Olhar Híbrido Sobre Fãs (in: II Encontro de Ubiquidade Tecnológica: uma perspectiva trandisciplinar)

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Descrição do Produto

II ENCONTRO DE UBIQUIDADE

TECNOLÓGICA UMA PERSPECTIVA TRANSDISCIPLINAR

Chanceler Dom Jaime Spengler Reitor Joaquim Clotet Conselho da Série NUPECC Antonio Carlos Hohlfeldt (Editor) –PUCRS Christa Berger - Unisinos José Marques de Melo –Metodista Marialva Barbosa –UFRJ Nélia Del Bianco – UNB Rosa Maria Dalla Costa – UFParaná Maria das Graças Pinto Coelho – UFRN Rudimar Baldissera – UFRGS Paulo Vaz – UFRJ Maria Immacolatta Vassalo Lopes – USP Luciana Mielniczuk – UFRGS Federico Casalegno – MIT Moisés Martins – Unviersidade do Minho Margarita Ledo – Universidad de Santiago de Compostela Michel Maffesolli – Sorbonne V Philippe Joron – Montpellier III

Vice-Reitor Evilázio Teixeira Conselho Editorial Presidente Jorge Luis Nicolas Audy Diretor da EDIPUCRS Gilberto Keller de Andrade Editor-Chefe Jorge Campos da Costa Agemir Bavaresco Augusto Buchweitz Carlos Gerbase Carlos Graeff-Teixeira Clarice Beatriz da Costa Söhngen Cláudio Luís C. Frankenberg Érico João Hammes Gleny Terezinha Guimarães Lauro Kopper Filho Luiz Eduardo Ourique Luis Humberto de Mello Villwock Valéria Pinheiro Raymundo Vera Wannmacher Pereira Wilson Marchionatti

Série

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NUPECC

II ENCONTRO DE UBIQUIDADE

TECNOLÓGICA UMA PERSPECTIVA TRANSDISCIPLINAR SANDRA MARA GARCIA HENRIQUES ERIKA OIKAWA • LIANA GROSS FURINI ALINE FEIJÓ BIANCHINI • JANDRÉ CORRÊA BATISTA

PORTO ALEGRE 2015

© EDIPUCRS 2015 DESIGN GRÁFICO [CAPA] Shaiani Duarte DESIGN GRÁFICO [DIAGRAMAÇÃO] Francielle Franco

EDIPUCRS – Editora Universitária da PUCRS Av. Ipiranga, 6681 – Prédio 33 Caixa Postal 1429 – CEP 90619-900 Porto Alegre – RS – Brasil Fone/fax: (51) 3320 3711 E-mail: [email protected] Site: www.pucrs.br/edipucrs

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) E53c    Encontro de Ubiquidade Tecnológica: uma perspectiva transdisciplinar (2. : 2015 : Porto Alegre, RS) [Anais ...] [recurso eletrônico] / 2. Encontro de Ubiquidade Tecnológica: uma perspectiva transdisciplinar ; organizadores Sandra Mara Garcia Henriques ... [et al.]. – Dados Eletrônicos. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2015. 137 p. – (Série NUPECC ; 12) Modo de Acesso: ISBN 978-85-397-0771-3 1. Tecnologia. 2. Comunicação Digital. 3. Cultura e Mídia I. Henriques, Sandra Mara Garcia. II. Título. CDD 301.243 Ficha catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS.

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).

FICHA DE CRÉDITOS

Organizadores: Aline Feijó Bianchini, Erika Oikawa, Jandré Corrêa Batista, Liana Gross Furini, Sandra Mara Garcia Henriques. Transcrições das palestras: Aline Ferreira de Mello, Bruna Marcon Goss, Luiza Carolina dos Santos, Liana Gross Furini. Revisão: Angela Maria Meili, Marcela Leal Donini, Breno Maciel Souza Reis, Aline Feijó Bianchini, Erika Oikawa, Jandré Corrêa Batista, Liana Gross Furini, Sandra Mara Garcia Henriques. Edição e Revisão Final: Aline Feijó Bianchini, Erika Oikawa, Jandré Corrêa Batista, Liana Gross Furini, Sandra Mara Garcia Henriques.

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO......................................................................................................................... 7 INTRODUÇÃO............................................................................................................................. 9

PARTE I – PALESTRAS........................................................................................13 ENTRETENIMENTO E CONSUMO............................................................................................14 Palestra da Profa. Dra. Adriana Amaral (Unisinos)...................................................15 Palestra do Prof. Dr. Alex Primo (UFRGS).................................................................18 Palestra do Prof. Dr. André Pase (PUCRS)................................................................23 POLÍTICAS E TECNOLOGIA..................................................................................................... 26 Palestra da Profa. Dra. Dilnéia Tavares do Couto (UEAP).......................................27 Palestra do Prof. Me. Daniel Bittencourt (Unisinos)................................................32 Palestra de Fabrício Solagna (Governo do Estado do Rio Grande do Sul)................40 MOBILIDADE, INTERAÇÃO E COGNIÇÃO.............................................................................. 47 Palestra da Profa. Dra. Suely Fragoso (UFRGS)........................................................48 Palestra do Prof. Dr. Cristiano Costa (Unisinos).......................................................57 Palestra do Prof. Dr. Roberto Tietzmann (PUCRS)..................................................61 SOCIALIDADE E LAÇO SOCIAL NAS REDES........................................................................... 65 Prof. Dr. Michel Maffesoli

PARTE II – ARTIGOS.......................................................................................... 76 OLHAR HÍBRIDO SOBRE FÃS................................................................................................... 77 Marcelo Fontoura, Pedro Henrique Reis, Vanessa Valiati HIPERLIVRO: UM NOVO MODELO E NOVOS AGENTES PARA O SISTEMA DIGITAL........ 87 Ana Cláudia Munari Domingos, Antonio Carlos Hohlfeldt CORPO, PERCEPÇÃO E COGNIÇÃO EM UM CONTEXTO DE COMPUTAÇÃO VESTÍVEL: CONSIDERAÇÕES SOBRE O GOOGLE GLASS....................................................103 Breno Maciel Souza Reis, Luciele Copetti DO ZOMBIE WALK AOS ROLEZINHOS: A ÉTICA DO “ESTAR-JUNTO” NO PENSAMENTO DE MICHEL MAFFESOLI.......................................................................... 127 Sandra Mara Garcia Henriques, Erika Oikawa

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APRESENTAÇÃO

uma perspectiva transdisciplinar O Ubitec é uma realidade. Em pouco tempo, examinando os meandros do virtual, tornou-se mais concreto do que muitas velhas estruturas em estado de liquefação ou até de putrefação. As realidades do Ubitec são como avatares que se materializam a cada ano numa explosão de fogos de artifício e na expressão de conteúdos substantivos. O 2º Encontro de Ubiquidade Tecnológica, realizado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, na Famecos, em 2012, colocou na mesa uma série de temas que não podem mais ser jogados para baixo do tapete: Entretenimento e Consumo, Políticas e Tecnologia, Mobilidade, Interação e Cognição, Socialidade e laço social nas redes. Um cardápio dessa qualidade só poderia ser servido por pesquisadores preparados e de vários horizontes institucionais: Profa. Dra. Adriana Amaral (UNISINOS), Prof. Dr. André Pase (PUCRS), Prof. Dr. Alex Primo (UFRGS); Prof. Me. Daniel Bittencourt (UNISINOS), Profa. Dra. Dilnéia Tavares do Couto (UEAP), Fabrício Solagna (Governo do Estado do Rio Grande do Sul); Prof. Dr. Cristiano Costa (UNISINOS), Prof. Dr. Roberto Tietzmann (PUCRS), Profa. Dra. Suely Fragoso (UFRGS); e, para fechar com um banquete, Prof. Dr. Michel Maffesoli (Universidade René Descartes, Paris V, Sorbonne). Michel Maffesoli, teórico da pós-modernidade, das relações sociais marcadas pelo que chama de cultura do sentimento, lógica do estar-junto, efervescência dionisíaca ou hedonismo presenteísta, não poderia deixar de se entusiasmar com a ubiquidade tecnológica nem de refletir sobre a socialidade – para ele a socialidade é orgânica enquanto a velha sociabilidade é mecânica – nesse ainda novo mundo,

8 apresentação cada vez mais consolidado, virtual. Maffesoli navega por esses mares surpreendentes com a alegria do velho marinheiro que se encanta com cada novo nascer do sol. Tudo o fascina, tudo o mobiliza, tudo o emociona. Especialmente tudo aquilo que faz laço social, que serve ao hedonismo das tribos efêmeras e dos sentimentos e desejos permanentes. Este livro resgata esse conjunto de reflexões, de questionamentos, de hipóteses e de informações que fizeram do encontro essa realidade que se espera como uma notícia que virá para esclarecer e consagrar aquilo que se experimenta, sente e pratica. De certo modo, uma etapa de transição está em curso. As transições têm a força das flexibilizações, dos apagamentos de fronteiras e das dúvidas corroendo as certezas. Em contrapartida, carregam as angústias dos tempos de corrosão, de invenção ou de reinvenção dos imaginários que mais impregnam o cotidiano das pessoas nos mais diversos âmbitos das suas vidas. Nessas circunstâncias, só uma medida a tomar: tentar descobrir, destapar, desvelar, revelar, fazer emergir o que se esconde sob as profundezas da superfície existencial. Os encontros do Ubitec têm ajudado a iluminar e aprofundar conhecimentos sobre esta das tecnologias totais, as quais, segundo Maffesoli, mais agregam do que separam, proporcionando reuniões virtuais e presenciais que fazem da socialidade o cimento que cola aqueles que vibram juntos. Juremir Machado da Silva Professor do PPGCOM/PUCRS

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INTRODUÇÃO

Desde o primeiro Encontro de Ubiquidade Tecnológica, realizado em 2011, o Grupo de estudos Ubitec (PPGCOM Famecos/PUCRS) busca promover um espaço de debates e reflexões sobre o papel das tecnologias digitais de comunicação em nossa sociedade e seus reflexos no cotidiano, já que essas se fazem presentes em todos os processos sociais contemporâneos. A possibilidade de se estar em conexão com outras pessoas, recebendo e enviando dados (de som, imagem ou texto) em qualquer local a qualquer momento é a característica mais latente da ubiquidade e é um traço marcante da sociedade atual. Em 2012, o 2º Encontro de Ubiquidade Tecnológica foi desenvolvido sob a perspectiva transdisciplinar dos aspectos que envolvem a tecnologia, a mobilidade e a ubiquidade. Para tentar compreender melhor esse processo, o Encontro contou com três mesas temáticas, nas quais participaram pesquisadores de renomadas instituições brasileiras, além de uma palestra de encerramento com o sociólogo francês Michel Maffesoli, professor da Université Paris Descartes/Sorbonne. A primeira mesa temática, intitulada Entretenimento e Consumo, centrou seu debate no impacto das tecnologias digitais no consumo do entretenimento e na própria produção de novas formas de arte, games, música, cinema, a partir de um ambiente midiático ubíquo. Diante dessa proposta, Adriana Amaral (UNISINOS) abriu o evento com um ponto de destaque para o debate da cultura digital e que ainda, segundo ela, é pouco estudado: o antifã. Para tal, Amaral trouxe autores renomados e exemplos para enfatizar como este ator social é importante para a compreensão do ambiente digital nos dias atuais. Nosso segundo convidado, Alex Primo (UFRGS), trouxe o tema das celebridades e a ubiquidade das mídias como foco principal. Primo falou das questões da indústria no consumo das celebridades

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e como esse processo envolve os fãs e sua participação ativa enquanto produtores de conteúdo em sites de redes sociais. Os jogos e os fluxos de informação foram o foco da palestra de André Pase (PUCRS), que trouxe para o Encontro exemplos de como a incorporação das informações nos jogos foi se delineando ao longo dos tempos. Pase aponta alguns desafios para que a conexão entre jogos e informação seja feita com qualidade e, assim, seja cada vez mais apropriada pelo público. A Mesa 2, Políticas e Tecnologia, teve como eixo central dos debates a relação entre as redes digitais e as novas formas de participação política nas sociedades democráticas. Nesse contexto, Dilnéia Tavares do Couto (UEAP) propõe uma revisitação ao conceito habermasiano de opinião pública à luz das novas formas de poder das mídias, tanto das tradicionais quanto das alternativas, mas, especialmente, da intersecção midiática desses dois eixos. Ainda acerca da temática da participação, Daniel Bittencourt (UNISINOS) ressalta importância do design, especificamente a partir da perspectiva do Design Thinking, para que a mobilização ocorra de forma efetiva. A partir de exemplos como o PortoAlegre.cc, projeto referência em ações urbanas colaborativas, Bittencourt discorre sobre como as atuais tecnologias podem ser pensadas de modo a gerar transformações sociais importantes nas cidades. Por fim, Fabrício Solagna fala da sua experiência à frente do Gabinete Digital, iniciativa do Governo do Estado do Rio Grande do Sul que se propõe a ser um canal de participação e diálogo entre o governo e a sociedade. A partir dessa experiência, Solagna reflete sobre as modulações que reconfiguram a atual compreensão sobre “esfera pública”, diante dessa condição que passa a se apresentar de forma cada vez mais interconectada no contexto digital. Na Terceira Mesa, com o tema Mobilidade, Interação e Cognição, os palestrantes convidados discutiram sobre o papel das tecnologias móveis de comunicação nos modos de percepção. Ferramentas e dispositivos que potencializam as funções humanas acabam por serem extensões do próprio usuário, ressignificando o espaço físico e alterando a relação entre o homem e a tecnologia. Abrindo a Mesa, Suely Fragoso (UFRGS) centrou sua palestra em mapas, com o objetivo

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de mostrar como a visão de espaço mudou ao longo do tempo. Para ela, ainda que as tecnologias tenham trazido muitas possibilidades e diminuído as barreiras geográficas, o espaço físico ainda é muito importante. O segundo palestrante da Mesa foi Cristiano Costa (UNISINOS), que abordou três temas: mobilidade, cloud computing e cognição. Costa trouxe um novo olhar para o futuro da computação, salientando que o foco deverá estar menos na tecnologia e mais nas pessoas, e que devemos pensar a tecnologia como meio para melhor atender as necessidades humanas. Fechando a Mesa, Roberto Tietzmann (PUCRS) mostrou representações da tecnologia, principalmente no que diz respeito à representação de robôs em filmes. Para Tietzmann, algo só é visto como tecnológico quando representa o que as pessoas entendem como tal, ou seja, que já faça parte do seu repertório e que elas percebam como tecnológico. Encerrando o 2º Encontro de Ubiquidade Tecnológica, o sociólogo Michel Maffesoli (Universidade René Descartes, Paris V, Sorbonne) dissertou de forma ampla sobre questões relacionadas à socialidade e ao laço social nas redes, tema de sua palestra. Maffesoli trouxe para o debate a sinergia entre o arcaico e o desenvolvimento tecnológico, ressaltando que há uma regressão aos conceitos tribais, não um progresso. Maffesoli trouxe a filosofia ao debate, tratando da virada da técnica como uma forma de mudança. Nesse contexto, ele lembra vários protestos políticos que aconteceram ao redor do mundo, explicando que as pessoas se utilizaram da astúcia da técnica (ou seja, do conhecimento técnico) de forma política. Como segunda virada, o sociólogo cita a mudança societal, que, segundo ele, é sua “pequena obsessão teórica”. Nesse ponto, ele cita a metáfora da viralidade, de Jean Baudrillard, que trata da difusão da informação na atualidade, que está cada vez mais epidemiológica. A terceira virada apontada por Maffesoli é a virada da socialidade, em que ele trata da concepção do indivíduo. Maffesoli diz que a socialidade é lírica, lúdica e imaginária, o oposto da noção perversa de realidade. Por fim, salientamos que este e-book tem como objetivo principal colocar em pauta alguns questionamentos sobre o papel das tecnologias digitais de comuni-

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cação nos mais variados aspectos da vida social: interatividade, subjetividades, interfaces, espaços (ciberespaço), linguagem, ciência, cognição, cultura e política. Assim, esperamos que, além do evento, este e-book contribua com um momento de diálogo transdisciplinar e de troca de informações entre as diversas áreas do conhecimento em torno de um corpo temático comum: a ubiquidade tecnológica. Aline Feijó Bianchini Erika Oikawa Jandré Corrêa Batista Liana Gross Furini Sandra Mara Garcia Henriques Os Editores

PARTE I PA L E S T R A S

ENTRETENIMENTO

E CONSUMO mediador: dr. pedro henrique baptista reis convidados: profa. dra. adriana amaral (unisinos) prof. dr. alex primo (ufrgs) prof. dr. andré pase (pucrs)

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palestra da profa. dra. adriana amaral (unisinos)

Em determinado produto cultural, o resgate de questões relacionadas aos novos discursos individuais e coletivos gerou-me algumas facetas comportamentais, que propiciaram uma publicação minha, juntamente com minha orientanda Camila Monteiro na Compós em 2012. Essa publicação mostra os níveis de performatização do gosto a partir da figura de um dos atores sociais que ainda é pouco estudado: o antifã – ou seja, pessoas que odeiam um determinado produto cultural e seu comportamento, mais especificamente, os tipos de práticas existentes nesse contexto dos ambientes digitais. Para se ter uma ideia, acabamos de voltar de um congresso internacional. Simplesmente existem poucos textos até este momento na bibliografia sobre antifãs. Um destes, que conseguimos rastrear, de 2007, está numa coletânea sobre fandom. O texto trata de questões relacionadas aos times de futebol, aos torcedores, de como se comportam. Os torcedores são antifãs. Isso ainda é algo que também é pouco discutido. É engraçado: no Brasil falamos muito de esporte. É algo que tem muita visibilidade, mas que possui poucos trabalhos sobre. Então, o Richard Shusterman, por exemplo, vai deixar a noção de distinção do Bourdieu, e dizer que este faz uma separação entre o que é cultura popular e o que não é, e nesse sentido, então, a noção de performatização do gosto de Antoine Hennion se destaca por trabalhar muito mais com a dimensão do consumo do que com a dimensão econômica como a de Pierre Bourdieu, ou uma outra dimensão mais estética. E aqui estou me referindo a uma questão voltada para o determinismo: determinismo econômico, determinismo tecnológico, determinismo sociológico. Na verdade, nos textos ele vai avançar essa ideia, vai dizer que tudo isso faz parte, mas que ele quer trabalhar com o gosto menos simbólico e mais material, pensar

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em como ver essa materialização do gosto tanto em ambientes humanos como agentes não humanos e pensar essas formas de publicização do gosto. Ele prefere não chamar de gosto, prefere chamar de vinculação ou de afeto, pois, segundo ele, a pessoa possui um afeto sobre um cantor, sobre ambiente e sobre objetos. Assim, para se proceder uma determinada análise nesse estudo, pensando metodologicamente em um tipo de análise descritiva, teremos que levar em consideração as plataformas, as práticas e os sujeito, para usar a terminologia tanto etnográfica quanto da teoria ator-rede. E assim eu reflito sobre a intersecção, que foi onde esse conceito me ajudou a pensar essa espécie de pragmática do gosto, a partir dos sound studies – os estudos de som, que no campo da comunicação ainda são bastante renegados, pouco estudados se levarmos em consideração ao que temos, ao próprio audiovisual. Usamos o termo audiovisual para falar de cinema, de vídeo, de telenovela, produtos focados muito mais no visual do que no som, que ainda possui um papel um tanto renegado. Assim, a ideia de articulação entre os estudos da sonoridade, não só ao visual, à questão das materialidades e tomando como materialidades essas conversações das pessoas, os rastros que elas deixam, a própria foto que publicam, o meme que criam, o Tumblr odiando determinada pessoa ou, enfim, algum tipo de protesto. Na semana passada, com a questão da crítica à Revista Veja das cabras e do sexo, criou-se o Tumblr Cabras para Casar. Eu achei fantástico! Então, nesse contexto, a tecnologia, vai mais ligada a essas práticas que não são novas, e isso eu faço questão de falar até pela minha trajetória que monta arqueologicamente esses artefatos midiáticos. Essas práticas não são novas, elas acabam fazendo uma vinculação seja a determinados grupos sociais, seja a determinadas estéticas ou determinadas vinculações. A minha ideia aqui era justamente Pensar um pouco sobre isso, como cada um faz essa performatização, na verdade eu fiz, juntamente com a minha orientanda Camila Monteiro, um estudo de caso de algumas páginas de disputas principalmente relacionadas a gêneros musicais – Unidos contra o rock, Unidos contra o indie, Unidos contra o funk que “pipocam” nas redes sociais e que cada vez ganha um determinado peso, esse tipo de manifestação mesmo que efêmera, e que pode não durar nem um mês, é importante, pois, o que interessa é que as pessoas estão se expressando, discutindo como em uma mesa de bar: “ah, eu gosto de Lulu Santos ou da Madonna”, ou “eu odeio a

profa. dra. adriana amaral

novela tal por isso e por isso e por aquilo”, hoje, elas estão fazendo isso on-line. O fato de elas estarem fazendo isso on-line, deixa rastros, e essa materialidade nos serve de suporte arqueológico para pensar essas questões. Eu comecei a ficar bastante preocupada, no sentido epistemológico, em como entender essa questão de as pessoas odiarem tanto alguma coisa, ou de expressarem esse ódio. Na verdade, não vou entrar em questões da psicologia, não é este o ponto, mas por que as pessoas odeiam tanto uma coisa? E por que elas precisam manifestar esse ódio? É necessário, então, retomar algumas questões relacionadas à identidade, pois, na verdade, esse comportamento do antifã tem diferenças: existem pessoas que odeiam algo e não se manifestam; mas tem outras que fazem praticamente uma exegese daquilo que elas odeiam, e isso as coloca no mesmo patamar de quem ama em termos de comportamento. Então como podemos pensar isso? Nós podemos começar a extrapolar essa questão para as marcas, para o próprio branding, e podemos discutir bastante sobre isso. A Camila Monteiro está trabalhando numa dissertação especificamente sobre antifãs em um caso sobre o grupo Restart. Há dois anos, nós estudamos certos comportamentos que vão gerar discursos violentos, como discursos de homofobia, de racismo e tudo que existe de pior. Como podemos pensar isso? Como entender isso em relação a determinados grupos, subculturas, nichos? Em determinados contextos, os discursos vão adquirir significados diferentes. A própria questão da trollagem, por exemplo, uma prática que eu acho fantástica, e que começa com o anonimato. No Brasil houve uma mudança nas práticas de trollagem mais recentes e o anonimato já não mais interessa, as pessoas se assumem: eu sou o troll. E isso é um tipo de prática que sempre fez parte da sociedade, mas que agora ganha essa amplificação, essa viralização. É muito interessante ver como foi mudando esse processo, de algo que, por exemplo, que o Fernando Fontanella vai chamar de algo que começa na internet mais profunda, que é quase bullying e que aqui no nosso momento ganha um outro tom de cinza e se desmembra em outras facetas como algo lúdico, algo de brincadeira.

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palestra do prof. dr. alex primo (ufrgs)

Vou falar hoje sobre a ubiquidade das mídias e das celebridades. Venho estudando celebridades e esse possível conceito de microcelebridades – e se isso faz sentido ou não. Queria começar lembrando que, quando o iPad foi lançado, em 2010, o Steve Jobs comentou que esse dispositivo era mais íntimo que o notebook. Ele comentou, inclusive, que tínhamos, com o iPad, a possibilidade de ter a internet nas mãos, poderíamos segurar a internet. Achei muito curiosa essa frase do Steve Jobs, sempre com sua maneira entusiasmada de pensar os objetos tecnológicos. Isso se reflete na maneira como nós também percebemos esses objetos e os incorporamos. É engraçado que realmente esse toque, quando manuseamos um jornal ou site qualquer nas mãos, é uma maneira diferente de interagir com esses produtos culturais, pois, de fato, está sobre no nosso colo: nós estamos mexendo, diminuindo, ampliando. É diferente de usar o mouse. É uma relação completamente diferente, tanto é que tivemos de reaprender a usá-lo. As crianças pequenas manuseiam com facilidade porque isso é natural para elas. Menos natural é usar o mouse. Então, poderíamos dizer que, hoje, a nossa relação com essas mídias móveis é uma relação quase que erótica: o toque, o botar no colo, o segurar, o manusear. Essa intimidade que nós temos com esses objetos modifica a nossa própria interação com conteúdos veiculados, mediados por esses objetos. Então, nós poderíamos até comparar como lemos o jornal no papel, como lemos no monitor do desktop, como lemos no aplicativo do um iPhone ou de um iPad ou de outros tablets. O interessante é que a indústria de celebridades observou isso. Essa ubiquidade das mídias combina com a ubiquidade das celebridades. As celebridades, antes do computador, e obviamente antes das tecnologias móveis, já estavam onipresentes. Já faziam parte da nossa cultura. Quando os sites apa-

prof. dr. alex primo

receram – a possibilidade de criação de sites –, a indústria percebeu que também precisaria estar ali. A emergência das tecnologias móveis e de sites de redes sociais na internet, como Facebook, como Orkut, como Myspace (que talvez tenha sido o primeiro a realmente mostrar essa nova casa para as celebridades) possibilitou uma sensação de contato direto. Por isso, estou puxando essa frase do Steve Jobs. É, também, um contato direto e, então, mais íntimo com as celebridades. Podemos observar também que os fãs podem conversar. Têm a possibilidade de conversar com seus ídolos, seus autores de livros prediletos, com suas estrelas de televisão e cinema. Algumas celebridades chegam a ter apps e sites de redes sociais, como a Lady Gaga, por exemplo. Ela esteve aqui em Porto Alegre e, pouco antes dos shows que ela fez no Brasil ela deu uma entrevista ao Fantástico em que comentou sobre esse site de rede social, o Little Monsters, que ela mantém para ter um contato direto, continuado e específico, não em outra rede social com seus fãs. Ela, a todo momento, fazia questão de falar sobre os seus fãs e mencionar a sua mídia social Existe essa percepção da importância dos fãs não só como apenas um consumidor, mas como alguém que vai promover e construir a própria celebridade. A Lady Gaga não é uma pessoa, mas, sim, uma grande indústria de produtos culturais. Na minha pesquisa anterior sobre celebridades, eu sempre fiz questão de trabalhar as celebridades como produto. Percebemos que os sites de redes sociais não são apenas um local virtual para manter contato com amigos, com parentes e com colegas de trabalho, que era o intuito inicial dos primeiros sites de redes sociais. Hoje, é óbvio que uma marca precisa ter uma página no Facebook. E essas páginas no Facebook e perfis no Twitter precisam ser bem administradas e fazer parte de planejamento de marketing, de construção dessa marca. Então, temos observado que antes o controle da celebridade como produto era total. A indústria conseguia manter esse controle. Conseguia segurar todas as redes. Hoje, esse controle é compartilhado, pois o fã pode falar, retuitar, comentar nos blogs das próprias celebridades ou nos blogs sobre celebridades. Podemos lembrar que, quando os blogs apareceram, no início da cibercultura, entendíamos que essa era a chance de darmos a volta, de reagirmos contra a opressão da mídia de massa. Então, os blogs e o jornalismo participativo permitem, então, ações revolucionárias. Deixaríamos de

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assistir televisão, deixaríamos de ir ao cinema, de ler jornal e de assistir telejornais e ouvir programas noticiosos das rádios, controladas pelo grande capital midiático. Nós poderíamos, então, ler a as notícias no Ohmynews. O Marcelo Träsel fez sua dissertação sobre o jornalismo participativo. Em um artigo que escrevemos juntos, trouxemos justamente essas utopias que moviam todos esses jornalistas cidadãos. O Ohmynews deixou de ser um jornal global, passou a ser apenas um pequeno blog sobre jornalismo participativo. Muitas dessas utopias perderam um pouco o gás. A indústria conseguiu incorporar essas possibilidades de comentários, de retweets, na própria produção e circulação de mensagens de celebridades que queríamos evitar. Isso é curioso. De qualquer maneira, o público e as audiências são coprodutores dessas celebridades. Também fazem fan films, fan fictions e acabam prolongando, muitas vezes, o interesse por histórias e personagens que não têm algo de novo, como foi o caso de Guerra nas Estrelas e, agora, Harry Potter, que chegou ao final. Os fãs continuam produzindo histórias, sugerindo, pedindo, demandando resposta da autora e de toda indústria que circula em torno do Harry Potter. Então, a marca também é construída pelos próprios fãs. Mais que isso, a indústria percebeu a necessidade de se investir nisso porque a necessária construção de uma fidelidade dessa marca se dá também por meio das comunidades virtuais dedicadas a essas celebridades. Então, há muitos fóruns, muitos blogs, muitos sites de paixão por certas celebridades, nos quais são eleitos certos líderes e as discussões, prolongadas. Isso tudo é incorporado pelos administradores dessas marcas, marcas como Lady Gaga, como William Bonner ou Ana Maria Braga. Todas essas pessoas se constituem, quando estão na mídia, como produto, como mercadoria, e são administradas como mercadoria. Há uma embalagem, que precisa ser bem administrada, bem mostrada, tem de estar bonita em frente às câmeras. Mais que uma pessoa, é um grupo de profissionais: maquiadores, agentes, cabeleireiros, figurinistas, relações públicas. São pessoas que escrevem o que deve ser dito, definem o que deve ser vestido, como se comportar, onde devem estar. Em momentos de dificuldades, elas definem que um escândalo pode vir em boa hora. É nessas horas que se raspa a cabeça, como a Britney Spears. Nessas horas, o Tom Cruise pula insistentemente no sofá da Oprah. Um escândalo, então, começa a renovar

prof. dr. alex primo

o interesse dos fãs. Nós aqui, a “ralé”, casamos por amor, namoramos por amor. A celebridade não namora por amor, celebridade tem um contrato de namoro. Assina um contrato de casamento. Isso é muito importante para a manutenção da celebridade. Separa-se em boa hora, e até se morre em boa hora. Vivemos, então, nessa cultura de marcas e temos esse relacionamento íntimo com os nossos aparatos tecnológicos. Tudo isso reinventa o capitalismo dentro do próprio capitalismo. Não há mais a mesma opressão que havia antes, mas há a participação: demandamos os produtos que queremos receber, e a indústria sabe a importância disso. O George Lucas, por exemplo, depois de muito lutar contra as fan fictions, decidiu criar, há alguns anos, uma competição anual de telefilmes. Há muitas regras, a música e as imagens que podem ser usadas, mas consegue fomentar essa produção, que só faz valorizar, agregar valor a esses produtos. A mídia sempre teve muito interesse na vida privada das celebridades. Até podemos pensar: que tipo de vida privada possuem essas celebridades? Por exemplo, lembro de muitas capas de revistas, da própria Caras: “Tal celebridade foi flagrada em restaurante trocando alianças com a sua namorada”. Como assim flagrada? Como estava o Justus maquiado no restaurante? Como é que um homem, por mais que seja o Roberto Justus, vai maquiado para um restaurante? E os fotógrafos, por acaso, estavam jantando por ali. Isso tudo é encenado. Essa imprensa, esses periódicos, esses tabloides, sempre foi necessária para a própria construção, manutenção, e invenção das celebridades. Sempre houve uma relação promíscua entre os tabloides e as celebridades. Isso ainda não é suficiente. Nós precisamos de um blog, como o do Barry Feldman, que virou uma celebridade com um blog criticando celebridades. Nós também precisamos de aplicativos, precisamos ler sobre a vida dessas celebridades em qualquer lugar. Estou pensando em tablets, que é onde, pelo menos eu, uso Twitter. O William Bonner começou muito bem entendendo tudo isso, pedindo para as pessoas escolherem a gravata que iria usar no programa e fazendo com que as pessoas se sintam íntimas dele. E essa é a ideia: eu estou participando não apenas dos bastidores do maior telejornal do país, mas eu consigo saber das férias do apresentador, de onde ele está. A sensação que se tem é realmente de uma intimidade. Essa relação de uma ilusão de intimidade é

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chamada de interação parassocial, que é um conceito antigo. O conceito apareceu em 1956 e, naquela época, já tinha essa noção de intimidade com as celebridades, porque conseguiam saber sobre a vida das celebridades. As pessoas compram a Caras para, além de ganhar a panelinha, poder ver a sala de jantar do Faustão e ver uma pista sobre quarto da Sasha. Então, me sinto dentro da casa da Xuxa, me sinto participando da escolha da Xuxa sobre que tinta usar para o cabelo e sabendo que a sua mãe não gostava que ela pintasse de loiro. Essa relação só se amplia quando começamos a poder acompanhar a vida dessas celebridades, inclusive as discussões. Vibramos quando o Felipe Neto começou a brigar com Lucas Lima. Participamos dessa briga, é uma briga verdadeira. Quando é revelada a traição dos atores do Crepúsculo via Twitter nós vibramos: eles são tão verdadeiros, são tão reais quanto nós. Será que a traição não estava em contrato? Os fãs estão vendo isso acontecer no momento da traição. Não há nada mais íntimo. Eles estão quase ao lado das celebridades. Então, podem defender, quebrar, xingar. Os fãs vibram, discutem. Isso aproxima, pois eles são tão verdadeiros e reais quanto nós. É importante que nunca percamos a noção de que essa distância aurática é necessária para a manutenção da percepção da celebridade. Eu sempre brinco que, se o Tom Cruise estivesse toda a hora no Brasil fazendo churrasco para promover filme no Brasil, se estivesse no meio de nós, se fosse no churrasco na minha casa, quem é que veria filme do Tom Cruise? Quem pediria autógrafo para o Tom Cruise? Muitas celebridades, o William Bonner às vezes retuita alguém, respondem a alguém. Muitas vezes, as celebridades querem mostrar intimidade, mas a distância entre o fã, apesar dessa aparente intimidade, ainda é mantida.

