault (1983/2011) nos apresenta em “A coragem da verdade”. A parresia significa a fala franca, a fala da verdade que é feita por alguém que tem a coragem de se manifestar contrariamente à opinião dos demais – atitude que coloca a vida do parresiasta em risco. Foucault nos leva por um longo percurso, desde os textos socráticos até a filosofia cínica e suas implicações no cristianismo. Com os cínicos, a parresia é compreendida não somente como http://www.appoa.com.br/correio/edicao/240/olhar_fixo_no_escuro_de_nossa_epoca_notas_sobre_melancolia_arte_e_parresia_na_contemporaneidade/157
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a fala franca, mas também uma forma de existência como escândalo vivo da verdade. Tratase de uma escolha que se faz por uma verdadeira vida, a vida nua, aquela que manifesta a verdade e se despoja de luxos, aproximandose ao máximo daquilo que é da ordem da natureza. A consciência sobre a transitoriedade da vida, as constantes mudanças que ela impõe, farão com que o filósofo cínico encontre sentido para sua vida. Segundo Foucault, a parresia teria perdido seu sentido original com sua incorporação ao catolicismo. Apesar de permanecerem vários traços do que teria sido a vida cínica, a lógica é alterada, não se trata mais do compromisso com a verdade, uma vez que Deus ocupa o lugar da verdade. Perguntamos com ele: onde encontraríamos o gesto parrésico na contemporaneidade? Para responder à questão, nos são indicadas algumas possibilidades que deveriam ser estudadas tais como o militantismo, a sociedade secreta e o testemunho pela vida. Sobre esse último nos diz: Mas quando digo que esse aspecto do testemunho pela vida foi dominante no século XIX, que o encontramos sobretudo nesses movimentos que vão do niilismo ao anarquismo ou ao terrorismo, não quero dizer com isso que esse aspecto desapareceu totalmente e não passou de uma figura histórica na história do revolucionarismo europeu. Na verdade, vemos ressurgir sem cessar esse problema da vida como escândalo da verdade. (FOUCAULT, 2011, p.162) Chamanos atenção dois aspectos: o niilismo – resultado da impostura, queda e descrença nos ideais que um dia foram norteadores da sociedade – e o testemunho pela vida − herança cínica que encontraremos na vida de artista e na arte. No que se refere ao niilismo, acreditamos que exista uma aproximação entre a vida melancólica e o modo de vida revolucionário do parresiasta. A melancolia, assim como a loucura, foi destituída do seu potencial denunciador da verdade e foi incorporada aos manuais de psiquiatria como um dentre outros tantos distúrbios psiquiátricos. Na teoria humoral hipocrática, o excesso de bile negra era responsável pelos sentimentos de tristeza, apatia e o que viria a ser a acedia ou acídia, a qual foi traduzida por preguiça e incorporada aos sete pecados capitais. Essa apropriação da acedia pelo cristianismo reforçava a estrutura social, já que era necessário justificar a noção do trabalho como aquilo que dignifica o homem, fazendo com que a sua improdutividade se tornasse um pecado inaceitável para aqueles no poder. Contudo a acídia está antes, relacionada à parada ou o recuo do homem frente à catástrofe do não sentido. A representação clássica feita pelo artista Dürer no século XVI mostra a figura do melancólico como aquele que tem sua cabeça sustentada pelas duas mãos e os vários objetos do cotidiano largados, como que destituídos de sua função (AGAMBEM, 2007). A apropriação por Freud (1915/1987) de um termo tão antigo não é desavisada. A psiquiatria do início do século XIX relegou o termo para os poetas e filósofos substituindoo por lipomania ou mono mania triste (Esquirol (17721840). Pouco depois, na Alemanha, Emil Kraepelin (18561926) integrou a melancolia à psicose, relação que encontramos até hoje na “psicose maníaco depressiva” que foi redefinida no DSMIV como “transtorno bipolar” – diagnóstico epidêmico na contemporaneidade que retira do sujeito a “positividade” de sua postura negativista. Ao localizarmos o melancólico e sua fala característica “não quero nada, qual sentido há nisto?” em nosso contexto histórico contemporâneo, poderíamos identificar nesses sujeitos uma resistência http://www.appoa.com.br/correio/edicao/240/olhar_fixo_no_escuro_de_nossa_epoca_notas_sobre_melancolia_arte_e_parresia_na_contemporaneidade/157
