Olhos turvos, mente errante - Elementos melancólicos em Lira dos vinte anos, de Álvares de Azevedo. Tese de doutorado, UFRGS, 1997. Orientadora: Maria do Carmo Campos.

July 14, 2017 | Autor: Jaime Ginzburg | Categoria: Romanticism, Melancholy, Poesía, Álvares de Azevedo, Romantismo Brasileiro
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

OLHOS TURVOS, MENTE ERRANTE ELEMENTOS MELANCÓLICOS EM LIRA DOS VINTE ANOS, DE ÁLVARES DE AZEVEDO

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Letras, na área de Literatura Brasileira.

Aluno: Jaime Ginzburg Orientação: Profa. Dra. Maria do Carmo Campos 1997

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G493o Ginzburg, Jaime Olhos turvos, mente errante - elementos melancólicos em Lira dos vinte anos, de Álvares de Azevedo / Jaime Ginzburg. Porto Alegre: UFRGS, Instituto de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras, 1997. 321 p. : il. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1997. 1. Literatura brasileira. 2. Literatura brasileira - Crítica. 3. Literatura brasileira Romantismo - Melancolia. 4. Literatura brasileira - Poesia - Crítica. 5. Azevedo, Álvares de, 1831-1852. - Crítica. I. Título. CDU: 869.0 (81) 869.0 (81).09 869.0 (81)”18/19” 869.0 (81)-1.09 869.0 (81)-1.09AZEVEDO Ficha catalográfica elaborada por Luzia de Lima Sant`Anna CRB-10/728, Biblioteca Central da UFSM

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Para Bela e Jakob, meus pais, pelas horas em que não estive com eles.

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Sumário RESUMO ........................................................................................................................................................ 7 ABSTRACT ..................................................................................................................................................... 8 AGRADECIMENTOS ........................................................................................................................................ 9 NOTA INTRODUTÓRIA .................................................................................................................................. 11 1. LEITURAS DE ÁLVARES DE AZEVEDO ...................................................................................... 16 1.1. MOMENTOS DA RECEPÇÃO ................................................................................................................... 16 1.2. O DUALISMO ......................................................................................................................................... 33 1.3. A MELANCOLIA SINCERA ...................................................................................................................... 38 2. A MELANCOLIA ................................................................................................................................ 47 2.1. CONCEITO DE MELANCOLIA .................................................................................................................. 47 2.1.1. Origens ........................................................................................................................................ 47 2.1.2. Caminhos ..................................................................................................................................... 54 2.1.3. No romantismo ............................................................................................................................ 60 2.2. O ABSOLUTO POSSÍVEL......................................................................................................................... 71 2.2.1. Xerxes .......................................................................................................................................... 82 3. ELEMENTOS MELANCÓLICOS EM LIRA DOS VINTE ANOS.................................................. 86 3.1. OLHOS TURVOS, MENTE ERRANTE ........................................................................................................ 86 3.2. A RUÍNA DO IDÍLIO .............................................................................................................................. 101 3.2.1. O bizarro e o cômico ................................................................................................................. 101 3.2.2. A embriaguez ............................................................................................................................. 106 3.2.3. Ócio, dinheiro e miséria ............................................................................................................ 117 3.2.4. Homem humano ......................................................................................................................... 129 3.2.5. A falta de centro ........................................................................................................................ 141 3.3. CREPÚSCULOS .................................................................................................................................... 146 3.3.1. Formas do crepúsculo ............................................................................................................... 146 3.3.2. A atitude contemplativa ............................................................................................................. 159 3.3.3. Duas paisagens .......................................................................................................................... 168 3.4. AMOR E RENÚNCIA ............................................................................................................................. 182 3.4.1. Figuras femininas ...................................................................................................................... 182 3.4.2. Extremos .................................................................................................................................... 200 3.5. PERDA ................................................................................................................................................ 208 3.5.1. Formas da perda ....................................................................................................................... 208 3.5.2. As perdas em Azevedo ............................................................................................................... 211 3.5.2.1. Anjinho ............................................................................................................................................... 211 3.5.2.2. No túmulo de meu amigo João Batista da Silva Pereira Júnior .......................................................... 220 3.5.2.3. Tarde de outono .................................................................................................................................. 225 3.5.2.4. Virgem morta...................................................................................................................................... 235

3.6. MELANCOLIA E RELIGIÃO ................................................................................................................... 245 3.6.1. Morte e arrependimento ............................................................................................................ 254 4. PERSPECTIVAS ................................................................................................................................ 264 ANEXOS ................................................................................................................................................. 273 BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................................... 308

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O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas

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Resumo

Este trabalho consiste em uma leitura de Lira dos vinte anos, livro escrito por Álvares de Azevedo, publicado em 1853. O propósito das reflexões é examinar elementos como a ilusão, o amor, a morte, a religião, o humor, as figuras femininas, a perda e a embriaguez. O enfoque escolhido consiste em observar a presença da melancolia no livro. O trabalho tem como ponto de partida uma revisão de estudos críticos importantes sobre o poeta. Em sua segunda parte, apresenta elementos de teoria da melancolia. Entre os autores consultados para fundamentação, estão Aristóteles, Walter Benjamin, Jean-Pierre Schaller, Klibansky, Panofsky e Saxl. A terceira parte consiste na reflexão sobre alguns poemas fundamentais da Lira. Em Idéias íntimas, a melancolia está associada ao reconhecimento da falta de substancialidade das ilusões e a uma problematização da relação do sujeito com a realidade. Em textos como No túmulo de meu amigo João Batista da Silva Pereira Júnior e Virgem morta, a melancolia se manifesta como dificuldade de superar uma perda. Em vários textos, encontramos o interesse, motivado pela melancolia, por experiências extremas. E em Lágrimas de sangue, de teor religioso, o mundo é marcado pela presença da morte, constituindo uma relação complexa entre melancolia e fé.

8 Abstract

This is a study of Lira dos vinte anos, a book written by Álvares de Azevedo, published in 1853. Its purpose is to understand elements like illusion, love, death, religion, humour, female figures, loss and drunkenness. The chosen approach is to observe the presence of melancholy in that book. The paper`s first topic is a review of essential critical studies of the poet. The second part presents theoretical points of view about melancholy. Some of the theoreticians consulted are Aristóteles, Walter Benjamin, Jean-Pierre Schaller, Klibansky, Panofsky and Saxl. The third part is a reflection on some important poems from Lira. In Idéias íntimas, melancholy is associated with the acknowledgement of weakness of illusions and the subject`s problematic relationship with reality. In texts like No túmulo de meu amigo João Batista da Silva Pereira Júnior and Virgem morta, melancholy is associated with dificulty to overcome loss. In many cases, we can see a melancholy-driven interest in extreme experiences. In Lágrimas de sangue, which has a religious content, the world is marked by death`s presence, which constitutes a complex relationship between melancholy and faith.

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Agradecimentos

Há algumas pessoas e instituições a quem devo agradecer, pela importância que tiveram no processo de elaboração deste estudo. A Maria do Carmo Campos, que aceitou orientar o trabalho, acompanhou as etapas sempre com estímulo, falando de poesia, sendo amiga, humana, paciente e acolhedora. A Antonio Marcos Vieira Sanseverino, amigo certo, interlocutor, responsável por algumas idéias com que trabalhei (mas não pelos problemas), tendo indicado leituras e aberto caminhos. A Maria da Glória Bordini, que tem a capacidade de fazer a gente acreditar que estudar literatura tem muito sentido, pela força, pelo material emprestado, pela aprendizagem e pela lucidez. A Márcia Ivana de Lima e Silva, amiga querida, que trouxe material nas malas de viagem, foi carinhosa, e deu exemplo. A José Antonio Pasta Jr., que deu muita força, conseguiu material e melhorou o ânimo. A Profa.Dra. Maria Eunice Moreira e Prof.Dr. Flávio Wolf Aguiar, pelas observações atentas e indicações de leitura no exame de qualificação. À Profa. Dra. Freda Indursky, Coordenadora do PPG-Letras, pela compreensão.

10 Ao meu chefe Hélio Neis, e aos colegas do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Santa Maria, pelo incentivo. Aos professores Alfredo Bosi, Regina Zilberman, Luís Augusto Fischer e Maria Luíza Ritzel Remédios, pelos estímulos. Aos amigos Vicente Saldanha, Nara Augustin Gehrke, Eunice Trevisan, Nina Célia e Cláudio Barros, Clarinha Glock, Maria Aparecida Simões, Pedro Brum Santos, Cláudio Pereira Elmir, Márcia Lopes Duarte, José Carlos Volcato, Marcus Mello, Carlos Petri, Luciana Santos, Cláudia Caimi, Branca Moellwald, Ana Lúcia Liberato Tettamanzy, Almir Pedroso, Vitor Biasoli, Cláudio Cruz, Carla Feistauer, Jeanine Cocaro, Rubem Penz, Annete Baldi e Régis, Eni Celidônio e Sandra Barbosa, pelo apoio. Ao meu afilhado Ivan. Ao Acervo Fontes de Literatura Brasileira, do Curso de Pós-Graduação em Letras da PUC-RS, por ter dado acesso ao artigo raro de Joaquim Norberto de Sousa e Silva. Ao CNPQ, por ter concedido uma bolsa de estudos, durante o período de créditos, em 1993, fundamental para a realização do trabalho. Ao Canísio e à Márcia, da Secretaria do PPG, pela ajuda. A meus pais e irmãs, que sempre estão por perto.

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Nota introdutória Se Pentesiléia é apenas uma periferia de si mesma e o seu centro está em todos os lugares, você já desistiu de saber. A pergunta que agora começa a corroer a sua cabeça é mais angustiante: fora de Pentesiléia existe um lado de fora? Ítalo Calvino, As cidades invisíveis

O tema deste estudo é o livro Lira dos vinte anos, publicado pela primeira vez em 1853, da autoria de Manuel Antônio Álvares de Azevedo (1831-1852). Em sua primeira edição, fez parte de um volume intitulado Poesias, que incluía outros textos do escritor. A obra contém dois prefácios, sendo dividida em três partes. A edição utilizada como referência é a apresentada no primeiro volume das Obras completas do autor, organizada por Homero Pires1. A Lira dos vinte anos é um livro reconhecido pela fortuna crítica de Álvares de Azevedo. A produção do autor inclui outros poemas, uma peça de teatro, Macário, um livro de prosa, Noite na taverna, correspondência, discursos e estudos literários. De modo geral, é em sua poesia que os críticos encontram maior interesse. O autor é situado pela historiografia literária como um dos mais relevantes do romantismo brasileiro, sendo considerado exemplar na poesia lírica intimista. De acordo com alguns críticos, por ter morrido cedo, o autor não pôde desenvolver sua capacidade como escritor, tendo-se construído a imagem de que era uma promessa importante para as letras brasileiras. Inicialmente, pretendia desenvolver no doutorado uma reflexão sobre as relações entre Machado de Assis e o romantismo; depois de iniciar as leituras

12 de embasamento, o tema acabou sendo substituído, em razão do interesse por uma delas, a de Álvares de Azevedo. Na elaboração do projeto para esta tese, foi fixado inicialmente como corpus o conjunto da produção do escritor. No entanto, o andamento do estudo exigiu que ele fosse restrito, sob risco de inviabilizar a finalização em um prazo aceitável. Por isso, foi escolhido como objeto o livro Lira dos vinte anos. O objetivo do trabalho é refletir a respeito de poemas da Lira, examinando elementos como o amor, as figuras femininas, o devaneio, o ócio, o dinheiro, as imagens cômicas, a atitude contemplativa, a religiosidade, a morte e a perda. O enfoque escolhido para abordar a obra consiste em observar seus elementos melancólicos. O fato de ser a Lira o objeto de interesse central, e não outra parte da produção, se deve à densidade de presença desses elementos no livro. Partindo de uma compreensão do modo como Álvares de Azevedo foi lido pela fortuna crítica, e da posição que assumiu no cânone nacional, pretende-se examinar a complexidade de seu trabalho, cujas características de composição envolvem ambigüidades temáticas e variações formais. Embora esteja em sintonia com o ideário romântico, em seus textos encontramos abordagens temáticas que remetem a trabalhos de escritores de outros períodos. A escolha do enfoque se deve, em parte, ao interesse por Walter Benjamin, filósofo em cuja obra o conceito de melancolia é importante. Na dissertação de mestrado A desordem e o limite - a propósito da violência em Grande sertão: veredas, concluída em 1993, foi importante utilizar a Origem do drama barroco 1

AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942. 2 v.

13 alemão2, livro que apontou alguns caminhos teóricos para pensar o conceito de melancolia - Aristóteles, Constantinus Africanus, Dürer. Além disso, a leitura do artigo de Machado de Assis sobre a Lira dos vinte anos estimulou a convicção de que se tratava de um enfoque pertinente. É difícil definir o conceito de melancolia. Raymond Klibansky, Erwin Panofsky e Fritz Saxl, logo no início de Saturne et la mélancolie, alertam para 3

as variações de atribuições de sentido à palavra . Jackie Pigeaud considera a noção semanticamente muito vaga4. Entre os textos teóricos sobre o assunto, encontramos abordagens diversas, que apontam para definições nem sempre congruentes umas com as outras. A abordagem exige a revisão de elementos de teoria da melancolia. A intenção não é delimitar um conceito unívoco, mas levantar um repertório de referências. As grandes diferenças de propósitos e métodos entre Aristóteles e Freud, por exemplo, não foram encaradas como impeditivos para a reflexão. Foram observados pontos de contato entre formulações antigas e modernas. Este trabalho não pretende, no entanto, fixar um conceito genérico a partir desses aspectos comuns, por entendermos que isso diminui o alcance analítico das formulações. A proposta, metodologicamente, consiste em recorrer às diversas referências teóricas sobre a melancolia, antigas e / ou modernas, científicas ou não, na medida em que elas permitam avaliar a relevância de imagens e temas poéticos, e identificar articulações entre

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BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984. KLIBANSKY, PANOFSKY & SAXL. Saturne et la mélancolie. Paris: Gallimard, 1989. p. 29. 4 PIGEAUD, Jackie. Présentation. In: ARISTOTE. L`homme de génie et la melancolie. Problème XXX, 1. Paris: Rivages, 1988. p.65. 3

14 elementos de composições de um poema, ou entre diferentes poemas, ou ainda entre textos de Azevedo e de outros autores. Por isso, nos permitimos definir de diversas maneiras as características essenciais da melancolia, em razão das variações de conceituação nas fontes. A tese não é inteiramente exaustiva, isto é, não pretende comentar todos os poemas do livro. Foi feita uma seleção, no sentido de contemplar textos representativos dos temas mais constantes do livro, que manifestassem, de diferentes modos, a presença da melancolia. Os textos selecionados para estudo mais detido foram Idéias íntimas, Crepúsculo nas montanhas, Quando à noite, no leito perfumado, Malva-maçã, Anjinho, No túmulo de meu amigo João Batista da Silva Pereira Junior, Tarde de outono, Virgem morta e Lágrimas de sangue, sendo feitas referências a outros. Os poemas aqui listados foram transcritos na tese. A estrutura do trabalho é a seguinte. Na primeira parte, Leituras de Álvares de Azevedo, é apresentada uma revisão da fortuna crítica do poeta. Esta tem três segmentos. O primeiro, Momentos de recepção, é genérico e aponta linhas de leitura do autor. O segundo e o terceiro se restringem a comentar os registros de identificação de dualismo e melancolia, respectivamente, em sua produção. A segunda parte, A melancolia, consiste na fundamentação teórica, e expõe idéias a respeito do conceito, detendo-se em suas relações com a ironia. A terceira parte, Elementos melancólicos em Lira dos vinte anos, apresenta os estudos de poemas, em que são examinados os seguintes pontos: a

15 associação entre melancolia e ironia, o grotesco e o humor, as representações do ócio e da miséria, as imagens de crepúsculos, as figuras femininas, as formas de amor, o sentimento de perda, as imagens da morte e a relação entre o homem e Deus. Ao final, constam em anexo os poemas da Lira selecionados para estudo mais detido, algumas pinturas examinadas, e a bibliografia.

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1. Leituras de Álvares de Azevedo 1.1. Momentos da recepção

A produção de Álvares de Azevedo foi submetida a avaliações severas. Antonio Candido, por exemplo, escreveu a seu respeito: “Mareiam a sua obra poemas sem relevo nem músculo, versalhada que escorre desprovida de 5 necessidade artística” . Leitores como Machado de Assis e Joaquim Norberto

de Sousa e Silva foram rigorosos, chamando a atenção para deficiências 6

formais nos textos do poeta romântico . Mesmo merecendo esses juízos, sua poesia foi considerada, em geral, superior a seus textos em outros gêneros. No entanto, o que prevalece, por parte da crítica, é uma avaliação positiva. Alfredo Bosi o caracteriza como um escritor exemplar 7, assim como Antonio Candido 8. Suas opiniões estão de acordo com a tendência geral da fortuna crítica. Embora nesta não haja uniformidade de métodos ou propósitos, é possível observar uma convergência de juízos. A atitude predominante, entre os leitores de Álvares de Azevedo, tende a ser o elogio, embora as razões para gostar dele variem bastante. Por ter falecido jovem, o escritor foi visto como um potencial que não chegou a se realizar plenamente. Mesmo não tendo amadurecido, e mantido

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CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. v.2. p.178. Conforme ASSIS, Machado de. Álvares de Azevedo: Lira dos vinte anos. In: ____. Obras completas. Rio de Janeiro: Aguilar, 1994. v.3. p. 894. SOUSA E SILVA, Joaquim Norberto. Notícia sobre o autor e suas obras. In: AZEVEDO, Álvares de. Obras. Rio de Janeiro: Garnier, s.d. 6 ed. t.1. p. 69-72. 7 BOSI. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. 3 ed. p.110. 6

17 inédita a Lira dos vinte anos até sua morte, seus trabalhos o levaram ao reconhecimento, e hoje Azevedo tem um lugar no cânone da literatura brasileira. Entre as preocupações da crítica, duas foram muito constantes. A primeira, explicar sua produção através da compreensão de sua vida. Vários estudiosos se ocuparam de reunir dados biográficos, e utilizá-los como base para justificar as escolhas temáticas e emoções representadas em sua poesia. A segunda, demonstrar o alcance do empenho de Azevedo em conhecer a literatura européia, propondo a compreensão de sua obra à luz de influências variadas, em especial de Lord Byron e Alfred de Musset. Glorificado logo após sua morte, classificado pelos historiadores da literatura, avaliado em jornais e trabalhos acadêmicos, submetido a muitos tipos de recepção crítica, Azevedo continua despertando interesse para leitura. Entre as questões que reaparecem ao longo de décadas, estão: o que representa a “binomia” de que ele fala na Lira dos vinte anos? Como sua produção se relaciona com a literatura européia? Em que medida ele é confessional, falando de si mesmo em sua produção poética? Qual a sua contribuição original à literatura brasileira? Porém, algumas questões permanecem exigindo maior atenção. Poucas reflexões se dedicaram a explicar, por exemplo, a relação entre a poesia de Azevedo e a história do Brasil. No início, era a perda. As caracterizações de Álvares de Azevedo feitas por Joaquim José Teixeira e Joaquim Manuel de Macedo, logo após o 8

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. op.cit. p.178.

18 falecimento do poeta, fundem o lamento de dor com a manifestação pública de admiração. Em 26 de abril de 1852, foram pronunciados por eles discursos de homenagem a Álvares de Azevedo, cuja morte ocorreu antes que completasse 21 anos. Os textos de Teixeira e Macedo, preparados “por ocasião de dar-se a sepultura”, se propõem a elogiar o poeta. O primeiro salienta duas virtudes religiosidade e patriotismo - e lamenta que tenha faltado tempo para desenvolver suas qualidades. O segundo atribui a ele “excelentes poesias”, e se empenha em sacralizar sua figura: “Deus tinha acendido na alma do mancebo aquele fogo sagrado da poesia que eleva o homem acima da terra e faz correr de seus lábios em cantos sonoros a linguagem do inspirado”9. Atitude semelhante é encontrada no artigo de Lindorf França intitulado Duas palavras sobre M. A. A. de Azevedo, de 1856. O poeta brasileiro é tratado como figura de importância incomum, “astro” e “estrela d`alva”, e comparado a Byron. França opina que o país lamenta tê-lo perdido, e afirma estar “em nossos corações, a saudade”10. Os trabalhos elogiados por Macedo ganham impressão em 185311, em uma edição intitulada Poesias, no Rio de Janeiro. Em 1861, o português Lopes de Mendonça publica no Jornal do comércio, na mesma cidade, um artigo comentando a situação:

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Peças elegíacas relativas ao autor. In: AZEVEDO, Álvares de. Obras. op.cit. p.117-22. A idéia de que Deus é o responsável pela capacidade de escrever do poeta remete a uma passagem de Macário, em que se lê: “Eu sinto-o, Deus me fez poeta”. AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. v.2. p.74. 10 FRANÇA, Lindorf E. F. Duas palavras sobre M.A.A. de Azevedo. In: CASTELLO, José Aderaldo. Textos que interessam à história do romantismo. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1960. v.2. p.219-22. 11 A informação está na apresentação de Homero Pires, à p.XXV, no primeiro volume das Obras completas.

19 “Manuel Antonio Álvares de Azevedo, poeta brasileiro, cujas poesias póstumas viram a luz em 1853 no Rio de Janeiro, era um talento de primeira ordem, uma daquelas vocações onipotentes, que revelam, desde o berço, os fecundos dons do gênio. Morto no ano de 1852, só um ano depois é que o Brasil pôde deplorar a perda de uma das suas mais esperançosas ilustrações”12.

A argumentação de Mendonça procura enfatizar a hipótese de que, se Azevedo tivesse permanecido vivo, sua produção futura seria de alto valor. Elogia a Lira dos vinte anos, e considera o desaparecimento de seu criador um episódio “funesto” para o “progresso das letras”. Compara-o a Gonçalves Dias, e defende uma comunhão entre as letras portuguesas e brasileiras. Machado de Assis, em 1866, dá continuidade à recepção positiva do poeta. Comenta seu “grande talento”, sua “seiva poderosa”, sua “imaginação vigorosa”. Como Mendonça, acredita que “lhe faltou o tempo”; porém, diferentemente do escritor português, e com maior distanciamento afetivo, Machado chama a atenção para imperfeições do autor examinado, entendendo que o tempo lhe traria as “modificações necessárias”. O teor crítico do artigo distingue variações de qualidade no interior da produção de Azevedo, preferindo a poesia à prosa, considerada confusa. Elogia os poemas humorísticos, mas encontra em sua produção “versos incorretos” e problemas 13 formais .

Em 1873, vem a público a Notícia sobre o autor e suas obras, de Joaquim Norberto de Sousa e Silva, texto que desenvolve algumas das linhas de leitura de Machado de Assis: a falta de maturidade do trabalho poético de Azevedo; o

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O artigo está reproduzido em VÁRIOS. Juízo crítico. In: AZEVEDO, Álvares de. Obras. op.cit. p.16.

20 estabelecimento de conexões entre o poeta brasileiro e a literatura inglesa, em particular com Hamlet, de William Shakespeare; o reconhecimento de defeitos de composição formal em textos poéticos. Sousa e Silva considera a Lira dos vinte anos “o que há de melhor” em seu legado14. Grande parte do trabalho do crítico é dedicado à apresentação de informações biográficas. Sílvio Romero inclui em sua História da literatura brasileira, em 1888, algumas páginas a respeito de Álvares de Azevedo, optando por iniciar sua exposição com dados sobre a vida do poeta. Quanto à produção, manifesta preferir a poesia aos demais gêneros. Em seu estudo, é importante a reflexão sobre o dualismo do autor, ponto já discutido por Sousa e Silva. Para Romero, a “dubiedade” de sua criação se deve à instabilidade do processo histórico em que ela surge: “Todo o século XIX foi uma época de lutas e fortes comoções intelectuais; os dogmas surgiam e tombavam, sem poder aliciar todos numa crença apaziguadora e universal”15. Outro ponto importante da leitura do crítico é a atribuição ao poeta de um “certo modernismo”. Romero afirma: “o tom é novo; vê-se nitidamente que se 16

está a tratar com um filho do século” . Como a argumentação não tem o desenvolvimento esperado, a definição de modernismo resulta imprecisa. De todo modo, importa salientar que o historiador reconhece em Azevedo traços que o distinguem favoravelmente da produção poética brasileira anterior, afastando-o da tradição.

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ASSIS, Machado de. Álvares de Azevedo: Lira dos vinte anos. op.cit. p.892-4. SOUSA E SILVA, Joaquim Norberto. Notícia sobre o autor e suas obras. op.cit. p. 61. 15 ROMERO, Silvio. Terceira fase do romantismo: o subjetivismo de Álvares de Azevedo e sua plêiada. In: ____. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960. Tomo 3. p.956. 14

21 Em 1901, José Veríssimo publica um volume de Estudos de literatura brasileira, incluindo algumas páginas a respeito de Azevedo. Veríssimo retoma uma das linhas de leitura de Sílvio Romero. Este, na História da literatura brasileira, afirma que o poeta romântico tinha um temperamento “enfermo”17. Para Veríssimo, ele possuía uma “imaginação doentia, como doentio era o seu organismo”18. Nos dois casos, o traço doentio é vinculado à melancolia observada em seus textos. Como Sílvio Romero, José Veríssimo prefere a poesia aos textos escritos em outros formatos, que não mereceriam a estima que receberam. E como Machado de Assis, acredita que não houve tempo para o autor construir sua produção como poderia. O estudo de Veríssimo amplia a reflexão a respeito das afinidades entre Azevedo e a literatura européia, enumerando os autores 19 cuja influência seria decisiva, iniciando a lista com Byron e Musset .

Quinze anos mais tarde, Veríssimo, na sua História da literatura brasileira, propõe a segmentação da produção poética do romantismo em três gerações. A primeira estaria associada ao processo de independência política do país, sendo freqüente em suas criações um “propósito patriótico”20. A segunda teria “mais largo conceito estético”. Para o historiador, não havia razão para o mesmo grau de patriotismo da geração anterior, pois a situação do país estaria

16

Idem. p.961. Idem, p.950. 18 VERÍSSIMO, José. Álvares de Azevedo. In: ____. Estudos de literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1977. 2a. série. p.29. 19 Idem, p.28. 20 VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira. Brasília: UNB, 1963. cap.13. p.137-8. 17

22 mais estável21. Os poetas estariam agora dedicados ao “máximo de emoção”, e interessados em tematizar a morte, por estarem contagiados pela 22

“melancolia de Gonçalves Dias” . Quanto à terceira geração, Veríssimo demonstra dificuldade em unificá-la por um traço comum, mas aponta elementos como “feição social e humanitária” e “altiloqüência”23. Nesse esquema, Álvares de Azevedo é situado como representativo da segunda geração, sendo o primeiro a ser comentado, em um grupo contando com Laurindo Rabelo, Junqueira Freire, Casimiro de Abreu, Francisco Otaviano de Almeida Rosa, José Bonifácio, Aureliano Lessa, Bernardo Guimarães, Teixeira de Melo e José Joaquim Cândido de Macedo Jr. 24. O esquema proposto por Veríssimo foi importante para a fortuna crítica 25

posterior. As histórias literárias de Alfredo Bosi

e Massaud Moisés

26

o

empregam, adotando hierarquia de valores semelhante ao privilegiar Azevedo com relação aos demais poetas mencionados. Antonio Candido, em sua Formação da literatura brasileira, desenvolve sua apreciação da “segunda geração romântica”, em que encontra o “mal do século” e a ambivalência, a ”volúpia dos opostos”

27

. “Mal do século” consiste em uma expressão criada

pelos europeus para designar um conjunto de traços perceptíveis na produção romântica - introspecção, inconformismo, angústia metafísica, atração pela

21

Idem, p.214. Idem, p.216-7. 23 Idem, p.241. 24 Idem, conforme capítulo 13. 25 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. op.cit. Conforme p.109. 26 MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1985. v.2. (O romantismo) 27 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. op.cit. p.149-51. 22

23 28

morte, desesperança

e, nos termos de Antonio Candido, “pessimismo,

humor negro, perversidade”. A consagração do modelo proposto por José Veríssimo pode ser medida pelo fato de que, na bibliografia sobre literatura voltada para o ensino secundário no Brasil, existe um aproveitamento didático de seu esquematismo, com o fim de mapear de maneira organizada obras e autores. Os livros de Carlos Emílio Faraco e Francisco Moura, Douglas Tufano e Sérgius Gonzaga29, por exemplo, seguem rigorosamente o princípio das três gerações e, como José Veríssimo, apresentam Álvares de Azevedo como primeiro nome do grupo referente à segunda geração. O reconhecimento de historiadores da literatura como José Veríssimo, Antonio Candido e Alfredo Bosi levou a estabelecer a posição de Álvares de Azevedo no cânone brasileiro como “o poeta mais representativo da segunda geração romântica”

30

, para lembrar uma frase de um verbete dedicado ao

escritor em um dicionário de literatura brasileira. As caracterizações propostas nos livros escolares expressam o respeito a esse estabelecimento e aos critérios que o sustentam.

28

Conforme BIEDERMANN, Alfred, org. Le romantisme européen. Paris: Larousse, 1972. v.1. cap.III. BRIS, Michel de. Journal du romantisme. Genéve: Albert Skira, 1981. Cap.7. A expressão é empregada de modo equivalente em: DAL FARRA, Maria Lucia. Da lira ao marimbau. In: AZEVEDO, Álvares de. Lira dos vinte anos. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. XV. VERÍSSIMO, Erico. Minha terra tem palmeiras. In: ____. Breve história da literatura brasileira. São Paulo: Globo, 1995. p.50. FACIOLI, Valentim. Pátria, natureza e sentimentos. In: ___ & OLIVIERI, Antonio Carlos, orgs. Antologia de poesia brasileira: romantismo. São Paulo: Ática, 1996. p.10-2. 29 FARACO, Carlos Emílio & MOURA, Francisco Marto. Língua e literatura. São Paulo: Ática, 1996. v.2. Unidades 3 a 7. TUFANO, Douglas. Estudos de literatura brasileira. São Paulo: Moderna, 1995. Parte III. GONZAGA, Sérgius. Manual de literatura brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985. cap.3. 30 RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. Álvares de Azevedo. In: PAES, José Paulo & MOISÉS, Massaud. Pequeno dicionário de literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1987. p.65.

24 Ainda com relação ao capítulo dedicado a Azevedo na História da literatura brasileira, cabe registrar que José Veríssimo retoma o esforço de Joaquim Norberto de Sousa e Silva em esclarecer a biografia do poeta. Essa abordagem vai conseguir, mais adiante, um desenvolvimento importante na fortuna crítica. Além disso, insiste em pontos levantados em 1901. Comenta as influências do romantismo europeu, e novamente estão encabeçando a lista Musset e Byron31; e aponta a sua “sensibilidade doentia”, voltada para o desespero e o interesse pela morte

32

.

Manoel Bonfim faz um registro de interesse por Azevedo, em 1931, atentando para a multiplicidade de elementos contidos em sua produção; indiferente às discussões sobre influências, considera-o “intensamente brasileiro”

33

. No mesmo ano, é publicado o livro de Veiga Miranda, Álvares de

Azevedo, que tem como finalidade essencial compor o itinerário da vida do poeta. Traz um estudo da sua correspondência, e dedica atenção aos seus estudos literários, elogiando sua capacidade de relacionar literatura e história34. Nesse ponto, contraria frontalmente Sílvio Romero, que declarou a respeito de seus ensaios: “o estilo é por vezes pesado, obscuro e amaneirado e as 35

contradições e obscuridades formigam” . A opção metodológica de Miranda consiste na pesquisa biográfica, com o fim de traçar o perfil psicológico do autor, e dele derivar categorias para o

31

VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira. op.cit. p.218. Idem, p.219-20. 33 BONFIM, Manoel. Álvares de Azevedo. In: ____. O Brasil nação: realidade da soberania brasileira. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p.303-9. 34 MIRANDA, Veiga. Álvares de Azevedo. São Paulo: s.e., 1931. p.236. 35 ROMERO, Silvio. Terceira fase do romantismo. op.cit. p.962. 32

25 entendimento da obra. Ao buscar uma lógica coerente que paute a produção do autor, essa linha de estudo procura identificar elos de causalidade entre ocorrências atribuídas à sua vida e elementos textuais, reduzindo através dessas conexões a possibilidade de pensar as obras como elaborações imaginárias relativamente independentes das circunstâncias imediatas da vida pessoal do poeta, e sugerindo, por exemplo, que o sujeito lírico de um poema corresponde diretamente a seu autor, como se a obra fosse necessariamente expressão confessional. Um caso expressivo dessa tendência é Álvares de Azevedo desvendado, de Vicente Azevedo, publicado em 1977

36

. Ao longo de sua argumentação, o

crítico procura traçar vínculos entre eventos da vida do poeta e passagens de seus escritos, explorando sistematicamente sua correspondência. O crítico, assim como Veiga Miranda, está ostensivamente preocupado em construir uma imagem tida como digna do autor; o trabalho é fundamentalmente uma homenagem. Na linha biográfica, se destaca o estudo Poesia e vida de Álvares de 37 Azevedo, de R. Magalhães Jr. , de 1962, mais bem-sucedido do que o livro de

Vicente Azevedo. Além de uma contribuição importante para a compreensão dos gêneros considerados menores em Azevedo, em especial de seu teatro, o biógrafo estabelece conexões importantes entre o autor e a vida cultural do século XIX, vinculando, por exemplo, a Noite na taverna à pintura de

36 37

AZEVEDO, Vicente. Álvares de Azevedo desvendado. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1977. MAGALHÃES JR., R. Poesia e vida de Álvares de Azevedo. São Paulo: Ed. das Américas, 1962.

26 Géricault38. Em 1982, Hildon Rocha publica Álvares de Azevedo: anjo e demônio do romantismo, que recupera e organiza informações biográficas disponíveis, e estabelece conexões entre elas e passagens de obras. O livro retoma temas básicos da fortuna crítica - a suposta genialidade do autor, suas influências estrangeiras, o mal do século, o interesse pela morte39. Um estudo fundamental sobre Álvares de Azevedo é o ensaio Amor e medo, de Mário de Andrade, publicado em 1935. O método de leitura é basicamente biográfico; o crítico avalia a “sinceridade” dos poetas românticos, e examina relações entre a formação familiar de Álvares de Azevedo e seu modo de representar afetos. Ele defende que, em sua produção, há uma fobia do amor sexual, vinculada à sua convivência com a mãe e a irmã, que propicia uma relação incomum com a feminilidade40. Além da corrente biográfica, outra linha recorrente de leitura se vincula à literatura comparada: trata-se do levantamento de influências. A obra de Azevedo é tomada então como reelaboração de um modelo estético qualificado do romantismo europeu. Freqüentemente, a reflexão comparatista está associada à biográfica, como nos casos de Magalhães Jr. e Hildon Rocha. A perspectiva comparatista, ocupada em rastrear origens do imaginário

38

Idem, p.125. ROCHA, Hildon. Álvares de Azevedo: anjo e demônio do romantismo. Rio de Janeiro: José Olympio; São Paulo: SEC, 1982. 40 ANDRADE, Mário de. Amor e medo. In: ____. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1974. 39

27 romântico presente na produção, posiciona Azevedo no circuito das relações entre autores de diferentes países e estima seus interesses como leitor 41. Um crítico importante nessa linha é Ronald de Carvalho, que elabora uma caracterização da Lira dos vinte anos pautada em uma série de autores 42 europeus: Byron, Musset, Shelley, Leopardi, Heine . Seu trabalho motivou a

polêmica, estimulando Vera Pacheco Jordão a discutir em que medida, de fato, Álvares de Azevedo é um byroniano, reclamando que esse conceito “popularizou-se tanto que passou a constituir um chavão”43. Fausto Cunha também registrou a presença de Byron e Musset em Azevedo, mas defende que sua relação com o segundo é dúbia: “enquanto poeta, Azevedo é um eco da estética de Musset; enquanto crítico, é um adversário dessa mesma estética”44. Nos anos 50, a fortuna crítica de Álvares de Azevedo se amplia com estudos de Brito Broca, Eugênio Gomes e Antônio Cândido. O interesse de Broca pela vida literária no período romântico o levou a redigir vários artigos sobre o escritor, comentando sua leitura de Byron, suas representações da

41

Em certos casos, essa perspectiva restringe a atenção às especificidades do autor, o que se observa sobretudo em textos panorâmicos. Conforme, por exemplo: CITELLI, Adilson. Romantismo. São Paulo: Ática, 1986. p.58. 42 CARVALHO, Ronald de. Álvares de Azevedo (1831-1852) e a poesia da dúvida. In: ____. Pequena história da literatura brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia., 1955. p.224-5. 43 JORDÃO, Vera P. Maneco, o byroniano. In: ____. Maneco, o byroniano. Rio de Janeiro: MEC, s.d. p.3. Por exemplo, encontramos a expressão “byroniano Álvares de Azevedo” em CASTELLO, José Aderaldo. Apresentação. In: ___, org. Textos que interessam à história do romantismo. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1960. v.1. p.9. 44 CUNHA, Fausto. Álvares de Azevedo ou a contradição criadora. In: ___. O romantismo no Brasil. De Castro Alves a Sousândrade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971. p.115.

28 tristeza, suas fontes e sua recepção45. Neste último, afirma preferir a poesia do 46

escritor à sua prosa , entrando em acordo com Machado de Assis. Tanto Eugênio Gomes como Antonio Candido estão mais preocupados com as características da produção textual de Álvares de Azevedo do que em organizar dados biográficos ou apontar influências estrangeiras. O primeiro publicou um estudo sobre o individualismo romântico, incluído na coleção A literatura no Brasil, de Afrânio Coutinho, e os artigos Álvares de Azevedo, Álvares de Azevedo e o ópio da leitura e Machado de Assis e Álvares de Azevedo. Entre os tópicos que desenvolve em sua compreensão do poeta, estão: a freqüência esporádica de apresentação de marcas da realidade nacional em seus textos; as diferenças entre a produção poética e a ensaística; o recurso da ironia; o comportamento de Azevedo como leitor; analogias entre Macário e Memórias póstumas de Brás Cubas

47

.

Antonio Candido, depois de dedicar a Azevedo um capítulo da Formação da literatura brasileira, foi responsável por outros trabalhos que contribuíram para a valorização do escritor. Interessou-se pelo humorismo, pelas representações da mulher, e particularmente pelo tema do sonho e pelas imagens da noite. Desenvolveu a leitura de Mário de Andrade, discutindo a representação do medo de amar; e retomou a abordagem biográfica, ao eleger

45

BROCA, Brito. Românticos, pré-românticos, ultra-românticos. São Paulo: Polis / INL, 1979. Idem, p.320-1. 47 GOMES, Eugênio. O individualismo romântico. In: COUTINHO, Afrânio, org. A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio; Niterói: UFF, 1986. v.3. ____. Álvares de Azevedo. In: ___. Prata da casa. Rio de Janeiro: A Noite, s.d. ____. Álvares de Azevedo e o ópio da leitura. In: ____. Visões e revisões. Rio de Janeiro: INL, 1958. ____. Machado de Assis e Álvares de Azevedo. In: ____. Machado de Assis. Rio de Janeiro: São José, 1958. 46

29 a adolescência como referência psicológica fundamental para compreender o autor 48. Uma das contribuições importantes do crítico está no emprego da categoria “experiência-limite”, referente a elementos como o “incesto, a necrofilia, o fratricídio, o canibalismo, a traição, o assassínio”, presentes na Noite na taverna. De acordo com Candido, a experiência-limite mostra “os abismos virtuais e as desarmonias da nossa natureza, assim como a fragilidade das convenções”

49

. Com essa argumentação, o crítico supera o preconceito

imposto por Sílvio Romero e José Veríssimo, que compreendiam a imaginação de Azevedo como doentia. Esse juízo supunha um padrão de normalidade de pensamento e ação afastado das imagens criadas pelo escritor. Ao utilizar o pronome “nossa”, Candido aponta para um conceito de condição humana que, envolvendo o leitor e também ele mesmo, inclui entre as possibilidades do comportamento humano as que estão representadas por Azevedo. A reflexão estética sobre Álvares de Azevedo cresceu com os trabalhos de Alfredo Bosi. Em sua História concisa da literatura brasileira, o crítico renova a discussão das influências e caracteriza a produção do autor formal e tematicamente. Além disso, situa Azevedo com relação à política brasileira do século XIX. Em um estudo sobre as imagens do romantismo no Brasil, explica

48

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. op.cit. ____. Apresentação. In: AZEVEDO, Álvares de. Os melhores poemas. São Paulo: Global, 1994. ____. A educação pela noite. In: ____. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987. _____. Cavalgada ambígua. In: ____. Na sala de aula. São Paulo: Ática, 1986. ____ & CASTELLO, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira: das origens ao realismo. São Paulo: DIFEL, 1985. 49 CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. op.cit. p.17.

30 sua produção com categorias filosóficas e examina a originalidade de seu humor50. Em trabalhos recentes de cunho acadêmico, outros críticos têm dado continuidade aos questionamentos anteriormente levantados. Paulo Franchetti, no estudo panorâmico A poesia romântica, discute a imagem de Álvares de Azevedo instituída pela fortuna crítica. Recupera e valoriza José Veríssimo, e opina que o cosmopolitismo do autor, que tanto interessou a leitores como Ronald de Carvalho, é vantajoso por trazer coloquialismo à linguagem poética. Ele acredita, recuperando Machado de Assis, e em sintonia com Bosi, que se deva reconhecer a importância de seu humor, obscurecida por leituras 51

interessadas em outros pontos .

Alcides Villaça, em seu prefácio a uma

edição da Lira dos vinte anos, retoma uma série de pontos discutidos por outros leitores, como a linguagem poética, a ironia, o interesse pela morte e, em acordo com Franchetti, o humor e os elementos cotidianos52. O

escritor

romântico

tem

sido

objeto

de

estudos

pautados

em

fundamentações teóricas muito diversas. O comparatismo foi renovado por Maria Alice de Oliveira Faria, em um livro que levanta semelhanças e 53

diferenças entre Álvares de Azevedo e Musset . O livro de Angélica Soares Ressonâncias veladas da lira propõe Heidegger como fundamento para

50

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. op.cit. _____. Imagens do romantismo no Brasil. In: GUINSBURG, Jacó, org. O romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1978. 51 FRANCHETTI, Paulo. A poesia romântica. In: PIZARRO, Ana, org. América Latina: palavra, literatura e cultura. São Paulo: Memorial; Campinas: Unicamp, 1994. v.2. Em especial p.200-1. 52 VILLAÇA, Alcides. Na intimidade romântica. In: AZEVEDO, Álvares de. Lira dos vinte anos. São Paulo: FTD, 1994. 53 FARIA, Maria Alice. Astarte e a espiral.Um confronto entre Álvares de Azevedo e Musset. São Paulo: CEC, 1970.

31 compreender o intimismo na produção do autor54. Outras abordagens se 55

voltam para o conceito de fantástico , o espaço urbano

56

e a noção de pós-

57

moderno . Trabalhos de pós-graduação dedicados a Álvares de Azevedo nesta década retomam pontos de leitura levantados pela fortuna crítica. Risos entre pares, de Vagner Camilo (1993), centra-se no poema Idéias íntimas, analisa sua composição e examina a “binomia” de Azevedo à luz da teoria da mistura de contrários, de Vitor Hugo. O sistema poético dual de Álvares de Azevedo, de Cilaine Alves Cunha (1994), utiliza idéias de Schiller, entre outros, para examinar também o dualismo, dedicando-se à análise das representações do amor. Macário e Noite na taverna: um estudo de recepção literária, de Teruco Spengler (1996), aponta para ligações entre o autor brasileiro e a literatura alemã. O ponto em comum mais destacado entre os três trabalhos é o fato de que neles encontramos reflexões a respeito do dualismo na produção do escritor 58. O dualismo e a melancolia, caracterizados por Benedito Nunes como 59

traços comuns no romantismo , são aspectos constantemente retomados na

54

SOARES, Angélica. Ressonâncias veladas da lira. Álvares de Azevedo e o poema romântico-intimista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. 55 JEHA, Julius. Claudius Hermann: o fantástico em Álvares de Azevedo. O eixo e a roda. Belo Horizonte: UFMG, jun. 1983. v.1. n.1. 56 CARONE, Modesto. Álvares de Azevedo: um poeta urbano. Remate de males. Campinas: Unicamp, 1987. n.7. 57 MOISÉS, Carlos Felipe. Álvares de Azevedo pós-moderno. Jornal da tarde. 9/12/89. 58 CAMILO, Vagner. Risos entre pares. Poesia e comicidade no romantismo brasileiro. Campinas: Unicamp, 1993. Dissertação de mestrado. CUNHA, Cilaine. O sistema poético dual na obra de Álvares de Azevedo. São Paulo: FFLCH-USP, 1994. Dissertação de mestrado. SPENGLER, Teruco. Macário e Noite na taverna: uma leitura de recepção literária. Santa Maria: UFSM, 1996. Dissertação de mestrado. 59 Conforme NUNES, Benedito. A visão romântica. In: GUINSBURG, Jacó, org. O romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1978. p.52.

32 fortuna crítica. Essa freqüência indica que o modo particular como o poeta os elaborou merece atenção. Embora possam ser observadas variações de abordagem nos trabalhos dos comentadores, por diferenças de método de leitura, a constância é importante, e por isso cabe registrar, a seguir, as menções a esses tópicos. Elas ajudaram a criar uma imagem do poeta como uma figura ambígua e instável, causadora de certa estranheza. Lygia Fagundes Telles redigiu uma crônica discutindo a imagem dúbia de Álvares de Azevedo, entre a boemia e a pureza. Em certo ponto, incerta quanto à precisão dos dados biográficos, lançou um desafio ao saber acumulado sobre o poeta: “(...) nesse ponto, suspendo o juízo: o que a gente sabe sobre o próximo? E sobre um próximo assim distante? A gente sabe tão pouco (...)”. A romancista sugere que a figura de Azevedo seja essencialmente enigmática

60

. A mesma provocação surge, por outro caminho, em uma crônica

de Ana Cristina Cesar a respeito de sinceridade e fingimento. Ela parte de uma idéia de Vicente Azevedo - nas cartas, o escritor é sincero; nos poemas, ele finge. E conclui que o poeta romântico está à espera de quem tome seus textos “como matéria-prima para outros escritos”61.

60

TELLES, Lygia Fagundes. To die, to sleep no more. In: _____. A disciplina do amor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. p.79. 61 CESAR, Ana Cristina. O poeta é um fingidor. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: 30/4/77.

33

1.2. O dualismo

Olhos contra os olhos. Soube-o: os olhos da gente não tem fim. Guimarães Rosa, O espelho

Em alguns dos estudos sobre Álvares de Azevedo, atentos para especificidades de sua produção, na medida em que se impõe a necessidade de uma percepção mais abrangente, e é procurada uma visão de conjunto de seus escritos, recorre-se a expressões como paradoxo, ambigüidade, contradição. Eugênio Gomes vê em Álvares de Azevedo "dois lados antagônicos, o da "saturnal" e o da "candura"

62

. Brito Broca o considera “um exemplo de

63 ambivalência” . É "paradoxo" o termo que Antonio Soares Amora emprega em

sua avaliação da relação entre lubricidade e idealismo na poesia de Azevedo 64

. Sílvio Romero reconhece a presença de um dualismo na lírica de Azevedo,

descrevendo-o nos seguintes comentários. “Às vezes é um lirismo idílico e todo confiante, mas puramente ideal; outras vezes é a amargura de quem não encontrou ainda um coração que o compreendesse, ou a pintura de alguma cena lasciva. Outro dualismo dá-se nas opiniões, crenças e doutrinas do poeta.”65 “(...) dualismo de ideal e ironia, de sinceridade e sarcasmo, de pureza e grosseria que também se depara em seus versos. Esse dualismo de outra espécie era

62

GOMES, Eugênio. Álvares de Azevedo. op.cit. BROCA, Brito. Românticos, pré-românticos, ultra-românticos. op.cit. p.118. 64 AMORA, Antonio Soares. O romantismo. São Paulo: Cultrix, 1993. 65 ROMERO, Sílvio. Terceira fase do romantismo. op.cit. p.951. 63

34 conscientemente praticado, era sistemático e tinha alguma 66 cousa de artificial.”

Antonio Candido, em estudo célebre, Álvares de Azevedo, ou Ariel e Caliban, qualificou a obra de Azevedo como adolescente, por identificar em sua

produção

traços

que

atribui

à

psicologia

adolescente:

divisão,

ambigüidade, reunião de ternura e perversidade, e de idealização e lubricidade. Definiu a personalidade literária de Azevedo como dotada de "natureza contraditória" 67. Joaquim Norberto de Sousa e Silva assim o descreveu: “A dúvida embalava-o entre a crença e a descrença. Duvidava ora do que cria, ora do que descria. Era a luta do corpo e da alma, da vida e da morte, entre o céu e a terra 68 (...)” Esses registros de paradoxo, ambigüidade, contradição, são autorizados pelo próprio Álvares de Azevedo, que em seu prefácio à segunda parte da Lira dos vinte anos, afirma: "a unidade deste livro funda-se numa binomia. Duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha 69 de duas faces" . A passagem encontra ecos em um trecho de Noite na taverna que define a vida em termos paradoxais, como complexo de “crimes e virtudes”70, e no modo de falar do personagem Macário, na peça de teatro do mesmo nome, em que, diante da pergunta “E amaste muito?”, responde: “Sim e não. Sempre e

66

Idem, p.955. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. op.cit. p.178-80. 68 SOUSA E SILVA, Joaquim Norberto de. Notícia sobre o autor e suas obras. op.cit. p.55. 69 AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. v.1. p.127. 67

35 nunca.”71. Álvares de Azevedo, intencionalmente, ao longo de sua produção, exercita a representação de um pensamento dúbio, apontando para a concorrência de interesses, valores e sentimentos opostos. Alcides Villaça, em seu comentário sobre a Lira dos vinte anos, defende a idéia de que o livro se organiza de maneira dúplice, oscilando entre ternura e 72 sarcasmo, entre flores e roupa suja . Veiga Miranda afirma que Álvares de

Azevedo transitava entre o cômico e o patético, sendo formada uma "mistura de tintas". Miranda percebe em Azevedo a presença do "paradoxal"

73

. Hildon

Rocha, por sua vez, declara que o autor “era variável e múltiplo”, “contraditório”74, e "sempre alternava entre as reações e manifestações mais contraditórias e antagônicas, padecendo as tensões de sua própria mobilidade, de sua surpreendente instabilidade"

75

. Para Vera Pacheco Jordão, em 76

Azevedo coexistem “duas personalidades” . Antonio Carlos Secchin entende 77 que a antítese é uma figura fundamental na Noite na taverna . Os estudos

recentes de Vagner Camilo, Cilaine Alves Cunha e Teruco Arimoto Spengler, valorizando a noção de “binomia”, também elaboram reflexões sobre dualismos presentes na produção do autor78.

70

Idem. v.2. p.131. Idem. p.20. 72 VILLAÇA, Alcides. Na intimidade romântica. op.cit. p.14. 73 MIRANDA, Veiga. Álvares de Azevedo. op.cit. p.183. 74 ROCHA, Hildon. Álvares de Azevedo: anjo e demônio do romantismo. op.cit. p.59. 75 Idem. p.82. 76 JORDÃO, Vera Pacheco. Maneco, o byroniano. op.cit. p.3. 77 SECCHIN, Antonio Carlos. Noite na taverna: a transgressão romântica. In: ___. Poesia e desordem: escritos sobre poesia e alguma prosa. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p.178. 78 Conforme CAMILO, Vagner. Risos entre pares. Poesia e comicidade no romantismo brasileiro. op.cit. p.26, 30, 34 e 42. CUNHA, Cilaine Alves. O sistema poético dual na obra de Álvares de Azevedo. op.cit. Em especial, p.89. SPENGLER, Teruco Arimoto. Macário e Noite na taverna: uma leitura de recepção literária. op.cit. Em especial, p.100. 71

36 A noção de dualismo, constantemente apontada em Álvares de Azevedo, era fundamental também em Goethe. Vivem-me duas almas, ah! no seio, Querem trilhar em tudo opostas sendas; Uma se agarra, com sensual enleio E órgãos de ferro, ao mundo e à matéria; A outra, soltando à força o térreo freio, 79 De nobres manes busca a plaga etérea.

A fala de Fausto descreve “duas almas”, uma voltada para o terreno, outra para o etéreo. A divisão interna desnorteia o personagem, que procura uma luz que o conduza. Essa problemática está em aliança com o dilema descrito por Vitor Hugo, a respeito do homem cristão. O escritor francês, em sua reflexão teórica sobre o amadurecimento da humanidade ao longo da história, explica que, quando surge o cristianismo, o homem descobre sua duplicidade essencial: “ele tem duas vidas que deve viver, uma passageira, a outra imortal; uma da terra, a outra do céu (...) ele é duplo como o seu destino, que nele há um animal e uma inteligência, uma alma e um corpo”80. A representação cristã do homem, elaborada pelo poeta francês, corresponde ao dilema do personagem de Goethe. Em outra passagem de Fausto, Mefistófeles enuncia:

81

Traz prazer dor, dor prazer traz.

A associação entre prazer e dor, cara a Wordsworth82 e Keats83, apreciada por Macário84, aparece aqui como formulação demoníaca. Além das

79 80

GOETHE. Fausto. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. p.64. HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. São Paulo: Perspectiva, 1988. p.21.

37 manifestações de seus personagens, também o aforismo serve a Goethe para enunciar a idéia de que “estupidamente contraditório é o ser humano”85. Em Fausto, falar em

“duas almas” diz respeito a uma dificuldade de

estabelecer critérios para decidir como governar a própria vida. No prefácio à segunda parte da Lira, a imagem de “duas almas” expressa uma indeterminação estética, responsável pelos contrastes internos do livro. A oposição goetheana entre apego à matéria e ao etéreo existe em Azevedo. Ela se apresenta como um confronto entre a realidade e o devaneio, a precariedade e os ideais, em “uma oscilação entre ser e não-ser”86. Considerando a Lira dos vinte anos em sua totalidade, a tensão entre representações contrastantes, que motivou os críticos a empregarem terminologias referentes a duplicidades para descrever a obra, é uma das bases de sustentação de seu interesse.

81

GOETHE. Fausto. op.cit. p.136. WORDSWORTH, William. Prefácio às Baladas Líricas. In: LOBO, Luiza, org. Teorias poéticas do romantismo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987. op.cit. p.178. 83 KEATS. Ode à melancolia. In: GUIMARÃES, Fernando, org. Poesia romântica inglesa. Lisboa: Relógio d`água, 1992. p.69-70. 84 O personagem diz, em uma passagem da peça de teatro: “Não é porventura essa comoção íntima de nossa alma com tudo que nos move as fibras mais íntimas, com tudo que é belo e doloroso?...”. AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. v.2. p.62. 85 GOETHE. Máximas e reflexões. Lisboa: Guimarães, 1992. p.47. 86 SCHELLING. A essência da liberdade humana. Petrópolis: Vozes, 1991. p.46. 82

38

1.3. A melancolia sincera

Não, não seja a vida sempre assim Como um luar desesperado A derramar melancolia em mim Poesia em mim Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes, Modinha

A identificação da presença de melancolia na lírica de Álvares de Azevedo é antiga e remonta a Machado de Assis, em seu comentário sobre a Lira dos vinte anos de 1866.

A melancolia de Azevedo era sincera. Se excetuarmos as poesias e os poemas humorísticos, o autor da Lira dos vinte anos raras vezes escreve uma página que não denuncie a inspiração melancólica, uma saudade indefinida, uma vaga aspiração. Os belos versos que deixou impressionam profundamente; “Virgem morta”, “À minha mãe”, “Saudades”, são completas neste gênero. (...) Que poesia e 87 que sentimento nessas melancólicas estrofes!”

O adjetivo “sincera” aponta para uma conexão profunda entre os sujeitos líricos criados pelo poeta e sua própria condição pessoal. A idéia de uma “essência melancólica” do autor foi sugerida por Joaquim Norberto de Sousa e Silva e Brito Broca. Comentando sua formação, Norberto afirma que Azevedo “tornou-se melancólico na mocidade”, atingido pela solidão88. Embora reconheça seus momentos de “expansividade”, Broca afirma que em suas

87 88

ASSIS, Machado de. Álvares de Azevedo: Lira dos vinte anos. op.cit. p.893-4. SOUSA E SILVA, Joaquim Norberto de. Notícia sobre o autor e suas obras. op.cit. p.39.

39 cartas há uma “profunda melancolia”

89

, e comenta, a respeito do modo de

representação do espaço em Macário, que “a melancolia de Álvares de Azevedo, projetando-se na paisagem, tornava tudo cinzento e lúgubre”90. Para Sílvio Romero, em Azevedo havia uma “melancolia inata”91. Em sua História da literatura brasileira, define o poeta como “um melancólico (...) que enfermou o espírito”, e propõe que a origem de sua melancolia não está em “injustiças sofridas” ou “traição de amantes nem de amigos”, mas essencialmente na “vacilação de suas idéias” 92. Romero apresenta algumas citações de um crítico, Edmond Scherer, a respeito da melancolia, com o propósito de definir seu ponto de vista a respeito de Álvares de Azevedo. Para Scherer, a condição melancólica é caracterizada por elementos como desequilíbrio, incompletude, nervosismo, delicadeza e fragilidade. Após as citações, Romero afirma que as idéias de Scherer “aplicam-se perfeitamente ao nosso poeta”93. Ronald de Carvalho vê Azevedo como expressão exemplar do “mal do século”, e assinala a presença da melancolia na Lira dos vinte anos94. Entre os críticos de Azevedo, Antonio Candido se destaca pela constância com que reconheceu a presença da melancolia em sua produção. Ele a aponta

89

BROCA, Brito. Românticos, pré-românticos, ultra-românticos. op.cit. p.118. Idem. p.207. 91 ROMERO, Sílvio. p.950. 92 Idem, p.952. 93 Idem, p.958. 94 CARVALHO, Ronald de. Álvares de Azevedo (1831-1852) e a poesia da dúvida. op.cit. p.224 e 226. 90

40 genericamente95, e destaca o traço em alguns poemas - Idéias íntimas96, 97

Lembrança de morrer

98

- e na Noite na taverna .