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palestra do prof. dr. andré pase (pucrs)

O que eu vou comentar um pouco com vocês é como nós temos informação real presente no jogo, não é simplesmente uma narração, mas sobretudo como começa a estabelecer fluxos de informação. Não vou comentar toda a questão de purposeful games, serious games, não vou falar sobre essa história dos alter games, e também não vou falar sobre newsgames. O que me preocupa são os jogos comerciais, algumas coisas que eu saio, encontro na loja e acabo comprando. Com a introdução do Beatles Rock Band, por exemplo, antes de começar o jogo, eu tenho em dois minutos, praticamente, toda a carreira dos Beatles: começa no carro, correria e confusão, começa aquela fase de “olha, estamos famosos vamos sair correndo das fãs”, esse jogo, sobretudo, tem uma história. Eu e o professor Roberto Tietzmann escrevemos um paper que não trata apenas do Beatles Rock Band, mas também do Guitar Hero Aerosmith que é o único que se propõe a ser uma nova forma de a banda produzir um documentário e entregar para o público. É um documentário no qual eu vou jogar e também entender o processo. As bandas adoram repassar e recontar a história. Uma coisa que eu gosto de lembrar no caso do Beatles Rock Band é que entre as fases tem-se algumas fotos, vídeos resgatados do passado, é algo como se o documentário fosse aos poucos liberado, e no final do jogo monta-se um painel da banda que eu, não apenas conheço mas que possui algumas coisas com as quais eu brinquei. Isso foi em 2009, em 2011, desde então começou a acentuar esse movimento, o game Forza Motorsport 4, conta com dois personagens importantes: quem é fã de Top Gear vai lembrar de seu apresentador e do clássico piloto Stig. A BBC colocou o Top Gear como parte do jogo. Além do Jeremy Clarkson comentando, do Stig pilotando, e do cenário do jogo, existem coisas legais e interessantes para quem vê o programa. Eu gosto de lembrar que na capa está a marca da BBC dando respaldo, dando força para o jogo, mas sobretudo eu tenho um programa com super qualidade gráfica, talvez um dos melhores programas da televisão que nós temos hoje e o jogo copia isso muito bem. Isso foi em 2011, outro jogo mais recente, o Fifa 13, tem algumas coisas que me inquietam. A primeira delas é o seguinte: eu tenho uma tradição que vem desde

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o começo dos anos 2000, pois eu tenho alguns jogos que têm estatísticas atualizadas em tempo real. O Madden, começa a trabalhar muito bem isso, e o jogo vai ficando vivo. O Madden promove um concurso que escolhe quem irá fazer parte da capa do jogo. Os jogadores disputam e acompanham as estatísticas de quem foi o escolhido para jogar e poder renovar o contrato e falar “eu fui mais jogado pelo público, quero ganhar mais, quero ser mais reconhecido”. Esse movimento começou a acontecer no Fifa há pouco, e desde então está de graça no Fifa Soccer. Isso possui um impacto, o horizonte ainda não está tão perceptível, mas, quando começarmos a ter isso na liga brasileira o jogador vai começar a jogar e ver “poxa, estão me pegando, eu quero ser melhor recompensado por isso”. Duas telas que me chamaram muito a atenção: ele sabe qual é o meu time e mostra quais são os próximos jogos e a posição. Uma coisa que fazíamos era ver os jogos e jogá-los. O Fifa fez algo interessante: separa cinco jogos no fim de semana e sugere que deve-se prestar atenção, os coloca prontos para jogar e descreve um parágrafo explicando por que deve-se prestar atenção. Há trabalho jornalístico nesse jogo, e faz parte de outra discussão, mas o ponto é: o jogo chamando a atenção. Esse é um trabalho muito bem feito. Há um jogo muito bem feito de hóquei do NHL. Um dos módulos de jogo diz “momentos ao vivo”. Eu estava jogando e tinha que fazer o quarto gol, mas tomei o quarto gol e eu vi na animação a realidade que não aconteceu, uma realidade diferente. O jogo está usando a realidade para distorcê-la. Como se não bastasse, a rede de televisão começou a fazer uma simulação usando o jogo, de como seria a temporada. Eles fazem um clipe com o compacto da jogada, e também as tabelas atualizadas, ou seja, é praticamente o campeonato. Um jornal de Montreal, como o time não estava jogando, e está simulando a temporada, criou uma crônica no jornal, como se o jogo tivesse acontecido. O que nos importa nessa história do jogo é o espaço da informação. Jogo é baseado em foco: seja mobile, seja console, seja onde se está. Nós somos uma sociedade baseada em foco: foco e privacidade são as duas moedas mais caras e importantes, como se referem os estudos sobre economia da atenção. O jogo é baseado em foco: tente jogar jogo com alguém pedindo atenção do lado, pessoa passando em frente, é impossível. O jogo tem essa propriedade única de ser baseado em foco e existir só por causa dele. Uma outra coisa que nós gostamos de lembrar, e isso é “chover no molhado”: o jogo é um espaço de compreensão. E aí eu gosto daquela frase do Gonzalo Frasca, antes do Ian Bogost comentar os newsgames: tem coisas que são melhores se eu simular uma situação do que dar uma reta, mas tem pautas que são muito melhores em uma simulação, e aí vem a parte dos newsgames. Uma outra

prof. dr. andré pase

que me interessa é: se é um espaço de compreensão, para marcas, empresas e para colocar fluxos de informação na jogada, como o hóquei, o Fifa faz isso muito bem. É interessante ver os jogos na televisão, por exemplo, e depois jogá-los. Jogo de esporte precisa de informação real, colocar espaços do mundo real no jogo é muito importante, como começou a acontecer no jogo Fifa, para que não fique algo muito falso. Outra coisa muito importante é o fator qualidade. Esse jogo é Battle for the Pacific, do History Channel. O History Channel tem um problema muito grave: tem umas ideias de jogo muito boas, mas erram a mão feio. Esse jogo sobre toda aquela questão das Batalhas do Pacífico e o jogo começa com filmes resgatando arquivos do History Channel, é muito legal mas o jogo é uma bela porcaria. Na mesma época saiu esse jogo Call of Duty, uma tremenda ficção, mas o modo como ele retira vídeos reais e usa alguns infográficos para contar toda a movimentação no Pacífico, isso é muito mais legal do que era o do History Channel. É a velha história do fator qualidade: tem que ter qualidade e sobretudo a informação tem que ser pertinente no jogo, não adianta só ter a informação, tem que estar andando, tem que ter uma certa conexão. Uma cronologia da incorporação das informações nos jogos pode ser pensada da seguinte forma: nos anos 70 temos o início dos jogos; nos anos 80 temos a questão da apropriação de coisas conhecidas do mundo real para dar “lastro” aos jogos, mas quando isso começa a decolar surgem jogos como Sonic e Super Mario. Quando a indústria volta nos anos 90, ocorre uma reapropriação da informação com jogos de esportes como Fifa Soccer, e aproximação de revistas com jogos. Nos anos 2000, se tem uma fase de legitimação marcada pelo Guitar Hero, que envolve a necessidade de endossar as guitarras e outros objetos; os anos 2010 são marcados por essa etapa de incorporação da informação através dos jogos. O desafio não é só entender toda essa dinâmica, mas sim entender que existe colisão de rotinas, o jogo é um outro tempo, é um produto com outra vida. Primeiro devemos entender como vamos unir o jogo às rotinas, e assim descobrir como o público se apropriará dele.

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POLÍTICAS E

TECNOLOGIA mediadora: dra. angela maria meili convidados: profa. dra. dilnéia tavares do couto (ueap) prof. me. daniel bittencourt (unisinos) fabrício solagna (governo do estado do rio grande do sul)

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palestra da profa. dra. dilnéia tavares do couto (ueap)

Em função do tema da nossa mesa e o motivo pelo qual fui convidada – porque eu venho da filosofia e estudo filosofia e comunicação – eu tentei abordar um tema que eu acho que, hoje, é um dos mais importantes que nos convoca: a questão da mídia política. Então eu tentei centralizar um pouco a minha fala no deslocamento do que foi o poder da mídia; de uma mídia tradicional e única ao que eu chamo de poder das mídias, o que foi a transformação desse poder midiático ao longo do século XX e, mais especificamente, ao final dos anos 1990 até os dias de hoje. Na filosofia política há uma preocupação, especialmente ao longo do século XX, de entender porquê a opinião pública vem se transformando e como a mídia influencia no processo de formação e transformação da opinião pública. Em função do surgimento da sociedade de massa, do que Theodor Adorno falou sobre a indústria cultural, sociedade de massa, cultura de massa, dentro da filosofia política há, sim, uma preocupação enorme de rever esse conceito de opinião pública. De entender como o processo de transformação midiática influenciou diretamente na reconstrução da noção de opinião pública e, até mesmo, não sei se devo usar essa palavra, mas da desconstrução da noção de opinião pública. Por isso, e pensando neste conceito, um dos principais teóricos que hoje fala desse assunto – e trago ele na minha tese de Doutorado – é Jürgen Habermas, que vem da área da Teoria Crítica também e que nos traz um conceito diferenciado de opinião pública: ele nos fala de uma opinião pública no sentido da qualidade dos discursos que se formam dentro da esfera pública, das esferas de discussão da sociedade civil. Teóricos como Jürgen Habermas, Max Weber, Charles Taylor, Michel Foucault, entre outros, falam como a mídia pode intervir no sentido de “encolher” ou “deslocar” a opinião pública. São críticos fortes ao modelo de mídia tradicional e acreditam que ela contamina a opinião pública, ou melhor, atrofiam a opinião pública.

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Ao estudar e rever o que vem acontecendo atualmente, como o jornalismo on-line e a web 2.0 vêm transformando a noção de jornalismo, vemos que tais teóricos que nos deram as bases, que hoje nos fazem pensar mídia e política e o ativismos político dentro das novas mídias, podem não estar tão enganados. Contudo, há questões que poderíamos colocar para eles, ou seja, temas sobre os quais seria pertinente pensar para além do que esses autores nos disseram; novas questões que nos fazem refletir sobre o que é a opinião pública e como nós podemos entender o novo poder das mídias e o novo poder da sociedade civil dentro das mídias sociais. Eu trabalhei na minha tese de Doutorado três temas, sobre os quais falarei de forma muito breve. Separei três elementos que eu gostaria de discutir, se posso ter a pretensão de discutir, com esses teóricos da opinião pública. O primeiro é a questão da participação. Dentro da Teoria da Democracia um dos temas de que mais se fala é dos modelos e das formas de participar dentro do procedimento democrático. Nesse sentido, vemos o que o próprio Alex Primo gosta de ressaltar: “o que é a web participativa?”, “o que transformou o processo de participação”? Se antes tínhamos uma participação que entendíamos como passiva, hoje podemos falar, sim, de uma participação ativa. Não somente dentro da cidadania e das estruturas mídiáticas, mas, também, da cidadania dentro do modelo democrático de direto. Um exemplo que eu gosto sempre de utilizar é o do jornalismo cidadão, que eu acho que é um referencial importante de fundamento e de entendimento do que é o interesse cidadão pela informação e pela comunicação nas mídias atuais. A questão do jornalismo cidadão também é, para mim, muito importante, pois vivi – e sou grata por ter vivido – o Movimento Democracia Real Já, que surgiu na Espanha, no ano de 2001, e mobilizou o país inteiro através das mídias sociais. Através das mídias sociais, as pessoas começaram a discutir e falar sobre a necessidade de revisar o modelo democrático espanhol. Todas as manifestações homéricas que as pessoas viram nas ruas, que saíram nos jornais, que se falou nos diferentes “espaços” da internet, começaram, sim, dentro das redes sociais; dentro do Twitter e do Facebook. As pessoas se reuniram e se organizaram nesses dois “ambientes” da rede. Então por que a gente pode dizer que a participação mudou? A participação não só mudou no sentido de deslocamento, mas no sentido de entendimento do que é

profa. dra. dilnéia tavares do couto

o conteúdo de participação. A participação não é só ir lá dar um clique e votar: é um processo de reflexão que me faz entender a necessidade de estar ativo no movimento social, de estar ativo dentro de um processo de democratização do Estado, dentro de um processo de repensar meu Estado como tal. E são diversos os movimentos com fins democráticos, poderíamos falar, incansavelmente, sobre vários deles. Será que a participação está representada somente na participação que a mídia tradicional nos oferece? Eu acho que não, eu acho que a participação ganha, sim, novos elementos que convencem a opinião pública e a própria noção de democracia dentro desse novo status, desse novo desenho estrutural da democracia atual. Um segundo elemento que eu também trabalho na minha tese, e que gosto de referenciar quando falo sobre a transformação da opinião pública, é como as novas e as tradicionais mídias têm revigorado os modelos interativos que antes vigoravam somente dentro da mídia tradicional. Se antes tínhamos a interação que o professor Alex Primo falou – e eu o cito várias vezes –, hoje os modelos interativos se revisam em função da possibilidade de relocalização do espaço-tempo. Ou seja, o espaço-tempo se alonga com o uso da internet. A rede nos permite, por exemplo, interagir com uma pessoa que está no Japão ou que eu interaja com alguém que esteja falando sobre as mesmas coisas que eu. Por exemplo, tenho interesse em jornalismo comunitário. Tenho uma comunidade, uma associação de bairro onde trabalho metodologias adotadas pelo jornalismo comunitário e, pesquisando, descobri que o jornalismo comunitário é extremamente forte na Austrália e que, agora, as pessoas estão começando a se conectar entre elas e ver possibilidades de entrelaçamentos de poderes lá. Mais ainda: de construir uma associação e levar novos modelos de jornalismo comunitário para a África do Sul. Ou seja, se não fossem as novas tecnologias de comunicação, talvez não tivéssemos chegado a isso. Quem sabe seguiríamos no nosso pequeno nicho, trabalhando somente dentro dos conteúdos que nos são familiares e não conhecêssemos as reinvindicações, as necessidades que surgem em outros lugares, que nos permitem interagir com outras formas de vida, com outras formas de entendimento e que revitalizam a democracia, que fortalecem a noção de deliberação pública – que é a essência da democracia real, se é que nós podemos falar de democracia real.

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Então, pensando em tudo isso e revendo tais conceitos através de teóricos como Manuel Castells, John Thompson, Peter Dahlgren – um sueco que fala também da democracia e das novas formas de participação democrática através da internet –, de como esses modelos transformam a nossa visão de democracia, a nossa percepção de participação pública dentro dos procedimentos democráticos, o que se pode concluir é que há um novo modelo de poder. Antes falávamos em poder da mídia, dentro de um modelo no qual os teóricos críticos afirmavam que “a mídia é manipulação”, “a mídia é fortalecer o status quo, fortalecer um modelo estético”, e no qual Adorno dizia “não, nós temos que revisar a estética da sociedade, só assim criaremos uma sociedade crítica”. Mas será que existe só esse tipo de poder? Essa é a pergunta que fica para mim, mesmo depois de terminar a tese, e segue martelando na minha cabeça: será que existe somente esse poder? E acho que nesse caso Habermas tem toda a razão do mundo: o poder não é só manipulação, o poder é uma capacidade de intersecção, uma capacidade de intersubjetivação dos conteúdos. E é isso que faz a opinião pública forte, é isso que a permite ser opinião pública. Ela não tem de querer ter poder, não tem de querer ser governo, porque aí ela vai deixar de ter a força que ela deveria ter. A opinião pública tem de ser esses espaços, esses nichos da sociedade civil que se descolocam, que se recolocam em momentos chaves e que vêm a discutir assuntos importantes. Eu estou vivendo em Santa Catarina e não se vocês viram uma série de ataques que aconteceram na semana passada (entre 12 e 18 de novembro de 2012). Houve um problema nos presídios de Santa Catarina e, em função disso, os criminosos começaram a queimar ônibus, dar tiros em delegacias de polícia, etc. O que é que isso está gerando? Eu vi ao longo da semana três coisas que me chamaram a atenção: as pessoas estão discutindo a estrutura carcerária de Santa Catarina, que fazia muito tempo que não se discutia; está surgindo uma pressão enorme sobre as estruturas políticas catarinenses para rever a localização dos presídios e a forma como os presos são tratados – ou seja, não estamos apenas vendo de fora, estamos vendo a estrutura carcerária desde dentro; estão falando da importância de rever a segurança no transporte público – tudo isso está saindo tanto no Twitter, quanto no Facebook, e está levando esse tipo de discussão também para as páginas web dos meios tradicionais de comunicação e para os próprios periódicos e jornais

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impressos. Ou seja, nós estamos formando a opinião pública, estamos trazendo temas para a discussão pública. Em Santa Catarina, há pelo menos 10 anos não se falava sobre o sistema carcerário do estado, e, hoje, está sendo rediscutido em toda a mídia. E por que está se rediscutindo? Porque as pessoas estão interessadas em saber o que está acontecendo com os presos dentro do sistema carcerário. Isso é sociedade civil, isso é opinião publica e isso é mobilização política via internet. Se podemos falar de um novo poder, e eu acredito que, de fato há, é o das mídias. É o poder de intersecção midiática que vem da mídia tradicional para as mídias alternativas e das alternativas para as tradicionais. O teórico australiano, John Keane, fala de um modelo de democracia de monitorização dos poderes instituídos. Para o autor, a abundância midiática favorece o controle e o monitoramento do poder instituído. Então, esse poder instituído monitorado pela sociedade civil gera um novo poder, o poder da sociedade civil. Nós, como sociedade civil, como opinião pública, realimentamos ou repensamos o poder juntos, as novas formas de comunicação e do jornalismo. Podemos discutir se o jornalismo cidadão é ou não jornalismo, se a cidadania faz informação de interesse realmente jornalístico, se a qualidade do conteúdo é igual ao conteúdo profissional, etc. Na minha opinião, é indiscutível a importância do conteúdo que essas pessoas aportam para a formulação de um espaço que, antes, era exclusivo de uma mídia tradicional. Acho que essa é uma discussão importante e um tema que nós temos de pensar enquanto comunicadores: como a mídia tradicional precisa repensar sua relação com as mídias alternativas, tendo em vista sua função de formadora e geradora de opinião pública. Dentro desse novo contexto, pensando todas essas potencialidades, vemos que se antes tínhamos só o poder da mídia tradicional, agora temos o poder das mídias, e, trabalhar com eles, é trabalhar com a realidade. É uma outra forma de pensar, na minha opinião, a realidade, levando em consideração que a sociedade civil tem o poder de comunicar.

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palestra do prof. me. daniel bittencourt (unisinos)

Eu tenho uma formação na academia, hoje estou em um programa de pós-graduação, mas também tenho uma atuação forte no mercado, e minha preocupação é sempre procurar o melhor desses dois mundos. Procuro entender como a gente constrói conceitualmente novas abordagens sistêmicas para problemas que nos afetam cotidianamente, mas, ao mesmo tempo, construir isso de maneira que ela possa ser apropriada pelas pessoas. Eu gosto muito de tecnologia, e me incomoda muito, por exemplo, na pesquisa básica na área da computação, que nem sempre ela consegue traduzir-se de forma a ser consumida de uma maneira fácil pelas pessoas. Eu tenho traduzido pela forma como tenho me reinserido no mercado de trabalho depois da minha participação na Unisinos. Acabei montando uma empresa chamada Lung que é uma empresa de quarto setor, setor do qual se fala muito pouco ainda no Brasil. Ela tem um propósito social, uma perspectiva diferente de uma empresa tradicional que visa o lucro: ela se engaja em determinadas questões e, no nosso caso, os projetos que a gente se envolve são projetos de engajamento visando uma solução real. Como isso acontece na prática: a gente basicamente montou um modelo e nos organizamos a partir deste modelo que tem uma concepção focada no design. A gente desenvolve um método (isso sim acho que é nossa grande contribuição), que faz com que as pessoas efetivamente se apropriem dessas tecnologias, utilizem essas tecnologias de modo a construir uma transformação social. O difícil é a gente conseguir construir isso de maneira que seja um projeto quase naturalizado. A professora Dilnéia estava falando sobre uma série de perspectivas dentro da academia, como a mídia de alguma maneira também tenciona a agenda de mobilizações sociais. De fato, a gente está vivendo uma primavera, trazendo este

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tema para cá, onde efetivamente as pessoas estão se alfabetizando em como se remobilizar a partir das novas tecnologias e das plataformas móveis, dos sites de redes sociais, e como isso tem se tornado ferramentas de transformação e ferramentas políticas efetivas. Então, nos dois últimos anos nós criamos uma enciclopédia sobre a cultura gaúcha, que funciona através de colaboração e de referências geográficas, onde a gente procura construir uma rastreabilidade das palavras da cultura gaúcha: onde as palavras são ditas, como elas são expressas, como a gente arquiva, torna perene a pronúncia de uma cultura. Esse projeto tem uma visão bastante vertical, que é de procurar reconstruir uma trajetória que está na oralidade. A gente também construiu em 2010 um projeto chamado Redenção.cc. Academicamente, nós construímos um conceito chamado wikispot, a junção de uma perspectiva de um lugar territorial físico, vocês todos estão acostumados com os conceitos do Pierre Lévy, das locações virtuais, dos territórios digitais, como a gente utiliza a potência deste território para efetivamente construir a história daquele espaço através da colaboração, não apenas em texto, mas também através de uma fala, de um discurso, de uma imagem, de um vídeo, ou uma colaboração de qualquer outra ordem. Então como se utiliza aquele território? Como é que se emanam os sentimentos em torno de um território localizado dentro de um espaço que a gente circula – ao invés de se contar a história através da ótica de alguém que é o historiador? Como a gente articula todas as emoções das pessoas para que estas sejam convergentes naquele espaço e se encontrem em um espaço de diálogo da construção daquele lugar? Então, esse é da Unisinos, de 2010, que tem um impacto de dois milhões e meio de pessoas em redes sociais e foi o embrião de teste, de imaginar que um conceito acadêmico que articula uma série de outros conceitos (é quase um metaconceito), que vem do Thompson, vem do Humberto Maturana, vem do Pierre Lévy, do Edgar Morin, e que nós precisamos articular estes conceitos dentro de uma plataforma colaborativa que pudesse trazer pessoas para que elas contassem as suas histórias dentro deste projeto. Este projeto tinha uma duração finita e um território finito: uma duração de dez semanas e uma extensão territorial que vocês conhecem, que

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é aquele quadrado da Redenção. Então nós acabamos sendo estimulados a pensar como esse conceito testado e que tinha impactado tanta gente em uma ação tão curta poderia ser pensado para um território maior. E aí a gente começou a pensar na perspectiva de um território muito maior do que o parque e ao mesmo tempo sem um espaço-tempo predeterminado, não tem fim. Uma plataforma que pense, discuta, exponha, por exemplo, mazelas e potências de um território, de uma cidade, que é o caso do Portoalegre.cc. Esse projeto foi lançado em 24 de março de 2011 e, em 2012, chegou a quase três milhões de pessoas apenas pelo Facebook. Existem mais de 1.600 ideias colocadas em cada um dos pontos da tela. Cada um dos pontos, cada colaboração, pode ser um problema, pode ser uma sugestão a ser implementada na cidade. Tem uma taxonomia em três categorias, e as pessoas adicionam outras formas de classificação dessas informações. A gente consegue, dentro daquele espaço territorial, construir no tempo de março a junho de 2011 quais são as causas mais importantes daquela plataforma. A gente consegue classificar tematicamente, em uma segunda dimensão, quais são as causas mais acessadas, as mais publicadas. Surpreendentemente, a preocupação mais forte nas cidades brasileiras não é a segurança pública, mas a mobilidade urbana – todos nós perdemos hoje muito tempo em deslocamento e as principais causas do projeto circulam em torno dessa temática. Outra questão é conseguir perceber quem são os agentes de cada uma dessas ideias, os mobilizadores, que fazem com que essas ideias sejam conectadas nas principais redes sociais e blogs ou não e que vivem essas transformações. Para isso, existe o método que nós construímos para que cada uma dessas ideias saísse do território. Para isso, a gente criou um modelo que pode ser aplicado em qualquer território, pode ser aplicado em Alvorada, pode ser aplicado em Fiji, pode ser aplicado em Hong Kong, que é o conceito de wikicidade. Ele não é novo, é um conceito que já foi trabalhado pelo MIT há alguns anos, mas a gente trouxe uma perspectiva diferente. Assim como um ambiente wiki, a cidade pode ser pensada colaborativamente nessas perspectivas das condições, as condições dos afetos, as condições das transformações, da maneira como cada uma das pessoas se enxerga como agente político.

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Essa ação política não precisa ser desruptiva, não precisa necessariamente ser contínua. Eu me formei politicamente em uma época que a nossa adesão à causa não necessitava um grande esforço, uma grande cota de sacrifício. Hoje a gente percebe que existe toda uma perspectiva de participação política que é temporal: eu me engajo, eu crio hubs de mobilização que acontecem em um determinado espaço-tempo, se dissolvem, e não se consegue enxergar quem são os líderes desse processo. É um pouco dessa lógica, que é a lógica de fazer política dessa geração Y que a gente está trazendo para cá. Então, o conceito de wikicidade está muito calcado em uma questão identitária das pessoas com o território: se elas não se identificam com o território, elas não se preocupam, não buscam a recuperação ou mesmo conservação do território da mesma maneira que a gente tem um cuidado com as nossas coisas dentro de casa. Em que medida a gente consegue levar esses valores de preocupação com o próximo, de modo que a perspectiva do outro é uma perspectiva com o qual eu também deveria estar preocupado? A gente vem trabalhando nessa perspectiva, nessa construção de wikicidade, que essa não é a wikicidade do prefeito, a wikicidade do presidente da câmara, ou do empresário importante. Essas três figuras, da perspectiva de uma plataforma colaborativa horizontal, têm o mesmo peso e a mesma importância. Se o governador Tarso Genro se torna usuário dessa plataforma ele tem o mesmo peso, em tese, dentro da plataforma que um usuário que não foi eleito para um cargo. Talvez se os agentes políticos que se utilizam dos sites de redes sociais conseguirem compreender melhor as dinâmicas eles levem vantagem em relação aos políticos que tem uma tradição de formação diferente, em outros espaços. O conceito basicamente orbita em torno da questão da colaboração, da transformação, do engajamento, da constituição de hubs. Equivocadamente, acabamos colocando uma tag chamada de movimento. Ele não é um movimento, na aplicação do caso da wikicidade ele é um metamovimento. A perspectiva de uma wikicidade é que ela seja um lugar de conexão de pessoas com organizações não governamentais, entidades de primeiro e segundo setor, de modo a construir projetos de transformação. Nesse sentido, tem uma perspectiva sim política muito forte, não

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é uma perspectiva partidária, pelo contrário, é uma perspectiva suprapartidária, de inclusão, não é de afastamento da discussão. Quem vem entrando nessa área percebe muitos movimentos que estão surgindo que dizem “não, se tem governo eu não converso”, que eu acho muito precária essa constituição de pequenos guetos de discussão, de “este aqui é o lugar da minha atuação”. O Fabrício Solagna criou uma inciativa muito interessante no começo do ano chamado de observatório da comunicação em rede, que é para convencionar exatamente estas experiências que vem acontecendo e o Rio Grande do Sul vem sendo próspero nessas experiências. E a gente está aqui em um evento de um programa de pós-graduação para se debruçar sobre essas experiências, a gente está vivendo um novo momento e o Rio Grande do Sul está muito à frente de qualquer outro estado brasileiro nesta perspectiva. Então, a wikicidade trabalha com essa dimensão da política hoje ou de como encantar as pessoas para uma participação política e perceber claramente que, atualmente, grande parte das discussões acontece dentro de sites de redes sociais. A gente percebe, por exemplo, que Porto Alegre tem uma tradição de democracia participativa que é referência no mundo, mas infelizmente apenas 1% da população participa das assembleias de orçamento participativo e das instâncias tradicionais de participação política. Isso quer dizer que talvez os outros 99% não sejam politizados ou não estão preocupadas com as discussões sobre a sua cidade? Essa hipótese não é verdadeira! As pessoas estão efetivamente preocupadas, estão discutindo, estão debatendo a cidade cotidianamente, e isso não acontece só a cada dois anos, na época de eleição. Elas acontecem em toda a cidade. Se eu pegar uma lotação as pessoas estarão discutindo as coisas que acontecem dentro de uma cidade. As coisas que importam para as pessoas é a escola, a avenida, a segurança, a saúde - e isso ocorre no espaço da cidade. De que forma a gente tira proveito dessas conexões que os sites de redes sociais permitem e ao mesmo tempo conseguem trabalhar com o conceito, acho que é do Catani, de social media analytics in real time (análise de mídia social em tempo real)? Como se consegue extrair informações que são capazes de direcionar investimentos públicos, políticas públicas, perceber que o agente político pode ser pressionado por essas questões? E que basicamente são resumidas em quatro

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segmentos: segmento público (primeiro setor), segmento empresarial (segundo setor), segmento das organizações não governamentais (terceiro setor) e o nosso espaço (quarto setor), que ora somos órgãos políticos, ora nós somos empresariais, ora somos pessoas que tem uma participação em outras organizações, mas somos todos cidadãos. O mais importante é que sem essa percepção de que somos ao mesmo tempo agentes e agressores de um mesmo ecossistema, nós não vamos sair do lugar. Boa parte do lixo que está nas ruas é produzido por empresas que não tem toda essa preocupação ambiental, depois esses produtos são levados para uma cadeia de comércio que também poderia produzir menos resíduo e caem nas nossas geladeiras ou nas nossas casas - boa parte dos gases que danificam a camada de ozônio provêm dos alimentos que a gente deixa de consumir. Constitucionalmente, alguém tem que resolver esse problema do lixo: a prefeitura, o poder público. E como a indústria se engaja nesse processo? Como eu, cidadão, contribuo para que isso não seja agravado? Então, quando uma tempestade acontece na cidade e a gente fica ilhada, seja na universidade, seja dentro do carro, naquele momento eu sou vítima de uma situação, mas eu fui um agressor daquele sistema na medida em que eu não executei meu papel nesses três momentos. Como a gente percebe que é preciso ter um outro olhar dessa perspectiva? O Fabrício, que está aqui, é do Gabinete Digital. Não adianta a gente demandar todas as questões para o governador, da mesma maneira que não adianta eu demandar todas as questões para o prefeito. Agora, o cidadão tem que tomar pé dessa circunstância e assumir que ele é parte dessa solução também, não é só parte do problema. Agora eu gostaria de apresentar alguns dados sobre o PortoAlegre.cc. Construímos a primeira wikicidade do Brasil. São quase três milhões de pessoas impactadas potencialmente todos os dias pelo Facebook do projeto, são três mil fãs no Facebook e uma rotina de discussão da cidade muito intensa dentro daquele espaço. Vocês podem acessar a fanpage no Facebook. Como é que a gente funciona dentro da mecânica? Muitas das discussões nascem das publicações que são produzidas pelo projeto, nascem feitas na plataforma, nas-

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cem de estímulos que vêm da imprensa, de coletivos que monitoramos, e passamos para voluntários onde o método de organização das demandas se faz por design thinking. Ou seja, organizamos as pessoas por regiões da cidade, distribuímos uma série de causas do projeto e as pessoas discutem soluções para aqueles problemas. A partir desta perspectiva se montam os projetos. Cada vez que alguém publica uma causa no projeto, nós conseguimos construir uma conexão entre o projeto e a prefeitura de Porto Alegre de forma que se aquela causa tem relação com um serviço público, demanda um serviço público municipal, a pessoa pode, na hora do cadastro, enviar aquela demanda para o poder público. Faltou água, caiu uma árvore, abriu um buraco, a sinaleira estragou, a pessoa publica e ela é perguntada se quer enviar essa causa ao Fala Porto Alegre, ao 156 – então ali aparece o dia que aquela causa foi cadastrada, o número do protocolo do atendimento e o status de andamento daquela causa. As discussões são estimuladas pelas pessoas a partir da publicação das causas. Para encerrar, eu gostaria de falar sobre como essa tecnologia e esse método ajudaram para que algumas causas ganhassem visibilidade na cidade. Tem uma causa, coincidentemente criada por uma aluna da Unisinos, que visitou uma praia da zona sul, percebeu que estava suja, publicou no Facebook que aquele lugar estava com muito lixo e uma pessoa que trabalha conosco viu e a estimulou a publicar no PortoAlegre.cc. Dez dias depois foi organizado um mutirão com oitenta pessoas e uma tonelada de lixo foi recolhida em dois quilômetros de praia limpos. O bacana é que essa inciativa aí é que outros 8, 10, 12, 15 mutirões foram organizados com a mesma perspectiva. Então as discussões têm uma intervenção quase do ponto de vista da acupuntura: a gente escolhe um ponto e faz com que as pessoas despertem para aquela perspectiva de ocupação. Teve também o piquenique da Praça Japão, uma praça que não tem tido uma utilização importante nos últimos tempos: ela tem servido muito como estacionamento para os escritórios de advocacia e para as duas concessionárias de carros da região. E a gente organizou esse piquenique em 17 de março de 2012 e duzentas pessoas apareceram no horário que a gente marcou para que elas estivessem lá. Engraçado é que nos eventos que nós organizamos as pessoas perguntam “o que a

prof. me. daniel bittencourt

gente precisa levar?”, “o que vão fazer?”. Eu respondo que vamos sentar na grama, aproveitar o sol, conversar com as pessoas, interagir com elas. Se a cidadania não ocupar esse espaço, a gente sabe quem vai ocupar: o crime, o tráfico, a prostituição irão ocupar. Talvez o grande desafio do Rio de Janeiro seja definitivamente revisar a ocupação militar e construir uma ocupação de cidadania desses espaços, como entra a educação, a saúde, a escola, nesses lugares. Outro exemplo é de um local que eu tenho um carinho muito forte, uma antiga fábrica de objetos de decoração na Zona Sul, que até 2005 abrigou o Fórum de Justiça da Tristeza, estava abandonada desde 2007 e um grupo de moradores locais vinha reivindicando a construção de um círculo cultural no espaço. Uma moradora viu o piquenique na Praça Japão e, como a plataforma tem muito de autogestão, ela organizou o piquenique no local que reuniu mais 200 pessoas no mesmo lugar, o que chamou a atenção da imprensa. Esse prédio era de posse do Governo do Estado, que depois de dois meses cedeu parte deste prédio para que o grupo construísse um centro cultural naquele espaço. Paradoxalmente, a Zona Sul abriga vários artistas gaúchos e não tem nenhum espaço cultural aberto para as pessoas. Encerrando, nós fizemos duas ações colaborativas com outros grupos em junho de 2012, todas organizadas através de sites redes sociais, organizadas na Redenção de maneira a propor a ocupação de espaços públicos também à noite. Hoje a gente percebe a constituição de piqueniques noturnos no Parcão e na Praça da Encol, que foram encorajados a partir da ocupação destes espaços por pessoas como nós. Na primeira ação duas mil pessoas participaram e, na segunda ação, quatro mil pessoas participaram, sem baderna, distúrbios ou ocorrência de crimes: as pessoas se divertiram, trouxeram seus amigos e ocuparam o espaço como um exercício de cidadania.

