\"Olhar fixo no escuro de nossa época\": notas sobre melancolia, arte e parresia na contemporaneidade

June 30, 2017 | Autor: Livia Santiago | Categoria: Giorgio Agamben, Michel Foucault, Melancolia, Arte Moderna, Contemporâneo, Parresía, Cínicos, Parresía, Cínicos
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17/09/2015

"Olhar fixo no escuro de nossa época": notas sobre melancolia, arte e parresia na contemporaneidade ­ Correio APPOA

Temática "Olhar fixo no escuro de nossa época": notas sobre melancolia, arte e parresia na contemporaneidade Lívia Santiago Moreira [...]  Não  servirei  àquilo  em  que  não  acredito  mais  quer  isso  se  chame minha  família,  minha  terra  natal  ou  minha  Igreja;  e  procurarei  me expressar por meio de uma certa forma de vida ou de arte tão livremente quanto possa e tão totalmente quanto possa, usando em minha defesa as únicas armas que me permito usar: o silêncio, o exílio e a astúcia. Joyce, J. O retrato do artista quando jovem. Neste trabalho gostaríamos de pensar com Agamben e Foucault a contemporaneidade da relação existente entre a melancolia, a arte e a parresia. A pergunta de Aristóteles também poderia ser feita na atualidade : “Por que todos os homens que particularmente brilharam em filosofia, em política, em poesia ou nas artes são melancólicos?” O filósofo  Agamben  (2009,  p.62­64)  aponta  para  essa  aproximação  da  melancolia  ao  homem  de gênio, contemplativo e contribui para nossa argumentação: Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo, é justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente. [...] O contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá­lo, algo que, mais do que toda luz, dirige­se direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo. Com o autor iremos perceber a intimidade existente entre o gesto parrésico, a melancolia – como movimento de resistência aos impasses da contemporaneidade – e a arte. Para Agamben (2009), ser contemporâneo é, antes de tudo, uma questão de coragem. Ter coragem significa “ser capaz não apenas de manter fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para nós, distancia­se infinitamente de nós” (p. 65). Assim, nos diz ele: “O poeta,  que  devia  pagar  a  sua  contemporaneidade  com  a  vida,  é  aquele  que  deve  manter  fixo  o olhar nos olhos do seu século, soldar com o seu sangue o dorso quebrado do tempo” (p.60). Esse risco  assumido  pelo  poeta  contemporâneo  nos  faz  retomar  a  noção  de  parresia  que  Foucault (1983/2011) nos apresenta em “A coragem da verdade”. A parresia significa a fala franca, a fala da verdade que é feita por alguém que tem a coragem de se manifestar contrariamente à opinião dos demais – atitude que coloca a vida do parresiasta em risco. Foucault nos leva por um longo percurso, desde os textos socráticos até a filosofia cínica e suas implicações no cristianismo. Com os cínicos, a parresia é compreendida não somente como http://www.appoa.com.br/correio/edicao/240/olhar_fixo_no_escuro_de_nossa_epoca_notas_sobre_melancolia_arte_e_parresia_na_contemporaneidade/157