Em Retrato do Brasil - ensaio sobre a tristeza brasileira, de Paulo Prado, além de referências à melancolia no romantismo brasileiro, a Álvares de Azevedo e à Noite na taverna, é apresentada a interpretação de que existiria uma homologia entre a poética do período e a situação do país, agredido por uma história de valores degradados - “melancolia do povo, melancolia dos poetas”99. Parte do raciocínio foi reelaborada por Jamil Haddad, que situa Azevedo numa São Paulo melancólica100. Enquanto, por um lado, em Carvalho, a presença da melancolia em Azevedo serve como argumento para integrá-lo aos moldes da literatura européia, por outro, em Prado e Haddad, ela manifesta um mal-estar da sociedade brasileira. A interpretação desse tópico não é o único aspecto em que a crítica se divide com relação à brasilidade de Álvares de Azevedo. Encontramos a compreensão de que “sua poesia não revela nenhuma impregnação afetiva e enfática da realidade nacional ou do momento histórico em que surgiu. Esporádicas ou meramente circunstanciais as manifestações do instinto de nacionalidade que o arrebataram momentaneamente do

95

CANDIDO, Antonio. Cavalgada ambígua. op.cit. p.44. CANDIDO, Antonio. Apresentação. op.cit. p.15. 96 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. op.cit. p.190. 97 CANDIDO, Antonio. Apresentação. op.cit. p.14. 98 CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. op.cit. p.18. 99 PRADO, Paulo. Retrato do Brasil - ensaio sobre a tristeza brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962. Conforme, especialmente, páginas 141-3 e 148-50. 100 HADDAD, Jamil Amansur. Álvares de Azevedo, a maçonaria e a dança. São Paulo: CEC, 1960. p.7980.

41 subjetivismo lírico em que encontrava o clima ideal”101. Manoel Bonfim, por sua vez, observa um vínculo profundo entre a produção de Azevedo e a “alma 102

do Brasil”

. Em uma de suas frases, além de defender o poeta, traça uma

conexão profunda entre ele e o país: “Os próprios exageros e erros de ingenuidade, o Brasil reconhecerá como caracteres seus”103. Em um caminho diferente do trilhado por Paulo Prado, Bonfim também pretende ver em Azevedo marcas essenciais da nação. Alguns estudos comparatistas levam a crer que, embora suscetível a influências, e interessado em modelos europeus, Azevedo não se comportava como reprodutor passivo. Tanto Maria Alice de Oliveira Faria, discutindo as relações do poeta brasileiro com Musset, como Onédia Célia Barboza, avaliando a leitura de Byron feita por Azevedo, apontam para a idéia de que este tinha uma elaboração com características próprias de idéias, temas e imagens extraídos dos autores europeus. No primeiro caso, por exemplo, a autora explica que as representações da sexualidade, em Musset, têm traços realistas, ao passo que em Azevedo têm acento onírico. O estudo de Barboza revela que Azevedo se propôs a traduzir o poema Parisina de Byron e, ao fazêlo, através da seleção lexical e da disposição das imagens, “tornou-o muito mais sombrio” 104.

101

GOMES, Eugênio. O individualismo romântico. op.cit. p.746. Conforme também TORRES, Alexandre Pinheiro. Álvares de Azevedo. In: ____, org. Antologia da poesia brasileira: do Padre Anchieta a João Cabral de Melo Neto. Porto: Chardron, Lello e Irmão, 1984. v.1. p.921-2. 102 BONFIM, Manoel. Álvares de Azevedo. op.cit. p.309. 103 Idem, p.304. A argumentação de Bonfim não desenvolve este ponto específico, de modo que os termos da homologia não ficam conceitualmente determinados. 104 Conforme FARIA, Maria Alice de Oliveira. Astarte e a espiral. op.cit. Em especial, por exemplo, p.150. BARBOZA, Onédia Célia de Carvalho. Byron no Brasil: traduções. São Paulo: Ática, 1974. p.161-3.

42 Álvares de Azevedo, ao assimilar propostas desses autores para o interior da cultura brasileira, reforçou ligações entre as idéias estéticas nacionais e estrangeiras. No entanto, além disso, interferiu na dinâmica interna do sistema de idéias do país. O negativismo de Azevedo destoa, de acordo com Dante Moreira Leite, de uma tendência de representação da “grandeza da natureza tropical” no Brasil, levada à condição de estereótipo105. Em uma passagem de Macário, comentada por Leite106, o personagem principal contesta a representação positiva da natureza brasileira, afirmando que “tudo isto é 107

sublime nos livros, mas é soberanamente desagradável na realidade!”

.

Para aceitar, em termos metodológicos, as idéias de Manoel Bonfim sobre o poeta, seria preciso aceitar a premissa de que exista uma “alma brasileira”, homogênea e bem caracterizada, uma unidade que represente a identidade nacional em sua essência, a realidade em seu conjunto. Essa premissa é inviável, e sua fragilidade fica mais exposta diante da importância assumida na produção do país, em vários autores, de um “conceito agonístico de nação”, que ressalta tensões e impasses, explicado por Alfredo Bosi 108. Dentro dessa linha de raciocínio, para propor uma homologia entre a estética de Azevedo e a realidade brasileira, uma mediação consistente seria um texto de Augusto Meyer, que defende que, no romantismo, “o paradoxo era uma conseqüência inevitável das condições de desterro cultural em que

105

LEITE, Dante Moreira. Romantismo: a independência e a formação de uma imagem positiva do Brasil e dos brasileiros. In: ____. O caráter nacional brasileiro. São Paulo: Pioneira, 1983. p.181. 106 Idem, p.182. 107 AZEVEDO, Álvares de. Obras Completas. op.cit. v.2. p.66. 108 BOSI, Alfredo. O nacional e suas faces. In: V.V.A.A. Eurípedes Simões de Paula: in memoriam. São Paulo: FFLCH-USP, 1983. Em especial, p.41 e 44.

43 vivíamos”. A presença de elementos estrangeiros em nossa literatura foi explicada por ele do seguinte modo. “Tudo isto correspondia ao vazio brasileiro, à tenuidade da nossa consciência nacional, sem lastro de tradições sedimentadas, capaz de alimentar a obra literária prescindindo do arrimo de influências peregrinas [ em uma terra em que ] tudo ainda é conjetural, problemático e 109 conjugado no futuro” .

Os trabalhos de Faria e Barboza, ao apresentarem a relação ambivalente de Azevedo com Musset e Byron, respectivamente, expondo que o poeta brasileiro assimilava elementos mas não os reproduzia passivamente, sugerem que

o

autor,

mesmo

vinculado

aos

modelos

externos,

guardava

especificidades. Essa ambivalência estaria relacionada ao “desterro cultural” de que fala Meyer, resultante de contradições políticas e econômicas da sociedade brasileira oitocentista. Álvares de Azevedo não chegou a formular um conceito bem determinado de nacionalismo, e não pretendeu assumir compromisso nesse sentido. Elaborou uma reflexão, incipiente e metodologicamente imprecisa, a respeito dos critérios de definição de nacionalidade em literatura. Dessa reflexão, cabe resgatar um ponto. Em uma passagem de Hispania, parte de seu estudo Literatura e civilização em Portugal, o poeta escreve que acredita em uma necessária integração entre língua e literatura - “sem língua à parte não há literatura à

109

MEYER, Augusto. Nota preliminar. In: ALENCAR, José de. Obras completas. Rio de Janeiro: Aguilar, 1958. v.2. p.22-4.

44 parte”110. Esse argumento poderia funcionar como premissa da idéia de que as literaturas portuguesa e brasileira constituiriam um único sistema. Não é bem isso o que Azevedo pensa. O curso de seu raciocínio encaminha para dois desdobramentos. O primeiro, polemizar a respeito da “brasilidade” de autores como Santa Rita Durão, Alvarenga, Basílio da Gama e Tomás Antônio Gonzaga. Diz ele: “os heróis do Uraguai e do Caramuru eram portugueses. Não há nada nesses homens que reslumbre brasileirismo”111. O conceito de “brasileirismo”, estritamente, não está definido. Isso permite a Azevedo um segundo desdobramento: a possibilidade de assimilação para nossa literatura de autores portugueses. “(...) por causa de Durão, não podemos chamar Camões nosso; por causa, por causa de quem?... (de Alvarenga?) nos resignarmos a dizer estrangeiro o livro de sonetos de 112 Bocage!” Nas páginas que dedica a Bocage, Azevedo ressalta, como qualidades, os traços melancólicos do autor. Caracteriza-o como “bem infeliz”113, solitário, jogado na ausência de luz, “sofrendo da dor no coração”114, marcado pela saudade115, ébrio, incerto, desesperado116, dotado de “imaginação ardente”117, autor de poesia “tão pura em sua melancolia”118. Ele acredita que em Bocage “traduz-se uma era inteira. É o espelho onde passa com sua flutuação de luz e sombra no roxo crepuscular de uma nação a hora turva em que tudo se agita

110

AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. V.2. p. 339. Idem, p.341. 112 Idem, p.340. 113 Idem, p.385. 114 Idem, p.377. 115 Idem, p.383. 116 Idem, p.379. 117 Idem, p.381. 111

45 lugubremente, como por um enterro ou um nascer doloroso (...) Portugal se mergulhara no crepúsculo”119. A premissa da argumentação de Azevedo consiste em que traços essenciais de um país podem ser encontrados em sua literatura. O mal-estar da civilização portuguesa, suas frustrações, seu “crepúsculo”, estariam traduzidos na melancolia de Bocage. As idéias de Azevedo sugerem que Camões e Bocage mereçam ser reconhecidos como “nossos”, isto é, como brasileiros, mais do que Alvarenga ou Durão, e não como “estrangeiros”. Seus comentários sobre Camões são mais curtos, e não autorizam especulações tanto quanto as idéias sobre Bocage. Na medida em que a melancolia deste, acentuada insistentemente por Azevedo, traduz o “crepúsculo” português, e se Bocage não merece ser tratado como “estrangeiro”, temos um caminho aberto para a analogia. Uma das razões de Álvares de Azevedo valorizar tanto esse poeta português está em que nele encontra elementos de seus próprios interesses estéticos, e de sua melancolia. Um desdobramento natural dessas afinidades eletivas estaria em uma expectativa teórica, por parte de Azevedo, de que sua produção traduzisse, de algum modo, a situação brasileira. Não há dados textuais suficientes para afirmar, com segurança, que Azevedo aplicaria esses pressupostos a si próprio, com uma consciência minuciosa a respeito das implicações estético-políticas de sua produção. Podemos apenas supor, a partir dos comentários sobre literatura portuguesa, que, mesmo não discutindo diretamente, na maioria de seus textos, temas

118 119

Idem, p.382. Idem, p.387.

46 cruciais da época, mesmo passando ao largo de questões como o escravismo e a desigualdade social, acreditava que a melancolia de sua produção, tal como a de Bocage, traduzisse, de algum modo, o mal-estar de sua sociedade. Seus dualismos estariam, nesse sentido, ligados ao “paradoxo” descrito por Augusto Meyer. Se aceitas essas premissas, a leitura que Azevedo sugeriria de sua própria produção, através de sua compreensão do poeta português, estaria associada a uma idéia cara ao romantismo alemão: o olhar mimetiza o objeto; para apreender uma realidade contraditória, é necessário ter uma atitude de percepção ambivalente

120

. O dualismo e a melancolia de Azevedo

seriam, para essa perspectiva de leitura, historicamente motivados.

120

Conforme a teoria da ironia exposta em WELLEK, René. História da crítica moderna. São Paulo: EDUSP/Herder, 1967. v.2. p.13.

47

2. A melancolia And I miss you like the deserts miss the rain Tracey Thorn, Missing

2.1. Conceito de melancolia

A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Guimarães Rosa, A terceira margem do rio

2.1.1. Origens

A criação do conceito de melancolia é atribuída a Hipócrates, que a define, em um aforismo, como um estado de tristeza e medo de longa duração121. Ele se refere aos melancólicos afirmando que “seu estado mental é perturbado”122. Essas formulações tiveram um desdobramento importante na obra de Constantinus Africanus, autor árabe medieval estudado por Klibansky, Panofsky e Saxl123 e Walter Benjamin124. No início de seu livro De melancholia, lê-se: “Os acidentes que a partir dela [da melancolia] sucedem na alma parecem ser o medo e a tristeza. Ambos são péssimos porque confundem a alma. Com efeito, a definição de tristeza é a perda do muito intensamente amado.

121

Trata-se do Aforismo 23 do livro VI de seus Aforismos. “Se o medo e a tristeza duram muito tempo, tal estado é próprio da melancolia”. Conforme PIGEAUD, Jackie. Présentation. op.cit. p.58. e CORDÁS, Táki Athanássios. Do mal-humorado ao mau humor. In: ____ et alii. Distimia. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. p.15. 122 HIPÓCRATES, apud TELLENBACH, Hubertus. La mélancolie. Paris: PUF, 1979. p.24. 123 KLIBANSKY, PANOFSKY & SAXL. Saturne et la mélancolie. op.cit. p.143-9. 124 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. op.cit. p.168-9.

48 O medo é a suspeita de que algo ocasionará dano.”125

A noção de tristeza em Constantinus é desenvolvida como uma teoria da perda. Melancólicos são, entre outros, os “que perderam seus filhos e amigos 126

mais queridos, ou algo precioso que não puderam restaurar”

. Como se

observa, o melancólico estaria numa espécie de ponto-chave tenso, a partir do qual vê com sofrimento o passado, em razão das perdas, e se perturba com o futuro, pelo medo de um possível dano. A partir dessa base, Constantinus elabora uma série de reflexões de cunho médico, para estabelecer relações de causa e efeito entre problemas físicos e emocionais. O livro tem como propósito identificar as características essenciais do

comportamento

melancólico,

mas

o

autor

relativiza

sua

própria

argumentação afirmando que qualquer melancolia é difícil de curar, e que nada é pior do que uma mente perturbada127. De acordo com Constantinus, apoiado em Rufus de Éfeso, “os acidentes melancólicos são incompreensíveis”128. Tanto em Hipócrates como em Constantinus, a melancolia é apresentada como uma doença129. Para o primeiro, a formação da melancolia, com a bile negra, decorre de uma degradação do sangue130, de uma putrefação, que desordena o funcionamento do corpo

125

131

. Em sua segunda parte, o livro De

CONSTANTINO EL AFRICANO. De melancholia. Buenos Aires: Fundación Acta, 1992. p.15. Idem, p.21. 127 Idem, p.45. 128 Idem, p.25. A idéia de que o homem melancólico é inacessível e fechado em si mesmo é desenvolvida em SCHALLER, Jean-Pierre. La mélancolie. Du bon usage et du mauvais usage de la dépression dans la vie spirituelle. Paris: Beuchesne, 1988. p.32. 129 Conforme KLIBANSKY, PANOFSKY & SAXL. Saturne et la mélancolie. op.cit. p 123. 130 TELLENBACH, Hubertus. La mélancolie. op.cit. p.24. 131 AZOUVI, François. A peste, a melancolia e o diabo, ou o imaginário definido. Diógenes. Brasília: Ed. UNB, 1985. n.8. p.105. 126

49 melancholia,

de

Constantinus,

apresenta

estratégias

para

sua

cura,

fundamentadas na alimentação, na bebida e na música. Para deter as causas, entretanto, é preciso mais do que tudo um senso de medida. A bile negra, substância considerada responsável pela formação da melancolia132, emite vapores que causam delírios

133

. Ela seria resultado de excessos ou faltas.

Existe um modelo de equilíbrio humano, que supõe a capacidade de dosar, na vida, o movimento e a quietude, o sono e a vigília, a comida e a bebida, as paixões da alma. O excesso de algum desses elementos pode gerar no corpo um efeito nocivo134. Chama a atenção, na argumentação de Constantinus, a idéia de que o excesso de meditação e a tentativa de investigar o “incompreensível” provocam melancolia

135

.

Além da determinação de que a melancolia seja uma doença, na Grécia também se elaborou a idéia de que ela seja um “estado de exceção”, responsável por capacidades distintivas; essa proposição é atribuída a Aristóteles

136

. Ela levou à compreensão de que existiria uma ligação entre a

postura melancólica e o pensamento contemplativo, necessário para a filosofia137.

132

Conforme BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. op.cit, p.169. AZOUVI, François. A peste, a melancolia e o diabo, ou o imaginário definido.op.cit. p.104. 134 CONSTANTINO EL AFRICANO. De melancholia. op. cit. p.17, com desenvolvimento na p. 39. 135 Idem, p.21. 136 ARISTOTE. L`homme de génie et la melancolie. Problème XXX, 1. op.cit. p.83 e 97. 137 Conforme KLIBANSKY, PANOFSKY & SAXL. Saturne et la mélancolie. op.cit. p 87. Na condição melancólica, dentro dessa avaliação, haveria um vínculo entre capacidade intelectual e loucura. Conforme BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. op.cit. p.170. A meditação melancólica não corresponde a um raciocínio lógico, ordenado e estritamente racional. A partir da associação entre melancolia, contemplação e capacidade reflexiva, com base no livro de Klibansky, Panofsky e Saxl, Ítalo Calvino propõe, de maneira difusa, uma teoria de que a literatura resulte, em sua produção e de maneira geral, de uma condição melancólica. CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. Em especial às ps. 32 e 64-5. 133

50 Na argumentação de Aristóteles, um dos pontos principais consiste na defesa de que a bile negra tem por propriedade a inconstância. O filósofo explica que ela pode se comportar de maneira variável, tornando-se muito quente ou muito fria, podendo causar efeitos diversos

138

. A multiplicidade de

marcas de comportamento da bile negra faria do melancólico um ser “polimorfo”, apto a agir e sentir de maneiras diversas e contraditórias oscilando entre a atimia, o desapego à vida, e as manifestações eufóricas

139

,

140

.O

“polimorfismo” da melancolia seria uma das razões de não haver uma definição rigorosa para ela141. Na parte 955a de sua obra, Aristóteles afirma: “(...) para resumir, pela razão de que a eficácia da bile negra 142 é inconstante, inconstantes são os melancólicos.”

Klibansky, Panofsky e Saxl situam a bile negra entre quatro “humores”, líquidos presentes no corpo humano. Os outros três são a fleuma, a bile amarela e o sangue. A teoria da melancolia surge em meio a uma lógica de pensamento que vincula diretamente o microcosmo e o macrocosmo, integrando em um campo de correspondências as estações do ano, as etapas da vida, os planetas conhecidos e os elementos básicos da natureza.

138

ARISTOTE. L`homme de génie et la melancolie. op.cit. p 95. Conforme PIGEAUD, Jackie. Présentation. op.cit. p.15. 140 ARISTOTE. L`homme de génie et la melancolie. op.cit. p.99. 141 Conforme Jacques Primerose, apud AZOUVI, François. A peste, a melancolia e o diabo, ou o imaginário definido. op.cit. p.106. Azouvi explica que o polimorfismo da bile negra foi associado, na Renascença, às propriedades plásticas de mutação do diabo. 142 ARISTOTE. L`homme de génie et la melancolie. op.cit. p.107. 139

51 Considerava-se que a “justa medida” entre as substâncias corporais corresponderia à expectativa de vigor humano 143. Para esse modo de pensar, existiria uma associação entre o planeta Saturno, o deus Cronos e a condição melancólica. O conhecimento mitológico e astrofísico da época foi empregado para formular a noção de uma “psicologia saturnal”144. Para os gregos, Cronos é marcado por uma dualidade. Por um lado, ele é o deus benéfico da agricultura, que realiza festas das colheitas; por outro, é um deus sombrio, solitário, vivendo “na extremidade mais recolhida da terra”, deus da morte e dos mortos. Pai dos deuses e dos homens, ele é capaz de devorar seus próprios filhos 145. O planeta Saturno, considerado entre os antigos o mais elevado no firmamento, e por isso superior, extremo, foi associado à bile negra, tomada por capaz de desenvolver capacidades incomuns, e à figura poderosa de

143

Podendo ser encontradas variações de simbologia (como está explicado em POT, Olivier. Le milieu de la vie ou la mélancolie du passage. Versants. Boudry: Baconnière, 1994. n.26. 1994. p.122-9), de modo geral, as associações cósmicas seriam delimitadas do seguinte modo: Substância sangue bile amarela bile negra fleuma

Elemento ar fogo terra água

Estação do ano primavera verão outono inverno

Período da vida infância adolescência maturidade velhice

Planetas Júpiter Marte Saturno Lua

Conforme KLIBANSKY, PANOFSKY & SAXL. Saturne et la mélancolie. op.cit. p.31-2 e 201. Esse modo de pensamento teve seu cume na elaboração da doutrina dos quatro temperamentos, atribuída a Galien (Idem, p.123). Esse assunto é explicado também em TELLENBACH, Hubertus. La mélancolie. op.cit. p. 27-9. 144 Conforme KLIBANSKY, PANOFSKY & SAXL. Saturne et la mélancolie. op.cit. p.206-9 e 219. 145 Idem. p.210-1.Conforme também, a respeito dessa dualidade, BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. op.cit. p.172-3.

52 Cronos, responsável pela construção e destruição, pelo nascimento e pela morte146. Para o pensamento clássico antigo, a condição melancólica se caracterizaria por uma alteração comportamental, marcada pelo medo, pela misantropia e pelo abatimento profundo. Entre suas repercussões, estaria uma desordem da inteligência147. O desenvolvimento de idéias de linhagem hipocrática, que tomam a melancolia como doença, levou em conta a idéia de desequilíbrio “humoral”; fisiológica

os

problemas

estariam

ligados

a

desmedidas

de

ordem

148

. A bile negra, associada à melancolia, quando encontrada em

excesso, poderia provocar reações mentais muito variadas, desde a indolência e a apatia, quando mais fria, até estados agitados e eróticos, quando mais quente. Sua ação está ligada a um desvio da norma regular, rumo a extremos 149

. Nesse sentido, a posição do planeta Saturno, as atitudes de Cronos - criar

e matar, propiciar a colheita e a morte - e as suscetibilidades da bile negra oscilando entre graus intensos de calor e frio - fazem parte, por se caracterizarem como extremos, de uma articulação que resulta em uma espécie de vocação do melancólico para sentimentos extremos. Os desequilíbrios de humores levam-no a afastar-se da “média” equilibrada.

146

KLIBANSKY, PANOFSKY & SAXL. Saturne et la mélancolie. op.cit. p.227 e 234. Conforme também GUIMARÃES, Ruth. Dicionário da mitologia grega. São Paulo: Cultrix, s.d.p.116. 147 Idem, p.44. 148 Idem, p.36-7. 149 Idem, p.77-80. Conforme também TELLENBACH. La mélancolie. op.cit. p.30-8.

53 Oscilando entre a ansiedade e o abatimento150, o melancólico tende constantemente para o excesso

151

.

O pensamento de Aristóteles levou a condição melancólica a uma certa consagração, pois a melancolia passou a ser considerada um “instrumento de precisão extrema da sensibilidade”152, como se, apesar dos elementos perturbadores, ela consistisse em um reforço de percepção. Paradoxalmente, embora ela provoque desordem no pensamento, ela permite sentir, pensar e contemplar de modos que, em condições equilibradas, não seriam possíveis. Hubertus Tellenbach explica que, de acordo com o pensamento grego, a atitude melancólica está associada à ametria, isto é, a uma desproporção das medidas humanas, uma defasagem

153

. Sem conseguir a simetria (suficiência),

o melancólico é jogado na ametria (insuficiência). A ação da bile negra acentua a fragilidade do sujeito melancólico, mas, por outro lado, constitui capacidades perceptivas incomuns. Estas estimulam o sujeito a transcender às limitações da normalidade. Dotado de dons que o levariam a se elevar, o sujeito é impedido por suas limitações,motivando-o à resignação e à impotência. Essa frustração é agravada pelo fato de o melancólico acreditar que “o pensamento ordenado (...) não o permite avançar até o absoluto”. Num mundo em que a matemática é um saber importante, essa posição é paralisante154. O melancólico vê o conhecimento inteiramente ordenado como ineficiente para seus propósitos.

150

Idem, p.45. PIGEAUD, Jackie. Présentation. op.cit. p.20. 152 KLIBANSKY, PANOFSKY & SAXL. Saturne et la mélancolie. op.cit. p.92. 153 Conforme TELLENBACH, Hubertus. La mélancolie.op.cit. p.28/9. 151

54 2.1.2. Caminhos Uma tarde tão triste; um céu de tanta bruma; nem um adeus de sol pela planura rasa; nem um rumor de canto, a alegria de uma asa; tudo se esbate em sombra e em tristeza se esfuma. E essa ausente não vem (...) Alceu Wamosy, Melancolia

A reflexão moderna sobre a melancolia está profundamente ligada às suas bases antigas. A conexão entre a experiência da perda e a condição melancólica, explicada em Constantinus, é fundamental na abordagem do tema desenvolvida pela psicanálise. A idéia de que o estado melancólico está ligado à vivência de uma perda é apresentada na correspondência entre Freud e Wilhelm Fliess. Em um texto chamado `Rascunho G’, vinculado a essa documentação, Freud defende que a melancolia corresponde, afetivamente, ao “anseio por alguma coisa perdida”

155

. O desenvolvimento da reflexão de Freud

sobre o assunto se encontra em seu estudo Luto e melancolia156. Nesse artigo, Freud faz uma distinção entre duas atitudes possíveis diante da experiência da perda. A primeira consistiria no sentimento de luto. Este supõe a aceitação de que a perda é irreversível; o sofrimento vivido pelo sujeito duraria algum tempo, e após esse período ele procuraria o reequilíbrio afetivo, substituindo o objeto perdido por outro157. Contrariamente, no caso da atitude melancólica, o sujeito não aceita a sua perda. Passa a viver com desânimo, perde o interesse pelo mundo externo, inibe suas atividades e

154

Idem. p.36. Conforme PERES, Urania Tourinho. Dúvida melancólica, dívida melancólica, vida melancólica. In: VÁRIOS. Melancolia. São Paulo: Escuta, 1996. p.33. 156 FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Novos estudos Cebrap. n.32. São Paulo, mar.1992. Foi consultada também a tradução das Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. V.14. 157 “(...) a prova de realidade mostrou que o objeto amado já não existe mais e agora exige que toda a libido seja retirada de suas ligações com este objeto.”(p.132). 155

55 diminui os sentimentos de auto-estima158. O melancólico agride o próprio ego, e encontra satisfação em expor sua própria precariedade

159

. A mesma linha de

reflexão é apresentada por Julia Kristeva, segundo a qual, para o melancólico, 160

a perda do objeto é intolerável, e leva a um “estado-limite”

.

Na filosofia, encontramos também reflexões sobre o tema que apontam para uma associação direta entre a experiência da perda e a condição melancólica. O trabalho de Jean-Pierre Schaller tem como ponto de partida a consideração de que o desejo de recuperar um passado perdido seja a motivação básica para essa condição161. O estudo de Sarah Kofman desenvolve argumento similar162. Uma contribuição importante à teoria da melancolia foi desenvolvida por Walter Benjamin, em seu estudo sobre o drama barroco alemão. O filósofo fundamenta sua exposição em elementos referentes a compreensões antigas e medievais da melancolia, citando Aristóteles e Constantinus Africanus, e discutindo tópicos como o deus Cronos, o planeta Saturno e a bile negra. Entre os pontos que interessam a Benjamin, está a disposição do melancólico para a contemplação. Ele encontra em um pensador do século XV, Marsilius Ficinus, a idéia de que a bile negra motiva o espírito para a contemplação; encontra na gravura Melancolia, de Dürer (em anexo, à p. 295), um “símbolo do homem contemplativo”; e conduz o raciocínio à generalização,

158

Conforme p.131. Conforme p.133. 160 KRISTEVA, Julia. Sol negro. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. p.14-7. 161 SCHALLER, Jean-Pierre. La mélancolie. op.cit. p.18. 162 KOFMAN, Sarah. Mélancolie de l`art. Paris: Galilée, 1985. Conforme p.20-1. 159

56 indicando

que

a

atitude

contemplativa

é

fundamental

na

condição

melancólica163. A leitura dessa gravura proposta por Benjamin, apoiada nos estudos de Panofsky e Saxl, a eleva a imagem exemplar do melancólico

164

. A obra de

Dürer apresenta uma representação desse estado, em que se fundem duas maneiras de pensar e sentir: o saber técnico e racional, vinculado à geometria e aos instrumentos de trabalho, é colocado no mundo “do luto e do fracasso humanos”165. Dentro desse plano, ele se torna inútil, alvo de indiferença. Entre a teoria de Freud e essa reflexão estética, há um ponto comum, a idéia de perda de interesse pela realidade externa, por parte do melancólico. Chama a atenção ainda, no estudo de Benjamin, a citação de longos trechos de Panofsky e Saxl citados a respeito de Cronos. O filósofo alemão se interessa pelo fato de esse deus ser considerado um “demônio das antíteses”, um “deus dos extremos”. As citações explicam as ambigüidades fundamentais do deus, e levam à idéia de que seu caráter é “em última análise determinado por um dualismo intenso e fundamental”166. Tomada como figura matriz do conceito de melancolia, a divindade, dominando o nascimento e a morte, sendo frágil e poderosa, representa uma espécie de síntese da condição saturnina.

163

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. op.cit. p.176-8. A esse respeito, cabe registrar a admiração que Dürer despertou entre os românticos europeus, comentada por André Lagarde e Laurent Michard. Vitor Hugo redigiu um poema em sua homenagem, com o título A Albert Dürer, em que se refere ao pintor como “mon maître”. Conforme LAGARDE, André & MICHARD, Laurent. XIXe. siècle. Paris: Bordas, 1963. p. 161. 165 KLIBANSKY, PANOFSKY & SAXL. Saturne et la mélancolie. op.cit. p.494. 166 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. op.cit. p. 172-3. 164

57 A idéia de que existe um vínculo direto entre melancolia e dualismo167 foi elaborada por Romano Guardini, Jean-Pierre Schaller e Olivier Pot. O primeiro caracteriza o comportamento melancólico do seguinte modo.

“Pour le mélancolique, le monde intérieur et le moyens d`expression n`ont pas de commune mesure: l`esprit et le corps, l`intention et l`action, la disposition d`esprit et les résultats, le commencement d`une evolution et son accomplissement... d`une façon générale ce qui est noble ou bas, essentiel ou acessoire, capital ou contigent - ce sont là des dualités entre lesquelles le mélancolique voit se dresser 168 un mur.”

O comportamento dual do melancólico se deve, para Guardini, à coexistência paradoxal de dois instintos do sujeito - a afirmação de si, em busca de uma ascensão, e a renúncia à existência

169

. Sua argumentação

lembra muito o problema da ametria, explicado por Tellenbach: o melancólico, por viver em uma desmedida, procura transcender seus próprios limites, mas se frustra, pois é impedido por sua precariedade170. Guardini vai mais longe, no entanto, na reflexão sobre o grau de frustração, investindo na idéia de que haja um aspecto auto-destrutivo na melancolia. Como o melancólico se vê jogado em um campo de dualismos, ele relativiza seus valores, de tal modo que suas referências ficam duvidosas e

167

A compreensão da melancolia como algo dual remonta a autores como Marsilius Ficinus e Richard Burton, que descreveram a condição melancólica ponderando que, mesmo marcado pela fragilidade física que o expõe a doenças, o homem melancólico é dotado de capacidades como sensibilidade poética e inclinação filosófica. Conforme CORDÁS, Táki Athanássios. Do mal-humorado ao mau humor. op.cit. p.16. 168 GUARDINI, Romano. De la mélancolie. Paris: Seuil, 1953. p.48. 169 Idem, p.37. 170 Conforme TELLENBACH, Hubertus. La mélancolie. op.cit. p.28/9.

58 incertas171. Para Guardini, isso se reverte contra ele mesmo, pois “un tel être 172

n`a aucune confiance en lui-même.”

. Sem valores seguros em que possa

confiar, o sujeito se vê desorientado consigo mesmo, perde seus referenciais, e prefere a solidão e o silêncio ao cotidiano

173

, “comme si le monde était

mort”174. Jean-Pierre Schaller vincula melancolia e dualismo propondo que, entre as expectativas do melancólico e sua realidade frágil, existe uma oposição que o frustra - “il fait l`expérience de ses multiples limites; d`autre part, il se sens ilimité dans ses désirs et appelé à une vie supérieure.”175. O melancólico se inquieta com a finitude176; sua consciência aspira ao Absoluto, mas se decepciona com a inevitabilidade dos limites177. Com relação a esse aspecto, entende-se, de acordo com W. Szilasi, que o melancólico teria como meta enfrentar sua própria ignorância e inércia, e cada etapa desse percurso o conduz à consciência do que ele não pôde alcançar. Esse propósito é, por natureza, impossível, não tendo fim. A busca de consciência, ao avançar, se constitui como reconhecimento dos próprios limites178. O estudo de Olivier Pot caracteriza a melancolia como um estado “de passagem”. Para o autor, é como se não fosse possível definir de maneira unívoca e bem contornada uma condição melancólica. Ela se constituiria em 171

GUARDINI, Romano. De la mélancolie. op.cit. p.40. Idem p. 36. 173 Idem, p.43-4. 174 KIERKEGAARD, apud GUARDINI, Romano. De la mélancolie. op.cit. p.45. 175 SCHALLER, Jean-Pierre. La mélancolie. op.cit. p.44. 176 Conforme também STEIN, Ernildo. Melancolia. Porto Alegre, Movimento, 1976. p.13-4. 177 GUARDINI, Romano. De la mélancolie. op.cit. p.34. 172

59 uma “passagem” de um estado a outro. Analogamente ao que os antigos atribuíam a Cronos e à bile negra, Pot atribui à condição melancólica a instabilidade e flexibilidade de uma transição. O reconhecimento por parte da consciência, por exemplo, do mover-se de uma faixa etária à outra, da maturidade à velhice, é melancólico. Nesse sentido, a melancolia é dual por se manifestar em um processo de passagem entre dois estados

179

. A teoria de

Pot se sustenta na idéia, trabalhada por Freud e Schaller, de que a irrecuperabilidade do passado consiste em motivação para constituição da melancolia. Há em comum entre as idéias de Guardini, Schaller e Pot a idéia de que o dualismo do melancólico se deve à impossibilidade de uma experiência do Absoluto. Pela relativização dos valores, pela frustração de expectativas de superação de limites, pelo reconhecimento da transitoriedade e da finitude, o sujeito se entrega à melancolia. Como foi exposto anteriormente, na fortuna crítica de Álvares de Azevedo, foram feitas diversas referências ao dualismo na produção do autor, várias delas motivadas pelo prefácio da segunda parte da Lira, e também comentários a respeito de sua melancolia. As linhas de conceituação de Guardini, Schaller e Pot permitem estabelecer uma conexão entre esses aspectos. A presença da melancolia na Lira dos vinte anos teria uma de suas manifestações mais importantes na idéia de que o livro é governado por “duas almas”.

178 179

SZILASI, W. apud TELLENBACH, Hubertus. La mélancolie. op.cit. p.33. POT, Olivier. Le milieu de la vie ou la mélancolie du passage. op.cit. p.123.

60 Considerando os três teóricos, podemos pensar, respectivamente, na oscilação entre o desejo de admirar o mundo e o interesse pela morte, no contraste entre as expectativas e a realidade, e na experiência da passagem. Esses elementos são observáveis na Lira. O primeiro

se verifica se

contrastarmos, por exemplo, Panteísmo, poema centrado na contemplação do mundo como Criação de Deus, e Lembrança de morrer, que representa a morte como alívio do sofrimento. O segundo se encontra em Idéias íntimas, em que a fantasia amorosa é diferente da situação real do sujeito lírico em seu quarto. E o terceiro em Lágrimas de sangue, em que as construções humanas são consideradas vãs, por estarem condenadas à finitude. O momento presente é representado como sendo apenas uma condição transitória rumo à morte; a vida é representada como determinada pelo seu oposto. Esses poemas serão comentados mais adiante. Cabe ressaltar que as reflexões de Guardini, Schaller e Pot, ao associarem, de diferentes modos, melancolia e dualismo, permitem observar uma coerência estética em Álvares de Azevedo. As proposições argumentativas dos filósofos estão de acordo com caracterizações do escritor propostas na fortuna crítica.

2.1.3. No romantismo

O que eu sou hoje é terem vendido a casa, É terem morrido todos, É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio... Fernando Pessoa, Aniversário

61 A presença da melancolia na poesia romântica é constante180. Erich Auerbach, numa definição exemplar, afirmou que “o poeta romântico é um estranho entre os homens; é melancólico, extremamente sensível, ama a 181

solidão e as efusões do sentimento”

.

A disseminação da melancolia no romantismo europeu pode ser verificada através das reflexões de Mário Praz, que explica que o próprio termo “romântico” designa, a partir do século XVIII, o “amor pelos aspectos selvagens e melancólicos da natureza”182. Ao caracterizar a produção romântica, Praz aponta constantemente a presença da melancolia em autores, como Keats, Chateubriand e Byron183 , citando passagens exemplares de suas obras. O fragmento seguinte de Leopardi expressa bem a importância que a melancolia assumiu no período.

“A melancolia é, de qualquer maneira, o mais sublime dos sentimentos humanos. (...) Considerar a imensidão incomensurável do espaço, o número e a grandeza maravilhosa dos mundos, e perceber que tudo isso é pequeno, até minúsculo em comparação com a capacidade de nossa alma; imaginar o número infinito de mundos e o universo sem fim e sentir que nosso espírito e nosso desejo é ainda mais vasto que o universo; proclamar sem cessar a insuficiência e o nada de todas as coisas, sofrer privações e desejos, e em conseqüência a melancolia, isso é o que me parece ser a marca mais evidente da grandeza e da nobreza 184 da natureza humana.”

180

NUNES, Benedito. A visão romântica. op.cit. p.65. AUERBACH, Erich. Introdução aos estudos literários. São Paulo: Cultrix, s.d. p.228. 182 PRAZ, Mário. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. Campinas: Unicamp, 1996. p.33. 183 Idem, p.48 e 84-5. 184 LEOPARDI, apud BIEDERMANN, Alfred, org. Le romantisme européen. op.cit. v.1. p.118-20. 181

62 O emprego de “sublime” por Leopardi pode ser compreendido à luz do texto Acerca do sublime, de Schiller. Em sua reflexão, o escritor alemão define o sublime como “um sentimento misto. Compõe-se do estar-dorido, que, no seu máximo grau, se exterioriza como um estremecimento, e do estar-alegre, que pode elevar-se até o encanto”. O autor entende que, para que possamos vivenciar simultaneamente o estar-dorido e o estar-alegre, temos de ter em nós mesmos um dualismo: “devem existir duas naturezas opostas unidas em nós, as quais, quando da representação do objeto, nele estão interessadas de maneiras diametralmente antagônicas” 185. Para Schiller, a relação do ser humano com o universo envolve uma problemática, referente aos limites humanos, pois, “apesar de toda a sua ilimitação, a natureza não consegue chegar ao grandioso absoluto em nós mesmos”186. A imensidão do universo contrasta com a finitude do ser humano. Disso resulta que nossa sensibilidade estaria atenta à grandiosidade, por sua demanda de superar suas limitações inevitáveis. “A visão de distâncias ilimitadas e de alturas intermináveis, o extenso oceano a seus pés e o maior oceano acima dele, arrancam o seu espírito à estreita esfera da realidade e ao opressivo cativeiro da vida física”. A contemplação do grandioso corresponde a uma recusa da impotente condição em que vive187.

185

SCHILLER, Friedrich. Acerca do sublime. In: ____. Teoria da tragédia. São Paulo: EPU, 1991. op.cit. p.54-5. 186 Idem, p.55. 187 Idem, p.61. Para Schiller, a realidade à nossa volta é essencialmente caótica, e os homens tentam, através do entendimento, dar conta dela, mas o “turbilhão de fenômenos” que nos cerca carece de “nexo útil”. Por essa razão, ele acredita que não devamos optar por uma ordenação da realidade que nos traga bem-estar, mas por uma liberdade dentro do caos (p.63-4). Só essa postura, sem amarras, faz o homem superar sua precariedade habitual e ter acesso ao sublime. Tal postura, para Schiller, corresponde ao “demônio puro” que reside no homem (p.68).

63 No texto de Leopardi, encontramos marcas do “estar-dorido”, pela manifestação de sofrimento, e também um contentamento com relação à natureza humana. Observamos uma “visão de distâncias ilimitadas e de alturas intermináveis”, que é apresentada não com um fim em si mesma, mas com o propósito de expor as infinitas possibilidades humanas - “nosso espírito e nosso desejo é ainda mais vasto que o universo”. Por fim, reconhecemos um caminho para arrancar o espírito da “estreita” realidade, através da “grandeza” da natureza humana. Em sua ambigüidade essencial - negativa, envolvendo sofrimento, e positiva, envolvendo enfrentamento de limites - a melancolia tem no romantismo uma dimensão sublime, responsável por sua difusão. Em Keats, é feita uma afirmação positiva da melancolia. Considere-se o seguinte trecho da Ode à melancolia:

1. 2. 3. 4. 5. 6. 7.

“Mas se, inesperado, o acesso da melancolia descer do céu, como se fosse as lágrimas duma nuvem que reanima as flores, (...) Com ela vive a beleza - a beleza que deve morrer, e a alegria cuja mão se leva aos lábios para dizer adeus; e, próximo, fica o doloroso prazer que se transforma em veneno quando as abelhas dos lábios o aspiram. 8. Sim, no interior do próprio templo da alegria 9. está o altar soberano da melancolia, coberta de véus, 10. apenas visível para aquele que consegue provar 11. as uvas da alegria, com um impetuoso e puro desejo; 12. mas o seu espírito depois há-de sentir amargamente 13. o poder que ela tem ao ficar entre os seus troféus nebulosos...” 188

188

KEATS. Ode à melancolia. op.cit. p.69-70.

64 As expressões de Keats retomam elementos da tradição: o dualismo, em “doloroso prazer” (v.6); o reconhecimento da finitude, em “a beleza que deve morrer” (v.4); a idéia de intoxicação, ligada ao efeito da bile negra, indicada pelo “veneno” no verso 7; a imagem de uma percepção que não vê a realidade de maneira normal, sugerida por “coberta de véus” (v.9) e “nebulosos” (v.13); a presença das uvas (v.11), que remontam ao vinho, cuja ação fisiológica é associada à melancolia por Aristóteles e Constantinus189. No entanto, em Keats, esses elementos não estão servindo ao alerta contra uma doença ou à descrição de um estado de exceção, mas à valorização de um modelo. A sacralização da melancolia, colocada em um “altar” (v.9), bem como a abordagem de Leopardi, que a caracteriza como sublime, indicam a importância que ela assume no período. Madame de Stael defendeu que “a poesia melancólica é a que está mais 190

em consonância com a filosofia”

. A idéia de que a melancolia se associa à

disposição para a atividade filosófica191 aqui constitui base para uma poética. A lírica melancólica teria em comum com a filosofia propriedades meditativas. A proposta estética de Stael está em afinidade com a de Schlegel, exposta nos Fragmentos do Atheneaum. Em seu fragmento 116, o autor defende que a poesia romântica deveria reunir poesia, filosofia e retórica, "misturar e fundir poesia e prosa, inspiração e crítica". No fragmento 252, defende que uma 189

Aristóteles acredita que o vinho e a bile negra são de natureza semelhante. Conforme ARISTOTE. L`homme de génie et la melancolie. op.cit. p.91. CONSTANTINO EL AFRICANO. De melancholia. op. cit. p.19-21 e 41. 190 STAEL, Madame de. A poesia do norte e a poesia do sul. In: GOMES, Álvaro Cardoso & VECHI, Carlos Alberto. A estética romântica: textos doutrinários. São Paulo: Atlas, 1992. p.58. 191 Conforme CONSTANTINO EL AFRICANO. De melancholia. op.cit. p.21. O desdobramento da idéia em outros autores está em CORDÁS, Táki Athanássios. Do mal-humorado ao mau humor. op.cit. p.16.

65 filosofia da poesia deveria chegar à união total entre poesia e filosofia, e entre poesia e práxis192. Tanto em Stael como em Schlegel, encontramos a compreensão de uma afinidade e uma possibilidade de interpenetração entre as duas formas de pensamento. Além do contato com Schlegel, o pensamento de Stael tem afinidade com a teoria do sublime de Schiller. Em linha de raciocínio semelhante à deste último, Stael afirma que “tudo o que o homem fez de grande deve-o ao sentimento doloroso de que o seu destino é incompleto (...) o que existe de sublime no espírito, nos sentimentos e nas ações nasceu da necessidade de escapar aos limites que cerceiam a imaginação”. A autora define “almas melancólicas” como “fatigadas (...) de tudo o que significa um limite”193. A grandeza surge com a consciência da finitude, e a melancolia está associada a um interesse em superar limites. A vocação meditativa da poesia serve como fundamento para a busca de transcendência de limites. O poeta brasileiro Dutra e Melo, relativamente contemporâneo de Álvares de Azevedo, escreveu um longo texto, intitulado A melancolia194. Ele consiste em uma obra meditativa, cujo título sugere que pretende definir um conceito. Os primeiros versos situam a enunciação no momento do anoitecer. O sujeito lírico está rodeado pelo silêncio, e sua “alma se entristece” (v.24). Ele afirma estar sofrendo “sucessivas mudanças” (v.32) e tendo “fúnebres idéias” (v.42). E pergunta:

192

SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos do Athenaeum. In: LOBO, Luiza, org. Teorias poéticas do romantismo. op.cit. p. 55-6 e 63. 193 STAEL, Madame de. A poesia do norte e a poesia do sul. op.cit.p. 60.

66

43. Que vês tu no passado ou no futuro? 44. No passado talvez muitos pesares; 45. No futuro, quem sabe? - infindas mágoas.

O melancólico não tem tranqüilidade com relação ao passado, nem quanto ao futuro. Seu presente está marcado pela tristeza. A melancolia “tinge de pena / inda mesmo o prazer” (v.49/50). Lembrando o “doloroso prazer” em Keats, também aqui ocorre aquilo que Wordsworth descreve como “sutis combinações” da dor com o prazer195. O sujeito lírico se entrega “à reflexão” (v.63), imagem exemplar da vocação meditativa do melancólico. Depois, dirigindo-se à própria alma, diz: 92. Tu choras de saudade; ou pressentindo 93. Um mal com que te acena atro futuro, 94. Tu te lanças num mar de mil angústias.

A situação descrita corresponde esquematicamente à proposição de Constantinus: o melancólico sente tristeza, por causa de uma perda, e medo de algum dano no futuro196. O encaminhamento que o sujeito lírico propõe para seu impasse é a auto-destruição. Como descreve Guardini, a ausência de referenciais de orientação para o sujeito lírico o leva ao desejo de deixar de existir (v.111)

197

.

O estado descrito por Dutra e Melo, embora caro aos poetas românticos, não era considerado positivamente pela moralidade burguesa oitocentista. O valor estético da melancolia não correspondia a uma aceitação social do

194

DUTRA E MELO, Antônio F. A melancolia. In: BANDEIRA, Manuel, org. Antologia dos poetas brasileiros: fase romântica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. p.37-41. 195 WORDSWORTH, William. Prefácio às Baladas Líricas. op.cit. p.178. 196 CONSTANTINO EL AFRICANO. De melancholia. op.cit. p.15.

67 comportamento melancólico. Peter Gay, em um livro sobre o ódio e a agressividade no século XIX, explica que a liberação de impulsos agressivos era considerada, na moral burguesa, sinal de uma virilidade vigorosa. Lideranças políticas e sociais manifestaram preocupação com relação ao “declínio

da

masculinidade”

causado

pela

imposição

de

regras

de

comportamento social voltadas para a contenção, e também por ideários pessimistas e niilistas. Nesse contexto, em uma síntese de Paul Bourget, a melancolia é considerada “a menos masculina das doenças”198. O estudo de Gay é importante por situar a percepção que a melancolia romântica recebia por parte da moralidade burguesa, que a considerava algo perturbador para o padrão dominante de organização dos papéis sexuais na sociedade. No período romântico, a reflexão sobre religiosidade se associou à tentativa de explicar a melancolia. Dois escritores franceses, Vitor Hugo e Chateubriand, elaboraram reflexões dedicadas a compreender o conceito de melancolia à luz de princípios religiosos. Ambos acreditam que existe uma associação entre o cristianismo e a condição melancólica. Para o primeiro, o surgimento da religião cristã correspondeu a um amadurecimento da humanidade. Tendo superado as limitações das sociedades primitivas e da antigüidade clássica, ela passa por grandes transformações, cujo impacto resulta em descobertas fundamentais, como a da constituição dupla do homem, matéria e espírito, e de sua distância de Deus.

197

Conforme GUARDINI, Romano. De la mélancolie. op.cit. p.37. GAY, Peter. A experiência burguesa da rainha Vitória a Freud: o cultivo do ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.104. 198

68 Essas descobertas causam sofrimento, motivando a melancolia. No seu prefácio de Cromwell, Hugo afirma: “(...) o cristianismo separa profundamente o espírito da matéria. Põe um abismo entre a alma e o corpo, um abismo entre o homem e Deus. (...) faremos notar que, com o cristianismo e por ele se introduzia no espírito dos povos um sentimento novo, desconhecido dos Antigos e singularmente desenvolvido entre os Modernos, um sentimento que é mais que a gravidade e menos que a tristeza: a melancolia. (...) no instante em que veio estabelecer-se a sociedade cristã, o antigo continente estava agitado. Tudo estava abalado até a raiz. (...) Fazia-se tanto ruído na terra, que era impossível que alguma coisa deste tumulto não chegasse até o coração dos povos. Foi mais que um eco, foi um contragolpe. O homem, concentrando-se em si mesmo em presença destas profundas vicissitudes, começou a sentir dó da humanidade, a meditar sobre as amargas irrisões da vida. Deste sentimento, que tinha sido para Catão pagão o desespero, o 199 cristianismo fez a melancolia.” .

A argumentação carece de referenciais concretos, tendo passagens vagas, mas é possível caracterizar seu propósito conceitual. Hugo procura definir uma relação de causa e efeito entre o aparecimento do cristianismo e a motivação para a melancolia. A duplicidade proposta pelo primeiro para a condição humana - com as oposições entre alma e corpo, e humanidade e divindade resultará, através da atitude melancólica, em um pensamento marcado pela “controvérsia” e em uma estética dedicada à mistura de opostos - grotesco e sublime, corpo e alma, animal e espírito. Hugo se afasta deliberadamente da tradição de reflexão teórica sobre melancolia, ao distingui-la da gravidade e da tristeza, e ao afirmar que se trata de fenômeno moderno, desprezando a contribuição antiga e medieval. Sua

69 argumentação não segue uma lógica dedutiva rigorosa, e seu conceito de melancolia não está definido de maneira precisa. No entanto, esse texto é muito relevante, e sua proposta fica mais clara à luz de uma outra obra francesa sobre o mesmo assunto. No início do século XIX, Chateubriand escreveu um livro intitulado O gênio do cristianismo. Nele, elabora uma teoria da melancolia. Diz o escritor que “o cristão considera-se sempre um viajeiro que vai aqui passando por vales de lágrimas, sem outro repousar que o da sepultura. O mundo não é objeto de seus votos (...)”. Para ele, o coração do homem cristão sofre, porque a religião oferece um “quadro das tristezas da terra e das alegrias do céu”; com base nisso “aí se viu nascer essa delinqüente melancolia, que se gera no grêmio das paixões (...)”

200

.

Por um lado,

Hugo estabelece que o surgimento da sociedade cristã

trouxe a divisão do ser humano em duas partes, e com ela o sofrimento, e este desperta a melancolia. Por outro, complementarmente, Chateubriand defende que o homem cristão está dividido entre uma experiência negativa da terra, e uma expectativa positiva do céu. Sua vida está marcada pela errância e pela infelicidade, e a morte se tornaria por isso um alívio. Essa condição problemática motiva a melancolia. Os dois autores têm idéias convergentes a respeito da conexão entre a condição melancólica e o cristianismo. Suas posições antecipam as reflexões de Guardini, Schaller e Pot, ao associarem a condição melancólica a uma caracterização do ser humano como duplo, e

199 200

HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. São Paulo: Perspectiva, 1988. p.22-5. CHATEUBRIAND. O gênio do cristianismo.Rio de Janeiro: Jackson, s.d.. v.1. p.275.

70 nesse sentido convergem também com a proposta estética de Álvares de Azevedo.

71

2.2. O Absoluto possível

No livro The mirror and the lamp, M. H. Abrams apresenta algumas das principais características da estética romântica na Europa. Em certo ponto, aborda um elemento que serve, nessa estética, como critério de valor para a poesia - a intensidade. Ele explica que a obra literária deveria, para os românticos, ter um efeito “sugestivo e hipnótico”, apelando não para o juízo racional, mas para a sensibilidade201. Para Keats, “a excelência de toda arte é sua intensidade”. A poesia deveria surpreender o leitor através de um excesso, que provocasse “pensamentos elevados”

202

. De acordo com Abrams, esse aspecto se associa à necessidade 203

de concisão. A brevidade garantiria o impacto do texto sobre o leitor

.

É difícil determinar com precisão o sentido do conceito de intensidade. Sua apresentação em The mirror and the lamp o situa em uma região intervalar, pois a categoria ao mesmo tempo diz respeito a propriedades do texto e ao efeito produzido no leitor204. Racionalmente, poderíamos impor exigências a Keats, com relação a critérios empregados para mensurar a intensidade. No entanto, essa imposição não faria sentido, no contexto do

201

ABRAMS, M.H. The mirror and the lamp: romantic theory and the critical tradition. New York: Oxford, 1953. p. 134. 202 As idéias estão na correspondência de Keats, citada por ABRAMS, M.H., The mirror and the lamp: romantic theory and the critical tradition. op.cit. p.136. 203 Essa combinação é formulada por Edgar Allan Poe, que desvaloriza a épica, pela sua falta de concisão. Conforme ABRAMS, M.H., op.cit., p.136. 204 O termo “intervalar” é empregado conforme um estudo de João Alexandre Barbosa sobre a “tensão entre a obra e o leitor”. BARBOSA, João Alexandre. Leituras: o intervalo da literatura. Linha d`água. São Paulo: APLL, s.d. n.5.

72 romantismo europeu. A essência da estética do período, de acordo com Mário Praz, consiste precisamente na valorização do inefável205. 206

Com o propósito de “nublar o raciocínio do leitor”

, afastando-o de seu

senso comum, a poesia do romantismo, freqüentemente, trabalha com temas e/ou recursos formais que provocam perturbação. A “ruptura com padrões do gosto clássico”207, desenvolvida no período, envolveu a busca de elementos de composição que contrariavam os cânones, valorizando “o subjetivismo radical, a tendência ao primitivo, a expressão imediata e espontânea das emoções” e propondo uma oposição a princípios classicistas como “equilíbrio, proporção, disciplina”208. De acordo com Praz, essa ruptura se explica em razão de que, enquanto os escritores do classicismo defendiam a necessidade de síntese, ordem e disciplina de pensamento, os românticos observaram que o esforço de síntese implica em limitações, insuficiências e exclusões209. Nesse sentido, as idéias de Keats e outros com relação à intensidade estão associadas ao interesse em tornar a poesia um meio de representação que supere parâmetros convencionais, atentando precisamente para as insuficiências e exclusões apontadas por Praz. Ao buscar a expressão do inefável, os textos poéticos estariam justamente se aproximando de contornos problemáticos, zonas irracionais, elementos imponderáveis que não se submetem à síntese

205

PRAZ, Mário. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica.op.cit. p.34. Idem, p.57. 207 NUNES, Benedito. A visão romântica. op.cit. p.52. 208 ROSENFELD, Anatol. Aspectos do romantismo alemão. In: _____. Texto/contexto. São Paulo: Perspectiva, 1985. p.148 e 150. 209 PRAZ, Mário. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. op.cit. p.29. 206

73 equilibrada. De acordo com Benedito Nunes, a “sensibilidade romântica” envolve elementos de “ilimitação” e “inquietude” próprios “de toda experiência 210

conflitiva aguda”

.