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palestra de fabrício solagna (governo do estado do rio grande do sul)

Eu gostaria de falar sobre duas dimensões que, para mim, são essenciais para pensarmos iniciativas como a que nós realizamos, o Gabinete Digital.1 Tais aspectos se interconectam, porém, no nosso mundo ainda em transição, talvez eles ainda pareçam, e são vistos, em camadas separadas. A primeira dimensão seria pensar esse momento em que a tecnologia e os aparatos tecnológicos influenciam os meios de comunicação e os meios de mediação e o que eles, de fato, modelam. E como eles são diversivos à medida que vão construir uma nova esfera pública ou modelar a esfera pública tal como a conhecemos. Se, de alguma maneira, nós temos constituído, através deste novo momento, uma esfera pública interconectada, com oportunidades jamais imaginadas na época da sua conceituação, no século XX – ou, talvez, uma esfera pública no seu momento da opinião de massa –, também vimos surgir problemas nunca antes pensados, como, por exemplo, as formas e os aparatos de regulação para que essas novas possibilidades de comunicação aconteçam. Eu chamaria a atenção para o que alguns autores chamam de modulações da esfera pública e trago, pontualmente, três perspectivas para se pensar a dimensão da política. A primeira modulação é a de tempo, que vai fazer com que essas novas oportunidades nas quais se têm meios digitais que permitem uma comunicação, agora, dialética, vão formar uma esfera pública interconectada e totalmente diferente de uma esfera pública dos séculos XIX e XX, em que dimensões assimétricas apareciam

O Gabinete Digital sofreu mudanças na gestão do Governador José Ivo Sartori, que tomou posse em janeiro de 2015. 1

fabrício solagna

muito bem demarcadas. Não é que não existem assimetrias na própria esfera pública interconectada, mas essas assimetrias são de outra dimensão e de outra natureza. A segunda modulação diz respeito ao fato de que, agora, há uma nova camada técnica que é o mediador da esfera pública. A grande questão colocada para a esfera pública contemporânea é: se, antigamente, o objeto de análise, isto é, nosso objeto de preocupação eram os próprios meios – porque esses eram os responsáveis por estabelecer a intermediação cultural e mesmo a comunicação entre os cidadãos e as visões de mundo e de sociedade –, agora nós temos meios técnicos mediando essa capacidade, mesmo que dialógica. Se você tem outro ator mediando, esse mediador também tem um papel cada vez mais fundamental para ditar as regras do que pode e o que não pode circular nesses novos meios. E, por último, a Gabriella Coleman, que também é uma pesquisadora do campo do software livre e de como a internet se coloca como um mediador contemporâneo – mais recentemente ela tem estudado o grupo Anonymus, como antropóloga –, coloca este momento atual como metáfora e ironia de ascensão das práticas colaborativas e, também, como momento de uma escalada a legislações punitivas. O que são essas legislações punitivas e por que eu trago isso? Porque essa é a esfera da política como conhecemos de uma forma mais tradicional e que ela permeia e muitas vezes povoa – assim como nós tentamos povoar – essa nova cultura. Essa forma de povoamento do modelo tradicional é muito presente e talvez até determinante. Por que ironia? Porque, talvez, nós constituímos toda essa capacidade de criar ambientes mais descentralizados de percepção e de relação, de construção de valores, conceitos e ação, mas também talvez seja um momento de criar e utilizar legislações mais duras contra isso. Por exemplo, no Brasil, nós tivemos a proposição e, depois, uma transformação e aprovação em uma esfera muito menor, por atuação nossa, do AI Digital. Talvez vocês tenham visto no início deste ano de 2012 a circulação do SOPA (Stop Online Piracy Act) e do PIPA (Protect IP Act) no cenário americano, que eram legislações justamente que previam a regulação da internet, com a ideia de filtrar a informação que iria circular desde então. Talvez a maior mobilização já vista na internet e uma mobilização política (não tradicional), pois estava dizendo como os participantes desse meio de mediação, no caso a internet, gostariam que ela fosse.

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E, por fim, vou trazer o caso do Gabinete Digital, do qual eu faço parte. Como a gente atua neste mundo em que paradoxos são tão evidentes e tão díspares? A primeira percepção é de que, se nós temos esses enfrentamentos, precisamos considerar que um discurso, que é o discurso do openess – discurso da abertura, da colaboração – venceu em relação aos outros. A grande pergunta, então, é de que formas ele venceu? Ele venceu para – e aqui eu coloco uma provocação – nós podermos ir lá no site da Fiat dizer como queremos que seja o novo carro da Fiat, que talvez eu nunca vá conseguir pagar? Ou serve para construirmos formas cada vez mais inovadoras de relações políticas entre governo e sociedade (como o Daniel expressou na sua apresentação)? Esse discurso de abertura ele realmente é para que eu possa ir lá e escolher entre as opções que a TV a cabo me dá e chame de interativo ou eu consigo construir políticas públicas através de espaços cada vez mais abertos e colaborativos, que permitam a construção de fato de políticas bottom-up, feitas de baixo para cima? Essa é a grande questão, que na verdade não é nem a questão, mas os experimentos que nós devemos fazer a partir de agora no Gabinete Digital. O Gabinete Digital é um site de participação do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, ligado diretamente ao gabinete do governador do Estado. Ele é, desde seu início, um canal de comunicação direta entre a população e seu governante. Para fazer essa conexão, o mais fundamental são as metodologias, porque essa comunicação não pode se dar de forma caótica. A comunicação, por si só, quando cada um fala simplesmente o que quer e as pessoas saem com a mesma visão de mundo, não é comunicação, ela não estabeleceu consenso. O mais difícil é imaginar esses canais que possam trazer esses novos princípios. Essa é a nossa terceira versão do Gabinete Digital. Talvez para vocês seja muito comum a inovação, mas é bastante incomum ter esse nível e essa velocidade de inovação no ambiente público. O nosso desafio foi imaginar ferramentas que fizessem essa intermediação e tivesse uma metodologia capaz de proporcionar isso. Uma das ferramentas é o Governo Responde, que eu chamaria de uma ouvidoria, na verdade é uma forma de atendimento à população: as pessoas vão lá, cadastram perguntas

fabrício solagna

ou esclarecimentos para o governador e é mais voltada para uma comunicação via e-mail. O Governo Escuta, não era nada mais que audiências públicas digitais, via internet, com chat, em que o governador respondia e esclarecia, uma comunicação com quem não estava presencialmente. A gente continua com elas, elas não findaram. Outra ferramenta é o Governador Pergunta, que talvez, acredito, tenha sido a mais acertada dessas ferramentas, pois possibilita pensar e construir politicamente a partir de grandes massas (não no sentido do século XX, de receptores passivos desinformados) que são estimuladas a pensar sobre aquilo e têm opinião sobre aquilo, que talvez nós não tivéssemos uma metodologia para expressão disto. Vou falar um pouco sobre como funcionou esta última edição do Governador Pergunta, que aconteceu de 09 de outubro a 06 de novembro de 2012. Bom, já tinha sido feita uma edição no ano passado, 2011, sobre saúde pública, e este ano nós tínhamos um plano estadual de combate à violência no trânsito, pensando a partir dessas experiências que ocorreram no estado e colocando as questões estratégicas. O Governo do Estado pensou em mostrar essas ações estratégicas para que as pessoas nos digam quais devem ser as dez prioritárias para o Governo do Estado para os próximos dois anos e, ainda, enviar as suas proposições para verificar se essas propostas faziam sentido para as pessoas. Aí nós criamos uma campanha, perguntando “como o governo e a sociedade podem juntos promover a paz no trânsito?”, justamente colocando que não é apenas o governo que quer resolver, não estávamos ali nos propondo a resolver todos os problemas do trânsito em dois anos, mas sim como pensar em soluções e colocamos essas propostas para votação. Talvez a maior diferença do Governador Pergunta tenha sido a forma como nós colocamos estas propostas para a votação. Quando as pessoas entravam no site, eram apresentadas com duas propostas uma ao lado da outra, em que a pessoa poderia escolher uma em relação à outra, ou poderia dizer que não conseguia decidir entre uma delas e um outro par aleatório de propostas sorteadas era apresentado ou a pessoa poderia colocar sua própria ideia. Essa metodologia na verdade foi adaptada

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de um projeto americano, que já foi testado em diversos países, sempre em situações específicas. Na verdade o projeto foi criado em Princeton (EUA) pensando uma boa formulação, um método, pensando tecnologias para se fazer crowdsourcing de boas ideias. No caso americano, nós tínhamos uma tela muito parecida, mas que adaptamos desde o design até uma parte da metodologia. Por exemplo, no caso americano, as ideias eram comparadas entre todas e nós aqui às separamos por categorias – ou seja, ideias sobre educação junto a ideias sobre educação, legislação junto à legislação, para também dar um maior equilíbrio à discussão. O que exatamente é inovador nesta nova tecnologia? Todas – ou quase todas  – as formas de participação em que há voto, ou que há escolha, se tem diversas maneiras de limitação na forma como as pessoas participam, como, por exemplo, cada pessoa poder votar apenas uma vez. Esse projeto é o contrário. As pessoas podem votar quantas vezes quiserem. Não há limite, justamente porque o sorteio aleatório de pares permite que não haja repetição. Esta metodologia serve para priorizar questões. Ela serve para o público dizer propostas mais importantes. As dez questões escolhidas como prioritárias não foram eleitas só pelo número de votos, mas pela pontuação, dada pelo número de vezes que a questão vence no jogo. Isso nos deu resultados muito interessantes: primeiro que propostas muito absurdas (houveram propostas sugerindo que para acabar com o problema do trânsito pessoas com mais de quarenta anos não deveriam dirigir) não chegaram nem perto de estar entre as dez mais votadas. Com este sistema, tanto na primeira quanto na segunda edição, as propostas mais generalistas foram as mais bem votadas. São propostas que preveem a redução de impostos para quem é mais responsável no trânsito, ampliação de estradas para que os pedestres fiquem mais seguros. Enfim, ações generalistas, mas com um sentido lógico muito fundamental. O crowdsourcing também nos traz o bom senso. Por mais que se pense o contrário, o bom senso se dá por maioria e não por minoria.

fabrício solagna

O que é mais importante é que tudo é passível de verificação: era possível verificar em cada questão apresentada quantos votos ela ganhou, em que dia, sobre o que ela é (se é sobre segurança aviária, se é sobre educação, se é sobre saúde), também como uma forma de transparência da própria ferramenta. Ao longo do tempo, os processos de votação precisam criar suas regras, e essas regras verificar se elas eram de fato passíveis de verificação. Acho que nos processos digitais isso também é fundamental: possibilitar ao cidadão a verificação dos processos. Uma das características fundamentais que trazemos aqui é a capacidade de retorno: tivemos, em um período de 31 dias, 240 mil votos acumulados na plataforma e mais de 2,1 mil contribuições enviadas. Essa talvez seja a maior consulta pública realizada no Brasil, em termos numéricos. Como construímos isso? Primeiro, pensando que não se constrói apenas através do digital, pois outras ações também são muito importantes. E, uma delas, foi a utilização de duas vans que percorreram a região metropolitana e cidades do interior – foram 22 cidades e mais de 1,5 mil km percorridos –, dialogando com as pessoas nas ruas, nas escolas, nos espaços públicos. E, também, atividades presenciais em escolas e, até mesmo, na Balada Segura – uma blitz aplicada para conscientizar as pessoas sobre o perigo de dirigir alcoolizado. Em primeiro lugar, quando pensamos as implicações das plataformas digitais, a esfera pública interconectada no campo político que agora é modulada por conceitos técnicos em seu contexto digital, devemos apontar três condicionantes importantes e que nós levamos em consideração para construir o Gabinete Digital. A primeira delas é o que se entende pela capacidade recursiva, ou seja, a capacidade do autor quando suas ferramentas são produzidas e disponibilizadas como software livre. Esta talvez seja uma das principais formas de dizermos para a população que, se você quer ter isso, se isso realmente é efetivo, ou se você quiser reproduzir isso em outro lugar, você pode fazer porque tem esse poder. A segunda questão são os modelos de escolha que são fundamentais para sairmos do primeiro passo em relação à participação digital. Um exemplo disso é a utilização apenas de enquete do tipo “qual você gosta mais?”, desta forma

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utiliza-se pouco da capacidade de captação da inteligência coletiva, algo que nós procuramos com a internet. O terceiro e fundamental são os níveis de efetividade da própria política e da ciência política, que significa que se não ofertarmos à população essa possibilidade de escolha – neste caso ofertamos a possibilidade de escolher as dez prioridades para o trânsito para os próximos dois anos e as prioridades para a saúde nos próximos quatro anos –, o ambiente de discussão política na internet não se torna produtivo. Em qualquer meio você precisa estimular a efetividade da ação e no caso da ação política, como propomos no Gabinete Digital. Então, talvez esses sejam os três nortes do Gabinete em tão pouco tempo, mas há muito para aprender. Porém, o projeto está aí e estamos totalmente dispostos a apoiarmos e também sermos agentes para que ele se torne um exemplo para outros projetos no Brasil.

MO B I LI DA D E , INTERAÇÃO E CO G N I Ç Ã O mediadora: me. sandra mara garcia henriques convidados: profa. dra. suely fragoso (ufrgs) prof. dr. cristiano costa (unisinos) prof. dr. roberto tietzmann (pucrs)

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palestra da profa. dra. suely fragoso (ufrgs)

O tema central do meu trabalho, há muitos anos, tem sido o espaço; as concepções, percepções, os modos de apresentação. Nós, hoje, já ouvimos falar, exaustivamente, que as tecnologias, em geral, afetam nossa relação com o espaço. Mas a ideia de que as tecnologias tornaram irrelevante o espaço físico e geográfico nunca me convenceu. Se o espaço não importa, por que eu vim dirigindo até aqui para falar com vocês em vez de usar o Skype? Então, partimos do pressuposto de que o espaço importa, sim.

Esse primeiro mapa1, que mostra a linha do Tratado de Tordesilhas, acabou despertando o meu interesse. É um mapa muito significativo, apesar de ser um pouco posterior à data do Tratado. Portugueses e espanhóis estavam dividindo uma terra que não sabiam que existia. Isso me levou a pensar bastante. É um momento na história da humanidade em que as pessoas mudaram de comportamento com relação ao espaço. E essa representação do Tratado de Tordesilhas, em especial, significa para mim essa forma que está começando a aparecer de compreender o espaço. Explicações típicas para isso são muito parecidas com o que nós temos agora. A primeira explicação é de que, por meio da tecnologia (de navegação, de cartografia), as pessoas daquela época conseguiram atingir outra terra; e isso mudou a sua relação com o espaço. As tecnologias chegaram à Europa, com as Cruzadas, vindas do Oriente. Antes, os países detentores dessas tecnologias nada fizeram. Então, essa explicação não convence. A segunda explicação parte de um ponto de vista econômico, como a tipicamente marxista, de que a disputa por terras foi motivada pelo dinheiro. Era o

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Planisfério de Alberto Cantino, feito entre 1500-1502.

profa. dra. suely fragoso

período do mercantilismo, Espanha e Portugal precisavam cada vez mais de terras para recolher ouro e prata e acumular mais riquezas. Essa história é tão verdadeira quanto a da tecnologia, mas também falta alguma coisa. O que eu vou defender aqui é que esses são fatores importantes, mas que o mais importante de tudo é o papel extremamente ativo das pessoas, no sentido tanto individual quanto coletivo, tanto da cognição quanto da cultura. A mudança do modo de pensar a relação homem/espaço causou o desenvolvimento daquelas tecnologias e provocou a possibilidade do mercantilismo. Isso, portanto, levou a todas essas alterações. No fim, foram as pessoas e a cultura que provocaram esses acontecimentos.

Figura 1: Geographia. Cópia (datada do século XV) de mapa de Claudio Ptolomeu (séc. II).

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Vinte anos antes do mapa das Tordesilhas, o mapa das Ecumenes (que quer dizer: “A Terra Habitada”) servia de representação do mundo. Esse mapa (Figura 1), na verdade, só representa as terras habitadas e conhecidas, pois as desconhecidas não eram representáveis. Esse mapa foi criado no final do século XV e foi baseado no modo de representar do século II, mas com incorporação de coisas novas. O que vai favorecer a preferência por essa representação, sobretudo naquele momento, é a disposição do Hemisfério Norte acima. E isso é muito diferente dos mapas da época, que eram tipicamente orientais e, na maior parte das vezes, posicionavam o Hemisfério Sul no alto.

Figura 2: Planisfério, Fra Mauro, 1450.

Esse é um mapa de 1450 (Figura 2), feito por um monge europeu, no qual o Sul estaria acima. Hoje em dia, é comum encontrar esse mapa colocado de cabeça para baixo, com o Norte para cima. Na verdade, se vocês olharem bem as figuras ao lado do mapa, os desenhos no próprio mapa, o Norte já estava mesmo acima; e o Sul, abaixo, o que mostra que já havia toda uma lógica cultural instaurada. Esse mapa, do Fra Mauro, também é um mapa de Ecumenes, de terras conhecidas. O que é desconhecido aparece como o paraíso, o que é uma representação positiva, mas inatingível, fora do mapa. Ao sul do mapa, aparece o desconhecido acessível, no caso indicado pela “ilha dos dragões”, que não é muito visível nessa imagem devido

profa. dra. suely fragoso

aos muitos detalhes e à resolução. A associação é a seguinte: terras desconhecidas são perigosas. Voltando à cópia do mapa do Ptolomeu (Figura 1), que mostrei há pouco, também as indicações de lugares inexplorados fazem referência a elefantes, hipopótamos e canibais. O que isso quer dizer é que terras desconhecidas não são lugares para onde devemos ir. E o que eu estou querendo mostrar é que quando fazemos esse tipo de representação, dizemos que o que é habitado, conhecido, é que pode ser considerado seguro. Já quando olhamos para o mapa que usei lá no começo, o do Tratado de Tordesilhas, notamos que, em vez de esse mapa chamar atenção para as terras conhecidas, são as terras desconhecidas que são apontadas. É dessas mudanças de mentalidade que eu estou falando. Esse mapa é o símbolo de uma mudança de mentalidade, que, em menos de um século, leva a um dos primeiros mapas que aparecem na Europa, já no período moderno.

Figura 3: Typus Orbis Terrarum, In Theatrum Orbis Terrarum. Abraham Ortelius, 1570.

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Esse mapa (Figura 3) mostra bem a diferença abordada. É do século XVI; é o mesmo estilo de mapa que nós usamos até hoje (Figura 4). Muito pouco mudou entre aquela projeção e a projeção que usamos hoje.

Figura 4: Mercator.

Há alguma coisa aqui que mantivemos daquela época até hoje, mas é muito fácil dizer que se passou daquela representação das Ecumenes para essa representação atual por causa das tecnologias de navegação. Essa é a interpretação do livro de David Harvey, A Condição Pós-Moderna, em que ele fala que o sistema capitalista começa com o mercantilismo, quando os portugueses vinham para o Brasil, pegavam o ouro e levavam para Portugal. São políticas de um capitalismo mais desenvolvido, cada vez tendo mais controle, mas sempre defendendo a ampliação; primeiramente de terras e, após, de mercados. O mundo, segundo esse autor, passaria por um “encolhimento” e uma desmaterialização com as tecnologias de

profa. dra. suely fragoso

comunicação. Isso também é outra coisa comum de escutarmos: agora, o mundo “encolheu” porque transitamos rapidamente de um lugar para outro. As coisas materiais não importam mais. Então, é por isso que, em vez de vir aqui, eu posso ficar lá na Fabico falando com vocês, que dá na mesma. Certamente, há alguma coisa errada quando eu digo isso. O Bill Gates trata disso quando fala que essas tecnologias (a internet, sobretudo) livraram o capitalismo da fricção. Para entender o que seria essa fricção, por exemplo, se eu estou aqui em Porto Alegre e quero vender o meu tomate no Nordeste, o transporte encarece os custos finais do tomate. Se eu tenho bens que não são materiais, mando pela internet. Para isso, não faz diferença que lugar eu estou. Quando eu não tenho trânsito de bens materiais, realmente funciona. Quando começamos a ter uma coisa “mais material”, isso fica complicado. Se eu compro uma torta pela internet, posso receber uma foto de uma torta por e-mail. Ainda assim, essa torta não vai me dar prazer, porque eu não tenho a torta física. Hoje, eu compro um livro e este aparece no meu Kindle. Para o pessoal mais jovem, é difícil imaginar a diferença de entrar no site da Amazon e ver todos os e-books disponíveis lá. Quando eu fiz o meu mestrado, era muito difícil encontrar livros estrangeiros. Havia muita coisa em francês para ler, mas eu não gosto de ler em francês. No final, eu acabei lendo mais em francês do que em inglês ou espanhol, que eu prefiro, porque na época era muito complicado, caro e demorado importar livros. Então, se fosse preciso, eu leria até em japonês. É muito difícil falar desse assunto sem cair no erro básico: “é uma questão tecnológica; se não fosse o Kindle, a internet, a web, eu não conseguiria fazer isso”. Quando Paul Baran propôs a rede distribuída, ele não se esqueceu de levar em conta que havia servidores, cabos, fios. Ele propôs uma rede totalmente controlada. Se eu tenho uma totalmente controlada, é possível fazer uma rede distribuída, sim. A internet, hoje, é uma rede multicentrada, não uma rede distribuída. E essa é uma característica típica dessas redes vivas. São redes que têm focos principais, mais conectados, mais importantes. Temos discutido isso na área da comunicação, sobretudo com relação a sites de redes sociais e em termos individuais, mas eu queria trazer para vocês um mapa

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que eu gosto muito, que é da Telegeography, que mostra as conexões entre os diferentes continentes e os diferentes países. É bem curioso que, até uns seis anos atrás, os mapas da Telegeography seguiam a ordem que estamos acostumados, como aquele mapa que aprendemos na escola. Agora, eles mudaram para essa outra representação, que é mais clara na hora de apontar as conexões. Esse mapa é de

2012 e mostra que algumas partes do mundo são mais bem conectadas que as outras. 70% dos conteúdos passam por Londres. Alguém tem dúvida que Londres é o centro de informação do mundo? Se 70% da informação passa por ali, alguma coisa está acontecendo. Outra coisa que nós nos damos conta, olhando esse mapa, é de que algumas conexões, por exemplo, na América Latina, são extremamente dependentes. A maior parte da informação das nossas conexões da América Latina inteira passa pelos Estados Unidos; por Miami, especificamente. Então, quando falamos que a primeira ciberguerra está acontecendo no Twitter e o Anonymous está tirando sites do ar, estamos enganados. Se retirarem um plugue do nosso conector em Miami, a América Latina é apagada, desconectada da internet. No cotidiano, reconhecemos essa heterogeneidade. Sabemos que há pessoas que possuem redes maiores do que as outras. Quando uma pessoa tem uma rede de contatos maior do que a minha, se eu quero espalhar uma notícia, quero que esta apareça na sua rede e não na minha. Lidamos bem com isso e reconhecemos no cotidiano o nosso papel de protagonistas e o quanto mudamos o nosso espaço. Isso é muito diferente da nossa representação de espaço, típica da Ciência Moderna, do Iluminismo. No entanto, também usamos representações que mostram a nossa subjetividade. Quero ter meu espaço, que inclui ações humanas, protagonismo humano, que é o que está me interessando.

profa. dra. suely fragoso

Figura 5: Pacific.

Agora, eu gostaria de mostrar para vocês esse mapa, que tem o Oceano Atlântico no meio (Figura 5). Acho esse mapa tão válido quanto o outro, em termos de representação. É esse tipo de subjetividade que eu falo. Quando olhamos o mapa, este nos parece estranho, pois é uma representação atípica. Essas formas de representação de espaço como as conexões do Foursquare, do Facebook, ou Google Maps são tão populares, pois valorizam justamente a heterogeneidade e a localidade. As fotos favorecem muito as abordagens situadas. Se eu quero chegar à PUCRS, vou ao Google e peço para ele me levar da UFRGS até a PUCRS. Daí, ele me diz qual é o melhor caminho. Se eu quiser ver como é o estacionamento, ele vai me deixar ir até o Street View para eu perceber como é o estacionamento. Assim, eu consigo colocar informações que são subjetivas até certo ponto, porque o sistema não está me mostrando a minha visão; está me mostrando uma visão que vem de outro lugar. Isso não quer dizer que, agora, ficamos com o local e não vemos mais o conjunto.

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A minha inquietação é a forma de representarmos o espaço, que realmente marcaria essa representação do todo que vemos, mas também essa heterogeneidade, essa subjetivação, o protagonismo humano. Aí, o mais importante são as tecnologias móveis, que são exatamente o tema deste evento. Quando falamos em espaço, é impossível não falar nas tecnologias móveis. São coisas tão individualizadas, como o nosso celular, que conseguem ficar muito próximas. Isso também pode variar, ou seja, mostrar o espaço em representações diferentes. Todo mundo já fez isso. Quando estou olhando um mapa no Google Maps, eu afasto, aproximo, abro o Street View. Ainda estamos experimentando viver com essas novas relações, com esses novos tipos de mapas. E estamos usando cada vez mais, com crescente facilidade. Na minha opinião, esses mapas ainda estão muito incipientes. Fui recentemente a um museu, onde havia QR-Code para tudo, mas simplesmente não havia conexão Wi-Fi. Não adianta colocar QR-Code em tudo se não tem Wi-Fi, se temos de usar a conexão 3G (que é caríssima). Há muitas coisas que ainda têm de ser resolvidas. Utilizar GPS também ainda é muito complicado, ainda estamos aprendendo a lidar com isso. Sabemos o quanto ajuda e o quando atrapalha. Mas o que está ficando cada vez mais claro é que essas representações não serão fixas, como os mapas do passado; nem planas, nem em escala única. Deverão ser imagens dinâmicas, em movimento, que realmente contemplem a perspectiva situada, ainda que não do nosso ponto de vista. Há pouco a Microsoft lançou o Bing Map. É fenomenal o quanto esses mapas estão conseguindo integrar diferentes formas de representação espacial ao mesmo tempo. Eu abri o site, e vi que realmente você pode mudar os tipos de representação com alguma fluidez, o que me impressionou bastante. Eu não acho que seja preciso falarmos em coisas como realidade aumentada ou animações interativas para entendermos os avanços que esse tipo de representação representa. Acho que há muita coisa aí nessas representações que estão começando a nascer, apontando algumas melhoras para a forma como vemos o espaço hoje.

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palestra do prof. dr. cristiano costa (unisinos)

Eu vou falar sobre três temas. Durante a minha fala, os assuntos vão se misturando, a começar por mobilidade. Hoje, fala-se muito em mobilidade. Acho que essa inquietação da Suely Fragoso com os espaços é muito interessante, sobre a representação do globo. Muitas vezes, precisamos do real, por mais que o virtual se encaixe no real, por mais que a tecnologia se encaixe no nosso dia a dia, na nossa vida cotidiana. Quando falo sobre Computação, gosto de provocar as pessoas, perguntando: “Mas como é que será a computação do futuro? A Computação vai existir? Vai existir PC? Vamos ter notebook e iPad? Como será a tecnologia do futuro?”. Se olharmos para o passado, em Jornada nas Estrelas, veremos como eles imaginavam a tecnologia do futuro. Eles imaginavam que teríamos botão, teclado e mouse. A visão dos anos 1960, quando se pensava à frente, é que a pessoa do futuro seria uma “apertadora de botão”. Aí começa, na década de 1970, 1980, a “Era PC”. Então, as pessoas tinham o seu computador, mesmo não ligado à internet. Havia a ideia de que o computador era o meio de informação das pessoas. A mobilidade, praticamente inexistente, seria tirar o computador da tomada e carregá-lo para outro lugar. Hoje, a Computação móvel é muito forte. O pessoal viaja e coloca tudo dentro de sua mochila: a máquina fotográfica, o celular, o tablet, aquele monte de cabo para isso tudo. Então, esta é a “Era da mobilidade”. Chamamos isso na Computação de computação móvel, que não é exatamente ubíqua. É o que vivemos hoje, com muitos dispositivos móveis e com a hegemonia dos tablets, dos smartphones. Essa é talvez, hoje, a computação mais próxima de nós, seres humanos. A tecnologia, hoje, é um portal para um conjunto de informações. Uma “pontinha” do iceberg são os serviços baseados na localização do usuário, os location based services, serviços

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que tentam integrar a localização e exploram esses aspectos que chamamos de informações de contexto. Então, estou tuitando no iPad e o serviço sabe que eu estou no prédio 7 da PUCRS. Outro conceito de computação que tem muito a ver com o que vimos hoje é o de comunicação nas nuvens, a cloud computing. A ideia de computação na nuvem é que os meus dados estão em algum lugar que eu não sei onde é. Onde estão nossos e-mails? Provavelmente em um país bem frio, onde é mais barato manter servidor. Isso mostra que cada vez mais o dispositivo deixará de ser pessoal. O PC morreu! O dispositivo, agora, tanto faz. O que interessa são meus dados. Nesse contexto do espaço, como fica o real e o virtual? Passando um pouquinho para o futuro, como será a Computação? Será invisível. Invisível, em uma questão de percepção: toda aquela tecnologia que dominamos de uma forma automática e não percebemos que está sendo usada. Dirigiremos e, no carro, haverá um computador para frear, para acelerar, para definir o quanto de gasolina será necessário na injeção eletrônica. Então, a Computação se torna invisível. Na verdade, a área que eu trabalho na Computação é antiga. No final de 1990, 1991, um pesquisador que se chama Mark Weiser que, infelizmente, faleceu no final dos anos 1990, vislumbrou a ideia de que as tecnologias mais profundas são as que desaparecem. Elas se integram à vida cotidiana até se tornarem indistinguíveis. À medida que domino uma tecnologia, consigo focar no meu problema e pensar para além da tecnologia. Então, essa é a ideia que temos da Computação do futuro. A computação estará embarcada, estará no nosso dia a dia e a usaremos quase sem perceber. Outra revolução, além dos Location Based Services, é a do Context Aware. Não é só eu saber, por exemplo, onde o usuário está, na coordenada do GPS. É eu saber o perfil da plateia e a minha apresentação adaptar-se a esse perfil. É a minha apresentação considerar o que acabei de falar e, dinamicamente, interagir comigo. É muito mais que só localização. É poder combinar diversas informações a respeito das pessoas, os lugares, os objetos, tudo o que nós temos disponível de informação e que hoje conseguimos processar porque os computadores estão muito melhores. A tecnologia pode nos ajudar a perceber o mundo de uma forma diferente. Aí, entro em outro aspecto, que é o da interação.

prof. dr. cristiano costa

O foco deve estar no processo, e não na tecnologia. Nós perdemos muito tempo com a tecnologia. Perco mais tempo editando, formatando um texto que escrevendo. Vocês já devem ter ouvido falar que, a cada dois anos, dobra o número de transistores em um chip. O que é mais importante em um computador? É o processador? É a memória? O disco? Não! O mais importante em um computador são as pessoas! E eu estou falando como uma pessoa da Computação, não da Comunicação. Isso é muito interessante: os aplicativos são feitos para explorar o máximo de funcionalidade possível. Mas o que é mais importante? Temos de pensar a tecnologia como pano de fundo e ter como objetivo final o atendimento às necessidades das pessoas. Como essa interação fica nesse mundo de ubiquidade em que a Computação desaparece? A internet do futuro é o Facebook! O Google vai morrer. As pessoas já vivem hoje, em certo aspecto, no mundo do Facebook. Esse mundo de redes sociais vai se combinar muito mais com o nosso mundo real, pois temos a necessidade dos espaços físicos. Não temos como fugir do contato pessoal, de estar presente. O que vai acontecer é que isso vai estar muito mais integrado com a nossa ação. A forma de interação deve mudar. Qual é a forma mais individual de interagir com um smartphone? O toque? O botão? Não. É a voz. Telefone foi feito para falar. Então, a voz talvez seja a melhor interface para usar em um smartphone. A tela é pequena, as pessoas têm dedos grandes, têm de teclar e acertar o botão. Então, é preciso usar mais a voz. Estamos evoluindo no reconhecimento do português. Para o inglês e o espanhol, os sistemas já estão muito mais evoluídos. Temos de ver formas de interação muito mais próximas da nossa ação. Um médico, em uma cirurgia, não vai puxar um teclado e um mouse para controlar a ação. Não vai abrir o Google pra ver como funciona. Não dá! Quanto mais tipos possíveis de interações, quanto mais diversificado, melhor. E a tecnologia não pode barrar a interação, como muito acontece. Outro termo que se usa muito hoje é a interação tangível. Com Wii, com Kinect, podemos jogar em movimento, usando o próprio corpo como interface. Cada vez mais, a interação deve ser mais próxima da ação. A pessoa que está no seu ambiente de trabalho, um engenheiro que está em uma obra, construindo um

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prédio, pode interagir com aquele material de uma forma muito mais natural que puxar do bolso um smartphone e começar a teclar em um tecladinho minúsculo na tela do smartphone. Isso não tem sentido. Para fechar, quero falar um pouco de cognição. A cognição, basicamente, é uma propriedade humana. Há anos, discute-se se as máquinas poderão pensar, se os computadores serão inteligentes. Mas o pensamento é eminentemente humano. O que o computador pode fazer, e pode nos auxiliar, é justamente ajudar a pensar, ajudar a fazer perguntas. Não podemos ser escravos do Google; pensar que o que está no Google é a verdade universal. Mas a ferramenta pode nos ajudar a pensar, pode nos dar todos os subsídios necessários para que possamos pensar de uma maneira mais rápida, mas fácil. E um aspecto computacional, que é muito interessante, é que as indexações são muito sintáticas. Se procurarmos por uma palavra, o sistema dará resultados referentes àquela palavra. O que melhora isso é o que alguns chamam de Web 3.0, que é justamente trabalhar a relação entre as palavras e as propriedades das palavras. Não só as palavras, mas todo o significado que há por trás. Isso será uma das próximas grandes revoluções da internet. E, com relação à cognição, acho que podemos aumentar a percepção de duas formas: uma destas é a própria realidade aumentada, que é uma forma de melhorar a percepção humana, como o Google Glass, e aplicativos para dispositivos móveis que mostram que podemos agregar ao mundo real informações que melhorem a experiência com o esse mundo. Outra área que se discute muito é a da computação vestível (ou wearable computing). Daqui a alguns anos, estaremos usando computador na roupa. Teremos uma rede local pessoal no nosso corpo. A camiseta vai se comunicar com a calça, com a meia, com os óculos e com os dispositivos que eu tiver. E isso é muito interessante porque também pode nos ajudar a perceber o mundo de uma forma diferente. A tecnologia basicamente deve existir para pensar nas necessidades das pessoas. As pessoas são o foco; e a tecnologia pode nos ajudar. O que eu vejo para o futuro é que a tecnologia estará no real e estará invisível.