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ativa aos modelos sociais oferecidos, às ofertas da sociedade de consumo. O melancólico sabe sobre a impostura do sistema e denuncia a alienação dos sujeitos às ofertas identificatórias das mercadorias. A ironia melancólica contesta exatamente como os modos de descontentamento são semblantes de uma outra coisa, mais radical, de uma ausência de sentido. O melancólico consegue reconhecer a norma, mas ele não a autoriza, renuncia a ela, não considerando que aquilo que é imposto diz respeito a ele. O melancólico tem o poder de reconhecimento da estrutura e também do abismo para além da estrutura, o que o coloca em um impasse. O melancólico sabe da verdade, mas fica paralisado no momento niilista de sua vivência. A ética da verdade do melancólico pode não conseguir achar uma saída que não seja a da mortificação, do esforço para tentar parar o tempo que a tudo devora. Cinismo e ceticismo [...]foram duas maneiras de colocar o problema da ética da verdade. Seu cruzamento no niilismo manifesta algo de essencial, de central na cultura ocidental. Esse algo pode ser enunciado brevemente: onde o cuidado da verdade questiona esta sem cessar, qual é a forma de existência que possibilita esse questionamento; qual é a vida necessária a partir do momento em que a verdade não seria necessária? A questão do niilismo não é: se Deus não existe, tudo é permitido. Sua fórmula é, antes, uma pergunta: se devo me defrontar com o “nada é verdadeiro”, como viver? (FOUCAULT, 2011 p.166.) Foucault era leitor atento da teoria nietzschiana que distingue três tipos de niilismo: o negativo, o passivo e o ativo. O primeiro estaria ligado à religião e à noção de que a vida perfeita está no outro mundo – o que faz com que o sujeito não aja de acordo com as contingências que a vida exige. O segundo é aquele que não consegue encontrar sentido na vida, uma vez que ela chegará ao fim. Finalmente, no niilismo ativo, ultrapassase a simples constatação de que a vida não tem sentido nenhum. Aqui a ideia seria viver intensamente o hoje e não negar o mundo, o niilismo ativo é a antítese da covardia diante da vida, ele seria a condição de possibilidade para se criar novos valores. Talvez a verdade vivida pelo melancólico provoque tal ruptura ou desilusão que ele não consiga responder à questão do “como viver” depois de se defrontar com o nada, com o silêncio da existência. Contudo, pensamos que uma das saídas para tal questão é dada através da arte. A arte seria uma possibilidade de encontro de sentido – que será desconstruído continuamente – , de criação de um estilo de vida tributários da verdade. Mas por que o artista que deveria beneficiarse da liberdade e potência transformadora de sua arte, muitas vezes, vê seu sofrimento recrudescer? Talvez devêssemos alterar a pergunta e entender a vida do artista como um efeito de sua arte, como um duplo que refletiria a coragem do artista em relação à verdade. O artista, justamente por denunciar e testemunhar a verdade, colocase em risco. Assim, junto aos movimentos que teriam herdado do cinismo sua potência revolucionária, uma forma de gesto parrésico teria sido conservado pela arte e pela vida de artista. A vida de artista seria uma vida não comparável à dos outros; a própria vida do artista seria uma ruptura com as normas e seria através dessa forma de vida singular, testemunha da verdade, que o artista criaria. Nas palavras do autor: Mas creio que é sobretudo na arte moderna que a questão do cinismo se torna singularmente importante. O fato de a arte moderna ter sido e ainda ser pra nós o veículo do modo de ser cínico, http://www.appoa.com.br/correio/edicao/240/olhar_fixo_no_escuro_de_nossa_epoca_notas_sobre_melancolia_arte_e_parresia_na_contemporaneidade/157