A demanda de superação de limites impostos pelos cânones classicistas está ligada a uma busca de um Absoluto. Trata-se de ir além da rotina do cotidiano, da mera imanência da vida material, à procura de uma certa forma de transcendência, capaz de dar conta dos elementos inquietantes da existência. O período em que os românticos viveram foi marcado por um enfraquecimento da religião tradicional211, elaborando uma ruptura com relação ao dogmatismo. Estudando o romantismo europeu, Georges Gusdorf observa que, nesse período, a concepção tradicional do Absoluto dá lugar a uma nova forma de pensamento. Para a tradição, contemplar a imutável eternidade (nos termos de Hannah Arendt212) ou o Absoluto (nos termos de Gusdorf) consiste em uma espécie de evasão com relação ao mundo concreto213. Modificações na cultura religiosa do século XVIII levaram a uma dissociação entre teologia e metafísica, até então estritamente ligadas, incentivando a discussão religiosa no plano temporal e racional214. Uma conseqüência dessas modificações foi a necessidade de uma reformulação dos modos habituais de compreensão da

210

NUNES, Benedito. A visão romântica. op. cit. p.52. Conforme PEYRE, Henri. Introdução ao romantismo.op.cit. p.99. VAN TIEGHEM, Paul. Le romantisme dans la littérature européenne. Paris: Albin Michel, 1948. Cap.3. Em especial, p.262-3. 212 Conforme ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 1989. p.24. 213 GUSDORF, Georges. Recherche de l`absolu. In: _____. Du néant à Dieu dans le savoir romantique. Paris: Payot, 1983. p.92. 214 Idem, p.94. Esse assunto é examinado por Heine, que considera Lutero um beneficiador dessa dissociação. Conforme HEINE, Heinrich. Contribuição à história da religião e filosofia na Alemanha. São Paulo: Iluminuras, 1991. p.43. 211

74 noção de Absoluto. De acordo com Gusdorf, “l`absolu n`est pas ailleurs, dans une transcendance inaccessible; il se trouve au creux de l `existence (...) L`absolu, ce serait la coïncidence de soi à soi, l `adequation réalisée entre ce qui cherche et ce qui est cherché, la decouvérte du Centre d`où procède la justification de l `existence et l`intelligibilité des valeurs”215 . O Absoluto romântico se apresenta como algo que se encontra no interior do homem, tanto inacessível quanto próximo, e não existe para ele senão através do relativo. A definição de Gusdorf é intencionalmente paradoxal. O sujeito enfrenta um abismo que separa sua consciência e sua essência, e o sentimento de que esse abismo seja eventualmente superado é que pode ser entendido como uma experiência de reconhecimento do Absoluto216. A atitude religiosa, basicamente, consistiria então em “um desejo de expansão da alma”, uma busca de profundidade, de intensidade

217

.

O romantismo, em suma, propõe um deslocamento do sentido do conceito de

Absoluto.

A

tradição

cristã

o define como uma transcendência

independente da experiência concreta visível e externa ao sujeito. O romantismo o percebe como uma demanda da interioridade com relação a si mesma. Trata-se de procurar adequar o eu que existe ao eu que é buscado, eliminando as diferenças entre o que a consciência faz e o que o sujeito, em sua essência, é. Essa eliminação permitiria compreender o sentido da existência e dos valores que servem de referência para sua condução.

215 216

GUSDORF, Georges. Recherche de l`absolu . op.cit. p.91. Idem, p.92.

75 Em um artigo a respeito de Solger, Rudolf Malter elabora uma teoria da estética romântica, que articula a reflexão religiosa, exposta de modo equivalente ao apresentado por Georges Gusdorf, e a discussão das relações entre arte e realidade. De seu raciocínio, é importante ressaltar alguns pontos. Embora trate-se de uma exposição sobre Solger, algumas idéias podem ultrapassar o interesse específico pelo autor. De acordo com Malter, o problema da arte, no romantismo, estaria na relação entre, por um lado, o divino, o essencial, o eterno, e por outro, o fenômeno imanente, a realidade concreta. O artista estaria em busca do ideal divino. Porém, as obras de arte se mostram imperfeitas, em sua capacidade de representar esse ideal. A percepção romântica do mundo, como quer Solger, tem sua força constituída na beleza. Esta não poderia ser inteiramente inacessível; portanto, ela não pode residir em um ideal distante e desconhecido, devendo ser encontrada na realidade e no presente

218

. O problema que o filósofo formula

em sua estética é justamente como conciliar a essência divina e a precariedade da imanência, e constituir beleza nessa conciliação. Ao formular essa dificuldade, o filósofo desemboca em um paradoxo: seria necessário unificar transcendência e imanência, de modo a obter em objetos imperfeitos uma percepção do ideal divino.

217

CLAUDON, Francis. A literatura. In: ____, org. Enciclopédia do romantismo. Verbo, 1986. p.186. O termo “intensidade”é utilizado aqui conforme ABRAMS, M.H. The mirror and the lamp: romantic theory and the critical tradition. op.cit. p. 134. 218 MALTER, Rudolf. L`ironie comme véritable essence de l `art. L`explication théorique par Solger `de la façon romantique d`appréhender le monde` dans le dialogue Erwin. Les études philosophiques. Paris: PUF, avr-jun 1983. n.2/83. p.166-70. De acordo com Gerd Bornheim, a expectativa de que a arte permita

76 Esse paradoxo não se resolve em uma síntese orgânica. Pelo contrário, a estética de Solger o explora em sua irresolução como uma base para a arte. Esta deve ser elaborada como um elemento em passagem - entre o divinoideal e o fenômeno imanente219. Outro comentador de Solger, Jacques Colette, desenvolve um raciocínio na mesma direção. Ele observa que o filósofo alemão procura definir um modo de superar, através da arte, a separação entre o finito e o infinito terrestre”

220

. Esse modo seria “l`interpenetration du divin et du

221

. Essa interpenetração não se faz, no entanto, de maneira

harmônica. A imagem de uma união perfeita entre o mortal e o eterno resulta em uma ruína do ideal divino 222. Isso ocorre em razão de que a arte provocaria um duplo movimento. Em primeiro lugar, permitiria a percepção do divino em nós mesmos, em nossa imanência; em segundo lugar, estaríamos sujeitos à percepção de nossa nulidade, com a queda na realidade223. A passagem entre o divino-ideal e o fenômeno imanente, então, seria constituída

de

dois

momentos

opostos,

definidos

por

Solger

como

“entusiasmo” (quando se chega à essência) e “ironia” (quando se realiza a

a representação do absoluto faz parte de uma “doutrina oficial” do romantismo. Conforme BORNHEIM, Gerd. Aspectos filosóficos do romantismo. Porto Alegre: IEL, 1959. p.93. 219 MALTER, Rudolf. L`ironie comme véritable essence de l`art. op.cit. p.171. 220 KIERKEGAARD, S. Solger. In: ____. O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates. Petrópolis: Vozes, 1991. p.266. 221 COLETTE, Jacques. Enthousiasme et ironie. La dialectique artistique selon K.W. Solger. Les études philosophiques. Paris: PUF, oct-dec 1992. n.4/92. p.490-2. 222 Cabe lembrar que “para o neo-platonismo, a encarnação da alma no mundo material representa uma queda”. Conforme KLIBANSKY, PANOFSKY & SAXL. Saturne et la mélancolie. op.cit. p.241. 223 COLETTE, Jacques. Enthousiasme et ironie. op.cit. p.494.

77 queda para a imanência)224. Para os românticos, de acordo com Wellek, a ironia expressa a “consciência do Divino e, ao mesmo tempo, consciência do 225

nosso próprio nada”

. Cabe salientar que esse duplo movimento não é um

problema a ser eliminado; para o filósofo alemão, trata-se de um processo constitutivo da arte226, que permite o reconhecimento de beleza em um objeto presente, mesmo que imperfeito. As proposições de Solger se vinculam diretamente à reflexão de Gusdorf a respeito do deslocamento da noção de Absoluto, do exterior para o interior do eu. No momento qualificado como entusiasmo, o sujeito reconhece o ideal divino, a essência, a beleza no objeto. Esse momento representa um acesso ao Absoluto, experimentado não como entidade externa, mas como uma espécie de sintonia precisa entre o sujeito e ele mesmo. Ao contemplar o Absoluto, o sujeito institui sua própria unidade. O ideal divino atribuído ao objeto equivale ao contato com a essência do sujeito 227.

224

Idem, p.494. A definição do conceito na estética romântica não coincide com a atribuída à ironia como forma retórica, que envolve “a substituição do pensamento em causa, por um outro pensamento” de teor oposto (conforme LAUSBERG, Heinrich. Elementos de retórica literária. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1966. p.249-50). René Wellek atribui a Solger a autoria do conceito no interior do romantismo alemão; cabe registrar que Walter Benjamin indica que, entre os escritores do período, foram desenvolvidas definições variadas para o termo. Conforme WELLEK, René. História da crítica moderna. op.cit. p.14. BENJAMIN, Walter. La obra de arte. In: ____. El concepto de crítica de arte en el romanticismo alemán. Barcelona: Peninsula, 1988. p.121. 225 WELLEK, René. História da crítica moderna.op.cit. v.2. p.266. 226 COLETTE, Jacques. Enthousiasme et ironie. op.cit p.492. Conforme também MALTER, Rudolf. L`ironie comme véritable essence de l `art. op.cit. p. 169. 227 Em um estudo sobre a ironia em Schlegel, Peter Szondi expõe que, para os primeiros românticos, o sujeito, centrado em si mesmo, busca, em suma, a própria consciência, que gostaria de contemplar enquanto unidade. Há uma analogia entre as formulações de Gusdorf e Szondi. Para o primeiro, o sujeito busca um Absoluto no interior da subjetividade; para o segundo, uma unidade da própria consciência. Guardadas as diferenças entre os termos, observamos um traço comum entre as formulações, a demanda de uma totalidade. SZONDI, Peter. Frederic Schlegel et l`ironie romantique. In: ____. Poésie et poétique de l`idealisme allemand. Paris: Minuit, 1975. p.100.

78 No entanto, no momento seguinte, o reconhecimento do ideal divino se desfaz, com a queda na realidade. O ideal divino não consiste em Deus, externo, Absoluto em si mesmo, mas em uma percepção do Absoluto no interior do próprio sujeito. Essa percepção resulta ser transitória, pois o eu se depara necessariamente com sua precariedade. A conseqüência imediata da inserção do ideal divino na imanência é a impossibilidade de considerá-lo como tal, da maneira que a tradição concebia. Hegel elaborou uma crítica da teoria da ironia de Solger, e formulou a noção do seguinte modo. Para ele, em Fichte, se concebe a idéia de que o eu seria “o princípio absoluto de todo o saber, toda a razão, todo o conhecimento. (...) Tudo o que é, é pelo eu”. Sendo o eu fundamento de toda relação sujeitoobjeto, estando a substancialidade do objeto por assim dizer subordinada às determinações do sujeito, “nada aparece com um valor próprio mas apenas com o que seja conferido pela subjetividade do eu” e, por conseguinte, nada existe “que não deva começar por ser posto pelo eu e que pelo eu não possa ser igualmente suprimido”. Para o eu que se vê como fundante, “para o qual conteúdo algum é absoluto ou existe para si, nada aparecerá aos seus olhos com um caráter sério”, com exceção dele próprio. Hegel vê nessa concepção de sujeito a base da idéia de o artista ser um gênio, que se difundiu no período romântico. Ocorre que “quando o eu adota este ponto de vista, tudo lhe parece mesquinho e vão, a não ser sua própria subjetividade que, isolada, fica também vazia e vã”; a frustração em que isso implica, com a queda na

79 realidade, o leva a uma “lânguida tristeza”. O eu irônico afirma “a vacuidade do concreto”, a “nulidade de tudo o que é objetivo e possui um valor imanente”228. Consistiria em uma ambivalência da ironia o fato de que se, por um lado, o eu é o fundamento na relação sujeito-objeto, e qualquer objeto tem seu valor atribuído pelo sujeito, por outro, o fato de o eu ser o princípio de tudo acaba por destituir os objetos de um valor a eles inerente, esvaziando o interesse do eu pela realidade. A consciência que tudo pode, paradoxalmente, anula o sentido do mundo à sua volta. Seu espírito está entregue a uma mobilidade que nega valores, numa atitude distanciada e destrutiva

229

. O momento do

“entusiasmo”, em que o sujeito se depara com o Absoluto, cede à queda em que o ideal divino rui na precariedade do mundo. O percurso irônico é ambivalente por incluir um lado de transcendência e um de inocuidade. A interpenetração entre o divino e o terreno se dá como impasse, sem uma síntese que restitua à relação entre o sujeito e o objeto o sentido que a queda suprimiu. De acordo com Solger, a ironia se define justamente como um “olhar penetrante, que paira sobre tudo, aniquila tudo”230. Para o sujeito irônico, “se desfazem todos os interesses, não havendo nenhum valor que resista”. Sendo o eu senhor de tudo, pode negar tudo231. Como Anatol Rosenfeld explica, não por acaso os românticos se interessavam pela figura de Satã, por ser ao mesmo tempo sedutora e aniquiladora; a ironia quer 228

Citações extraídas de HEGEL. Ironia e romantismo. In: ____. Estética. Lisboa: Guimarães, 1993. p.42-3. Nesse ponto, é importante notar a afinidade da postura irônica com um traço do melancólico, tal como o descreve Freud. A melancolia problematiza o interesse pelo mundo externo, o que resulta em auto-absorção. Conforme FREUD. Luto e melancolia, op.cit. p.131. 229 ROSENFELD. Sobre a ironia romântica. Jornal de São Paulo. São Paulo, 11/6/50. (Suplemento) 230 SOLGER, Karl. On irony. op.cit. p.146. 231 ROSENFELD, Anatol. Texto/ contexto. p.160.

80 “negar os valores do senso comum”, afastar-se do pensamento “fixo, petrificado” e das “categorias coaguladas da realidade vulgar”232. 233

A ambivalência do sujeito irônico, em “formação supressiva”

, entre a

fundação e a destruição, o encontro do essencial e a sua perda, a descoberta do Absoluto em si mesmo e a queda na precariedade, o leva a uma negatividade, condenada por Hegel234. A sustentação do paradoxo divinoterreno resulta em uma compreensão do mundo externo como perecível, em 235

um “senso de nossa transitoriedade”

.

O sujeito, com sua aspiração de

unidade absoluta, se vê diante da fragilidade da união passageira do ideal divino com o fenômeno imanente236, da flutuação entre finito e infinito237. Para o filósofo, a beleza artística está condicionada pela possibilidade de perceber o ideal divino, o essencial, o infinito, no interior do objeto artístico, sendo que essa percepção só ocorrerá com a aniquilação dos valores imanentes à realidade concreta. De acordo com Kierkegaard, “Solger quer encontrar na arte e na poesia esta realidade mais alta que vem à luz pela negação da realidade finita”238.

Em termos religiosos, Solger formula essa

negatividade como sacrifício divino: “Deus, existindo em nossa finitude ou se manifestando, se sacrifica a si mesmo e se destrói em nós: pois nós somos

232

Idem. p.161. Conforme comentários sobre Satã em SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos do Athenaeum. op.cit. p.56. 233 Conforme PASTA JR., José Antônio. Tristes estrelas da ursa: Macunaíma. In: AVANCINI, José Augusto e outros. Mário de Andrade. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura, 1993. 234 HEGEL. Ironia e romantismo. op.cit. p.44. 235 WELLEK, René. História da crítica moderna. op.cit. p.265. 236 COLETTE, Jacques. Enthousiasme et ironie. op.cit. p.493. 237 Idem, p.496. 238 KIERKEGAARD, S. Solger. op.cit. p.272.

81 nada”239. Perceber a beleza divina no interior da imperfeição é também, necessariamente, destruí-la. Para Colette, “la dialectique du beau inclut des moments opposés qui se détruisent l`un autre; jamais la beauté ne forme un 240

`tout parfait et fermé sur soi’ ”

.

A negatividade do percurso irônico, resultante de sua própria definição constituir-se na passagem entre divino e terreno, na interpenetração transitória dos opostos, em obras de arte imperfeitas, como forma viável de tornar a experiência do absoluto plausível para o sujeito - leva ao que Solger define como “a tragédia da Beleza”241. A estética do filósofo defende que só é possível chegar à qualidade artística na medida em que se promover o impasse da interpenetração entre o ideal e o terreno, frágil e imperfeita. Sem isso, a obra não consegue propiciar a representação do Absoluto. A concepção romântica de ironia está fundamentada em um paradoxo - para representar esteticamente o Absoluto, sem que ele surja como um ideal distante, é preciso interpenetrá-lo com o terreno, e com isso arruiná-lo. Embora o sujeito esteja em busca do Absoluto, tudo o que ele encontra, após o “entusiasmo”, ao final, é o imperfeito, o finito, o imanente. Por essa razão, a ironia, para os românticos alemães, “é uma forma de paradoxo”, “é o reconhecimento do fato de ser o mundo, em sua essência, paradoxal e de que apenas

uma

atitude

ambivalente

pode

apreender

contraditória”242.

239

SOLGER, apud KIERKEGAARD, S. Solger. op.cit. p.268. COLETTE, Jacques. Enthousiasme et ironie. op.cit p.491. 241 SOLGER, apud COLETTE, Jacques. Enthousiasme et ironie. op.cit. p.492. 242 WELLEK, René. História da crítica moderna. op.cit. v.2. p.13. 240

a

sua

totalidade

82 A compreensão da vitória da ruína, isto é, do fato de que o Absoluto não se sustenta, cedendo necessariamente à finitude, remete à seguinte formulação de Solger: “quando olhamos para tudo meramente sob o enfoque da mortalidade, somos apanhados pela melancolia”243. Essa afirmação é explicada por Rudolf Malter e Jacques Colette. Para os românticos, o sujeito é fundante, determinando o valor dos objetos. Estes, por sua vez, terminado o “entusiasmo”, têm seu valor aniquilado. A constatação da preeminência da finitude com relação ao Absoluto causaria melancolia. Por essa razão, em Colette o conceito de ironia recebe a seguinte atribuição: “une ironie qui est aussi mélancolie”244.

2.2.1. Xerxes

Existe um texto de Machado de Assis que faz uma espécie de conceituação metafórica da melancolia. Trata-se do conto Lágrimas de Xerxes245. Nesse conto, Machado toma duas figuras criadas por Shakespeare, Romeu e Julieta, e cria uma situação ficcional em que ambos discutem com um personagem chamado Frei Lourenço a possibilidade do amor eterno. A conversa se dirige para uma reflexão sobre o tempo e a finitude.

243

SOLGER. On irony. In: WHEELER, Kathleen, org. German aesthetic and literary criticism: the romantic ironists and Goethe. Cambridge: Cambridge University Press, 1984. p.147. 244 Conforme COLETTE, Jacques. Enthousiasme et ironie. op.cit. p.493. MALTER, Rudolf. L`ironie comme véritable essence de l `art. op.cit. p. 171. 245 ASSIS, Joaquim M. Machado de. Lágrimas de Xerxes. In: _____. Obras completas. v.2.

83 Dentro dessa conversa, Frei Lourenço apresenta uma passagem de um relato contido na História de Heródoto. Trata-se de um núcleo narrativo da Polímnia, o livro VII da obra de Heródoto. Conhecido como guerreiro cruel, Xerxes tem a certo ponto um momento humanamente doloroso. De acordo com o texto de Heródoto (partes XLV e XLVI da Polímnia), Xerxes, depois de olhar para seu exército, "inexplicavelmente pôs-se a chorar". Seu tio Artábano expõe a Xerxes seu espanto diante desse comportamento, e ele então diz: "Quando refleti sobre a brevidade humana e ao pensar que de tantos milhões de homens não restará um só dentro de cem anos, senti-me tomado de compaixão" 246. Após expor o relato de Heródoto, Frei Lourenço apresenta uma elaboração poética das possibilidades de destino das lágrimas de Xerxes. Os ventos teriam perguntado à lua que fazer dessas lágrimas, e ela teria aconselhado a fazer dela "uma estrela que brilhe por todos os séculos, com a claridade da compaixão, e onde vão residir todos aqueles que deixarem a terra, para achar ali a perpetuidade que lhes escapou" (p.75). Assim, a orientação da lua consiste em associar simbolicamente a finitude e a compaixão, oferecendo aos seres finitos uma imagem da perenidade. Após a consulta à lua, os ventos, de acordo com Frei Lourenço, consultaram o sol. É nesse ponto que se formula a problemática da melancolia:

"O sol ouviu e redargüiu que sim, que cristalizassem as lágrimas e fizessem delas uma estrela; mas nem tal como o pedia a lua, nem para igual fim. Há de ser eterna e brilhante, disse ele, mas para a compaixão basta a mesma lua com a 246

HERÓDOTO. História. São Paulo: Jackson, 1953. v. 2. Livro VII. p.155.

84 sua enjoada e dulcíssima poesia. Não; essa estrela feita das lágrimas que a brevidade da vida arrancou um dia ao orgulho humano ficará pendente do céu como o astro da ironia, luzirá cá de cima sobre todas as multidões que passam, cuidando não acabar mais e sobre todas as cousas construídas em desafio dos tempos. Onde as bodas cantarem a eternidade, ela fará descer um dos seus raios, lágrima de Xerxes, para escrever a palavra da extinção, breve, total, irremissível. Toda epifania receberá esta nota de sarcasmo. Não quero melancolias, que são as rosas pálidas da lua e suas congêneres; - ironia, sim, uma dura 247 boca, gelada e sardônica."

Ao final, o conto de Machado de Assis mostra Julieta alheia às implicações angustiantes da estória de Heródoto, e pedindo aflita ao Frei Lourenço que a case com Romeu. A personagem expressa um imediatismo estranho ao dilema vivido por Xerxes, contrariando a expectativa, criada pelo relato do Frei, de conscientização aprofundada a respeito da finitude. Julieta, no caso, nada tem de melancólica. A articulação dos elementos internos do conto cria uma oposição entre dois campos de referência simbólica. O primeiro envolve o sol, a ironia, o sarcasmo, o raio. O segundo envolve a lua, a melancolia, a compaixão, a rosa pálida. Pela composição do relato, é possível entender que tanto a ironia como a melancolia remontam a uma mesma origem: o reconhecimento da finitude. A ironia, de acordo com o texto, consiste em um registro incisivo, agressivo (como um raio) da finitude, enquanto a melancolia consiste em um registro associado à compaixão e à brandura.

247

ASSIS, Joaquim M. Machado de. Lágrimas de Xerxes. op.cit. p.618.

85 Por um caminho diferente do que as teorias oferecem, o conto de Machado de Assis indica, também, uma conexão essencial entre melancolia e ironia. As condições para o surgimento de uma são também condições para o surgimento de outra. Naquilo que é fundamental, o conto tem um ponto de contato com as reflexões de Solger: admite um modo de constituição comum à ironia e à melancolia.

86

3. Elementos melancólicos em Lira dos vinte anos

3.1. Olhos turvos, mente errante

“Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação” Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas

A leitura da segunda parte da Lira dos vinte anos248 tem algo de desconcertante. Num primeiro contato, este conjunto de poemas parece estar inteiramente desprovido de unidade, como se houvesse uma “dificuldade de forma”249, uma falta de um princípio condutor do conjunto. Com relação às formas de composição, a diversidade é evidente. Encontramos alguns poemas que respeitam regras tradicionais e outros que antecipam procedimentos que viriam a se desenvolver na lírica moderna. Há textos estritamente líricos, outros que beiram a prosa, e ainda outros que assumem caracterização de drama. Com relação aos temas ocorre o mesmo. Encontramos nesses poemas elementos tão disparatados como um poeta morto, uma lavadeira, um cônego, relógios, dinheiro. Encontramos um discurso íntimo de tom confessional, uma conversa de bêbados e um relato a respeito de um cadáver.

248

Idem. v.1. A expressão foi extraída de: NAVES, Rodrigo. A forma difícil. Ensaios sobre a arte brasileira. São Paulo: Ática, 1996. p.21. 249

87 A heterogeneidade temática e formal poderia ser eventualmente pensada como falha na composição, sob uma perspectiva classicista, ou resultado de uma perturbação psicológica de um adolescente típico, pelo olhar biográfico. Porém, o problema não se resolve com essas chaves, pois elas não explicam a qualidade alcançada pelos textos e reconhecida pela crítica. Para Eugênio Gomes, a segunda parte da Lira é a mais significativa da sua produção 250

poética, e seu “tumulto formal” resulta de uma “atitude estudada”

.

A falta de unidade da segunda parte da Lira desautoriza comentários generalizantes. Sendo inviável reduzir o conjunto a uma caracterização padronizada, seja no aspecto temático ou no formal, a própria falta de padrão chama a atenção e exige um esforço interpretativo. Cabe examinar um poema extraído desse conjunto, em que o andamento da composição faz saltar aos olhos uma descontinuidade que lembra a dispersividade do conjunto de poemas. Consideremos o poema Idéias íntimas, valorizado por críticos como Antonio Candido e Paulo Franchetti251 (em anexo, à p.286) . Trata-se de um texto dividido em quatorze partes, sendo que o número de versos por estrofe não é constante. Diferentemente do que ocorre em outros poemas do Autor, não há rimas finais. Esses aspectos contribuem para causar uma impressão de ausência de organicidade. A primeira estrofe apresenta uma sucessão de referências à literatura. Um após o outro, surgem Ossian, Lamartine, Shakespeare e Goethe. Logo em

250

GOMES, Eugênio. O individualismo romântico. op.cit. v.3. p.756 e 759.

88 seguida, no entanto, o sujeito lírico perde "o gosto" (v. 15) e vai "ficando blasé" (v.16). Os demais versos da estrofe expõem uma série de imagens que apresentam a condição em que vive o sujeito - solitário (v.20), ele não lê, não escreve (v.18), não passeia a cavalo, nem namora (v.26). O encadeamento estabelecido entre as referências literárias caracteriza um movimento da consciência, em que a atenção do sujeito, após se dedicar brevemente a um objeto, desloca seu interesse para outro, se volta para um terceiro e deste parte para um quarto. A cadeia, ao mesmo tempo que expõe a pluralidade de interesses do sujeito, relativiza o interesse de cada elemento. Nenhum é suficientemente envolvente para absorver totalmente o sujeito e deter demoradamente seu olhar. Esse deslizamento de objeto a objeto está articulado com um aspecto importante do plano de composição do conjunto do poema - a constituição do interlocutor. Ao longo de Idéias íntimas a definição da identidade do interlocutor se altera diversas vezes. No verso 10, "tu" se refere a Goethe. O interlocutor passa mais adiante a ser o leito em que o sujeito dorme (v.184 e 252

191), o candieiro (v.212, 217 e 220)

, uma "estrela" que representa

Lamennais (v. 113), uma visão de mulher (v.182) e o conhaque (v.250, 253).

251

Conforme CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. op.cit. p.182. FRANCHETTI, Paulo. A poesia romântica. op.cit. p.200. 252 O tratamento que o sujeito lírico dá ao candieiro, como sendo um amigo, aponta para a imagem do papel em Memorial de Aires de Machado de Assis. O papel é tratado nesta obra como entidade humanizada - `amigo papel' - à qual se atribui uma espécie de autonomia, de capacidade de ação. A ele são dirigidas expressões no imperativo ("não recolhas", "esquiva-te"). Trata-se de propor uma presença na pura ausência, uma plenitude onde há vazio. Introduzir uma representação de vitalidade onde sabidamente ela não pode estar leva a esvaziar o sentido efetivo da própria vitalidade, o que corresponde à relação emocional de Aires consigo mesmo. Conforme ASSIS, Joaquim M. Obras completas. v.1.

89 No final do poema (v.265), o interlocutor, a quem se dirige um imperativo, é impreciso, sendo provavelmente a imagem de mulher indicada no v.261. O constante deslizar é encontrado também em outro aspecto básico da constituição do poema - o tom. Azevedo propõe em Idéias íntimas a variação 253

freqüente de postura do sujeito lírico, procedimento elogiado por Schlegel

.A

pontuação é o recurso lingüístico que evidencia a variação de maneira mais ostensiva. Reticências marcam laconismo e distração vaga, pontos de exclamação

representam

exaltação

e

ênfase,

interrogações

apontam

incertezas meditadas. A incidência de vírgulas varia de parte a parte, podendo indicar ansiedade ou esforço de racionalização, ou ainda deslocamento do foco de interesse. Esse recurso lembra, guardadas as diferenças, a composição de Hamlet254. Quando Erich Auerbach descreve o comportamento do protagonista do drama de Shakespeare, afirma que ele pula "do gracejo indecente para o lírico ou para o sublime, da ironia absurda para a obscura e profunda meditação, do humilhante escarnecimento dos outros e de si mesmo para a patética função judiciária e a orgulhosa auto-afirmação"255. Sem pretender identificar integralmente o sujeito lírico de Idéias íntimas e o personagem trágico, cabe observar a afinidade entre os procedimentos discursivos encontrados nos dois casos. 253

Conforme o fragmento 432, em: SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos do Athenaeum. op.cit p.71. A conexão entre Álvares de Azevedo e o drama de Shakespeare é sugerida por Machado de Assis, em seu texto sobre a Lira dos vinte anos (ASSIS, Machado de. Obras completas. op.cit. v.3. p.893.), por Joaquim Norberto de Sousa e Silva, em Notícia sobre o autor e suas obras. op.cit. p.64. e mais de uma vez por Hildon Rocha, em ROCHA, Hildon. Álvares de Azevedo: anjo e demônio do romantismo. op.cit. 255 AUERBACH, Erich. O príncipe cansado. In: ___. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1976. p.281. 254

90 Se entendermos que Hamlet é um paradigma de personagem melancólico 256

, podemos sugerir que a inconstância de tom é uma expressão formal

pertinente à constituição melancólica. Isso permite afirmar, com base em uma analogia, que o movimento observado em Idéias íntimas é próprio de um sujeito melancólico

257

.

O comportamento do sujeito lírico no poema mereceria essa qualificação tendo em vista análises de Panofsky e Saxl sobre a representação artística da melancolia. Estudando A melancolia, de Dürer, os críticos observam, como elementos associados à postura melancólica, a percepção de um caos de objetos cuja utilidade não é assegurada; sua dispersão “reflete uma indiferença” por parte do sujeito258. As situações de deslizamento de referências e inconstância de tom anteriormente mencionadas são vinculadas a um tipo particular de percepção. Duas imagens do poema são fundamentais para defini-lo: olhos turvos, no verso 162, e mente errante, no verso 193. O adjetivo turvo pode significar embaciado, opaco, e também alterado, agitado, desordenado, sombrio. Essas acepções apontam de diferentes modos para a idéia de uma percepção cujos parâmetros deixam de ser os rotineiros, de modo que se ultrapassam limites dos procedimentos perceptivos usuais

256

259

. Os deslizamentos de olhos turvos

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. op.cit. p.180. A presença da melancolia no poema é registrada por Antonio Candido em: Formação da literatura brasileira. op.cit. p.190. 258 Conforme KLIBANSKY, PANOFSKY & SAXL. Saturne et la mélancolie. op.cit. p.494. 259 Conforme WISNIK, José Miguel. Iluminações profanas. In: VÁRIOS. O olhar. São Paulo: Companhia das Letras/Funarte, 1988. p.292. 257

91 são conduzidos por uma mente errante, que "devaneia em mundos" sem se prender a uma atitude única ou a um objeto único. Ambas as imagens remetem às formulações antigas e medievais sobre a melancolia. A ação da bile negra conduz a desordens intelectuais e variações de estados mentais

260

. De acordo com Constantinus Africanus, a bile negra,

ao subir ao cérebro, “obscurece sua luz”, perturbando a capacidade de compreensão

261

. Entre os problemas que podem ocorrer a partir disso, estão a

“visão de coisas negras” e a “percepção do que não existe”262. O estudo de François Azouvi aponta também para um nexo importante entre a melancolia e a escuridão, bem como menciona os delírios motivados pela bile negra263. Considerando essas fontes, as imagens de Azevedo atualizam motivos tradicionais de representação da condição melancólica. Os “olhos turvos” sugerem um modo de percepção perturbado, atingido pelo peso da escuridão. A “mente errante”, sem direção bem determinada, constitui uma imagem exemplar da inteligência desordenada, da suspensão da fronteira que separa a consciência objetiva da alucinação, da vocação para o devaneio. Enquanto em Byron, no Soneto de Chillon

264

, a representação de uma

mente sem cadeias (chainless Mind) se torna motivo para um elogio da liberdade, a mente errante de Azevedo se constitui como condição para perda de referências determinadas para organização da realidade.

260

Conforme KLIBANSKY, PANOFSKY & SAXL. Saturne et la mélancolie. op.cit. p.44 e 77. CONSTANTINO EL AFRICANO. De melancholia. op.cit. p.15. 262 Idem, p.23 e 29. 263 AZOUVI, François. A peste, a melancolia e o diabo, ou o imaginário definido. op.cit. p.100 e 104. 264 BYRON, Lord. Sonnet on Chillon. In: GRUNEWALD, José Lino, org. Grandes poetas da língua inglesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. p.36-7. 261

92 Em Idéias íntimas, o tempo se mitifica para o sujeito lírico, como se fosse um tempo primordial (versos 74/6), embora haja referências claras à história da França, na estrofe V. Essas referências não se articulam em um encadeamento propriamente histórico, sendo apenas índices difusos que se diluem no conjunto

265

. As referências de espaço centram-se na imagem do

leito, constantemente retomada (versos 114, 129, 140, 184, 190, 207). Trata-se de um sujeito que restringe seu horizonte ao espaço onde vive, e expõe, através do movimento do olhar, suas múltiplas ligações com os detalhes que compõem o ambiente à sua volta. As fronteiras entre esses detalhes podem se dissolver perante o sujeito, de modo que roupas e livros se confundem (v.69/70), como se os objetos não tivessem fisionomia precisa. Trata-se de uma relação entre sujeito e objeto em que a consciência não impõe uma oposição entre o real e o irreal; pelo contrário, o sujeito implora uma ilusão (v.178). Como o título propõe, trata-se de dar atenção a idéias, mais do que a objetos propriamente concretos. A elaboração das idéias não se dá por um caminho argumentativo logicamente ordenado, mas através de um fluxo embriagado, movido pelo cognac (v.55, 253), caracterizado como "sangue do gênio" (v.250) e "condão que abre o mundo das magias" (v.252). A função

265

A associação entre representações contraditórias de tempo na poesia lírica, entre a “história e o dimensionamento múltiplo da noção de tempo”, é examinada em CAMPOS, Maria do Carmo. Para a leitura de um itinerário: a multiplicidade de Octavio Paz. Organon. Porto Alegre: IL-UFRGS, 1994. v.8. n.22. p.141.

93 atribuída ao cognac é similar à do vinho na tradição. Seu efeito fisiológico equivale ao da bile negra, na perspectiva aristotélica 266. O percurso de Idéias íntimas é elaborado de tal forma que se entrecruzam referências que, em princípio, não poderiam se reduzir ao mesmo plano. No percurso realizado pelo sujeito lírico, Satã (v.246) surge após várias referências a Deus, e "Dante, a Bíblia, Shakespeare e Byron", que fazem parte do movimento de devaneio .

267

, são confundidos (v.208).

Observa-se, portanto, que o poema faz com que convivam elementos que,

sob uma perspectiva tradicional, não poderiam estar unidos ou equiparados. É necessário perguntar que linha une a Bíblia e Byron, que nexo associa Deus e Satã, que relação se estabelece entre roupas e livros, ou entre tempo mítico e história. Há algo no movimento da consciência do sujeito lírico que ultrapassa as leis do regime racional da percepção, jogando-a num campo de possibilidades imponderável. Esse “algo” pode ser o efeito do conhaque, “sangue do gênio” que ativa mecanismos inesperados na condução do pensamento. Pode também ser a melancolia, responsável pela carga de instabilidade emocional que se observa ao longo do poema. Pode, enfim, ser a soma ou a alternância das duas coisas. Porém, para compreender a melancolia em Idéias íntimas, temos de pensar a motivação para a atitude melancólica. No caso de Hamlet,

o

fundamento da situação emocional do protagonista é a perda do pai. A

266

Conforme ARISTOTE. L`homme de génie et la melancolie. Problème XXX,1. op.cit. p.91. CONSTANTINO EL AFRICANO. De melancholia. op. cit. p.19-21 e 41. 267 Conforme a relação entre os livros e a melancolia, em SONTAG, Susan. Sob o signo de Saturno. In: ____. Sob o signo de Saturno. Porto Alegre: L&PM, 1986. p. 93.

94 dificuldade de superar a perda de uma pessoa querida268 resulta em autoabsorção, em dificuldade de agir, e em um comportamento que associa, em certa medida, genialidade e loucura

269

.

Em Idéias íntimas está ausente qualquer referência à perda de uma pessoa querida, ou a uma situação semelhante. Encontramos nesse poema, no entanto, algo que está envolvido no drama shakespeariano: a dificuldade de encontrar um centro em que se apóiem as referências de organização da realidade. Na célebre conversa com Rosencrantz e Guildenstern, na cena II do Ato II, Hamlet diz que “as coisas em si mesmas não são boas nem más; é o pensamento que as torna desse ou daquele jeito”. Logo depois, fala: “Reconheço que não consigo falar com nexo”270. Anatol Rosenfeld interpretou a atitude do personagem como manifestação de um profundo “relativismo moral”, para o qual “nada é firme e sólido”271. Como o referido diálogo sugere, há uma ligação entre a postura relativista e o modo de falar, que pode soar como discurso “sem nexo”, destituído de coerência. O descentramento de Hamlet está associado à sua busca por restabelecer a ordem em uma sociedade desordenada, com a identificação e extirpação de um criminoso. Neste caso, para eliminar o Rei impuro, Claudius, seu tio, Hamlet será obrigado a igualar-se a ele. Para punir um assassino, é preciso assassiná-lo. Para vingar a morte de um Rei, é preciso matar também um Rei. O resultado dessa vingança seria lamentável para Hamlet: ele seria um Rei, ao

268 269 270 271

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. op.cit. p.131. BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão.op.cit. p. 170. SHAKESPEARE. Hamlet. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. p.72-3. ROSENFELD, Anatol. Texto/contexto. op.cit. p.134-5.

95 lado de sua mãe como Rainha (à beira do incesto), colocado no poder às custas da matança, tal como seu tio. Esse igualamento do criminoso e do punidor dissolveria todo princípio de distinção ética. A melancolia hamletiana se deve, em parte, ao fato de que a justiça, colocada em mãos humanas, é idêntica, no caso, ao crime. Para ser justo, é preciso se igualar ao impuro. Essa situação é afastada ao máximo, e o ato de vingança demora a acontecer. Ele mata Claudius apenas depois de ser atingido mortalmente - liberando-se, portanto, da possibilidade de ganhar o trono, e de se igualar ao criminoso. No drama de Shakespeare, portanto, o pensamento descontínuo do personagem está associado à ausência de valores morais absolutos e permanentes que pudessem ser confiáveis e capazes de amparar julgamentos. A falta de sistematicidade no pensamento está associada à precariedade das 272

certezas em que se deveria acreditar

. Num mundo em que os valores são

relativos, inconstantes e freqüentemente ilusórios, o pensamento se adequa à ausência de solidez dos eixos de funcionamento da sociedade. O relativismo moral de Hamlet se expressa não apenas nos conteúdos de seu pensamento, mas também em sua forma: descontínua, meio genial, meio louca, em certa medida imprevisível. Desse comentário sobre Hamlet cabe reter um ponto. O descentramento da consciência do protagonista deve ser considerado em duas vias: como indício de uma perspectiva profundamente relativista de compreensão da realidade, e como fundamento de um modo de pensar e falar estranho às

272

Conforme FICHTE, Johann G. Sobre o conceito de doutrina-da-ciência em geral. In: _____. A doutrina-da-ciência de 1794 e outros escritos. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p.18. (Os Pensadores)

96 regras convencionais. Bem, em Idéias íntimas não há tragédia grave familiar ou política, como ocorre no drama citado. Não há, como já foi dito, definição de um acontecimento forte ocorrido no passado, que motivasse o desenvolvimento da melancolia. Não há nem mesmo qualquer experiência de relacionamento humano concreto que derivasse em uma tensão ética. Apesar disso, o poema de Álvares de Azevedo tem em comum com o texto de Shakespeare uma marca: a associação que a perspectiva melancólica elabora entre uma forma de expressão descontínua e uma compreensão relativista e negativa da realidade. Para ser mais exato, seria necessário falar, mais do que

em

“compreensão negativa da realidade”, em frustração com relação às ilusões criadas para dela esquivar-se. A passagem da entrega aos devaneios à consciência da realidade é sentida como esvaziamento, e o sujeito percebe a falta de substância daquilo que criara, e em que investira afetivamente. As sensações prazerosas descritas nos versos 167 a 174 e nos versos 194 a 202 são interrompidas pelo despertar. Os “sonhos” cedem lugar à realidade em que “tudo é silêncio!/ Só o leito deserto, a sala muda!”(v.178-9), e em que o objeto erótico é o “travesseiro”(v.206). Assim, o teor negativo da realidade consiste essencialmente em sua não correspondência com relação aos sonhos, que se apresentam como condição para o prazer do sujeito lírico. A atração enfática pelos sonhos, com suas imagens envolventes, se associa ao desapego do sujeito com relação ao mundo visto em vigília - as imagens do “silêncio”, “leito deserto” e “sala muda”

97 indicam que a realidade é percebida como uma espécie de vácuo, que nada diz em relação às demandas do sujeito. Essa postura corresponde ao que no Romantismo é definido como ironia273. A presença desse elemento no poema foi observada por Eugênio Gomes

274

. O comportamento do sujeito lírico de Idéias íntimas deve ser

examinado em dois aspectos. Em primeiro lugar, ele constrói objetos de desejo, em seus devaneios. Esses objetos são ilusões, meras aparências. Como Hegel explica, as construções do eu irônico, destituídas de substancialidade, podem ser destruídas por ele próprio275. Se entendermos essa

destruição,

em

um

sentido

ameno,

como

sendo

apenas

o

desencantamento resultante do despertar, é claro que a precedência do eu com relação ao mundo que ele constitui faz com que as imagens por ele criadas só tenham valor por um investimento afetivo do próprio sujeito, e não em si mesmas, e o despertar, por conseguinte, representa a frustração da ânsia de substancialidade vivida pelo sujeito. Em segundo lugar, a relação com a realidade é negativa. Após o despertar, se afirma a vacuidade do mundo -

como se observa pelas

imagens do

“silêncio”, “leito deserto” e “sala muda” - e o sujeito cai no que Hegel chama de 276

“lânguida tristeza”

(conforme v.181 - “Eu sou tão infeliz, eu sofro tanto!”).

Para o eu irônico, “tudo o que é objetivo e possui um valor imanente” é

273

A leitura de Idéias íntimas à luz do conceito de ironia, com base em Hegel, foi tema de aulas do Prof.Dr. José Antonio Pasta Jr., a que assisti na FFLCH-USP, em 1989. 274 GOMES, Eugênio. O individualismo romântico. op.cit. p.750. Conforme também VILLAÇA, Alcides. Na intimidade romântica. op.cit. p. 18. 275 Conforme HEGEL. Ironia e romantismo. op.cit. p.42-3. 276 Idem, p.43.

98 anulado277: daí os movimentos de deslocamento de interesse, passando de um autor a outro, e deste a um terceiro, e deixando o sujeito blasé: todos os interesses se desvanecem, e os valores se dissolvem. Esses aspectos levam a crer que, em Idéias íntimas, há uma indissociabilidade entre melancolia e ironia. Não se trata de ver uma como causa da outra, mas de estabelecer uma conexão em termos de necessidade estética

278

. A melancolia do sujeito lírico no poema não se deve à perda de um

ente querido ou a um episódio trágico, mas ao fato de reconhecer uma falta de substancialidade em suas construções imaginárias, e a atribuir vacuidade à realidade externa, então destituída de interesse. É possível estender a caracterização encontrada em Idéias íntimas para o conjunto da segunda parte da Lira dos vinte anos, no que se refere à falta de continuidade formal e temática. Se entendermos, para efeito de análise, que o conjunto de poemas se caracteriza por um deslizamento constante de um elemento para outro (de um tema para outro, de um modo de composição para outro), tal como o discurso do sujeito lírico em Idéias íntimas, poderemos propor a hipótese de que o conjunto é construído sob uma perspectiva melancólico-irônica, cujos movimentos funcionam de modo similar aos que conduzem o poema mencionado. Essa idéia deve ser entendida no sentido de que o fio condutor que liga as partes desse conjunto assistemático não é um

277

Cabe reiterar aqui a afinidade da figura de Satã, presente no verso 246 de Idéias íntimas, com os princípios da ironia. Conforme ROSENFELD, Anatol. Texto/contexto. op.cit. p.161. 278 Expressão de B. Eikhenbaum extraída de VÁRIOS. Teoria da literatura - formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1970. p.22.

99 padrão temático, nem um modelo formal, mas um certo modo de pensar, condicionado pela ironia e pela melancolia. Uma das concepções estéticas mais adequadas aos poemas talvez fosse a exposta por Baudelaire - a beleza comporta a melancolia. “La mélancolie, toujours inséparable du sentiment du beau”279. Mário Praz chama essa beleza de “beleza maldita”, por associar constantemente a beleza à dor, à morte, ao terror e à amargura280. As referências constantes a categorias negativas estão associadas ao que 281

Hegel chamou de “negatividade absoluta”

. Esta consiste em uma condição

em que o sujeito lida com “antíteses absolutas” que não admitem síntese harmônica, mas um constante oscilar282. Dizendo de outro modo, a “beleza maldita” da estética melancólica está ligada à falta de síntese harmônica entre os termos contraditórios com que a postura irônica lida. Nos dois aspectos, o melancólico e o irônico, trata-se de o sujeito lidar com categorias negativas, sem chegar a superá-las em uma harmonia final, de modo que a negatividade prevalece. As contradições entre elementos encontrados em Idéias íntimas - entre Deus e Satã, tempo mítico e tempo histórico, ilusões e realidade, prazer e sofrimento - não podem ser reduzidas a termos não contraditórios. O poema encerra sem que se constitua uma síntese harmônica desses elementos.

279

BAUDELAIRE. Journaux Intimes. apud PRAZ, Mario. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. op.cit. p.48. 280 PRAZ, Mario. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. op.cit. p.45 e seguintes. 281 HEGEL. Estética. op.cit. p.44.

100

282

ROSENFELD. Texto/contexto. op.cit. p.158.

101

3.2. A ruína do idílio

Hipocondria melancólica é um mal terrível: faz ver as coisas tais como são. Gérard de Nerval, Diário

3.2.1. O bizarro e o cômico Se a moça soubesse que minha alegria também vem de minha mais profunda tristeza e que tristeza era uma alegria falhada. Clarice Lispector, A hora da estrela

Em Spleen e charutos, na parte IV, encontramos um poema esquisito, chamado A lagartixa (p.190). O sujeito lírico declara seu amor a uma mulher. Compara esse amor a seu interesse pelo vinho e pelo sono e, afirmando que os olhos da moça são um “sol”, diz de si mesmo que vive a eles exposto, “como ao sol de verão a lagartixa”. Antonio Candido considera esse poema uma obra-prima

283

.

Essa representação que o sujeito lírico faz de si mesmo é uma manifestação ligada à estética do grotesco284. Trata-se de abordar figuras que, convencionalmente, seriam observadas com repulsa, como formas dotadas de apelo, beleza ou fascínio. O resultado da utilização dessas figuras é uma experiência de estranhamento, em razão de sua incongruência com relação aos padrões estéticos convencionais. Ainda em Spleen e charutos, o grotesco cresce na parte VI, o célebre O poeta moribundo. O sujeito sugere que, quando for um defunto, dele seja 283

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. op.cit. p. 190. O apelo ao grotesco em Álvares de Azevedo foi comentado por Alcides Villaça e Cilaine Alves Cunha. VILLAÇA, Alcides. Na intimidade romântica. op.cit. p.14. CUNHA, Cilaine Alves. O sistema poético dual na obra de Álvares de Azevedo. op.cit. p.175. 284

102 retirada uma tripa, e ela seja transformada numa corda de instrumento musical, para que se cantem “nela / os amores da vida esperançosa”(p.192). Além dessa imagem provocadora, o poema traz sapos e um marreco sendo degolado por uma cozinheira, para comentar a morte do eu lírico. A apresentação dessas imagens atende a expectativa lançada nos "Fragmentos do Athenaeum" de Friedrich Schlegel, de 1798, obra em que é afirmado o interesse pelo bizarro na literatura. Este é definido no fragmento 429 como “certas associações e confusões insólitas e arbitrárias nos processos do pensamento, da composição poética e da ação”; comentando uma obra de Goethe, propõe que nela o horrível é apreciado positivamente

285

.

Em seu fragmento 139, o filósofo valoriza o excêntrico e o monstruoso em 286

literatura, quando abordados com “graça e originalidade”

.

A utilização de figuras como a lagartixa, os sapos e o marreco degolado, bem como a conversão da tripa em uma corda musical, rompem a tendência tradicional de restringir a poesia lírica ao domínio das imagens sérias e elevadas. Como diz Mário Praz, “Pode-se extrair portanto beleza e poesia de matéria geralmente considerada ignóbil e repugnante”287. Em O cônego Felipe, o sujeito lírico afirma que sua musa “distrai-se às vezes apanhando moscas” (p.200); a imagem corrompe a concepção idílica que normalmente sustenta as musas, estabelecendo uma conexão entre criação poética e degradação.

285

SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos do Athenaeum. op.cit. p. 71. De acordo com Wolfgang Kayser, Schlegel é o autor que põe o grotesco no centro das idéias estéticas do Romantismo. KAYSER, Wolfgang. O grotesco. São Paulo: Perspectiva, 1986. 286 SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos do Athenaeum. op.cit. p.58. 287 PRAZ, Mário. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. op.cit. p.45.

103 Trata-se de algo ligado ao “gosto de imundice que sugere imagens de um mundo subterrâneo, putrescente”288. Em Boêmios,

Nini afirma que Puff beijaria uma caveira, se desta

escorresse vinho (p.165). Logo depois, é apresentado um relato segundo o qual Puff teria visto um cadáver na forca. Descreve-o como feio e nu, tendo um corvo sobre a cabeça. Surge a vontade de subir junto ao enforcado e pintar-lhe bigodes (p.166); o defunto é tratado como objeto de zombaria inconseqüente. Para alguns críticos, os aspectos bizarros de Azevedo estão associadas a uma atitude humorística289. Considerando a perspectiva irônica, entende-se que o humor não tem fim em si mesmo. Ele tem como finalidade a dissolução de padrões de representação. Examinando a importância do humor na Lira, Alfredo Bosi, com base em Hegel, o considera um recurso que corrói padrões freqüentes do próprio romantismo, através da degradação do estatuto elevado da poesia e do emprego estilístico da paródia290. Por exemplo, no poema Namoro a cavalo, o sujeito lírico se dirige ao encontro com uma namorada. Suas roupas, no caminho, ficam sujas de lama. Ao vê-lo sujo, a moça o despreza e, irritada, bate a janela. O cavalo, diante disso, pula e faz com que o rapaz leve um tombo; a sua calça rasga. O texto termina com uma queixa do sujeito, frustrado pelas conseqüências do “amoroso devaneio” (p.206). 288

Idem, p.63. Antonio Candido desenvolve sua leitura propondo que se trata de uma combinação de elementos cômicos e trágicos, como se o chiste envolvesse implicitamente um desencanto. Conforme CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. op.cit. Conforme p.182. No que se refere ao humor em Azevedo, conforme também FRANCHETTI, Paulo. A poesia romântica. op.cit. p.201. 290 BOSI, Alfredo. Imagens do romantismo no Brasil. op.cit. Em especial p.248-9. Conforme também SOARES, Angélica. Ressonâncias veladas da lira. op.cit. p. 82/3. 289

104 A situação criada, envolvendo a lama, a rejeição, o tombo, a roupa rasgada, sustenta seu humor na incongruência entre a pretensão amorosa do rapaz, que supõe uma imagem respeitável, e os acontecimentos, que a degradam progressivamente. A lacuna entre expectativas e possibilidades reais constitui um impasse. O antagonismo entre o “amoroso devaneio” e a realidade degradada não chega a se resolver em uma síntese harmônica. A situação é diferente de Idéias íntimas, em que fora do sonho a realidade se reduz a “silêncio!/ Só o leito deserto, a sala muda!”(v.178-9). A moça de Namoro a cavalo não é apenas uma aparência criada pelo Eu fundante. Porém, quando o objeto de desejo ganha substancialidade, é exatamente quando se mostra de maneira ostensiva a fragilidade do sujeito. Em É Ela! É Ela! É Ela! É Ela!, que Antonio Candido destaca como raro texto em que Azevedo apresenta uma mulher amada tangível291, a expectativa de relação amorosa envolve um engano. Enquanto a moça está dormindo, o rapaz rouba dela um papel, julgando serem versos referentes ao seu amor. Descobre que “era um rol de roupa suja” (p.195). A figura é construída de modo ambíguo - sendo idílica, “fada aérea e pura”, ela é também burlesca “roncava maviosa e pura”. Assim como a “bela” de Namoro a cavalo se revela antipática e furiosa, a lavadeira de É Ela! É Ela! É Ela! É Ela! combina traços contraditórios. Nos dois casos, os poemas encerram com um distanciamento entre o sujeito e a amada. A comparação da lavadeira com a Carlota de Werther supõe uma analogia entre os dois casos de amor, o que é evidentemente implausível. A postura do

105 sujeito lírico nada guarda da gravidade, reverência e intensidade do personagem alemão292. O efeito na leitura é de corrosão do modelo insinuado. Os recursos citados - imagens insólitas como a lagartixa e os sapos, ou a tripa usada como corda; caracterização paradoxal das mulheres; humilhação dos sujeitos líricos - criam, na segunda parte da Lira dos vinte anos, a impressão

de

que

Azevedo

emprega

um

“princípio

dissociativo

e

293

pulverizador”

, com o objetivo de corroer a atmosfera idílica propiciada por

muitos de seus poemas, como os primeiros da Lira (No mar, Sonhando, Cismar), entre outros. Ao optar nesses textos pelo repugnante, pelo sujo, pelo humilhante, Azevedo intensifica a atmosfera ambivalente de sua obra. De acordo com Vitor Hugo, existe uma associação entre a duplicidade humana - figurada pelo poeta brasileiro na imagem das “duas almas” - e um interesse pela mistura do sublime com o grotesco. O dualismo, enquanto concepção antropológica, sustenta um dualismo estético. Na medida em que a produção de Azevedo envolve o problema da dificuldade de conciliar finito e infinito, haveria, considerando Vitor Hugo, uma coerência por parte de Azevedo, em optar por uma estética baseada em duplicidade. A argumentação do escritor francês leva a crer que a melancolia, por trazer a instabilidade, motiva a aparição do grotesco.

“(...) vemos ao mesmo tempo despontarem, e como que de mãos dadas, o gênio da melancolia e da meditação, o demônio da análise e da controvérsia. (...) sob a influência deste espírito de melancolia cristã e de crítica filosófica que 291

Conforme CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. op.cit. p.182. GOETHE, J. Os sofrimentos do jovem Werther. São Paulo: Clube do Livro, 1988. 293 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. op.cit. p.230. 292

106 notávamos há pouco, a poesia dará um grande passo (...) ela se porá a fazer como a natureza, a misturar nas suas criações, sem entretanto confundi-las, a sombra com a luz, o grotesco com o sublime, em outros termos, o corpo com a alma, o animal com o espírito, pois o ponto de partida da religião é sempre o ponto de partida da poesia. Tudo é perfeitamente coeso.”294.

Como o homem é duplo, e na natureza os opostos se misturam (o belo e o feio, o mal e o bem, a sombra e a luz), a produção poética deve estar ajustada a esses princípios, e portanto deve aceitar a duplicidade.

3.2.2. A embriaguez

As referências às bebidas alcoólicas são constantes na produção de Álvares de Azevedo. Em Idéias íntimas, como foi mencionado à p. 92, o cognac é descrito como "condão que abre o mundo das magias" (v.252). Na parte III de Spleen e charutos, o vinho é considerado motivação para o sonho (p.188). O poder de estímulo à imaginação da bebida atribui a ela a capacidade de fazer surgir poesia. Em Boêmios, é sugerido que “a poesia / dorme dentro do vinho. Os bons poetas / para ser imortais beberam muito” (p.158). Em O poema do frade, lê-se também que a inspiração poética se associa à embriaguez: 1. 2. 3. 4.

294

Com as convulsas mãos a taça enchia. Então a inspiração lhe afervorava E do vinho no eflúvio e nos ressabios Vinha o fogo do gênio à flor dos lábios!

HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. p.22-5.

107 (Parte XXVI, Canto primeiro)

295

A exaltação da bebida faz do sujeito alguém capaz de extrapolar a percepção convencional dos objetos. Em Idéias íntimas, leva o eu lírico a uma intensificação da vitalidade que atinge fortemente o funcionamento do corpo (v.257-8),

sendo

isso

uma

motivação

para

o

delírio

(v.259).

Esse

296

comportamento é próprio do melancólico, de acordo com Sontag

.