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palestra do prof. dr. roberto tietzmann (pucrs)

A Suely Fragoso falou de algumas ansiedades, o Cristiano Costa apontou para o presente e para o futuro. Eu gostaria de convidar vocês para um pequeno passeio por uma coisa que eu denomino como um “gabinete de curiosidades” sobre representações da tecnologia. Tem tudo a ver com os mapas que a Suely mostrou há pouco, naquele momento, nos séculos XVI, XVII, XVIII, em que há uma expansão internacional e se começavam a colecionar, na Europa, elementos da Biologia; muitas vezes, uma Arqueologia falsa, como esqueletos de sereias e coisas que não existem na vida real. Até que, em um momento, averiguamos não apenas uma taxonomia de ordem alfabética, ordem temporal, mas vamos pegando as coisas pelos nossos interesses. Começamos a encontrar pessoas com quem vamos “trocando figurinhas” e falando sobre temas em comum. Como nosso assunto aqui é tecnologia, a nossa conversa começa pela reflexão: o que é tecnologia? Ela é algo imaterial. Essencialmente, quando falamos em tecnologia, tratamos de Ciência Aplicada, não exatamente de um produto, ou de um ciclo de produção. Estamos falando de um bocado de conhecimento que foi sendo passado e transformado em algo que podemos comprar. Estamos acostumados a ver representações de tecnologia. Muitas vezes, são representações que sugerem um presente tecnológico, eletrônico, digital. Mas não é só dessa tecnologia que podemos mensurar, ou que suas bases estejam dentro da informática e de todas as Ciências mais duras, que eu gostaria de falar. Gostaria de falar justamente da fantasia a respeito. Ou seja, vamos passar das placas de circuito para os robôs. Veremos justamente como essas coisas percorrem por dentro do nosso cotidiano. Veremos como se dá a representação da tecnologia, de robôs, dentro dos filmes. Os robôs são máquinas científicas que trazem sempre uma ideia de fan-

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tasias e medos. O que temos, na história do cinema, de representações de robôs perigosos e assassinos, não está no mapa. Eles são criaturas boazinhas, que foram criadas pelo ser humano, até o momento em que dá um boom. Eles, então, engolem o seu criador, em um sentido de que a máquina é mais perfeita que o ser humano. Há muita coisa que é “ciência de orelha”. Ou seja, o roteirista ouviu falar de algum tipo de princípio de aparência tecnológica. As coisas devem parecer tecnológicas para efetivamente funcionarem como tal e para dialogarem com a narrativa. A narrativa é uma máquina. O texto é uma interface que serve justamente para facilitar o processo de navegação e apreensão dos detalhes mais relevantes. O pessoal que estuda semiótica é especialista nessa área. No nosso caso, podemos observar que, nessa necessidade de “parecência” tecnológica, você tem de incorporar o que as pessoas, a cada momento da história, entendem por tecnologia para que consigam identificar o robô, um computador que é muito inteligente. Isso permite que estabeleçamos uma genealogia de como essas representações de tecnologia foram sendo atualizadas no cinema. É interessante de ver que elas representam mais ou menos, a cada momento, como os motes estavam indo. Há a tecnologia amiga, a tecnologia que é um caminho para você reconstruir o ser humano, que estava jogando o mundo ladeira abaixo, que é a ideia da computação totalmente material. A tecnologia de depois de 1960, com os robôs convencionais, acaba sendo relacionada como uma coisa que não é tecnologia pura, mas é um conhecimento comum. E eles podem fazer coisas que não têm pertinência com a realidade. A Suely Fragoso trouxe mapas de 500 anos atrás. No cinema, não temos esse privilégio, mas podemos voltar no tempo uns 90 anos e ver as primeiras representações de um robô. Pegando a onda da industrialização, dessa moda de autômatos, Harry Houdini, que era ligeiro, viu que os robôs já eram famosos nos Estados Unidos e começou a fazer filmes para levar suas peripécias adiante. A série O Mestre do Mistério, feita por Houdini, tem a representação de um robô. A trama gira em torno do próprio Houdini, que é um agente federal, investigando uma organização criminosa que usa de ciência, magia e raios letais, laser, alta tecnologia e misticismo. O Houdini consegue escapar. Manda, então, colocarem o robô embaixo do elevador, para esmagá-lo. Enquanto isso, a mocinha foi sequestrada, o que nos mostra que os truques narrativos continuam os mesmos há 90 anos. Qualquer série televisiva terá um fluxo como esse. O que chama

prof. dr. roberto tietzmann

atenção aqui é que essa representação consolida alguma das ideias básicas que temos a partir desse robô. Ele não tem domínio da linguagem, não conversa, é muito mais forte que o normal. Naturalmente, a trama tem conflitos entre personagens. Mesmo em 1969, ele não é o primeiro robô da história do cinema. É o primeiro blockbuster com um antagonista dessa natureza. Os primeiros foram filmes perdidos. Robôs apareceram em alguns filmes perdidos do Georges Méliès, outros da França, da Alemanha e dos E.U.A. Todos extraviados. É conhecido apenas um frame ou outro. Mas todos têm algumas coisas em comum. Normalmente, essas representações, esses personagens, têm mais força que os humanos, apesar de terem sido criados pelos humanos. Eles sempre se voltam contra os humanos em algum momento. Por exemplo, os humanos, para economizar dinheiro, criam uma empregada-robô, que, em algum momento, se vira contra os seus criadores e começa a liquidar seus patrões. Podemos aí ver a ideia de invencibilidade, uma melhor capacidade comunicacional e, principalmente, um desprezo pelo Homem. Todas essas narrativas têm um elemento de reafirmação do humano, mesmo em frente dessas representações tecnológicas. Isso aparece em um momento em que a tecnologia está entrando na vida das pessoas. As pessoas não tinham se acostumado muito bem ainda com a revolução industrial. Então, ver tudo o que você pode fazer com todos esses dispositivos gera tanto promessas quanto medos. Como esses roteiristas foram tão clarividentes ao imaginar algum tipo de robô lá no início do cinema? Os robôs, os automóveis, a representação dos autômatos, tudo nasce mais ou menos parecido. Na verdade, esse senso comum da tecnologia é uma coisa que nos sugere que essas imagens são bastantes comuns. Uma rápida busca mostra que já, em 1883, havia uma patente de uma fábrica de calçados totalmente gerenciada por autômatos. Quem criou a patente desenhou as engrenagens. A patente passou por uma representação de como a coisa deveria funcionar. Ao nosso olhar de hoje, vemos que falta muita coisa, como a verificação se o sapato está bem colado, bem costurado. Mas é incrível ver que, naquela época, já havia nos E.U.A. uma patente de uma fábrica movimentada por robôs. Havia a ideia de que tudo se resolveria com robôs. Se uma pessoa gosta de assistir rinha de galos, os protetores dos animais não precisariam mais se preocupar porque teriam consoles em que a pessoa colocaria uma moedinha e assistiria uma rinha de galos robôs. Havia uma patente sobre isso já em 1889.

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Outra corrente fortíssima de autômatos do século XIX, início do XX, era a patente de publicidade. Muitos críticos dizem que na publicidade tudo se parece, mas vemos que há milhões de patentes de autômatos publicitários. Há uma para demonstrar produto culinário. Outro de um autômato que servia drinks em gestos muito parecidos com o que vemos na publicidade ainda, se a televisão permitisse colocar as pessoas bebendo em comerciais. Há também um androide entregador de folhetos. Ou seja, esses gestos que vemos codificados em termos de publicidade têm muitas vezes uma raiz numa patente do início do século. Esses autômatos podem parecer bastantes ingênuos, ainda que engenhosos, mas todos eles guardam essa ideia de parecer com algo que existe. Parecem-se como algo humano, animal. A tecnologia, nesse caso, ainda está presa a uma representação. Isso vai aparecer só nas patentes da década de 1920, início da década de 1930. Não por acaso, logo após as ideias de design modernista, em que vamos ter a simplificação da forma e a objetivação da comunicação, há uma patente de um robô que dá um sinal para a pessoa dobrar à direita ou à esquerda. É um robô pisca-pisca que você anexava ao carro. A ideia era colocar algo que parecia um pouco com um ser humano para as pessoas não se assustarem, para não causar uma situação de ameaça. Essa ideia que vai se consolidar a partir desse design mais minimalista, mais enxuto e menos figurativo, se encaminha em direção às representações de computadores e robôs do cinema. Aquele pisca-pisca de 1932 tem uma grande semelhança com o robô do filme O Dia em que a Terra Parou, de 1951, do Robert Wise, mesmo diretor da Noviça Rebelde. Vocês vejam como a indústria de Hollywood é esquizofrênica. É importante observarmos que aí há uma representação, que não é a primeira, mas se torna muito conhecida, de hardware e software. O robô em si é hardware, mas ele é comandado por software, no qual já começamos a ver um pouco de linguagem, mesmo que essa linguagem não esteja ao alcance do homem comum; só ao do alienígena, que é superinteligente. É uma coisa literalmente de outro planeta. A tecnologia vai se tornando invisível e embutida no cotidiano, como o Cristiano Costa falou. Ela encontra um momento bem feliz no cinema no filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, em que toda uma nave é controlada pelo robô. É um computador que não existe, pois você está dentro daquele ambiente. Essa tendência de desmaterialização só se prolongou dali em diante, em direção ao século XXI.

SOCIALIDADE

E LAÇO SOCIAL

NAS REDES mediação: prof. dr. juremir machado da silva (PUCRS)

tradução: profa. dra. roberta barros (pucrs) convidado: prof. dr. michel maffesoli (universidade rené descartes, paris v, sorbonne)

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Prof. Dr. Juremir Machado da Silva: Boa noite a todos. Eu gostaria de parabenizar toda a comissão organizadora, e o grupo Ubitec, o professor Pellanda e todo esse pessoal que organizou este belo encontro. Vamos então passar imediatamente à palestra do professor Michel Maffesoli, que, é claro, dispensa maiores apresentações, ainda mais neste ambiente de mestrandos, doutorandos, pesquisadores e professores, que estão bastante habituados à obra de Michel Maffesoli. O Maffesoli sempre surpreende com seu olhar particular sobre os fenômenos, e eu tenho certeza que ele irá além do proposto no título da palestra. Quero também agradecer, em nome do programa, à Roberta Barros, pela disponibilidade na tradução. A Roberta tem sido uma grande colaboradora, fazendo traduções de textos em francês para livros e para a revista Famecos. Então, vamos passar para a palestra do Prof. Dr. Michel Maffesoli. Prof. Dr. Michel Maffesoli: Eu agradeço o convite. É sempre um prazer falar aqui na PUCRS. Acredito que é curioso, é muito interessante refletir sobre esse tema da ubiquidade. Eu peço que vocês sejam indulgentes comigo, porque o que eu gostaria mesmo de fazer é falar com uma abordagem mais filosófica. Em tempos de stress, a gente tem que voltar ao pensamento filosófico; ao verdadeiro pensamento. De certa forma, abandonar o conformismo ambiente, que Durkheim chama de conformismo ideológico. É importante, então, nesse quadro universitário, voltar a uma exigência teórica: essa verdadeira vocação da universidade, essa vontade de aprender, a libido de aprender. Então, quando eu falo nessa exigência, eu não vou voltar à questão do imaginário, mas eu falo realmente da infraestrutura mental, um conceito de Freud. É por isso então que eu vou fazer uma oposição entre a infraestrutura mental moderna, que eu chamo de egoidade, que é, na base, o grande fundamento de todas essas teorias que marcaram a modernidade, e que constitui uma concepção unilateral do mundo. Quando eu falo em unilateral, a ênfase é no racionalismo que marcou a modernidade desde o século XVII e chegou, então, a essa concepção completamente abstrata da realidade. Então, quando se faz uma genealogia desse pensamento abstrato, a gente vê que ele se elabora no que será o Logos de Heráclito, que vai também chegar na Episteme de Platão, que se torna a Doutrina da Idade Média, chegando então

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no final da Ciência Moderna. São esses quatro conceitos que caracterizam essa genealogia, quer estejamos conscientes disso ou não. A gente pode dizer então que foi isso que conduziu a essa forma de devastação do mundo, e eu incluo nisso uma forma de devastação dos espíritos. Historicamente, é o que diz Thomas Kuhn no seu grande livro sobre a estrutura da Revolução Científica. Na obra, ele mostra essa graduação, esse parâmetro, que vai evacuar todos os outros parâmetros da natureza humana. É o que esse grande antropólogo do imaginário, meu amigo e mestre Gilbert Duran, baseado em Kuhn, mostra o que ele chama de uma concepção esquizofrênica do mundo, no sentido simples do termo esquizofrênico: o da realidade cortada em pedaços. Todos os grandes sistemas interpretativos que se elaboram ao longo da modernidade repousam nessa concepção esquizofrênica. O que vem em mente, então, é uma amputação. Deve-se pensar bem nessa expressão, que deve ser retida: a era da representação. O mundo não é mais vivido no que ele tem de concreto: toda a obra de Jean Baudrillard se baseia justamente nesse critério. Toda a análise que ele faz do simulacro é isso: a abstração, no sentido do termo de se retirar do mundo. É isso que eu acredito que está mudando no curso da pós-modernidade. No entanto, como sempre, demora um tempo para nos darmos conta do que está em processo de mudança. Eu não conheço o suficiente quais são os debates do Brasil, mas globalmente, pelo o que sei da França e da Europa, nós seguimos nessa concepção representativa do mundo. É nisso que devemos pensar: a teoria da comunicação segue muito abstrata e representativa. Vou tentar mostrar que, na sua lógica, elas são presentativas – vão remeter à presentação. De certa maneira, é anterior a tudo o que já falei aqui: ao logos, à episteme, à ciência. E eu também lembro que é sobre isso que se baseia a ideia de crise. A descrição – porque definição é uma palavra um pouco ambiciosa – que eu proponho para esse tipo de crise é que não há mais consciência e, por isso, não existe mais confiança. Então existe esse interesse em voltar ao que chamo de inversão de polaridade da pós-modernidade. Por isso, é importante voltar para uma concepção que não é simplesmente progressista, em que o desenvolvimento tecnológico nos remeta a algo além do simples progresso.

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Uma definição que eu desenvolvo há muitos anos é essa sinergia do desenvolvimento tecnológico com o arcaico. É preciso ainda encontrar uma palavra para mostrar que não existe um progresso tecnológico, e, sim, uma regressão. Quando eu falo nessa sinergia, me refiro a, por exemplo, a sinergia da tribo mais a comunicação, no sentido forte teórico do termo, numa ordem simbólica, engendrando materiais e processos que são imateriais, irreais e simbólicos. Esse é o paradoxo que mostra como é a tecnologia de fato, e como ela escapa de seu criador. Para fazer uma referência filosófica para explicar isso, é o que diz Hegel com a Astúcia da Razão, em que a razão escapa do mundo racional. Então podemos falar dessa ideia, ao nos referirmos a uma Astúcia da Tecnologia. O desenvolvimento tecnológico não faz mais parte dessa razão, como pode ser visto nos blogs, por exemplo, onde não é mais uma egoidade que irá se expressar, mas essa ideia de astúcia, de duplicidade. Foi o que eu apresentei desde o início da minha carreira como uma estrutura essencial: a duplicidade. Ser duplo é ingênuo. Vemos, por exemplo, que 62% dos pseudônimos femininos na internet são usados por homens, por exemplo, nos sites eróticos ou em chats. Isso é tipicamente uma ordem simbólica. Vai além de uma simples realidade físico-química que caracteriza uma identidade. Sobre isso que foi fundado o individualismo epistemológico. Existe um outro real, mais rico que a realidade. Não podemos reduzir o real à realidade. Então, os sistemas de representação puramente representativos se baseiam num princípio de realidade. Quando falo em princípio de realidade, quero dizer a realidade reduzida a uma identidade, enquanto o real se engrandece e contém o irreal. É a diferença entre essas duas palavras: o indivíduo e a persona. O indivíduo tem uma identidade, enquanto a persona tem identificações. O real tem muitas vidas em uma vida. De repente, não estamos mais nessa ideologia do progressismo, mas no engrandecimento desse progresso no seu contrário. É o que eu chamo de ordem simbólica. Pensemos agora na ideia Heideggeriana, quando ele reflete sobre a técnica e mostra que existe em um determinado momento uma virada. Em um dos meus primeiros trabalhos lá no início dos anos 70, tentei mostrar essa ideia de mudança, de virada, o que chamei de Astúcia da Técnica. Isso é visto, por exemplo, no papel do desenvolvimento tecnológico na mudança política. Um político não

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pode ser mais apenas programático e racional, pois mobiliza uma série de fatores que são justamente simbólicos. Temos na atualidade toda uma quantidade de exemplos nesse sentido, como o papel da tecnologia na Primavera Árabe e no caso dos indignados de Madri. Esse processo dos anônimos, como é possível ver agora na Alemanha com o Partido Pirata, repousa numa conjunção de elementos muito diversos. No caso da Primavera Árabe, as motivações vão ser muito ocidentais, como a democracia, e, na verdade, é exatamente o contrário que irá acontecer. Ou seja, valores completamente reacionários aparecem, como o Islamismo mais puro. O exemplo do Partido Pirata funciona sob a mesma lógica. É uma conjunção ao mesmo tempo de uma oposição anarquista, e uma posição muito liberal do ponto de vista econômico. É isso o que eu chamo de virada política, a Astúcia da Técnica. A técnica não vai entrar simplesmente no desenvolvimento da tecnologia e do progresso, em uma posição unificadora representativa, mas também vai ter essa espécie de conjunção entre o branco e o preto, entre o bem e o mal, o local e o global. Então, mais uma vez, aqui está tipicamente a pluralização, e também, através de valores, no sentido mais simples do termo, tribais. E nunca teremos ideia do papel que tem a comunicação nessa virada. A segunda virada irei chamar de mudança societal, e é atualmente a minha pequena obsessão teórica. As comunicações emocionais, isto é, como essas emoções que antes eram privadas, estão contaminando o corpo social. E aí entra, novamente, essa metáfora que Jean Baudrillard empregou de diversas maneiras, que é a da viralidade. Isso mostra como, em termos de epidemiologia, a difusão da informação não é mais puramente vertical, piramidal, mas vai colocar em jogo todo esse processo emocional. É preciso lembrar que o próprio da comunicação emocional não é de maneira alguma um processo psicológico, não é emotivo. Quando digo psicológico, ele é próprio ao contrassocial, que associa os indivíduos um em relação ao outro. A ideia de epidemiologia, de viralidade – e é o próprio termo emocional que nos envia a isso – é um processo ambiental, que vai além dos indivíduos e, portanto, coloca o problema em termos de contágio. E vemos isso em todos os domínios da vida social. Basta ver a importância das emoções

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musicais, religiosas, esportivas. Vemos então o papel que passa a ter o rumor, o jogo, o buzz. Um dos pesquisadores do meu centro (e meu amigo), desenvolveu a ideia do marketing tribal, mostrando como não podemos pensar o marketing sem levar em conta essa ambiência, tendo ideia da dimensão puramente epidemiológica, passando essa ideia programática que era da própria origem do marketing. É o que eu chamaria então de contaminação societal, não simplesmente a programação social. Outra coisa que pode vir ao encontro dessa preocupação com a ubiquidade é o que chamo de identificações múltiplas. A terceira virada, para usar um termo que me é muito querido, é a virada da socialidade. E aqui falo de uma concepção inteira do indivíduo. Com relação ao princípio da realidade, lembro que o que predominou na modernidade foi um regime esquizofrênico da realidade. Por exemplo, um professor ou um pai dizem para um jovem: “É muito interessante isso que você diz, mas devemos voltar ao princípio da realidade”. Então, o que quero mostrar com essa virada da socialidade, que é representativa da cultura juvenil, é essa outra passagem, ir além do princípio da realidade. Isso dá conta de toda essa representação lírica, lúdica e imaginária. Para mim, são exatamente esses três termos que caracterizam a socialidade. Então vemos que, com a multiplicação das redes de comunicação, o que predomina é a conotação lúdica. É sempre necessário ver as caricaturas e o paroxismo. Eu diria, por exemplo, que tudo o que se passa na crise financeira, no jogo dos traders, é um jogo. A economia, em nome do princípio da realidade, deixou de lado o jogo, e, de uma maneira perversa, o jogo irá voltar através dos protagonistas da economia financeira. O paradoxo absoluto é que eles não são nem conscientes disso. De certa forma, eles chegarão nessa crise financeira introduzindo o jogo. Devemos interpretar isso em termos de adrenalina. Isso nos remete a uma dimensão emocional, e essa é a virada da socialidade, mesmo em um setor onde aparentemente essa socialidade não tem lugar. É isso que eu chamo de pluralidade, o que vai além da egoidade, a astúcia da técnica, como, de certa forma, os processos de interação depassam a pura representação teórica, e entram no domínio da presentação. E é esse o aspecto curioso e bem paradoxal, que é um novo processo de racionalização da técnica.

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Então, consagramos uma edição dos nossos Les Cahiers de L’imaginaire, com o tema Tecnomagia, que significa, de certa forma, como os novos objetos depassam quem possui esses instrumentos. Para dizer através de termos bem simples: nós somos possuídos por aquilo que a gente acredita possuir. Assim, entramos no processo de possessão, como nas tribos primitivas, onde poderíamos ser possuídos pelo totem que acreditávamos possuir. Então, somos possuídos por todos esses meios de comunicação na internet. Essa seria então a pluralidade politeísta, e mostra uma outra concepção da alteridade. Digo sempre aos meus estudantes que é a partir da concepção que fazemos do outro que conseguimos compreender a civilização. E toda a modernidade foi uma redução do outro a ele mesmo. O outro da natureza, que foi reduzido à cultura, o outro do grupo que foi reduzido ao contrato, ou o outro de mim mesmo que será reduzido à identidade. Essas diversas modulações da alteridade vão continuar alteridade. A natureza vai continuar natureza. O outro do grupo continua tribal. É uma multiplicidade de facetas em si mesmo, e esse é o paradoxo da tecnologia. Não é mais o “eu penso”, o Ego Cogito, mas o Ego Affectus, pois sou afetado pelo outro. Deve-se prestar muita atenção no termo “afetar”, pensando em como somos trabalhados pelo emocional. Então, não podemos mais ser reduzidos a uma só identidade. Então, para mim, essa é a passagem da representação, ou do sistema representativo, para a ideia de presentação. A presentação traz a ideia de aceitar a monstruosidade que nós somos, em que não é mais possível reduzir a realidade ao que é bom, mas que há uma introdução da morte na vida. Então é o que vem muito além da modernidade, que era o pensamento de Heráclito, curiosamente um pensamento de maturidade, ou seja, da criança que brinca. Enquanto o adulto, que não é um pensamento da maturidade, é um pensamento sério, puramente racional. E isso é a modernidade. Então, o que eu chamo de pensamento da maturidade é esse da criança eterna, que consegue guardar a brincadeira e o jogo, com a crueldade que é inerente a ele. É uma espécie de resselvageria do mundo. E esse é o paradoxo da tecnologia. Um pensamento concreto, do real.

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Juremir: Então, podemos passar a palavra para o público. O primeiro comentário é o seguinte: o senhor disse no livro O Conhecimento Comum que ninguém espera de um político que ele cumpra o que ele prometeu. Só os militantes acreditam nisso. Gostaria que o senhor fizesse um comentário a esse respeito. Maffesoli: Sim, pois é um momento contraditorial. A lógica, a essência do político é que ele deve se dirigir a indivíduos racionais. “Eu sou um homem racional, tenho um programa racional, então consigo convencer a ti, que é um homem racional, da legitimidade do meu programa. E se você é convencido, me dá seu voto.” Esse é o ideal democrático, que é a essência da política. Existe um grande nome, que é a Hannah Arendt, que desenvolveu a ideia de ideal democrático, e essa é a lógica do político. É por isso que eu digo que é um momento contraditorial, pois esses para os quais o discurso político se dirige, atualmente são baseados no compartilhamento de emoções. Ou seja, não precisa satisfazer aquilo que queríamos dizer. É um processo de ubiquidade. Ou, em relação ao político, é um processo esquizofrênico. Eu vejo na França essa diferença entre o ideal racional e o emocional, e é sobre isso que se faz o processo de abstenção, principalmente nas gerações mais jovens, que não se reconhecem mais nessa dimensão programática. Por exemplo, quando há uma eleição atualmente, há 50% de abstenção e 20% de não inscritos nas listas eleitorais. Ou seja, nesse processo de representação a gente tira já de início 70%. Então, depois que se faz essa divisão política de esquerda e direita, um eleito representa 10% da população. Por isso, não estamos mais nesse processo de representação, ou filosófica ou política. E é por isso que existe esse desacordo profundo entre a promessa, o real e o emocional. Juremir: Ao passo que a comunicação serviu de aparelhamento para a repressão do povo e do pensamento em episódios históricos como o nazismo, sua utilização para mobilização popular contra sistemas antidemocráticos em episódios recentes como a Primavera Árabe e a greve geral na Europa evidencia as mudanças da utilização tecnológica. Essa mudança foi impulsionada primeiramente pela sociedade ou a evolução das ferramentas tecnológicas acabaram mudando o perfil cultural da sociedade?

prof. dr. juremir machado da silva  |  prof. dr. michel maffesoli

Maffesoli: Sim, com certeza, o que eu tentei dizer agora há pouco, e o que eu tento dizer desde sempre nos meus livros, é essa mudança de paradigma. É por isso que a gente precisa pensar seriamente na pós-modernidade. E é o que propus há pouco, falando dessa astúcia da técnica. Podemos pensar da maneira clássica, assim como McLuhan irá desenvolver: temos o emissor e o receptor. Então, existe essa unilateralidade, que pode ser usada para o bem ou para a dominação. Então, com certeza pensamos no fenômeno nazista, e acho que também devemos lembrar da dominação comunista, que é a mesma lógica. Esta se baseava em uma – e é importante reter bem essa palavra – unilateralidade. Então é o que eu chamo de astúcia da técnica, ou de inversão de polaridade, e podemos encontrar em Robert Jauss, no que ele chama de estética da recepção, que se baseia nesse processo da reversibilidade. Então, no fundo, podemos falar, assim como Edgar Morin, em uma retroação sobre a ação, um feedback. No fundo, não sou eu que vou me impor a alguma coisa, nem bem nem mal, liberação ou dominação. Vai existir esse vai e vem constante. Não é só a comunicação que vai impor uma dominação. Para dizer de uma maneira brutal – porque o que eu digo é para o melhor e para o pior – a Primavera Árabe vai terminar em Inverno Árabe. Como em particular se aplica à moral islâmica, as mulheres irão se submeter a alguma coisa que não é a liberação. O fato é que a gente não pode mais pensar em termos de dominação, ou da técnica liberadora. Isso vai depender precisamente de cada situação. Então, a expressão simples é a tecnologia e o desenvolvimento tecnológico, para o melhor e para o pior. Temos que insistir sobre isso: o melhor e o pior. E, no fundo, isso que é a natureza humana. Acho que a gente tem que reler Baudrillard sobre isso, que tinha esse lado mais realista. Juremir: Próxima questão: Podemos considerar que as redes sociais constroem um espaço de socialidade ou socialização? Maffesoli: Para mim, realmente de socialidade. A gente pode dizer de forma bem simples, através de uma imagem, que eu uso emprestada de Simmel, que define justamente o que está em jogo na socialidade: a ponte e a porta, o que me une e o que me separa. É importante a gente reter então que a socialização dava ênfase na sociedade no seu conjunto. E a socialidade justamente coloca em jogo essas

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tribos. Nas redes, nas redes sociais, nas comunidades, tem alguma coisa que é muito inclusiva e que vai excluir, uma outra tribo. Então, o processo tribal não é um processo moral. A socialidade não é moral, ela é ética. A máfia não é moral, ela é ética. Ela cria uma coisa muito forte: o ethos, que não é moral, pois não é universal, não é geral e não é aplicável a todos os lugares e em qualquer tempo. Então, eu acho que os sites de redes sociais entram no que eu chamo de imoralismo ético: inclusão e exclusão. Mas, quando existe inclusão, ela é muito forte. Finalmente, a gente tem que chegar à questão do viver junto, mas aí é um outro debate, que vai ser em outro seminário. Juremir (Pergunta do público): O senhor poderia comentar a questão da identidade nessa sociedade, especialmente no que se refere à identidade jovem? O que os diferencia dos jovens da modernidade? Maffesoli: É o próprio conceito de identidade que não me parece mais pertinente. Então, eu remeto vocês ao meu livro No Fundo das Aparências, em que há um capítulo em que faço a ligação entre as identidades e as identificações. Identidade é um conceito tipicamente moderno, que faz com que, no fim do processo educacional, eu tenha uma identidade sexual, profissional e ideológica. Eu sou isso ou aquilo, um homem ou uma mulher, de esquerda ou de direita, uma coisa ou outra. Enquanto o que parece estar em jogo atualmente são as identificações múltiplas. É um homem ou uma mulher? É uma forma de decisão, mas, de acordo com o momento, uma outra identificação. Eu diria que isso é exatamente o que faz o corte, a separação entre a modernidade e a pós-modernidade. De um lado tem a identidade, e, do outro, a identificação, a indecisão, a indeterminação. É o que está na fórmula do poeta Humboldt: o eu é o outro. Eu sou o outro. Eu sou isso, e depois outra coisa, e outra coisa, e assim por diante. A própria definição do que quer dizer a persona é a máscara. Então, o indivíduo tem uma identidade, a persona tem máscaras. Isso que são os avatares dos sites e comunidades. É tipicamente a reprise do que eram as máscaras mitológicas. É por isso que eu digo que a pós-modernidade é a sinergia do arcaico com o desenvolvimento tecnológico. As minhas diversas máscaras e as minhas diversas personas irão se expressar de acordo com a situação. No tempo 1 eu sou uma coisa, no tempo 2 eu sou outra. Então é preciso realmente abandonar

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o conceito de identidade, que é um problema epistemológico, porque a gente só pensa a partir da identidade. Percebam como em todas as enquetes e pesquisas, a gente tem que ser uma coisa ou outra. “Ou, ou”. Enquanto que a lógica da identificação é “e, e”. É o que a gente chama de lógica contraditorial, é um neologismo. É um contrário que não se depassa em síntese. O filósofo francês Derrida falou disso ao tratar da disseminação, das identificações múltiplas. É isso que questiona todo o sistema teórico moderno. O que mostra que 80% do ensino universitário é totalmente não pertinente e não serve para nada, porque é moderno. Juremir: Vamos para a última pergunta: Qual a lógica da morte física com a continuidade da interatividade no mundo virtual? Maffesoli: Eu diria de uma certa maneira que é uma forma de homeopatizar a morte, viver a morte todos os dias. Existe nas relações virtuais uma espécie de copulação, no sentido forte do termo. Em francês, dizemos que o orgasmo é uma pequena morte, é o momento em que a gente se perde. Então, eu penso que o que acontece nessa copulação cibernética é uma pequena morte. Não é simplesmente a vida que prevalece, mas uma integração da morte na vida. Para mim, essa é uma concepção bem mais inteira da existência. A modernidade repousou num fantasma absoluto, que é essa ideia no fundo bem judeu-cretiana, de que a gente vai ultrapassar a morte. Quando eu digo que é judeu-cretiana, me refiro à frase de São Paulo: “Morte, onde está sua vitória? Não existe vitória porque o Cristo ressuscitou”. Então o que eu quero dizer é que potencialmente a morte vai ultrapassá-lo, enquanto numa concepção bem mais pagã da existência, e, para mim, pós-moderna, tem uma integração da morte na vida. É o que eu chamo de homeopatização da morte, que tem uma dimensão copulatória, orgiástica. Juremir: Muito bem. Eu quero agradecer muito ao Maffesoli, pela disposição de ter vindo participar do evento, fazer essa bela conversa, dividindo seus conhecimentos, tornando ainda mais claro seu pensamento. Certamente vai ser muito útil para todos nós, para todos vocês que trabalham com Maffesoli, nas suas dissertações e nas suas teses. Quero agradecer também à Roberta pela tradução e convidar vocês para uma sessão de autógrafos. Muito obrigado.