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a fala franca, mas também uma forma de existência como escândalo vivo da verdade. Trata­se de uma escolha que se faz por uma verdadeira vida, a vida nua, aquela que manifesta a verdade e se despoja de luxos, aproximando­se ao máximo daquilo que é da ordem da natureza. A consciência sobre a transitoriedade da vida, as constantes mudanças que ela impõe, farão com que o filósofo cínico  encontre  sentido  para  sua  vida.  Segundo  Foucault,  a  parresia  teria  perdido  seu  sentido original com sua incorporação ao catolicismo. Apesar de permanecerem vários traços do que teria sido a vida cínica, a lógica é alterada, não se trata mais do compromisso com a verdade, uma vez que  Deus  ocupa  o  lugar  da  verdade.  Perguntamos  com  ele:  onde  encontraríamos  o  gesto parrésico na contemporaneidade? Para responder à questão, nos são indicadas algumas possibilidades que deveriam ser estudadas tais como o militantismo, a sociedade secreta e o testemunho pela vida. Sobre esse último nos diz: Mas quando digo que esse aspecto do testemunho pela vida foi dominante no século XIX, que o encontramos sobretudo nesses movimentos que vão do niilismo ao anarquismo ou ao terrorismo, não quero dizer com isso que esse aspecto desapareceu totalmente e não passou de uma figura histórica na história do revolucionarismo europeu. Na verdade, vemos ressurgir sem cessar esse problema da vida como escândalo da verdade. (FOUCAULT, 2011, p.162) Chama­nos  atenção  dois  aspectos:  o  niilismo  –  resultado  da  impostura,  queda  e  descrença  nos ideais que um dia foram norteadores da sociedade – e o testemunho pela vida − herança cínica que encontraremos na vida de artista e na arte. No que se refere ao niilismo, acreditamos que exista uma aproximação entre a vida melancólica e o modo de vida revolucionário do parresiasta. A melancolia, assim como a loucura, foi destituída do seu  potencial  denunciador  da  verdade  e  foi  incorporada  aos  manuais  de  psiquiatria  como  um dentre outros tantos distúrbios psiquiátricos. Na  teoria  humoral  hipocrática,  o  excesso  de  bile  negra  era  responsável  pelos  sentimentos  de tristeza,  apatia  e  o  que  viria  a  ser  a  acedia  ou  acídia,  a  qual  foi  traduzida  por  preguiça  e incorporada aos sete pecados capitais. Essa apropriação da acedia pelo cristianismo reforçava a estrutura  social,  já  que  era  necessário  justificar  a  noção  do  trabalho  como  aquilo  que  dignifica  o homem, fazendo com que a sua improdutividade se tornasse um pecado inaceitável para aqueles no  poder.  Contudo  a  acídia  está  antes,  relacionada  à  parada  ou  o  recuo  do  homem  frente  à catástrofe do não sentido. A representação clássica feita pelo artista Dürer no século XVI mostra a figura do melancólico como aquele que tem sua cabeça sustentada pelas duas mãos e os vários objetos do cotidiano largados, como que destituídos de sua função (AGAMBEM, 2007). A apropriação por Freud (1915/1987) de um termo tão antigo não é desavisada. A psiquiatria do início  do  século  XIX  relegou  o  termo  para  os  poetas  e  filósofos  substituindo­o  por  lipomania  ou mono mania triste (Esquirol (1772­1840). Pouco depois, na Alemanha, Emil Kraepelin (1856­1926) integrou  a  melancolia  à  psicose,  relação  que  encontramos  até  hoje  na  “psicose  maníaco­ depressiva”  que  foi  redefinida  no  DSM­IV  como  “transtorno  bipolar”  –  diagnóstico  epidêmico  na contemporaneidade  que  retira  do  sujeito  a  “positividade”  de  sua  postura  negativista.  Ao localizarmos o melancólico e sua fala característica “não quero nada, qual sentido há nisto?” em nosso contexto histórico contemporâneo, poderíamos identificar nesses sujeitos uma resistência http://www.appoa.com.br/correio/edicao/240/olhar_fixo_no_escuro_de_nossa_epoca_notas_sobre_melancolia_arte_e_parresia_na_contemporaneidade/157