Em uma passagem de Boêmios, Nini comenta que Puff seria capaz de beijar uma caveira, pela razão de nela haver vinho

297

. Em A lagartixa298 , o

sujeito lírico estabelece uma analogia entre seu interesse pelo vinho e o desejo que sente por uma mulher. Os personagens principais da Noite na taverna são apresentados ao leitor embriagando-se

299

. O protagonista de Macário afirma que “a mais doce

embriaguez é a que resulta da mistura dos vinhos”

300

. Na mesma peça, uma

fala do protagonista associa diretamente a condição melancólica e o interesse pela embriaguez: “Não há melhor túmulo para a dor que uma taça cheia de vinho”301. As afinidades entre a embriaguez e a melancolia são tematizadas por Aristóteles e Constantinus Africanus. O primeiro afirma:

295

AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. v.1. p. 340. “(...) o melancólico pode tentar cultivar estados fantasmagóricos, como os sonhos, ou tentar chegar aos estados de atenção concentrada proporcionados pelas drogas”. SONTAG, Susan. Sob o signo de Saturno. op.cit. p. 98. 297 AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. v.1. p.165. 298 Idem, p.190. 299 AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. v.2. p. 87-93. Em uma passagem do livro que amplia as conotações da bebida, um brinde com taças de vinho representa o prenúncio de uma morte. Idem, p.155. 300 Trata-se de uma alusão à promiscuidade sexual. Idem, p.29. 301 Idem, p.61. 296

108 “(...) podemos perceber que o vinho transforma os indivíduos de diferentes maneiras, se observarmos como ele altera gradualmente os que o bebem (...) o vinho cria um estado de exceção no indivíduo não por muito tempo, mas por um curto período (...) o vinho e a composição [de bile negra] possuem natureza semelhante” 302

O segundo desenvolve a mesma idéia geral. O vinho, como a bile negra, é capaz de alterar o comportamento dos seres humanos. Constantinus acredita que o vinho pode produzir a bile negra, e que ele corrompe a eficiência dos sentidos, o que motiva a melancolia

303

. Desenvolve a analogia

dizendo que os melancólicos se comportam como ébrios

304

. Não obstante,

defende que o próprio vinho pode contribuir para a “cura da enfermidade”, por aliviar a tristeza305. Álvares de Azevedo representa o envolvimento com o vinho e o cognac, em seus poemas, como um modo de abrir horizontes de percepção e expressão incomuns. Porém, em Noite na taverna ele desenvolveu com maior elaboração a idéia. Cabe observar alguns pontos desse texto, para depois retornar à Lira dos vinte anos. Consideremos uma das partes de Noite na taverna, Bertram. A trajetória de um rapaz - incluindo seus envolvimentos com mulheres, as mortes que provoca, suas viagens, a perda de seu pai - é exposta por ele para seus amigos numa taverna. O texto simula uma situação de comunicação oral,

302

Conforme ARISTOTE. L`homme de génie et la melancolie. op.cit. p.87-91. CONSTANTINO EL AFRICANO. De melancholia. op. cit. p.19. 304 Idem, p.21. 305 Idem, p.41. 303

109 lembrando os antigos narradores tradicionais que contavam estórias num grupo de pessoas 306. Daquilo que Bertram conta, a passagem mais importante talvez seja aquela em que ele está com algumas pessoas num barco sem destino, e é obrigado a praticar antropofagia. A abordagem do tema não é predominantemente trágica. O texto dilui a tragicidade com apontamentos lacônicos ou irônicos, como aqueles em que Bertram afirma rir do velho e em seguida rir da própria fome

307

.

O barco sem destino é um topos importante no Romantismo, e sua manifestação mais sublime e trágica talvez seja A balsa da medusa (Le Radeau de la Méduse)

308

, quadro de Géricault (em anexo, à p.298). O quadro

acentua a idéia de desespero, que firma a tragicidade da representação, o que não ocorre no texto de Azevedo. Chama a atenção, inclusive, que uma figura masculina sentada, à esquerda, esteja em posição similar à figura central da Melancolia, de Dürer. A posição da mão, junto à cabeça, e a expressão sombria do rosto remetem diretamente ao trabalho de Dürer, o que resulta em aproveitamento do teor conotativo da imagem. O abandono ao mar e a antropofagia consistem em uma situação de perda radical e enfrentamento de limite, definindo uma condição essencialmente melancólica.

306

Enquanto os

Conforme BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In:__ ___. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras escolhidas, 1). 307 AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. v.2. p.117. 308 Reproduzida em LE BRIS, Michel. Journal du romantisme. op.cit. p.122.

110 seres pintados por Géricault estão jogados numa experiência extrema de tormento, Bertram reage à situação com riso e sem gravidade 309. Como Antonio Candido explica, em Noite na taverna, personagens transitam 310

“entre sono e vigília”

, longe de parâmetros racionais de percepção. Toda a

narrativa se elabora em uma linguagem e em um modo de composição cuja estrutura parece ser a do sonho, ou a do transe dionisíaco, tal como entendido na antigüidade. É elaborada uma lógica outra, uma lógica da alteridade, que suspende os critérios convencionais de percepção e enunciação. À p.92, logo no início da Noite na taverna, é feito um brinde em homenagem a Baco (Dionísio), que de certa maneira é a alavanca que dá propulsão à seqüência de relatos. Algumas das características de Baco estão ligadas a elementos de composição do livro. De acordo com Marcel Detienne, na mitologia, Dionísio é uma entidade sem forma definida inclusive na forma humana

311

, que pode surgir

312

. A presença da antropofagia em Bertram é um

traço que remete aos ritos dionisíacos, pois estes, de acordo com Marcel Detienne, envolviam a devoração da carne humana 313. Dionísio é uma figura ambígua, a que se atribuem qualificações contraditórias. É o deus da ordem, "sábio que preside a economia das

309

Esse tema foi incorporado também à prosa de Alencar. O protagonista de Cinco minutos passa algum tempo num barco sem destino. Sua condição não chega a ser descrita como trágica, mas nada tem em comum com a variação de tom de Azevedo. De todo modo, cabe observar que um tema importante para a cultura européia foi assimilado pela produção brasileira de maneira não homogênea. Conforme ALENCAR, José de. Cinco minutos. In: _____. Obras completas. Rio de Janeiro: Aguilar, 1959. v.1. 310 CANDIDO, Antonio. Cavalgada ambígua. op.cit. p.46. 311 DETIENNE, Marcel. Dioniso a céu aberto. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. p.14. 312 EURÍPIDES. As bacantes. Lisboa: Inquérito, s.d. p.36. 313 DETIENNE, Marcel. Dioniso a céu aberto. op.cit. p.32-3.

111 necessidades e dos prazeres" destruição"

314

. E é um deus que "fomenta a desordem e a

315

. As ambigüidades do deus correspondem à ambigüidade do

vinho. Como explica Jean-Pierre Vernant,

"Assim como o vinho, Dioniso é duplo: terrível ao extremo, infinitamente doce. Sua presença, intrusão estupefaciente do Outro no mundo humano, pode assumir duas formas, manifestar-se segundo duas vias: ou a união bemaventurada com ele, em plena natureza, em que todo constrangimento foi ultrapassado, a evasão fora dos limites do cotidiano e de si próprio. É essa experiência que a parodos celebra: pureza, santidade, alegria, suave felicidade. Ou então a queda no caos, a confusão de uma loucura sanguinária, assassina, onde se confundem o 316 mesmo e o outro..." A dualidade dionisíaca é encontrada por Bertram na condição humana, na compreensão de que no homem se fundem elementos de pureza e lodo (p. 116). O comportamento de Bertram guarda do dionisismo a idéia de suspensão do modo habitual de funcionamento da consciência e a entrega a impulsos eróticos, sanguinários e irracionais. A embriaguez não é apenas objeto do relato de Bertram mas algo condicionante de seu ponto de vista. A representação da embriaguez, lida à luz da recuperação da figura de Baco, interessa na medida em que os diversos elementos que compõem o conjunto são atingidos pela suspensão de critérios racionais e morais de relacionamento com o real. O "lodo" da realidade, do qual a embriaguez de alguma maneira afasta Bertram, jogando-o permanente para zonas abismais em que a realidade banal

314

Idem. p.69. GIRARD, René. A violência e o sagrado. São Paulo: UNESP/Paz e Terra, 1990. p.159. 316 VERNANT, Jean-Pierre. O Dioniso mascarado das `Bacantes' de Eurípides. In: ____ & VIDALNAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo, Brasiliense, 1991. v.2. p.266. 315

112

em nada pode interessar, representa a ausência de transcendência na experiência finita e concreta do homem. Essa atitude de evasão, condicionada pela embriaguez dionisíaca, faz ver uma antropologia trágica elaborada com ironia, que ataca as idéias dominantes a respeito da capacidade civilizatória do ser humano. "O que é o homem? É a escuma que ferve hoje na torrente e amanhã desmaia, alguma coisa de louco e movediço como a vaga, de fatal como o sepulcro! (...) Miséria! Loucura!" (p.112-3)

Efemeridade, loucura, fragilidade. O teor do comentário de Bertram implica uma atitude grave diante da existência, que suas ações - principalmente na cena da morte do pai - parecem desmentir frontalmente. A aparição súbita do velho, trazendo uma caveira na mão, aponta para Hamlet. Trata-se, como o pai do príncipe de Shakespeare, de uma figura masculina mais velha, em aparição inesperada. O que Álvares de Azevedo consegue com a introdução desses elementos no relato não é um efeito trágico similar ao do modelo shakespeariano, mas a corrosão irônica desse modelo, uma vez que ele se dilui no andamento entusiasmado e vertiginoso do conjunto. Se Hamlet sustenta sua tragicidade na articulação de noções como verdade, traição, parentesco, em Azevedo essa articulação cede lugar à força da lógica da vertigem e ao imperativo da busca inconseqüente e desorientada do limite. Isso porque, como afirma Bertram, a saciedade é entediante

317

. É apenas

no impulso abismal que a experiência encontra sua razão de ser. É no processo de perdas e conquistas, levado com intensidade, sem mediações 317

A seguinte frase define de certo modo esse espírito como traço do romantismo europeu: "A loucura e a morte são preferíveis ao interminável domingo e ranço de uma forma de vida burguesa." STEINER, George. No castelo de Barba Azul. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p.28.

113

supérfluas, que Bertram constrói sua maneira de viver, sem que haja nisso qualquer meta, qualquer planejamento. A vocação para a intensidade é esteticamente indicada com uma série de recursos que conduzem a um efeito de ênfase

318

. Termos em paralelismo,

repetições de palavras, casos de redundância semântica são correntes em Noite na taverna. Em certas passagens, como a citada a seguir, é criado um efeito de crescendo, com o aumento progressivo do número de sílabas dos termos enumerados, como se se quisesse sinalizar uma respiração afoita e ofegante. "Foi uma noite de soluços e lágrimas, de choros e de esperanças, de beijos e promessas de amor, de voluptuosidade no presente e de sonhos no futuro..." (p.103) A Canção do exílio de Gonçalves Dias, paradigma do Romantismo, é um texto composto com deliberado apelo ao efeito de ênfase. A repetição do termo "mais" e a descrição exaltada da natureza fazem do Brasil um país de imagem extremamente positiva

319

. Em Bertram, a ênfase está a serviço não da

construção de uma imagem orgânica e afirmativa, mas de um continuum desregrado em busca de margens abismais. O que move Bertram não é qualquer noção ética de bem ou verdade, qualquer valor moral positivo, mas apenas o egoísmo, e a busca de prazer.

318

Conforme ARRIGUCCI JR., Davi. Achados e perdidos. São Paulo: Polis, 1979. p.132. DIAS, Gonçalves. Canção do exílio. In: ____. Obras poéticas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1944. v.1. p.21.

319

114 Sua individualidade serve como “referência última”, em função da qual as demais, sejam reais ou oníricas, podem ou não fazer sentido320. Enquanto Idéias íntimas é um texto em que o sujeito lírico está dedicado à contemplação, Bertram é um trabalho de ficção de Álvares de Azevedo em que predomina a ação. Ao observarmos os dois textos, percebemos que Azevedo fez suas criações transitarem entre a vida ativa e a vida contemplativa. Ocorre que a ação em Bertram, para pensar nos termos de Hannah Arendt

321

, nada

tem a ver com trabalho. A existência de Bertram, como a de todos os protagonistas das partes de Noite na taverna, não tem qualquer ligação com labor ou produtividade322. Está ausente dessa obra também o princípio de que a ação possa ter um valor teleológico. As relações sociais e humanas estão abandonadas à indeterminação, à casualidade e, como se observa na composição do personagem Bertram, a um impulso individualista e dionisíaco. A alusão a Baco na Noite na taverna é uma pista relevante para compreender a vocação para a melancolia na Lira dos vinte anos. De diferentes modos, os dois livros querem atingir um mesmo propósito: chegar perto de limites. Tanto a experiência dionisíaca como a condição melancólica removem o ser humano dos parâmetros da normalidade e da racionalidade reta, e atiram-no em um campo de instabilidade e indeterminação.

320

Conforme MONZANI, Luiz Roberto. Origens do discurso libertino. In: VÁRIOS. Libertinos libertários. São Paulo: Companhia das Letras / Funarte, 1996. p.209. 321 ARENDT, Hannah. A condição humana. op.cit. Cap.1. 322 Conforme SECCHIN, Antonio Carlos. Noite na taverna: a transgressão romântica. op.cit. p.182.

115 Mário Praz menciona que, para Alfred Bäumler, “o movimento dionisíaco” na Grécia antiga deveria ser chamado de “o romantismo da antigüidade”, pelas afinidades entre os dois fenômenos culturais

323

. Guardadas

as enormes diferenças entre os termos da comparação, a idéia tem interesse por suscitar o reconhecimento de analogias. O fato de encontrarmos sujeitos líricos contemplativos e delicados na Lira e um desvairado como Bertram na Noite na taverna, sob esse ponto de vista, não consistiria em contradição, pois seriam expressões complementares de um mesmo horizonte - a experiêncialimite. Em Aristóteles, a embriaguez dionisíaca (há uma referência explícita ao deus em seu texto) e o interesse sexual (associado a Afrodite) consistem em comportamentos pertinentes ao estado de exceção vivido pelo melancólico324. Julia Kristeva comenta as idéias do filósofo grego, explicando que a bile negra tem um contraponto eufórico, um avesso complementar325. A condição melancólica não se reduziria inevitavelmente à tristeza e à auto-absorção. O vinho e o sexo constituem esse contraponto, passível de aparecimento, em meio à instabilidade, rumo aos extremos, em que se encontra o melancólico. Se o excesso de bile negra pode provocar apatia, angústia e inatividade, para os gregos, pode provocar também uma exuberância, uma vontade de cantar, enfim, êxtases326.

323

PRAZ, Mário. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. op.cit. p.30. ARISTÓTELES. L`homme de génie et la mélancolie. op.cit. p.91. 325 KRISTEVA, Julia. Sol negro. op.cit. p.14. 326 TELLENBACH. La mélancolie. op.cit. p.30. 324

116 Nesse sentido, em uma perspectiva que considere as formulações tradicionais da melancolia, Noite na taverna

representa não um termo

contraditório, mas um complemento coerente, com relação à proposta estética de Lira dos vinte anos. A entrega aos brindes a Baco e a busca inconseqüente e egoísta de prazeres sexuais e experiências-limite, em Noite na taverna, consistem em manifestações de um dionisismo compatível com a instabilidade de comportamento da melancolia. Embora os dois livros sejam muito diferentes, guardam este ponto de contato. Além disso, cabe considerar que Dionísio, de acordo com Vernant, guarda uma dualidade e, de acordo com Detienne, é um deus capaz de assumir várias formas. Essas caracterizações estão em sintonia com as reflexões sobre a melancolia, que a associam a dualismo e polimorfia; por sua vez, estas apontam para o que a fortuna crítica diz de Álvares de Azevedo dotado de “dois lados antagônicos”, de uma “mistura de tintas”, “variável e múltiplo”. Por essas razões, é possível interpretar a presença das referências ao poder das bebidas alcoólicas na Lira

não como estranhas mas,

contrariamente, como imagens pertinentes ao fio condutor do livro. As manifestações de interesse pelo cognac e pelo vinho estão de acordo com a idéia, central para compreender os narradores em Noite na taverna, de que se abandone o equilíbrio, e se perceba a realidade, e a si mesmo, de maneira perturbada, oscilando entre o devaneio e o reconhecimento do mundo externo.

117

3.2.3. Ócio, dinheiro e miséria

Papel-moeda também é dinheiro. Com ele comprei esta tinta e esta pena, o charuto que estou fumando e o almoço que começo a digerir. Machado de Assis, Memorial de Aires

Existem no final da segunda parte do livro Lira dos vinte anos alguns textos que chamam a atenção pela temática. Um deles é o soneto que inicia com o verso Ao sol do meio dia eu vi dormindo (p.198). O poema traz uma relação de várias figuras masculinas - um marinheiro, um espanhol, um pobretão - que têm em comum a indolência. Após descrever o comportamento das figuras, o sujeito lírico qualifica a indolência de venturosa. Eugênio Gomes registra, em um de seus estudos sobre Álvares de Azevedo, que ele compartilha com outros autores um interesse pela preguiça327. Um caso exemplar dessa posição é o poema de Bernardo Guimarães, Hino à preguiça, em que encontramos a passagem seguinte. Meiga preguiça, velha amiga minha, Recebe-me em teus braços, E para o quente, conchegado leito Vem dirigir meus passos. Ou, se te apraz, na rede sonolenta, À sombra do arvoredo, Vamos dormir ao som d`água, que jorra 328 Do próximo rochedo.

327

GOMES, Eugênio. Álvares de Azevedo. op.cit. p.18. GUIMARÃES, Bernardo. Hino à preguiça. In: ___. Poesia erótica e satírica. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p.133. 328

118 De acordo com Walter Benjamin, na tradição, existe uma conexão direta entre a indolência e a melancolia. Saturno, lento em sua órbita, provocaria apatia e lentidão nos homens. Isso explicaria o fato de os melancólicos serem indecisos329. A preguiça seria mais uma das manifestações envolvidas na desordem mental ou, como formula Azevedo, mente errante, que caracteriza a condição melancólica. A valorização do ócio - representada também pelo discurso de Puff, em Boêmios (p.158) - corresponde, naturalmente, a uma oposição frontal à lógica do trabalho. Não há em lugar algum da produção de Azevedo pensamento que contradiga essa posição. A indolência representa um modo de viver distanciado das agruras do sistema econômico instituído330. O poema Um mancebo no jogo se descora (p.197) associa o temperamento introspectivo à bebedeira, ao jogo, à zombaria e outras atitudes de "moços perdidos". Esses poemas apontam para uma conexão íntima entre ócio, contentamento e melancolia. É como se a situação marginal de quem não se submete à ordem sócio-econômica convencional, preferindo a indolência, despertasse um fascínio envolvente. Esse problema se vincula com outro: a relação entre a literatura e o mercado, discutida no final da segunda parte da Lira dos vinte anos. Em O Editor (p.207-9), o sujeito lírico abala qualquer concepção mítica ou idealista do

329

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. op.cit. p.177-8. Isso não se reduz a uma postura pessoal. Trata-se de expressão de um problema de escala histórica. O Brasil era, na primeira metade do século XIX, avesso a uma lógica humanista de trabalho. Enquanto a elite oligárquica vivia basicamente da exploração de terras, as atividades braçais pesadas eram atribuídas aos escravos. Não existia algo como um mercado de trabalho aberto à livre iniciativa. Conforme BOSI, Alfredo. Formações ideológicas na cultura brasileira. Estudos avançados. São Paulo: IEA-USP, set/dez 330

119 que seja o poeta, propondo que este se preocupa intensamente com dinheiro. De acordo com o poema, o dinheiro é sol, é Deus, é mais santo do que os Papas. No poema seguinte, intitulado Dinheiro (p.210), o sujeito lírico elabora a idéia de que, para fazer muitas coisas, como ter uma cova para morrer ou ocupar cargo político, é preciso ter dinheiro. Com isso fica clara a compreensão de Álvares de Azevedo de que a literatura consistia numa mercadoria, e que o dinheiro ocupa uma posição central na existência331. Esse discurso deve ser associado ao problema do ócio. Ao discutir dentro de si suas relações com o mercado, a poesia como que busca definir sua posição no interior do sistema das relações econômicas. Se se pensa em Um mancebo no jogo se descora, essa posição é a da identificação do poeta com os ociosos e os marginais. O poema Minha desgraça (p.211), que encerra a segunda parte do livro, de certa maneira, sintetiza o problema, ao dizer que "o mundo é um lodaçal perdido / cujo sol (quem m`o dera) é o dinheiro..." e que a desgraça do poeta "é ter para escrever todo um poema / e não ter um vintém para uma vela". Tendo como centro o dinheiro, a realidade se organiza de tal maneira que se assemelha a um lodaçal (sujo, repulsivo). Trata-se de uma crítica sarcástica à sociedade governada pelas leis do capital. A desgraça do "não ter vintém", ou seja, da pobreza, é um problema que dificulta a composição poética.

1995. v.9. n.25. Em especial, p.286-7. Embora o elogio da preguiça também ocorra na literatura européia, ao ingressar no universo brasileiro, ele acaba apontando para uma problemática do contexto social. 331 Na mitologia romana, curiosamente, Saturno é considerado guardião das riquezas e inventor da moedagem. Conforme KLIBANSKY, PANOFSKY & SAXL. Saturne et la mélancolie. op.cit. p.212. Com relação a isso, é modelar a figura “Saturno contando dinheiro”, sem autor definido, de 1444, exposta no mesmo livro, à p.325.

120 Nas primeiras estrofes, o sujeito lírico apresenta problemas (ligados ao amor, à existência) que são desqualificados, pois não constituem a "desgraça" do sujeito. Quando este formula a definição da desgraça ao final, corrói o padrão poético romântico mais corrente, que explora problemas amorosos e existenciais. Azevedo aponta para a posição de prioridade do problema do dinheiro com relação aos demais. Esse senso de materialidade destoa frontalmente do padrão idealista predominante na produção poética da segunda fase do romantismo. Cabe lembrar que, na parte III de Spleen e charutos, o sujeito lírico afirma:

Eu durmo e vivo ao sol como um cigano, Fumando meu cigarro vaporoso; Nas noites de verão namoro estrelas; Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso! (p.188)

De acordo com esses versos, a condição de indigência é algo positivo. A palavra ditoso parece querer subtrair as propriedades semânticas negativas do atributo pobre. Essa subtração é plausível dentro de uma perspectiva irônica, para a qual o Eu é fundante e a realidade concreta não constitui interesse. O sujeito escreve rimas nas paredes (p.189); esse modo de se manifestar como poeta, naturalmente, nada tem a ver com ingresso em mercado ou interesse pela aceitação por parte de um público culto. Para o poeta vagabundo, a autonomia está relacionada à auto-estima, e a errância o leva a ver “as longas ruas” como “palácio”, e a declarar que “quem vive de amor não tem pobreza”. Esse elogio da indolência, da “preguiça” comparada à “mulher por quem

121 suspiro”, leva a crer que a falta de dinheiro é considerada uma sorte pela razão de livrar o sujeito de responsabilidades e compromissos. No conjunto, os textos mencionados implicam a necessidade de uma leitura baudelairiana da poesia de Azevedo. A descoberta do peso para a criação da relação entre a literatura e o mundo do capital, que Walter Benjamin analisou em Baudelaire, aparece de maneira singular em Álvares de Azevedo. Benjamin, nos aforismos de Parque Central, afirma que o poeta francês estava consciente da lógica de mercado, e aprendeu que “na obra de arte se expressa (...) a forma da mercadoria”, uma vez que a literatura passou a integrar a economia de mercado, tal como a forjou o desenvolvimento industrial do século XIX

332

. Embora a situação da economia brasileira, no período, tenha

sido diferente da européia, Azevedo também formulou conscientemente o problema da sujeição do poeta às contingências da sociedade capitalista. Como mostram O Editor e Dinheiro, as imagens escolhidas por Azevedo sol, Deus, santo - atribuem ao dinheiro um traço de imponência fortemente autoritário, como se fosse uma força centralizadora. Em Minha desgraça, o lamento pela falta de dinheiro indica não uma crítica ao mundo do capital, mas à exclusão da poesia deste mundo. Essa força centralizadora é descrita como satânica em O Editor (p.208). O sujeito lírico é enfático ao caracterizar como mentira a idéia de que “a poesia engeita, odeia/ as moedinhas douradas”. Em Dinheiro, o mundo é

332

BENJAMIN, Walter. Parque central. In: KOTHE, Flavio, org. Walter Benjamin. São Paulo: Ática, 1985. op.cit. Em especial p.130, 139, 150.

122 caracterizado como “festim” do qual só participa quem tem “as louras” (p.210)333. É criada, com a atitude irônica, uma representação paradoxal. O dinheiro é “Deus indefinível”, e é também criação satânica; é comparado à tentação da maçã perante Eva no Gênesis, como um símbolo do Mal, mas é também “o Deus de Bocage”; é adorado pelos poetas, mas aquele que se apresenta em Minha desgraça não tem um vintém. A atitude irônica, para a qual prevalece a negatividade, acumula imagens positivas e negativas. O ponto de vista não faz simplesmente um elogio do capital, nem uma crítica anárquica à sua existência. Ele busca representar de maneira contraditória a relação entre os poetas e o dinheiro, de modo que essa relação se exponha como um impasse insolúvel. Em um contexto em que os escritores são obrigados a encarar uma nova posição social, distante do mecenato que os apoiava no período aristocrático

334

, esse impasse pode representar a inadequação entre a

realidade imposta aos poetas e suas expectativas. Em Álvares de Azevedo, essas expectativas não são passíveis de satisfação no mundo do trabalho, por isso se deslocam, desembocando no fascínio pelo ócio. Encontramos a formulação dessa idéia, por exemplo, em O poema do

333

A esse respeito, cabe lembrar uma fala de Cláudius Hermann, em Noite na taverna, em que o personagem comenta sua relação com o dinheiro: “(...) fortunas, aspirações, a vida mesma vão-se na rapidez de uma corrida, onde todo esse complexo de misérias e desejos, de crimes e virtudes que se chama a existência se joga numa parelha de cavalos.” AZEVEDO, Álvares de. Obras completas.op.cit. v.2. p.131. A palavra “existência”, no caso, se refere ao patrimônio financeiro acumulado, perdido no jogo de apostas. 334 Conforme CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. op. cit. p.34.

123 frade: “Meu herói é um moço preguiçoso”335. A vida dos “moços perdidos”, guardando uma mistura de euforia e melancolia, é um modelo para o poeta. No poema Um mancebo no jogo se descora, depois de citar vários comportamentos de homens que não se enquadram no mundo do trabalho, o sujeito lírico pede que não lhe proíbam fumar o charuto, pois isso é uma espécie de bálsamo para ele (p.197). O charuto faz parte de um “retiro” em que cultiva “o merencório luto”. A ligação entre fumo e introversão rende para Azevedo o título de um conjunto de poemas - Spleen e charutos (p.186-193). O sujeito lírico, na parte III, Vagabundo, vive “como um cigano, fumando meu cigarro vaporoso” (p.188). A mulher amada, na parte II, é “leviana e bela / como a leve fumaça de um charuto”(p.188). Na parte V deste conjunto, Luar de verão, a imagem do “charuto”, rimando com “luto”, é associada à natureza contemplada (p.191). Embora o fumo não seja tema central dos poemas, o título indica que eles estejam relacionados ao tipo de pensamento que o fumo consegue motivar. Esse pensamento oscila entre a contemplação do mundo externo (partes I e V), a auto-contemplação (parte III), a manifestação do desejo (partes II e IV) e a expectativa de morte (parte VI). Portanto, o agrupamento de textos, embora esteja unificado pela opção formal regular (quartetos, com rimas abcb), é heterogêneo; o pensamento conduzido por spleen e charutos é dispersivo. Nesse ponto, ele é análogo ao que move Idéias íntimas. Retomando Um mancebo..., cabe observar que a melancolia do fumante toma parte de uma lista de comportamentos que inclui a bebedeira, o jogo e a 335

Trata-se da estrofe XXIV, do Canto primeiro. AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. v.1. p.340.

124 zombaria. Ela é uma atitude, entre outras, de quem está distante do trabalho, interessado na própria satisfação. Em Ao sol do meio dia eu vi dormindo, o marinheiro havia bebido e roncava, o Espanhol fumava com gosto, e um “pobretão” ficava “enlevado tocando uma rabeca”. O interesse com que o sujeito lírico acompanha essas figuras deve ser notado, pois o levará à exclamação “Venturosa indolência!”(p.198). A bebedeira, o fumo e a música são observados como formas de prazer. Essa maneira de pensar será levada ao extremo em Terza rima, em que o sujeito comenta seu fascínio pelo cigarro, seu prazer em contemplar chama, cinza e fumaça, e afirma ser “o que há de mais doce nesta vida” seu charuto, indicado como interlocutor do poema 336

(p.203). O protagonista de Macário afirma: “amo o fumo”

; e na Noite na

taverna, o fumo é também idealizado 337. As referências ambíguas ao dinheiro e as manifestações de fascínio pelo ócio estão associadas. Trata-se de uma perspectiva em que a inadequação ao mundo real, que é o mundo do capital, é tolerada pela postura irônica, e a opção que se apresenta é valorizar os homens cuja vida não gira em torno do opressor mundo do trabalho, os “moços perdidos”, e seus hábitos, como beber e fumar338. Esses hábitos, como mostra claramente a parte XIV de Idéias íntimas (p.155-6), estão ligados a uma forma de vida em que os devaneios construídos pelo sujeito são fontes de satisfação, ainda que transitórias e apenas

336 337

Idem, v.2. p.17. Idem, v.2. p.89.

125 aparentes, e a realidade externa é vista como negativa. Há coerência entre os poemas examinados, no sentido de que se opõem o devaneio e o ócio à realidade externa, que tem necessariamente algo de frustrante. Na obra de Azevedo, a poesia está para a indolência, assim como o lodaçal está para a realidade da atividade econômica. O introvertido melancólico e o embriagado estão excluídos do mercado. A miséria inocente é o traço mais importante do poeta, de acordo com Um cadáver de poeta, que abre a segunda parte da Lira dos vinte anos (p. 130-45). Composto em uma mistura de gêneros, o texto tem propriedades líricas e narrativas, e guarda vários traços do andamento do drama. Trata-se da estória de um defunto: Tancredo, que em vida fora trovador, tem seu corpo abandonado. O poema apresenta reações de passantes ao encontro com o corpo, dando atenção em particular a um personagem denominado “Desconhecido”. A parte I (p.130-1) apresenta um lamento, opondo o “sol da mocidade” à “treva maldita” da morte. É dito que a causa da morte foi fome, o que indica que, como trovador, Tancredo não conseguia manter a própria subsistência. Esse assunto, assim como abre, fecha a segunda parte da Lira. Minha desgraça constitui uma referência cíclica, com relação ao início da segunda parte do livro, uma vez que em Um cadáver de poeta se indica que o trovador defunto morreu de fome, e que o “Desconhecido” havia sido trovador e se convertera

338

em

mendigo.

Trata-se

de,

nos

dois

casos,

caracterizar

Essa perspectiva em si mesma é anticapitalista, pelo desencantamento proposto com relação ao mundo da reificação. Conforme LOWY, Michael & SAYRE, Robert. Revolta e melancolia. Petrópolis: Vozes,

126 negativamente a condição de poeta em razão de uma situação de indigência, agravada no poema de abertura pela humilhação social. A parte II (p. 131-5) comenta a condição de abandono do cadáver do poeta, e coloca a pergunta: “De que vale um poeta” (p.132)? O mal-estar resultante do desprezo dedicado ao cadáver leva o sujeito lírico a clamar: “queimem-se os versos” (p.133)! Esse comportamento anárquico, no contexto, deriva de um esgotamento de qualquer crença na aceitação social dos poetas. Embora em Boêmios apareça a idéia de que os poetas mereçam um céu glorioso (p.158), aqui prevalece a compreensão de que a poesia é algo negativo, alheio aos valores institucionais, como está claro nos comentários do Bispo na parte IV; os poetas são por ele denominados “maldita gente”(p.138). Ainda na parte II, cabe observar a definição proposta de que poesia é loucura. A palavra “loucura” (p.132) aqui não é apresentada apenas como ousadia, mas pejorativamente, como “defeito no cérebro”. Mais adiante, surge outro comentário ácido: a poesia tem valor de “dormideira”(p.134; isto remete à cena de Boêmios em que Puff afirma ter sono ao escutar a declamação de um poema - p.162). Ocorre que o sujeito lírico já havia demonstrado anteriormente profunda empatia pelo trovador defunto. Essas afirmações são ressonâncias do ceticismo com relação ao reconhecimento dos poetas. Nesse contexto, elas soam como sarcasmo amargo, assim como a frase “o mundo não avança por cantigas”(p.133). A contradição entre a valorização do trovador e a enunciação de juízos negativos sobre a poesia tem efeito ambíguo. O paradoxo constituído pelo fato

1995. p.37.

127 de se tratar de um poema que prega o fim da poesia - em suma, de um discurso contrário a si mesmo - não é resolvido até o final, pois na parte VIII, entre os comentários finais, a estória relatada é referida como “poema de esperança e desventura”(p.145), ressaltando-se seu caráter paradoxal. O sujeito lírico não opta por uma visão otimista ou pessimista, mantendo nesse verso a dualidade anteriormente exposta. Porém, essa ausência de solução do paradoxo é em si mesma negativa. A última imagem do texto é de que as flores da “extrema inspiração” estão murchas. A convergência dos dois adjetivos - “extrema”, termo que acentua o traço de intensidade, e “murchas”, que contraria o mesmo traço - insiste na sensação de paradoxo, ao mesmo tempo que no tom de lamento colocado no início. A perda irreversível da capacidade de criação poética, em razão da morte, é um tema que suscita um tom melancólico. Retomando ainda a parte II, é preciso notar a presença das figuras de Deus e Satã (p.133-5). O sujeito pergunta sobre a origem do poeta, fazendo uma alusão bíblica, no verso “Amassaste no lodo o peito humano?” (p.134). O “lodo” aqui tem conotação extremamente negativa; trata-se de duvidar de que o relato sobre a origem de Adão se aplicasse ao caso dos poetas, em razão de sua inferioridade de “verme infame”. A alusão a Satã, que aparece também em Idéias íntimas, aqui se associa a essa espécie de “origem errada” dos poetas. O Bispo, na parte IV, esbraveja que as almas dos poetas devem ser levadas pelo Diabo (p.138), isto é, merecem o inferno. A lua que “derrama aos corações melancolia” na parte V (p.139) está associada à atmosfera de sofrimento inconformado criada pelo sujeito lírico e

128 aumentada pelas falas do “Desconhecido”. Numa delas, dirigida a Elfrida, diz que Tancredo morrera de fome, “salpicaram de lodo a face dele” e “talvez cuspissem” em seu rosto (p.141). Ele insiste nas imagens de inocência de Tancredo - “foi um anjo”, “morreu sorrindo como as virgens”. O trovador é marcado pelo abandono miserável e pelo passado de inocência. Essa combinação resulta não apenas no enobrecimento da perda, mas também na condenação implícita da sociedade, cujos maus tratos ao trovador são constantes e injustos. O próprio “Desconhecido” se identifica mais fortemente com Tancredo ao dizer, na parte V, que “era um trovador”, e agora é um mendigo (p.143). Depois de entoar um canto fúnebre, o personagem vai também morrer, na parte VI. E então o sujeito lírico faz uma revelação: quando 339

o moço é despido, descobre-se que seu corpo é de mulher (p.144)

.

O poema consiste em um lamento de uma perda, o que o vincula diretamente às motivações básicas para a melancolia, para Constantinus Africanus340 e Freud341. A perda não superada leva o “Desconhecido” a comentar o fim miserável do trovador; com a morte do primeiro, a experiência de perda inicial se duplica. O poema parece querer apontar para uma caracterização ambígua do poeta - ao mesmo tempo que condenado, é inocente; desprezado pela sociedade, é objeto de afeto intenso pelo “Desconhecido”; abandonado como irrelevante, é marcado por “mistérios” que com ele são enterrados. A

339

Nesse ponto, o relato aponta para a estória de Angela, mulher que se traveste de homem, em Noite na taverna, e guarda uma analogia com a estória de Diadorim. Conforme ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978. 12 ed. 340 CONSTANTINO EL AFRICANO. De melancholia. op.cit. p.21.

129 ambigüidade sexual do “Desconhecido” acentua a dificuldade de compreender qual é exatamente o ponto de vista a partir do qual devemos pensar e sentir a perda de um poeta. A forma altamente irregular da composição do texto, bem como o problema já levantado de encontrarmos no sujeito lírico empatia com o trovador e niilismo quanto à poesia, contribuem para uma impressão de instabilidade da perspectiva, que deixa ao final o leitor sem certezas quanto à lógica que governa o modo através do qual teve acesso ao relato. As duplicidades e a irregularidade de condução da exposição apontam para a tradição, que associa o dualismo e o pensamento desordenado à condição melancólica. O fato de Álvares de Azevedo descrever nesse texto a situação do poeta em uma perspectiva pautada pela melancolia remete a uma passagem de Macário, em que o protagonista estabelece uma conexão direta entre a condição melancólica e o fazer poético. Ser melancólico e ser poeta, nesse caso, consistem em uma experiência comum: “Às vezes quando a mente se embebe na melancolia, quando me passam n`alma sonhos de homem que não dorme, e que chamam poesia (...)”342.

3.2.4. Homem humano Como não amar o chão em que se pisa? Clarice Lispector, O búfalo

No romantismo alemão, as reflexões em teoria estética envolvem diferenças

341

de

posicionamento

importantes,

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. op.cit. p.132.

constituindo

um

contexto

130 heterogêneo e dinâmico de difusão de idéias. Cabe observar um caso, a oposição entre duas obras fundamentais: Fragmentos do Athenaeum Friedrich Schlegel, de 1798

de

343

, e A relação entre as artes figurativas e a

natureza de Friedrich Schelling, de 1807 344. O fragmento é tema de uma série de aforismos do Athenaeum, entre os quais o 24, o 77 e o 206. Schlegel propõe a fragmentação como princípio tanto para a arte como para a reflexão especulativa, e essa afinidade está ligada ao fato de que defende a integração entre os dois modos de pensamento. Seu próprio texto é já demonstração do que defende, pois tem como modo de exposição o aforismo. Entre as proposições numeradas não se estabelece uma linha de continuidade rigorosa. O acúmulo de aforismos referentes a temas diversos faz com que se criem múltiplas possibilidades de delimitação de contextos de leitura para cada um deles, de modo que o efeito geral é labiríntico. Schlegel se afasta da tradição literária que defende a classificação de obras em três gêneros. Rompe também com o afastamento entre pensamento filosófico e produção poética. Nesses dois pontos, Schlegel contraria princípios que

remontam

a

determinações

especificamente nos livros III e X

contidas

na

República

de

Platão,

345

. Trata-se de uma ruptura com a

expectativa de formas puras.

342

AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. v.2. p.71. SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos do Athenaeum. In: LOBO, Luiza, org. Teorias poéticas do romantismo. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1987. p.50-72. 344 SCHELLING, Friedrich. La relación de las artes figurativas con la naturaleza. Buenos Aires, Aguilar, 1959. (Biblioteca de Iniciación Filosófica, 13) 345 PLATÃO. A República. Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1990. 6 ed. 343

131 Para o autor, a poesia romântica deveria reunir poesia, filosofia e retórica, "misturar e fundir poesia e prosa, inspiração e crítica", e tornar "a sociedade e a vida poéticas"

346

. Uma filosofia da poesia chegaria à união total entre poesia

e filosofia, e entre poesia e práxis347 . O trabalho de Schlegel pode ser lido em contraste com o de Schelling, que é expressivo de uma tendência estética incompatível com a valorização do conceito de fragmentação. A teoria que elabora é voltada para a representação como totalidade. A estética de Schelling é constituída com especulações que envolvem categorias éticas e religiosas. É na dimensão da totalidade da obra que o bem se torna manifesto. Os conteúdos negativos são assimilados, de modo que fique seguro que o bem puro é o fundamento e o conteúdo de toda a criação348. A natureza funciona de modo que se cumpre uma espécie de racionalidade. De maneira não voluntária ou consciente, seres vivos e estrelas se movem e trabalham de maneira rigorosamente ponderada, de tal modo que se supõe haver "um espírito ultrapoderoso" responsável pela eficiência de uma ordem tão complexa. Em outras palavras, o que Schelling defende é a presença do desígnio divino no comando das mais minuciosas ocorrências perceptíveis ao homem. Está abolida a possibilidade de pensar o universo como regido por forças do acaso. Uma "aritmética e uma geometria sublimes" são, para o filósofo, demonstrações plenas do substrato transcendental que deve determinar o andamento da natureza. A defesa da idéia de que a natureza

346 347

Fragmento 116. SCHLEGEL, F. Fragmentos do Athenaeum. op.cit. p. 55-6. Fragmento 252. Idem, p. 63.

132 segue uma racionalidade ordenadora faz parte da argumentação de Schelling de que a arte deve representar a harmonia que está presente na natureza. Ele reconhece que a natureza abriga uma convivência de contrários; na natureza o perfeito está misturado com o imperfeito, o belo com o feio349. Para ele, a arte não deve, por isso, representá-la a não ser de maneira idealizada, de modo que expresse conceitos espirituais350. Representar uma natureza em que desordem e negatividade prevalecessem significaria, para Schelling, representá-la de maneira indigna. A arte deve mostrar com esplendor "uma natureza na plenitude de sua força". Para fazer com que a arte possa assimilar o sofrimento humano e, mesmo assim, cumprir a prerrogativa de representar a natureza de maneira digna, o seu raciocínio estabelece mediações que articulam conceitos positivos. A reflexão de Schelling aponta para um conceito de beleza inteiramente dependente da aceitação da premissa de que Deus não apenas ordena a natureza de maneira harmônica, como também faz com que a própria arte represente a natureza dessa maneira. Em outras palavras, a beleza está associada à manifestação de Deus e à idéia de uma harmonia total do mundo351. As categorias negativas surgem na arte, assim, sendo submetidas a determinações positivas. "Qualidades inferiores ou de menor importância estão subordinadas às superiores, e todas, finalmente, a uma só, mais alta",

348

SCHELLING, Friedrich. La relación de las artes figurativas con la naturaleza. op.cit. p.64. Idem, p.33. 350 Idem, p.34. 351 Idem, p.39. 349

133 subsistindo pela essência e força íntima que lhes é inerente352. A transcendência divina sustenta a garantia da inferioridade dos elementos negativos. Schelling diz que toda oposição não é mais que aparente, e o bem puro é o fundamento e o conteúdo de toda a criação353. Isto é, conseguida a conciliação final, o mal se mostra como componente necessário à expressão do bem. Logo depois de elaborar a idéia de uma harmonia inerente à natureza354, ele propõe que a arte deve preservar o homem "do vazio, da debilidade, da nulidade interior, esperando que tente alcançar a beleza por uma sábia harmonia"

355

.

Isto é, trata-se de afastar a negatividade da condição humana, fazendo com que a pura positividade prevaleça. O sujeito humano deve ser representado como caracterizado pela supremacia do bem e da harmonia com relação à negatividade. A sustentação do trabalho de Schelling depende de uma premissa fundamental, que é a aceitação dos desígnios divinos. Já Schlegel faz uma leitura crítica do ideário do cristianismo, através de algumas afirmações difusas que neutralizam qualquer possibilidade de reverência a dogmas cristãos. O aforismo 12 trata a Bíblia como "livro banal", "cuja única falha" consiste em "ter-se tornado a Bíblia"356. No aforismo 232, lê-se: "Deus não é simplesmente uma idéia, é simultaneamente uma coisa, como são todas as

352

Idem, p.51. Idem, p.64. 354 Idem, p.47. 355 Idem, p.49. 356 SCHLEGEL, F. Fragmentos do Athenaeum. op.cit. p.50. 353

134 idéias que são pura imaginação"357. Deus é abordado como construção da consciência humana, e não como entidade transcendental autônoma, como o faz Schelling. O aforismo 262 estabelece uma continuidade entre a potência divina e a condição humana, ao expor que "Tornar-se Deus, ser humano, cultivar-se são expressões com o mesmo significado"358. Enquanto em Schelling existe a preocupação em fazer com que forças antagônicas sejam conduzidas a uma conciliação, em Schlegel se propõe a valorização de misturas. A reunião de elementos estranhos entre si interessa a Schlegel não como mediação para o reconhecimento de uma totalidade una, mas como explicitação de possibilidades de pensar e criar que se distingam dos modos e códigos canonizados. Em seu fragmento 432, Schlegel defende que se evite a monotonia em obras através da diversidade: "alterar o colorido, o tom e o estilo"359 - não por acaso, mas intencionalmente, por interesse de construção formal. Ora, isto é o oposto do que quer Schelling. Se em A relação entre as artes figurativas e a natureza é proposto que a arte deve representar a harmonia de uma natureza tida como dotada de uma ordem divina, em Fragmentos do Athenaeum se defende a desordem deliberadamente composta. Cabe lembrar que, em um de seus aforismos, Novalis expõe uma compreensão da relação entre o homem e Deus, que aponta para o vínculo direto entre a ação humana e a percepção do Absoluto. Ele diz: “Onde o homem coloca a sua realidade, o que ele fixa, isso é o seu Deus, o seu Mundo,

357 358

Idem, p.61. Idem, p. 64.

135 o seu Tudo”.360 Trata-se de uma proposição que tem em comum com as idéias de Schlegel, expostas em seus Fragmentos do Athenaeum, uma ruptura deliberada com a tradição cristã. Em suma, entre as proposições estéticas de Schelling e Schlegel, as diferenças não se reduzem aos critérios de entendimento e valorização da forma artística, mas se estendem ao seu entendimento da representação da condição humana e da idéia de Deus. O primeiro pauta sua compreensão na noção de harmonia, o segundo propõe uma filosofia fundada na desordem. O fato de que Schlegel dá impulso à admiração da arte fragmentária pode ser pensado como manifestação de uma defesa da idéia de que a desordem esteja na base da constituição humana. Em Álvares de Azevedo, encontramos tanto o interesse pela fé em Deus como menções ao diabo. Os pedidos de perdão a Deus em No túmulo de meu amigo João Batista da Silva Pereira Júnior entram em confronto com a representação envolvente de Satã em Macário. Observada em seu conjunto, a produção de Álvares de Azevedo contém profundas oscilações quanto ao modo de focalizar elementos do cristianismo. Essas oscilações constituem uma tensão entre a reverência ao Absoluto e a deliberada ruptura com os valores cristãos. Essa tensão cria, no conjunto, a impressão de se estar constantemente pondo em questão o limite que separa o sagrado e o profano, o bem e o mal. Em Macário, Azevedo apresenta Satã

359

Idem, p.71. NOVALIS. Fragmentos. Lisboa: Assírio & Alvim, 1992. p.19.Lowy e Sayre comentam a importância de Novalis na ruptura romântica com o dogmatismo tradicional, à p.52 de Revolta e melancolia. op.cit. 360

136 afirmando: “É uma propensão singular a do homem pelas ruínas”361; e “o 362

mundo é do diabo”

. Familiar ao sujeito lírico de Idéias íntimas

à “origem errada” dos poetas em Um cadáver de poeta

364

363

, associado

e ao capital em O

editor365, o diabo ganha voz em Macário, para manifestar seu poder e comentar a sujeição do homem à corrosão. A figuração do diabólico, desde suas origens medievais, se manifesta como desvio, anormalidade ou, em suma, desordem

366

. Em Álvares de Azevedo, o diabo está associado a “forças

que arrastam para os impulsos `inferiores’”367. Ele surge acompanhando um Macário com traços melancólicos, que se embriaga, fala de maneira paradoxal e tem vontade de morrer. Na produção de Álvares de Azevedo, encontramos idéias heréticas e satânicas, intencionalmente avessas à doutrina cristã tradicional. Cabe registrar três exemplos, nenhum deles pertencente à Lira dos vinte anos. No quinto canto de O poema do frade, na estrofe XXI, o sujeito lírico diz: “- Creio que vou dizer alguma asneira... - / Como o nome de Deus à bebedeira!”. Em um trecho de Macário, o protagonista relata um sonho herético em que ouvia uma voz que dizia: “- Cristo, sê maldito! Glória, três vezes glória ao anjo do

361

AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. v.2. p.31. Idem, p.58. 363 AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. v.1. p.155. 364 Idem, p.135. 365 Idem, p.208. 366 NOGUEIRA, Carlos Roberto. O diabo no imaginário cristão. São Paulo: Ática, l986. Ver as convenções de reconhecimento do demoníaco, ps.49-52. Cabe registrar que, em um estudo sobre José de Anchieta, Alfredo Bosi focaliza a conexão entre a figura do demônio e a representação de um mundo desordenado. Cf. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p.77. 367 CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. op.cit. p.14. Cabe registrar que, na tradição, a figura do diabo está associada à melancolia (Conforme AZOUVI, François. A peste, a melancolia e o diabo. op.cit. p.101 e 104.) e, no romantismo alemão, à ironia (Conforme ROSENFELD, Anatol. Texto/contexto. p.161.). 362

137 mal! E as estrelas fugiam chorando, derramando suas lágrimas de fogo... E uma figura amarelenta beijava a criação na fronte, - e esse beijo deixava uma nódoa eterna...” Em um diálogo na Noite na taverna, o personagem Johann, em uma postura contraditória, emite comentários referentes à sua crença - “... do terror é que vem a crença em Deus! - Crer nele como a utopia do bem absoluto, o sol da luz e do amor, muito bem! Mas se entendeis por ele os ídolos que os homens erguem banhados de sangue, e o fanatismo beija em sua inanimação de mármore de há cinco mil anos! não creio nele!” - e, logo depois, afirma serem a respeito das “verdades religiosas” da Bíblia: “miséria! miséria! três vezes miséria! Tudo aquilo falso - mentiram como as miragens do deserto”.

368

Por outro lado, encontramos em Álvares de Azevedo também manifestações de devoção e respeito pela doutrina cristã. Dois casos são Panteísmo, na terceira parte da Lira dos vinte anos, e Ao meu amigo J.F. Moreira no dia do enterro de seu irmão, de Poesias diversas. No primeiro, encontramos versos como “E Deus! - eu creio nele como a alma / que pensa e ama (...)” (v.43/4) e “Filho de amor e Deus, eu amo e creio!” (v.81).

No segundo, lê-se uma

declaração franca de religiosidade: Creiamos, sim, ao menos para a vida Não mergulhar-se numa noite escura... E não enlouquecer... Utopia ou verdade, a alma perdida Precisa de uma idéia eterna e pura 369 - Deus e Céu... para crer!

368 369

AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. v.1. p. 401. v.2. p.41 e 91-2. AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. v.1. 322.

138 A produção de Álvares de Azevedo interioriza, de maneira assistemática, tanto elementos hostis à doutrina cristã, como idéias com ela compatíveis. Em termos estéticos, isso corresponde a uma mistura contraditória de teses em circulação na época, atribuídas a Schelling e Schlegel. A diversidade formal dos trabalhos do poeta brasileiro, nesse sentido, estaria de acordo com essa mistura. Azevedo ora propõe representações idealizadas do mundo, ora dissolve toda idealização em negatividade, em uma perspectiva irônica. Ora fragmenta textos e mistura gêneros, ao gosto schlegeliano, ora procura a harmonia do conjunto, para um leitor de interesse oposto. Nesse sentido, é possível admitir, à luz dos pensadores alemães, uma articulação entre formas e temas. A diversidade de modos de representação poética - ordenados e fragmentários - está associada à variação de idéias quanto à condição humana e à religiosidade. O embate interno entre pontos de vista diversos motiva um interesse constante pela representação de situações da existência em que não se tem certeza se o ser humano é uma coisa, ou é outra, se se define ou não, se se compreende ou não, caindo em uma fronteira de territórios. Há uma passagem da apresentação de Macário em que se lê: “É difícil marcar o lugar onde pára o homem e começa o animal, onde cessa a alma e 370

começa o instinto”

.

Para definir a condição humana, seria necessário

estabelecer limites claros, para distinguir o que é propriamente humano do não humano. De acordo com a frase, o limite que diferencia a condição humana da

139 animalidade é impreciso. O instinto aproxima o homem de outros animais, ao passo que ter uma alma é um atributo especificamente humano. No romantismo, é desenvolvida a intenção de abandonar parâmetros restritivos e padronizados de definição da existência, de modo “que transcendêssemos os limites da individualidade”371. Tzvetan Todorov observou a presença, em Edgar Allan Poe e outros autores, de uma “experiência dos limites”372. Intencionalmente, escritores se dedicam a explorar situações em que se põe à prova o conceito de condição humana, através da suspensão de limites convencionais na existência

373

.

Em Azevedo é elaborada de diferentes maneiras a busca de situaçõeslimite, como se estivesse em causa avaliar as possibilidades de reconhecer e mesmo flexibilizar o limite que distingue o humano do inumano - da matéria morta, do animal, do divino. As representações de necrofilia e incesto em Noite na taverna, a divinização de mulheres amadas em poemas, e a suposição de o sujeito lírico “ser Deus” em Malva-maçã374 são manifestações dessa busca. No caso do livro de prosa, o tema foi avaliado em detalhe por Antonio Candido, que empregou o conceito de “experiência-limite” para dar conta de situações como a antropofagia do personagem Bertram375, e também por Antonio Carlos Secchin, que afirmou que o romantismo “cultiva o jogo dos extremos, julgando que 370

somente

as

situações-limite

dinamizam

a

existência”376.

Essas

Idem, v.2. p.5. WELLEK, René. O conceito de romantismo em história literária. In: ____. Conceitos de crítica. p.170. 372 TODOROV. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975. p.54. 373 Idem, p.121. 374 Conforme poema em anexo, à p. 290. 375 CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. op.cit. p.17. 376 SECCHIN, Antonio Carlos. Noite na taverna: a transgressão romântica. op.cit. p.176. 371

140 formulações são afins à noção de “estado-limite”377, proposta por Julia Kristeva para definir a condição melancólica. O interesse pelo tema da morte, constante na produção de Álvares de Azevedo, é a manifestação mais freqüente do enfrentamento com o limite. Antecipar, prever ou desejar a própria morte, matar, ver marcas da presença da morte em torno de si, sofrer pela morte de alguém são modos de contornar o tema encontrados ao longo de sua produção. Esse interesse é um dos modos de “exploração sistemática dos limites”378 desenvolvida por Azevedo, fiel à atitude, constante no romantismo, de ruptura com convenções ou, mais precisamente, de “ilimitação”, para empregar um termo de Benedito Nunes379. Em

termos

antropológicos,

a

busca

empreendida

representa

uma

relativização do conceito de humano. A questão pressuposta nesse percurso é: o que ocorre com um indivíduo, se ele se entrega a uma experiência ligada à morte, à animalidade, ou ao divino? Em que medida ele continua sendo humano? Uma das demonstrações mais claras de que Álvares de Azevedo se preocupava com a questão está no dionisismo de Noite na taverna, comentado anteriormente. O enfrentamento de uma experiência-limite desafia as determinações que definem o que é propriamente humano, em termos de moral civilizatória, familiar ou social. O espanto que a antropofagia suscita em De Gestis de Anchieta, o terror que o infanticídio provoca em Medéia de

377

KRISTEVA, Julia. Sol negro. op.cit. p.14-7. Expressão de TODOROV, Tzvetan. Os limites de Edgar Poe. In: ____. Os gêneros do discurso. São Paulo: Martins Fontes, 1980. p.158. 378

141 Eurípides, a seriedade com que a traição é tratada em Otelo de Shakespeare são referências estranhas à composição de Azevedo. O relato, de certa maneira, normatiza que a experiência-limite deva ser a matéria básica da experiência como um todo.

3.2.5. A falta de centro Uma civilização de palavras é uma civilização atormentada. Palavras criam confusão. Ionesco, Diário

A heterogeneidade temática e formal da Lira dos vinte anos representa uma opção pelo descentramento da perspectiva condutora das representações. Isto é, a falta de um padrão regular de composição que contemplasse todos os poemas corresponde a um tratamento estético que abala constantemente a expectativa de unidade do conjunto. O prefácio da segunda parte da Lira dos vinte anos ajuda a entender por que Azevedo optou por essa caracterização. O Autor escreve que “a unidade deste livro funda-se numa binomia” (p.127); essa afirmação mostra a consciência com que Azevedo elaborou o caráter contraditório de sua obra. Uma imagem utilizada para representar a binomia - “Quase que depois de Ariel esbarramos em Caliban” - tem conseqüências semânticas. O contraste entre os dois personagens tem a seguinte implicação simbólica. Ariel é obediente, trata com reverência e respeito as instruções de Próspero. Caliban, por outro

379

NUNES, Benedito. A visão romântica. op.cit. p.52. Conforme também STEINER, George. No castelo de Barba Azul. op.cit. p.28.

142 lado, deixa sua indignação com a escravidão se converter em uma atitude traidora, procurando libertar-se de Próspero através de um estratagema clandestino. O final apresenta a coroação de Ariel com a liberdade, e acentua a necessidade de punição de Caliban pelos erros cometidos380. A “binomia” constituída por Ariel e Caliban poderia ser interpretada do seguinte modo. Ariel está associado ao universo idílico encontrado em vários poemas do autor; Caliban, ao bizarro e ao grotesco (à lagartixa, à tripa sonora, aos bigodes no cadáver). Ariel representa o respeito a regras impostas; Caliban, a ruptura com as regras. Se pensarmos em termos estéticos, de fato, a produção de Azevedo oscila entre a reverência e a ruptura com relação a regras de composição literária tradicionais. A segunda parte da Lira dos vinte anos se constitui na inconstância entre a forma regrada (por exemplo, no caso dos sonetos) e a fragmentação (por exemplo, em Idéias íntimas). Para Vitor Hugo, Ariel está associado ao sublime, e Caliban ao grotesco381. O descentramento da segunda parte da Lira, entendido como uma estratégia de elaboração das composições que não as reduz a um padrão temático e/ou formal, pode constituir não apenas uma proposta estética, mas também epistemológica, no sentido de que se põe um “jogo” que movimenta “conteúdos, elementos, conceitos”, numa “tendência assistemática” que cria paradoxos382, anunciados pela palavra “binomia” no prefácio.