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PARTE II ARTIGOS

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olhar híbrido sobre fãs marcelo fontoura1 pedro henrique reis2 vanessa valiati3

Os fandoms – ou o que se convencionou delimitar como cultura de fãs – são articulações de uma cultura de consumo. Porém, eles são também manifestações de uma vacuidade que permite o aparecimento da questão da identidade, colabora com seu nascimento e a faz entrar no palco do cotidiano como “problema e, acima de tudo, como tarefa” (BAUMAN, 2005, p. 24).

O desenvolvimento fragmentário da Cultura da Mídia, associado ao desenvolvimento do capitalismo tardio, possibilita aos indivíduos dois momentos singulares que, em si mesmo, são divididos. Primeiramente, para que a identidade individual aparecesse no cenário do cotidiano enquanto algo a ser definido, resolvido ou desenvolvido, foi necessário que as estruturas econômicas e sociais vigentes levassem a situação desses indivíduos a uma posição de mobilidade, ou seja, de aplicação e popularização plenas dos transportes e das comunicações. Isso implica no desenvolvimento de vias de acesso a localidades e conteúdos que não poderiam se consolidar 1) sem a tecnologia necessária para, por exemplo, transmitir informações à longa distância e 2) sem que uma desintegração parcial ou total tivesse se abatido sobre as instituições e estruturas normalizadoras das vidas cotidianas desses indivíduos. Afinal, “perguntar ‘quem você é’ só faz sentido se você acredita que possa ser outra coisa além de você mesmo” (BAUMAN, 2005, p. 25). Em outras palavras, apenas pode existir o embate de sentidos, a possibilidade de perfomances construídas

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Mestre em Comunicação Social pela PUCRS. Membro do Grupo Ubitec. E-mail: [email protected].

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Doutor em Comunicação Social pela PUCRS. Membro do Grupo Ubitec. E-mail: [email protected].

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da UFRGS. Mestre em Comunicação Social pela PUCRS. Membro do Grupo Ubitec. E-mail: [email protected]. 3

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no cotidiano a partir de uma miríade de conteúdos se esses mesmos conteúdos forem, de uma forma ou outra, iguais ou possivelmente intercambiantes em sua potencialidade persuasiva, em reverberação com os públicos e/ou na capacidade desses sujeitos em, de fato, receberem essas mensagens. A cultura de fãs, essa lógica do capitalismo tardio de apropriação de conteúdos, não raro midiáticos, como partícipes na constituição do eu individual, é uma manifestação da questão da identidade. Esta, por sua vez, surge exatamente de uma crise de pertencimento e é literalmente uma pergunta que interpõe no espaço que se forma entre o dever e o ser e permite que o papel de “policiar a fronteira entre ‘nós’ e ‘eles’” (BAUMAN, 2005, p. 27) se torne em si mesmo uma performance incerta a cargo do indivíduo e respondida pela “compreensão do que é de importância crucial para nós” (TAYLOR, 1989, p. 27). Como outrora fora cargo do ideólogo de estado convencer os súditos daquela nação sobre as delimitações que caracterizavam aquele povo, aquela nacionalidade, em detrimento ou contraste de outros povos, outras nacionalidades, agora fica a cargo do indivíduo, em seu processo constante de construção de si, definir o seu pertencimento e definir-se nesse pertencimento enquanto tarefa contínua, dinâmica. A “identidade é definida pelos comprometimentos e identificações que provém o quadro ou horizonte dentro do qual eu posso tentar determinar caso a caso o que é bom, ou valioso, ou que deve ser feito, ou que eu apoio ou me oponho” (TAYLOR, 1989, p. 27). Assim, a cultura de fãs ou o fandom é, como a própria identidade em seu escopo mais geral numa era ela mesma fragmentária, além de uma tarefa ativa, um chunking penoso e constante, que consiste em afirmar tópicos, temas e representações e se posicionar negativamente em relação a outros tipos dessas mesmas formas. O caráter afirmativo é a resposta a uma pergunta: quem? que reverbera a ideia de posicionar-se enquanto interlocutor de um outrem, sendo este passível de ser compreendido e de apresentar-se como um outrem que é também o mesmo, um outro que pertence ou busca pertencer ao mesmo que faz parte de nós, assim como podendo ser um outro que se apresenta como opositor, não apenas por identificar-se com algo que possa ser o oposto (times de futebol, estilos musicais, etc.) mas por identificar-se ativamente com a negação daqueles valores-símbolo encarnados naquilo do que se é fã. Esses posicionamentos são, portanto, dinâmicos e revelam que

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o mundo em nossa volta está repartido em fragmentos mal coordenados, enquanto as nossas existências individuais são fatiadas numa sucessão de episódios fragilmente conectados. Poucos de nós, se é que alguém, são capazes de evitar a passagem por mais de uma ‘comunidade de ideais e princípios, sejam genuínas ou supostas, bem-integradas ou efêmeras, de modo que a maioria tem problemas em resolver (para usar os termos cunhados por Paul Ricoeur) a questão da la mêmete (a consistência e continuidade da nossa identidade com o passar do tempo). Poucos de nós, se é que alguém, são expostos a apenas uma ‘comunidade de ideias e princípios’ de cada vez, de modo que a maioria tem problemas semelhantes com a questão da l’ipséite (a coerência daquilo que nos distingue como pessoas, o que quer que seja) (BAUMAN, 2005, p. 19).

Porém, é preciso estar ciente de que o fã, enquanto ativo construtor de sua própria atividade através dos valores, por mais inócuos que possam ser, que ele deriva daquele bem cultural com o qual se relaciona, também é um ativo partícipe na “culturalização da mercadoria”. Sua construção de si se dá através de uma revolução onde, “por um lado, a arte segue agora as regras do mundo mercantil e mediático [sic], por outro lado, as tecnologias da informação, as indústrias culturais, as marcas e o próprio capitalismo constroem uma cultura, ou seja, um sistema [próprio] de valores, de objectivos e de mitos” (LIPOVETSKY e SERROY, 2010, p.15). Ou seja, por um lado, a atividade do fã, sua identificação ativa com esses objetos, por mais efêmeros ou duráveis que sejam, é uma agência de consumo em consonância com a lógica inerente do capitalismo de massa e suas versões culturais encarnadas na Cultura da Mídia e na indústria cultural. Mas, por outro lado, esse árduo trabalho consiste também num escape da formatação e padronização, por deixar falar uma apropriação daqueles conteúdos, que transcendem seus espaços simbólicos e diegéticos através de um “jogo com as formas canónicas”, de uma “multiplicação dos gêneros híbridos”, de uma “heterogeneização dos estilos e [um] jogo irônico com os códigos” (LIPOVETSKY e SERROY, 2010, p.173). Assim, o caráter do fandom, daquele grupo ainda que não coeso de pessoas imbricadas em se apropriar e se identificar com um determinado conteúdo, seja ele um filme, série de filmes, livros, de televisão, banda, artista, ator, etc., possui em si mesmo uma dinâmica dupla. O fã não é mais apenas visto como fã, daquele termo que deriva de fanático e que possui o tom pejorativo de indicar alguém sem muito potencial crítico, nem apenas visto como apenas um consumidor a receber placidamente as

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mensagens e conteúdos. Este “fã-consumidor não é mais”, portanto, “visto como excêntrico irritante, mas como consumidor leal a ser criado, onde possível, ou de outra forma cortejado através de práticas agendadas” (HILLS, 2002, p.12). Nas atuações dentro do fandom, como coloca Jenkins (2006), são notórios os movimentos de ingresso no mundo da franquia, através de diferentes portas. São formas de os fãs interagirem com as marcas e, através do trânsito entre consumo e criação de conteúdo, demonstrarem seus gostos. Estes movimentos são verificáveis não apenas em franquias tradicionais do entretenimento, mas em outras instâncias, com a mesma permeabilidade por diferentes meios. Primo ressaltou como isto é verificável no universo de celebridades, que utilizam recursos digitais para possibilitar diferentes pontos de contato entre os fãs e suas franquias (informação verbal)4 . As celebridades já tinham sua fama perpassada em diferentes meios, mas as mídias sociais, digitais e móveis permitem uma aproximação ainda maior. O interessante é que a indústria de celebridades utiliza isso; essa ubiquidade das mídias combina com a ubiquidade das celebridades. As celebridades, mesmo antes das mídias móveis, já eram onipresentes, já faziam parte da nossa cultura e do nosso cotidiano. Com a emergência das mídias móveis e de sites de redes sociais, se permitiu uma sensação de contato mais direto, mais próximo com as celebridades. É a possibilidade de conversar com seus ídolos. Algumas celebridades chegam a ter apps ou suas próprias redes sociais, como a Lady Gaga, que tem uma rede social própria para ter um contato direto com seus fãs. (informação verbal)5 .

Pase destacou como atualmente bandas e artistas musicais em geral acabam criando ou estimulando franquias a partir da necessidade de driblar a pirataria, que afeta principalmente a distribuição de seu material principal, as músicas (informação verbal)6. Desta forma, investir na comercialização de outras partes através das quais a marca do artista será vendida e passada adiante é uma maneira de estimular o Informação coletada em palestra concedida por Alex Primo no 2º Encontro de Ubiquidade Tecnológica, realizado em Porto Alegre, no dia 20 de novembro de 2012. 4

Informação coletada em palestra concedida por Alex Primo no 2º Encontro de Ubiquidade Tecnológica, realizado em Porto Alegre, no dia 20 de novembro de 2012. 5

Informação coletada em palestra concedida por André Pase no 2º Encontro de Ubiquidade Tecnológica, realizado em Porto Alegre, no dia 20 de novembro de 2012. 6

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fandom a consumir e consequentemente se relacionar com o artista. Trata-se de mais uma instância de entretenimento em que acontece uma certa construção de universo, no qual os fãs podem ingressar. “As bandas começam a vender outros produtos, estimular a comprar coisas, fazer microtransações. As bandas e artistas começam a tentar vender pedaços e outros itens” (informação verbal)7. É notável como, no entanto, as franquias possuem um controle reduzido, ou pelo menos relativizado, do rumo para onde estes pontos de contato se deslocam. Com a cultura participativa, como coloca Jenkins (2009), ganhando força com a internet e a facilidade de publicação, estes produtos existem cada vez mais em uma tensão entre corporações e fãs. Um terreno curioso no qual se observam estas manifestações é o da sátira. Ao lançar novas evoluções de uma franquia, a indústria fica atenta às repercussões que os produtos geram na internet, muitas vezes acarretando contraproduções de humor que partem de detalhes ou do todo para criticar os rumos e decisões da obra. Trata-se de uma forma em que os próprios fãs criam um ponto de intersecção a mais com um dado universo, mesmo que seja através de um discurso satírico direcionado à franquia. Por meio destas manifestações, o fã demonstra seu envolvimento com uma marca, ao mesmo tempo em que declara seu lado crítico em relação às decisões que uma obra possa ter tomado. Existem também comentários mais humorísticos e menos “sérios”, não tão dedicados a passar uma mensagem sobre um produto, mas mais a gerar algo compartilhável. A franquia Star Trek é notória no que tange à dedicação e admiração dos fãs. Com sua primeira ocorrência na década de 60, ela ainda é revivida com filmes e outras obras relativas, sendo expandida também com trabalhos de fan fiction. Recentemente, seus últimos dois longas-metragens, um reboot da série, serviram para reavivar os ânimos do fandom trekker, que não via filmes novos desde 2002. Uma rápida busca no YouTube demonstra que existem diversas incorporações da sátira, criticando os filmes ao mesmo tempo em que os colocam em evidência. Cabe perpassar rapidamente alguns casos encontrados.

Informação coletada em palestra concedida por André Pase no 2º Encontro de Ubiquidade Tecnológica, realizado em Porto Alegre, no dia 20 de novembro de 2012. 7

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Existem alguns canais do YouTube que se propõem a realizar periodicamente sátiras com o conteúdo de blockbusters. Um exemplo é o Screen Junkies, que posta a série de vídeos Honest Trailers. Como o nome explica, são trailers honestos sobre o que realmente será exibido no filme. O vídeo sobre Star Trek Into Darkness traz detalhes técnicos, como a insistência do diretor em usar o efeito visual de lens flares, assim como questões mais específicas da franquia, mostrando as ligações entre o filme atual e A Ira de Khan, de 1982. Outro exemplo do mesmo gênero é

Everything Wrong with Star Trek in 5 minutes. Existem outros exemplos feitos por indivíduos com menor envolvimento profissional. É o caso de uma paródia sobre Hitler assistindo ao trailer de Into

Darkness (com as recorrentes imagens do filme alemão A Queda), um mashup entre o desenho O Rei Leão e o trailer dos últimos filmes da série (existem diversos outros exemplos da junção entre estas duas franquias no YouTube), se utilizando do tom épico da animação para traçar conexões com a ficção científica em questão. Há ainda outro vídeo intitulado Star Trek Into Darkness – Beyond

Lens Flares que faz piadas com o trailer ao mencionar diversos outros ícones da cultura pop, tirando sua seriedade. Ao falar do antifã, Adriana Amaral destaca como isto se relaciona com a identidade: se identificar tanto por gostar de algo quanto por não gostar (informação verbal)8 . Vê-se a pertinência deste raciocínio com relação a este tipo de manifestação de sátira, por exemplo. A própria questão da trollagem está relacionada a essa significação, uma prática que esteve ligada principalmente ao anonimato. Hoje, se vê que o anonimato não é mais necessariamente o que interessa, visto que as pessoas se identificam como trolls. Lembrando novamente que este é um tipo de prática que sempre fez parte da sociedade, mas que agora ganha essa viralização. (informação verbal, grifo nosso)9 .

Informação coletada em palestra concedida por Adriana Amaral no 2º Encontro de Ubiquidade Tecnológica, realizado em Porto Alegre, no dia 20 de novembro de 2012. 8

Informação coletada em palestra concedida por Adriana Amaral no 2º Encontro de Ubiquidade Tecnológica, realizado em Porto Alegre, no dia 20 de novembro de 2012. 9

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Estes textos “acessórios”, por assim dizer, embora não façam parte dos universos em si, demonstram rastros da atuação dos fãs em se relacionar com as franquias. As formas de engajamento com elementos de entretenimento são muitas e dinâmicas. Mesmo a atuação fora dos universos de uma série, por meio de vídeos feitos em casa, serve para criar textos em comum entre os fãs. Ao imergir desta forma, os fãs demonstram o seu pertencimento à franquia. Jenkins (2006) faz uma recuperação sobre este sentimento frente à indústria especificamente com relação a Star Trek: Ao invés de reescrever o conteúdo da série, os fãs afirmam estar mantendo Star Trek “vivo” em face de indiferença da rede de distribuição e incompetência do estúdio, e permanecer “fiel” para o texto que primeiro capturou seu interesse cerca de vinte anos antes (JENKINS, 2006, p. 55, tradução nossa).

Uma demonstração interessante de uma inclusão por parte da indústria de algo realizado pelo fandom, dentro da franquia Star Trek, se deu justamente nos filmes mais recentes. Circulava on-line uma imagem criada por um fã da nave Enterprise sendo construída em um estaleiro nos Estados Unidos. A partir disto, um dos roteiristas do filme adaptou a ideia e incorporou a construção da nave

em solo americano, o que de outra forma aconteceria no espaço. Este tipo de acontecimento normalmente acaba ganhando destaque entre os fãs. Grossberg (1992) resume bem a importância que esta cultura assume para os fãs, de modo que eles constroem mentalmente mapas a partir de seus gostos. Consequentemente, para o fã, a cultura popular se torna um terreno crucial sobre o qual ele ou ela pode construir mapas de significado. Dentro destes mapas, são possibilitados investimentos que empoderam os indivíduos em uma variedade de maneiras. [...] Ao fazer certas coisas ou práticas importarem, o fã as ‘autoriza’ a falar por ele ou ela, não apenas como um porta-voz, mas também como vozes substitutas. (GROSSBERG, 1992, p. 59, tradução nossa).

Estas práticas são amplas e dizem respeito a indivíduos e grupos transitando dentro de universos. Ao mesmo tempo em que eles usam estes recursos para falar de obras, podem acabar utilizando-os para falar de si mesmos. Cabe prestar atenção não apenas nos trânsitos entre fãs e franquias de entretenimento, mas entre os primeiros e as celebridades. Uma das esferas em que

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se observa isto é através da popularização das tecnologias móveis e dos sites de redes sociais, que sugerem uma sensação de aproximação maior do fã em relação à celebridade. A questão do controle compartilhado sobre uma imagem, por exemplo, é visível também aqui. De acordo com Primo (informação verbal)10, isso ocorre devido às possibilidades de interação: o fã consegue comentar, falar, retuitar e acompanhar blogs das celebridades e sobre elas. Para o autor, a celebridade é um produto pronto para ser consumido pelo fã. A possibilidade de acompanhamento em “tempo real”, permitida pela ubiquidade das mídias, estimula a sensação de proximidade: qualquer ação cotidiana pode ser discutida, comentada e compartilhada. Dessa forma, o controle do produto-celebridade hoje não é apenas restrito à grande indústria, mas compartilhado. A conversação sobre celebridades é cercada de contradições. Ao mesmo tempo que se utiliza uma linguagem de intimidade, por meio da qual os fãs parecem realmente conhecer os ídolos, a interação raramente ultrapassa a relação parassocial. Como mostra Redmond (2006), a produção e o consumo da fama envolvem a emulação de autenticidade e proximidade, enquanto provoca o desejo dos fãs. Para o autor, as tecnologias digitais de comunicação, ao lado das mídias tradicionais, ampliam cada vez mais a conexão afetiva (PRIMO, 2010, p. 165).

A partir desse sentimento de pertencimento, outro viés é intensificado pelos sites de redes sociais e plataformas específicas: a mobilização e participação dos fãs em prol da viabilização da obra do artista. Por meio do crowdfunding, por exemplo, o indivíduo pode colaborar financeiramente com o trabalho do artista e ter seu nome associado a ele, seja pelo nome nos créditos de agradecimento ou recebendo uma recompensa exclusiva. Isso, contudo, não se configura em uma prática nova, haja vista que na área cultural são realizadas “vaquinhas” e “ações entre amigos” há décadas. O que muda é a forma pela qual o processo é executado, com base nas redes de colaboração on-line. É o caso da cantora Amanda Palmer, que contou com o auxílio financeiro da sua comunidade de fãs, arrecadando mais de US$ 1 milhão para gravar um álbum

Informação coletada em palestra concedida por Alex Primo no 2º Encontro de Ubiquidade Tecnológica, realizado em Porto Alegre, no dia 20 de novembro de 2012. 10

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independente, longe das grandes gravadoras. Na área audiovisual, o projeto Veronica

Mars Movie Project arrecadou mais de US$ 5 milhões por meio do site americano de crowdfunding Kickstarter. Trata-se do filme baseado em uma série americana cancelada depois de três temporadas, que deixou seu desfecho em aberto. A partir da percepção do interesse massivo dos fãs, a Warner Bros resolveu então apoiar o projeto, garantindo sua execução. O cineasta Spike Lee também recorreu aos seus fãs para a viabilização do seu novo projeto. A campanha arrecadou US$ 1,4 milhão em doações para o filme The Newest Hottest Spike Lee Joint. Nesses casos, há uma ingerência dos fãs com relação ao conteúdo da obra produzida, mas a plena participação se dá quanto à decisão final sobre a execução do projeto. Esses e outros exemplos que permeiam a nossa cultura demonstram que o fã é capaz de apresentar múltiplas facetas que vão além do mero consumo de celebridades enquanto produto, mas também, como define Freire Filho (2007, p. 4), é “um consumidor astuto, capaz de construir seus próprios sentidos e elaborar um conjunto variado de práticas, identidades e artefatos a partir da apropriação criativa de produtos de circulação massiva”. Dessa maneira, o espaço do fã configura-se como um terreno sob disputa, cujas manifestações são interessantes de se verificar em diferentes mídias, especialmente quando carregam diferentes tipos de discurso: sátira, expansão de universo, crítica ou aversão.

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REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 2005. FREIRE FILHO, João. Convergências e divergências midiáticas: fãs, indústrias do entretenimento e os limites da interatividade. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO – INTERCOM, 30., 2007, Santos. Anais eletrônicos... São Paulo: Intercom, 2007. Disponível em: . Acesso em: 6 jul. 2014. GROSSBERG, Lawrence. The affective sensibility of fandom. In: LEWIS, Lisa A. The adoring audience. London: Routledge, 1992. p. 50-65. HILLS, Matt. Fan cultures. Londres, Reino Unido: Routledge, 2002. JENKINS, Henry.Fans, bloggers, and gamers: exploring participatory culture. New York City: New York University Press, 2006. ______. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph. 2009. LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2010. MILLER, George A. The magical number seven, plus or minus two: some limits on our capacity for processing information. In: Psychological Review, vol. 101, n. 02, p. 343-352, 1956. PRIMO, Alex. De narcisismo, celebridades, celetoides e subcelebridades: o caso Tessália e sua personagem Twittess. In: Comunicação, Mídia e Consumo. São Paulo, v. 7, n. 20, p. 159189, nov. 2010. Disponível em: . Acesso em: 6 jul. 2014. ______. Existem celebridades da e na blogosfera? Reputação e renome em blogs. In: Revista Líbero, São Paulo, v. 12, n. 24, p. 107-116, dez. 2009. Disponível em: . Acesso em: 6 jul. 2014. TAYLOR, Charles. The ethics of authenticity. Cambridge, Massachusetts: EUA: Harvard University Press, 2003. ______. Sources of the self: the making of the modern identity. Cambridge, Massachusetts, EUA: Hardvard University Press, 1989.

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hiperlivro: um novo modelo e novos agentes para o sistema digital1 Ana Cláudia Munari Domingos2 Antonio Carlos Hohlfeldt3

Na área da Comunicação, a ubiquidade tecnológica tem sido tomada como uma oportunidade de alargamento do espaço de ação e pesquisa, garantida pelas novas tecnologias midiáticas. Apesar das implicações sempre imprevistas, o debate tem se pautado por uma noção positiva, porque gerado num ambiente que reconhece e agrega a transformação e a remediação dos suportes de comunicação. No campo de Letras, mais especificamente o da Literatura, entretanto, essa questão ainda é um polvo amedrontador, cujos tentáculos colocam em risco aquilo que seus agentes têm de mais tradicional e, por que não dizer, sagrado: a cultura do livro. O primeiro congresso sobre o livro digital no Brasil, organizado pela Câmara Brasileira do Livro, ocorreu apenas recentemente, em março de 2010. Entre confissões de desconhecimento e temor, o livro digital ora se apresentava como uma ameaça ao setor editorial, ora como oportunidade de investimentos e lucros. Mas havia uma preliminar inconteste: o caminho entre o texto e o leitor deixava de ser assunto restrito ao autor, ao editor, ao livreiro ou ao crítico. Na segunda edição, em julho de 2011, o grupo de palestrantes do evento foi ainda mais sintomático: engenheiros, administradores, economistas, advogados, designers, publicitários, jornalistas e acadêmicos da área de Comunicação, todos relacionados, de alguma forma, com a esfera digital, reunidos a editores e livreiros, muitos deles do mundo de papel. Mas os outros agentes do campo, como escritores, críticos e educadores,

Artigo selecionado no 4º Congresso Internacional do Livro Digital, organizado pela Câmara Brasileira do Livro. 1

Doutora em Linguística e Letras pela PUCRS; professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da UNISC. 2

Doutor em Linguística e Letras pela PUCRS; professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUCRS. 3

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não chegaram a participar desse debate. Segue-se que o texto, ali, significava o conteúdo digital, uma realidade presente em tablets, e-readers ou gadgets os mais inovadores, candidatos a suplantar o remediador do códice. Tal amalgamento entre agentes e suportes – e ainda mídias e softwares – que envolve a discussão sobre o livro digital, é motivo de insegurança para aqueles que vivem a cultura do livro de papel – e seus papeis seculares. Deve-se lembrar, contudo, que o livro também já foi temido, proibido, queimado em fogueiras; também foi motivo de discórdia entre os defensores da tradição da cultura oral – a memória humana – e seu registro, considerado artificial e danoso à razão. E se hoje gera preocupação a notícia de que a mudança de suporte pode revolucionar, não apenas as práticas, mas alcançar até mesmo o conteúdo, é porque esquecemos que o longo percurso entre as paredes da caverna e o livro são marcadas pelas transformações na escrita e na leitura – e também no texto. A necessidade de transferir as narrativas orais para o sistema escrito, por exemplo, revolucionou as primeiras formas de registro gráfico, como a pictográfica e a hieroglífica, próprias para o registro de transações comerciais, números e leis, levando, assim, ao surgimento da escrita cuneiforme. Seus símbolos, que representavam sons e não objetos, desenvolveram-se para dar conta de fixar a imaginação humana, desdobrada pelas histórias orais, o que tornou possível o registro da literatura em quinze línguas diferentes, desde o império sumério até o assírio4 . Bem mais adiante, se a técnica per cola et comata, utilizada nos scriptoria, ajudava na leitura, a influência inversa também ocorria, forçando o uso da pontuação, da separação em parágrafos, da numeração das páginas pelos copistas. Esses dispositivos, nascidos da prática manuscrita da produção de livros, fomentaram, por sua vez, a fixação da leitura silenciosa. Ainda antes do livro, a passagem da leitura oral para a silenciosa fez tremer as estantes dos mosteiros: silenciosamente, era possível realizar, não apenas uma leitura íntima, como também uma interpretação particular, exercício ameaçador para aqueles que tencionavam controlar as ideias. Séculos antes disso, o Imperador César certamente não poderia imaginar a consequência de seu gesto de dobrar o rolo de papiro para guardá-lo entre as 4

MANGUEL, Alberto. Uma história de leitura, São Paulo, Cia. das Letras. 1997.

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vestes, uma maneira mais simples de levar o discurso para ser lido às tropas, antes da batalha. Livros dobrados eram mais fáceis de serem transportados, e escondidos, e o formato logo foi preferido. Que o digam os romances, principalmente os proibidos: por causa deles, os livros diminuíram, baratearam e multiplicaram-se. Atualmente, os copistas pós-modernos têm promovido uma série de revoluções nas práticas de escrita e leitura, a partir de seus gadgets, fazendo tremer as bases institucionais da cultura do livro de papel, num paralelo com as mudanças ocorridas desde a gênese do livro até aqui. A questão sobre a transformação das formas de escrita pelo meio digital desperta os profissionais de ensino, preocupados com a linguagem utilizada pelos internautas, repleta de símbolos, siglas e abreviaturas, além de erros (algumas palavras são representadas pelo som correspondente à fala, por exemplo). No entanto, de certa forma, parece que essas práticas evocam modos anteriores de comunicação, como aqueles da escrita pictográfica. A entrada dos tablets nas salas de aula é uma espécie de fantasma que já atemorizou as instituições de outrora5, quando os livros deixaram as bibliotecas dos mosteiros para se tornarem suportes do livre pensamento. Conectados à rede, essas tábuas tecnológicas oferecem ao aluno respostas imediatas e dispõem um conteúdo que supera qualquer memória ou quadro negro – desafiando os mestres. E, como o rolo dobrado do imperador, são fáceis de serem carregados nas vestes. Além de a tecnologia ter-se tornado uma ferramenta indispensável em todos os campos da rotina humana, ocorre que as práticas do viver contemporâneo têm convergido, em sua totalidade, para o espaço virtual: no mesmo suporte em que pagamos impostos e trocamos e-mails, podemos encontrar o prazer da ficção e do entretenimento. Como sugeriu Sílvio Meira no II Congresso do Livro Digital, o conteúdo oferecido através da rede não deve ser considerado um produto, mas um serviço, e a literatura está nesse mesmo bojo, em bytes. Se a reprodução industrial do texto, promovida pela invenção de Gutemberg, retirou a aura da arte literária, o que dizer da transformação de seu suporte – de um objeto palpável à prestação de um serviço inesgotável?

Observe-se como um tablet se parece com uma placa de barro como as que os sumérios criaram para seus registros, mais de 3500 anos antes de Cristo. 5

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Embora a história do livro tenha em torno de seis mil anos6, sendo paralela à da escrita, foi apenas em torno do século XVII que se fortificou essa espécie de reverência em torno dele. Foi a escola que nos ensinou a respeitar o livro: primeiro, pelas instituições religiosas de ensino, preocupadas com a interpretação da bíblia e com a proliferação de obras laicas; em seguida, pelas escolas criadas pelo advento da burguesia. Depois da invenção de Gutemberg, quando a produção de livros e a formação de bibliotecas escaparam ao controle dos mosteiros, a alfabetização e o ensino tornaram-se uma questão da sobrevivência para a igreja. Controlar o cânone, a leitura e a interpretação era a forma de manutenção de seus dogmas7. Com o nascimento do Racionalismo, a Igreja ainda assim conseguiu manter-se no posto, não apenas pela chamada ao ensino da filosofia e das ciências – e porque suas bibliotecas dispunham das obras necessárias – mas também porque encontrou, na família burguesa, uma aliada na formação das crianças. A família burguesa precisava educar seus herdeiros, a fim de garantir sua ascensão social, já que não dispunha de títulos de nobreza. Por outro lado, também necessitava de trabalhadores para as indústrias em formação, eis que por trás da educação estava o conceito de empreendedorismo. Educar para o trabalho tornava necessária a transmissão de uma série de conhecimentos, e as escolas foram criadas com esse fim, e a partir do livro, transformado num instrumento pedagógico. A sociedade ocidental foi, assim, educada para enxergar no livro o representante do conhecimento. Aprendemos a confiar nele como fonte da verdade: sua memória rígida tornou-o depositário fiel da história. A literatura, a maior propagandista do livro, tornou-se, igualmente, utensílio da escola, a maneira mais exitosa de formar leitores. No livro, a literatura já fora confundida com a filosofia, com a religião, com o conhecimento: agora ela se confundia com a educação. Junto com a ideia de infância – os pequenos burgueses, os pequenos futuros trabalhadores – nascia a literatura infantil, atrelada à pedagogia.

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CAMPOS, Arnaldo. Breve história do livro. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1994.