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o veículo desse princípio do relacionamento do estilo de vida e da manifestação da verdade se fez de duas maneiras. Primeiro com o aparecimento _ no fim do século XVIII, correr do século XIX [...] (da) vida de artista. [...]É a ideia moderna, creio, de que a vida do artista deve, na forma mesma que assume, constituir um testemunho do que é a arte em sua verdade. (FOUCAULT, 2011, p.164, grifos nossos) Pensamos que tanto o melancólico quanto o artista – cuja representação paradigmática aqui é dada pelo poeta –, são aqueles que sentem profundamente os impactos de seu tempo. Sabemos que enquanto o sujeito permanece na imobilidade melancólica, refém do caráter traumático de sua relação com a verdade, tanto sua vida está ameaçada pela desvitalização quanto a “vida outra” tem seu aspecto revolucionário comprometido. Foucault nos diz que ainda há outra razão pela qual a arte no mundo moderno foi veículo do cinismo. É a ideia de que a própria arte, quer se trate da literatura, da pintura ou da música, deve estabelecer com o real um relação que não é mais da ordem da ornamentação, da ordem da imitação, mas que é da ordem do desnudamento, do desmascaramento, da decapagem, da escavação, da redução violenta ao elementar da existência é algo que se assinala de uma maneira cada vez mais sensível a partir do século XIX. A arte se constitui como lugar da irrupção do debaixo, do embaixo, do que na cultura, não tem direito, ou pelo menos não tem possibilidade de expressão. (FOUCAULT, p.165) Junto com a modernidade e sua forma de desnudamento do real, a sociedade de consumo torna cada vez mais difícil o aparecimento de um gesto parrésico. As tentativas de desarticular os “dispositivos” e a denúncia da lógica do sistema são rapidamente absorvidos como produto e estética a serem consumidos. Os estilos que surgem na busca de uma vida revolucionária podem facilmente ser absorvidos como modelos a ser reproduzidos e copiados, ou estigmatizados e medicados. As tentativas de vivência de uma “vida verdadeira” parecem ser destituídas de seu valor parrésico e se transformam em uma espécie de apelo a quem quer um produto único, original, produto esse que irá oferecer alguma “garantia” de identidade para aquele que irá comprar esse estilo de vida. Foucault nos diz que a arte seria capaz de resistir aos imperativos de nosso tempo, apropriando se das mesmas questões que antes eram incorporadas pelos cínicos: A arte moderna, antiplatônica e antiaristotélica: redução, desnudamento do elementar da existência; recusa, rejeição perpétua de toda forma já adquirida. [...] A arte moderna é o cinismo na cultura, é o cinismo da cultura voltada contra ela mesma. E se não é simplesmente na arte, é na arte principalmente que se concentram, no mundo moderno, em nosso mundo, as formas mais intensas de um dizeraverdade que tem a coragem de assumir o risco de ferir. (FOUCAULT, 2011, p.165) O malestar na modernidade – sendo a melancolia uma de suas figuras – poderia ser entendido como a existência de um conflito sempre presente entre a possibilidade do indivíduo se apresentar como singularidade, com seus referenciais próprios reformulados, e a possibilidade de inclusão desse sujeito na trama do seu contexto social cultural. Há sempre uma violência que é exercida ou Menu 240 novembro/2014 por um (sujeito) ou por um outro (cultura).
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Pensamos, assim, que uma das expressões do gesto parrésico é preservada através da arte, sendo que a arte se apresenta como uma das saídas possíveis – mas não sem riscos – para o encontro com a verdade vivenciada pelo sujeito melancólico. Referências Bibliográficas: ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia – o problema XXX,I. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998. AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009. AGAMBEN, G. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. FOUCAULT, M. A coragem da verdade. São Paulo: Martins Fontes, 2011. ________________. Luto e melancolia (1917[1915]). In: ______. A história do movimento psicanalítico, artigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud). Autor: Lívia Santiago Moreira Lívia Santiago Moreira é psicóloga. Especialista em Teoria Psicanalítica pela UFMG. Mestre em Psicologia Clínica pela USP. Professora do curso de Psicologia da Universidade Braz Cubas–SP.
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