380

SHAKESPEARE, William. A tempestade. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1991. HUGO, Vitor. Do grotesco e do sublime. op.cit. p.40. 382 Conforme: WITTE, Bernd. O que é mais importante: a escrita ou o escrito? Revista USP. São Paulo: USP, set-nov 1992. n.15. p.88. 381

143 Esse jogo é produzido pelos componentes melancólico e irônico da lírica. O melancólico, de acordo com o pensamento grego

383

, gostaria de chegar à

elevação, ao absoluto, mas é impedido por suas limitações, e pela precariedade do saber ordenado. O irônico valoriza a fragmentação, sendo que esta pode funcionar não como um fim em si mesma, mas como estratégia de mediação, rumo a uma síntese (não alcançada). Essas idéias levam a pensar que as contradições produzidas com a perspectiva melancólico-irônica em Álvares de Azevedo não tenham um fim em si mesmas, que a “binomia” Ariel-Caliban consista em um modo de representação cuja falta de ordem deve atender a uma necessidade estética384. Se pensarmos, de maneira deliberadamente contraditória, que a unidade da segunda parte da Lira

se fundamenta no componente

melancólico-irônico, e que este leva constantemente a abalar a expectativa de unidade, teremos de procurar uma solução para a contradição na proposta estética do livro, que por si mesmo problematiza sua recepção, nas referências ao leitor no início (p.127) e no fim do prefácio, em que se afirma que se apresentam páginas “destinadas a não ser lidas” (p.129). O prefácio apresenta, ao contrário do sujeito lírico de Idéias íntimas, uma defesa da realidade, em detrimento das ilusões: “todo o vaporoso da visão abstrata não interessa tanto como a realidade formosa da bela mulher a quem amamos” (p.128). No poema, a realidade externa é apenas silêncio; aqui, ela apresenta uma mulher formosa. A expectativa positiva na relação com a

383 384

Conforme TELLENBACH, Hubertus. La mélancolie. op.cit. p.28-9 e 36. Conforme B. Eikhenbaum, em Teoria da literatura - formalistas russos. op.cit. p.22.

144 concretude é paradoxal com relação aos devaneios do poema. Esse paradoxo em si mesmo é uma marca da “binomia”; a maneira de encarar a realidade do prefácio não é a mesma de Idéias íntimas, daí a mudança quanto à valorização da “visão abstrata”, isto é, da ilusão. O fato de que os poemas não sustentam o juízo exposto no prefácio indica uma inadequação entre a realidade apresentada aos poetas e suas expectativas. Essa inadequação leva o espírito lírico a uma postura idiossincrática, distante dos padrões de aceitação social vigentes. As referências a “moços perdidos”, homens ociosos, bêbados, a cena do rapaz sujo levando um tombo e rasgando a calça, assim como as buscas de devaneios satisfatórios, indicam que os sujeitos líricos criados por Álvares de Azevedo se distanciam da imagem de homem nobre e íntegro que a literatura apontava como socialmente valorizada

385

.

Com isso, esses sujeitos negam “seu mero funcionar no interior da sociedade”,

representando

uma

concepção

de

subjetividade

cujas

contradições dizem respeito a contradições históricas, uma vez que “a formação lírica é sempre, também, a expressão subjetiva de um antagonismo social” 386. O elogio da indolência e a idéia de que o poeta seja um vagabundo que escreva versos nas paredes (p.189), bem como a percepção da realidade como vazio (p.153), apontam simbolicamente para uma incongruência entre o

385

Conforme, por exemplo, a descrição do personagem masculino em ALENCAR, José de. Cinco minutos. op.cit. p.191, entre outras; e os diálogos do capítulo IV de MACEDO, Joaquim Manuel de. A moreninha. São Paulo: Ática, 1983.

145 comportamento do poeta e os valores sociais, o que problematiza a definição de seu papel.

386

ADORNO, Theodor. Lírica e sociedade. In: BENJAMIN, Walter et alii. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p.199. (Os Pensadores)

146

3.3. Crepúsculos

À proporção que declinava o dia e que as sombras cobriam o céu, esse vago inexprimível da noite no meio das ondas, a tristeza e melancolia que infunde o sentimento da fraqueza do homem em face dessa solidão imensa de água e de céu, se apoderavam do meu espírito. José de Alencar, Cinco minutos

3.3.1. Formas do crepúsculo

Vitor Hugo escreveu um poema intitulado Devaneio (Rêverie)387, em que o sujeito lírico observa um crepúsculo. O momento é definido no terceiro verso como “hora onde o astro gigante já em rubor sumia”. Chama a atenção no poema o modo como a cidade é descrita: marcada pelo crepúsculo, ela se apresenta “inaudita, vibrante” (v.10), e o sujeito propõe que ela seja tomada como inspiração (v.13). A atitude do sujeito é contemplativa. Ele está “só na janela a sonhar / e a sombra a se afundar no fim do corredor”(v.8/9). Essa “sombra”, elemento negativo que aponta para a intranqüilidade da solidão, tem um comportamento abismal. O “afundar no fim do corredor” indica que o sujeito está entregue a uma espécie de esgotamento de si mesmo, ou de “turbamento”, conforme Hugo Friedrich388. A segunda estrofe congrega um aspecto negativo - o mal-estar do sujeito que contempla - e um aspecto positivo - a vibração da cidade que surge ao

387

HUGO, Vitor. Devaneio. In: GRÜNEWALD, José Lino, org. Poetas franceses do século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. p. 26-7.

147 olhar. A proposição de que ela seja tomada como inspiração está ligada à necessidade de afastamento das “canções escuras” (v.14), de sentimentos negativos. Podemos tomar o poema de Vitor Hugo como exemplar de uma atitude poética que encontra na contemplação a motivação para a poesia. Essa atitude estabelece um nexo entre a subjetividade e a paisagem observada. A imagem exterior, conforme o verso 15, atinge os olhos do próprio sujeito com uma “mágica faceta” (magique reflet). A contemplação não ocorre de maneira passiva ou neutra. Ela tem um efeito de impacto, e resulta em uma alteração emocional do sujeito. A busca da contemplação, nesse sentido, não é apenas busca de uma paisagem externa a ser observada, mas também de ressonâncias internas. É como se o sujeito buscasse renovar ou recriar a si mesmo, e para isso precisasse de uma imagem externa. A visão da cidade, que traz vibração para o sujeito lírico, não surge cristalina e nítida. Ela surge de súbito (v.27) num ambiente nebuloso (v.1-2). A apresentação do horizonte que “se esfuma”(v.1) e a presença da “bruma” (v.2) indicam que entre o sujeito e a imagem da cidade existe como mediação uma atmosfera nebulosa. O título do poema indica que tudo isso ocorre sob a lógica do devaneio. A sucessão de pensamentos, observações e sensações não é planejada ou governada racionalmente, mas conduzida por um movimento de rêverie.

388

FRIEDRICH, Hugo. O romantismo francês. In: _____. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978. p.30.

148 Devemos reter algo dessas observações sobre Devaneio. O poema é construído tendo por eixo uma dualidade, caracterizada explicitamente na segunda estrofe, que consiste na oposição entre sentimentos negativos, associáveis à índole melancólica, e sentimentos positivos, que anunciam uma disposição à euforia e à inspiração poética. Essa dualidade se institui em um momento de contemplação, estado em que o sujeito lírico estabelece ligações entre visões e sentimentos. A escolha do objeto de observação não é casual. O crepúsculo é um fenômeno capaz de sugerir conotações afetivas importantes. Trata-se de uma passagem, uma transição entre dois períodos, o dia e a noite. Simbolicamente, ele consiste em uma via de deslocamento, uma ruptura que altera profundamente

a

caracterização

do

espaço.

Observá-lo consiste em

acompanhar um processo de finitude e nascimento, em que ocorre a substituição da claridade pela escuridão. Por ser uma experiência de duplicidade, por constituir uma representação de finitude, por aproximar a percepção da escuridão, por motivar a contemplação, o crepúsculo é uma imagem preferencial para o sujeito melancólico

389

. A dualidade emocional do sujeito lírico, nesse sentido, está

articulada com a ambivalência do fenômeno observado, mediação entre perda e ganho, luz e treva, diurno e noturno. Como mediação, o crepúsculo se situa numa zona de limite entre termos opostos.

389

Um registro do vínculo entre o crepúsculo e a melancolia está em RAYBAUD, Antoine. L `ouverture mélancolique. Versants. Boudry: Baconnière, 1994. n.26. 1994. p.215.

149 Como acontece em Edgar Allan Poe, de acordo com Todorov, o interesse pelo limite em termos temáticos está associado, no poema de Hugo, ao emprego de indicações semânticas de desmedida e excesso (“astro gigante”, v.3; “foguete em feixes fulgurantes”, v.11; “mil torres em seu palácio”, v.17) 390. Ocorreria uma ligação, por necessidade estética, entre o caráter extremo do fenômeno representado e a intensidade extrema das imagens utilizadas para representá-lo.

Nesse

sentido,

a

argumentação

de

Todorov

serviria

adequadamente para justificar a composição de Hugo em seus detalhes. Outro poema em que a presença do crepúsculo é importante é Versos (Lines) de William Wordsworth

391

. Desde o início, o poema se apresenta como

manifestação de uma postura contemplativa, que observa detalhes de uma paisagem que evocam ressonâncias emocionais. Trata-se de uma reflexão do sujeito sobre si próprio, pontuada por observações sobre a passagem do tempo (v.1-2, 64-6) e os detalhes do espaço. O momento do crepúsculo é indicado no verso 98, em que se menciona “a luz dos sóis poentes”. Nessa luz, assim como no oceano e no ar, de acordo com o poema, se percebe uma presença (a presence, v.95) profundamente impregnada (deeply interfused, v.97) com um elemento sublime (a sense sublime, v.96), um movimento (a motion, v.100) que atua sobre o pensamento. Nesse sentido, a reflexão desenvolvida pelo sujeito lírico é intensificada pela ação dessa presença, desse movimento, que se encontra na luz

390

TODOROV, Tzvetan. Os limites de Edgar Poe. op.cit. p.159. Todorov observa inclusive a freqüência em Poe de frases que conotam emoções intensas dos narradores de seus contos, que são semelhantes em seus procedimentos aos versos 1 e 13 do poema de Hugo.

150 crepuscular. Essa reflexão envolve, entre outros aspectos, uma incompreensão do sujeito quanto à sua própria constituição - “não consigo / descrever o que eu era” (I cannot paint / what then I was, v.76/7) - e uma expectativa de ser lembrado como alguém ligado a bons sentimentos, “puros sons e harmonias” (conforme versos 141 a 147). O processo de inquietação e busca identitária do eu lírico se caracteriza como enfrentamento de uma situação limite, em que ele se vê de maneira indeterminada, com “melancólica perplexidade” (v.61), e procura definir uma imagem adequada de si para a mente do outro. As formas da natureza servem como referências semânticas para a formulação dessa imagem, que se constitui marcada mais pelo medo do que pelo desejo: (...) mais como homem Escapando de algo que ele teme, do que alguém que busca a coisa amada. (...) (v.71-3)

É possível estabelecer uma analogia entre o poema de Hugo e o de Wordsworth. Nos dois casos, o sujeito lírico vive uma situação crítica, e o momento de observação do crepúsculo consiste em uma espécie de mediação, através da qual se pretende atingir um novo estado. A diferença mais notável, no que se refere a esse aspecto, estaria no fato de Hugo contextualizar o crepúsculo num espaço que contém uma cidade, enquanto Wordsworth se mantém dentro do domínio da natureza propriamente dita. O que importa, no caso, é entender o crepúsculo como mediação, como passagem.

391

WORDSWORTH, William. Versos. In: GRÜNEWALD, José Lino, org. Grandes poetas da língua inglesa do século XIX. op.cit. p.12-19.

151 Em O salgueiro (Le saule), de Alfred de Musset392, o sujeito lírico tem a “estrela da tarde” como interlocutora. Faz a ela duas perguntas. A primeira é “Que vês no prado em teu mirante?“ (v.4). A segunda, “Que buscarias no torpor bucólico?” (v.9). Chamando-a de “mélancolique amie” (v.11), o sujeito apresenta o seu movimento como um processo que, metaforicamente, representa a idéia de morrer. As perguntas dizem respeito à necessidade de compreender a intenção da estrela. O que estás vendo? O que buscas? Em suma, o que atrai você, uma vez que descer significa desaparecer? A “estrela”, que se apresenta como sol de “louros cabelos” (v. 22), imagem diurna, e como lágrima errante da noite (v.14 e 17), imagem noturna, expõe seu brilho nos “véus do poente” (des voiles du couchant) (v.2). O crepúsculo é o momento de visibilidade intensa dessa estrela que se encontra na situação limite, entregando-se ao “fenecer” com um “trêmulo olhar” (v.12). O sujeito lírico atenta para o ponto do movimento da estrela em que ela se abandona à morte, desaparecendo, e as perguntas que faz representam a necessidade de justificar esse abandonar-se. A morte é, segundo Todorov, o 393

“limite por excelência”

. O crepúsculo é observado como uma situação

extrema. Ao tratar a estrela como “amiga”, o sujeito estabelece um nexo afetivo que, por analogia, propõe uma reflexão sobre a imponderabilidade da morte no universo humano. O apelo final - “Não desças mais dos céus, estrela do desvelo!” (v.24) - constitui uma tentativa de, através do imperativo, domar simbolicamente a natureza e impedir o curso implacável que leva à morte.

392

MUSSET, Alfred de. O salgueiro. In: GRÜNEWALD, José Lino, org. Poetas franceses do século XIX op. cit. p.44-5.

152 A representação de Musset remete a Shakespeare, que no seu soneto 73 utilizou a imagem do crepúsculo ligando-a ao tema da morte. Lê-se no quinto e no sexto versos: “Em mim contemplas o clarão crepuscular, / Quando no ocaso, posto o sol, se esvai o dia:”394. O poema propõe uma analogia simbólica entre o curso de um dia ensolarado e o curso da existência, de modo similar ao que ocorre no enigma proposto a Édipo pela Esfinge, no mito grego. O início do dia corresponde à infância, sua metade à maturidade, e o crepúsculo está associado simbolicamente, por sua vez, ao processo de envelhecimento. O soneto 73 de Shakespeare apresenta uma série de imagens a respeito da deterioração da vitalidade, como a folhagem que amarela e as chamas que se convertem em cinzas, e propõe que a compreensão de que se esteja envelhecendo deva motivar uma intensificação do amor, no sentido de que a certeza de que ocorrerá a perda estimule o aproveitamento da vida enquanto ela ainda é possível. A função simbólica do crepúsculo é prenunciar um desaparecimento, uma perda, sinalizar a finalização de um percurso. Nesse ponto, entende-se que Musset está retomando a lírica de Shakespeare. A idéia de que o crepúsculo se associa a uma perda está também em La belle dame sans merci, de John Keats395. O sujeito lírico relembra uma mulher, de traços ambíguos, “formosa” (v.14) e com olhar de “fera” (v.16). Ele teve com ela um envolvimento amoroso, e após dormir se encontrou abandonado. A solidão o leva a vagar “em desalento” (v.46), num ambiente inquietante e

393

TODOROV, Tzvetan. Os limites de Edgar Poe. op.cit. p.157. SHAKESPEARE, William. Soneto 73. In: _____. Sonetos. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. p.86-7. 395 KEATS, John. La belle dame sans merci (segunda versão). In: GRÜNEWALD, José Lino, org. Grandes poetas da língua inglesa do século XIX. op.cit. p.64-7. 394

153 destituído de vitalidade, com “cíperos secos” (v.47) e “nenhum pássaro cantando” (v.48). De acordo com o verso 39, os lábios da moça foram vistos “à míngua do crepúsculo”. O eu lírico guarda a lembrança desse momento como marca de um êxtase perdido. O crepúsculo foi um momento de

extrema

satisfação afetiva, e passou a ser uma recordação que se associa à frustração pela ausência da moça. Representando um estado de passagem, o crepúsculo é uma imagem que, considerando Olivier Pot396, é propícia para a apresentação de elementos melancólicos - a finitude em Musset, a perda em Keats, a situação extrema em Wordsworth e a solidão inquietante em Vitor Hugo. Cabe lembrar um estudo sobre um poema de Raimundo Correia, em que Alfredo Bosi propôs a associação entre crepúsculo e melancolia. O crítico encontra no texto elementos do repertório tradicional de representação da melancolia, como a tematização de perda, o contraste entre matéria e espírito, e a idéia de passagem de um estado a outro 397. Além de aparecer em poemas, o crepúsculo também foi tema de interesse de pintores do romantismo. A bela obra de Caspar David Friedrich Femme au coucher du soleil, de 1818, apresenta uma mulher de costas, com uma paisagem ao fundo, em que a metade superior expõe o céu. A perspectiva situa o olho do espectador próximo da mulher, de maneira que as proporções nos afastam das montanhas ao fundo. Os elementos mais próximos do olho, inclusive a mulher, são escuros, enquanto os mais distantes são claros. A tela

396

Conforme POT, Olivier. Le milieu de la vie ou la mélancolie du passage. op.cit.

154 representa uma situação de contemplação. A posição da mulher a situa em uma certa continuidade plástica com relação aos elementos escuros, com um notório contraste com relação à claridade dos elementos distantes, inclusive do céu. Como ela está de costas, não podemos ver seu olhar. A assimetria entre os seus braços cria uma tensão na figura

398

. A contemplação está associada,

como em Wordsworth, a uma indeterminação de identidade. A escuridão próxima e a claridade distante remetem ao poema de Musset, em que uma mesma estrela é vista ambiguamente como figura diurna e lágrima da noite, acentuando o caráter dúbio e limítrofe do crepúsculo. Géricault, também em 1818, pintou uma série de quadros sobre as partes do dia - Le matin, Le midi e Le soir. Neste último, com o subtítulo Paysage avec aqueduc

399

, a tarde é representada, na verdade, no crepúsculo, como se

observa pela distribuição das cores referentes à luz solar. Não há, como no quadro de Friedrich, uma representação de uma atitude contemplativa; no entanto, os dois quadros se assemelham quanto à presença de um contraste entre elementos muito claros e muito escuros. O céu, à direita, está carregado de nuvens escuras, cujos peso e tensão se opõem à leveza dos tons amarelados solares. A mesma dualidade se reproduz nas águas do rio. As linhas retas encontradas em alguns pontos da arquitetura, à esquerda e no centro, contrastam com o caráter curvilíneo dos vegetais à esquerda e abaixo à direita, bem como dos traços dos corpos humanos nus no rio. Essa

397

BOSI, Alfredo. A intuição da passagem em um soneto de Raimundo Correia. In: ___, org. Leituras de poesia. Ática. 398 Reprodução em BRIS, Michel de. Journal du romantisme. op.cit. p.88. Em anexo, à p. 300. 399 Reprodução em NOËL, Bernard. Géricault. Paris: Flammarion, 1991.p.43. Em anexo, à p.293.

155 tensão entre reto e curvo, ostentada radicalmente na construção com base montanhosa no centro, é em certa medida análoga à criada entre os dois braços da mulher de Friedrich. Trata-se, assim como no caso da tensão entre o fortemente claro e o fortemente escuro, de acentuar uma atmosfera de ambivalência a que se atribuem conotações emocionais para o olho observador. A tarde de Géricault se mostra como fenômeno limítrofe em que o mais escuro e o mais claro, o mais reto e o mais curvo, o mais sensual e o mais degradado se avizinham. Cabe observar que em outros quadros românticos a intenção de buscar esse aspecto limítrofe se apresenta. A representação da noite em Coalbrookdale, la nuit, de Philippe Jacques de Louthebourg, mistura a escuridão à luminosidade quase solar de um fogo que incendeia no centro da tela400. Situação similar ocorre em L `eruption du Vesuve, de Wright of Derby, em que fogo e lava iluminam em forte contraste com a fumaça negra401, e de modo menos ostensivo em Báteau de negriers, de William Turner, em que o contraste entre os elementos brancos e negros é mediado por gradações de vermelho402. A representação da manhã em Le matin de Pâques, de Friedrich, propõe também um contraste entre uma luz solar, na parte superior, e uma paisagem ostensivamente noturna, na parte inferior403. Deve-se lembrar o belíssimo quadro de Friedrich L`abbaye dans un bois, em que o céu e a terra, assim como as árvores e a abadia, estão enegrecidos, e uma faixa branca no

400

Reprodução em BRIS, Michel de. Journal du romantisme. op.cit. p.26. Em anexo, à p. 296. Idem. p.27. Em anexo, à p.297. 402 Idem, p.187. Em anexo, à p. 298. 403 Idem, p.91. Em anexo, à p. 301. 401

156 horizonte corta a metade horizontal da tela404; recurso semelhante é empregado em Scène de déluge, de Géricault, em que uma região branca no meio da tela contrasta com a escuridão tensa ao redor405. Em todos esses casos, embora não sejam telas referentes tematicamente a crepúsculos, o tratamento das paisagens propõe um efeito de ambivalência emocional, em razão de que a natureza se mostra como calcada em fenômenos limítrofes. Castro Alves compôs um Crepúsculo sertanejo, em que uma série de imagens da natureza são apresentadas, de um modo que cria uma atmosfera tensa e inquieta. A repetição de “A tarde morria!”, nas três primeiras estrofes, carrega a ênfase no final de um percurso. Algumas expressões, como “sombras das margens” (v.2), “trevas rasteiras” (v.7), “negros, cruéis leopardos” (v.8) e “escuro ingazeiro” (v.10), vão preenchendo com escuridão a paisagem. Esse aspecto retoma a tendência tradicional de associar a melancolia ao escuro406. O poema de Alves não tematiza diretamente nenhum problema humano, o sujeito lírico não conta nada sobre si. Pelo modo como ele representa a natureza, pelas escolhas de vocabulário, é que percebemos traços melancólicos. Nesse sentido, o interesse do poema está na ambigüidade entre o horizonte infinito (v.19) e a finitude enfatizada simbolicamente pela presença ostensiva do verbo morrer (v.1, 5 e 9). Ele consegue manter coerência de

404

Idem, p.82-3. Em anexo, à p. 299. Reprodução em NOËL, Bernard. Géricault.op.cit. p.37. Em anexo, à p. 294. 406 Conforme AZOUVI, François. A peste, a melancolia e o diabo, ou o imaginário definido. op.cit. p.100 e 104. 405

157 atmosfera no conjunto, embora em suas duas últimas estrofes a gravidade inicial ceda a uma brandura407. A percepção do crepúsculo pelos românticos interessou a Charles Baudelaire, que escreveu o poema O crepúsculo romântico (Le coucher du 408

soleil romantique)

, incluído em sua Marginália. O sujeito lírico apresenta

uma inquietação com relação ao crepúsculo. Referindo-se ao sol como Deus (v.9), o sujeito passa de um elogio inicial a ele, considerado belo na aurora (v.1), a uma caracterização de sua presença como associada à deterioração das coisas (v.5-6), e finalmente à idéia de que a Noite seria “irresistível” (v.10), que relativiza a postura inicial. Os versos 7 e 8 apresentam um apelo desesperado: - Corramos todos sem demora ao poente, é tarde, Para abraçar um raio oblíquo no horizonte!

A inquietação do sujeito está associada a uma variação de posturas e interesses ao longo do poema. Os versos 7 e 8 lembram a postura do eu lírico em Musset, que pede ao sol que não desça, não desapareça. A caracterização do ocaso como “glorioso” (v.4) remete à força atribuída a ele em Wordsworth. Porém, a apresentação da noite como “irresistível” aponta para uma ambivalência do sujeito. Não é uma dualidade sentimental idêntica à do Devaneio de Hugo. Neste, o sujeito vivia, no percurso do crepúsculo, sensações de melancolia e euforia. Já em Baudelaire, a ambivalência consiste em, num primeiro momento, afirmar diante do crepúsculo uma emoção intensa

407

ALVES, Castro. Poesias completas. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. p.178. BAUDELAIRE, Charles. O crepúsculo romântico. In: _____. As flores do mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p.494-5.

408

158 ligada à perda (v.7-8), e logo depois entregar-se à noite, com uma mistura de fascínio (v.10) e medo (v.13). A diferença consiste em que, nos textos românticos mencionados, a contemplação é valorizada, e no de Baudelaire, o esforço de manter a contemplação é considerado “vão” (en vain, v.9), o objeto observado escapa aos olhos, e o sujeito fica à mercê de uma escuridão ambígua. Ele não se dedica como os outros a extrair da contemplação idéias, sensações ou lembranças; ele renuncia a ela e se entrega à impossibilidade de contemplar na escuridão. Nesse sentido, pode-se considerar o poema de Baudelaire um comentário poético corrosivo a respeito da concepção de crepúsculo dominante no romantismo. Encontramos em O crepúsculo vespertino (Le crépuscule du soir) , do mesmo Autor, uma outra abordagem do tema. A chegada da noite é observada como uma situação em que figuras da cidade, como criminosos e meretrizes, se apresentam. Os doentes sentem sua dor de maneira mais intensa e demônios “estremecem a voar” (v.13)409. Toda a caracterização da cidade acentua

aspectos

idealização.

409

Idem. p.349-50.

marginais

ou

negativos,

afastando-a

de

qualquer

159

3.3.2. A atitude contemplativa

É preciso ter muita coragem para ir ao fundo da vida. Porque no fundo da vida nada acontece ao homem, ele só contempla. Nem sequer pensa no que contempla. Quando eu fico sem nenhuma palavra no pensamento e sem imagem visual interna - eu chamo isso de meditar. Clarice Lispector, Cartas

Um ponto comum a Devaneio, de Vitor Hugo, Versos, de Wordsworth, O salgueiro, de Musset, e Femme au coucher du soleil, de Casper Friedrich, é a representação de uma atitude contemplativa. Nesses casos, o crepúsculo é o objeto de uma contemplação. Para além dessas obras, é possível verificar a importância atribuída à contemplação no romantismo. Tomando como exemplo o pintor Friedrich, devemos lembrar de Deux hommes contemplant la lune

410

,

Un homme et une femme contemplant la lune411 e Lever de lune sur la mer 412

. Nesses quadros, vemos figuras humanas dedicadas à observação de

paisagens. Essas figuras estão de costas, de modo que a única coisa que sabemos de suas faces é a direção para onde olham. O que define esses seres humanos é sua admiração, sua entrega à imagem da lua. Em poemas do romantismo europeu, a contemplação de uma pessoa é considerada uma demonstração exemplar do amor. Isso se observa neste fragmento de um poema de Vitor Hugo: Ontem à noite Ontem - sozinhos - eu e tu, sentados, Nos contemplamos quando a noite veio: (...) Vendo essa noite pura, e a ti tão bela, 410

Reprodução em BRIS, Michel de. Journal du romantisme. op.cit. p.85. Em anexo, à p.302. Idem. Capa. Em anexo, à p. 304. 412 Idem. p.86. Em anexo, à p. 303. 411

160 Eu disse aos astros: - dai o céu a ela! 413 Disse a teus olhos: - dai amor p`ra mim!

414

Em Teu rosto, de Hofmannsthal

, também é encontrada a associação

entre atitude contemplativa e expressão de afeto extremo. Nele, assim como no texto de Hugo, encontramos uma concentração intensa, uma dedicação incomum, por parte da delicada observação dos sujeitos líricos

415

. Nos dois

casos, o fato de a amada ser contemplada meticulosamente, em certo sentido, contribui para que nela se perceba um traço de transcendência. Cabe lembrar uma reflexão de Hannah Arendt. A filósofa opõe duas formas de comportamento, vita activa e vita contemplativa, a primeira centrada na ação e a segunda na contemplação. Arendt quer situar a idéia de labor dentro da história do pensamento, e para isso opõe o interesse pela ação prática à atitude contemplativa. Para os filósofos gregos, a política deveria ser organizada de maneira a viabilizar o modo de vida filosófico, inspirado no ideal de contemplação. A vida do filósofo, para Aristóteles, seria “dedicada à investigação e à contemplação das coisas eternas, cuja beleza perene não pode ser causada pela interferência produtiva do homem nem alterada através do consumo humano”

416

. Em Tomás de Aquino, ainda conforme a Autora, a

ação prática é considerada uma necessidade da vida terrena, enquanto a

413

HUGO, Vitor. Ontem à noite. In: MAGALHÃES JR., R., org. O livro de ouro da poesia da França. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. p.147. A tradução é de Casimiro de Abreu. 414 HOFMANNSTHAL, Hugo von. Teu rosto. In: MEURER, Flávio, org. Amor, paixão e ironia: poesia do romantismo alemão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. p.162-3. 415 Em Noite na taverna, Cláudius Hermann afirma ter ficado seis meses amando intensamente a duquesa Eleonora à distância. “Todo esse tempo havia passado em contemplação - em vê-la, amá-la e sonhá-la”. AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. v.2. p.134. 416 ARENDT, Hannah. A condição humana. op.cit. p.21.

161 contemplação consiste em um modo de vida livre417. Arendt interpreta esses elementos e chega à seguinte posição:

“O primado da contemplação sobre a atividade baseia-se na convicção de que nenhum trabalho de mãos humanas pode igualar em beleza e verdade o kosmos físico, que revolve em torno de si mesmo, em imutável eternidade, sem qualquer interferência ou assistência externa, seja humana ou divina. Esta eternidade só se revela a olhos mortais quando todos os movimentos e atividades humanas estão 418 em completo repouso” .

Em uma de suas observações a respeito da gravura Melancolia, de Dürer, Walter Benjamin observa que estão “dispersos no chão os utensílios da vida 419

ativa, sem qualquer serventia, como objetos de ruminação”

. O melancólico

se volta para a contemplação, distanciando-se do trabalho braçal. O vínculo entre a condição melancólica e o pensamento contemplativo é proposto desde Aristóteles, para quem a contemplação é fundamental para a filosofia

420

,eé

desenvolvido no romantismo, podendo ser observado em autores como Leopardi. Uma situação afim à descrita por Arendt pode ser observada em um poema como O infinito. 1. Eu sempre amei este deserto monte, 2. Como esta sebe, que tamanha parte 3. Do último horizonte oculta à vista. 4. Sentado e contemplando intermináveis 5. Espaços além dela e sobre-humanos 6. Silêncios, profundíssima quietude, 7. No pensamento afundo-me: e por pouco 8. Não se apavora o coração. A brisa 9. Sussurra entre plantas e eu aquele 10. Infinito silêncio à voz do vento 417

Idem p.22. Idem. p.24. 419 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. op.cit. p.164. 420 Conforme KLIBANSKY, PANOFSKY & SAXL. Saturne et la mélancolie. op.cit. p 87. 418

162 11. Vou comparando: e lembro-me do eterno, 12. Das mortas estações, e da presente, 13. Que é viva, e o rumor delas. E buscando 14. A imensidão se afoga meu pensar 421 15. E naufragar é doce nesse mar.

O verso 4 anuncia que o sujeito está em uma atitude contemplativa. Esta não se interessa apenas por dados visuais, mas também auditivos (conforme v.6). O processo contemplativo corresponde a um afundar-se no pensamento (v.7), que implica em ressonâncias emocionais para o coração (v.7-8). As imagens do “último horizonte” (v.3), do “eterno” (v.11) e da “imensidão” (v.14) estão ligadas à expectativa de observar a totalidade, o imutável, o Absoluto. Essa disposição metafísica estaria condicionada à apreciação da natureza, à entrega sentimental à paisagem. No final, o “afogamento” do pensamento (v.14) representaria uma perda do controle sobre sua condução, um sujeitar-se a um pensar desgovernado, que em nada assusta o eu lírico. Esse modo de pensar remete à desordem intelectual dos melancólicos. Sem desenvolver qualquer forma de atividade prática, o sujeito se restringe a pensar. Em sua reflexão, entram o “eterno” e as “mortas estações”, o infinito e o finito. A grandiosidade sobre-humana à volta do sujeito estimula uma doce meditação. Em um poema de Blake, os versos “A Luz do Sol quando ele a irradia / 422

Depende do Órgão que a contempla”

expressam que o sujeito, ao

contemplar, estabelece uma conexão profunda com seu objeto, de um modo em que a existência deste depende da atitude interessada daquele. O objeto

421

LEOPARDI. O infinito. In: FAUSTINO, Mário. Poesia completa, poesia traduzida. São Paulo: Max Limonad, 1985. p.254-5.

163 não se reduz a si mesmo; a interioridade como que constrói sua própria concepção de um mundo externo, através da dedicação contemplativa. Cabe, além de Hannah Arendt, lembrar Julio Cortázar, que aproximou o poeta lírico do filósofo, no que se refere à sua capacidade de admiração. A busca da alusão, da nomeação, seria para o escritor argentino uma das características fundamentais da poesia. Cortázar situa a origem da criação poética num campo comum ao dos magos, que num universo mental prélógico ou pré-racional, encontram identidades, analogias, pontos de contato insondáveis pela razão que atribuem sentido a fenômenos da existência. Nessa perspectiva, a busca do poeta lírico é “um avanço à procura de ser”423, com a intenção de conhecer, através do emprego da linguagem, aquilo que escapa à racionalidade. A capacidade de admirar, fundamento da atitude contemplativa, seria então uma base para essa busca de conhecimento. Os quadros de Friedrich sobre a lua, de acordo com o raciocínio de Cortázar, seriam obras sobre esse admirar-se, sobre essa capacidade de buscar pelo olhar. No filme Morte em Veneza, de Luchino Visconti,

o drama do

personagem principal está profundamente ligado a essa capacidade. Gustav contempla o jovem Tadzio, e sua admiração o leva a evocar lembranças, amar e sofrer. Em meio a um ambiente empesteado, em que se trama uma enorme e articulada fraude política e moral, Gustav busca uma beleza que toca em seus princípios mais fundos e essenciais.

422

BLAKE, apud WELLEK, René. O conceito de romantismo em história literária.op.cit. p.160. CORTÁZAR, Julio. Para uma poética. In: ____. Valise de cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1993. p.97. 423

164 Voltando a Arendt, o que interessa reter agora de sua reflexão é a idéia, originária da antigüidade e retomada na idade média, de uma superioridade da postura contemplativa com relação à ação prática. Essa superioridade se deveria ao acesso, possibilitado pela primeira e inviável através da segunda, à beleza e verdade do kosmos. É possível integrar as idéias de Arendt com as de Georges Gusdorf, para quem o Absoluto, no romantismo, não é, como na tradição, uma transcendência inteiramente externa, independente da experiência concreta, constituindo-se em uma demanda da interioridade do sujeito com relação a si mesma424. A finalidade da atitude contemplativa, no período, é diferente da que esta tinha anteriormente. Não se trata mais de tentar observar o imutável eterno, a transcendência superior à materialidade. O que se pretende é, através da contemplação, encontrar caminhos para eliminar o abismo entre consciência e essência. Isto é, contemplar seria uma forma de o sujeito procurar uma representação de si que permitisse compreender, pela mediação simbólica do objeto contemplado, a si próprio. Por essa razão, no poema de Vitor Hugo, Devaneio, a contemplação não é de modo algum uma atitude inteiramente passiva. O objeto da observação provoca uma reação no sujeito, e este tem seu estado de ânimo influenciado pela evocação que a imagem suscita. A intenção implícita do sujeito na atitude contemplativa é de encontrar no que é observado elementos que, de algum modo, se refiram a ele mesmo.

424

Conforme GUSDORF, Georges. Recherche de l`absolu . op.cit.p.92.

165 No caso desse poema, o fato de o objeto da observação ser o crepúsculo, que simboliza uma situação limítrofe, de passagem, está ligado ao percurso emocional que o poema constrói, em que o sujeito vive uma emoção negativa e, em seguida, uma positiva. O objeto observado é dual como o sujeito que o observa. Nesse sentido, é importante a proposta de que a contemplação estimule a inspiração (v.13). A expressão poética está ligada à capacidade de compreender a existência, e esta depende do que o sujeito pensa a respeito de si mesmo. A atitude contemplativa abre caminhos para esse pensar sobre si. Um poema de Álvares de Azevedo é composto com proposta afim. Trata-se 425

de Panteísmo, na terceira parte da Lira dos vinte anos Meditação, o texto foi valorizado por Eugênio Gomes

. Com o sub-título

426

. O sujeito lírico está

em atitude contemplativa, dizendo diretamente “Contemplo o azul do céu” (v.76). Essa atitude envolve dois elementos fundamentais: o reconhecimento de sua própria crença em Deus (v.43, 69 e 81) e a atribuição de uma melancolia à natureza. A palavra “melancolia” aparece no verso 15, ao lado de “morbideza”, e no verso 80. Neste último, a melancolia é descrita como um alento para o sujeito, juntamente com seus sonhos. O “mistério” da vida (v.1-2) provoca a meditação, que conduz à fé. Esta se constitui em meio a um ambiente melancólico. Deus purifica “essa terra, esse mundo, o céu, as ondas, flores, donzelas, essas almas cândidas” (conforme versos 49-51). Esse poema pode ser lido como sustentação metafísica da lírica

425 426

AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. V.1. p.240-3. GOMES, Eugênio. O individualismo romântico. op.cit. p.748.

166 amorosa do autor, na qual “donzelas” e “almas” aparecerão constantemente purificadas e divinizadas. A contemplação da natureza reverte em uma auto-compreensão do sujeito. Ao observar o mundo finito, sentindo-o como impregnado de melancolia, o sujeito busca em si mesmo a fé que o liberta da inquietação do mistério da vida. Portanto, o ato de contemplar, em si mesmo, motivando a meditação, contribui para a firmeza da relação do sujeito consigo mesmo. Considere-se o seguinte poema de Goethe.

Mar calmo 1. 2. 3. 4.

Tranqüilo, o mar não canta nem ondeia. O nauta, imerso noutro mar de mágoas, Os olhos tristes e úmidos passeia Pela tranqüila quietação das águas.

5. 6. 7. 8.

A onda, que dorme quieta, não espuma; O astro, que sonha plácido, não canta; E em todo o vasto mar, em parte alguma 427 A mais pequena vaga se levanta.

Como em O infinito de Leopardi, o que caracteriza a paisagem observada é a quietude, que funciona como condição para a entrega da percepção à paisagem. A atenção está voltada para o mar e, analogamente ao sujeito que não realiza nenhuma ação prática, o mar permanece estável e sem movimentos. No interior do sujeito existem mágoas (v.2) que se conformam como um “mar”, o que estabelece um nexo profundo entre o sujeito e o objeto 427

GOETHE. Mar calmo. In: CAMPOS, Geir, org. Poesia alemã traduzida no Brasil. Rio de Janeiro: MEC, 1960. p.84-5.

167 observado. Há dois mares, um dentro e um fora do sujeito. A contemplação, ao mesmo tempo que dá atenção ao mar externo, de algum modo sugere uma forma para as mágoas. Por isso, ao olhar para a quietude do mar, é como se o “nauta” estivesse abrindo um caminho para uma percepção do sofrimento que há em seu interior. Não se trata, naturalmente, de um auto-conhecimento racional ou sistemático, mas de um acesso simbólico da consciência a um aspecto da interioridade, que ganha visibilidade através da analogia entre imagem externa e imagem interna. Esse modo de compreender o conceito de contemplação, considerando Arendt e Gusdorf, autoriza uma conexão entre este e a noção de lírica. Para Hegel, o que define o gênero lírico é fundamentalmente a expressão da interioridade do sujeito - “o que interessa antes de tudo é a expressão da subjetividade como tal, das disposições da alma e dos sentimentos, e não a de um objeto exterior”. Os objetos apareceriam na poesia não por interesse em si mesmos, mas como partes de uma manifestação da subjetividade

428

. O ponto

de contato entre a teoria da lírica de Hegel e a noção romântica de contemplação está no fato de que, nos dois casos, se entende que as imagens observadas pelo sujeito tenham sentido não autonomamente, mas em função do estado subjetivo que elas possam eventualmente desvelar, intensificar ou refletir. Em vista disso, entendemos que a concepção de atitude contemplativa do romantismo, por situar a busca do Absoluto como uma demanda no interior da subjetividade, é congruente com a noção de lirismo.

428

HEGEL. O conteúdo da poesia lírica. In: ____. Estética. op.cit. p.608-9.

168 Isso pode ser observado em Versos de Wordsworth, em que os detalhes da paisagem observada pelo sujeito evocam diversas ressonâncias emocionais. E também em Devaneio de Hugo, em que, assim como em O infinito de Leopardi, se estabelece um nexo entre a subjetividade e a paisagem, entre visões e sentimentos, e a contemplação resulta em uma reação emocional. E ainda em O salgueiro de Musset, em que, ao chamar a noite de “amiga”, o sujeito estabelece uma identificação entre o desaparecimento da luz como fenômeno natural e a morte humana. Em todos esses casos, a manifestação lírica e a reflexão contemplativa não se separam.

3.3.3. Duas paisagens

A mais bela harmonia cósmica é semelhante a um monte de coisas atiradas. Heráclito, fragmento 124

A imagem do crepúsculo interessou a Álvares de Azevedo. Ela aparece na Noite na taverna, associada à finitude, quando se fala no “último crepúsculo da vida” de um moribundo

429

. O autor escreveu dois poemas, incluídos na

primeira parte da Lira dos vinte anos, tematizando crepúsculos. Eles são Crepúsculo do mar e Crepúsculo nas montanhas. Ambos consistem em representações de posturas contemplativas. Consideremos o segundo, em anexo à p.275.

429

AZEVEDO, Álvares de. Obras Completas. v.2. p.155.

169 As duas primeiras estrofes têm por propósito descrever a paisagem observada. O modo como essa descrição é realizada merece atenção. As curvas da serrania são vistas como um “dorso” que “serpeia” (v.1). A tarde se encontra em “agonia” (v.4), e o seu véu “flameia” “rubro” e “sanguinolento” (v.3). O céu é desbotado “num azulado incerto” por um vapor cinzento (v.5-6). E uma nota de sino “se afoga” no ar (v.7-8). Se procurarmos ler essa passagem dentro da perspectiva de que a atitude contemplativa e o lirismo estão essencialmente associados, entenderemos que a descrição aponta para sentimentos que, sendo referentes à paisagem, devem ser atribuídos ao próprio sujeito. A agonia vivida pela tarde, se tomada em si mesma, numa leitura antropomórfica, seria algo como uma tensão derivada do fato de a tarde estar desaparecendo, como o sol que vai “morrer” em O salgueiro; mas não é isso que o teor lírico do poema propõe. A agonia não é experimentada pela tarde ela mesma, mas se apresenta como o contexto em que o sujeito percebe a si mesmo; a agonia externa, em suma, é uma chave simbólica para manifestar uma agonia interna. A seleção lexical é carregada de elementos que merecem atenção. O avermelhado do céu é descrito como “rubro” e “sanguinolento”. Como o segundo termo já contém o traço semântico “vermelho”, a apresentação de ambos, ao lado do verbo “flameia”, pode ser compreendida como recurso de ênfase. A sua funcionalidade deve estar ligada à caracterização da agonia. A palavra “serpeia”, que propõe que as curvas da serrania lembrem movimentos de serpente, nesse contexto lexical, está sendo empregada com função semântica específica. Sendo a serpente um símbolo do mal na tradição

170 cristã, a palavra insinua que existe algo de maligno na paisagem, o que é coerente com a idéia de uma “tarde na agonia”. O uso do verbo desbotar indica degradação, deterioração. A mesma sugestão é acentuada pela idéia de cinza, contida no “cinéreo vapor”. A nota de sino que se “afoga” no ar se soma às outras imagens, no intuito de se criar uma atmosfera desgastada e perturbadora. A terceira estrofe traz a manifestação de uma intenção do eu lírico: “Vim alentar meu coração saudoso / No vento das campinas”(v.9-10). Não há uma explicação quanto ao objeto da saudade. Estando o coração saudoso, o sujeito veio buscar nas campinas alento. No entanto, o contexto é hostil: a tarde se reclina num “manto lutuoso”. A imagem fúnebre caracteriza a paisagem da tarde de maneira ameaçadora. A questão que a leitura põe de imediato é: por que se busca alento para o coração num ambiente tão perturbador? O verso 13 complica mais a questão, pois o sujeito se dirige à tarde tratando-a como “tarde bela”. Como uma tarde em agonia, com elementos sanguinolentos, cinzentos, lutuosos como esses, pode ser “bela”? Um caminho para responder essas questões estaria em considerar, de acordo com Mário Praz, que no romantismo é freqüente atribuir beleza a matéria normalmente considerada repulsiva

430

. Os elementos ligados

a sangue, cinza e morte seriam encarados como “belos” pelo eu lírico. Porém, nesse caso, é necessário um outro percurso de reflexão. Na parte II, quando o eu lírico justifica sua presença em meio à paisagem, ele não acentua, como na I, seu fascínio pelos elementos negativos. Para sua

171 nova interlocutora, a “pálida estrela”, o sujeito declara que no cair da tarde o perfume das montanhas é “mais puro”, e o luzir da estrela “doce”. O céu continua “em fogo”, mas este não é mais sanguinolento, e sim “azulado”, o que altera inteiramente as conotações do fogo. Ao se tornar azulado, fazendo a serra ficar “inda mais bela”, ele deixou de ser um fogo maligno para ser um fogo bom. Com exceção do adjetivo “morta” utilizado no verso 19, o vocabulário utilizado na parte II aponta para um contexto acolhedor. Foi praticamente removida a hostilidade perturbadora da parte I. Portanto, se utilizássemos o argumento de que no romantismo sangue e luto podem ser encarados positivamente para justificar o modo de composição do poema, teríamos problemas no que se refere à continuidade das articulações semânticas. A impressão criada é de que o padrão estético do eu lírico não é mais o mesmo. Sua concepção de beleza se alterou profundamente da parte I para a II. Antes, a tarde bela é a do fogo sanguinolento e do manto lutuoso; agora, o que ele busca é o perfume puro, o doce luzir e a serra embelezada pelo fogo azulado. Essa mudança teria um sentido importante se estivesse incorporada a uma trama de imagens que correspondesse, por exemplo, a uma mudança no ânimo do sujeito. Assim, a diferença entre os conjuntos de imagens seria pertinente do ponto de vista lírico. Pensemos, hipoteticamente, que num primeiro momento o eu lírico estivesse extremamente angustiado, e achasse bela a “tarde em agonia”, sanguinolenta e lutuosa, e num segundo momento, estivesse feliz, e achasse belo o céu azulado e o perfume puro. Para essa 430

PRAZ, Mário. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. op.cit. p.45.

172 hipótese ser viável, seria o caso de observar na própria subjetividade alguma alteração substancial (como em Devaneio de Hugo, em que a visão da cidade “vibrante” provoca nitidamente uma alteração do ânimo do sujeito a partir da segunda estrofe). O eu lírico, nos versos 9 e 10, expõe seu desejo de alentar seu coração no vento das campinas; no verso 23, repete a idéia de sentir o vento, acrescentando que quer “errar” pelos campos (v.22), “respirando a vida” (v.23) e “suspirar” (v.24). O estado de ânimo é essencialmente o mesmo nos dois casos: o sujeito quer experimentar sensações que o façam ter mais apego à vida. Portanto, a hipótese formulada não se sustentaria. O poema não apresenta elementos suficientes para justificar uma mudança no padrão estético do eu lírico na parte II. Na parte seguinte, o sujeito pede ao sol, qualificado como estrela que “derrama” dia, que derrame em seu peito um “raio de amor”. Nada aqui lembra a sanguinolência inicial. A atmosfera é inteiramente aconchegante, e o sol é visto como força motivadora do amor. Do ponto de vista lógico, o poema não respeita o andamento do crepúsculo, na medida em que a percepção da estrela pálida, acordada pelo canto do crepúsculo, é uma imagem noturna, enquanto a estrela d`oiro que derrama dia, pelo contrário, é uma imagem diurna. Como a parte I fala em tarde, e a IV em “estrelinhas azuis”, se esperaria que o comentário sobre o sol precedesse as observações sobre a estrela pálida. Alfredo Bosi, em seu estudo sobre a melancolia em um poema de Raimundo Correia, valoriza o movimento gradativo das imagens, que

173 representam minuciosamente o andamento do crepúsculo e o anoitecer431. De acordo com esse critério de leitura, Azevedo estaria fragilizando seu texto com seu modo de ordenar os elementos. Os dois primeiros versos da parte IV provocam uma dúvida. As “estrelinhas azuis” estão num “céu vermelho”, e são “lágrimas d`oiro sobre o véu da tarde”. O adjetivo “azuis” situa as estrelas numa paisagem noturna, que estranhamente se concilia com a vermelhidão do céu. Como se trata de um crepúsculo, podemos imaginar um céu ainda híbrido. Os versos 54 e 55, mais adiante, utilizam o nexo “ou” para colocar duas alternativas: as estrelas podem ser vistas à tarde ou à noite. Essa passagem ajudaria a sustentar a compreensão de que se trata de uma paisagem híbrida, em que elas estão azuis e também douradas. Porém, nesse caso, em que consiste exatamente o “véu da tarde”? A utilização da imagem do “véu” nessa passagem é problemática, porque o termo já apareceu antes no poema, no verso 3. Em seu primeiro emprego, a palavra tinha uma conotação extremamente negativa, carregada pelos adjetivos “rubro” e “sanguinolento” e pela expressão “tarde na agonia”. Nessa nova aparição, o véu foi destituído das propriedades anteriormente formuladas, sem que essa destituição se justifique esteticamente. Poderíamos pensar a dualidade de cor das estrelas como algo que tivesse um valor simbólico, representando talvez uma ambivalência emocional. Isso faria sentido se cada cor estivesse associada a um aspecto subjetivo diferente. O que ocorre, no entanto, é que as duas cores apontam para a mesma idéia uma percepção positiva das estrelas. Elas são “lágrimas” sem amargura, 431

BOSI, Alfredo. A intuição da paisagem em um soneto de Raimundo Correia. op.cit. p.231.

174 derramadas por “olhar celeste em pálpebra divina”. A tristeza da imagem da lágrima é relativizada pela sua origem; no conjunto, os versos 41 a 44 constituem um comentário ao aspecto sublime (dourado, celeste, divino) das estrelas. Como a duplicidade de cor não se articula simbolicamente com uma dualidade emocional, ela não encontra justificativa estética do ponto de vista lírico. Ela não qualifica a descrição da paisagem em si mesma, e não ajuda a aprofundar a compreensão do estado vivido pelo sujeito. Assim como ocorre com o vocábulo “véu”, também o emprego da palavra “lágrimas” é problemático. No verso 42, encontramos “lágrimas d`oiro sobre o véu da tarde”; na terceira estrofe, o verso 51 apresenta “lágrimas de fogo dos amores”. Em termos semânticos, há dois problemas. O primeiro é o seguinte. Enquanto a primeira imagem está ligada ao aspecto sublime e celestial das estrelas, a segunda fala em “fogo dos amores”, imagem erótica que destoa da anterior. A repetição da palavra “lágrimas” faz crer que as figuras sejam correlatas, mas em termos conotativos não o são. Por isso, essa repetição é prejudicial ao aproveitamento metafórico da palavra. O segundo ponto é que o verso 51 leva a entender que o “fogo dos amores” é lançado como lágrimas de anjos, em forma de estrelas. Essa imagem é similar à dos versos 39 e 40, em que se diz que o sol, “estrela d`oiro”, derrame um “raio de amor”. A semelhança entre as imagens “fogo dos amores” e “raio de amor” é relevante, semântica e sintaticamente. Sendo correlatas, uma ligada ao sol e outra às estrelinhas, essas figuras acabam criando uma identificação entre eles, que diminui a possibilidade de diferenciação, em

175 termos de valor conotativo, entre a visão do dia e a percepção da noite, tão importante nos poemas de Hugo e Musset. O verso 53 qualifica as estrelas de “criaturas da sombra e do mistério”. Introduzindo um componente enigmático até então ausente na parte IV, esse verso rompe com a tendência de caracterização dominante, em que eram assinalados traços positivos, da ordem do sublime e do divino. A estrofe seguinte, no entanto, retoma a tendência dominante, indicando que as estrelas vêm diáfanas “dourar na mente / a sombra da esperança”, sendo esta uma esperança referente às ilusões amorosas. Trata-se, novamente, de uma imagem positiva, o que faz do verso 53 um verdadeiro corpo estranho em meio ao conjunto. Há novamente aqui um problema lexical. A palavra “sombra”, no verso 53, ao acompanhar “mistério”, é empregada enquanto figura de escuridão, imagem noturna. Já no verso 60, ela reaparece, acompanhando “esperança”, e sendo dourada pelas estrelas. Como se percebe, neste e em outros casos, a repetição não tem função estética

432

. Ela não une idéias correlatas, e nem tem

valor irônico por aproximar termos incongruentes ou opostos. É uma repetição estruturalmente não aproveitada. A última estrofe apresenta um comentário sobre águias. O sujeito refere-se, em terceira pessoa, a um “pobre sonhador”, que as inveja por seu vôo. Há uma analogia mediada que se deve observar - o vôo é “perdido”, isto é, sem orientação, e o caminho que o eu lírico quer percorrer é também sem

176 orientação (ele quer “errar”, conforme o verso 22). Portanto, a vontade do sonhador e a do eu lírico são, em suma, a mesma. É como se o sonhador funcionasse como um desdobramento simbólico do sujeito. Cabe observar que as águias podem “respirar e viver” (v.68) e o sujeito manifesta querer “respirar a vida” (v.23). Deve-se destacar ainda nessa estrofe a imagem “mar de amores”, que lembra de imediato o “mar de mágoas” de Goethe. Considerando o poema em seu conjunto, é possível observar que a parte I anuncia uma atmosfera tensa, que o restante do texto não desenvolve; alguns vocábulos responsáveis pela atmosfera, como “sanguinolento” e “cinéreo”, não encontram continuidade semântica nas partes seguintes. A parte IV envolve elementos de ordem religiosa - “celeste”, “divino” (v.43), “sagrou” (v.46), “auréola” (v. 48), “anjos” (v.49) - ausentes nas demais partes, que sugerem uma conexão entre paisagem, estrelas e universo sagrado, sem antecedentes no texto. Retomemos, para pensar o sentido do poema, alguns textos mencionados anteriormente. O texto de Azevedo consiste, como os examinados de Hugo, Musset, Wordsworth, Keats, Leopardi e Goethe, em um texto que apresenta um sujeito em atitude contemplativa. O objeto de observação, como nos quatro primeiros, é um crepúsculo. A descontinuidade em termos de rigor formal, as repetições inapropriadas de elementos lexicais, as incongruências semânticas, o modo como são propostas as mudanças de interlocução e as variações de atmosfera são elementos que, examinados um a um, podem parecer significar

432

O conceito de “função” aqui é empregado no sentido proposto em: MUKAROVSKY, Jan. A denominação poética e a função estética da língua. In: TOLEDO, Dionísio, org. Círculo lingüístico de

177 pouco ou nada mas, em conjunto, demonstram a ausência de um fio condutor que trame a composição de maneira que os elementos sejam esteticamente necessários uns em relação aos outros. Considerando os poemas anteriormente mencionados, a ausência mais importante no texto de Álvares de Azevedo talvez seja a de uma representação de um estado limítrofe do sujeito. Pois, como se tentou mostrar, a contemplação do crepúsculo esteve associada em Hugo, Wordsworth, Musset e Keats a situações emocionalmente intensas, vividas pelos sujeitos líricos como experiências que tangiam algum tipo de limite. No Crepúsculo nas montanhas, o eu lírico diz que quer alentar o coração saudoso (v.9), errar pelos campos (v.22), quer ter em seu peito derramado um raio de amor (v.39-40) e afirma amar as estrelas (v.56). Entende-se que ocorreu no passado algum sofrimento amoroso, embora não se saiba que sofrimento é esse, e o momento de contemplação é uma busca de alívio ou amenização desse sofrimento, através dos “raios de amor”. Essa busca de alívio é diferente do Devaneio, em que o sujeito, diante do crepúsculo, passa do mal-estar melancólico ao estímulo intenso para a inspiração; é diferente de Versos, em que a luz do poente se associa a uma indeterminação da identidade do sujeito; é também diferente de O salgueiro, em que a observação do crepúsculo constitui uma reflexão sobre a finitude; e é também diferente de La belle dame sans merci, em que o crepúsculo simboliza êxtase e frustração. A situação crítica do sujeito em Wordsworth, a

Praga: estruturalismo e semiologia. Porto Alegre: Globo, 1978. p.165.

178 tentativa de domar a morte em Musset e a tensão amorosa em Keats são estranhos ao teor do poema de Azevedo. Poderíamos sugerir que há um dualismo no Crepúsculo nas montanhas, homólogo ao de Devaneio. Nesse sentido, haveria um primeiro momento de sofrimento (encenado na parte I) e um segundo momento de felicidade (a partir da parte II). Pela homologia, a visão dos corpos celestes em Azevedo funcionaria como a cidade em Hugo, sendo responsável pela mudança de estado de ânimo. No entanto, esse dualismo é precário. Em primeiro lugar, porque em Hugo fica claro, pela arquitetura das imagens, que a visão da cidade à luz do crepúsculo representa uma mediação entre dois estados de ânimo, sendo o anterior negativo e o posterior positivo, daí a visibilidade do dualismo. No caso de Azevedo, o sujeito apresenta um contexto altamente hostil (“véu sanguinolento”, “manto lutuoso”), não procurando essa paisagem terrível para nela ver expressa seu mal-estar, mas sim para alentar seu coração. Ele vê a tarde, assim descrita, como “bela”, e continuará atraído por ela na parte II, quando for praticamente removida sua hostilidade e ela ganhar contornos paradisíacos. Sem considerar a imagem incongruente e isolada “floresta morta” (v.19), não há um termo logicamente intermediário ou um símbolo específico de hibridismo entre o horror da parte I e a pureza de perfume da parte II. Não obstante, a atitude do sujeito lírico parece irretocável e constante, dada a afinidade, anteriormente comentada, entre as intenções expostas nos versos 9 e 10 e as apresentadas nos versos 21 a 24.