Foi durante o Concílio de Trento que a Igreja Católica Apostólica Romana, através do Papa Paulo IV, criou o Index Proibitorum, em 1559, que vigorou até metade do século 1966, indicando quais livros um bom cristão poderia ler ou não. 7

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A literatura infantojuvenil8 promoveu a indústria do livro em muitos aspectos. Empresas editoriais nasceram com o propósito de suprir as estantes das escolas, redes de distribuição foram criadas e muitas técnicas desenvolveram-se a partir da produção de obras infantojuvenis, a exemplo daquelas relacionadas às ilustrações e à preocupação com a diagramação e com os modos de ler. As adaptações de livros adultos e de fábulas, devidamente ajustadas, serviam para ensinar os preceitos morais que a escola almejava transmitir, assim como através dos contos de fadas. Para as classes escolares, proliferaram os parnasos, as seletas, os compêndios, os livros de leitura – além de cartilhas, gramáticas, dicionários, tabuadas, mapas –, seleções de obras, autores, trechos, reunidos com o propósito de apresentar aquela literatura que se confundia com educação – a boa literatura. Ainda hoje, os grandes compradores de livros no Brasil são as instituições públicas ligadas à educação formal, entre elas, os Governos – um em cada três livros vendidos pelas editoras é comprado por instituições governamentais9, para a distribuição nas escolas e para os programas de fomento à leitura. A interferência sobre a produção de livros, a partir desse comprador, é inegável: a escola se torna o leitor implícito do texto, a erigir princípios frente ao autor, à editora e mesmo à crítica das obras. Esse é somente um dos fluxos do campo literário, no que concerne a uma fatia razoável do mercado de livros: a literatura infantil e juvenil. Frente a essa produção de obras para as bibliotecas escolares e públicas – cuja venda é feita geralmente a partir de editoras e distribuidoras –, ainda há a comercialização em livrarias, incluindo sebos e lojas on-line. Nesse nicho de mercado, as relações, reguladas por critérios menos atrelados às questões de ensino, são diferentes, pois a escolha é ora feita pelo jovem, ora pelos pais. A escolha pelo leitor infantil ou juvenil ocorre, principalmente, a partir do apelo visual, das referências a outras obras de entretenimento, da presença de ludicidade; já a eleição pelos pais é regulada por dois critérios fundamentais, entre

Utilizamos aqui o termo de época: atualmente, pela divisão entre infância e adolescência, é usual distinguir a literatura infantil da juvenil. 8

GONÇALVES FILHO, Antonio. A literatura para crianças vista de perto. O Estado de São Paulo. Notícias. Cultura. 26 de agosto de 2010. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,a-literatura-para-criancas-vista-de-perto,601375,0.htm. 9

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eles, ainda, certos preceitos da educação, ou, minimamente, o exercício de um controle sobre o tema e as questões colocadas pela obra – aprendido na escola –, e, finalmente, pelo preço. Essa é certamente uma forma simplista, que serve como ilustração de algumas das relações, as mais visíveis, do campo da literatura infantil e juvenil, que exclui tanto as famílias que buscam nessas obras o mesmo que procuram na literatura adulta – e aí iríamos longe, para as questões de literariedade, que não cabem aqui – bem como as editoras cuja produção é voltada para esse pequeno público. Assim, ao considerar o fato de que uma extensa fatia do mercado editorial é a da literatura infantil e juvenil, e também que é a partir dela que se formam leitores, torna-se forçoso refletir sobre as questões que se impõem na produção de livros: o ensino formal, o entretenimento e a educação regulada pelos pais. Pensar o mercado de livros digitais, entretanto, envolve conjecturar pontos um tanto distintos; mas que, igualmente, relacionam-se com a espécie de obras voltadas ao leitor infantil e juvenil. Comecemos pela demanda: quem compra livros digitais – o usuário de tecnologias ou o leitor de livros? Qual é o conjunto de textos disponível em língua portuguesa hoje em dia? Que obras têm sido publicadas em e-book, em papel, nos dois formatos? Quem é o usuário de tablets, e-readers e assemelhados? E quem é o leitor de livros hoje? Nesse ponto, é preciso fazer referência à terceira revolução do livro e da leitura, conforme Chartier10: o romance11 . Se o respeito ao livro foi engendrado pela escola, que formou certo tipo de leitor, o desejo e o afeto nasceram com o romance. O romance foi a revolução do gênero, o despertar do leitor para o prazer, a fabulação, a identificação com a realidade, a catarsis moderna. De certa forma, também

CHARTIER, Roger. “Do códice ao monitor: a trajetória do escrito” in Revista Estudos Avançados. Publicação quadrimestral do Instituto de Estudos Avançados da USP, n. 21, maio-agosto de 1994. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/v8n21/12.pdf. 10

As revoluções do livro estão relacionadas com as transformações das práticas de leitura, numa via de mão dupla. Podemos pensá-las assim: a conquista da liberdade do corpo do leitor, com a passagem do rolo para o códice; a conquista da liberdade de interpretação, a partir da leitura oral; a conquista da escolha, com a possibilidade da leitura extensiva, a partir da invenção de Gutemberg; a possibilidade de fabulação, a conquista do prazer de ler, com o nascimento do romance. Enfim, respectivamente: a revolução formal do suporte, da leitura, do mercado e do gênero. 11

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conta o fato de seu desprestígio inicial12 e mesmo sua cota de proibições, pois tudo que é proibido flerta com o desejo13. O romance fez surgir outra espécie de leitor, diferente daquele que a escola estava formando, mas que, hoje, em muitos casos, coincide com ele, quando o romance foi inscrito como gênero clássico. E com esse novo leitor multiplicando-se mais rápido que o volume de obras, começaram as grandes tiragens, as publicações por encomenda, as questões mercadológicas acerca do material, do formato, e ainda da distribuição e venda de livros (sem esquecer a circulação, o contrabando, a falsificação, a pirataria, etc.). Diante desse leitor frequente, as instituições ligadas ao campo literário – escolas, academia, crítica, igreja – tiveram de adaptar-se e, em lugar da proibição do gênero, foi preciso eleger um cânone. A poética e a retórica não davam conta da nova forma, que a crítica tardou a enxergar. Para selecionar romances capazes de receber o referendo dessas instituições foi preciso um longo tempo, até que os primeiros clássicos provassem seus valores – os humanos e os literários, que a teoria da literatura foi obrigada a encontrar. Mas muitos textos considerados literários num primeiro momento, mais tarde deixaram de sê-lo14 . É que as ideias que os críticos tomam da teoria para carimbar as obras clássicas, acadêmicas, ainda divide essas duas espécies de leitor: o erudito e o popular, divisão que se consolidou com o romance e com a multiplicação do livro. Embora tenha recebido o status de arte ainda no século XIX, durante muito tempo, o romance foi, em verdade, a forma de entretenimento mais comum de grande parte da sociedade, como já o foram as narrativas orais, a poesia e o teatro. Em seguida, concorreram com ele o cinema, o rádio e a televisão, que transforma“Embora desvalorizado, no período, como gênero menor, por não seguir os preceitos da poética ou da retórica, era, dentre os escritos das belas-letras, o que despertava maior interesse no público”. ABREU, Márcia. “Leituras no Brasil colonial” in Remate de Males. Revista do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem – Unicamp, n. 22, Campinas, São Paulo, 2002, p. 131-163. Disponível em: http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br/estudos/ensaios/leituras-reading-br.pdf. 12

O romance alcançou sua popularização através da imprensa, na forma do romance-folhetim, publicado diariamente na parte inferior dos jornais. José Ramos Tinhorão afirma que é impossível escrever a história do romance no Brasil – e isso pode ser estendido, certamente, à maioria dos países que possuíam imprensa ao longo do século XIX – sem se levar em conta estas publicações, boa parte das quais hoje desconhecida dos estudiosos (Os romances folhetins no Brasil: 1830 à atualidade. São Paulo: Duas Cidades, 1994). 13

Tome-se o caso de Eugène Sue, considerado um grande escritor, enquanto seu contemporâneo Honoré de Balzac, era quase menosprezado. Hoje, o cânone se inverteu. 14

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ram grande parte dos leitores em telespectadores. Grande parte desses leitores conquistados pelas telas aprendeu na escola que o livro é o objeto do conhecimento irrefutável, e que devemos abrir as páginas das boas obras: dos clássicos, dos eleitos. Essa foi a revolução negativa do livro: a passagem das narrativas para as telas. Rapidamente, e também pela dificuldade de acesso a bibliotecas e livrarias e, ainda, pelo preço elevado do livro em papel, a televisão tomou o lugar de honra na estante da sala. Apesar disso, as histórias continuaram proliferando nos livros, muitas delas para abastecer o teatro, o cinema e a televisão. A revolução digital, também uma questão de transferência, agora de conteúdo, para as telas, foi, para o livro, uma ameaça mais agressiva, representada pela criação do e-book: a remediação iminente do formato secular do livro em papel. Antes disso, a internet transformou o prenúncio do fim em vantagem: ajudou a divulgar e a vender livros. A possibilidade de, não apenas comprar um livro de papel numa loja on-line, mas também de produzi-los e distribuí-los no formato digital, tumultua o campo literário tradicional, porque coloca em xeque a participação – e o status – de seus principais agentes e intermediários: o autor, o editor, o livreiro, o crítico e o leitor. A pergunta, então, recai sobre quem é esse leitor cujo papel se transforma pela possibilidade de construção das narrativas em rede, questão essa que, para o restante dos agentes do campo literário, significa pensar para quem se escreve, para quem se produz o livro e como ele vai ser oferecido. Para o crítico, o trabalho se amplia: não apenas seu objeto de estudo perde as bordas e o fechamento dado pelo livro, como também o exercício da crítica se desconecta de seus principais princípios, como a formação de um cânone e as relações com as instituições de ensino. Enquanto não houver institucionalização dos novos gêneros e teoria, o papel do crítico diante da hipermídia torna-se confuso e mesmo contraproducente. Se a confusão se estabelece no plano simbólico, a partir da convergência entre esses agentes no ciberespaço e, ainda, entre gêneros e linguagens, a questão mercadológica se faz urgente: é preciso produzir obras digitais para esses e-readers nas mãos dos leitores. Entre as questões sobre quem produz e como, quem vende e

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onde, a pergunta consecutiva é: quem é o hiperleitor15? E, aí, retornamos à questão sobre se, nesse futuro próximo, o leitor de livros se transformará no leitor de e-books ou se esse será o usuário de tablets, smartphones e gadgets desse tipo (num futuro distante, seremos todos hiperleitores, ciberleitores,...), ou se não teremos leitores de e-books nem de livros, mas de hipermídia – de hiperlivros. Uma questão vinculada a todas essas é, igualmente, a questão da autoria e da qualidade dessa autoria. O espaço virtual aceita tudo. E se a boutade de Mário de Andrade – conto é aquilo a que um autor chama de conto – valeu na época como piada, hoje, ela está atualizada e é ocorre ao pé da letra: a rede aceita todo e qualquer texto, independente de sua qualidade, bastando que o autor o etiquete como bem entender. Ele assim será recebido e lido, sem que se tenha, de imediato, qualquer conjunto de critérios que permita avaliação e discriminação, quer de gênero, quer de qualidade (se isso ainda for então necessário, é claro...). As editoras de fundo de quintal, principalmente essas que transformam textos em PDF, agregam músicas e pequenas interações a textos sem valor – sem revisão, mal escritos, repetitivos –, multiplicam-se. Aliás: qualquer autor com o mínimo de conhecimento de software pode publicar seu próprio trabalho. Daí que avaliar o cliente potencial desse produto significa pensar no campo de (um outro?) poder do sistema literário digital, que nos desloca para todas aquelas questões sobre as demandas do ensino formal, do entretenimento, da educação familiar, e que envolvem o mercado editorial. Mais ainda, significa não subestimar o leitor da era industrial, que nasceu com o romance e sobreviveu ao cinema, ao rádio e à televisão: o leitor apaixonado pelo livro de papel. Entre os usuários frequentes de tecnologia, há aqueles que ainda fazem parte desse grupo, dos que aprenderam a respeitar o livro na escola e se apaixonaram pelo romance, indivíduos da geração Y, por exemplo, que são usuários da tecnologia sem abandonar o papel. É nesse ponto que nos reportamos ao tema da literatura infantil e juvenil, campo fértil em que se desenvolveu a indústria do livro. Antecipar as questões que envolvem o mercado da cultura digital é entrar no campo das conjeturas É o leitor da era de convergência de mídias, que realiza a leitura fragmentada e dispersa da hipermídia – a mistura entre comunicação, artes, gêneros e suportes. A hiperleitura é a prática de ler-responder, simultaneamente construindo caminhos de leitura e interferindo no texto, em ambientes conectados à internet. 15

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virtuais – as óbvias e as catastroficamente equivocadas; essas reflexões, mais do que previsões do futuro, são uma série de perguntas que apenas ajustam o foco para as probabilidades. Dentre elas, aquela que diz respeito ao leitor presumível de um texto digital, aquele que dispõe da tecnologia – o hardware, o software e a conexão com a internet – e sabe utilizá-la. Unindo apenas essas características, parece que o rol de leitores se restringe a uma pequena camada da população, o que é correto, atualmente. Poucos dispõem de recursos para adquirir tablets, e-readers e conteúdo digital16, mas muitos estão aptos a utilizá-los, principalmente os jovens. O códice também foi um objeto para pouquíssimos, cuja matéria prima só existia em determinados lugares, como o papirus, ou ainda de difícil e demorada fabricação, caso do couro e do papel de trapos. Some-se o fato de que foi necessário ensinar e difundir a prática da escrita e da leitura, como hoje seria preciso promover a educação digital. Mesmo depois da afirmação do formato do códice, graças à invenção da imprensa, muitas questões econômicas dificultaram e ainda hoje dificultam a difusão do livro, tanto quanto do e-book, sendo uma delas o nível significativo de analfabetismo, em geral e, hoje em dia, de analfabetismo digital; mas, no caso da revolução digital, a transformação não apenas tem sido mais rápida, como seus disseminadores têm agido por conta própria. Aliás, diferentemente do plano de crescimento da cultura do papel, a cultura digital tem se desenvolvido aquém dos muros de mosteiros e escolas. Duas questões se impõem para desestabilizar a noção de que a dificuldade de acesso à tecnologia impede a evolução do livro digital: a rapidez com que a população adota as práticas tecnológicas, e a formação de uma nova geração de leitores, a geração Z, os nativos digitais. Para ilustrar a primeira, tomemos o exemplo da telefonia móvel, tecnologia que, embora tenha nascido no final da década de 60 do século passado, só passou a ser utilizada a partir dos anos 80. No Brasil, a primeira cidade a receber o sistema foi o Rio de Janeiro, em 1990; hoje, pouco mais de vinte anos depois, o Rio é um dos estados em que o número de aparelhos

Perdura, também e ainda, a questão do domínio do idioma, já que o maior acervo ainda está disponível apenas em inglês. 16

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celulares supera o número de habitantes. No Brasil todo, já existem 212,6 milhões, em dados do mês de abril de 201117. Àqueles que quiserem comparar as diferenças mercadológicas entre um aparelho celular e um leitor digital, é bom lembrar que os primeiros tijolões custavam tanto quanto um netbook hoje – e a fila para comprar iPads já foi uma fila para comprar uma linha de telefonia móvel. A comparação sobre a utilidade do celular diante de um smartphone ou um iPod também favorece o acontecimento da remediação, pois, além de que é possível utilizar esses últimos para o mesmo fim de um telefone móvel – comunicar-se, cada vez mais tem-se buscado formas de comunicação franqueadas pela internet, tais como o Skype e o Whatsapp. O início da fabricação desses gadgets no Brasil e a baixa de preços18 têm conspirado para a disseminação da prática de hiperleitura, que evolui à forma ordinária de leitura. A segunda questão envolve os usuários das tecnologias que permitem ler e responder em rede – utilizando a linguagem escrita, a imagem, o som, o vídeo: indivíduos cujas práticas diárias têm convergido cada vez mais para esses aparelhos, nos quais textos19 são lidos, interpretados e respondidos continuamente. Embora sejam ferramentas comuns aos ambientes de trabalho, indispensáveis em múltiplas áreas e, assim, utilizados principalmente por profissionais, os computadores, tablets e smartphones são, para crianças e jovens, a extensão que lhes possibilita exercer muitas de suas rotinas, desde as tarefas escolares até o entretenimento e a socialização. Mais do que o foram o livro, a máquina de escrever e os aparelhos de som para as gerações anteriores, tais utensílios têm-se tornado mesmo uma espécie de bem necessário, essencial para a construção de identidades e para a inserção social e o reconhecimento em determinados grupos. Até então, tais aparelhos, apesar de exigirem a leitura/escritura20 contínua, têm sido utilizados sobretudo para a comunicação e o entretenimento, e a escola, Presidência da República. Brasil. Notícias. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/noticias/arquivos/2011/05/25/numero-de-celulares-no-brasil-cresce-9-6-milhoes-em-2011. 17

O governo brasileiro vem trabalhando neste sentido, buscando institucionalizar políticas de popularização de equipamentos digitais entre a população de baixa renda. 18

Aqui, a noção de texto é aquela ampla, que agrega todas as tessituras portadoras de um sentido entre emissores e receptores. 19

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Ou a recepção, interpretação e resposta.

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por essa razão ou por consequência, tem estado apartada dessas práticas, como já esteve do cinema, do rádio ou da televisão, mídias que concorriam com o livro, tanto no aspecto da transmissão de conhecimento, quanto no da diversão. A linguagem dessas mídias, em vez de se somar à linguagem verbal no currículo escolar, passou a servir como recurso metodológico de apoio, prática que, de certo modo, esteve de acordo com o valor que recebiam no contexto social, em comparação ao livro21 . Na era digital, entretanto, a imagem, a música e o vídeo adquiriram outro status, já que, acessíveis à população, tornaram-se as linguagens por excelência nas práticas mais diversas, por suas características icônica, dinâmica e muitas vezes universal. Crianças e jovens são seus falantes naturais – nativos do ciberespaço –, dominam seus códigos e formas e se alfabetizam sem o controle das instituições educacionais. Mais do que isso: eles instituem esses códigos e criam suas próprias formas de expressão e de comunicação e, consequentemente, seu próprio cânone. Mais do que compor um rock de garagem ou portar um cartaz numa passeata, tornou-se possível a essa geração criar formas identitárias e/ou culturais, que alcançam espaços ilimitados, não apenas difundindo, mas interferindo e transformando essas linguagens. Muitos desses jovens, inclusive, nunca tiveram franqueado seu acesso a livros tanto quanto o tem à hipermídia, e talvez ainda mais, se considerarmos aqueles que pertencem às classes mais desfavorecidas – e que nunca tiveram bibliotecas a seu alcance, mas têm, hoje, acesso à rede mundial de computadores. A informação de que no Brasil existem cerca de 110 mil lan houses, grande parte delas localizadas em periferias e bairros de classe C e D, corrobora essa noção de que o entretenimento baseado nas práticas de leitura/escritura tem ocorrido muito mais em páginas roladas nas telas do que folheadas em livros22 – sejam eles de papel ou e-books. E o conteúdo, distante do formalizado pela escola, é produzido,

A música e a imagem não são consideradas formas ideais para a transmissão do pensamento racional, como o é a linguagem verbal e, mesmo como expressões humanas, são superadas pela arte da palavra – a literatura foi eleita a arte que melhor representa e comunica o pensamento humano, decisão formatada pela escola. 21

Sabe-se que, nas favelas cariocas, multiplicam-se serviços de lan houses, com acesso pleno e contínuo, principalmente das populações jovens dessas regiões. 22

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organizado e difundido em grande parte pelos próprios usuários, através de suas mídias, suas linguagens, seus gêneros, seus textos. Se o livro, como o conhecemos, originou-se pelo modelo monástico e se fixou pelo escolástico, qual modelo se erige no contexto digital? E quem está no centro do campo de poder do sistema literário digital que ora se constrói? Se analisarmos as profissões dos participantes dos congressos organizados pela Câmara Brasileira do Livro já citados, podemos ter uma ideia dos agentes do campo estendido do livro. Numa das sessões, Sílvio Meira afirmou que o modelo do livro do futuro viria das redes sociais, e não das empresas que estão digitalizando e-books, o que coloca a importância da internet e das comunidades que ela permite formar. Em vez de institucionalizado, o modelo do livro digital se formata pelo compartilhamento em rede, pela práticas que se fundam no ciberespaço, a partir da convergência midiática, e assim se faz transmutável, volátil, suscetível ao seu leitor. Esse leitor, um internauta, torna-se o modelo em mente para autores, editores e livreiros desse sistema. A primeira imagem que se faz desse leitor é justamente o usuário de tecnologias, que coincide com a espécie de consumidor que tem estado no centro das atenções do mercado, tanto o de tecnologias da comunicação quanto, e principalmente, o de entretenimento: os jovens. Basta olhar a quem se dirige a publicidade de celulares, tablets, música, shows, cinema, vestuário, e agora também, automóveis e empreendimentos imobiliários. O mercado editorial, depois do sucesso de Harry Potter, tem buscado encontrar um sucessor, enchendo as prateleiras de histórias de adolescentes heróis, vampiros e estudantes superpoderosos. Os consumidores desses objetos acostumaram-se, não apenas a assistir seus filmes e séries, tanto quanto ler seus livros, mas a compartilhar suas leituras, produzir suas versões, postar seus comentários. Se esse for o leitor alvo dos agentes do sistema literário digital, certamente o texto vai se moldar ao suporte – a rede – e a literatura deixará de ser definitivamente o texto linear em papel, para se tornar aquilo que a hipermídia permite que ela seja: a convergência de mídias, gêneros e textos. Ou seja: o livro do futuro não será o e-book, que nada mais é do que um livro remediado do papel à tela.

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Já sabemos que as transformações dos suportes e das práticas de leitura sempre alcançam o texto de alguma forma – e que tudo isso se relaciona intimamente com as questões sociais. Se não fosse assim, ainda leríamos epopeias em versos alexandrinos. É por isso que a literatura em telas não será a mesma, porque a hipermídia é outra linguagem. O tratamento das imagens e sua relação com o texto que essa literatura pode trazer à tona evocam de imediato a Bíblia Pauperum, agora na versão pós-moderna: um texto formatado para o leitor digital, então incapaz de ler e interpretar a linguagem verbal linear, como foi o texto sagrado em imagens para os fiéis analfabetos. Daí a imaginar a inserção de textos publicitários, de imagens dos personagens conversando com o leitor, de flashbacks em vídeo, à moda do seriado Friends, e a profusão de links para toda a espécie de intertexto – nomes, cidades, mapa, outras histórias, músicas, filmes (como foi feito aqui), é um passo. Assim como as mídias têm convergido para o ciberespaço, para onde também convergem diferentes agentes, o campo do entretenimento e das artes – cujo alvo frequente é o consumidor jovem – é cada vez mais um negócio a que aflui o campo da comunicação. Seu consumidor tem deixado de ser um leitor linear, migrando dia a dia para as práticas hipermidiáticas de leitura. Se a escola não tomar posição no sistema editorial digital – frente ao cânone, aos textos e aos modos de ler –, teremos um modelo comunicacional de livro a substituir o escolástico que, por sua vez, ainda é o do sistema educacional vigente. A sociedade moderna foi condicionada, não apenas pela linguagem verbal, mas pela cultura linear promovida pela escrita e pelo livro23, que a escola ajudou a concretizar, norteando-se pela noção de infância – como objeto de seus métodos e práticas. A sociedade hipermidiática pode vir a ser pautada pelo consumidor jovem –agentes da hipermídia – e suas práticas de leitura no espaço digital. Se esses jovens voltarem seus olhos para os livros digitais, deixando de lado seus mais caros objetos de entretenimento em rede, então, a prática de hiperleitura será o mote do mercado editorial digital. Mas isso pode não ocorrer de imediato, já que a internet ainda não encontrou seu equivalente do romance – o gênero do leitor apaixonado por livros de papel. 23

Como bem o coloca David Olsen em O mundo no papel.

ana cláudia munari domingos  |  antonio carlos hohlfeldt

Nos EUA – onde o mercado de livros digitais é uma realidade, e não uma ameaça – o maior comprador de e-books são as mulheres, com idade média de 44 anos, que compram sobretudo livros de ficção (58%), conforme as pesquisas de Dominique Raccah24 . Ou seja: o leitor de romances em papel está coincidindo com o leitor de livros digitais – a geração Y é o primeiro hiperleitor do livro digital. Mas a essa geração de leitores de livros outra se segue. Se o modelo ali é ainda o da leitura linear, de textos digitalizados, é natural que aqueles que gostem de ler – e que não sejam avessos à tecnologia – sejam os compradores de livros. Assim como os textos dos rolos em pergaminho foram transportados para os códices, e os primeiros textos impressos foram cópias dos textos manuscritos, também os primeiros livros digitais conservam a estrutura linear do texto em papel. Assim como os incunábulos mantiveram a aparência dos manuscritos – fontes, letras capitulares, bordas ilustradas, por exemplo – também os primeiros livros digitais mantêm a estrutura analógica dos livros em papel. Assim, para esses primeiros leitores digitais, a diferença está na facilidade do suporte material – a leveza de uma biblioteca portátil, a facilidade de comprar pela internet, de dispor do livro em vários locais. Mas os modos de ler são os mesmos, formatados pela prática linear de leitura – com o acréscimo de dicionários, enciclopédias e referências digitais, quando o suporte conectado permite acessá-las. Já a geração Z (ou os millennials, ou os chamados nativos digitais) não equivale a esse leitor de romances em papel; assim, o conteúdo digital que pode seduzi-lo e levá-lo a ser um leitor de livros tem de ser mais do que um texto em PDF. Para o leitor nativo de hipermídia, dos jogos digitais, dos MUDS25, das redes sociais, dos textos fragmentados da internet, o livro digital tem de se transformar no hiperlivro – a forma equivalente do romance para essa geração, capaz de seduzi-lo para a leitura de narrativas, as novas narrativas em rede26 .

Como foram elas, no século XIX, que se tornaram as leitoras dos romances e, depois,dos romances-folhetim; mais tarde, ouvintes das rádio-novelas e, mais recentemente, espectadoras das telenovelas. 24

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Multi-user domain é uma espécie de RPG em que os participantes jogam, juntos, um mesmo jogo pela internet.

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Como, há pouco mais de uma década, as narrativas de RPGs fascinaram alguns breves segmentos de leitores.

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102 hiperlivro: um novo modelo e novos agentes para o sistema digital

A leitura nunca foi tão praticada. Olhamos para as pessoas ao redor e elas frequentemente estão conectadas com outras pessoas pelo celular, em rede, acessando conteúdo – e lendo, assistindo, interpretando, respondendo. No entanto, esse tipo de leitura é muito distinta daquela que aprendemos na escola diante do livro: uma história, uma informação, o conhecimento, para serem lidos do início ao fim, e assim interpretados, em suas relações de causa e consequência, uma conclusão, uma ideia, uma moral. Sem o auxílio de outras linguagens, na leitura linear, o texto verbal é o único guia da interpretação do leitor, solitário com o livro e sua imaginação. O hiperlivro não será apenas um novo suporte, cuja materialidade é afetada pela ubiquidade tecnológica, mas o suporte de um material simbólico que também se transforma a partir dele. Eles não só alteram os papeis de seus produtores e consumidores, mas também seu próprio objeto, o hipertexto, ao inserirem uma rede possível de outros textos – intertextos – que não provém do imaginário do leitor nem de suas referências, mas do campo do compartilhamento, da convergência, o que afeta a própria natureza do literário. A dúvida sobre a remediação do livro como suporte – ou o fim do livro – é se o formato digital será capaz de propiciar uma experiência que supere a do papel, que, mais do que uma prática de recepção de textos, se fez uma relação afetiva, táctil, material. Ao mesmo tempo em que existe como objeto, que é tocado e sentido, o livro desaparece diante do texto, transmuta-se em espírito, e assim transporta o leitor para essa outra dimensão. Assim, não apenas por ser mais eficiente como ferramenta de leitura, mas por ser capaz de seduzir o leitor nessa transmutação entre matéria e espírito, é que o hiperlivro pode fazer esquecer essa relação milenar e apaixonada: quando isso ocorrer, o livro em papel será artigo de colecionadores e museus, como hoje o são os rolos, códices e incunábulos. E ainda assim, haverá leitores, e histórias.

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corpo, percepção e cognição em um contexto de computação vestível: considerações sobre o google glass breno maciel souza reis1 luciele copetti2

introdução As tecnologias de comunicação e informação conectadas em redes globais e a sua incorporação pela sociedade representam hoje um espectro difuso e que perpassa em todas as esferas da vida contemporânea. Podemos dizer que nosso modo de estar no mundo e se relacionar com todos os âmbitos que compreendem a experiência humana, se alteram a partir da mediação dos artefatos tecnológicos com os quais interagimos na nossa vida diária. As relações com o outro, com o espaço e até mesmo a compreensão do nosso próprio corpo biológico passam a possuir, nesse contexto, sentidos diretamente relacionados aos modos como nos apropriamos das tecnologias, que não apenas constituem meras ampliações de nossas capacidades físicas e cognitivas, mas que se enraízam profundamente no nosso modo mesmo de ser no mundo. Com efeito, percebemos que o esforço no sentido de empreender estudos primordialmente interessados na compreensão da diversidade de fenômenos existentes e o lugar da comunicação nesses processos, constitui tema central nas discussões acadêmicas contemporâneas. Na mesa temática que inspira esse artigo foram expostas algumas dessas implicações, com explanações deveras esclarecedoras de pesquisadores dedicados a refletir como se configuram na atualidade os processos de interação; tanto entre indivíduo, e desses com o mundo através Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da UFRGS e bolsista CAPES. Mestre em Comunicação Social pela PUCRS. Membro do Grupo Ubitec. E-mail: [email protected]. 1

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUCRS e bolsista CAPES. Mestre em Comunicação Social pela PUCRS. Membro do Grupo Ubitec. E-mail: [email protected]. 2

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de artefatos tecnológicos móveis. Assim, instaurando uma condição de conexão always on (PELLANDA, 2005) à rede, bem como as implicações relacionadas os processos cognitivos intrínsecos a tal contexto. Logo, cremos que a incursão em qualquer um dos temas já expostos pelos palestrantes seria redundante, haja vista a diversidade de abordagens e objetos possíveis. Assim, decidimos pela escolha do tema central deste trabalho no atual cenário das tecnologias vestíveis, buscando compreender como se articulam, no contexto atual, as questões expostas pelos participantes da mesa temática, bem como apontar futuras possibilidades de análises sobre a matéria. Assim, o interesse se dá primordialmente a partir da constatação dos desafios que o objeto em questão traz ao campo da comunicação: a tendência à imbricação permanente entre fluxos de informação, o espaço físico das cidades e a sua integração contínua com a vida cotidiana, trazendo, ainda, implicações sobre o corpo e a cognição nesse contexto, ao acoplar ao mesmo tempo aparatos que modificam os sentidos e fornecem distintas experiências em relação ao mundo. Tal emergência, que de forma mais ampla também é chamada de Internet das Coisas (Internet of Things – IoT), compreende, assim, conexões e trocas informacionais constantes entre os sujeitos e os objetos. Ou, como entende Greenfield (2006), nessa era da computação ubíqua, as vestimentas, os espaços e as cidades se transformam em locais de processamento e mediação. Objetos domésticos como chuveiros e cafeteiras são reimaginados como locais a partir dos quais informações sobre o mundo podem ser apreendidas, consideradas e postas em prática. E todos os rituais tão familiares da nossa vida diária – coisas tão fundamentais como a forma de acordar pela manhã, ir ao trabalho, fazer compras – são refeitas em uma intrincada dança de informações sobre nós mesmos, o estado do mundo externo e as opções disponíveis a nós em um dado momento (tradução nossa).

A computação para vestir também representa um novo momento nas tecnologias móveis e na ubiquidade de redes informacionais globais. Emergem aí questões que serão trabalhadas neste artigo, principalmente quando percebemos que a experiência do mundo, quando mediada a partir dessas tecnologias, tende a assumir um caráter de interação com informações relacionadas diretamente ao contexto no qual o sujeito se insere. Portanto, escolhemos como objeto o Google Glass acreditando que tal projeto radicaliza as tendências à convergência técnica,

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cultural e biológica. Também, insere uma relação distinta da percepção em tempo real do espaço, do mundo, dos objetos, dos lugares, da interação a partir da imbricação entre o corpo, os sentidos, os processos de cognição e apropriação das informações em um cenário ubíquo. corpo, percepção e cognição Quando falamos sobre as tecnologias móveis e as possíveis alterações cognitivas que elas operam nos sujeitos, não podemos nos abster de aqui recuperar as considerações de Merleau-Ponty em sua clássica obra Fenomenologia da Percepção. O autor critica as clássicas dicotomias mente-corpo, corpo-alma e corpo-consciência e, assim, refuta a ideia de que somos ligados ao mundo a partir do cogito como elemento principal, reintroduzindo o papel do corpo como elo. Ou seja, a corporeidade como condição de existência que se constitui como um mediador entre nós e o mundo. Isto significa dizer que o mundo não é uma estrutura exterior a nós ou sobre a qual podemos apreender de forma descomprometida, muito menos uma vivência interior ou apenas de caráter intelectual. Ora, para o autor, “não é preciso perguntar-se se nós percebemos verdadeiramente um mundo, é preciso dizer, ao contrário: o mundo é aquilo que nós percebemos” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 18). Partindo da premissa que nos relacionamos com o mundo a partir da nossa presença no mesmo de forma comprometida, e não objetivamente, nos comunicamos com o mesmo tanto a partir de nossas propriedades cognitivas e nossa capacidade de pensar, interpretar e dar sentido àquilo que percebemos a partir da mediação de um corpo biológico, que possui características e limitações específicas: utilizamos nossos sentidos (visão, tato, audição, paladar e olfato) como forma primeira a partir da qual o mundo se abre a nós, homens. Assim, o mundo é o resultado daquilo que percebemos e comunicamos uns com os outros, a partir das experiências que são desenvolvidas nele. Ou, como sugere Merleau-Ponty, “tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada” (1999, p. 3). Logo, a pretensão de pensar o mundo de forma neutra é impossível segundo o autor, uma vez que já estamos jogados no mesmo enquanto faticidade e é nele que, desde sempre, já nos entendemos e sobre o qual pensamos.