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ativa aos modelos sociais oferecidos, às ofertas da sociedade de consumo. O melancólico sabe sobre a impostura do sistema e denuncia a alienação dos sujeitos às ofertas identificatórias das mercadorias. A ironia melancólica contesta exatamente como os modos de descontentamento são semblantes  de  uma  outra  coisa,  mais  radical,  de  uma  ausência  de  sentido.  O  melancólico consegue  reconhecer  a  norma,  mas  ele  não  a  autoriza,  renuncia  a  ela,  não  considerando  que aquilo que é imposto diz respeito a ele. O melancólico tem o poder de reconhecimento da estrutura e também do abismo para além da estrutura, o que o coloca em um impasse. O melancólico sabe da  verdade,  mas  fica  paralisado  no  momento  niilista  de  sua  vivência.  A  ética  da  verdade  do melancólico pode não conseguir achar uma saída que não seja a da mortificação, do esforço para tentar parar o tempo que a tudo devora. Cinismo  e  ceticismo  [...]foram  duas  maneiras  de  colocar  o  problema  da  ética  da  verdade.  Seu cruzamento  no  niilismo  manifesta  algo  de  essencial,  de  central  na  cultura  ocidental.  Esse  algo pode ser enunciado brevemente: onde o cuidado da verdade questiona esta sem cessar, qual é a forma  de  existência  que  possibilita  esse  questionamento;  qual  é  a  vida  necessária  a  partir  do momento  em  que  a  verdade  não  seria  necessária?  A  questão  do  niilismo  não  é:  se  Deus  não existe, tudo é permitido. Sua fórmula é, antes, uma pergunta: se devo me defrontar com o “nada é verdadeiro”, como viver? (FOUCAULT, 2011 p.166.) Foucault era leitor atento da teoria nietzschiana que distingue três tipos de niilismo: o negativo, o passivo e o ativo. O primeiro estaria ligado à religião e à noção de que a vida perfeita está no outro mundo – o que faz com que o sujeito não aja de acordo com as contingências que a vida exige. O segundo é aquele que não consegue encontrar sentido na vida, uma vez que ela chegará ao fim. Finalmente, no niilismo ativo, ultrapassa­se a simples constatação de que a vida não tem sentido nenhum.  Aqui  a  ideia  seria  viver  intensamente  o  hoje  e  não  negar  o  mundo,  o  niilismo  ativo  é  a antítese  da  covardia  diante  da  vida,  ele  seria  a  condição  de  possibilidade  para  se  criar  novos valores. Talvez a verdade vivida pelo melancólico provoque tal ruptura ou desilusão que ele não consiga responder  à  questão  do  “como  viver”  depois  de  se  defrontar  com  o  nada,  com  o  silêncio  da existência.  Contudo,  pensamos  que  uma  das  saídas  para  tal  questão  é  dada  através  da  arte.  A arte seria uma possibilidade de encontro de sentido – que será desconstruído continuamente – , de criação de um estilo de vida tributários da verdade. Mas por que o artista que deveria beneficiar­se da liberdade e potência transformadora de sua arte, muitas vezes, vê seu sofrimento recrudescer? Talvez  devêssemos  alterar  a  pergunta  e  entender  a  vida  do  artista  como  um  efeito  de  sua  arte, como um duplo que refletiria a coragem do artista em relação à verdade. O artista, justamente por denunciar e testemunhar a verdade, coloca­se em risco. Assim,  junto  aos  movimentos  que  teriam  herdado  do  cinismo  sua  potência  revolucionária,  uma forma de gesto parrésico teria sido conservado pela arte e pela vida de artista. A vida de artista seria uma vida não comparável à dos outros; a própria vida do artista seria uma ruptura com as normas e seria através dessa forma de vida singular, testemunha da verdade, que o artista criaria. Nas palavras do autor: Mas  creio  que  é  sobretudo  na  arte  moderna  que  a  questão  do  cinismo  se  torna  singularmente importante. O fato de a arte moderna ter sido e ainda ser pra nós o veículo do modo de ser cínico, http://www.appoa.com.br/correio/edicao/240/olhar_fixo_no_escuro_de_nossa_epoca_notas_sobre_melancolia_arte_e_parresia_na_contemporaneidade/157