179 Por essas razões, entendemos que um dualismo pode estar até esboçado, mas não chegou a ser formulado com consistência. Além disso, não há aqui busca identitária, nem reflexão sobre a finitude ou profunda ambivalência amorosa. De diferentes modos, os poemas de Hugo, Wordsworth, Musset e Keats, bem como o quadro Femme au coucher du soleil de Friedrich, envolvem um crepúsculo em razão de esse fenômeno constituir uma chave simbólica com relação à representação de experiências humanas, pautadas por ambivalência, indeterminação e/ou um limite. A busca de felicidade amorosa do sujeito lírico do poema de Azevedo não é pautada por esses aspectos. Nesse sentido, a imagem do crepúsculo não consegue em Azevedo a força lírica que tem nos poemas estrangeiros mencionados. Falta ao poema de Azevedo uma consistência simbólica, com relação ao teor melancólico que o poema, por sua temática, poderia pressupor. Ambivalência, indeterminação, extremos são tópicos a que tradicionalmente a condição melancólica remete. Os outros poemas mencionados, bem como o de Castro Alves, conseguem estabelecer uma compatibilidade entre a imagem do crepúsculo e substratos de melancolia em que os sujeito líricos estão embrenhados. Melhor resultado é conseguido no Crepúsculo do mar, poema de feições apocalípticas

433

. Como em Crepúsculo sertanejo, de Castro Alves,

trata-se da apresentação de uma paisagem. Porém, a descrição é bem mais inquietante do que a apresentada por Alves.

433

AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. V.1. p.54-5.

180 Em seus sessenta versos, a negatividade e a destruição são elementos constantes. O verso 49 diz: “É vermelho de sangue o céu da noite”. A imagem remete aos já citados quadros Báteau de negriers, de Turner, e Coalbrookdale, la nuit, de Louthebourg. Com as “vermelhas ondas” (v.3) e a “torrente de medonho clarão” que “jorra sangue ardente” (v.55-6), a representação do crepúsculo envolve uma rede semântica que contribui para a tensão do poema. A imagem da nau que rebentou (v.41-4) é indicadora da presença da morte, assim como o adjetivo “moribundo” (v.37). As imagens “poente em fogo” (v.1), “globo de fogo” (v.26), “mundo em fogo” (v.53) e “luz do incêndio” (v.43) apontam para a idéia apocalíptica de uma combustão generalizada, que se manifesta simbolicamente no vermelho crepuscular. As “sombras” (v.14 e 47), os “fantasmas” (v.15), a “nuvem que roxeia”(v.32) e a “agonia” (v.47) fazem parte do repertório de elementos inquietantes que cercam o “negro cataclisma” do verso 28. Embora o texto não apresente um relato, ou uma descrição claramente ordenada, ele traz uma série de sugestões perturbadoras de uma natureza descontrolada e mórbida. Crepúsculo no mar associa a grandiosidade da natureza à idéia de finitude e degradação. Apresenta marcas ligadas ao imaginário tradicional da melancolia. As referências a um amor perdido (v.15-6), a vocação para o sonho (v.25) e a fantasia (v.34), as imagens de fogo

434

434

, a ventania435, a

De acordo com François Azouvi, o fogo, para a tradição, tem uma ambigüidade essencial - é benigno e destruidor. Essa dualidade é compartilhada, nas devidas proporções, com a melancolia. Além disso, acreditava-se que, sob efeito do calor do fogo, qualquer humor poderia se converter em bile negra.

181 percepção de um “negro cataclisma”, além, é claro, da postura contemplativa do sujeito lírico. Um elemento importante, no caso, é a imagem insólita “só a idéia de Deus e do infinito / no oceano boiava” (v.7-8), que associa sob um ponto de vista profano a transcendência e a matéria concreta. Em uma leitura hegeliana, é possível dizer que as imagens escolhidas são capazes, em razão de sua relação com repertórios e códigos tradicionais, e de sua montagem original, de expressar uma condição melancólica. O poema aproveita o momento do crepúsculo como circunstância adequada para comentar nuances incômodas dessa condição. Embora não seja um dos melhores poemas de Álvares de Azevedo, o Crepúsculo no mar consegue ter maior articulação interna dos elementos do que o Crepúsculo nas montanhas. Assim como o poema de Castro Alves, Crepúsculo sertanejo, o texto sobre o mar consegue integrar as imagens de maneira a constituir uma atmosfera relativamente definida, utilizando recursos que remetem à tradição de representação da melancolia, o que não ocorre no poema sobre as montanhas.

Conforme AZOUVI, François. A peste, a melancolia e o diabo, ou o imaginário definido. op.cit. Em especial p. 101 e 110. 435 Aristóteles acredita haver um vínculo entre a presença do vento e a ação da bile negra. Conforme ARISTOTE. L`homme de génie et la melancolie. Problème XXX, 1. op.cit. p.91-3.

182

3.4. Amor e renúncia

oh, insensato coração por que me fizeste sofrer porque, de amor, para entender é preciso amar, por que? Dorival Caymmi, Só louco

3.4.1. Figuras femininas

Um poema sem título, cujo primeiro verso é “Quando à noite no leito perfumado” (em anexo à p.275), incluído na primeira parte da Lira dos vinte anos, aborda o tema do amor. Ele inicia com uma referência ao leito, que se apresenta como “perfumado” (v.1), pelo fato de nele estar deitada uma moça. A mesma imagem é elaborada de maneira diferente em Idéias íntimas; nele, após apresentar seus devaneios amorosos, o sujeito lamenta encontrar, ao despertar, na parte IX, “Só o leito deserto, a sala muda!” (v.179), e acaba declarando, na parte X, reconhecendo a importância dos devaneios, apesar de sua solidão: “Meu pobre leito! eu amo-te contudo!”436. A diferença entre os empregos da imagem deriva do fato de que, em Quando à noite no leito perfumado, o estado de ânimo é estimulado pela presença física da mulher, enquanto em Idéias íntimas ele é abalado pela consciência de um abismo entre os devaneios e a realidade à volta. Curiosamente, neste caso, quem está sonhando não é o sujeito lírico, mas a moça (v.2). Durante seu sono, no “vapor da ilusão”, ela chora (v.3-4), sem

436

Idem. p.153.

183 que se saiba a razão da manifestação de tristeza 437. Na segunda estrofe, no verso 5, o eu reconhece explicitamente o que está fazendo: “eu te 438

contemplo”

439

. Como foi comentado a respeito de O infinito de Leopardi

e

outros poemas, a atitude contemplativa resulta aqui em ressonâncias emocionais, em uma investigação dos sentimentos do próprio sujeito. A tristeza da moça é reforçada pelo “suspiro tépido” (v.7) em seu peito. Então, o sujeito reage beijando-a “a furto” (v.9), esperando que isso provoque impressões na amada, que ela lembre os seus “amores” (v.11). Ele tenta se comunicar com a amada enquanto ela dorme, de maneira simbólica, esperando atingi-la positivamente. Sua intenção de contato não exige que ela acorde. Pelo contrário, no verso 13 encontramos o imperativo “dorme”, que demonstra o interesse do eu em manter a situação tal como está. O “silêncio” é agradável, trazendo “ternura” ao peito (v.13-4)440. Situação equivalente é encontrada em Canção, de Vitor Hugo.

“(...) Te estou a ver dormir Que sonhos se afigura Teu hálito exprimir? Contemplo então contente

437

Antonio Candido examinou a recorrência de imagens de vapor na lírica de Álvares de Azevedo, explicando que, assim como as névoas, consistem em símbolos “de evanescência, de passagem do consciente ao inconsciente, do definido ao indefinido, do concreto ao abstrato”. No caso, o termo se aplica para salientar o caráter evanescente do sonho da moça. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. op.cit. v.2. p.185. 438 Situação similar é encontrada na Noite na taverna. Relata Cláudius Hermann: “(...) eu a via sempre ali, eu lhe contemplava a cada movimento gracioso do dormir: eu estremecia a cada alento que lhe tremia os seios - e tudo me parecia um sonho (...)”. AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. v.2. p.139. 439 LEOPARDI. O infinito. op.cit. p.254-5. Transcrito na p.158. 440 Mais uma vez, há um contraste com Idéias íntimas, em que o silêncio, na solidão, é perturbador. Conforme verso 178, parte IX, na p.153 das Obras completas. v.1.

184 Teu corpo encantador...(...)”

441

A quinta estrofe descreve um beijo na moça, “colhido a medo” (v.19). Ele tem como propriedades acender as veias (v.17) e iluminar os olhos (v.18). Esses dois traços se distinguem. Enquanto o primeiro consiste em uma indicação de impacto corporal, excitação física, o outro sugere encantamento, satisfação emocional. Logo depois, na sexta estrofe, o sujeito especula a respeito dos efeitos do olhar da amada. Eles

23. Talvez pudessem reviver-me n`alma 24. As santas ilusões de que eu vivia!

O verso final expõe o passado do sujeito lírico como sustentado por ilusões. Não é feita qualquer referência, no caso, a realizações amorosas, ou a um relacionamento bem-sucedido. A matéria de sua vida são as ilusões, que recebem o adjetivo “santas”. O teor do poema não é contradito pela afirmação final, na medida em que, no presente, o que se observa não é propriamente uma demonstração de envolvimento amoroso bem-sucedido, mas um ato contemplativo. O fato de a moça estar no leito não é bastante para definir com precisão a existência de um vínculo intenso, ou de um envolvimento sexual, entre os dois; falta a manifestação da moça, que poderia confirmar ou desmentir a insinuação de que esteja no leito por interesse amoroso e sexual pelo rapaz. O momento flagrado expõe, na verdade, algo de problemático e perturbador, pois a amada está triste, o que ocupa a atenção do sujeito nas

441

HUGO, Vitor. Canção. In: In: MAGALHÃES JR., R., org. O livro de ouro da poesia da França. op.cit. p.150.

185 duas primeiras estrofes. A essa tristeza se une a ausência de comunicação direta entre os dois, uma vez que o único meio de contato é o beijo “a furto”, dado sem consentimento prévio. Esses dois fatores são responsáveis por uma problematização da possibilidade de crer que se trate de um envolvimento amoroso bem-sucedido. A amada escolhida pelo sujeito lírico é descrita como “Virgem do meu amor” (v.9). A palavra “virgem” indica que se trata de uma moça pura e virtuosa. A mesma função semântica é desempenhada por “anjo”, no verso 13. Seus olhos são “transparentes” (v.21), o que reitera a idéia de pureza, embora a pálpebra seja “sombria” (v.22), o que está associado à dúvida quanto ao que ela de fato sente, formulada nas duas estrofes iniciais. Há nessa moça um traço de transcendência. Suas lágrimas recebem o adjetivo “divinas” (v.4), e o beijo dado nela é considerado “divinal” (v.17). Nos versos 15 e 16, o sujeito leva ao extremo o valor que a moça tem para ele: 15. E sinto que o porvir não vale um beijo 16. E o céu um teu suspiro de ventura!

A importância da amada supera a atribuída ao porvir e ao céu. Ambos os termos portam o traço semântico da indeterminação de limite, sendo o segundo termo particularmente forte, pela acepção tradicional que associa o céu a Deus. Esses versos procuram emprestar ao sentimento amoroso uma medida de grau que aponte para o imensurável. Trata-se de uma dedicação que é interessante por ser excessiva, considerando as idéias de Keats 442.

442

Conforme as idéias de Keats expostas em ABRAMS, M.H., The mirror and the lamp: romantic theory and the critical tradition. op.cit. p.136.

186 A intenção de caracterizar uma mulher como angelical é difundida no século XIX. O historiador Peter Gay informa que “em meados da década de 1850, William A. Alcott, o reformador educacional americano que também era médico (...) admitia que existiam algumas mulheres `desavergonhadas’, porém a maioria ocupava uma `esfera apenas ligeiramente abaixo da perfeição angelical’”443. A posição de Alcott faz parte de um debate, desenvolvido nas idéias institucionais, médicas e psicológicas do século passado, a respeito da sexualidade da mulher. Ela encontra sintonia com a formulação do Dr. William Acton, para quem uma mulher angelical não deveria “ser tratada como uma cortesã”444. A pureza feminina, para a moral burguesa oitocentista, era considerada um mérito. Gay expõe em detalhes as idéias dominantes sobre o tema, bem como as polêmicas a respeito dos “extraordinários paradoxos que a sexualidade feminina representava para a classe média do século XIX, encabulada como era, comprometida com o decoro, ansiosa por mudanças e ao mesmo tempo angustiada por causa delas”445; “atribuindo à mulher um caráter confuso e contraditório, o homem descobriu, surpreso, que ela era a um só tempo tímida e ameaçadora, desejável e assustadora”446. Circulavam tanto defesas de que a 447

mulher era “um animal inteiramente sexual”

443

, “sempre pronta para o coito”448,

GAY, Peter. A experiência burguesa da rainha Vitória a Freud: a educação dos sentidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p.118. 444 Idem, p.117. 445 Idem, p.120. 446 Idem, p.129. 447 Idem, p.113. 448 Idem, p.115.

187 como as proposições de que o sexo abala a saúde da mulher e que têm sorte as que nunca fizeram sexo 449. Peter Gay explica que, com o avanço da sociedade capitalista, as mulheres passaram, gradativamente, a participar mais do mercado de trabalho

450

; ao

mesmo tempo, era mantida a idéia conservadora de que os talentos femininos deveriam ser empregados na vida de “esposa e mãe”, em casa. Uma mulher que

demonstrasse

interesses

emancipatórios

enfrentaria

a

rotineira

determinação de que a mulher é “demasiadamente sublime para fazer qualquer coisa além de ficar sentada em sua total ignorância de mãos postas para que os homens possam adorá-la em seu altar”451. Outro exemplo ilustrativo oferecido por Peter Gay é o de sir Lawrence Jones, cujas memórias remetem aos primeiros anos do século XX, período em que a virgindade feminina “era muito valorizada, e às vezes até mesmo simulada”, como demonstração de integridade452. Inevitavelmente, os relacionamentos com moças ‘eram formais e bem-comportados, mantinha-se a distância que as convenções exigiam, e os assuntos de conversa eram restritos’. Quando sir Lawrence e seus amigos se enchiam de coragem e perguntavam algo sobre o sexo, recebiam de bandeja todas as pieguices culturais dominantes, mesmo quando se dirigiam a peritos. Ele relembra um jantar de estudantes com um médico que todos conheciam bem; quando um de seus amigos perguntou ‘se as mulheres tinham prazer no ato sexual’, o médico, ‘falando na condição de médico’, disse à assembléia de rapazes presentes: ‘Posso afiançar que nove em cada dez mulheres são indiferentes ao sexo, quando não o repudiam ativamente; e

449 450 451 452

Idem, p.118. Idem, p.135. Idem, p.140. Idem, p.212.

188 a décima, que tem prazer no ato sexual, será sempre uma 453 meretriz’” .

Nesses registros de sir Jones, dois elementos são fundamentais. O primeiro é a necessidade de distanciamento com relação às mulheres, em razão das convenções. O segundo é a indiferença feminina ao sexo, proclamada pelo médico. A referência à “meretriz”, no final da passagem, associa

diretamente

manifestação

espontânea

da

sexualidade

e

marginalização social. A oposição entre dois tipos de mulheres - a distante, caracterizada pela dignidade, e a meretriz, sexuada e socialmente desvalorizada - está associada a duas formas de comportamento amoroso, por parte do homem. O primeiro consistiria na reverência, e o segundo na entrega ao contato sexual. Enquanto o primeiro mantém a mulher em uma posição de respeitabilidade, e a sujeita à contemplação, o segundo atende a expectativa de satisfazer o desejo sexual. Essa oposição remonta à tradição antiga e medieval, como mostra Philippe Ariés. No Antigo Testamento, “a mulher não se entregava com a paixão provocante da cortesã”; a “mulher perfeita” é mãe e dona de casa

454

. Sêneca

teria defendido que “é escandaloso o amor demasiado pela sua própria mulher (...) Um homem sábio deve amar sua mulher com discernimento e não com paixão e, conseqüentemente, controlar seus desejos e não se deixar levar à copulação. Nada é mais imundo do que amar a sua mulher como uma amante...”. São Paulo teria chamado a atenção para o fato de que a mulher

453

Idem, p.211.

189 introduziu o pecado no mundo, sendo “salva” pela disposição à maternidade; para ele, as mulheres devem ser “submissas”. Os “textos eclesiásticos da Igreja” propõem a determinação de que à mulher não cabe confessar o desejo, que deve ser previsto pelo homem455. O estudo de Howard Bloch sobre a lírica medieval contribui para a reflexão sobre o assunto. Segundo o autor, no imaginário poético da Idade Média, para uma mulher ser amada, deve ser inatingível e imaculada. O homem deseja o distanciamento, pois o contato pode macular a pureza da moça. A renúncia sexual enobrece o sentimento. Autores como Guilherme IX e Andreas Capellanus alternariam duas representações do amor: uma obscena, sexuada, e uma sublime, distanciada456. As informações de Ariés e Bloch permitem observar uma continuidade entre as representações da Antigüidade, da Idade Média e do século XIX, no que se refere à oposição entre a mulher pura e a cortesã. Em meio a essa linha de continuidade, temos de lembrar Gregório de Matos. Alfredo Bosi observou no poeta baiano um confronto entre a lírica “idealizante”, dedicada à “mulher branca e bem-posta”, e “os versos chulos”. “De um lado”, diz o crítico, “as amadas distantes, merecedoras de ‘finezas’”, a “perda” e a “renúncia”. De outro, negras e mulatas, em representações grotescas e “exibições escatológicas de partes genitais e anais”. Bosi interpreta que há em Gregório

454

ARIÉS, Philippe. O amor no casamento. In: ____ & BEJIN, André, orgs. Sexualidades ocidentais. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.154. 455 Idem, p.157-9. 456 BLOCH, R. Howard. A lírica do amor e o paradoxo da perfeição. In: ____. Misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental. Rio de Janeiro: Ed.34, 1995. Em especial p.183, 191 e 194-6.

190 “uma desclassificação objetiva da mulher que nunca se tomaria por esposa, situação que a cor negra potencia”457. Uma das problemáticas centrais no romance Lucíola, de José de Alencar, consiste em que a personagem principal, inicialmente, se apresenta como prostituta. A relação amorosa com Paulo a afeta progressivamente. O narrador, que manifesta pudor ao expor sua estória a uma senhora, vive o dilema de construir uma representação de mulher em que pureza, generosidade, virtude se associam com sedução e prostituição. A personagem de Alencar mistura, de maneira problemática, elementos referentes aos dois estereótipos do feminino consagrados na tradição

458

.

Guardadas as diferenças entre os contextos históricos, é possível afirmar que as idéias correntes no século XIX, expostas por Peter Gay, às quais Álvares de Azevedo esteve exposto de maneira direta ou indireta, são tributárias de uma tradição que remonta ao pensamento antigo e ao cristianismo medieval. Entre as interpretações de Álvares de Azevedo, se destaca a de Mário de Andrade, que acreditava que o autor tivesse medo do sexo. Para ele, as mulheres em Azevedo são “intangíveis ou desprezíveis”459. O emprego de formas como “anjo” e “virgem” teria como efeito a exclusão da “plenitude feminina”460.

457

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. op.cit. p.107-9. ALENCAR, José de. Lucíola. In: ___. Obras completas. Rio de Janeiro: Aguilar, 1959. v.1. 459 ANDRADE, Mário de. Amor e medo. op.cit. p.204. 460 Idem, p.201. 458

191 Em uma passagem de Macário, o protagonista propõe uma oposição entre dois tipos de amor, em que o primeiro está vinculado à manifestação da sexualidade, e o segundo ao sentimentalismo. “Se chamas o amor a troca de duas temperaturas, o aperto de dois sexos, a convulsão de dois peitos que arquejam, o beijo de duas bocas que tremem, de duas vidas que se fundem... Tenho amado muito e sempre!... Se chamas o amor o sentimento casto e puro que faz cismar o pensativo, que faz chorar o amante na relva onde passou a beleza, que adivinha o perfume dela na brisa, que pergunta às aves, à manhã, à noite, às harmonias da música, que melodia é mais doce que sua voz, e ao seu coração, que formosura há mais divina que a dela - eu nunca amei. Ainda não achei 461 uma mulher assim.”

De acordo com a passagem, a mulher que provoca sentimentos puros, meditação e pranto não corresponde à que se envolve sexualmente. Antonio Candido examinou as representações das mulheres na produção de Azevedo, estabelecendo uma tipologia similar às anteriores, considerando regras da sociedade brasileira do século XIX.

“(...) é preciso lembrar que a família era organizada com rigor e as convenções tinham força quase sagrada. Pressupunha-se que as mulheres ficassem longe dos homens até um casamento aprovado pelo grupo. Em conseqüência, elas se repartiam virtualmente em duas grandes categorias, quase duas naturezas, exacerbando a imaginação carnal dos jovens: de um lado a moça ‘de boa família’, que segundo as normas deveria ser casta, indiferente ao desejo, reservada e distante; de outro, a mulher degradada pela pobreza e a condição social 462 desvalida, que servia para as necessidades do sexo (...)”

461 462

AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. v.2. p.20. CANDIDO, Antonio. Apresentação. op.cit. p.10.

192 Se utilizarmos esse horizonte como referência para examinar Quando à noite no leito perfumado, chegaremos à idéia de que o poema está de acordo com os valores ideológicos dominantes. O sujeito lírico mantém um distanciamento com relação à mulher. Não há sinal de envolvimento sexual com ela, o que ameaçaria sua dignidade. Ao contrário, as palavras “virgem” (v.9) e “anjo” (v.13) acentuam sua idoneidade. A moça representada deve ser, nesse sentido, uma mulher que a moral burguesa consideraria séria, apropriada para o compromisso. Ela não é o que o médico de sir Lawrence Jones chamaria de uma “meretriz”, nem o que Sêneca denominaria uma “amante”. O sono da moça é a razão prática pela qual, de todo modo, ela não assume qualquer comportamento voluntário, seja de reserva ou de entrega. Isso ainda não é suficiente para explicar o que há de divino nas lágrimas da moça e no beijo (v.4 e v.17), nem a razão de ela ser mais importante do que o porvir e o céu. Para compreender esses elementos, temos de examinar o componente sublime presente no poema. Com base na teoria do sublime de Schiller

463

, podemos interpretar a

desmedida atribuída pelo sujeito lírico de Quando à noite no leito perfumado ao amor que sente como uma forma de torná-lo sublime. Os versos “E sinto que o porvir não vale um beijo/ E o céu um teu suspiro de ventura!” propõem que o beijo e o suspiro da moça superam em importância a grandiosidade do porvir e do céu. Ela se caracteriza como dotada de um encanto extraordinário, que justifica tanto o desejo como o respeito contemplativo por parte do sujeito.

463

SCHILLER, Friedrich. Acerca do sublime. op.cit. p.61.

193 O emprego de “divinas” e “divinal” firmam essa caracterização. Na medida em que a importância da mulher, para os sentimentos do eu, supera a imponderável ilimitação do porvir e do céu, ela se apresenta como portadora de traços transcendentais, isto é, traços que a colocam acima da precariedade humana. Na Lira dos vinte anos, encontramos uma série de poemas em que ocorre a divinização e purificação da mulher. Em Pálida inocência, a mulher tem “falas divinas” (v.7), “alma de criança” (v.20) e é tratada como “divina e bela” (v.28)464. Em Anima mea, dirigido a uma moça chamada Ilná, esta é caracterizada como “doce virgem” (v.54) e “anjo de amor” (v.56). É feito um convite amoroso - “Vem, Ilná: dá-me um beijo”, que tem como intenção não o contato erótico, mas o sono: “- adormeçamos” (v.79)465. Em Amor, a mulher amada é chamada de “anjo” (v.17). O desejo do sujeito é formulado de maneira equivalente à de Anima mea: “Na tua cheirosa trança / quero sonhar e dormir!” (v.15-16). Nesse poema, o ponto mais relevante é a sujeição voluntária ao sofrimento: “Amemos! quero (...) sofrer e amar essa dor” (v.1-3)466. Como acontece na Ode à melancolia de Keats dor e o prazer estão essencialmente ligados. Em Meu anjo

467

,a

468

, parte de Spleen

e charutos, a purificação da mulher é sugerida já no título. O beijo resulta em uma “luz do paraíso” (v.13). O ressentimento por não ser correspondido no

464

AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. V.1. p.63-4. Idem, p.66-70. 466 Idem, p.218-9. 467 KEATS. Ode à melancolia. op.cit. p.69-70. 468 AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit.V.1. p.187-8. 465

194 interesse leva o sujeito, no entanto, a chamar seu anjo de “leviana e bela” (v.19), expressão repetida no primeiro verso de Por que mentias? 469. 470

Em No mar

, o rapaz delira, sonhando com a imagem da moça (v.38-9),

que dormia no seu peito (v.29). O contato se dá entre as almas (v.14-5); o rapaz a beija, enquanto ela dorme (v. 16-8), de modo semelhante ao que ocorre em Quando à noite no leito perfumado. No poema Ela, Aureliano Lessa apresenta uma representação de um ideal feminino. Considerem-se os fragmentos abaixo. 1. 2. 3. 4. 5. 6.

Mais pura que a límpida fronte deitada Na cândida areia, mais pura que a brisa, Que baixo murmura Nas folhas, mais pura que prece sagrada, Que a nuvem azulada que a aurora matiza, Mais pura, mais pura! (...) 7. É anjo celeste dos céus exilado, 8. É anjo encarnado que a térrea natura 9. De corpo reveste: 10. Não fosse ela um anjo celeste encarnado, 11. Que às plantas lançara-lhe uma alma! - loucura! 471 12. É anjo celeste!

A repetição ostensiva da expressão “mais pura” (v.1, 2, 4 e 6) e do substantivo “anjo” (v.7, 8, 10 e 12) contribui para definir uma imagem estereotipada. Nos versos 10 e 11, o sujeito manifesta seu desejo, e expõe que haveria “loucura”, prazer descontrolado, se ela não fosse um “anjo encarnado”. O sujeito renuncia a agir, em razão da pureza da moça. Recusa semelhante acontece em Amor e medo, de Casimiro de Abreu. Tentando explicar à moça por que tem uma atitude esquiva, o sujeito lírico,

469 470

Idem. p.217. Idem, p.9-11.

195 manifestando sua admiração, explica que, se assim não ocorresse, ele seria um “vampiro infame”, que “sorveria (...) toda a inocência” da moça (v.49-50), e a converteria em “anjo enlodado” (v.52). Nesse sentido, a esquivança e o medo do sujeito se explicam como proteção e reverência à integridade e a pureza da mulher. Esta, exposta em imagens ambíguas, como “Madalena pura” (v.33) e “criança louca” (v.44), permanece ao final, como no início, um objeto de interesse distante472. O poema Eu não te encaro, donzela, de Franco de Sá, formula outra idéia de resistência. O sujeito afirma não encarar a moça, ter de baixar os olhos se encontrar os dela (v.13-4), porque ela pode sofrer se ele tornar público o interesse. Então ele declara: 11. Não quero, virgem, não quero, 473 12. Que tu padeças por mim.

Nos dois casos, em Abreu e Sá, existe uma intenção de renunciar em nome do bem da moça. É claro que isso significa, por outro lado, que a relação amorosa não chega a se concretizar. Permanecer em um plano abstrato garante ao sujeito amante a preservação de um estado de coisas importante. Uma expressão radical dessa idéia está em Eu e tu, de Hebbel. De meu sonho tu emergiste, Do teu também surgir me viste. Logo os dois havemos de morrer, 474 Se um no outro vier a se perder.

471

LESSA, Aureliano. Ela. In: BANDEIRA, Manuel. org. Antologia dos poetas brasileiros: fase romântica. op.cit. p.158. 472 ABREU, Casimiro de. Poesias completas. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. p.80-1. 473 SÁ, Franco de. Eu não te encaro, donzela. In: RAMOS, Péricles Eugênio da Silva, org. Poesia romântica: antologia. São Paulo: Melhoramentos, s.d. p.237.

196 Sintético, o fragmento propõe que os amantes se constituem no sonho um do outro, e que, se houver um envolvimento intenso e desnorteante - um no outro se perder - isso representará sua morte. A existência dos amantes, a dedicação recíproca, é garantida pelo estado de sonho, sendo a realização concreta uma ruína do ideal. Em

Pensamentos dela, da terceira parte da Lira dos vinte anos,

encontramos vários elementos do repertório lexical da purificação. Aparecem ali “anjo” (v.4), “virginal” (v.6), “alma celeste” (v.15), “pura” (v.16) e “inocentes” (v.18). A divinização tem seu ponto culminante no verso 28: Em ti respira inspiração divina

Para Macário, a mulher digna de amar tem de apresentar “virgindade” e 475

“inocência”

, embora a “virgindade d`alma” possa “existir numa prostituta, e 476

não existir numa virgem de corpo”

. Para um dos personagens da Noite na

taverna, a mulher amada tem traços celestiais. Diante da mulher que contempla, Cláudius Hermann descreve “os olhos a fito naquela forma divina”, e diz a respeito de sua amada: “eram perfumes, porque as rosas do céu só têm perfumes; eram harmonias, porque as harpas do céu só têm harmonias; e o lábio da mulher bela é uma rosa divina, e seu coração é uma harpa do céu”477.

474

HEBBEL, Friedrich. Eu e tu. In: MEURER, Flávio, org. Amor, paixão e ironia: poesia do romantismo alemão. op.cit. p. 112-3. 475 AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. V.2. p. 21. 476 Idem, p.23. 477 Idem, p.140.

197 Tanto em Álvares de Azevedo, como em Lessa e outros autores, a formação da imagem de uma mulher pura utiliza referências que remetem ao discurso religioso cristão. A garantia de integridade moral e dignidade pessoal da mulher amada estaria associada à sua adequação a um perfil virtuoso cultivado pela tradição cristã. O repertório de expressões de Pensamentos dela478 está ajustado a essa concepção. O sujeito lírico, semelhantemente ao que ocorre em Amor e medo e Eu não te encaro, donzela, renuncia deliberadamente ao contato amoroso concreto. Ele diz: “não ouso / leve turbar teu virginal repouso” (v.5-6). E condiciona a preservação da ilusão amorosa à posição tomada: “Prefiro amarte bela no segredo! / Se foras minha tu verias cedo / morrer tua ilusão” (v.12-4). Em parte, a idéia é similar à de Eu e tu, de Hebbel. A busca de uma “ilusão de mulher” (v.15) em Desânimo479, a nostalgia em O lenço dela480, e o distanciamento entre o sujeito e a amada em Sonhando481 constituem elementos de representação que caracterizam as expectativas amorosas e seus encaminhamentos de modos de acordo com os quais é inviável a relação amorosa concreta. Em um ponto oposto, encontramos a figura da mulher que se entrega. O poema de Rilke A cortesã é exemplar nessa caracterização. Nesse texto, a voz do sujeito lírico é a da própria mulher, que comenta um passeio em Veneza. O ponto principal é a imagem de que os “mancebos (...) morrem-me à boca, qual

478

AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. V.1. p. 257-8. Idem, p.244-5. 480 Idem, p.246. 481 Idem, p.12-4. 479

198 se envenenada” (v.13-4)482. A experiência de contato com a mulher é como um veneno. Analogamente ao que explica Howard Bloch a respeito da poesia medieval, também aqui se observa, entre a mulher pura e a cortesã, uma ligação básica. Em Abreu, se o rapaz tiver contato com a moça, remove sua inocência; em Rilke, se tiver contato com a prostituta, está sujeito ao envenenamento, ainda que figurado. Nos dois casos, o contato amoroso consiste em uma ameaça de corrosão de uma certa integridade. A oposição aponta para um campo de regras comum, há uma afinidade entre “condenação e idealização” 483. Álvares de Azevedo apresenta uma definição de prostituição como lodo, em Macário484, e descreve Cláudius Hermann, na Noite na taverna, como um homem que se envolve de maneira promíscua com prostitutas, e que mais 485

adiante define que sua mocidade fora jogada no “lodo” um poema sobre o assunto, Oh! não maldigam

. O autor escreveu

486

. A preocupação do sujeito

lírico é que um rapaz que “foi ao lupanar pedir um leito” (v.3) não seja malfalado. Os beijos da prostituta, a “perdida” (v.8), são “beijos de veneno” (v.6), analogamente ao que propõe a cortesã de Rilke. O texto insiste na caracterização negativa da situação, utilizando termos como “vício” (v.6 e 14),

482

RILKE, Rainer M. A cortesã. In: MEURER, Flávio, org. Amor, paixão e ironia: poesia do romantismo alemão. op.cit. p. 188-9. 483 Conforme BLOCH, R. Howard. A lírica do amor e o paradoxo da perfeição. op.cit. p.199. 484 AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. v.2. p.22. 485 Idem, p.131 e p.141. 486 AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. V.1. p.283-4.

199 “nodoou” (v.17), “crime” (v.12) e “leito profanado” (v.22). Associados ao sexo estão outros vícios, o “vinho” e o “jogo” (v.7) 487. O assunto ganha mais interesse com os poemas A namoradeira, de Franklin Dória, e A freira, de Junqueira Freire. Neles, as representações de mulheres escapam aos estereótipos. Em Dória, uma voz feminina comenta sua própria vocação para a pluralidade de interesses amorosos. Vaidosa, onde quer que esteja, tem “um cortejo / de mancebos galhardos, gentis” (v.6-7). Ao final, a moça antecipa que, quando envelhecer, deixará de lado esse modo de vida. Isto é, enquanto ela puder se olhar com vaidade, vai cultivar a diversão com os “mancebos”. Depois, quando isso não for mais possível, diz: “Tomo as contas, beata vou ser” (v.60). O poema aborda de maneira inusitada os tipos tradicionais de representação da mulher. Enquanto merecer ser admirada,

ela

se

entregará

à

sedução

dos

rapazes,

não

exigindo

distanciamento; e se tornará “beata”, casta, virtuosa, quando a vaidade acabar 488

. Freire, como Rilke e Dória, cria um eu lírico feminino. De acordo com o

poema, a “estrela vésper” tem uma influência forte sobre as mulheres, despertando seu erotismo. A “jovem freira” (v.1), sentindo-se vulnerável e ameaçada, alerta contra o “ardor”(v.22) e a “volúpia” (v.31) motivados pela estrela. Aqui sozinha, ninguém não sabe 487

Como explica Paulo Franchetti, “(...) o sexo, sentido sempre como violentação da pureza espiritual, como mácula, é associado à contravenção e ao crime (...) e vivido de forma extremamente culpada e dolorosa (...)” FRANCHETTI, Paulo. A poesia romântica. op.cit. p.207. 488 DÓRIA, Franklin. A namoradeira. In: RAMOS, Péricles Eugênio da Silva, org. Poesia romântica: antologia. op.cit. p.260-1.

200 Dos meus desejos, dos males meus. (...) A estrela vésper produz nas virgens Estranho incêndio, vulcão fatal: Quer seja freira - do Cristo filha, 489 Quer seja antiga pagã vestal.

O poema expõe a freira, exemplo de mulher virtuosa e pura, comprometida com a castidade, manifestando uma intimidade erótica. Ainda que o discurso seja auto-repressor, ele pressupõe uma inadequação da mulher a qualquer dos tipos estereotipados da tradição, por sua ambivalência.

3.4.2. Extremos

Cheguei mesmo à conclusão de que escrever é a coisa que mais desejo no mundo, mesmo mais que amor. Clarice Lispector, Cartas

Jamil Haddad discute o tema das representações da mulher em Álvares de Azevedo, propondo que, em alguns casos, as virgens de Azevedo têm sensualidade, havendo uma margem de fusão entre os termos opostos490. O poema Malva-maçã (em anexo à p.292), incluído na terceira parte da Lira dos vinte anos, é um caso de reverência à distância associada a apreciação meticulosamente exposta do corpo feminino. A primeira estrofe do poema consiste em uma seqüência de exclamações referentes ao encanto que uma moça provoca. A idéia geral é de que seria ditoso quem conseguisse o prazer de ter contato físico com ela. Os pontos de

489

FREIRE, Junqueira. A freira. In: RAMOS, Péricles Eugênio da Silva, org. Poesia romântica: antologia. op.cit. p. 204-6. 490 HADDAD, Jamil M. Álvares de Azevedo, a maçonaria e a dança. op.cit. p.21.

201 exclamação nos versos pares têm função de ênfase, atribuindo intensidade a esse prazer suposto. No entanto, na segunda estrofe, o sujeito estabelece que o objeto de seu interesse não é especificamente a moça, mas a folhinha que ela carrega, a malva-maçã do título. A terceira une as idéias anteriores, através de uma manifestação de inveja da folhinha por parte do eu lírico, em razão de haver ocorrido contato corporal entre a moça e sua malva-maçã. A quarta e a quinta estrofes consistem em uma descrição física da mulher. É nessa parte que se mostra com maior clareza o esforço contemplativo do sujeito, dedicado à percepção minuciosa da figura feminina. O olhar desliza literalmente de alto a baixo: são citados o cabelo, o olhar, os olhos, os lábios, o seio e o colo. Após esse movimento da percepção visual, na sexta estrofe, o sujeito explica como sente a possibilidade de um contato corporal. Então, lêse: "Fôra morrer - nos teus lábios / Aspirar tu`alma pura! / Fôra ser Deus dar-te um beijo / Na divina formosura." (v.33-36). Nos versos citados, percebe-se, pelas imagens escolhidas, que o contato amoroso é considerado algo tão extremo em seu prazer, que joga o sujeito para além dos limites do humano. Primeiramente, tem-se a idéia de morrer, e depois, de ser Deus. Tanto morrer como ser Deus são modos de abandonar a condição humana. A seguir, o sujeito declara abdicar do contato amoroso, preferindo apenas ter a malva-maçã que a moça carrega. Ele realiza uma renúncia voluntária e consciente. Não se trata de ter sido rejeitado, de julgar que não tem chances de ser aceito, ou de a mulher estar impedida, por

qualquer razão, de se

comunicar com ele. Simples e espontaneamente, o sujeito abre mão de propor

202 um relacionamento. Quanto à folhinha, ele declara que pretende usá-la para poder sentir o perfume da moça (v.45-6), apertá-la no peito (v.55), beijá-la ternamente (v.56), dormir com ela nos lábios (v.57), e beijá-la sonhando com a moça (v.59). A situação parece, em princípio, destituída de bom senso. Se não há qualquer impeditivo para a declaração de amor e para a eventual aceitação por parte da moça, não haveria razão lógica para o sujeito deixar de lado a possibilidade de envolvimento. No entanto, o que ele pede não é o contato físico, “não é tanto” (v. 37-8). Beijar a moça e ter contato físico com ela se apresenta como “tanto”, isto é, como algo marcado por uma grande importância em termos emocionais. Daí as imagens fundamentais “morrer” (v.33) e “ser Deus” (v.35), apresentadas quando se formula a hipótese de contato físico. Tocar a moça significa ir além dos limites habituais da condição humana. Se pensarmos a partir de Keats, trata-se de uma representação do amor como intensidade

491

. Se considerarmos Schiller, é ainda um amor sublime, em

que sobre a mulher é projetada uma grandiosidade imponderável, que coloca a possibilidade de contato com ela fora dos parâmetros rotineiros da existência, como se pudesse ser superada a nossa condição humana precária 492. Cabe considerar um trecho de Vitor Hugo. Se eu fora Deus, senhora, se eu tivera Anjos, demônios, a meus pés curvados, O caos profundo, os mundos constelados, Os mares com seus bravos escarcéus, 491

Conforme Keats, citado por ABRAMS, M.H., The mirror and the lamp: romantic theory and the critical tradition. op.cit. p.136. 492 SCHILLER. Acerca do sublime. op.cit. p.61.

203 A terra, o ar, a eternidade, os céus, Se eu fora Deus, senhora, isto valera Um só dos beijos teus.

Neste

fragmento

de

A

uma

493

mulher

,

encontramos

proporções

sentimentais grandiosas, equivalentes em desmedida às de Malva-maçã - um beijo da mulher equivale a ser Deus. De qualquer modo, sendo uma representação de um amor intenso e sublime, esse poema é na verdade uma representação da renúncia a um amor intenso e sublime. Os versos 37 e 38 indicam que a declaração de amor elaborada nas estrofes iniciais não pretende persuadir a moça ao envolvimento amoroso. As ações que o sujeito pretende realizar com a folhinha - dormir com ela, beijar, cheirar, apertar - são metonímicas. A malva-maçã serve como substituição figurada da moça, e o sujeito realiza com a primeira o que poderia eventualmente tentar com a segunda. A esse respeito, cabe lembrar a observação de Sontag de que os envolvimentos “entre o melancólico e o mundo”, de modo geral, “se dão com coisas (e não com pessoas)”494. Em Quando à noite no leito perfumado, a mulher estava dormindo, e por isso não havia conversa entre ela e o sujeito. A sua descrição, como já se mencionou, atribui a ela uma caracterização de pura e virtuosa. No caso de Malva-maçã, a mulher também é chamada de “virgem” (v.43) e “donzela”

493

HUGO, Vitor. A uma mulher. In: MAGALHÃES JR., R., org. O livro de ouro da poesia da França. op.cit. p.153. Cabe registrar aqui uma passagem de Macário, em que o protagonista afirma: “Eu amei muito essa mulher. E por vê-la uma hora ao pé de mim - semi-nua - embora fosse adormecida - só por vêla, e por beijá-la de leve - eu daria minha vida inteira ao nada”. AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. v.2. p.72. 494 SONTAG, Susan. Sob o signo de Saturno. op.cit. p.93.

204 (v.48), e a hipótese de envolvimento é considerada uma “angélica ventura” (v.32). Influi aqui, também, portanto, o fato de que, no século XIX, e de modo geral na tradição ocidental, é preciso ter reserva com relação à mulher pura. Se ela é “virgem” e “donzela”, não se deve exigir contato físico, pois isso faria dela uma “meretriz”. Porém, em Malva-maçã, o problema vai mais longe. O texto acentua muito a condição corpórea da mulher. A primeira, a quarta e a quinta estrofes constituem uma imagem concreta e sensual da figura feminina. As reações do sujeito lírico indicam, ainda que de modo difuso, excitação sexual: as expressões “me inebria” (v. 19), “enlanguesce-me de gozo” (v.26) e “trêmulo delíquio” (v.29) mostram alterações no estado de ânimo e no comportamento do corpo do sujeito. A idéia de reserva, mesmo que possa ser aplicada ao caso, não dá conta dessa rede semântica que torna erótico o olhar do sujeito. A contemplação não ocorre apenas por reverência, mas sobretudo por interesses eróticos. A principal razão da resistência ao envolvimento talvez esteja expressa simbolicamente nas imagens de “morrer” (v.33) e “ser Deus” (v.35). São imagens que propõem que a intensidade do contato entre o sujeito e a moça seria tal que iria extrapolar os limites do humano.

A renúncia ao contato

amoroso é então renúncia a essa intensidade, com uma opção por uma medida de prazer aceitável para esses limites. Ao manifestar o desejo pela folhinha, o sujeito explicita sua disposição para o sexo, que descaracteriza seu comportamento como modelo de respeito

205 à mulher burguesa. No entanto, o fato de estar disposto não significa que o envolvimento sexual seja a melhor alternativa para suas expectativas afetivas. Tanto em Quando à noite no leito perfumado como em Malva-maçã observamos a presença de dois elementos. O primeiro consiste na idealização da mulher, e o segundo no fato de que entre ela e o sujeito lírico não se concretiza uma relação amorosa bem-sucedida. No primeiro poema, embora a moça importe mais do que o porvir e o céu, o eu não pode fazer mais do que beijá-la “a furto” (v.9); no segundo, apesar de que um beijo na moça represente um extremo - “ser Deus” (v.35), o sujeito quer beijar apenas a malva-maçã (v.56). Ajustando os termos da teoria da ironia às situações apresentadas nos poemas, podemos observar que as idealizações correspondem a um “entusiasmo”. Isto é, as mulheres são percebidas como dotadas de traços que atribuem a elas uma transcendência. Os sujeitos líricos sentem as suas presenças como incidências de algo de divino no mundo terreno. No entanto, contemplar as mulheres não é, naturalmente, como admirar Deus ou a eternidade. Trata-se da observação de seres concretos. São moças capazes de despertar um fascínio extremo, mas não está em suas almas a razão principal desse fascínio. A concretude física, evidenciada nas referências a partes do corpo em ambos os poemas (em especial, na quarta e quinta estrofes de Malva-maçã), é uma das motivações de interesse dos sujeitos líricos. Porém, em nenhum dos casos, ocorre um envolvimento sexual. A contemplação dos corpos não conduz a um relacionamento com eles.

206 Considerando que, no final de Quando à noite no leito perfumado, o eu manifesta estar consciente da importância que atribui às ilusões (v.24), e que o pedido da folhinha, em Malva-maçã, funciona como mecanismo de substituição do contato com a moça, entende-se que o resultado da reverência ao componente transcendental das moças é a preservação do distanciamento. A motivação corpórea do interesse é moralmente contraditória, com relação à reverência. Essa contradição constitui um efeito irônico. O emprego da palavra “ilusões” em Quando à noite..., que distingue o que é desejável e o que é viável para o sujeito,

e a renúncia voluntária em Malva-maçã, diminuindo as

expectativas do desejo, para aquém dos extremos, representam, de modos diferentes, o contato com a realidade precária, e não com a transcendência feminina. Examinada em seu conjunto, a lírica amorosa incluída na Lira dos vinte anos se caracteriza por um movimento que remete ao conceito romântico de ironia. De modo geral, os poemas expõem as mulheres amadas, alvos do interesse dos sujeitos líricos, como dotadas de traços elevados, puros, divinizados, merecendo reverência. Quando isso não acontece, no caso de Oh! não maldigam, a abordagem negativa da figura, por simetria, confirma o princípio geral. No entanto, as relações amorosas não chegam a se realizar concretamente, por diferentes justificativas e pretextos, mas segundo um princípio constante: o distanciamento está associado à integridade das mulheres; a aproximação é ameaçadora.

207 Se seguirmos o esquema proposto por Solger, as abordagens idealizantes da mulher correspondem ao elemento de “entusiasmo”, em que a obra de arte permite o reconhecimento de uma expressão do Absoluto. É possível afirmar isso, se entendermos que este se expresse não apenas na forma de Deus, mas por meio de traços, sinais, indicações de sua presença, levando em conta o teor do poema Panteísmo, anteriormente comentado. As renúncias por parte dos sujeitos líricos, as manifestações de ansiedade, as expectativas não realizáveis e os devaneios desnorteantes demonstram a consciência dos sujeitos de que o Absoluto não pode ser plenamente e continuamente vivido, ou de que se isso ocorresse, incorreria na mácula da pureza e na ruína do ideal. Por isso, constituem o elemento de “ironia” das representações

495

.

Na medida em que a lírica amorosa de Azevedo é constituída com base nos princípios do distanciamento, da ausência e da tristeza, sua proposta estética é, por definição, melancólica. O que prevalece constantemente é a auto-absorção do sujeito, que reflete sobre si mesmo, a partir das experiências de falta de comunicação ou de contato físico, e se entrega ao sonho, à ilusão, ao devaneio.

495

COLETTE, Jacques. Enthousiasme et ironie. op.cit. p.494.

208

3.5. Perda Com tal dor, entenebreceu-se-me o coração. Tudo o que via era morte. A pátria era para mim um exílio, e a casa paterna, um tormento. Tudo o que com ele comunicava, sem ele convertia-se em enorme martírio. Os meus olhos indagavamno por toda parte, e não me era restituído. (...) Creio que quanto mais o amava, mais odiava e temia, como inimigo feroz, a morte que mo arrebatara. Santo Agostinho, Confissões Blues fúnebres Que parem os relógios, cale o telefone, jogue-se ao cão um osso e que não ladre mais, que emudeça o piano e que o tambor sancione a vinda do caixão com seu cortejo atrás. Que os aviões, gemendo acima em alvoroço, escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu. Que as pombas guardem luto - um laço no pescoço e os guardas usem finas luvas cor-de-breu. Era meu norte, sul, meu leste, oeste, enquanto viveu, meus dias úteis, meu fim-de-semana, meu meio-dia, meia-noite, fala e canto; quem julgue o amor eterno, como eu fiz, se engana. É hora de apagar estrelas - são molestas guardar a lua, desmontar o sol brilhante, de despejar o mar, jogar fora as florestas, pois nada mais há de dar certo doravante. W. H. Auden

3.5.1. Formas da perda

Mignon 1. Só quem conhece a saudade 2. Sabe o que estou a sofrer! 3. Sozinha na soledade, 4. Longe de todo o prazer, 5. Olho para a imensidade, 6. Lá bem para aquele lado. 7. Ai! quem me tem amizade 8. Longe está, mui apartado! 9. Deliro, e na ansiedade 10. Sinto as entranhas a arder!... 11. Só quem conhece a saudade

209 12. Sabe o que estou a sofrer!

496

Ao abordar a saudade, o poema de Goethe reúne alguns dos elementos básicos do repertório tradicional de representação da melancolia: solidão (v.3), atitude contemplativa (v.5), dor da perda (v.7-8), desordem mental (v.9) e perturbação física (v.10). A repetição dos dois primeiros versos ao final enfatiza a idéia principal: o sofrimento por ausência da pessoa amada é único, só pode ser reconhecido por quem partilha a mesma experiência. Goethe conseguiu figurar o melancólico naquilo que ele tem de essencial - ser, nos termos de Auerbach, “um estranho entre os homens”497. Os temas da saudade e da perda são importantes no romantismo. Laurindo Rabelo escreveu um texto chamado Saudades498, com caracterização melancólica, em que o sujeito lírico declara que a vida sem a pessoa amada é intolerável, e declara: “Melhor que tal existência / mil vezes fora morrer” (v.901). Em Soares de Passos, a idéia de que a morte liberta de um sofrimento por perda é levada ao extremo, com o recurso do fantástico, pela representação da comunicação com os mortos499.

496

GOETHE. Mignon. In: CAMPOS, Geir, org. O livro de ouro da poesia alemã. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. p.61. 497 AUERBACH, Erich. Introdução aos estudos literários. op.cit.. p.228. 498 RABELO, Laurindo. Saudades. In: BANDEIRA, Manuel, org. Antologia dos poetas brasileiros: fase romântica. op.cit. p.141-4. 499 O poeta português escreveu O noivado do sepulcro, sobre perda por morte. A obra dá voz a um morto que cobra o “amor eterno” (v.24) de sua amada, que permanece viva. A moça responde, através de um eco (v.41-2), e diz que no seu próprio peito “reina a morte” (v.50). Depois, ela anuncia que deixou a vida, pois o mundo não interessava sem amor (v.55-6). Ao final, os dois esqueletos se unem (v.75-6). SOARES DE PASSOS. O noivado no sepulcro. In: MOISÉS, Massaud, org. Presença da literatura portuguesa. São Paulo: DIFEL, 1961. v.2. p.177-9.

210 José Bonifácio é autor de Saudade500. A falta da mulher amada é associada à degradação da natureza, como se entre a vida particular do sujeito e o andamento do cosmos houvesse uma sintonia, estando ambos em um percurso destrutivo. A paisagem se converte em ruína, e o sujeito cai em abandono doloroso. Também Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu escreveram poemas com o título Saudades. No texto de Azevedo, o sujeito lírico fala da esperança de um amor, “uma virgem tão doce, tão divina” (v.11), que adormecia junto a ele (v.12). Essa moça, seu primeiro amor (v.29), causou anos de sofrimento, pela saudade (v.41-2). Ao final, ele pede que, quando morto, receba a atenção 501

amorosa da moça (v.54-5)

. Embora a abordagem não seja a mesma, esse

elemento remete ao texto de Soares de Passos anteriormente citado, em que é central. O poema de Abreu, por sua vez, fala de saudades de “amores” (v.23) e da “terra” (v.24). O sujeito propõe-se a uma meditação (v.2), no silêncio (v.9), à noite (v.1), na solidão (v.17). O motivo da meditação são as dores (v.22) que o perturbam, em razão da distância da terra de origem502. Encontramos na primeira parte da Lira dos vinte anos quatro poemas que consistem em lamentos sobre perdas. São eles: Anjinho, No túmulo de meu amigo João Batista da Silva Pereira Júnior, Tarde de outono e Virgem morta. Com exceção de Tarde de outono, em que a experiência da perda diz respeito ao passado do sujeito lírico, os poemas citados representam perdas por morte.

500

BONIFÁCIO, José. Saudade. In: BANDEIRA, Manuel, org. Antologia dos poetas brasileiros: fase romântica. op.cit. p.152-4. 501 AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. V.1. p.95-8. 502 ABREU, Casimiro de. Saudades. In: ____. Poesias completas. op.cit. p.14-5.

211 A reflexão de Freud em Luto e melancolia503 estimula uma leitura de Álvares de Azevedo pautada pela conexão entre a atitude melancólica e a experiência da perda. O propósito é examinar os textos que representam perdas e verificar se existem características comuns a eles, o que permitiria caracterizar uma perspectiva melancólica que os fundamentasse. Para Jean Louis Schefer, “le savoir

mélancolique

serait

quelque

chose

comme

la

reconnaissance

504

prospective des objets”

. As representações de perdas estariam orientadas

no sentido de uma tentativa de reencontro com os objetos perdidos. Podemos encarar os poemas como manifestações de lamentos, em que as representações dos objetos são condicionadas por algum tipo de postura capaz de expressar melancolia.

3.5.2. As perdas em Azevedo Chega um momento da vida em que, entre todas as pessoas que conhecemos, os mortos são mais numerosos que os vivos. E a mente se recusa a aceitar outras fisionomias, outras expressões: em todas as faces novas que encontra, imprime os velhos desenhos. Ítalo Calvino, As cidades invisíveis Parecia encantada pelo anjo da melancolia e pelo duplo sonho da inocência e do sepulcro; nada tão celestial voltei a ver em minha vida. Chateubriand, Atala-René

3.5.2.1. Anjinho

503 504

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia.op.cit. SCHEFER, Jean Louis. Paradis perdu. L `ecrit du temps. Paris: Minuit, printemps 1987. n.13.

212 A perda de crianças é o assunto de poemas importantes de Gonçalves Dias e Fagundes Varela. O primeiro escreveu Sobre o túmulo de um menino505. O sujeito lírico refere-se à criança como “anjo” (v.1), e faz ver o contraste entre a finitude da criança e a “plaga eterna do infinito” (v.9) onde ela é jogada. Dentro de uma perspectiva cristã, o texto representa a morte como “oferenda de amor a Deus” (v.10), e recomenda que não se chore. Varela é autor do Cântico do calvário

506

, dedicado a seu próprio filho. O texto salienta a pureza e

a inocência da criança, e desenvolve também uma abordagem marcada por referências cristãs. De acordo com a última estrofe, o menino estaria dormindo no seio do próprio Criador. Álvares de Azevedo escreveu, sobre a mesma temática, o texto Anjinho, em anexo à p.273. O poema comenta a perda de uma criança. Inicia, no entanto, com uma negação dessa perda: o sujeito lírico afirma que ela “não morreu” (v.1, com repetições no v.49 e v.78). Os versos 2 e 3 apresentam uma estratégia de simbolização da perda que procura amenizá-la: “era um anjinho do céu / que um outro anjinho chamou!”. A imagem do chamado do segundo anjo caracteriza a morte como uma solicitação divina, o que a justificaria de maneira positiva. Além disso, é intencionalmente enfatizada, através da palavra “outro”, uma identificação entre o ser celeste e sacro e a criança perdida, referida como “anjo lindo” no verso 40. Essa identificação procura atribuir um traço sublime a ela. A imagem do “outro”, o celeste, reaparece de maneira mais elaborada na

505 506

DIAS, A. Gonçalves. Obras poéticas. op.cit. v.2. p.143. VARELA, Fagundes. Cântico do calvário. In: ____. Poemas. São Paulo: Cultrix, 1982. p.67-72.

213 terceira estrofe, em que é descrito como “vestido de luz” (v.14). Álvares de Azevedo se vale, no caso, assim como Gonçalves Dias em Sobre o túmulo de um menino, de uma tradição católica que freqüentemente confunde anjos com crianças e bebês, comentada por Harold Bloom507. O uso do diminutivo no título e no verso 2 estimula essa associação. Na estrofe inicial, as imagens de “luz”, no verso 4, e “estrela divina”, no verso 5, acentuam a intenção de firmar o traço sublime, em uma linguagem familiar ao discurso cristão. A luz, como se sabe, na Bíblia, é constantemente associada a Deus, para quem aponta o adjetivo “divina”. O traço semântico luminosidade é encontrado na “estrela”, de modo que as imagens adquirem coesão no plano conotativo. A primeira estrofe consiste em uma conversão da morte em um evento sacro e sublime, de modo que se perceba um sentido positivo na perda. A segunda estrofe faz um comentário sobre a beleza da criança. Álvares de Azevedo, neste caso, parece ter se descuidado do acabamento na seleção lexical, pois empregou a forma substantiva “beleza” no verso 8 e o adjetivo “bela” no verso 12, e a repetição não constitui acréscimo semântico, resultando apenas em redundância enfática e ajuste ao esquema de rimas aabccb. A quarta estrofe apresenta uma imagem importante, a de que o mundo não havia ainda passado seu “lábio visguento, imundo” na roupa da criança (v.1921). Cria-se um contraste entre a criança, por um lado, e o mundo, por outro, sendo a primeira pura e imaculada, e o segundo degradado. Ao mesmo tempo

507

BLOOM, Harold. Presságios do milênio. Anjos, sonhos e imortalidade. Rio de Janeiro: Objetiva, 1996. p.49.