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Portanto, segundo a perspectiva de Merleau-Ponty, sabemos do mundo aquilo que percebemos e o que temos contato a partir dos nossos sentidos. A percepção poderia assim ser entendida não apenas como uma atividade mental ou intelectual, da qual o corpo é apenas um suporte ou objeto. É a partir do que o autor denomina corpo-vivido que se dá a consciência do mundo, deixando dessa forma, de ser um ato natural ou puramente mental, e passa a ter um aspecto reflexivo a partir da compreensão daquilo com o qual o corpo se relaciona (sejam suas relações com os outros, com a cultura ou com a natureza). O conceito de corpo-vivido ou corpo-próprio para o autor explicita a impossibilidade de tomar o corpo como objeto para o sujeito, ou seja, ele “opõe-se ao movimento reflexivo que destaca o objeto do sujeito e o sujeito do objeto, e o que nos dá apenas o pensamento do corpo ou o corpo em ideia e não a experiência do corpo ou o corpo em realidade” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 269). Para tanto, queremos aqui destacar a importância do corpo pelo seu caráter medial, porque como veremos, ao acoplarem-se artefatos técnicos vestíveis e híbridos – conectando constantemente corpo e percepção, espaço físico e informações referenciadas geograficamente – estamos diante de um distinto estatuto do corpo que se difere, visto que adquire características até então inéditas: de transformar o corpo em emissor e receptor de metadados informacionais a partir do registro e recuperação de informações relacionadas ao mesmo. Ele passa, assim, a interagir com rastros digitais compartilhados, tanto do próprio sujeito, quanto de outros, bem como entre humanos e agentes não-humanos (computadores, aparatos móveis, chips emissores e receptores de dados, satélites de geoposicionamento, redes informacionais com ou sem fio, entre outros) que inserem nesse contexto outra forma de mediação técnica ao corpo que já é mediação per se. Ora, se utilizamos nosso corpo como forma primeira de contato com o mundo e é a partir dele que produzimos a nós mesmos, compreendemos e atribuímos sentido ao que nos cerca. Percebemos que tal processo se dá num continuum que se funda na quimera de, se não superarmos as limitações que nosso corpo biológico nos impõe, pelo menos desenvolver tecnologias que melhorem o desempenho ou nossas formas de registro, compartilhamento e exteriorização das impressões

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sobre o que nos circunda. Atualmente o que tem-se chamado de corpos híbridos – sejam eles manipulados tecnocientificamente através de cirurgias, implantes, substituição de órgãos, sejam os mesmos alçados a uma condição de suporte ubíquo para conexões e interação com dados – parecem representar o desafio último da tecnocultura contemporânea. Como afirma Couto (2012), o corpo se tornou o lugar privilegiado das técnicas e o destino certo das máquinas. A introdução crescente de nano-objetos na estrutura física possibilita ao homem contemporâneo encontrar o viés ideal para fazer com que as máquinas integrem às suas vísceras. [...] Esses novos componentes técnicos integrados, confundidos na estrutura física, promovem uma nova natureza, uma outra realidade corporal (COUTO, 2012, p. 46).

Entretanto, é importante salientar que essa condição de hibridização entre homem e técnica não deve ser tomada apenas sob a perspectiva da junção entre o seu corpo biológico, suas propriedades cognitivas e máquinas como a fusão entre carne e chips eletrônicos – muito presente em obras de ficção científica, como aponta Clark (2003). Queremos aqui assinalar que a combinação de diferentes estruturas, processos tecnológicos e práticas sociais já vêm, desde sempre, compondo a nossa própria existência. Mazlish (1994) inclusive entende que a evolução humana está diretamente atrelada ao desenvolvimento das máquinas, estabelecendo assim uma relação simbiótica na qual é impossível distinguir ou explicar a primeira isolada da segunda. Isso também corrobora as ideias de Clark de que somos, desde sempre, ciborgues, porque nos relacionamos com o mundo através de tecnologias que não apenas constituem ampliações de nossas propriedades físicas ou cognitivas, mas se entranham na nossa própria constituição em um dado registro temporal. Santaella (2004) entende que as transformações pelas quais passa o corpo nesta era refletem o modo de produção característico da contemporaneidade, o que coloca o corpo no limite da fronteira entre o seu caráter biológico e as distintas intervenções possíveis e, que se dão, segundo a autora, em três níveis: de dentro para fora, na forma de extensões, próteses e conexões permitidas por artefatos informáticos (computadores, telefones celulares, equipamentos vestíveis, entre outros); já o segundo nível é caracterizado na própria aparência do corpo, de técnicas de modificação corporal, cirurgias e demais intervenções e próteses que alterem a aparência

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do corpo (tatuagens, piercings, formas de body modification), que se situam na linha limítrofe entre o interior e o exterior, o dentro e o fora; logo, o terceiro nível se dá de fora para dentro, são intervenções que pretendem corrigir ou ampliar órgãos ou funções orgânicas e cognitivas ou, ainda, criar novas funções (drogas medicinais que aumentam a concentração ou a memória, a nanotecnologia que, uma vez inserida nos corpos, passa a funcionar de forma autônoma, identificando potenciais problemas e corrigindo sem a intervenção expressa de quem as carrega). Distintas concepções, conceitos e vertentes teóricas discutem a relação do corpo biológico e as tecnologias. Essas relações estão intrinsecamente pautadas por seus conceitos fundamentais para compreender o humano como corpo biológico, vida e suas relações de consciência, mente e pensamento. Consequentemente, devido às suas correntes teóricas há distintos significados e graus de importância. Portanto, aqui trataremos do corpo não apenas enquanto estrutura e sistema biológico. Compreendemos o corpo na perspectiva sociológica, como um fenômeno cultural, social e simbólico. Na contemporaneidade, trata-se de um processo contínuo de imbricação entre as estruturas biológicas inerentes, as tecnologias que compõem esses processos de modificações corporais e os processos sociais, que incluem esse corpo enquanto humano e objeto de imaginários e representações. Assim, nessa perspectiva a constituição do humano vai sendo formada, também, pela imbricação com as tecnologias. David Le Breton (2007) observa que não há nada natural no corpo, já que seus processos e conjuntos de expressões corporais, vestimentas, acessórios, implantes, próteses, entre outros, são modelados pelo contexto social e cultural que o sujeito vivencia e está inserido. Logo, “o corpo é vetor-semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída” (LE BRETON, 2007, p. 7). O corpo evidencia a troca entre processos que tornam-se híbridos. Esses processos e conexões sociais convergem nas redes virtuais e físicas das sociedades, bem como nas distintas possibilidades de manutenção, modificação e, aliados a tecnologias, alterações e aumento das capacidades cognitivas e biológicas.

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O corpo não existe em estado natural, sempre está compreendido na trama social de sentidos, mesmo em suas manifestações aparentes de insurreição, quando provisoriamente uma ruptura se instala na transparência da relação física com o mundo do ator (dor, doença, comportamento não habitual, etc.) (LE BRETON, 2007, p. 32).

A sobressignificação do corpo que hibridiza-se com as tecnologias, com o contexto social e cultural em que o sujeito está imerso, revela-se enquanto “acessório” desse sujeito. A gestualidade, a etiqueta corporal, seguidas das interações que vão ordenar as ações do sujeito no contexto, estabelecem as relações em determinadas comunidades. Para tanto, as inúmeras possibilidades dos dispositivos e artefatos tecnológicos ampliam a percepção do corpo enquanto acessório. Essa “representação provisória” traz à tona os acoplamentos, a integração da tecnologia ao corpo, logo, esses sistemas vão desde as marcas corporais, a medicalização; aos sistemas integrados que modificam e alteram diretamente a pele do sujeito. “A maleabilidade de si, a plasticidade do corpo tornam-se lugares-comuns. A anatomia não é mais um destino, mas um acessório da presença, uma matéria-prima a modelar, a redefinir, a submeter ao design do momento” (LE BRETON, 2003, p. 28). Dessa forma, alteram-se os modos de ver o corpo, já que o estar no mundo pode ser prolongado, ajustado e revelado de distintas formas. O corpo sempre foi uma junção de informações e complexos processos de expressões que interagem e se ajustam. Agora, as tecnologias imbricadas a ele, modificam as formas de interação em contextos ubíquos. Essas modificações e mudanças ocorrem em diferentes perspectivas seja através de processos farmacológicos como moderadores de humor, a incisões para o aumento da capacidade cardíaca, até as menos invasivas como acessórios e computação para vestir (wearables). O corpo é assumido como prática simultânea de expressão de si, de melhoria de si e de uma própria tradução de mabealidade. Fato é que, atualmente os dispositivos e artefatos tecnológicos estão cada vez menos invasivos, muito miniaturizados, ubíquos e facilmente acoplados ao corpo humano. Ao discorrer sobre as possibilidades do corpo e o “desdobramento da vida comum”, Le Breton (2003) expõe o espaço cibernético como “um modo de existência completo”. Neste espaço, onde convergem linguagens, culturas e

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utopias, também é simultaneamente um mundo real e imaginário de sentidos e valores. Considerando que esses fluxos só existem porque há entrecruzamentos de metadados, conexões, interações e processos infocomunicacionais que colocam em contato sujeitos e tecnologias. O espaço cibernético é a apoteose da sociedade do espetáculo, de um mundo reduzido ao olhar3 , à mobilidade do imaginário, mas à inspeção dos corpos que se tornaram inúteis e estorvantes. É um substituto do real cuja forma de investimento às vezes ultrapassa o apego ao real físico do indivíduo. A navegação na Internet, os intercâmbios nos chats proporcionam aos internautas, contudo, uma ‘sensação perturbadora de presença’ (Dery, 1997, p. 16) (LE BRETON, 2003, p. 142).

Esse mundo “reduzido ao olhar” está presente nas possibilidades da computação vestível: com o piscar dos olhos o sujeito pode fotografar e gravar vídeos; o comando por voz pode solicitar a visualização de conteúdos diante do seu olhar. Essas possibilidades da computação vestível permitem que o corpo deixe de ser mera materialidade biológica, ou uma extensão dos artefatos tecnológicos. O corpo, nesse contexto, já não é percebido apenas como matéria simbólica, mas como um acoplamento de dispositivos e artefatos tecnológicos ubíquos que, em certa medida, permite interações, compartilhamentos, monitoramento e distintas formas de fluxos de metadados sem precedentes. Independente se ainda são protótipos, o que esses objetos vêm demonstrar e tornam-se, portanto, passíveis de análises, são as alterações no modo de cognição, percepção e interação dos sujeitos nesses meios. Assim, alteram-se as formas de comunicar. Contudo, a apropriação que esses sujeitos irão dar aos artefatos tecnológicos, sensores e mídias locativas é que poderá produzir sentido aos lugares. E são esses espaços sociais que se configuram como os lugares de interações, que são consequentemente produzidos por fluxos de interações. Assim, o corpo também emite informações e dados, criando e reconfigurando novas conexões. No entanto, esses processos sociais sempre ocorreram. O que acontece, no contexto da computação vestível, é que presenciamos um corpo ubíquo com artefatos que se

Os pesquisadores americanos estão tentando substituir o mouse pelo olhar. Para clicar, bastaria piscar os olhos. 3

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ajustam ao corpo: são acessórios que se acoplam e se adaptam a usos que já tinham anteriormente (óculos, relógios, sensores, biosenssores, entre outros). Portanto, esses processos convertem no jogo entre o sujeito e o seu próprio corpo. Como expõe Le Breton (2003): Uma versão moderna do dualismo não opõe mais o corpo ao espírito ou à alma, porém, mais precisamente, ao próprio sujeito. O corpo não é mais apenas, em nossas sociedades contemporâneas, a determinação de uma identidade intangível, a encarnação irredutível do sujeito, o ser-no-mundo, mas uma construção, uma instância de conexão, um terminal, um objeto transitório e manipulável suscetível de muitos emparelhamentos. Deixou de ser identidade de si, destino da pessoa, para se tornar um kit, uma soma de partes eventualmente descartáveis à disposição de um indivíduo apreendido em uma manipulação de si e para quem justamente o corpo é a peça principal da afirmação pessoal (LE BRETON, 2003, p. 28).

Com essa nova configuração, os dispositivos e aparatos tecnológicos formam outras vias de fluxos infocomunicacionais, não apenas cultural e de afirmação da identidade social, mas de ampliação das conexões com as tecnologias ubíquas. Já que as possibilidades de alterar, modificar e melhorar o corpo são inúmeras. Dessa forma, a circulação pelos contínuos espaços de fluxos estabelece vínculos e diferentes formas simultâneas de práticas que irão redefinir os processos de cognição. O corpo como suporte, assim percebido segundo Le Breton (2003) na cultura contemporânea, é o deslocar-se no mundo ubíquo. O indivíduo desloca-se concretamente em um universo reconstruído. Dissociando corpo e experiência, fazendo a relação com o mundo perder o caráter real e transformando-a em relação com dados, o virtual legitima a oposição radical entre espírito e corpo, chegando à fantasia de uma onipotência do espírito. A realidade virtual está aquém e além do corpo – este é passivo, mesmo que ressoe com os inúmeros efeitos de sensações e de emoções provocadas pela imagem (LE BRETON, 2003, p. 143 – 144).

No “mundo virtual” os processos cognitivos são simplificados, o que torna a realidade visível e uma percepção desse sentimento. A relação entre o corpo e o espaço exterior é retomada por Le Breton na perspectiva de Merleau-Ponty (1999). A corporeidade, os processos de fluxos nos lugares e a movimentação estabelecem as dinâmicas sensoriais. Portanto, como já exposto, é no movimento, no deslocar-se

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que o corpo se realiza. São, contudo, processos de imbricações entre as estruturas biológicas, culturais e tecnológicas que demonstram que o corpo sempre foi híbrido. No entanto, o corpo no atual contexto se encontra em processo de convergência com essas tecnologias e dinâmicas sensoriais estabelecidas. Uma convergência não apenas entre fios, sensores, aparatos tecnológicos e metadados invisíveis, mas, principalmente uma fusão no âmbito cognitivo. As tecnologias e dispositivos híbridos móveis possibilitam distintos tipos de monitoramento e visibilidade. Como toda tecnologia de sua época, de fato, a visibilidade proporciona regimes de luz (FOCAULT, 1986). As práticas de discursos sociais publicizam-se e esta vigilância das conexões digitais tem o intuito de monitorar de forma sistemática, e a distância, ações, informações e dados dos sujeitos no contexto ubíquo. Assim, tornam-se possíveis distintos conhecimentos de identidade, cultura e aspectos sociais relacionados. Esses sistemas de vigilância nas redes visam ordenar, projetar ações, cenários, produtos, interações, etc. Contudo, esses espaços também potencializam o isolamento e a sobrecarga cognitiva atuando como sistemas de poder. Sujeitos e tecnologias criam conexões sociais e interações sem precedentes nos contextos ubíquos. Essas articulações de poder são advindas do século XVIII (FOUCAULT, 1986). O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica (FOUCAULT, 1986, p. 80).

Obviamente, há também uma reconfiguração dos espaços. Público e privado possuem dimensões que se imbricam. Em um espaço onde tudo está imbricado, as possibilidades de interações nessas vigilâncias também tornam-se amplas. Esse processo, então, faz reaparecer as dimensões locais. Inseridas nas tarefas cotidianas e comunidades, as tecnologias estão cada vez mais ocupando ambientes, auxiliando, convergindo e expandindo as possibilidades de interação. Facilitando nas tarefas da medicina, das transações bancárias, dos acessos às informações, etc.

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Dessa forma, as tarefas cognitivas também estão sendo ampliadas e, consequentemente, demandam às práticas de comunicação e entretenimento diferentes habilidades cognitivas. As distintas vertentes estudadas por pesquisadores no campo dos processos cognitivos na cibercultura demonstram a amplitude desse fenômeno. As transformações nos sistemas de mídias, tecnologias, corpo e percepção interatuam de forma convergente. Sendo assim, abordamos neste contexto o termo cognição “ampliada” (REGIS, 2012) que se refere “ao amplo repertório de habilidades (sensório-motoras, perceptivas, emocionais e sociais) que as práticas comunicativas demandam” (2012, p. 118). Nesse sentido, o corpo e seus sistemas cognitivos estão articulados com as tecnologias de comunicação, como já exposto anteriormente. Ou seja, a ideia de que para conhecer e atuar no mundo, a mente faz uso do corpo, ambiente, objetos técnicos e interações sociais. Nesse contexto, os dispositivos técnicos também não são meras ferramentas ou extensões de habilidades humanas, mas reconfiguram de forma dinâmica e complexa o processo cognitivo (HUTCHINS, 1996; NORMAN, 1993; CLARK, 2001; BRUNO; VAZ, 2002; LATOUR, 2005) (REGIS, 2012, p. 118).

A imbricação entre corpo (processos cognitivos) e tecnologias, ressalta a importância da abordagem entre os artefatos tecnológicos ubíquos e a interações entre sistemas sociais, envolvendo no mesmo ambiente humanos e não humanos. Na perspectiva da autora ao pensar sobre esse esmaecimento das bordas entre sistemas tecnológicos e sujeitos a ficção científica aponta para outra relação com a tecnologia. Nesse sentido, “os dispositivos técnicos deixam de ser meras ferramentas ou próteses que favorecem ou prejudicam o conhecimento da verdade do sujeito; as tecnologias de informação são modos de constituição do humano” (REGIS, 2012, p. 172). Trata-se, portanto, de um processo contínuo de interações entre tecnologias, artefatos ubíquos, processos culturais e sociais que hibridizam-se formando novos processos de sistemas cognitivos entre sujeitos e máquinas, bem como são compartilhadas novas redes de conexões ampliando a capacidade de interação em distintos meios. Esses processos de produção de conhecimento não se dão isoladamente, mas só são potencializados pelas conexões criadas com outros sujeitos e máquinas, assim, auxiliando na produção coletivamente.

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ubiquidade da informação em um contexto de mobilidade tecnológica Ao se deslocar pelos diferentes espaços das cidades os sujeitos na sociedade contemporânea estão cada vez mais enviando informações, compartilhando experiências, dados, vídeos, imagens, etc. Dessa forma, a cultura da mobilidade está interligada à ubiquidade e à onipresença. A ubiquidade complementa a movimentação e não recoloca a mobilidade. Contudo, não se trata de uma ausência de movimento, mas de processos que se associam, se integram (PARAGUAI, 2008). Onde o espaço ocupado é convergente e não ignorado. Portanto, a ubiquidade se refere ao acesso à informação em qualquer ambiente. Já a onipresença oculta os processos de deslocamento, permitindo que os sujeitos continuem suas trajetórias mesmo estando em outros lugares físicos. Esses espaços híbridos da mobilidade configuram territórios e redes comunicacionais, identificados por Lemos (2007) como “territórios informacionais”. Assim sendo, a virtualidade passa a ser atualizada e localizada pelas tecnologias móveis. Os processos de interação, proporcionados pela inserção das “mídias de funções pós-massivas” (laptops, celulares, GPS, etiquetas RFID, bluetooth, Wi-Fi) (LEMOS, 2007) no cotidiano dos sujeitos, ampliam as potencialidades das redes e das conexões estabelecidas entre artefatos tecnológicos e corpo. O que podemos perceber é uma progressão no que se refere aos contextos físicos e virtuais e as tecnologias híbridas, cada vez mais interligadas à inteligência computacional, realidade virtual e aumentada em objetos tecnológicos de uso cotidiano. A tendência ao desaparecimento da computação, apontada por Cristiano Costa em sua participação, parece representar a concretização da existência pervasiva das tecnologias de comunicação e informação na vida social. Weiser (1991), em seu artigo publicado na Scientific American, defende a existência da computação ubíqua afirmando que “as mais profundas tecnologias são aquelas que desaparecem. Elas se entrelaçam no tecido da vida cotidiana até se tornarem indistinguíveis da mesma” (WEISER, 1991, p. 78). O conceito de computação ubíqua de Weiser ultrapassa, assim, a ideia da computação em todos os lugares, de artefatos tecnológicos digitais conectados constantemente à rede, mas alcança também a ideia de que, miniaturizados, tais componentes se tornariam invisíveis ao estarem

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justamente presentes em todas as coisas; ou seja, “objetos comuns, de copos de café a capas de chuva e a tinta das paredes, seriam reconsiderados como locais de sentido e processamento de informação” (GREENFIELD, 2006, tradução nossa). Além disso, segundo o autor, as pessoas passariam a interagir com esses objetos e espaços conectados sem sequer se darem conta de todo o contexto tecnológico com o qual estariam lidando. O contexto ubíquo aqui apresentado onde pessoas, tecnologias, informação e objetos se hibridizam, possui na cultura da mobilidade uma dimensão física, referente ao transporte de dados, informações, objetos e commodities. Esses processos e sistemas infocomunicacionais podem ser percebidos nas redes móveis dos dispositivos e aplicativos de saúde, jogos, músicas, fotografia, sistemas de geolocalização, etc. Essa “conexão multirrede” vincula-se a diversas outras redes como Bluetooth, Wi-Fi, GPS. Os “Dispositivos Híbridos Móveis de Conexão Multirrede (DHMCM)” (LEMOS, 2007) aliam esses sistemas de voz, texto, foto e vídeos, via conexões em rede e territórios informacionais, consequentemente modificam as práticas sociais de interação em espaços físicos e virtuais. Nesse contexto, a mobilidade em espaços intersticiais (SANTAELLA, 2010) emerge continuamente, onde as práticas de acesso e distribuição de informações sem fronteiras se constituem. “São essas práticas que estão construindo um novo espaço de misturas inextricáveis entre o virtual, o ciberespaço, e os ambientes físicos que nossos corpos biológicos habitam” (SANTAELLA, 2010, p. 94). Assim, “espaços híbridos” convergem o físico e o digital. Portanto, os espaços intersticiais se unem aos territórios informacionais e híbridos. São espaços móveis e sociais que, conectados em diferentes redes e interfaces, constituem os nós da rede. Estas conexões formadas são relevantes para analisar as tecnologias e os artefatos híbridos no contexto da Internet das Coisas (Internet of Things – IoT). A IoT tem conectado sujeitos, tecnologias e objetos, possibilitando novas apropriações, percepção dos espaços e interações dos artefatos integrados ao corpo: como roupas, sensores, acessórios, etiquetas NFC (Near Field Communication), entre outros. Esses artefatos tecnológicos comunicam, trocam e se associam a alguma coisa para a IoT, assim sendo, trazem as possibilidades de ações infocomu-

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nicacionais adquiridas por um objeto/artefato tecnológico (LEMOS, 2012). Esse contexto dos espaços intersticiais proporciona novas formas de apropriações das redes, dos artefatos tecnológicos e das interações estabelecidas em diferentes contextos e lugares, bem como a novas apropriações cognitivo-sensoriais. Logo, as vestimentas também informam neste cenário. No entanto, as tecnologias sempre estiveram presentes nos vestuários e acessórios, o que muda no contexto atual são as interconexões e os processos de sistemas informacionais capazes de se conectar a redes na internet. Com a miniaturização dos dispositivos e artefatos tecnológicos móveis, essas vestimentas e acessórios possibilitam maior mobilidade, monitoramento e vigilância das atividades cotidianas. O Salão de Eletrônica de Consumo (CES) é uma feira de referência para produtos tecnológicos e, em 2014, apresentou em Las Vegas diversos produtos relacionados às tecnologias para vestir. São produtos que vão desde roupas íntimas a acessórios, como relógios e óculos, todos conectados com a internet. O Instituto de Pesquisas da Universidade Concordia de Montreal, The Hexagram Institute, mantém um projeto colaborativo que propõem a “ausência de vestir”. O Wearable Absence4 ainda é um protótipo, sem previsão de comercialização. A ideia foi criar uma jaqueta com biossensores capaz de reproduzir as sensações físicas de um determinado momento. A roupa possui adaptadores, cabos flexíveis e um sistema de conexão sem fios. Os cabos gravam as reações físicas de quem veste a jaqueta, que é capaz de memorizar diferentes sensações do sujeito para posteriormente serem lembradas e vivenciadas. Essas pesquisas e produtos, embora ainda sem comercialização, exemplificam o contexto da tendência apresentada pela ubiquidade informacional, no qual a hibridização entre corpo biológico e tecnologias possibilita diferentes interações em espaços – alterando, assim, os processos cognitivos já apresentados. O panorama atual aqui apresentado faz-se necessário considerando que, mesmo que as tecnologias e os diferentes artefatos tecnológicos (já em uso ou ainda como protótipos) tornem-se obsoletos, as suas alterações e implicações permanecem nas redes. Considerando que as diferentes pesquisas na área da tecnologia para vestir estão avançando consideravelmente, os dados também se tornam ainda mais 4

Fonte: .

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personalizados e filtrados. Portanto, essas apropriações criam novas conexões e, consequentemente, sistemas de visibilidade e vigilância. Os filtros invisíveis que já fazem parte do cotidiano nas redes na internet são condicionados a sistemas de personalização. São filtros capacitados para monitorar e enviar conteúdos e informações personalizadas, metadados que possibilitam uma adaptação de conteúdos, relacionados às informações disponibilizadas e históricos de buscas. São rastros deixados pelos sujeitos que se configuram em metadados e formam a “bolha dos filtros” (PARISER, 2012). Esses sistemas de personalização na internet são formados por códigos base, ou seja, são mecanismos que filtram, refinam e recriam mecanismos de previsão para posteriormente refinar esses metadados aos sujeitos, enviando, assim, informações cada vez mais segmentadas de acordo com todos os rastros deixados nas redes. Pariser define a “bolha dos filtros” por essa imensidão de informações disponibilizadas e exclusivas a cada sujeito em particular. Assim, “altera fundamentalmente o modo como nos deparamos com ideias e informações” (PARISER, 2012, p. 14). O autor salienta que essa bolha está afastando os sujeitos e que é, consequentemente, invisível, já que não se sabe, por exemplo, a transparência dos filtros realizados pela Google, que refina as pesquisas enviando conteúdos e resultados de acordo com pesquisas já realizadas, histórico de buscas e cadastros de e-mail. Portanto, considerando a quantidade de metadados produzidos diariamente, esses filtros tornam-se invisíveis e todos estão incluídos. A presença de tecnologias vestíveis no cotidiano e as possíveis alterações cognitivas que ela provoca sobre os sentidos (especialmente a visão, no caso do Google Glass) afeta também a nossa relação com o espaço – quando consideramos a proposta, como veremos posteriormente, da aplicação das mesmas na chamada realidade aumentada (RA)5. Lefebvre (1991) propõe uma ideia de espaço como a articulação de contingências tecnosociais e temporais, ou seja, uma construção que se dá sempre a vivência que e da apropriação do mesmo, não existindo per se, mas

Realidade Aumentada são tecnologias que permitem visualizar imageticamente camadas de informação vinculadas aos espaços físicos e virtuais. Seja através de telefones celulares, óculos especiais ou até mesmo capacetes, fornecendo novas experiências cognitivas e perceptivas através da imbricação de redes informacionais e espaços; tanto materiais quanto simbólicos. 5

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sim a partir da produção de sentido que nele se dá. Ou, como sinaliza Merleau-Ponty (1999), não podemos distinguir precisamente o espaço vivido das experiências que se nele ocorrem, ou seja, a percepção do espaço se relaciona, assim, diretamente com o corpo próprio, como já discutimos anteriormente. O espaço, e a sua organização normativa na forma de cidades, entendidas enquanto artefatos humanos figuram como um emaranhado composto pela materialidade física, a infraestrutura tecnológica e suas apropriações pelos sujeitos, caracterizando-se como palimpsestos nos quais múltiplas camadas de sentido se sobrepõem e criam imbricações entre o físico e seu correspondente imaterial, alterando nossa percepção sobre o mundo, os territórios, e inclusive nós mesmos. Como ressaltou Fragoso (2014) em sua fala durante essa mesa temática, percebemos como a concepção de espaço está relacionada ao período histórico e às tecnologias que se desenvolvem no mesmo. Como bem expôs a palestrante, na contemporaneidade, as tecnologias móveis de comunicação desempenham um papel fundamental na reconfiguração do espaço e parecem corroborar a hipótese que aqui apresentamos. Os trânsitos pela cidade já se alteram a partir de tecnologias locativas, como as redes de geolocalização que utilizam sinais de GPS, antenas de redes móveis e dispositivos conectados às mesmas. A realidade aumentada propicia a visualização e interação com metadados e rastros deixados pelos locais. Esse caso também acarreta discussões sobre até que ponto tais possibilidades, de fato, ampliam ou reduzem as possibilidades de interpretação e simbolização do que nos cerca ao disponibilizar informações já filtradas e selecionadas – como já apresentamos – individualmente e, baseadas principalmente no histórico de utilização de buscadores e indexadores. Diante do exposto, cremos ter fornecido subsídios para a compreensão do contexto apresentado pelos palestrantes durante a sua participação no evento em questão. Assim, procederemos agora às considerações em relação ao objeto que aqui tomamos para investigação, os óculos de realidade aumentada Google Glass, e possíveis problematizações que eles podem trazer ao campo da Comunicação.

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google glass A empresa Google Inc. (laboratório Google X) vem desenvolvendo desde 2006 o Project Glass. O protótipo do projeto foi apresentado em 2012 com um vídeo de demonstração6 e já possui diversos vídeos de usos e apropriações7. No início de 2013 a empresa selecionou 1,5 mil pessoas para testar o protótipo e, em seguida, solicitaram a esses usuários que indicassem três amigos para testarem o artefato. Em novembro do mesmo ano, a Google disponibilizou um cadastro para que qualquer pessoa pudesse solicitar o Google Glass8 que foi vendido por US$1,5 mil e só podiam ser retirados em locais indicados pela empresa nos Estados Unidos. Desenvolvido pelo laboratório Google X, os óculos sem lentes permitem a visualização de dados através da tecnologia de realidade aumentada, as informações são transmitidas na lente de projeção, no canto superior direito. Dessa forma, não ocupando todo o campo de visão do usuário, permitindo uma experiência de visualização de dados via tecnologia de foco. Assim, pode-se ler o conteúdo sem mudar o foco de visão. Ainda, o Glass permite a visualização de mapas, gravação e reprodução de vídeos, fotografias, informações vinculadas aos locais (tempo, condições de trânsito, etc.), jogos, aplicativos de saúde, videochamadas, geolocalização, aplicações comerciais e de consumo, monitoramento e vigilância, opções de música, compartilhamento via internet. Todas essas possibilidades são realizadas via comandos verbais, motores (através do piscar de olhos, etc.) e são compatíveis com óculos de grau, além de possuir diferentes modelos de cores. Muito embora o Google Glass ainda não esteja disponível para a venda e utilização maciça, alguns pesquisadores que dispõe de protótipos dos óculos têm registrado as experiências a partir do uso do equipamento, fornecendo alguns indícios de possibilidades de apropriação para diversos segmentos (como em viagens e

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Um dos primeiros vídeos disponibilizados foi realizado na semana de moda de Nova York em 9 de setembro de 2012, no desfile da estilista Diane Von Furstenberg. A estilista e as modelos usaram o Glass e posteriormente a empresa Google disponibilizou um curta-metragem mostrando os bastidores do desfile e o ponto de vista das modelos na passarela. Para assistir o curta-metragem: . 7

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Cadastro na página da empresa. Fonte: < http://www.google.com/glass/start/how-to-get-one/index.html>.

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turismo, videochamadas, leitura de mensagens, navegação na internet e também deslocamentos pelo espaço). Entre eles, o pesquisador Eduardo Campos Pellanda, da PUCRS, que mantém em sua página pessoal9 relatos sobre o funcionamento do equipamento no dia a dia. Em um deles10, o pesquisador aponta a sensação de utilizá-lo para se locomover visualizando mapas da cidade e fornecendo comandos como o trajeto desejado e qual o meio de transporte utilizado (bicicleta, a pé ou de carro), inclusive indicando que a sensação de visualizar o “mapa real”, que se adapta aos movimentos da cabeça de quem os porta, é diferente da utilização do mesmo sistema em smartphones. A intenção de que o dispositivo seja o mais transparente possível, conforme expressado por Pellanda (2013) no mesmo relato, parece confirmar uma tendência exposta por Bolter e Grusin (1999). Em sua obra Remediation, os autores afirmam que algumas tecnologias, como as que foram expostas aqui, tendem à imediação, ou seja, ao desaparecimento da mediação com o objetivo de fornecer a quem o utiliza, a sensação de que se está diante da coisa mesma representada, constituindo uma noção de “olhar para” (BOLTER; GRUSIN, 1999). O seu contrário, a hipermediação, é a valorização do processo, das ferramentas e suportes em detrimento de uma experiência invisível; assim, a mediação do suporte é explicitada a relação de “olhar através” do equipamento. Tais tensões existentes entre as vertentes propostas por Bolter e Grusin (1999) parecem representar duas correntes atuais no tocante ao desenvolvimento de tecnologias móveis: ao mesmo tempo em que vemos a crescente evolução das capacidades de processamento e de aplicações para smartphones e tablets, estabelecendo uma relação direta com a ideia de hipermermediação; já a miniaturização e existência da computação vestível, e em especial o Glass, pretendem ser cada vez mais transparentes, fornecendo “imediação perceptual, experiência sem mediação” (BOLTER; GRUSIN, 1999, p. 23). Entretanto, como já exposto anteriormente, existem questões que não podem ser ignoradas, principalmente quando consideramos que a detentora da tecnologia, a empresa Google, sabidamente utiliza metadados e entrega aos seus utilizadores informações condicionadas às interações anteriormente realizadas pelos mesmos:

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Fonte: . Acesso em 20 de jan 2014.