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o veículo desse princípio do relacionamento do estilo de vida e da manifestação da verdade se fez de duas maneiras. Primeiro com o aparecimento _ no fim do século XVIII, correr do século XIX [...] (da) vida de artista. [...]É a ideia moderna, creio, de que a vida do artista deve, na forma mesma que assume, constituir um testemunho do que é a arte em sua verdade. (FOUCAULT, 2011, p.164, grifos nossos) Pensamos  que  tanto  o  melancólico  quanto  o  artista  –  cuja  representação  paradigmática  aqui  é dada pelo poeta –, são aqueles que sentem profundamente os impactos de seu tempo. Sabemos que enquanto o sujeito permanece na imobilidade melancólica, refém do caráter traumático de sua relação  com  a  verdade,  tanto  sua  vida  está  ameaçada  pela  desvitalização  quanto  a  “vida  outra” tem seu aspecto revolucionário comprometido. Foucault nos diz que ainda há outra razão pela qual a arte no mundo moderno foi veículo do cinismo. É a ideia de que a própria arte, quer se trate da literatura, da pintura ou da música, deve estabelecer com o real um relação que  não  é  mais  da  ordem  da  ornamentação,  da  ordem  da  imitação,  mas  que  é  da  ordem  do desnudamento,  do  desmascaramento,  da  decapagem,  da  escavação,  da  redução  violenta  ao elementar da existência é algo que se assinala de uma maneira cada vez mais sensível a partir do século XIX. A arte se constitui como lugar da irrupção do debaixo, do embaixo, do que na cultura, não tem direito, ou pelo menos não tem possibilidade de expressão. (FOUCAULT, p.165) Junto com a modernidade e sua forma de desnudamento do real, a sociedade de consumo torna cada  vez  mais  difícil  o  aparecimento  de  um  gesto  parrésico.  As  tentativas  de  desarticular  os “dispositivos”  e  a  denúncia  da  lógica  do  sistema  são  rapidamente  absorvidos  como  produto  e estética a serem consumidos. Os estilos que surgem na busca de uma vida revolucionária podem facilmente  ser  absorvidos  como  modelos  a  ser  reproduzidos  e  copiados,  ou  estigmatizados  e medicados.  As  tentativas  de  vivência  de  uma  “vida  verdadeira”  parecem  ser  destituídas  de  seu valor  parrésico  e  se  transformam  em  uma  espécie  de  apelo  a  quem  quer  um  produto  único, original, produto esse que irá oferecer alguma “garantia” de identidade para aquele que irá comprar esse estilo de vida. Foucault nos diz que a arte seria capaz de resistir aos imperativos de nosso tempo, apropriando­ se das mesmas questões que antes eram incorporadas pelos cínicos: A  arte  moderna,  antiplatônica  e  antiaristotélica:  redução,  desnudamento  do  elementar  da existência; recusa, rejeição perpétua de toda forma já adquirida. [...] A arte moderna é o cinismo na cultura, é o cinismo da cultura voltada contra ela mesma. E se não é simplesmente na arte, é na arte  principalmente  que  se  concentram,  no  mundo  moderno,  em  nosso  mundo,  as  formas  mais intensas  de  um  dizer­a­verdade  que  tem  a  coragem  de  assumir  o  risco  de  ferir.  (FOUCAULT, 2011, p.165) O mal­estar na modernidade – sendo a melancolia uma de suas figuras – poderia ser entendido como a existência de um conflito sempre presente entre a possibilidade do indivíduo se apresentar como  singularidade,  com  seus  referenciais  próprios  reformulados,  e  a  possibilidade  de  inclusão desse sujeito na trama do seu contexto social cultural. Há sempre uma violência que é exercida ou Menu 240 novembro/2014 por um (sujeito) ou por um outro (cultura).

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Pensamos,  assim,  que  uma  das  expressões  do  gesto  parrésico  é  preservada  através  da  arte, sendo que a arte se apresenta como uma das saídas possíveis – mas não sem riscos – para o encontro com a verdade vivenciada pelo sujeito melancólico. Referências Bibliográficas: ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia – o problema XXX,I. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998. AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009. AGAMBEN,  G.  Estâncias:  a  palavra  e  o  fantasma  na  cultura  ocidental.  Belo  Horizonte:  Editora UFMG, 2007. FOUCAULT, M. A coragem da verdade. São Paulo: Martins Fontes, 2011. ________________.  Luto  e  melancolia  (1917[1915]).  In:  ______.  A  história  do  movimento psicanalítico,  artigos  sobre  a  metapsicologia  e  outros  trabalhos.  Rio  de  Janeiro:  Imago,  1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud). Autor: Lívia Santiago Moreira   Lívia Santiago Moreira é psicóloga. Especialista em Teoria Psicanalítica pela UFMG. Mestre em Psicologia Clínica pela USP. Professora do curso de Psicologia da Universidade Braz Cubas–SP.

 

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