214 em que essa construção serve para indicar como a criança ainda é pequena, tendo tido pouco tempo de vida, ela aponta para uma relação negativa do sujeito com a realidade externa. O contato com o mundo é percebido como exposição à sujeira. Imagem afim está no poema Minha desgraça (p.211), na segunda parte da Lira, em que se afirma que "o mundo é um lodaçal perdido”. A idéia de sujeira está estreitamente associada à idéia de ruptura com uma ordem estabelecida

508

. É como se a criança guardasse uma pureza espiritual,

apropriada para a concepção cristã de existência, não atingida pela desordem do mundo. Como um Adão inocente antes da queda, ela se manteve distante de possibilidades de contato com o mal. Enquanto fazemos a leitura do poema, observamos um recurso de emprego constante: o ponto de exclamação. Lê-se “Não chorem! que não morreu!” (v.1), “Pobre criança!” (v.7), “Ai meu Deus! era tão bela!” (v.12), “Tão cedo!” (v.19), entre outros casos. A pontuação, neste texto, não é casual ou gratuita; ela tem função estética. Considerando os trechos mencionados, apenas quatro estrofes de seis versos cada, devemos observar que há até aqui quatorze pontos de exclamação. Ao todo, em Anjinho, são trinta e seis; é uma incidência muito elevada. Para definir a função desse recurso, temos de determinar qual o sentimento condutor do discurso do sujeito lírico. Em uma leitura hegeliana,

"Sujeira, então, não é nunca um acontecimento único, isolado. Onde há sujeira há sistema. Sujeira é um subproduto de uma ordenação e classificação sistemática das coisas, na medida em que a ordem implique rejeitar elementos inapropriados." DOUGLAS, Mary. Profanação secular. In: ____. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, l976. p.50. 508

215 devemos considerar que a finalidade dos recursos lingüísticos é “a expressão da subjetividade”509. Um caminho para examinar esse sentimento pode ser pensado a partir de Milton. No canto XI do Paraíso perdido

510

, encontramos uma fala de Eva, no

momento em que tem de deixar o Paraíso. O lamento pela perda enunciado por ela está carregado de dois recursos de pontuação: pontos de exclamação e pontos de interrogação. Nesse lamento, a dor da personagem está ligada, por um lado, ao encanto por elementos do paraíso com que ela terá de deixar de conviver e, por outro, à culpa pela transgressão que resultou no fato de ela e Adão serem expulsos. A perturbação de Eva está como que num entremeio, que não é nem indignação (por existir a culpa), nem resignação (por existir o encanto), é algo entre os dois sentimentos. Embora o sujeito lírico de Anjinho

não carregue em si mesmo nenhuma

culpa similar à de Eva, sua impotência diante da morte da criança e sua necessidade imperativa de encontrar um sentido positivo para ela o colocam também num meio termo entre a indignação e a resignação, que não se identifica com nenhum dos dois sentimentos, de maneira precisa. Esse meio termo é resultante da fé na vontade de Deus, responsável pelo envio do outro anjo e pela determinação de levar a criança. Diante de Deus, para uma posição não pecadora, não deve haver indignação; mas, ao mesmo tempo, a resignação indicaria uma indiferença desumana, incompatível com sentimentos religiosos.

509 510

HEGEL. O conteúdo da poesia lírica. op.cit. p.608-9. MILTON, John. Paraíso perdido. Belo Horizonte: Vila Rica, 1994. p.418-9.

216 Assim, o emprego da pontuação, tanto em Milton como neste texto de Álvares de Azevedo511, representa uma manifestação de perturbação emocional, exposta com intensidade, mas sem que se expresse qualquer desrespeito a Deus. Não se cogita a idéia de que fosse uma crueldade divina a morte da criança; a vinculação simbólica desta com o outro anjo torna sua morte uma experiência sublime, sem violência. A sétima estrofe chama a atenção para o sofrimento da criança antes de sua morte, e o sujeito lírico demonstra piedade por essa situação. Os versos 41 e 42 indicam que, embora não demonstrasse sua agonia, a criança expressava algo em seus “olhos expandindo”. O texto deixa com isso em aberto um certo enigma com relação ao interior da criança, ao que ela sentia. Esse enigma está ligado à sua dualidade básica, que consiste em, por um lado, ser uma criança que, como qualquer ser humano, sofre a dor e a morte e, por outro, ter traços elevados que a caracterizam como “anjinho”. Sendo ao mesmo tempo material e imagem espiritual, humana e transcendental, a criança apresentada pelo sujeito lírico parece distante de seu próprio drama, pois “nem gemia” (v.40). Na décima estrofe, o poema emprega imagens da natureza para comentar metaforicamente o ocorrido: 58 Era uma flor de palmeira 59 Na sua manhã primeira 60 Que um céu d`inverno murchou!

511

A interpretação desse recurso formal não tem aplicação generalizada. Em Malva-maçã, por exemplo, a recorrência de pontos de exclamação serve como ênfase positiva na descrição dos encantos de uma mulher, não se tratando, portanto, do mesmo propósito.

217 Este procedimento de simbolização remete a Shakespeare, que propõe uma analogia entre a decomposição de vegetais e a aproximação da morte, em seu soneto 73

512

. A “flor” representa a criança, a “manhã”, o início da existência, e

o “inverno”, a ação destrutiva da morte. A função simbólica dessas imagens é “naturalizar” o que ocorreu com a criança, isto é, fazer com que seu falecimento seja visto como um episódio de deterioração entre outros, seguindo leis naturais comuns aos seres vivos. A naturalização, assim como a atribuição de traços sublimes, pode diminuir a carga de choque da situação, e aliviar a dor. A décima primeira estrofe caracteriza a morte como uma situação privilegiada de entrega ao paraíso. A figura da “pérola” (v. 65) acentua a imagem positiva da criança, insistindo no afastamento de qualquer atmosfera de morbidez fúnebre. A repetida atitude do sujeito lírico de pedir que não ocorra choro aponta para uma intenção de, mais do que justificar, atribuir a essa morte uma caracterização positiva. O verso 66 sugere um destino enobrecedor para a criança - os “sonhos do paraíso”. Na décima segunda e na décima terceira estrofes, o sujeito lírico elabora questões no sentido de fazer com que se observe que, na natureza, as perdas têm de ser aceitas. Neste ponto, Azevedo remete a Gregório de Matos, que escreveu o seguinte texto.

A Francisco Pereira de Azevedo, nascendo-lhe um neto na mesma hora em que lhe morreu uma neta

512

SHAKESPEARE, William. Soneto 73. op.cit. p.86-7.

218 Soneto 1. 2. 3. 4.

Até vir a manhã serena e pura, A estrela d`alva está resplandecente; Mas quando o Sol se mostra mais luzente, Tanto ela se retira mais escura.

5. 6. 7. 8.

Enfim rompe do Sol a formosura, As frias nuvens desfazendo ardente, Quando se vê nascido no oriente, Então morta se vê na sepultura.

9. No céu de vossa casa luminoso 10. Mariana assistiu, estrela bela, 11. Até nascer de Pedro o Sol formoso. 12. E se o Sol se vê nele, e a estrela nela, 13. Sendo nascido o Sol, era forçoso 513 14. Que se havia de ver defunta a estrela.

O poema propõe uma analogia entre os dois acontecimentos indicados na dedicatória e os movimentos dos astros celestes. A morte de Mariana é representada como desaparecimento de uma estrela, e o nascimento do Pedro como surgimento do Sol. A substituição da noite pela claridade do dia, sendo a estrela chamada de "defunta", ilustra a associação entre uma morte e um nascimento exposta na dedicatória. A analogia proposta entre corpos cósmicos e corpos humanos faz com que se observe o teor trágico do episódio como uma espécie de mimese de uma fatalidade da natureza. A retirada da estrela permite a irrupção da formosura do Sol. Como explica a última estrofe, de algum modo a morte de Mariana era necessária para o surgimento de Pedro. Trata-se de um poema marcado pela melancolia, em que se defende que a perda de uma pessoa querida deva ser interpretada como algo próprio da natureza, fiel a suas leis.

513

MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos. São Paulo: Círculo do Livro, s.d. p.306.

219 Guardadas as diferenças entre os poemas, é possível observar que, de maneira similar, Álvares de Azevedo propõe que a morte do “anjinho” seja comparada ao murchar do jasmim (v.68), ao desaparecer do “astro” no céu (v.71514), à queda da ave (v.74) e à irerê boiando (v.77), de maneira que se considere que, assim como esses fenômenos, por serem naturais, são inevitáveis e forçosos, também a perda da criança é necessária. Os recursos empregados para amenizar e justificar simbolicamente a perda da criança têm como propósito, nos termos de Davi Arrigucci Jr., “instaurar a meditação capaz de tornar admissível a própria idéia de morrer”515. A primeira estrofe, que abre com a negação dessa idéia - “Não chorem! que não morreu!” - se repete no final, já tendo reaparecido como nona estrofe

com uma

pequena alteração de pontuação. A reincidência enfatiza a negação. Do início ao final, o poema defende uma recusa simbólica da perda e da dor por ela provocada. No entanto, a defesa é tão veemente que acaba expressando o incômodo que a motiva. Cabe lembrar a gravura Melancolia, de Dürer, porque nela encontramos um anjinho, figurado como uma criança. Ele segura instrumentos dedicados à astronomia e à topografia. De acordo com Hartmut Böhme, considerando seu olhar, sua posição e seu modo de rabiscar, ele integra a gravura como uma figura inacabada: sua melancolia não é amadurecida (como no caso do anjo

514

Trata-se de uma imagem similar à de O salgueiro (Le saule), de Musset. MUSSET, Alfred de. O salgueiro. op.cit. p.44-5. 515 ARRIGUCCI JR., Davi. Humildade, paixão e morte. A poesia de Manuel Bandeira. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 222.

220 maior, concentrado em si mesmo), mas é sugerida delicadamente

516

. Ele

representa uma relação imprecisa com o saber técnico. Seu papel no quadro consistiria em figurar essa imprecisão como algo ligado à inocência infantil. O ponto de contato entre o Anjinho de Álvares de Azevedo e a imagem de Dürer está no fato de que, na gravura, apreendemos visualmente um dos elementos subjetivos que o poeta brasileiro se propôs a representar - a combinação ambígua de materialidade e espiritualidade, humanidade e transcendência, dor e pureza, constitui uma expressão visual de melancolia. O quadro, como o poema, tem como fundamento, nos termos de Panofsky e Saxl, o mundo “do luto e do fracasso humanos”

517

, ou, dizendo de outro modo,

da frustração.

3.5.2.2. No túmulo de meu amigo João Batista da Silva Pereira Júnior

O poema No túmulo de meu amigo João Batista da Silva Pereira Júnior (em anexo, à p. 277) é apresentado como um epitáfio. Compõe-se de 24 versos, distribuídos regularmente em seis estrofes. O texto inicia com uma atitude de reverência a Deus, em um pedido de perdão. Essa atitude, ao representar uma atitude religiosa do sujeito lírico, estabelece a linha condutora do poema. O pedido de perdão, na tradição cristã, está ligado ao ato da confissão, considerada um “meio de salvação”,

516

Conforme BÖHME, Hartmut. Dürer. Melencolia I dans le dédale des interprétations. Paris: Adam Biro, 1990. ps. 12, 16 e 18. Böhme se baseia, ao formular essa idéia, em Peter-Klaus Schuster. 517 KLIBANSKY, PANOFSKY & SAXL. Saturne et la mélancolie. op.cit.p.494.

221

uma forma de conforto e apaziguamento

518

. O perdão pelos pecados, obtido

junto a um padre, representaria uma espécie de purificação, necessária para libertar o fiel de uma punição após a morte, como a condenação ao inferno. Na primeira e na segunda estrofes, as imagens da túnica profanada, da coroa desfolhada, do “vaso impuro” e da “nódoa das paixões” são variações sobre um mesmo tema: a consciência culpada se expõe à purificação. Deus é definido como o interlocutor, e a fala constitui uma imagem do sujeito lírico como humilde e capaz de reconhecer sua própria necessidade de mudar. Na terceira estrofe, encontramos um lamento pela finitude: 9 E quantos sonhos na ilusão da vida, 10 Quanta esperança no futuro ainda! 11 Tudo calou-se pela noite eterna... 12 E eu vago errante e só na treva infinda...

No verso 11, a “noite eterna” está associada à morte. O traço semântico da escuridão reaparece no verso seguinte, na palavra “treva”. Não se trata, no entanto, de mera redundância, pois a palavra treva tem emprego constante no discurso cristão. José de Anchieta, por exemplo, utiliza-a em sua poesia lírica em oposição ao “lume” divino

519

. A treva está associada à ausência ou ao

afastamento de Deus. Em enfoque semelhante, Inácio de Loyola a emprega com conotação fortemente negativa, em sua reflexão sobre a morte 520. Os versos 9 a 11 se referem ao ente querido perdido, que foi impedido de realizar um futuro esperado. Diante do ocorrido, o sujeito lírico se encontra “vago errante”, isto é, desorientado, “só”, abandonado em razão da perda, “na treva”. Esta, por um lado, é uma retomada da escuridão em que o outro está, e 518

DELUMEAU, Jean. A confissão e o perdão: as dificuldades da confissão nos séculos XIII a XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p.37. 519 ANCHIETA, José de. Poesias. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1989. p.402. 520 LOYOLA, Inácio de. Sobre a morte. In: _____. Exercícios de Santo Inácio e leituras espirituais. Porto: Edições 15, 1934. p.65.

222

portanto é uma marca de uma conexão íntima com o ente perdido; por outro, é expressão de um distanciamento da ordem divina, já sugerido nas duas primeiras estrofes. O problema da perda é vivido pelo sujeito lírico de maneira grave, porque ele ressalta uma sensação de abandono, sendo que este se refere não apenas ao ente morto, mas também à divindade. É como se, simbolicamente, a perda representasse um vazio que, em certo nível, coincide com outro vazio, provocado pelo afastamento em relação a Deus. O verso 16 retoma esse afastamento, com a imagem “Entre as nuvens de Deus passei dormindo”. A última palavra do verso representa uma postura de indiferença ou inconsciência religiosa. O estado da alma é tenso: ela está “em fogo, sedenta de infinito”, como se estivesse desejosa de um Absoluto em que se ancorasse. A palavra “noite”, que já tinha sido empregada no verso 11 para representar a morte, reaparece no verso 17 com uma conotação mais genérica. A imagem “A vida é noite”, considerando a presença da expressão “tacteia a sombra” no verso 18, faz lembrar as sombras da caverna de Platão. Enquanto a luz está associada ao Bem, ao justo, ao belo e à verdade, a sombra condiciona uma perturbação da alma521. Afirmar que a “vida é noite” é sugerir que a existência está perturbada, distante do Bem e dos valores positivos. A escuridão tem um traço simbólico negativo. A imagem “o sol tem véu de sangue”(v.17) propõe uma compreensão da natureza como inquietante. Ela encontra similar na primeira estrofe de Crepúsculo nas montanhas, em que se lê: “Rubro flameia o véu sanguinolento / da tarde na agonia”522. Em ambos os poemas, a percepção do “véu de 521 522

PLATÃO. A república. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1990. p.321-2. AZEVEDO, Álvares de. Obras completas.op.cit. v.1. p. 57-60.

223

sangue” se associa a uma busca de alento. Mais uma vez, trata-se de uma percepção negativa da própria existência, que motiva uma busca de conforto espiritual. O verso 19 desloca a interlocução, antes definida como Deus, com a frase “Acorda-te, mortal!”. É como se a reflexão até então desenvolvida resultasse em um alerta. Este tem o propósito de, como indica o verbo “acordar”, trazer lucidez. O que se busca é a consciência das implicações da finitude: “é no sepulcro / que a larva humana se desperta à vida” (v.20). Saber que se vai morrer faz com que se exija mais da própria vida. Esta idéia é nuclear na lírica de Shakespeare, em sonetos como o 15 e o 73523. Como a morte é o “limite por excelência”524, sua presença imediata tem um caráter extremo. Cabe ressaltar a imagem da “larva”. Por consistir em um embrião de um ser vivo, ela está associada a expectativas de futuro. No entanto, o termo é empregado para se referir à formação de insetos. Trata-se de uma estratégia simbólica para se referir a seres humanos como ínfimos. Situada entre o verme de Machado de Assis, a barata de Clarice Lispector e as imagens repulsivas de Augusto dos Anjos, essa imagem de Azevedo, assim como a sua “A lagartixa”525, é dotada de um teor grotesco. A última estrofe fala de um certo som da morte, produzido pelas “harpas do peito” (v.21). Esse som é descrito como nota divinal. Como em Anchieta, o anúncio da morte é expressão de uma vontade divina526. Lembrando o poema Anjinho, é como se houvesse uma solicitação divina na base da perda. Essa nota ecoa “nas dulias angelicais”, isto é, em cultos dedicados a anjos. Coerentemente, o texto encerra com uma manifestação de reverência 523

SHAKESPEARE, William. Sonetos. op.cit. TODOROV, Tzvetan. Os limites de Edgar Poe. op.cit. p.157. 525 AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. v.1. p.190. 526 ANCHIETA, José de. Poesias. op.cit. p. 404. 524

224

religiosa, como havia começado. A divinização do som da morte faz com que esta seja considerada um fenômeno que, no âmago, guarda a experiência do sagrado. A principal razão disso é justamente o fato de ela consistir num extremo, numa situação limite, que leva o homem a se ver como “larva”. Além deste poema, Álvares de Azevedo redigiu, em homenagem ao amigo, um discurso, em que caracteriza a morte como um sol eterno, coberto pelo 527

“manto de Deus”,e diz que a alma do falecido “subiu até o seio de Deus”

.

Estudando discursos de religiosos cristãos, Chateubriand elogiou sua eloqüência, comparada à dos antigos, justamente pela “majestosa melancolia de que se nutre”528. A valorização da meditação fúnebre cristã, caracterizada pela solenidade e grandiosidade, por parte do escritor francês, está em sintonia com a forma discursiva do poeta brasileiro. Michel Vovelle e Philippe Ariés apresentam informações históricas que permitem considerar as homenagens de Azevedo como pertinentes para a época, tendo em vista padrões europeus. Vovelle comenta o crescimento de práticas religiosas no período, entre elas incluindo a difusão de ritos fúnebres; na França, no período em que Azevedo viveu, o funeral assume, em proporções novas, a dimensão de espetáculo público, estando os cemitérios subordinados a princípios estéticos em circulação529. Ariés apresenta informações semelhantes e explica que, no século XIX, cresce o interesse pelo cemitério público, em detrimento do modelo aristocrático do cemitério familiar. O discurso de Álvares de Azevedo tem propósito similar ao que Ariés observa no cerimonial público e no túmulo do

527

AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. v.2. p.432. CHATEUBRIAND. O gênio do cristianismo. op.cit. v.2. p.76. 529 VOVELLE, Michel. L`heure du grand passage: chronique de la mort. Paris: Gallimard, 1993. p.91-9. 528

225

cemitério, nesse contexto: elevar a dignidade do ente perdido, lembrá-lo e permitir seu contato com os vivos

530

.

3.5.2.3. Tarde de outono

Tarde de outono (em anexo, à p.278) se caracteriza por um hibridismo de gêneros, uma vez que assume uma feição dramática, sem deixar de lado propriedades líricas. Ele se apresenta como um diálogo entre duas figuras, denominadas “o poeta” e “a saudade”. O poeta elege a saudade sua musa (v.1), estando claro que a motivação para sua poesia está na falta que ele sente. Estruturalmente, o poema difere dos anteriores por sua deliberada fragmentação. As falas da saudade sempre surgem em quartetos abcb. As do poeta, por sua vez, vêm em sextetos aabccb. A distribuição das falas não é alternada, é irregular. O poeta ocupa as estrofes 1, 3, 5, 6, 8, 9, 11, 12, 13, 14, 20 e 21; as outras nove são dedicadas à saudade. O verso 3 apresenta a imagem “a vagar na solidão”, muito semelhante à anteriormente comentada “E eu vago errante e só na treva infinda...”, no verso 12 de No túmulo de meu amigo João Batista da Silva Pereira Júnior. Uma das inspirações dessa imagem pode ser o livro Os devaneios do caminhante solitário de Jean-Jacques Rousseau531, cujo título propõe a caminhada solitária como condição para a reflexão sobre o sentido da existência. Em seu teor, a obra de Rousseau contém manifestações de abandono532, sujeição ao mal533,

530

ARIÉS, Philippe. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990. v.2. p.566-78. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os devaneios do caminhante solitário. Viseu: Cotovia, 1989. 532 “Sozinho e abandonado, sentia aproximar-se o frio dos primeiros gelos (...)” (p.20). 533 “Vejo o mal que me ameaça e deixo-o chegar, em vez de agir para evitar.” (p.87). 531

226

mergulho nas trevas

534

e busca de sentido

535

. Embora o livro em seu conjunto

não possa ser tomado como modelo formal ou filosófico para Álvares de Azevedo, essas manifestações indicam afinidades de interesse. O que chama a atenção, neste momento, é que a imagem do “caminhante solitário”, empregada por Azevedo, ganha à luz de Rousseau a conotação de um caçador de sentido. De acordo com os versos 4 e 6, nesse vagar uma “lembrança (...) fala”, isto é, o passado vem à tona. O sujeito está, ao caminhar, expondo a si próprio. Os versos 4 e 5 falam de uma esperança perdida, tema também proposto em No túmulo de meu amigo João Batista da Silva Pereira Júnior - “Quanta esperança no futuro ainda! / Tudo calou-se pela noite eterna...” (v. 10-11). A diferença está em que, neste, a esperança se refere ao ente querido perdido, e em Tarde de outono ao próprio sujeito lírico. A lembrança do passado que surge provoca tristeza. Diz o verso 10: “Volta o rosto ao passado e chora a vida”. A esperança perdida e a tristeza indicam o tom condutor do poema, que é de um lamento pelo passado - a lembrança “dói” (v.11). O sujeito identifica o local em que caminha como um “vale” (v.14) em que sua “alma viveu” (v.16). Trata-se do reconhecimento de um espaço importante no passado, associado a uma certa sensação de plenitude. Esse ponto, especificamente, remete à Canção do exílio de Gonçalves Dias, em que o sujeito lírico comenta um espaço em que esteve no passado, a terra brasileira, privilegiando-o em detrimento de onde se encontra no presente536. Apesar da diferença entre os casos, de que em Tarde de outono a voz se situa dentro do local lembrado e 534

“(...) e as negras trevas que, sem cessar, se iam adensando mais à minha volta reanimam todo o horror que naturalmente me inspiram” (p.26). 535 “A meditação em locais retirados, o estudo da natureza, a contemplação do universo, forçam um solitário a voltar-se incessantemente para o autor das coisas e a procurar com suave inquietação a finalidade de tudo o que se vê e a causa de tudo o que sente.” (p.33). 536 DIAS, A. Gonçalves. Obras poéticas. op.cit. v.1. p.21.

227

não em exílio, a analogia indica um interesse comum de Dias e Azevedo, em termos estéticos, pelo revestimento emocional positivo de um espaço, nas rememorações de um sujeito lírico. Cabe mencionar que o mesmo interesse é encontrado nas Canções do exílio de Casimiro de Abreu

537

.

Uma das matrizes desse interesse pode estar em John Milton, pois o discurso de Eva, anteriormente mencionado, no momento em que ela é expulsa do paraíso, tem várias imagens da natureza que estão marcadas por atributos emocionais, intensificados pela expectativa de distanciamento irreversível. Ó lindas flores, que vos dais só no Éden, Com melindrosa mão por mim cuidadas Des`que apontavam os botões primeiros, Designadas por mim co`os próprios nomes! (...) E tu, meu doce tálamo das núpcias, Adornado por mim co`os mimos todos Que podem encantar o olfato e a vista, 538 Ir-me ei de ti? (...)

Em sua segunda fala na Tarde de outono, a saudade se refere ao que o poeta viveu como “passado morto” (v.17). A escolha do adjetivo implica em que se chame a atenção para a irreversibilidade do passado. É necessário pensar novamente aqui em Casimiro, uma vez que Meus oito anos se propõe também a pensar esse tema. Considerem-se os seguintes fragmentos do texto. 1. Oh! que saudades que tenho 2. Da aurora da minha vida, 3. Da minha infância querida 4. Que os anos não trazem mais! (...) 5. Oh! dias da minha infância! 537

ABREU, Casimiro de. Poesias completas. op.cit. Destacam-se, nesse sentido, os poemas Minha terra, de tom ufanista (p.11-4), e Suspiros, em que a “terra formosa” é associada a uma moça “bela” e “saudosa” (p. 22-3). 538 MILTON, John. Paraíso perdido. op.cit. p.418-9.

228 6. Oh! meu céu de primavera! 7. Que doce a vida não era 8. Nessa risonha manhã. 9. Em vez das mágoas de agora, 10. Eu tinha nessas delícias 11. De minha mãe as carícias 12. E beijos de minha irmã! 13. Livre filho das montanhas, 14. Eu ia bem satisfeito, 15. Da camisa aberto o peito, 16. - Pés descalços, braços nus 17. Correndo pelas campinas 18. À roda das cachoeiras 19. Atrás das asas ligeiras 20. Das borboletas azuis! 539 (...)

O verso 4 comenta a impossibilidade de recuperar o passado. O sujeito compreende que se trata de um período de sua vida que não poderá se repetir. Essa convicção de uma perda insuperável se associa a um desagrado quanto à situação presente, indicado no verso 9. A expressão “mágoas de agora”, única referência direta ao presente em todo o poema, indica que a felicidade da infância deu lugar a sentimentos negativos, sendo essa transformação algo frustrante. O poema se compatibiliza nesse ponto com a descrição do melancólico feita por Freud, de acordo com a qual este se interessa em expor seu próprio mal-estar540. A atitude melancólica, no caso, está ligada ao fato de a perda da infância não ter sido superada de maneira eficiente; sendo o passado um objeto irrecuperável, o sujeito o representa como insubstituível, e vê o presente de maneira negativa. O ponto de contato importante entre Tarde de outono e Meus oito anos não é propriamente o tema, uma vez que o primeiro não contempla a infância, mas

539

ABREU, Casimiro de. Poesias completas. op.cit. p. 19-21.

229 um dos componentes da abordagem do tema, especificamente a meditação a respeito de não superar a perda do passado. Além disso, o “vale” de Azevedo, assim como as “montanhas” (v.13) e “campinas” (v.17) de Abreu, situam na natureza o espaço da satisfação. Note-se ainda a presença da palavra “primavera” nos dois textos (v.6 em Abreu e v.15 em Azevedo), com a mesma atribuição semântica de criar um contexto agradável para a sensação de plenitude. De acordo com a fala da saudade, a rememoração do passado morto provoca choro, mas esse chorar “é doce” (v.18). A combinação de sofrimento e doçura cria a impressão de paradoxo, uma vez que normalmente se esperaria que a doçura estivesse associada a sensações positivas, e não a sofrimento. A ambivalência

emocional

é

apresentada

por

Freud

como

características do comportamento do sujeito melancólico

uma

das

541

. No caso, a

continuidade do discurso acrescenta uma conotação a essa doçura. No verso 19, a frase “A alma refaz-se pura” aponta para um significado religioso do choro. Trata-se de um processo de purificação. Como indicava o “vaso impuro” de No túmulo de meu amigo João Batista da Silva Pereira Júnior (v.5), é preciso recompor a alma, pela razão de ela andar desorientada. Outro ponto de contato entre o poema citado e Tarde de outono

é o

deslocamento súbito de interlocução. Inicialmente o poeta se dirigia à musa, mas na sexta estrofe fala para uma donzela. Do verso 21 ao 30, são feitos comentários a respeito da moça, que demonstram o forte interesse afetivo do

540 541

Conforme FREUD. Luto e melancolia. op.cit. p.133. Idem, p. 136.

230 sujeito lírico. No entanto, os versos seguintes expõem o problema que o perturba: 31 Por que amei tanto, donzela, 32 Se devias me trair?

A traição leva à incerteza com relação às motivações do amor. O “vagar na solidão” do verso 3, nesse sentido, é condicionado por um desamparo resultante da frustração amorosa. Após a traição, fica a dúvida de saber se o amor deveria de fato ter sido vivido. O sujeito não está sozinho simplesmente por uma escolha, mas por não ter vencido uma tristeza. A sétima estrofe altera o modo de representação do espaço. Depois do “vale”, espaço natural, associado à “primavera” e à “vida da alma”, vem a “casa”, espaço humano construído. Esta passou por um processo de degradação. 33 A casa está deserta. A parasita 34 Das paredes estala a negra cor. 35 Os aposentos o ervaçal povoa. 36 A porta é franca... Entremos, trovador!

As imagens lembram um pouco algumas de Manoel de Barros, como “Lugar em que há decadência / Em que as casas começam a morrer (...) / Em que os capins

lhes

entram,

aos

homens,

casas

portas

a

dentro

(...)”542.

Simbolicamente, o elemento que mais importa é a “negra cor” no verso 34. Suas propriedades conotativas estão ligadas às de “A vida é noite”, no verso 17 de No túmulo de meu amigo João Batista da Silva Pereira Júnior. A

542

BARROS, Manoel de. Seis ou treze coisas que eu aprendi sozinho. In: ____. Gramática expositiva do chão(poesia quase toda). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992. p.295.

231 escuridão tem uma carga negativa, estando associada à perturbação emocional que vai ser exposta em seguida, nas estrofes 8 e 9, pelo poeta. Cabe reproduzir a oitava, pela sua importância.

37 Derramai-vos, prantos meus! 38 Dai-me prantos, ó meu Deus! 39 Eu quero chorar aqui! 40 Em que sonhos de ebriedade 41 No arrebol da mocidade 42 Eu nesta sombra dormi!

Como se disse anteriormente a propósito de Anjinho, o emprego dos pontos de exclamação tem uma função estética. Eles indicam uma perturbação emocional do sujeito lírico. Cabe ressaltar que, mesmo de maneira diferente, aqui também existe, como em Anjinho, um vínculo dessa perturbação com uma referência religiosa, encontrada no verso 38. Esta lembra o início de No túmulo de meu amigo João Batista da Silva Pereira Júnior, em que o sujeito lírico pede perdão a Deus. Embora não seja um pedido de perdão especificamente, é também um apelo com intenção purificadora. Entende-se isso porque a saudade havia indicado, no verso 19, que o choro pelo reconhecimento do passado tem esse caráter catártico. Pedir “Dai-me prantos, ó meu Deus!” significa buscar condições junto à divindade para essa purificação. O choro como vontade, no verso 39, expressa a busca não de uma tristeza gratuita, mas de um desabafo necessário. O verso 40 fala em “sonhos de ebriedade”. Especificamente em Tarde de outono, a ebriedade está associada à mocidade perdida (v.41) e, portanto, a uma intensidade emocional positiva que nela se encontrava. É relevante a

232 presença da palavra “sombra” no verso 42. Embora ela tenha primariamente função denotativa, referindo-se ao modo como o sujeito lírico dormia, ela também aponta para o caráter transitório e ilusório da felicidade lembrada. No verso 43 se lê: “Passado, por que murchaste?”. O verbo escolhido retoma um procedimento utilizado em Anjinho, que consiste em, seguindo Shakespeare, propor uma analogia entre a decomposição de vegetais e a passagem do tempo. Outra imagem de natureza aparece na mesma estrofe: “Do estio secou-se a fonte” (v.46). A palavra “fonte” metaforiza, considerando as estrofes anteriores, motivação para a vida, intensidade emocional, ou sujeição ao êxtase e à felicidade. O verso 53 emprega o verbo “enlutar”. Neste ponto, a seleção lexical tem uma série de implicações. Como foi dito anteriormente, os poemas Anjinho e No túmulo de meu amigo João Batista da Silva Pereira Júnior, bem como Virgem morta, tratam de perdas de pessoas queridas por morte. Esse não é o caso de Tarde de outono. Ele fala de saudade de um lugar, como Canção do exílio, de um período de tempo, como Meus oito anos, e de sentimentos positivos, como nos dois casos citados. Em princípio, poderia não haver correspondência entre os efeitos da falta de um espaço ou de um tempo e os de uma perda por morte. No entanto, a escolha lexical de Álvares de Azevedo exige atenção. O verbo enlutar tem um sentido genérico - consternar-se, abater-se - e um específico - cobrir-se de luto. Embora o primeiro seja suficiente para dar consistência à passagem, o segundo tem valor conotativo

233 maior. O verbo morrer aparece na mesma estrofe, no verso 57, sugerindo que seja de uma morte, ainda que simbólica, que estejamos falando. A perda de um espaço e um tempo, e dos sentimentos a eles associados, então, não consiste simplesmente em um distanciamento, mas em uma morte simbólica, uma perda do eu. O melancólico, de acordo com Freud, formula a idéia da destruição de si próprio543; no caso do poema, não se trata de um projeto suicida, mas de um fato por assim dizer consumado, em que o sujeito, no presente, se vê como esvaziado de si mesmo. Isso se observa no verso 56, em que encontramos uma espécie de vácuo absoluto, de ausência total.

56 Aqui tudo se perdeu, 57 Minha pureza morreu 58 Com o enlevo de criança!

A palavra “tudo” implica na condução do sentimento de vazio até um extremo que, precisamente por ser um extremo, se identifica com o efeito de anulação da vida que tem a morte. Não é casual o fato de a reflexão seguir com uma referência à infância. Temos de lembrar novamente de Meus oito anos, pela idealização da infância enquanto tempo de inocência, e sobretudo de Anjinho, em que se desenvolve a idéia da pureza espiritual da criança, no sentido de constrastá-la com o mundo sujo em que se encontra o mal. Aqui, é como se encontrássemos o adulto que olha para o passado e lamenta ter tido contato com “o lábio visguento, imundo” da realidade. Esse lábio apareceu fortemente na forma de uma traição.

234 As estrofes 12 e 13 descrevem a vida de “amante ditoso” do sujeito lírico, fazendo referências ao corpo feminino e aos beijos trocados. O que poderia ser desenvolvido como uma cadeia de imagens eróticas desemboca, no verso 72, na imagem “Meu anjo belo de Deus”. Ela tem um efeito amenizador, dissolvendo o substrato erótico que vinha timidamente aparecendo, através de menções a contatos físicos. Azevedo aqui não está fazendo como Manuel Bandeira, que em Alumbramento544, após vários tercetos voltados para imagens religiosas, converte-as ambiguamente em eróticas, obtendo uma coesão entre o sagrado e o profano com o verso “ - Eu vi-a nua... toda nua!”545. Tarde de outono vai na direção contrária. A imagem do “anjo belo de Deus”, sobretudo pela presença da palavra Deus, afasta da representação da mulher a expressão ostensiva da sexualidade ou ainda qualquer conotação que induzisse à vulgaridade. O beijo da amante “é puro como as flores” (v.87). Muito embora Harold Bloom tenha encontrado na tradição cristã instâncias em que os anjos aparecem como dotados de sexualidade546, o conteúdo semântico deste poema não parece estar se orientando por elas, e sim pela idéia de que os anjos são representantes da pureza e da harmonia e servidores de Deus. As estrofes finais retomam a linha conotativa da décima primeira estrofe, que consiste em aproximar a situação presente do sujeito da sensação de morte. O verso 83 diz que “a vida foge ao peito”, numa clara alusão ao

543

Conforme FREUD. Luto e melancolia. op.cit. p.137. BANDEIRA, Manuel. Antologia poética. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983. p.35. 545 Conforme ARRIGUCCI JR., Davi. Humildade, paixão e morte.op.cit. p.156. 546 Conforme BLOOM, Harold. Presságios do milênio. Anjos, sonhos e imortalidade. op.cit. p.36. 544

235 esgotamento da vitalidade, que deriva em uma entrega à aproximação do fim. O verso 105 fala em cinza, imagem que, como resíduo de fogo, simboliza a dissolução de uma força vital anteriormente existente. E nos versos 106 e 107, o sujeito diz: “Por ela tanto chorei, que mancebo morrerei...”. O acúmulo de tristeza leva à precipitação da morte. Neste ponto, o sujeito se mostra dotado de um dos traços do melancólico, de acordo com Freud - a atitude autodestrutiva547. Trata-se de um esgotamento que conduz a uma postura negligente com relação ao futuro, sinalizada pela repetição da palavra “adeus” no verso final.

3.5.2.4. Virgem morta

Composto de dezenove quartetos, Virgem morta (em anexo, à p.281) tem uma forma bem regular. O metro é decassílabo e, em cada estrofe, o esquema de rimas é sempre abcb. O texto inicia com uma descrição de um espaço, em que se observam uma floresta e uma praia (v.1-2). As referências ao crepúsculo (v.3) e à “tarde moribunda” (v.5) propõem uma conotação específica para a ambientação. O crepúsculo tem, como em outros poemas citados anteriormente, um valor simbólico, representa uma situação híbrida, de passagem do dia para a noite. Essa região imprecisa de tempo ganha contornos negativos com a escolha do adjetivo “moribunda” que, juntamente

547

Conforme FREUD. Luto e melancolia. op.cit. p.137.

236 com a imagem “beleza morta”(v.8),

prenuncia a aparição da morte, mais

adiante no poema. A quarta estrofe introduz a figura nuclear do poema, a virgem indicada no título. Nessa primeira aparição, o sujeito lírico a mostra dormindo (v.16). Logo em seguida, ele afirma que irá “prantear” seus sonhos por ela (v.20), e a escolha do verbo explicita a tristeza que sente e faz percorrer por todo o texto. Na sexta estrofe, finalmente, a figura ganha uma percepção mais precisa. O leitor descobre que a virgem não está dormindo, mas morta, e que os prantos são lançados junto a seu túmulo. Entende-se então que, de maneira similar ao que ocorre em Profundamente, de Manuel Bandeira548, a imagem do ser humano que dorme é empregada, nos versos 16, 25, 41 e 75, como substitutiva da representação direta do corpo morto. A décima estrofe comenta as expectativas amorosas que o sujeito lírico mantinha: “E contudo eu sonhava! e pressuroso / Da esperança o licor sorvi sedento!” (v.37-8). O lamento do sujeito se refere à perda da amada, que inviabilizou uma possibilidade de futuro amoroso feliz. Restou dessa expectativa apenas o “sorriso de um anjo macilento” (v.40). Enquanto o substantivo “anjo” salienta traços positivos da moça, sua pureza e virtude, o adjetivo “macilento” indica que sua condição física está degradada. O efeito da imagem é ambivalente, por querer provocar encantamento e repulsa. Os versos 41 e 42 são centrais no poema. O sujeito lírico diz: “Ó minha amante, minha doce virgem, / Eu não te profanei, e dormes pura (...)”. A alusão à virgindade da moça, reforçada pelo adjetivo “pura”, suprime da ligação

237 amorosa referências a possibilidades de ato sexual. Como acontece em Tarde de outono, Álvares de Azevedo se interessa em formular uma representação de um amor intenso que exclua a entrega sexual. Nessa formulação, o mais relevante é o verbo apresentado no verso 42, “profanei”. Entende-se que o sentido mais imediato a que alude o verbo, no contexto, é realizar o ato sexual. No entanto, o termo tem atributos semânticos que permitem levar a uma linha de conotação produtiva. Essa palavra é freqüentemente empregada no discurso teológico, e em outros afins. De acordo com o dicionário Aurélio, o termo aceita usos com sentidos genéricos, como infringir, macular, ofender, e sentidos específicos ligados à religião, como desconsagrar e violar a santidade de algo

549

.

O profano se opõe ao sagrado. De acordo com Mircea Eliade, “o sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no mundo”. Ver o mundo e seus objetos como sacralizados depende do modo de percepção humano. “Manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se outra coisa, e contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do seu meio cósmico envolvente”. Para a visão voltada para o profano, o objeto se reduz a si mesmo. Em suma, a diferença consiste em que, ao sacralizar um objeto, passamos a vê-lo com uma certa duplicidade, como dotado de uma imanência e uma transcendência. Ele portaria então atributos e qualidades que convertem sua “realidade imediata” numa “realidade sobrenatural”. O homem moderno, de

548

BANDEIRA, Manuel. Antologia poética. op.cit. p.76. FERREIRA, Aurélio B. Dicionário Aurélio básico de língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. p.531. 549

238 acordo com Eliade, “assumiu uma existência profana”, distanciando-se da atitude religiosa tradicional 550. Essas idéias da antropologia sugerem uma leitura

do verso “Eu não te

profanei, e dormes pura” como dotado de implícitos importantes. Profanar algo ou alguém significa não respeitar ou violar sua sacralidade. A moça estava marcada por traços de pureza e inocência; mais do que isso, ela estava sacralizada pela percepção idealista do sujeito, que a nomeia no verso 48 “irmã dos anjos”. Analogamente à criança de Anjinho, o ente querido perdido ganha contornos transcendentais. Mais adiante, no verso 72, a alma da moça é referida como “inocentinha”; o termo, além de salientar a sua pureza, propõe, pelo diminutivo, uma imagem infantilizada. Nesse sentido, fazer sexo com a moça representaria violar sua sacralidade. A duplicidade do objeto sagrado - ser ele mesmo e outra coisa - seria desrespeitada. É como se fazer sexo suprimisse a sua transcendência, restando apenas sua imanência. Para o sujeito lírico, é imperativo reconhecer que a moça não se reduz, afetiva e simbolicamente, a uma imanência, ela representa mais do que simplesmente seu corpo. O verbo profanar representa um ato de transgressão. Se tomarmos esse ato considerando não apenas os sentidos genéricos da palavra, mas também os específicos, por sua pertinência poética, entendemos que respeitar a virgindade é também manter a reverência às virtudes sacralizadas. O amor pelo “anjo macilento” é espiritualizado e assexuado. A infantilização da alma da moça, no verso 72, contribui decisivamente para essa concepção do 550

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Lisboa: Livros do Brasil, s.d. p.25-30.

239 envolvimento amoroso. Com essa posição, o sujeito lírico caracteriza a si mesmo como dotado de senso moral. O verso 46, “- Na dor do coração a morte leio...”, explicita a motivação para o lamento que constitui o poema. O sujeito sofre por uma perda. A imagem da “dor do coração” indica que esse sofrimento é por amor, e o verbo “ler” aparece com uma função estratégica, vincular amor e morte. Essa ligação tem seu momento mais tenso na percepção do túmulo como “leito virginal”, mais adiante, no verso 65. O sujeito promete se dedicar ao culto da morta, com prantos, “nas sombras do verão”. Mais uma vez, Azevedo emprega “sombra” com conotação negativa, renovando uma simbologia que remete a Platão. No verso 49, a imagem dos “vales” em que o sujeito tem sonhos de amor é uma repetição da apresentada em Tarde de outono. Um detalhe como esse, entre outros, leva a observar que o repertório imaginativo de Álvares de Azevedo era operado sem ambição de extrema originalidade. O autor recombinava constantemente peças já utilizadas, algumas vezes obtendo efeitos inovadores e, noutras vezes, como neste caso, sem vantagem para a linguagem poética. No verso 54, lê-se: “minha sina de amor morreu com ela”. Esta afirmação nos remete novamente a Freud, que explica o comportamento do melancólico indicando que o ego “se esvazia” em razão da dor da perda

551

. A morte da

moça provoca uma morte simbólica no sujeito, que se vê esvaziado de possibilidades de um novo amor. Curiosamente, morre também a vocação para a poesia do sujeito lírico, que afirma nos versos 55 e 56 que sua lira

240 “tremia ao alento da donzela”, isto é, a criação poética era motivada pela atenção da moça. Nas estrofes 15 e 16, chama a atenção a repetição ostensiva da expressão “É tarde!”. Ela enfatiza a angústia do sujeito em razão de ter frustrado expectativas de um futuro amoroso feliz, como já se observou em Tarde de outono. Essa repetição contribui para o efeito excessivo da presença dos pontos de exclamação. Nessas estrofes, encontramos nove deles. Não por acaso, o início da estrofe 15 tem uma referência a Deus. “Qu`esperanças, meu Deus!” (v.57). Se consideramos que a postura do sujeito guarda algo de religioso no poema, em vista da sacralização da moça, podemos aplicar aqui o mesmo raciocínio utilizado para Anjinho, a partir da fala de Eva na obra de John Milton. O sujeito lírico vive aqui uma intensa perturbação emocional. Num mundo sagrado, a morte é entendida como resultante dos desígnios divinos. Quando diz “Qu`esperanças, meu Deus!”, o sujeito considera que, por um lado, havia esperanças de futuro quanto à moça e, por outro, essas esperanças estão inutilizadas. Se estivesse indignado, possivelmente consideraria a morte da moça uma violência divina, e buscaria justificativas; nesse caso hipotético, provavelmente a mesma frase fosse redigida com ponto de interrogação, e não exclamação. Se estivesse resignado,

aceitaria

passivamente

a

frustração

das

esperanças,

e

possivelmente não houvesse lugar para a frase “É tarde!”, em suas várias incidências no texto. A manifestação, do modo como está, se situa nesse meio termo entre indignação e resignação, que não constitui desrespeito a Deus, 551

Conforme FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. op.cit. p.133.

241 nem indiferença desumana com relação à perda. No final, o sujeito lírico fala da sua própria morte552, motivada pelo seu sofrimento:

73 E quando a mágoa devorar meu peito, 74 E quando eu morra de esperar por ela, 75 Deixai que eu durma ali e que descanse, 76 Na morte ao menos, junto ao seio dela!

Retomando a imagem do dormir como morte, anteriormente apresentada, o sujeito acrescenta a ela a idéia de que morrer é um descanso. Trata-se de entender que, sendo a dor da perda irreparável, em razão de não haver outro objeto de desejo, a morte representa a única libertação possível de um sofrimento desmedido. Essa idéia remete ao livro Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, em que se lê na carta de 30 de agosto: “Não vejo outro 553

fim para esta miséria, a não ser o túmulo”

.

Um escritor português que se interessou pela mesma idéia foi Bocage, autor de versos como “Para ter fim meu pranto espero a morte”, “Agora é só feliz minha existência / no mudo estado que arremeda a morte”, “Ah! só deve agradar-lhe a sepultura, / Que a vida para os tristes é desgraça, / A morte para 554

os tristes é ventura.”

. Além dele, também propuseram abordagens comuns o

venezuelano Juan Bonalde, que escreveu “el más dichoso / de todos los

552

Alfredo Bosi elogia a representação da morte no poema. Conforme História concisa da literatura brasileira. op.cit. p.112. 553 GOETHE, J. Os sofrimentos do jovem Werther. op.cit. p.65. 554 BOCAGE. Poemas escolhidos. São Paulo: Cultrix, s.d. Citações extraídas de poemas nas páginas 52, 76 e 79.

242 mortales / me dormiré tranquilo en el sepulcro”555, e o chileno Guillermo Blest Gana, nos versos: que igual a la de todos es mi suerte: cuando nada se espera de la vida, 556 algo debe esperarse de la muerte.

Mais uma vez podemos lembrar de Freud, que explica o interesse do melancólico pela auto-destruição como representação de uma reação contra os objetos do mundo externo557. Num universo hostil, capaz de destruir o objeto amado, a auto-aniquilação pode ser, para o melancólico, uma espécie de defesa. O sujeito lírico de Virgem morta espera estar junto da amada no momento da morte. Tendo sofrido por ela, morrendo por esse sofrimento, ele pretende então se unir a ela. A intenção do sujeito pode ser descrita a partir de um conceito formulado por René Girard. O autor elaborou uma teoria sobre a representação do desejo na literatura, em que trabalha com o conceito de desejo mimético. Este consistiria em um tipo de desejo que se elabora a partir de um modelo observado. Nos termos de Girard, “O desejo elege seus objetos através da mediação de um modelo (...)”; “o herói preso a algum desejo mimético trata de conquistar o ser, a essência de seu modelo, imitando-o do modo mais fiel possível”

558

. Trata-se de buscar encenar algo que se

desenvolveu exteriormente.

555

BONALDE, Juan. Sombra In: MARTINEZ, Carlos Dámaso, org. Poesía latinoamericana del siglo XIX. Buenos Aires: CEAL, 1991. p.100. 556 GANA, Guillermo Blest. A la muerte. In: MARTINEZ, Carlos Dámaso, org. Poesía latinoamericana del siglo XIX. op.cit. p.78-9. 557 Conforme FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. op.cit. p.137. 558 GIRARD, René. Literatura, mímesis y antropología. Barcelona: Gedisa, 1984. p.54 e p. 21.

243 Adaptando as idéias de Girard para este raciocínio, poderíamos encarar como uma forma de desejo mimético a situação em que um ser se vê afastado de seu objeto de amor, numa perda por morte ou por outro motivo e, numa atitude extrema, não superasse a perda. Pense-se no final de Romeu e Julieta, de Shakespeare. Um amante não suporta aceitar a idéia de que o outro foi morto. Em uma atitude mimética, encaminha seu desejo no sentido de se comportar exatamente como o outro, imitá-lo, como uma forma de incorporá-lo. Por essa razão (entre outras), se mata também. Curiosamente, para Girard, existe uma conexão direta entre o desejo mimético e a morte

559

. Em São

Bernardo, de Graciliano Ramos, a impossibilidade de Paulo Honório superar a perda de Madalena faz com que ele se transforme, incorporando alguns traços da moça560. Processos similares se dão em filmes como Gêmeos, mórbida semelhança, de David Cronenberg, e Psicose, de Alfred Hitchcock. O conceito de desejo mimético pode ser aplicado à última estrofe de Virgem morta. Embora Girard não discuta a noção de melancolia especificamente, pode-se entender que a atitude do sujeito lírico, que não se resigna diante da morte da amada, motiva uma atitude mimética, uma necessidade de identificação, como uma forma de contato simbólico, uma vez que o contato real ficou inviabilizado. Os versos “Deixai que eu durma ali e que descanse / Na morte ao menos, junto ao seio dela!” indicam que o interesse do sujeito consiste em compensar a ausência de oportunidade de viver junto à amada com o fato de estar em sua

559 560

Idem, p.22. RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 1981.

244 companhia quando morto561. A expressão “ao menos” explicita que se trata de um consolo precário diante do grau de sofrimento a que ele foi exposto. A atitude dele lembra um pouco o final de Romeu e Julieta, no que se refere à idéia do sujeito de morrer de amor, por não suportar o abandono562. Dos quatro poemas examinados, Virgem morta é o que mais se aproxima de uma abordagem trágica da perda. Pense-se em Édipo Rei

563

, de Sófocles,

em que o protagonista mutila a si mesmo ao ter consciência de ter provocado a morte de seu pai, ou em Hamlet

564

, de Shakespeare, em que a vingança que

serve à tentativa de elaboração da perda do pai acaba levando à morte do protagonista.

Essas

abordagens

trágicas

mostram

as

reações

aos

reconhecimentos das perdas como descentramentos, e terminam com a aniquilação dos protagonistas; nesses aspectos, têm contato com o poema. Goethe formulou o conceito de trágico do seguinte modo: “Todo o trágico se baseia numa contradição irreconciliável. Tão logo aparece ou se torna possível uma acomodação, desaparece o trágico.”565. Esse conceito se aplica, como observa Albin Lesky, à oposição entre o divino e o humano 566.

561

Esse elemento remete ao texto de Soares de Passos, O noivado do sepulcro, anteriormente citado. Nuno Fernandes Torneol, em uma cantiga de amigo, leva o tema da saudade a um extremo. Em suas oito estrofes, cada uma com três versos, repete a expressão “e moiro-me d`amor”. De uma a outra estrofe, a variação temática e lexical é mínima. É a própria repetição, que expressa a persistência do eu lírico, de continuar esperando a pessoa amada chegar na praia. “(...) As barcas eno mar / e foi-las aguardar: / e moiro-me d`amor. (...) / E non o achei i, / o que por meu mal vi: / e moiro-me d`amor. (...)”. O texto de Torneol é exemplarmente melancólico. Mesmo sofrendo intensamente, vivendo um “mal”, o eu lírico vai à praia aguardar. O amor, ao mesmo tempo que motiva a insistência na esperança de volta, a não aceitação da perda, é também sentido como dor extrema, como um morrer de amor, conjugado no presente. TORNEOL, Nuno Fernandes. Cantares d`amigo. In: SPINA, Segismundo, org. Presença da literatura portuguesa. Era medieval. São Paulo: DIFEL, 1971. 563 SÓFOCLES. Rei Édipo. In: BRUNA, Jaime, org. Teatro grego. São Paulo: Cultrix, s.d. 564 SHAKESPEARE, William. Hamlet. op.cit. 565 GOETHE. Apud LESKY, Albin. Do problema do trágico. In: ____. A tragédia grega. São Paulo: Perspectiva, 1971. p.25. 566 Idem, p.25. No caso, Lesky se refere à tragédia grega. 562

245 Nesse sentido, a compreensão do escritor alemão sobre o trágico tem afinidade

com

o

conceito

de

ironia

em

impossibilidade de conciliar finito e infinito

Solger,

fundamentado

na

567

, e com a concepção de

melancolia de Jean-Pierre Schaller, que a define como motivada pela impossibilidade de conciliar os limites humanos com a expectativa de Absoluto 568

.

3.6. Melancolia e religião

Álvares de Azevedo trabalha constantemente com referências cristãs, em seu vocabulário e suas imagens. Freqüentemente, seus textos manifestam devoção e fé. Porém, em sua produção, é possível observar dificuldades de conciliar sua devoção com uma percepção do mundo em que se evidencia a finitude. Entre os limites finitos e a transcendência, se constitui um contraste, 569

um dualismo. A teoria do sublime de Schiller

, o conceito de ironia de

Solger570 e a concepção de melancolia de Jean-Pierre Schaller571 se fundamentam, de diferentes modos, nesse mesmo dualismo. Considerados à luz desse problema, vários elementos da Lira dos vinte anos podem ser vistos como ligados entre si, articulados por uma perspectiva essencialmente melancólica. Dualismos e contradições contidos na obra estariam relacionados a uma tendência à inconstância e polimorfia

567

Conforme COLETTE, Jacques. Enthousiasme et ironie. op.cit. p.494. SCHALLER, Jean-Pierre. La mélancolie. op.cit. p.44. 569 SCHILLER, Friedrich. Acerca do sublime. op.cit. 570 SOLGER, Karl. On irony. op.cit. 571 SCHALLER, Jean-Pierre. La mélancolie. op.cit. 572 ARISTOTE. L`homme de génie et la melancolie. op.cit. p 95. 568

572

246 motivada por essa perspectiva. Em um mundo em que tudo é finito, em que o ente querido pode morrer, removendo o sentido de tudo, a fé, para se manter, se torna uma fé melancólica, e se mistura com os seus avessos: a corrosão de valores e a desorientação. A condição melancólica olha o mundo sob o ponto de vista da perda. Por isso, o mundo, embora purificado por Deus, mostra imperfeições e desarmonias. A idealização se complementa com a ruína, o prazer com a dor, a vontade de viver com a de morrer. A religiosidade, na literatura oitocentista, oscila entre a devoção intensa e o amargor que não encontra explicação para o sofrimento permitido por Deus. A figura que melhor sintetiza essa oscilação é Jó, nas primeiras partes do capítulo a ele dedicado na Bíblia. Não por acaso, nos Hinos do Profeta, frases extraídas desse capítulo são utilizadas como epígrafes. A coexistência no livro de representações idílicas e de outras que arruinam qualquer idealização, a combinação entre divinização e renúncia na vida amorosa, a valorização da indolência em detrimento do trabalho, a dificuldade de superar perdas, e de aceitar a presença da morte num mundo que, como criação divina, deveria ser belo, são alguns dos elementos de construção

que ganham relevância à luz da idéia de uma melancolia

constitutiva do livro. A leitura dos poemas Anjinho, No túmulo de meu amigo João Batista da Silva Pereira Júnior, Tarde de outono e Virgem morta leva a perceber que eles têm em comum algo mais, além de representarem sentimentos de perda.

247 Todos têm, em alguma medida, um substrato religioso. Em Anjinho, a morte é vista como solicitação de Deus, através do envio de um anjo; em No túmulo de meu amigo João Batista da Silva Pereira Júnior, expõe-se um pedido de perdão, que indica reverência a Deus, e o anúncio da morte é feito com um som divinal; em Tarde de outono, o sujeito proclama “Dai-me prantos, ó meu Deus!”, num apelo à divindade com propósito purificador, e chama a amada de “anjo belo de Deus”; em Virgem morta, a própria amante é sacralizada, e o sujeito se dirige à divindade para manifestar sua perturbação pela perda. Em todos os casos, os sujeitos líricos demonstram alguma forma de religiosidade, sempre dentro de uma linguagem própria do cristianismo. A imagem de que o cristão “caminha num vale de lágrimas e que só vai repousar no túmulo”, proposta por Chateubriand

573

, corresponde à situação do

sujeito lírico de Virgem morta, precisamente naquilo que ele diz de si mesmo. A poesia de Álvares de Azevedo está em sintonia com a idéia, exposta em Chateubriand, e indicada por Vitor Hugo, de uma melancolia residente no âmago da atitude religiosa. Isso não se percebe tanto nos quatro poemas examinados, quanto nos Hinos do profeta, também na primeira parte da Lira dos vinte anos. Duas epígrafes empregadas por Azevedo nesses Hinos são extraídas do Livro de Jó, e ambas comentam um desgaste radical com relação à existência. Em Hinos do profeta, o sujeito lírico faz um desabafo para Deus, com arrependimento - “Fui um louco, meu Deus!”574 - e afirma que o único amor que

573 574

CHATEUBRIAND. O gênio do cristianismo. op.cit. v.1. p.275. AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. V.1. p.108. (em Um canto do século)

248 lhe resta e “acende os sonhos (...) é o amor de meu Deus!”575. Uma das passagens mais importantes do poema é um comentário sobre como “deve ser 576

terrível (...) na solidão morrer (...) sem um Deus para crer!”