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aqui entram dados pessoais, conversas entre usuários, hábitos de consumo, histórico de buscas e de visitas a endereços na web, dentre outras variáveis que influenciam diretamente nos dados fornecidos. Isso significa que duas pessoas diferentes que realizarem, por exemplo, uma busca com exatamente os mesmos termos, obterão resultados distintos. Tal prática, por parte da empresa, parece representar uma ameaça à própria ideia de transparência do equipamento, pois se serão fornecidas indicações e informações personalizadas e hiperfiltradas, é inevitável o questionamento sobre a centralidade das mesmas. Novamente em seu relato, Pellanda (2013) nos conta que, em um determinado momento, foi-lhe sugerida uma opção de alimentação próxima ao local onde se encontrava. Também, conforme aponta o autor, foram indicados pontos turísticos e de interesse, com base em opções previamente selecionadas. Processo semelhante já ocorre desde 2012, em smartphones com o aplicativo Google Now11 instalado, que fornece informações relevantes e baseadas no histórico de buscas as quais, segundo o próprio Google, como consta na página oficial do serviço, “oferece as informações exatas no momento exato, antes mesmo de você perguntar”. São exibidos conteúdos filtrados e personalizados de acordo com as preferências individuais, que incluem desde informações sobre futuras viagens planejadas, compromissos a cumprir, notícias locais ou de temas de interesse, previsão do tempo e condições de trânsito em trajetos realizados diariamente, inclusive sugerindo novas rotas (além de contar com uma função que informa, ao final de cada mês, baseado nos deslocamentos físicos e na velocidade com que eles são realizados, a quantidade de passos e quilômetros caminhados naquele período). Todas essas informações são disponibilizadas automaticamente na tela do smartphone do usuário na forma de pequenos cartões, que vão sendo oferecidos à medida que o aplicativo reconhece quais os assuntos são de maior interesse e quais são frequentemente recusados. Ora, parece-nos bastante claro que há uma diferença fundamental no tocante à visualização dessas informações nas duas condições aqui descritas, visto que o telefone celular é um dispositivo que pode ser desligado, esquecido em casa ou ter suas notificações ignoradas. Já um computador, desconectado da rede, temos 11

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a escolha de quando, ou por quanto tempo, desejamos utilizá-lo. Diferente de um acessório constantemente conectado, trocando dados com redes, com o ambiente (GREENFIELD, 2006) e acoplado à visão de quem o utiliza; especialmente quando sabemos que ele poderá ser utilizado integrado a lentes corretivas para problemas comuns de visão, tornando assim o seu uso ainda mais constante, como ocorre com os óculos tradicionais. As informações simplesmente “saltam” aos olhos de forma autônoma e passam a influenciar, inclusive, aspectos motores: de acordo com o projeto, os óculos funcionam por sistemas de comandos de voz a partir da leitura por ressonância da caixa craniana, além de movimentos da cabeça, dos olhos e ainda do ritmo das piscadas das pálpebras. Um exemplo é que, para que seja possível registrar uma fotografia com a câmera digital embutida no aparelho, se faz necessário condicionar o próprio ato de piscar os olhos a um ritmo que seja compreendido pelo mesmo: uma quantidade específica de vezes, nem muito lento, nem muito veloz. Além disso, iniciativas ainda mais inovadoras e surpreendentes não param de surgir relacionadas ao Glass às atividades também profissionais: têm-se notícia que os óculos foram utilizados durante um procedimento cirúrgico no Brasil12 e em Portugal13. No caso brasileiro, um médico do interior do estado de São Paulo, durante uma cirurgia para a remoção de um tumor, transmitiu para uma equipe médica, localizada remotamente, todo o procedimento, inclusive fornecendo orientações e visualizando detalhes anatômicos com o auxílio de realidade aumentada. Outro uso, um tanto inusitado, é um aplicativo que promete levar aos olhos de casais a visão subjetiva do outro durante as relações sexuais, chamado Sex With Glass14. Por meio de um comando de voz específico (Ok, Glass, it’s time), os óculos de ambos os parceiros ativam a câmera embutida e transmitem aos olhos um do outro o que eles estão vendo, possibilitando ainda, a seleção de uma música ambiente, o controle de luminosidade e gravação de vídeos registrando o momento, bem como, a sugestão de posições sexuais baseadas no famoso livro Kama Sutra15. Impossível não

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Fonte: . Acesso em 29 jan. 2014.

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Fonte: . Acesso em 29 jan. 2014.

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Fonte: . Acesso em 28 jan. 2014.

Fonte: . Acesso em 22 jan. 2014. 15

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lembrar do filme de ficção científica Estranhos Prazeres (Strange Days)16, de 1995, dirigido por Kathryn Bigelow, no qual um equipamento composto de um leitor de CD e um capacete são utilizados para fornecer experiências semelhantes e saciar, desde as necessidades românticas e de aventura, até os desejos mais obscuros: a visão de um criminoso em fuga, uma tarde relaxante em uma praia paradisíaca, uma perseguição policial e, em uma das cenas mais chocantes, para transmitir a uma vítima de estupro a visão subjetiva de seu algoz em tempo real. Questões tocantes à privacidade e monitoramento também devem ser consideradas diante do aqui já exposto. Sabemos que a centralidade no armazenamento, acesso e distribuição de informações pessoais pelo Google – e o monitoramento possibilitado a partir de conexões, vindas tanto de iniciativas privadas quanto governamentais das quais o usuário não está plenamente ciente –, constitui uma das discussões centrais e mais controversas na atualidade. Haja vista o grande debate em torno das práticas por parte de agencias de segurança de governos, como as denúncias recentes de Edward Snowden, ex-analista de inteligência da Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos da América, que divulgou documentos em jornais provando que tal órgão monitora redes de comunicações e o tráfego de informações privadas em toda a rede, como serviços de e-mail, conteúdo de ligações telefônicas e de mensagens trocadas em computadores e aparatos móveis como smartphones e tablets, não apenas em território estadunidense, mas ao redor de todo o globo. Ainda não há como prever as restrições para o acesso e manipulação de informações pessoais nesses dispositivos quanto a sua popularização. Porém, podemos aventar que tecnologias já existentes, como a organização de fotografias a partir do reconhecimento facial das pessoas presentes em imagens capturadas pelas câmeras de telefones, poderiam ser facilmente transpostas para o Glass, tornando-o assim, um possível identificador em tempo real de indivíduos em seu uso cotidiano. Principalmente se cogitarmos a hipótese do mesmo ser controlado remotamente e com acesso direto à sua câmera acoplada. É sabido que tal fato já ocorre com o uso de satélites na órbita da Terra que, mesmo distantes, possuem precisão impressionante e são capazes de reconhecer rostos em tempo real, bem como o uso de drones comandados remotamente com o mesmo propósito. 16

Fonte: . Acesso em 28 jan. 2014.

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considerações finais O processo de análise e observação de uma tecnologia ou artefato tecnológico ubíquo, aqui representado pelo Google Glass, demonstra o sentido de novidade e incertezas (característico neste contexto). Este artigo representa uma recuperação de experiências documentadas em distintas redes, considerando que o Glass ainda não está à venda e está disponível apenas para pesquisadores. No entanto, é preciso considerar os processos de apropriação de um objeto, e posteriormente, analisar as relações e os seus fluxos, observando as dinâmicas dessas apropriações. Diferentes tecnologias ubíquas e híbridas já fazem parte do cotidiano dos sujeitos (geolocalização, sistemas integrados de tecnologias, QR-Code, Wi-Fi, aplicativos, etc.). Assim, os objetos nesse contexto ubíquo criam relações de desejo, afetividade e satisfação. O que as empresas e distintos laboratórios de pesquisas em tecnologias estão fazendo é exatamente isso: mostrando aos usuários as tecnologias para um futuro próximo, considerando que irá depender da apropriação que esses irão relegar a tecnologia o seu uso e potencial. Assim, o que observamos são sistemas cada vez mais integrados e miniaturizados, capazes de unir em um só dispositivo distintas possibilidades de interação. Nessa perspectiva, o corpo, também cria conexões, dinâmicas cognitivas e estabelece interações. Dessa forma, os fluxos dos processos de visibilidade e vigilância de tais informações, estão nos espaços intersticiais, envolvendo novas formas e apropriações cognitivas, bem como, os artefatos tecnológicos acoplados ao corpo em distintos espaços sociais. Assim, pressupõe-se a constituição de redes de conexões híbridas entre aparatos tecnológicos, corpo e fluxos infocomunicacionais. O que podemos observar é que essa cultura apresentada em que corpo, fluxos infocomunicacionais, dados e artefatos tecnológicos ubíquos estão inseridos no mesmo ambiente provoca determinadas dinâmicas e processos cognitivos que necessitam de um aprofundamento amplo, visto que, será a partir do uso e apropriação dos sujeitos, que definitivamente essas práticas e processos poderão ser observados com o foco no objeto. Considerando o espaço exíguo, a pretensão foi apresentar o estado da arte em relação ao assunto. Portanto, as possibilidades de uso e apropriação do mesmo não se esgotam apenas pelas considerações aqui apresentadas, visto que ainda não é possível prever, mas vislumbrar, a partir do horizonte proposto pela mesa temática que motivou a elaboração deste artigo, as dinâmicas de apropriação.

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O que aqui queremos chamar atenção é que, a partir da computação vestível, estamos constantemente conectados e trocando informações com o espaço em um ambiente de redes ubíquas, visualizando conteúdo pré-selecionado automaticamente por computadores e, talvez, relegando aos mesmos uma condição de objetivação do mundo. Ora, a experiência perceptiva de alguém utilizando óculos acoplado à sua visão que informa com exatidão a quantos metros o seu usuário está do seu destino, ou de possíveis pontos de interesse, é distinta de alguém que conta apenas com a sua noção de localização das coisas e de si mesmo no espaço. Assim, tais tecnologias inscrevem – tanto no corpo de quem as carrega consigo, quanto no próprio espaço que é afetado pela presença de quem nele se encontra – discursos construídos a partir da reconfiguração dos territórios informacionais. Ou seja, “[...] espaços conectados, espaços de hiperlugares, múltiplos espaços em um mesmo espaço, que desafiam os sentidos de localização, permanência e duração. São espaços povoados por mentes multiconectadas e, por consequência, coletivas, compondo inteligências fluidas” (SANTAELLA, 2010, p. 18). Conscientes de que as investigações no campo das tecnologias da comunicação estão em permanente e acelerada transformação e que uma tecnologia se constitui também pelos usos e apropriações que são dados às mesmas pelo corpo social na forma de práticas sociais, e mesmo que essas tecnologias se tornem obsoletas, de fato, representam uma ruptura no contexto histórico das tecnologias da comunicação e documentam o atual momento. referências BOLTER, Ray David; GRUSIN, Richard. Remediation. Cambridge: MIT, 1999. CLARK, Andy. Natural-born cyborgs: Minds, technologies and the future of human intelligence. Nova York: Oxford University, 2003. COUTO, Edvaldo S. Corpos voláteis, corpos perfeitos: estudos sobre estéticas, pedagógicas e políticas do pós-humano. Salvador: Edufba, 2012. ESTRANHOS PRAZERES. Kathryn Bigelow, James Cameron. Los Angeles: Lightstore Enterteinment. 1995. GREENFIELD, Adam. Everyware: The dawning age of of ubiquitous computing. Berkeley: New Riders, 2006. [Documento em formato epub disponível para tablets]. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 6. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1986.

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do zombie walk aos rolezinhos: a ética do “estar-junto” no pensamento de michel maffesoli sandra mara garcia henriques1 erika oikawa 2

São Paulo, 02 de novembro de 2013. Cerca de cinco mil pessoas vestidas de zumbis e outros personagens dos clássicos de terror marcham pelo centro da capital paulista, muitos deles agindo como os mortos-vivos da ficção, grunhindo por “miolos” e “cérebros”, batendo nas janelas dos automóveis e até mesmo invadindo ônibus. Trata-se do Zombie Walk SP, evento que, desde 2006, é realizado anualmente na cidade de São Paulo, no Dia de Finados. Guarulhos, 14 de dezembro de 2013. Dezenas de jovens e adolescentes entram no Shopping Internacional de Guarulhos, muitos deles vestidos com suas roupas “de marca”, tênis de grife e óculos espelhados, cantando músicas do chamado “funk da ostentação”. Trata-se de um “rolezinho”, encontros que, em sua maioria, são realizados por jovens da periferia em locais de grande circulação de pessoas, tais como shoppings e parques. Mas, o que há em comum entre um zombie walk e um rolezinho? Ambos são manifestações de uma sociedade do consumo? São exemplos da atual cultura juvenil, não possuindo nenhuma relação direta entre si? São essencialmente lúdicos ou possuem, no fundo, um caráter político? Para além dos diversos vieses pelos quais essas mobilizações podem ser analisadas, o objetivo deste artigo é refleti-las a partir de uma “sociologia do cotidiano” proposta por Michel Maffesoli. Devedor da abordagem compreensiva de Weber, da perspectiva formista de Simmel e dos estudos do imaginário de Durand, Maffesoli propõe uma sociologia “que descreve o vivido naquilo que é, contentando-se, assim, em discernir as visadas dos Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUCRS e bolsista CAPES/FAPERGS. Mestre em Comunicação Social pela PUCRS. Membro do Grupo Ubitec. E-mail: [email protected]. 1

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUCRS e bolsista CAPES/FAPERGS. Mestre em Comunicação e Informação pela UFRGS. Membro do Grupo Ubitec. E-mail: [email protected]. 2

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diferentes atores envolvidos” (MAFFESOLI, 2010). Em outras palavras, essa perspectiva está mais interessada em compreender os fenômenos sociais do que explicá-los, o que significa mostrar esses fenômenos como eles se apresentam e não a partir de um “dever-ser” que petrifica ou condiciona os objetos sociais. Cabe ao o sociólogo do cotidiano escutar o outro e não “responder pelos outros” (MAFFESOLI, 2010, p. 204). Reivindicando-se como um pensador da Pós-modernidade, Maffesoli defende a necessidade de um olhar polissêmico e complexo para dar conta dessa “sociologia do lado de dentro”, uma vez que não existe uma única realidade, mas maneiras diferentes de conhecê-las (MAFFESOLI, 2010). Nesse contexto, o pensador francês vê na Pós-modernidade o ressurgimento de uma forma de solidariedade social, não contratual, elaborada a partir de um processo de emoções, repulsões, atrações e paixões. Assim, a ligação entre os indivíduos na contemporaneidade não se caracteriza mais tanto pela rigidez e pela racionalidade como era observado nos modos de organização social modernas. O que se vê, atualmente, está mais direcionado aos estilos de vida que privilegiam a aparência e a forma, tratando-se de um inconsciente coletivo que serve de matriz a essa multiplicidade de experiências, situações e ações grupais (MAFFESOLI, 2006). Dessa forma, na socialidade pós-moderna, o indivíduo representa papéis sociais de acordo com seus gostos, assumindo o seu lugar a cada dia nas diversas peças do theatrum mundi. “À autenticidade dramática do social corresponde à tragédia superficial da socialidade” (MAFFESOLI, 2006, p. 108). Com a socialidade, o autor salienta que se vive atualmente em um período de reencantamento do mundo em uma época na qual o encadeamento dos grupos se dá com intencionalidade estilhaçada, mas exigente, pois os indivíduos buscam suprir seus desejos e vontades. Nesse sentido, Maffesoli (2006, p. 121) enfatiza que a vida enquanto obra não é mais assunto de alguns, mas tornou-se um processo de massa, por meio da qual a estética não é mais vista no sentido do gosto ou do objeto, mas o que interessa à sociedade é a forma estética pura, ou seja: “os processos de atração e de repulsão se farão por escolha” (MAFFESOLI, 2006, p. 121). Essa ética constituída a partir de emoções compartilhadas e vividas em comum, Maffesoli chama de “ética da estética”. A partir dessa noção, ele propõe, justamente,

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resgatar o sentido emocional da palavra “estética”3, já que, na Pós-modernidade, “o laço social é cada vez mais dominado pelos afetos, constituído por um estranho e vigoroso sentimento de pertença”. Podemos compreender, portanto, a cultura do sentimento como uma consequência da atração: “Cada um entra no grupo conforme as circunstâncias ou os desejos. Prevalece uma espécie de acaso. Mas o valor, a admiração, o hobby e o gosto partilhados tornam-se cimentos, vetores de ética” (MAFFESOLI, 2009, p. 23). Nesse sentido, retomando a pergunta “o que há em comum entre um zombie walker e um rolezinho?”, podemos responder que, acima de tudo, existe a vontade de “estar-junto”. É por meio dessa vontade de “religação”, que, muitas vezes, não possui uma explicação racional ou um motivo pragmático, que compreendemos a efervescência e a vitalidade que constituem grande parte das agregações sociais contemporâneas. Dessa forma, Maffesoli enxerga na Pós-modernidade o retorno de certos arcaísmos que a Modernidade havia esquecido – como o hedonismo, o presenteísmo, o tribalismo e o nomadismo – e, paradoxalmente, esse retorno do arcaico está profundamente ligado com as atuais tecnologias digitais. Essa junção do arcaísmo e da vitalidade que marcam a socialidade pós-moderna é representada pelo mito da “criança eterna”. “O falar jovem, o vestir-se jovem, os cuidados com o corpo, as histerias sociais são, amplamente partilhadas. Cada um, quaisquer que sejam sua idade, sua classe, seu status, é, mais ou menos, contaminado pela figura da criança eterna” (Maffesoli, 2006, p. 9). É a partir desse contexto, marcado pela sinergia entre esse arcaísmo e as tecnologias de ponta, que pretendemos compreender alguns fenômenos resultantes desse imbricamento entre comunicação emocional, ubiquidade tecnológica e espaços urbanos. novos nômades, novas tribos, velhos sentimentos Para Michel Maffesoli, a sociedade passa por uma reconfiguração, pois a “substituição da verticalidade pela horizontalidade é o denominador comum de todos os fenômenos sociais contemporâneos” (2012, p. 19). As novas tribos urbanas emergem demonstrando que o “estar-junto” por vontade, por interesse em comum é o que

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No sentido de “vivenciar ou de sentir em comum”, como explica Maffesoli (2006, p. 37).

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predomina na vida social. Assim, é necessária uma reavaliação do que se entende por relações de proximidade, distância, presença e mobilidade, sendo importante uma nova forma de pensar as mudanças sociais e culturais ocorridas na sociedade. Ao recorrer à metáfora das tribos, Maffesoli (2006, p. 51) insiste no “aspecto ‘coesivo’ da partilha sentimental de valores, de lugares ou de ideais que estão absolutamente circunscritos (localismo) e que são encontrados, sob diversas modulações, em numerosas experiências sociais”. Criam-se espaços híbridos de socialidade, no qual comunidades instantâneas se formam em busca de práticas transformadoras, conectando indivíduos que se utilizam do virtual proporcionado pela comunicação móvel ao espaço urbano das cidades. Maffesoli trata as relações sociais atuais como efêmeras e inconstantes, dispersas e fluídas e motivadas por um interesse em comum. Com a mobilidade tecnológica inserida na atual sociedade, por meio dos dispositivos móveis, essa fluidez se torna mais presente, devido ao fato de que os indivíduos podem se movimentar e interagir ao mesmo tempo com outros indivíduos em espaços diferentes, proporcionando um entre espaço público e privado, entrelaçamento, que nos impede muitas vezes de distinguir um do outro. Ao mesmo tempo em que há uma fluidez nestas relações, há uma potencialização da capacidade de interação social realizada de forma global e local, proporcionando, assim, a formação de novas tribos urbanas. Essa fluidez se reflete nas novas significações que os indivíduos vêm remetendo aos espaços urbanos por meio de processos comunicativos mediados pelos dispositivos móveis. Os espaços das cidades tornam-se híbridos, unindo tanto o virtual, possibilitado pelas tecnologias, quanto o físico, pois, “[...] existe um laço estreito entre o espaço e o cotidiano. E o espaço é, certamente, o repositório de uma socialidade que não se pode mais negligenciar” (MAFFESOLI, 2006, p. 174). A formação de agrupamentos proporcionada por essas tecnologias pode ser vista nas cidades como uma forma de protesto e revindicação do espaço urbano, tal como ocorre nos chamados flash mobs. Essas mobilizações “relâmpago”, geralmente de cunho ativista e/ou artístico, têm como características a instantaneidade, a rápida dispersão dos indivíduos e como fator de cooperação inédito a formação de pessoas que são capazes de agirem juntas mesmo sem se conhecer. É o que o autor chama de “sociedade eletiva”, a revolução da vida cotidiana.

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Na sociedade atual os “nós” construídos com outros indivíduos são também potencializados por essa comunicação proporcionada pelos dispositivos móveis, demonstrando que outro aspecto tribal está se constituindo de forma a impulsionar a construção de novas formas de socialidade. Maffesoli (2006) aponta que, contrariamente à estabilidade induzida pelo tribalismo clássico, o neotribalismo é caracterizado pela fluidez, as reuniões pontuais e a dispersão. Segundo o autor, a única diferença notável, característica da galáxia eletrônica, é a temporalidade própria dessas tribos. Nada mais fluido e efêmero do que a possibilidade de interação e comunicação entre pessoas em locais e espaços diferenciados em tempo real. Essa ubiquidade proporcionada pela comunicação móvel é um dos grandes fatores que pontua a sociedade eletiva, dita por Maffesoli. Através das tecnologias que proporcionam uma mobilidade4 tecnológica amplia-se não apenas a mobilidade entre os espaços, mas fundamentalmente a possibilidade de os indivíduos trocarem informações sobre determinados fatos, em tempo real, potencializando a capacidade das trocas sociais e a formação de grupos. Maffesoli atribui ao nomadismo um “caráter fundador”. Em relação à cultura, por exemplo, o nomadismo é um elemento fundador na medida em que esta – a cultura – se constitui no “vai e vem” constante dos pequenos grupos, tal como ocorreu na cidade Tebas e seu intenso trânsito ocasionado pelos bacanais dionisíacos. Em outras palavras, o nomadismo surge e depois se institucionaliza com o surgimento da cidade e da cultura, que se formam justamente com a intensa circulação de pessoas. Entretanto, o autor ressalta que o nomadismo não é determinado apenas por questões econômicas ou funcionais, mas sim por um desejo de evasão que ele vai chamar de “pulsão migratória”, “que incita os homens a mudar de lugar, de hábitos, de par, para realizar plenamente as várias facetas de sua personalidade. O confronto com o exterior, com o estranho, com o estrangeiro, é o que capacita o indivíduo medieval a viver a pluralidade estrutural que repousa em seu interior”5 (MAFFESOLI, 2004, p.53).

Entende-se por “mobilidade” o movimento dos corpos em espaços, localidades e entre espaços públicos e privados. 4

Tradução nossa para: “[...] que incita al hombre a cambiar de lugar, de hábitos, de pareja, para alcanzar plenamente las diversas facetas de su personalidad. La confrontación con lo exterior, con lo extraño, con lo extranjero, es precisamente lo que permite al individuo medieval vivir la pluralidad estructural que duerme en su interior.” 5

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A partir dessa “pulsão migratória” podemos compreender a passagem de uma lógica da identidade para uma lógica de identificação que ocorre na pós-modernidade, pois, o nomadismo, em “[...] seu sentido mais estrito é um ‘arrebatamento’ que permite simultaneamente livrar-se do confinamento do tempo individual, do princípio de identidade, e so confinamento domiciliar, casa social e profissional”6 (MAFFESOLI, 2004, p.119). Há, assim, um deslocamento do social racionalizado para uma socialidade predominantemente empática. Dessa forma, a ideia de persona/ pessoa remete à ideia de máscara/papéis que podem ser mutáveis a partir de uma variedade de cenas, ou seja, de situações que só são válidas quando representadas em conjunto (MAFFESOLI, 2006). Nesse sentido, “O habitante das megalópoles seria, em certo sentido, um novo tipo de nômade, um errante que muda de aparência e de papéis na ‘vasta teatralidade social” (MAFFESOLI, 2006, p. 90). O nomadismo, como já se observou, não faz parte apenas da sociedade atual, mas a potencialidade que as tecnologias digitais possuem, atribuem novos significados às formas de nomadismo, sejam esses individuais ou em grupos. Refere-se aqui aos nômades virtuais, que criam territorializações em meio a movimentos no espaço urbano, buscando novos espaços – os territórios informacionais7 (LEMOS, 2007). Com a internet e os dispositivos móveis, o nomadismo encontra uma nova expressão, permitindo um estado de ubiquidade permanente que altera de forma significativa a forma como nos comunicamos, produzimos e consumimos informações, nos relacionamos e, consequentemente, a forma como constituímos nossas identidades. Maffesoli enfatiza que durante todo o período da modernidade houve um aprisionamento da identidade individual “emparedada por trás do muro da vida privada” (2012, p.77). Atualmente, essa pulsão reencontra força na Pósmodernidade, portanto, para ele “a pluralização da pessoa é o coração vibrante do fenômeno tribal” (MAFFESOLI, 2012, p.77).

Tradução nossa para: “En su sentido más estricto es un ‘éxtasis’ que permite librarse simultáneamente del enclaustramiento Del tiempo individual, del principio de identidad, y del confinamiento domiciliario social y profesional”. 6

Segundo Lemos (2007, on-line), são “[...] áreas de controle do fluxo informacional digital em uma zona de intersecção entre o ciberespaço e o espaço urbano. O acesso e o controle informacional realizam-se a partir de dispositivos móveis e redes sem fio. O território informacional não é o ciberespaço, mas o espaço movente, híbrido, formado pela relação entre o espaço eletrônico e o espaço físico”. 7

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Os Zombie Walk8 , citados no início deste texto, são um bom exemplo dessa pulsão migratória contemporânea. Os encontros, organizados principalmente por meio das redes sociais da internet, consistem em uma marcha pública na qual as pessoas se vestem de zumbis e passam a se apropriar dos centros urbanos, como ruas, praças, shoppings e parques. Os primeiros Zombie Walks surgiram no início dos anos 2000, sendo que os registros dos primeiros eventos realizados no Brasil são de 2006. Atualmente, esse tipo de flash mob ocorre em vários países, reunindo milhares de pessoas. Só no Brasil há registro da realização em 68 municípios. É interessante perceber que, no site Zombie Walk SP, há uma seção de FAQ, na qual a primeira questão – “Para que serve a Zombie Walk?” – e a resposta – “Para nada” – ilustram bem a atmosfera hedonista que envolve esse tipo de mobilização. Há, nesse sentido, “uma autonomia em formas banais da existência que, numa perspectiva utilitária ou racionalista, não possuem qualquer finalidade, embora não sejam menos carregadas de sentido, mesmo se este se esgota in actu” (MAFFESOLI, 2009, pp. 12-13). O que se pode perceber ao analisar tais fenômenos é que as tecnologias digitais de comunicação ocupam uma centralidade nessas formas de agregação. Sem elas, seria quase impossível reunir um grande número de pessoas, vindas de locais diferentes, em função de um mesmo objetivo. Por isso, a comunicação móvel traz a possibilidade de junção de pessoas com contextos, classes sociais e experiências sociais distintas, mas que no momento em que o fato ocorre, possuem a mesma vontade de participação e de mobilização: “[...] a ligação entre a emoção compartilhada e a comunalização aberta é que suscita essa multiplicidade de grupos, que chegam a constituir uma forma de laço social, no fim das contas, bem sólido” (MAFFESOLI, 2006, p. 18). Em suma, esses nômades pós-modernos possuem esse reencantamento do mundo, das relações sociais, de seus anseios e dão novos significados aos espaços urbanos. Os “rolezinhos” também podem ser compreendidos a partir desses anseios tribalistas em vivenciar o cotidiano a partir da lógica de uma socialidade empática,

Originária da Califórnia em 2001, atualmente, esse evento vem sendo realizado em diversas cidades do Brasil e do mundo. 8

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que tem nas redes sociais da internet sua principal forma de mobilização. E, independente dos diferentes pontos de vistas por quais essas mobilizações são analisadas9, é interessante perceber que, pela perspectiva dos próprios jovens, os rolezinhos são marcados pela vontade de “estar-junto”, pelo puro hedonismo: “um rolê legal é você curtir, beber, ficar e zoar”, explica uma jovem no vídeo “Descubra quem são e o que pensam as rolezeiras”. E é a partir dessa perspectiva, de olhar os fenômenos pelo “lado de dentro”, que compreendemos a importância dos trabalhos de Maffesoli. O sociólogo francês ressalta ainda que esses fenômenos atuais fazem parte da pluralização das pessoas, e que, dependendo da tribo a qual participamos, vestiremos a máscara adequada e desempenharemos o papel esperado pela tribo naquele momento. Nessa fragmentação de si tudo é relativo, e a internet, com as redes sociais digitais, sites e a comunicação móvel, é a manifestação por excelência deste tipo de despedaçamento. A utilização de redes sociais na internet, sites, fóruns, chats etc. não são novidades quando falamos em mobilização e participação entre os indivíduos. O que buscamos destacar neste artigo é a imbricação entre essas redes emocionais, a internet e os espaços urbanos das cidades. Esse fenômeno apenas é possível com o desenvolvimento da comunicação móvel, cada vez mais potencializada pelo uso de dispositivos como tablets e telefones celulares. As organizações desses movimentos são previamente organizadas por meio de redes sociais como Facebook e Twitter, no entanto, o que nos chama a atenção é a instantaneidade das informações que são produzidas e compartilhadas em tempo real aos acontecimentos, que transformam e ressignificam os próprios fenômenos vivenciados. Os indivíduos, conectados em “nós” (conexões) que não são mais fixos, ultrapassam a barreira do espaço. Os “nós” passam a estar sempre em movimento e não mais estáticos. A interação e a informação são estabelecidas no ambiente virtual e se materializam no real das cidades. O espaço assim também se altera,

“‘Rolezinhos’ em shoppings são grito por lazer e consumo, dizem funkeiros”, disponível em . “Os novos ‘vândalos’ do Brasil”, disponível em . “Especialistas debatem o fenômeno do ‘rolezinho’”, disponível em . 9

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torna-se um híbrido entre o ciberespaço e o espaço urbano, ampliando as possibilidades de conexão e formação de tribos. Há, então, a criação de novos territórios, novas significações dos espaços sociais. Por meio do Twitter, por exemplo, cada perfil pode narrar sua experiência pessoal em relação a determinado evento (ver itens “A”, “C”, “D”, “E” na Figura 1), mas que, por meio das hashtags – como #zombiewalksp na Figura 1 – tornam-se uma experiência coletiva, capaz até mesmo de mobilizar pessoas que estão distantes fisicamente e que só conseguem fazer parte dessa experiência por meio das redes sociais digitais (ver o item “B” na Figura 1). O compartilhamento de imagens em redes sociais como o Instagram também ressalta o caráter tribal que permeia essas mobilizações, nas quais a aparência, o modo de vestir e de se comportar se tornam vetores de ligação (ver Figura 2). Os check-ins realizados via Foursquare e Facebook, por sua vez, são maneiras de se dirigir ao outro, informando em tempo real, que se está ali, naquele momento e espaço onde as coisas acontecem. Tudo isso atribui novos significados aos locais das cidades, dando ênfase ao espaço de socialidade que vai se construindo e que, segundo Maffesoli (2012, p. 18) “[...] opõe-se ao tempo do social próprio à civilização racional.”. Estas tribos caracterizam as relações sociais pós-modernas, realizadas de maneira individualistas, fluidas, instáveis e frágeis, porém a valorização emocional das relações se ressalta, fazendo com que cada vínculo que um indivíduo construa com o outro seja permeado de sentimentos.

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Figura 1: Tweets filtrados pela hashtag #zombiewalksp

Figura 2: Fotomontagem de imagens filtradas pela hashtag #zombiewalksp no Instagram

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Maffesoli tenta nos explicar que mundo é este que vivemos atualmente, cheio de possibilidade e cada vez menos atrelado às estruturas sociais formais, como partidos políticos, sindicatos e organizações. Ele nos conduz a acompanhar esse processo de “contaminação societal” (MAFFESOLI, 2012) para que possamos entender a fluidez e a efemeridade das relações sociais que emergem com interações mediadas por computador e que se complexificam com a intersecção latente entre a internet e as ruas, possibilitada pelas tecnologias móveis. Os rolezinhos e os Zombie Walk são apenas alguns dos exemplos pelos quais podemos referenciar o contexto atual vivido, no qual o laço social é tecido em grande parte pelo não lógico e pelo irracional, “[...] algo que se exprime na efervescência de todas as formas ritualizadas (esporte, música, canções, consumo, consumição, revoltas, explosões sociais) ou, em geral, totalmente espontâneas” (MAFFESOLI, 2009, p. 7). E conforme, atenta Maffesoli, essa efervescência contemporânea, por mais chocantes que sejam, merecem ser compreendidas.

REFERÊNCIAS LEMOS, André. Mídias locativas e territórios informacionais. In: SANTAELLA, Lucia; ARANTES, Priscila (Eds). Estéticas Tecnológicas. Novos Modos de Sentir. São Paulo: EDUC, 2007, pp. 207-230. Disponível em . Acesso em 01 fev. 2014. MAFFESOLI, Michel. O tempo retorna. Formas elementares da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. ______. O conhecimento comum: Introdução à sociologia compreensiva. Porto Alegre: Editora Sulina, 2010. ______. O Mistério da Conjunção: ensaios sobre comunicação, corpo e socialidade. Porto Alegre: Sulina, 2009. ______. O Tempo das Tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense, 2006. ______. El nomadismo: vagabundeos iniciáticos. México: FCE, 2004. ______. No fundo das aparências. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.

tipografia número de páginas ano

Gandhi Sans 138 2015

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