.

Essas

declarações de reverência e apego à divindade criam uma atmosfera profundamente devota, que conduzirá à crítica dos homens que optam pela embriaguez e pela perdição. Essa crítica chega ao ponto de o sujeito pedir por eles perdão a Deus577, num apelo semelhante ao que abre No túmulo de meu amigo João Batista da Silva Pereira Júnior. Álvares de Azevedo, no entanto, vai-se dedicar à representação atenta e simpática desses mesmos homens em poemas da segunda parte da Lira dos vinte anos, como Ao sol do meio dia eu vi dormindo e Um mancebo no jogo se descora

578

, e expandir sua imaginação a respeito na Noite na taverna. Sua

produção, nesse sentido, é plurissignificativa, não se submete a um único esquema de representação. O fato de Azevedo escrever com atmosfera devota os Hinos do profeta e construir sujeitos líricos enraizados no cristianismo o coloca em sintonia com uma tendência do romantismo europeu. De acordo com Georges Gusdorf, todos os grandes escritores românticos europeus são pensadores religiosos. O que haveria de específico nesse comportamento, com relação à religiosidade

575

Idem, p.108. Idem, p.110. 577 Idem, p.106-121. 578 Idem. p.197-8. 576

249 tradicional, seria a libertação dos princípios dogmáticos rígidos, que abre para os recursos de percepção novos modos de elaborar o senso de sagrado 579. Goethe, que se intitulava “anti-cristão”, é levado, em sua correspondência intelectual, a aceitar idéias religiosas, sobretudo a reconhecer uma “imanência universal de Deus no cosmo”580. A teoria estética de Schelling formula um conceito de beleza inteiramente dependente da aceitação da premissa de que Deus não apenas ordena a natureza de maneira harmônica, como faz com que a própria arte represente a natureza dessa maneira. Em outras palavras, a beleza está associada à manifestação de Deus e à idéia de uma harmonia total do mundo 581. Para Gusdorf, “dans le demi-siècle de 1815 à 1860, l`inquietude religieuse 582

est partout et prend les formes les plus diverses”

. Essa circunstância

intelectual toca Álvares de Azevedo, que interioriza as noções de perdão, anjo, pureza, treva,

e elabora sua poética explorando suas propriedades

expressivas. Como mencionado à p.137, no poema Ao meu amigo J.F. Moreira, por exemplo, encontramos uma manifestação clara de fé. Essa posição é relativizada por outras diferentes, como a encontrada em Macário, texto em que a figura de Satã é central. O protagonista, em um momento, condena a devassidão da humanidade, e em outro, a hipocrisia de membros da igreja, conduzindo seu pensamento até a dúvida quanto à crença. Ele declara: “Se Deus soubesse do que havia de acontecer, não se cansava

579

GUSDORF, Georges. Recherche de l`absolu. op.cit. p.98. THIELICKE, Helmut. Goethe e o cristianismo. São Paulo: Ars Poetica, 1992. cap.1. p.21. 581 SCHELLING, Friedrich. La relación de las artes figurativas con la naturaleza. Buenos Aires, Aguilar, 1959. p.39. 580

250 em afogar homens na água do dilúvio, nem mandar crucificar, macilenta e ensagüentada, a imagem de seu Cristo divino. O mundo hoje é tão devasso 583

como no tempo de Sodoma”

; “Crer? E no que? No Deus desses sacerdotes

devassos? desses homens que saem do lupanar quentes dos seios da concubina (...) para ir ajoelhar-se nos degraus do templo! Crer no Deus em que eles mesmos não crêem, que esses ébrios profanam até do alto da tribuna sagrada?”584. Em Noite na taverna, Álvares de Azevedo dispôs, em torno de alguns protagonistas de relatos, figuras que chamam a atenção por seu interesse religioso. Uma personagem feminina, em um momento de incerteza, 585

pede a Cláudius Hermann: “Esperai, deixai que ore um pouco”

; outro 586

personagem, antes de duelar com Johann, manifesta: “Quero rezar...”

.

Álvares de Azevedo não esteve interessado em aderir exemplarmente à doutrina cristã, ou em negá-la ostensivamente. Seu trabalho representa posturas diversas com relação à fé, integrando manifestações contraditórias entre si. Como explica Gusdorf, a religiosidade não ocorre neste período do mesmo modo que se propõe na tradição medieval, porque a experiência fundamental do romantismo é a não concordância de sentido, a sensação de abismo, a inadequação entre a consciência humana e a plenitude do ser 587. Nos poemas em que trata de perdas, Álvares de Azevedo não apresenta uma fé serena, e

582

GUSDORF, Georges. Recherche de l`absolu. op.cit. p. 105. AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. v.2. p.65. 584 Idem, p.68. 585 Idem, p.149. 586 Idem, p.156. 587 GUSDORF, Georges. Recherche de l`absolu. op.cit. p.111-2. 583

251 sim uma fé inquieta. Mesmo demonstrando-se devoção, nega-se a morte, dizse que “a vida é noite”, busca-se um sentido que não se encontra, deseja-se morrer. É uma fé melancólica. De acordo com Klibansky, Panofsky e Saxl, o cristianismo medieval deliberadamente afastou-se da teoria antiga da melancolia, em razão de que os preceitos referentes à ação da virtude, pelo livre arbítrio, não combinavam de modo algum com a compreensão aristotélica de que capacidades positivas pudessem se dever a perturbações fisiológicas e emocionais588. Essa posição oficial da Igreja não impediu que, por exemplo, no século XV, fosse feita uma gravura em que Cristo está rodeado de homens simbolizando os humores, estando o melancólico na parte superior à esquerda589. Olivier Pot registra, em sua pesquisa, que Cristo teria sido considerado uma figura exemplarmente melancólica, pois “c`est Saturne (...) qui accorde à l`esprit contemplatif la capacité de s`elever du monde terrestre au monde divin”590. A difícil conciliação entre os limites humanos e a experiência do Absoluto, cara à condição melancólica, teria em Cristo sua representação mais intensa. Jean-Pierre Schaller encontra na figura de Jó elementos de ordem melancólica591. Com efeito, o Livro de Jó, em suas partes iniciais, contém alguns dos elementos que, na tradição, integram o repertório de figuras

588

KLIBANSKY, PANOFSKY & SAXL. Saturne et la mélancolie. op.cit. p.124. Idem, p.604. 590 POT, Olivier. Le milieu de la vie ou la mélancolie du passage. op.cit. p.115. 591 SCHALLER, Jean-Pierre. La mélancolie. op.cit. p.37. 589

252 expressivas da condição melancólica592. O personagem sofre perdas radicais seu meio de vida, seus filhos (p.11), sua saúde (p.15). Sente-se abandonado por Deus. “Ele destruiu tudo o que eu possuía” (p.77). O grau de sofrimento leva Jó a maldizer o dia em que nasceu (p.19) e desejar ter morrido (p.20). Querer morrer, por ser um modo de se libertar do sofrimento, é um motivo importante, como se mencionou anteriormente, em textos como Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe”593 e Virgem morta, de Álvares de Azevedo, entre outros. A expectativa de morrer, partir “para o país em que floresce o crepúsculo da morte” (p.53), cresce adiante. “Meu espírito está aniquilado, / Meus dias se obscureceram, / O túmulo me espera” (p.81). A tristeza de Jó é “pesada” (p.33), o mundo é percebido como caos (p.83), sua vida como “ruína” lançada “sobre a lama” (p.134), e ele anula a si mesmo : “Teu olhar está fixado sobre mim e eu já não existo” (p.37). Ele diz: “Eu esperava a luz e as trevas me foram dadas” (p.136)594. O problema central de Jó, que leva às contestações de seus próximos, é manter sua fé intacta, seu senso de justiça divina, diante da arbitrariedade dos danos impostos. A Enciclopédia Católica explica que sua estória diz respeito à dúvida quanto à “origem e teleologia da dor”, pois o sofrimento de Jó não se

592

Vitor Hugo valoriza poeticamente a estória de Jó. Conforme HUGO, Vitor. Do grotesco e do sublime. p.39. 593 GOETHE, J. Os sofrimentos do jovem Werther. op.cit. p.65. 594 O LIVRO DE JOB. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. Tradução de Lúcio Cardoso. Foi consultada também a tradução da BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Paulinas, 1987.

253 deve a nenhum pecado por ele cometido, e seu bem depende do respeito à sapiência divina, com seus inescrutáveis desígnios595. Northrop Frye interpreta o livro de maneira semelhante, explicando que o problema, para Jó, consiste na desproporção entre o que aconteceu a ele e qualquer coisa que ele pudesse ter feito; a situação não se presta a uma lógica de causa e efeito596. Nisso consiste um ponto central para a problemática da perda. No caso de Anjinho, por exemplo, o sujeito lírico melancólico não considera a perda de um ente querido um efeito justo, como punição, por um mal cometido; ao contrário, ele enfrenta a situação de aceitar uma vontade inescrutável de Deus. A ambivalência a que Jó é submetido - entre a inconformidade, motivada pela dor, e a resignação, motivada pela fé que aceita um desígnio incompreensível para a mente humana - é muito semelhante à encontrada no sujeito lírico de Anjinho. De acordo com Roland Murphy, o Livro de Jó é caracterizado por uma representação dualista. Jó ora entra em confronto com Deus, ora se contrai; Deus é tanto seu opressor como seu defensor. Trata-se, portanto, de uma relação ambígua entre o homem e Deus

597

. Essa caracterização está ligada à

imagem das “duas almas” do prefácio da segunda parte da Lira. A ambigüidade descrita por Murphy está vinculada a uma oscilação entre reverência ao Absoluto e auto-centramento, presente no livro de Azevedo. Nesse balançar, encontramos tanto o pedido de perdão a Deus, com

595

ENCICLOPEDIA CATTOLICA. Vaticano: G.C. Sansoni, 1951. v.6. p.409. Verbete “Giobbe”. FRYE, Northrop. Myth II. In: _____. The great code. New York: Harvest, 1982. p.194-5. 597 MURPHY, Roland. Job, book of. The Catholic Encyclopedia for school and home. New York: McGraw-Hill, 1965. v.6. p.8. 596

254 arrependimento, em No túmulo de meu amigo João Batista da Silva Pereira 598

Júnior

, como um sujeito lírico que imagina ser Deus, ao beijar profanamente

uma mulher, interiorizando o Absoluto, em Malva-maçã599. A recepção do cristianismo por parte dos românticos é marcada por desdobramentos dessa ambivalência. Encontramos manifestações de devoção em A um bispo que me chamou ateu, de Vitor Hugo

600

, A cruz mutilada, de

Alexandre Herculano601, além do Panteísmo de Álvares de Azevedo. Por outro lado, encontramos inquietações com relação ao modo de ser e ao comportamento da divindade, em O devanear do cético, de Bernardo Guimarães

602

e nas Elegias de João de Deus

603

. Essa variação corresponde à

situação, descrita por Georges Gusdorf, de uma busca de novas atitudes religiosas no século XIX, em uma ruptura com o dogmatismo tradicional604.

3.6.1. Morte e arrependimento

O pensamento da morte não pode ser sustentado senão por relances, assim que se sente que a morte é realmente possível. Simone Weil, A Ilíada ou o poema da força

598

AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. v.1. p.80. Idem, p.255. 600 HUGO, Vitor. A um bispo que me chamou ateu. In: MAGALHÃES JR., R., org. O livro de ouro da poesia da França. op.cit. p.162-3. 601 HERCULANO, Alexandre. A cruz mutilada. In: MOISÉS, Massaud, org. Presença da literatura portuguesa. op.cit. v.2. p.135-44. 602 GUIMARÃES, Bernardo. O devanear do cético. In: ___. Poesia erótica e satírica. op.cit. p.149-55. 603 DEUS, João de. Elegias. In: MOISÉS, Massaud, org. Presença da literatura portuguesa. op.cit. v.II. p.199-206. 604 Conforme GUSDORF, Georges. Recherche de l`absolu. op.cit. Em especial p.95, 98 e 106, e PEYRE, Henri. Introdução ao romantismo. Lisboa: Europa-América, 1975. p.99. 599

255 A segunda parte de Hinos do profeta, intitulada Lágrimas de sangue (em anexo, à p.283), constitui, na Lira dos vinte anos, um poema relevante para a compreensão da relação entre a melancolia e a religiosidade em Álvares de Azevedo. Com uma frase do Livro de Jó em sua epígrafe - “estou cansado de viver”605 - o poema tem uma série de referências diretas ao universo religioso cristão. A expressão “Perdão, meu Deus!” (v.3) tem por propósito a purificação, a libertação das culpas

606

. O sujeito refere-se a Deus como “meu Senhor” (v.4),

e fala em sua “luz infinda” (v.9), anjos (v.65 e 142) e almas (v.72, 119, 122 e 137). Proclama sua fé (v.10) e manifesta seu arrependimento (v.144). Referese à “cruz sanguenta”, associada a Cristo (v.45), e utiliza a palavra “profanando” para se referir ao desvio praticado (v.35). Esses elementos contribuem para criar uma atmosfera de devoção e fé intensas, em que Deus, em seu “trono” (v.138), é reverenciado. Essa atmosfera é compatível com a problemática geral da obra, a necessidade de o sujeito lírico obter de Deus o alívio da absolvição, por estar atormentado pela culpa de ter errado. A complexidade do poema consiste no fato de que, mesmo estando, no conjunto, no efeito geral e em detalhes, caracterizado pela devoção, é um poema muito carregado de referências à condição melancólica. Nesse sentido, a epígrafe sugere que o sujeito lírico, assim como o Jó das partes iniciais de seu livro, está dividido entre o temor e a reverência a Deus, por um lado, e a perturbação, por outro.

605

A tradução está na edição: AZEVEDO, Álvares de. Lira dos vinte anos. São Paulo: FTD, 1994. p.199.

256 Essa ambivalência faz com que, na linguagem poética, da seleção lexical à ordenação das imagens, a atmosfera devota seja constantemente perturbada pela tensão melancólica. Não há nada de sereno na fé do sujeito lírico de Lágrimas de sangue. Uma imagem repetida constantemente é a treva, nos versos 13, 35, 68, 70, 76 e 106. Além de conotar, no cristianismo, a ausência de Deus607, ela é uma expressão radical da escuridão que, de acordo com François Azouvi, está associada à ação da bile negra

608

. Os “olhos turvos” deste sujeito lírico

enxergam uma noite escura (v.20), lutulenta (v.48), contemplam a “cinza da ilusão” (v.22), e observam um sol sem luz (v.61). Nessa escuridão, está presente o calor do fogo, sob forma de chama de vulcão (v.133); e também a frieza (v.71 e 137). A contradição se liga com os movimentos instáveis da bile negra, entre o aquecimento e o esfriamento609. Como observa Azouvi, o fogo tem a ambigüidade essencial da melancolia, por ser uma força positiva e destruidora610; no caso do vulcão, é o segundo caso que se salienta. Aristóteles considera o vento um fenômeno associado diretamente à ação da bile negra

611

. Em diversos poemas de Azevedo anteriormente mencionados,

encontramos a presença de ventos, mas em nenhum deles esse símbolo tem a

606

Conforme DELUMEAU, Jean. A confissão e o perdão: as dificuldades da confissão nos séculos XIII a XVIII. op.cit. p.37. 607 Conforme Isaías, 42, 16. p.831. e Livro de João, 1,4 e 1,5. p.1156., entre outras passagens. BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Paulinas, 1987. 608 AZOUVI, François. A peste, a melancolia e o diabo, ou o imaginário definido. op.cit. p.100 e 104. 609 Conforme ARISTOTE. L`homme de génie et la melancolie. op.cit. p 95. 610 Conforme AZOUVI, François. A peste, a melancolia e o diabo, ou o imaginário definido. Em especial p. 101 e 110. 611 Conforme ARISTOTE. L`homme de génie et la melancolie. Problème XXX, 1. op.cit. p.91-3.

257 relevância que possui em Lágrimas de sangue. Aqui, o “vendaval sem norte” (v.34) reaparece sob forma de “temporal sem norte” (v.68), havendo também menções a um “vento no deserto” (v.54) e a um “vento forte” (v.57). O que mais importa, no caso, é o caráter desgovernado desse vento. Em Grande sertão: veredas, há uma passagem em que Riobaldo conta: "vem um pé-de-vento, sem razão, e arre se comparece uma porca com ninhada de pintos, se não for uma galinha puxando barrigada de leitões. Tudo errado, remedante, sem completação..."612 . O vento, como o redemunho, surge como sinal da presença do demônio, de inversão da ordem natural das coisas, de desvio. O “vendaval sem norte” é uma força que, como as demoníacas, perturba o estado das coisas, afastando-as da retidão, da harmonia do Absoluto. Esse vento age como o sujeito, que tem um “olhar incerto” (v.51). Essa formulação lembra duas imagens de Idéias íntimas, “olhos turvos” e “mente errante”, apontando para a situação incomum de inteligência e de percepção que caracterizam o melancólico613. Em Lágrimas de sangue, o perdão pedido tem como motivação a consciência do desvio, da errância da mente. Um dos problemas essenciais do sujeito, que o move a esse arrependimento, é a expectativa de sua morte para breve. Ao formulá-la, nos versos 74-5, o faz de um modo que tange a contradição nuclear do melancólico: a sua finitude, diante do infinito. O poema de Bernardo

612 613

ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. op. cit. p.40. KLIBANSKY, PANOFSKY & SAXL. Saturne et la mélancolie. op.cit. p. 44 e 87.

258 Guimarães, anteriormente citado, discute por que Deus, tendo criado o homem à sua semelhança, o deixou nas trevas614. O sujeito lírico de Lágrimas de sangue, mesmo em sua atitude devota, ostenta sua percepção desesperada de morte por todos os lados. O que ele mais vê não são marcas do infinito do Absoluto, mas do finito. A angústia melancólica da finitude é levada a um extremo desumanizador. "Como o homem comum é rodeado pela vida, ele é rodeado pela morte"

615

. O verso 16

nos fala de um “vale dos cadáveres”. A palavra “cadáver” reaparece nos versos 61 e 104. No verso 18, temos “túmulos no pó”. Aparecem fantasmas (v.53 e 69), crânios (v.61 e 128), “mortais venenos” (v.56), torrentes de morte arrasando flores (v.82-4),

e funerais (v.88-9). No verso 100, o sepulcro é

considerado um ventre. O paradoxo intencional, a coincidência de morte e nascimento, é exposta por Satã em Macário - “Da morte nasce muitas vezes a vida”616 - e foi elaborada também por João Cabral de Melo Neto, que representou um cemitério como sementeira, em Cemitério pernambucano (Toritama). As cinzas constituem sementes. A matéria morta, resultante de decomposição, se converte em fundamento para a concepção da matéria viva. Para que todo este muro? Por que isolar estas tumbas do outro ossário mais geral que é a paisagem defunta? (...) - Deve ser a sementeira o defendido hectare, onde se guardam as cinzas

614

GUIMARÃES, Bernardo. O devanear do cético. op.cit. p.150-1 e 155. BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. op.cit. p.137. 616 AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. v.2. p.37. 615

259 para o tempo de semear.

617

Na 15a. estrofe, o sujeito brada: “Morrer! Morrer! É voz das sepulturas! (...) A morte em nós se estampa.”. Trata-se de assinalar, com impacto, a presença da morte no horizonte do sujeito. Tudo o que ele fizer é vão, a glória é vã, (v.91-4), uma vez que a morte calará tudo na treva. Ao evidenciar a expectativa de morte, a vida deixa de ter um sentido pleno

618

.

O estado do sujeito corresponde àquilo que Clement Rosset define como perdição. Perdem-se as escalas e gradações de percepção habituais, entrando-se em algo próximo do pesadelo e da angústia. Trata-se de uma “visão da morte como estado, como verdade primeira de tudo o que existe”. Para Rosset, a experiência da perda está associada à perdição, no sentido de que a perda abala os “referenciais costumeiros” de orientação da vida; um livro que apresenta uma série de perdas, como a Lira dos vinte anos, é carregado pelo impacto constante da morte no âmbito da vida, tão constante que é como se a primeira fosse constitutiva da segunda

619

.

Na 19a. estrofe, como Jó, como Werther, o sujeito lírico se manifesta desgastado pelo grau de sofrimento, e considera a morte uma forma de alívio. “O meu peito cansou da vida insana; / (...) agora / Eu dormirei tranqüilo” (v.1124). O morrer ocorre no presente: “De meus dias a lâmpada se apaga” (v.55).

617

MELO NETO, João Cabral de. Antologia poética. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975. p.153. "Do ponto de vista da morte, a vida é a produção do cadáver." BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. op.cit. p.241. 619 ROSSET, Clement. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e tempo, 1989. p.118. 618

260 A mesma idéia aparece em outro poema, Lembrança de morrer620. Deixar a vida é “deixar o tédio” (v.9), desfazer um pesadelo (v.11-2). Elogiado por Antonio Candido e Alfredo Bosi621, este poema tem outros pontos de contato com Lágrimas de sangue. Enquanto o sujeito lírico deste tinha um “olhar incerto”, o eu, em Lembrança de morrer, afirma ter uma “alma errante” (v.13). O princípio é o mesmo, nos dois poemas, e também em Idéias íntimas: os sujeitos são governados pela inconstância, marca profundamente interiorizada no melancólico

622

. O poema tem elementos que se referem ao elenco

tradicional de expressões da melancolia: a saudade do passado (v.15), a solidão (v.25-9), o “fogo insensato” (v.14), a dor (v.2). O texto lamenta, como Meus oito anos, de Casimiro de Abreu, a perda de um período de contentamento. Álvares de Azevedo incluiu elementos do cristianismo no texto: “verdade santa” (v.33), “filha do céu” (v.36), “alma” (v.42), e em especial a “cruz” (v.39) que, ao mesmo tempo em que indica a presença do túmulo e do epitáfio, aponta para a figura de Cristo. No romantismo brasileiro, podemos encontrar pelo menos três linhas de representação da morte. A primeira consistiria na manifestação do desejo de morrer, em razão de não se encontrar sentido na existência. “Quando o mel se

620

AZEVEDO, Álvares de. Obras completas.op.cit. V.1. p.122-4. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. op.cit. p.190. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. op. cit. p.112. 622 Conforme ARISTOTE. L`homme de génie et la melancolie. Problème XXX, 1. op.cit. p 95. 621

261 esgotasse, o que restava a não ser o suicídio?”623 A idéia é observada em Morte, de Junqueira Freire, em que o sujeito lírico trata a morte como “amiga” (v.2): Amei-te sempre: - e pertencer-te quero Para sempre também, amiga morte. Quero o chão, quero a terra, - esse elemento 624 Que não se sente dos vaivéns da sorte.

A segunda, pelo contrário, propõe que, sendo o mundo paradisíaco, a condenação à morte perturba. O sujeito lírico de Mocidade e morte, de Castro Alves, declara, enfático: “Oh! eu quero viver” (v.1).

Morrer... quando este mundo é um paraíso, E a alma um cisne de douradas plumas: (...) Vejo além um futuro radiante: 625 Avante! - brada-me o talento n`alma (...)

A terceira consiste em uma posição ambígua, que oscila entre o terror e a aceitação. O sujeito lírico de A morte, de Fagundes Varela, inicialmente, trata-a como “divindade cruel” (v.2), mas depois muda seu ponto de vista e admite, na última estrofe, a possibilidade de recebê-la como um consolo e forma de chegar a Deus.

Tu não me curvarás sem resistência, Divindade cruel! (...) Realeza de cinza e de poeira! 623

A frase é de Cláudius Hermann, em Noite na taverna. AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. v. 2. p.136. No segundo episódio de Macário, o protagonista manifesta pensamento similar - “Se eu pudesse morrer!”. Idem, p.53. 624 FREIRE, Junqueira. Morte (hora do delírio). In: BANDEIRA, Manuel, org. Antologia dos poetas brasileiros: fase romântica. op.cit. p.218-21. Conforme também, do mesmo autor, O arranco da morte. Idem, p.217-8. 625 ALVES, Castro. Mocidade e morte. In: ALVES, Castro. Poesias completas. op.cit..p.22-4.

262 Triste escárnio do ser! (...) Bendita sejas, virgem do infinito, Anjo consolador, Que a triste foragida criatura 626 Restituis ao Senhor! .

Tanto Lágrimas de sangue como Lembrança de morrer têm afinidade com o primeiro modo de representação, pois formulam a idéia de que a morte traga a tranqüilidade e o fim do sofrimento. Na medida em que pretendem conciliar o ideário cristão com a tristeza melancólica, e manifestam ter uma percepção inconstante, no entanto, deixam de se enquadrar com precisão nesse perfil. Em uma passagem de Macário, o protagonista diz: “(...) sinto o mundo objetivo como um túmulo”627. À luz dessa frase, a situação em Lágrimas de sangue é semelhante à do poema En el teocalli de Cholula, do cubano José Maria Heredia, em que se lê: 1. 2. 3. 4. 5.

Todo perece Por ley universal. Aun este mundo tan bello y tan brillante que habitamos, Es el cadáver pálido y diforme 628 De otro mundo que fue...

No poema de Azevedo, o sujeito pede perdão a Deus, no verso 139, porque mantém sua fé. À luz de outro texto do autor, anteriormente mencionado, Panteísmo, caberia atribuir isso à crença na onipresença da divindade, que tudo purifica. Porém, mesmo tendo sido construído um mundo “belo” e “brilhante”, para usar os termos de Heredia, nele se tornou onipresente

626

VARELA, Fagundes. A morte. In: ___. Poemas. op.cit. p.85-7. AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. v.2. p.69. 628 HEREDIA, José Maria. En el teocalli de Cholula. In: MARTINEZ, Carlos Dámaso, org. Poesía latinoamericana del siglo XIX. op.cit. p.59. 627

263 também a morte. Em Lágrimas de sangue, a manifestação da fé se propõe juntamente com uma expectativa de morrer. O sujeito não quer viver no mundo criado por Deus, mas quer o perdão para poder ir embora em paz. Como expõem os poemas de Heredia e Azevedo, havendo morte por todos os lados, como tudo perece, o mundo é como um inferno, contemplado por um olhar melancólico, paradoxal e incerto. Nas palavras do poeta cubano, o mundo é, ele próprio, um cadáver. Nesse sentido, Lágrimas de sangue não é propriamente uma valorização da vida, nem um elogio da morte. Acontece que, se o sepulcro é ventre, e o mundo é “vale dos cadáveres”, o sujeito está rodeado pela morte desde a vida. “A vida é o início da morte. A morte é, ao mesmo tempo, fim e início - separação e uma mais estreita autoligação, 629

simultaneamente”

629

.

NOVALIS. Fragmentos. op.cit. p. 29.

264

4. Perspectivas O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá. Ítalo Calvino, As cidades invisíveis

A leitura da Lira dos vinte anos coloca questões que exigem continuidade de estudos. Embora, por razões de ordem prática, o espaço desta tese tenha de restringir o campo de reflexão, supõe-se que, em momentos posteriores, seja possível desenvolver o que foi feito e pensar a respeito de outros tópicos. Entre os desdobramentos possíveis deste trabalho, estão quatro caminhos de leitura, que deveriam, a rigor, estar contemplados nesta tese. O primeiro é a reflexão sobre os outros textos produzidos por Álvares de Azevedo - Macário, Noite na taverna, Poesias diversas, O poema do frade, O conde Lopo, estudos literários, discursos e cartas. Caberia examiná-los de maneira a levantar pontos de contato e/ou diferenças relevantes com relação à Lira dos vinte anos, no que se refere aos temas abordados, e a seus elementos melancólicos. Um segundo desdobramento consistiria na comparação sistemática de Álvares de Azevedo com outros escritores e pintores de sua época, com o fim de avaliar a especificidade de suas representações da melancolia. A fortuna crítica de Azevedo insiste constantemente em caracterizar sua produção como marcada por influências estrangeiras, o que foi interpretado como marca de

265 universalidade

630

. Seria preciso levar adiante um estudo metódico, para

compreender em que medida a interiorização de idéias estéticas de Vitor Hugo, Byron, Musset e outros ocorre com senso seletivo e crítico

631

. Uma limitação

deste trabalho consiste em que, como não há uma compreensão exata dessa medida, não podemos precisar até que ponto a melancolia na Lira dos vinte anos é original, e o quanto ela deve a um conhecimento poético prévio. Por essa razão, não se pretendeu argumentar que a melancolia em Azevedo é algo exclusivo de seu autor. Um terceiro caminho de leitura da Lira é aberto pelas afinidades do livro com obras brasileiras de diversas épocas. A consideração de elementos melancólicos na obra de Azevedo leva a observar a presença de elementos semelhantes em outros autores. Machado de Assis, por exemplo, fez com que Brás Cubas declarasse, a respeito de suas memórias, que são "Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia (...)"632. A afirmação sugere uma associação entre ironia e melancolia, condutora do livro, tematizada no capítulo Filosofia das folhas velhas

630

633

; essa ligação é essencial em Idéias íntimas. Eugênio

Essa é a proposta, por exemplo, de Álvaro Lins, que afirma: “Álvares de Azevedo simboliza o ponto de vista de que não é o isolamento, mas a liberdade de se comunicar em todas as direções, o que faz a independência de uma literatura. (...) Ele realizava, sem dúvida à sua maneira, um processo de luta contra a tutela de Portugal, deixando-se influenciar por autores franceses, ingleses e alemães, procurando dar à sua obra um caráter universal e destituído de fronteiras”. LINS, Álvaro. Atualidade de um neoromantismo entre a política e a literatura. In: ____. A glória de César e o punhal de Brutus. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963. p.128. 631 O livro de Maria Alice de Oliveira Faria, Astarte e a espiral, anteriormente mencionado, é uma referência para a discussão do assunto. 632 ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ____. Obras completas. v.1. p. 513. 633 Cabe lembrar a seguinte passagem. "Fiquei tão triste com o fim do último capítulo que estava capaz de não escrever este, descansar um pouco, purgar o espírito da melancolia que o empacha, e continuar depois. Mas não, não quero perder tempo.". Idem, p.614.

266 Gomes demonstrou importantes conexões entre Assis e Azevedo634, e a perspectiva irônico-melancólica é um aspecto que pode aproximar ainda mais os autores. A melancolia é um elemento fundamental na produção de Machado de Assis, sua presença não se restringe a Memórias póstumas. Em Memorial de Aires, a exposição da velhice do protagonista é pontuada por constantes alusões à melancolia férias

635

. Em contos como Cantiga de esponsais

636

e Umas

637

, o escritor tematizou as difíceis conseqüências emocionais da perda

de um ente querido. O tema da perda, por si só, motivaria uma outra tese. Em Dom Casmurro, Bentinho expõe suas memórias sob um ponto de vista em que pesam a morte de Capitu e do filho Ezequiel638. A melancolia de Bentinho constitui uma atitude negativa, que resulta em esvaziamento de si mesmo: “Se só me faltassem os outros, vá, um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo”639. Em São Bernardo, de Graciliano Ramos, Paulo Honório sofre alterações profundas com a perda de Madalena

640

. Dyonélio Machado, em Um pobre

homem, apresenta um homem incapaz de aceitar a morte da filha641. Mário de

634

Conforme GOMES, Eugênio. Machado de Assis e Álvares de Azevedo. Conforme também NEGRÃO, Maria José T. Apresentação. In: AZEVEDO, Álvares de. Poesia. Rio de Janeiro: Agir, 1957. p.10. 635 ASSIS, Machado de. Memorial de Aires. op.cit. 636 O conto faz parte de Histórias sem data. Conforme ASSIS, Machado de. Obras completas. v.2. p.38690. 637 O conto faz parte de Relíquias da casa velha. Idem, p.698-703. 638 ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. In: ____. Obras completas. v.1. p.943. 639 Idem, p.810. 640 RAMOS, Graciliano. São Bernardo. op.cit. 641 MACHADO, Dyonélio. Um pobre homem. In: _____. Um pobre homem. Porto Alegre: Globo, 1927.

267 Andrade, em Túmulo, túmulo, túmulo, apresenta um patrão, Belazarte, atingido pela melancolia, em razão da perda de seu criado Ellis

642

.

Na poesia lírica de Carlos Drummond de Andrade, além de encontrarmos uma associação direta entre a melancolia e o mundo da mercadoria, em A flor e a náusea643, observamos abordagens melancólicas da morte, em Os últimos dias

644

, Os rostos imóveis

645

, Os bens e o sangue

646

e Viagem na família

647

,

entre outros. Rodrigo, em A hora da estrela, problematiza sua atividade de narrador, dedicado a expor a estória de uma figura como Macabéa. O título se refere justamente ao momento de sua morte, “pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um”. Após relatar o atropelamento, o narrador acentua traços melancólicos apresentados ao longo do livro, faz uma referência ao diabo - “vencera o Príncipe das Trevas” - e reverte a perda sofrida em auto-aniquilação - “Macabéa me matou”648. Em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, Riobaldo, atingido pela perda de Diadorim, diz: “E, o pobre de mim, minha tristeza me atrasava, consumido. Eu não tinha competência de querer viver, tão acabadiço, até o cumprimento de respirar me sacava. E Diadorim, às vezes conheci que a saudade dele não me desse repouso; nem o nele imaginar. Porque eu, em tanto viver de tempo, 642

ANDRADE, Mário de. Túmulo, túmulo, túmulo. In: ____. Os contos de Belazarte. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. 643 ANDRADE, Carlos Drummond de. Nova reunião. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987. v.1. p.112-4. 644 Idem, v.1. p.215-8. 645 Idem, v.1. p.99-101. 646 Idem, v.1. p.281-6. 647 Idem, v.1. p.105-8. 648 LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p.36 e 96-7.

268 tinha negado em mim aquele amor, e a amizade desde agora estava amarga falseada; e o amor, e a pessoa dela, mesma, ela tinha me negado. Para que eu ia conseguir 649 viver?”

A melancolia de Riobaldo é um dos elementos constitutivos do ponto de vista da narração de sua trajetória. Encontramos um narrador melancólico também em A terceira margem do rio. O filho, que não consegue superar o distanciamento de seu pai, declara: “Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio - pondo perpétuo. Eu sofria já o começo da velhice - esta vida era só o demoramento. (...) Sou o que 650 não foi, o que vai ficar calado.”

A análise dessas e de outras obras, tendo como enfoque a compreensão de seus elementos melancólicos, além de ajudar a refletir a respeito de problemas de interpretação que elas colocam, pode tornar visíveis afinidades eletivas, com referências às quais encontramos articulações e linhas de continuidade, que dizem respeito à matéria histórica brasileira. Não se trata de acreditar que essas linhas sejam claras, ou a matéria histórica inteiramente homogênea, pois cada um dos textos mencionados está vinculado a circunstâncias específicas. Porém, ainda assim, se tomarmos como exemplo um livro de Paulo Arantes, em que o autor comenta a constância com que são empregadas categorias dualistas na reflexão sociológica sobre o Brasil, 649

ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. op.cit. p.458. ROSA, Guimarães. A terceira margem do rio. In: ____. Primeiras estórias.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p.36-7. 650

269 podemos lidar com a hipótese de que uma certa lógica, inerente ao funcionamento da sociedade brasileira, esteja se recolocando e renovando há muito tempo, tanto no campo social como no estético

651

. A resposta à questão

“por que tanta melancolia em nossa cultura ?” deve estar ligada ao fato de que instabilidade,

indeterminação

de

sentido,

perda,

passagem

rumo

à

degradação, presença da morte sejam, além de traços literários, elementos pressentidos pelos escritores na matéria histórica, em vários momentos de nossa formação social, marcada por uma “violência estrutural”652, e figurados de diferentes maneiras. Nesse sentido, a percepção de Azevedo de que Bocage traduz o crepúsculo de Portugal sugere que uma literatura melancólica represente uma forma social danificada. Embora o poeta brasileiro não tenha elaborado uma teoria acabada, sua idéia sugere a leitura de seu livro como sinal de uma dor e uma incerteza históricas. A melancolia está associada à inconstância, a uma “indefinição radical”653 que constitui contradições, e suscita aquilo que Eugênio Gomes chamou de “tumulto formal”

654

, a diversidade interna da Lira dos vinte

anos. Rodrigo Naves sugere que “a forma tão pouco estruturada e institucionalizada de nossa sociedade certamente estimula e dá veracidade às 655

formalizações que resistem a uma determinação mais acentuada”

651

.

Ver ARANTES, Paulo Eduardo. Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. Em especial, p.37. 652 Conforme o emprego da expressão em BOSI, Alfredo. O nacional e suas faces. op.cit. p.37. 653 NAVES, Rodrigo. A forma difícil. op.cit. p.34. 654 GOMES, Eugênio. O individualismo romântico. op.cit. v.3. p.756 e 759. 655 NAVES, Rodrigo. A forma difícil. op.cit. p.21.

270

Esse estudo pode se estender, para além da literatura, envolvendo outros gêneros. Podem ser consideradas, por exemplo, as manifestações de melancolia no filme Limite, de Mário Peixoto, nas canções Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim, e Saudosa maloca, de Adoniran Barbosa, em alguns quadros de Pedro Américo, e no ensaio Retrato do Brasil, de Paulo Prado. É provocadora a freqüência com que encontramos elementos melancólicos na cultura brasileira. Não é o caso, no espaço desta tese, de chegar a uma interpretação finalizada dessa freqüência; de todo modo, as obras suscitam a necessidade de estudos específicos, e também de uma reflexão de conjunto, que mapeasse uma possível “linhagem melancólica” de representação do Brasil. Um quarto modo de desenvolver este estudo, vinculado ao anterior, seria examinar as relações entre Álvares de Azevedo e a história do Brasil. Essa questão é das mais urgentes e mais difíceis. O cânone romântico está fortemente associado ao nacionalismo, em razão das produções de autores como Gonçalves Dias e José de Alencar. Álvares de Azevedo, por sua vez, é considerado um autor cuja produção não traz, a não ser eventualmente, marcas do contexto histórico em que surgiu 656. Noite na taverna, por exemplo, mostra um deliberado desapego com relação à realidade brasileira. Seus personagens têm nomes europeus, os episódios são situados em ambientes europeus ou indeterminados, e não há o menor sinal de cor local. Esse modo de composição pode ser entendido como filiação a uma convenção de gênero, considerando antecedentes estrangeiros. 656

GOMES, Eugênio. O individualismo romântico. op.cit. p.746. Conforme também TORRES, Alexandre Pinheiro. Álvares de Azevedo. op.cit. p.921-2. Maria da Glória Bordini distingue, no romantismo brasileiro, no que se refere às relações entre poesia e história, uma tendência “evasionista” de uma linha que pretende “firmar uma idéia de nação autônoma”. Conforme BORDINI, Maria da Glória. A representação da história na poesia: o caso Murilo Mendes. Letras de hoje. Porto Alegre: PUC-RS, 1996. v.31. n.4. p.119.

271

Para essa leitura, por opção, a obra estaria descomprometida com o Brasil. No entanto, precisamente por se afastar do nacionalismo, ela exige uma interpretação que avalie sua posição dentro do sistema literário brasileiro

657

.

No caso da Lira dos vinte anos, há uma dificuldade metodológica importante. Trata-se de definir mediações adequadas e precisas para estabelecer ligações entre textos poéticos de temas intimistas (amor, sexualidade, morte, devaneio, entre outros) e a matéria histórica concreta. “Poesia lírica evoca pessoalidade, subjetividade radical”, e por isso, com relação a esse gênero, “(...) costuma-se negar a possibilidade mimética, pois o mundo apresentado não seria o das possíveis ações do homem, mas o de seus efetivos sentimentos. A História, entendida como práxis humana, ficaria proscrita, porque não seria possível ao sentimento ser ordenador, dar aos eventos uma sucessão temporal em que se imbricasse indissoluvelmente uma causalidade lógica - os clássicos 658 requisitos da mímese poética.”

José Guilherme Merquior, em A natureza da lírica, aborda o problema, afirmando que, nesse gênero, “é especialmente raro depararmos com um mundo de aparência factual bem raro e preciso”, estando “o foco referencial” freqüentemente afastado da “matéria histórico-empírica”659. Essa linha de raciocínio remete à teoria da lírica de Hegel

657

660

, centrada na noção de

O trabalho de Azevedo rompe deliberadamente com a tendência desenvolvida por Alencar, e se torna paradigma para desenvolvimento de ficção de escritores menores. Conforme CAVALHEIRO, Edgard, org. O conto romântico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1961. p.119. 658 BORDINI, Maria da Glória. História e poesia no Romanceiro da Inconfidência. Brasil / Brazil. Porto Alegre: PUC-RS / Brown University, 1996. n.15. p.82-3. 659 MERQUIOR, José Guilherme. A natureza da lírica. In: _____. A astúcia da mímese. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972. 660 HEGEL. O conteúdo da poesia lírica. op.cit. p.608-9.

272 expressão da subjetividade, e a autores por ela influenciados, como Emil Staiger 661. Uma reflexão sobre as relações entre poesia e história, tendo como objeto a Lira dos vinte anos, deve considerar as idéias dominantes em circulação na sociedade brasileira oitocentista, e avaliar o grau de crítica ou adesão que a obra propõe com relação a elas

662

. Entende-se que “os

antagonismos não resolvidos da realidade retornam às obras de arte como os problemas imanentes da sua forma”663; nessa linha de raciocínio, é possível interpretar as contradições de Azevedo, bem como seus elementos melancólicos, como representações de problemas da matéria histórica brasileira. O fato de a lírica representar emoções subjetivas não é um impedimento para a reflexão de cunho histórico; é necessário fixar princípios metodológicos compatíveis com suas especificidades de gênero, de modo a dar visibilidade à posição que ela assume com relação à matéria histórica a partir da qual se constitui.

661

STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. Conforme a avaliação da sociologia literária feita em ZILBERMAN, Regina. Aspectos da interpretação literária. Letras de hoje. Porto Alegre: PUC-RS, 1983. n.51. p.104-7. 663 ADORNO, Theodor. Teoria estética. Lisboa: Martins Fontes, 1988. p.16. 662

273

Anexos ANJINHO

And from her fresh and unpolluted flesh May violets spring! Hamlet

1. 2. 3. 4. 5. 6.

Não chorem! que não morreu! Era um anjinho do céu Que um outro anjinho chamou! Era uma luz peregrina, Era uma estrela divina Que ao firmamento voou!

7. Pobre criança! dormia: 8. A beleza reluzia 9. No carmim da face dela! 10. Tinha uns olhos que choravam, 11. Tinha uns risos que encantavam! 12. Ai meu Deus! era tão bela! 13. Um anjo d`asas azuis, 14. Todo vestido de luz, 15. Sussurrou-lhe num segredo 16. Os mistérios de outra vida! 17. E a criança adormecida 18. Sorria de se ir tão cedo! 19. Tão cedo! que ainda o mundo 20. O lábio visguento, imundo, 21. Lhe não passara na roupa! 22. Que só o vento do céu 23. Batia do barco seu 24. As velas d`ouro da poupa! 25. Tão cedo! que o vestuário 26. Levou do anjo solitário 27. Que velava seu dormir! 28. Que lhe beijava risonho 29. E essa florzinha no sonho 30. Toda orvalhava no abrir! 31. Não chorem! lembro-me ainda 32. Como a criança era linda 33. No frio da facezinha! 34. Com seus lábios azulados, 35. Com os seus olhos vidrados 36. Como de morta andorinha! 37. Pobrezinho! o que sofreu! 38. Como convulso tremeu

274 39. Na febre dessa agonia! 40. Nem gemia o anjo lindo, 41. Só os olhos expandindo 42. Olhar alguém parecia! 43. Era um canto de esperança 44. Que embalava essa criança? 45. Alguma estrela perdida, 46. Do céu c`roada donzela, 47. Toda a chorar-se por ela 48. Que a chamava doutra vida? 49. Não chorem, que não morreu! 50. Que era um anjinho do céu 51. Que um outro anjinho chamou! 52. Era uma luz peregrina, 53. Era uma estrela divina 54. Que ao firmamento voou! 55. Era uma alma que dormia 56. Da noite na ventania, 57. E que uma fada acordou! 58. Era uma flor de palmeira 59. Na sua manhã primeira 60. Que um céu d`inverno murchou! 61. Não chores, abandonada 62. Pela rosa perfumada! 63. Tendo no lábio um sorriso 64. Ela foi-se mergulhar 65. - Como pérola no mar 66. Nos sonhos do paraíso! 67. Não chores! chora o jardim 68. Quando murchado o jasmim 69. Sobre o seio lhe pendeu? 70. E pranteia a noite bela 71. Pelo astro, pela donzela 72. Mortas na terra ou no céu? 73. Choram as flores no afã, 74. Quando a ave da manhã 75. Estremece, cai, esfria? 76. Chora a onda quando vê 77. A boiar uma irerê 78. Morta ao sol do meio-dia? 79. Não chores! que não morreu! 80. Era um anjinho do céu 81. Que um outro anjinho chamou! 82. Era uma luz peregrina, 83. Era uma estrela divina 664 84. Que ao firmamento voou!

664

AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. v.1. p. 18-21.

275

Dreams! dreams! dreams! W.Cowper

1. 2. 3. 4.

Quando à noite no leito perfumado Lânguida fronte no sonhar reclinas, No vapor da ilusão porque te orvalha Pranto de amor as pálpebras divinas?

5. 6. 7. 8.

E, quando eu te contemplo adormecida Solto o cabelo no suave leito, Porque um suspiro tépido ressona E desmaia suavíssimo em teu peito?

9. Virgem do meu amor, o beijo a furto 10. Que pouso em tua face adormecida 11. Não te lembra no peito os meus amores 12. E a febre do sonhar de minha vida? 13. Dorme, ó anjo de amor! no teu silêncio 14. O meu peito se afoga de ternura 15. E sinto que o porvir não vale um beijo 16. E o céu um teu suspiro de ventura! 17. Um beijo divinal que acende as veias, 18. Que de encantos os olhos ilumina, 19. Colhido a medo como flor da noite 20. Do teu lábio na rosa purpurina, 21. E um volver de teus olhos transparentes, 22. Um olhar dessa pálpebra sombria, 23. Talvez pudessem reviver-me n`alma 665 24. As santas ilusões de que eu vivia!

CREPÚSCULO NAS MONTANHAS Pálida estrela, casto olhar da noite, diamante luminoso na fronte azul do crepúsculo, o que vês na planície? OSSIAN

I 1. Além serpeia o dorso pardacento 2. Da longa serrania, 3. Rubro flameia o véu sanguinolento 4. Da tarde na agonia. 5. No cinéreo vapor o céu desbota 6. Num azulado incerto; 7. No ar se afoga desmaiando a nota

665

Idem. p. 31-2.

276 8.

Do sino do deserto.

9. Vim alentar meu coração saudoso 10. No vento das campinas, 11. Enquanto nesse manto lutuoso 12. Pálida te reclinas, 13. E morre em teu silêncio, ó tarde bela, 14. Das folhas o rumor 15. E late o pardo cão que os passos vela 16. Do tardio pastor!

II 17. Pálida estrela! o canto do crepúsculo 18. Acorda-te no céu; 19. Ergue-te nua na floresta morta 20. Do teu doirado véu! 21. Ergue-te! eu vim por ti e pela tarde 22. Pelos campos errar, 23. Sentir o vento, respirando a vida, 24. E livre suspirar. 25. É mais puro o perfume das montanhas 26. Da tarde no cair: 27. Quando o vento da noite ruge as folhas 28. É doce o teu luzir! 29. Estrela do pastor no véu doirado 30. Acorda-te na serra, 31. Inda mais bela no azulado fogo 32. Do céu da minha terra! III 33. Estrela d`oiro, no purpúreo leito 34. Da irmã da noite, branca e peregrina 35. No firmamento azul derramas dia 36. Que as almas ilumina! 37. Abre o seio de pérola, transpira 38. Esse raio de luz que a mente inflama! 39. Esse raio de amor que ungiu meus lábios 40. No meu peito derrama! IV 41. Estrelinhas azuis do céu vermelho, 42. Lágrimas d`oiro sobre o véu da tarde, 43. Que olhar celeste em pálpebra divina 44. Vos derramou tremendo? 45. Quem à tarde, crisólitas ardentes, 46. Estrelas brancas, vos sagrou saudosas

277 47. Da fronte dela na azulada c`roa 48. Como auréola viva? 49. Foram anjos de amor que vagabundos 50. Com saudades do céu vagam gemendo 51. E as lágrimas de fogo dos amores 52. Sobre as nuvens pranteiam? 53. Criaturas da sombra e do mistério, 54. Ou no purpúreo céu doireis a tarde, 55. Ou pela noite cintileis medrosas, 56. Estrelas, eu vos amo! 57. E quando exausto o coração no peito 58. Do amor nas ilusões espera e dorme, 59. Diáfanas vindes lhe doirar na mente 60. A sombra da esperança! 61. Oh! quando o pobre sonhador medita 62. Do vale fresco no orvalhado leito, 63. Inveja as águias o perdido vôo, 64. Para banhar-se no perfume etéreo. 65. E essa argêntea luz, no mar de amores 66. Onde entre sonhos e luar divino 67. A mão eterna vos lançou no espaço, 666 68. Respirar e viver!

NO TÚMULO DE MEU AMIGO JOÃO BATISTA DA SILVA PEREIRA JÚNIOR

Epitáfio

1. 2. 3. 4.

Perdão, meu Deus, se a túnica da vida Insano profanei-a nos amores! Se à coroa dos sonhos perfumados Eu próprio desfolhei as róseas flores!

5. 6. 7. 8.

No vaso impuro corrompeu-se o néctar, A argila da existência desbotou-me! O sol de tua glória abriu-me as pálpebras, Da nódoa das paixões purificou-me!

9. E quantos sonhos na ilusão da vida, 10. Quanta esperança no futuro ainda! 11. Tudo calou-se pela noite eterna... 666

Idem. p.57-60.

278 12. E eu vago errante e só na treva infinda... 13. Alma em fogo, sedenta de infinito, 14. Num mundo de visões o vôo abrindo, 15. Como o vento do mar no céu noturno 16. Entre as nuvens de Deus passei dormindo! 17. A vida é noite: o sol tem véu de sangue: 18. Tacteia a sombra a geração descrida... 19. Acorda-te, mortal! é no sepulcro 20. Que a larva humana se desperta à vida! 21. Quando as harpas do peito a morte estala, 22. Um treno de pavor soluça e voa: 23. E a nota divinal que rompe as fibras 667 24. Nas dulias angélicas ecoa!

TARDE DE OUTONO Un souvenir heureux est peut-être sur terre Plus vrai que le bonheur. Alf. de Musset

O POETA

1. 2. 3. 4. 5. 6.

Oh! musa, por que vieste, E contigo me trouxeste A vagar na solidão? Tu não sabes que a lembrança De meus anos de esperança Aqui fala ao coração?

A SAUDADE 7. De um puro amor a lânguida saudade 8. É doce como a lágrima perdida 9. Que banha no cismar um rosto virgem. 10. Volta o rosto ao passado, e chora a vida. O POETA

11. Não sabes o quanto dói 12. Uma lembrança que rói 13. A fibra que adormeceu?... 667

Idem. p.80-1.

279 14. Foi neste vale que amei, 15. Que a primavera sonhei, 16. Aqui minha alma viveu. A SAUDADE

17. Pálidos sonhos do passado morto 18. É doce reviver mesmo chorando. 19. A alma refaz-se pura. Um vento aéreo 20. Parece que de amor nos vai roubando. O POETA

21. Eu vejo ainda a janela 22. Onde à tarde junto dela 23. Eu lia versos de amor... 24. Como eu vivia d`enleio 25. No bater daquele seio, 26. Naquele aroma de flor!

27. Creio vê-la inda formosa, 28. Nos cabelos uma rosa, 29. De leve a janela abrir... 30. Tão bela, meu Deus, tão bela! 31. Por que amei tanto, donzela, 32. Se devias me trair? A SAUDADE 33. A casa está deserta. A parasita 34. Das paredes estala a negra cor. 35. Os aposentos o ervaçal povoa. 36. A porta é franca... Entremos, trovador! O POETA 37. Derramai-vos, prantos meus! 38. Dai-me prantos, ó meu Deus! 39. Eu quero chorar aqui! 40. Em que sonhos de ebriedade 41. No arrebol da mocidade 42. Eu nesta sombra dormi!

43. Passado, por que murchaste? 44. Ventura, por que passaste 45. Degenerando em saudade? 46. Do estio secou-se a fonte, 47. Só ficou na minha fronte 48. A febre da mocidade.

280 A SAUDADE 49. Sonha, poeta, sonha! Ali sentado 50. No tosco assento da janela antiga, 51. Apóia sobre a mão a face pálida, 52. Sorrindo - dos amores à cantiga. O POETA 53. Minha alma triste se enluta, 54. Quando a voz interna escuta 55. Que blasfema da esperança. 56. Aqui tudo se perdeu, 57. Minha pureza morreu 58. Com o enlevo da criança!

59. Ali, amante ditoso, 60. Delirante, suspiroso, 61. Eflúvios dela sorvi. 62. No seu colo eu me deitava... 63. E ela tão doce cantava! 64. De amor e canto vivi!

65. Na sombra deste arvoredo 66. Oh! quantas vezes a medo 67. Nossos lábios se tocaram! 68. E os seios onde gemia 69. Uma voz que amor dizia, 70. Desmaiando me apertaram!

71. Foi doce nos braços teus, 72. Meu anjo belo de Deus, 73. Um instante de viver! 74. Tão doce, que em mim sentia 75. Que minh`alma se esvaía 76. E eu pensava ali morrer! A SAUDADE 77. É berço de mistério e d`harmonia 78. Seio mimoso de adorada amante. 79. A alma bebe nos sons que amor suspira 80. A voz, a doce voz de uma alma errante.

81. Tingem-se os olhos de amorosa sombra, 82. Os lábios convulsivos estremecem, 83. E a vida foge ao peito... apenas tinge 84. As faces que de amor empalidecem.

85. Parece então que o agitar do gozo

281 86. Nossos lábios atrai a um bem divino: 87. Da amante o beijo é puro como as flores 88. E a voz dela é um hino.

89. Dizei-o vós, dizei, ternos amantes, 90. Almas ardentes que a paixão palpita, 91. Dizei essa emoção que o peito gela 92. E os frios nervos num espasmo agita.

93. Vinte anos! como tens doirados sonhos! 94. E como a névoa de falaz ventura 95. Que se estende nos olhos do poeta 96. Doira a amante de nova formosura! O POETA 97. Que gemer! não me enganava! 98. Era o anjo que velava 99. Minha casta solidão? 100.São minhas noites gozadas, 101.As venturas tão choradas 102.Que vibram meu coração?

103.É tarde, amores, é tarde; 104.Uma centelha não arde 105.Na cinza dos seios meus... 106.Por ela tanto chorei, 107.Que mancebo morrerei... 668 108.Adeus, amores, adeus!

VIRGEM MORTA

Oh! make her a grave where the sun beams rest, When they promise a glorious morrow! They`ll shine o`er sleep, like a smile from the West, From her own lov`d island of sorrow. Th. Moore

668

Idem. p.87-91.

1. 2. 3. 4.

Lá bem na extrema da floresta virgem, Onde na praia em flor o mar suspira, quando geme a brisa do crepúsculo, Mais poesia do arrebol transpira;

5. 6. 7. 8.

Nas horas em que a tarde moribunda As nuvens roxas desmaiando corta, No leito mole da molhada areia Manso repousem a beleza morta.

282 9. Irmã chorosa a suspirar desfolhe 10. No seu dormir da laranjeira as flores, 11. Vistam-na de cetim, e o véu de noiva 12. Lhe desdobrem da face nos palores. 13. Vagueie em torno, de saudosas virgens, 14. Errando à noite, a lamentosa turma; 15. Nos cânticos de amor e de saudade 16. Junto às ondas do mar a virgem durma. 17. À brisa da saudade suspirando 18. Aí na tarde misteriosa e bela, 19. Entregarei as cordas do alaúde 20. E irei meus sonhos prantear por ela! 21. Quero eu mesmo de rosa o leito encher-lhe 22. E de amorosos prantos perfumá-la, 23. E a essência dos cânticos divinos, 24. No túmulo da virgem, derramá-la. 25. Que importa que ela durma descorada, 26. E velasse o palor a cor do pejo? 27. Quero a delícia que o amor sonhava, 28. Nos lábios dela pressentir um beijo. 29. Desbotada coroa do poeta, 30. Foi ela mesma quem prendeu-te flores... 31. Ungiu-as no sacrário de seu peito 32. Inda virgem do alento dos amores... 33. Na minha fronte riu de ti passando 34. Dos sepulcros o vento peregrino... 35. Irei eu mesmo desfolhar-te agora 36. Da fronte dela no palor divino!... 37. E contudo eu sonhava! e pressuroso 38. Da esperança o licor sorvi sedento! 39. Ah! que tudo passou! só tenho agora 40. O sorriso de um anjo macilento! 41. Ó minha amante, minha doce virgem, 42. Eu não te profanei, e dormes pura: 43. No sono do mistério, qual na vida, 44. Podes sonhar apenas na ventura. 45. Bem cedo ao menos eu serei contigo 46. - Na dor do coração a morte leio... 47. Poderei amanhã, talvez, meus lábios 48. Da irmã dos anjos encostar no seio... 49. E tu, vida que amei! pelos teus vales 50. Com ela sonharei eternamente, 51. Nas noites junto ao mar, e no silêncio, 52. Que das notas enchi da lira ardente!... 53. Dorme ali minha paz, minha esperança,

283 54. Minha sina de amor morreu com ela, 55. E o gênio do poeta, lira eólia 56. Que tremia ao alento da donzela! 57. Qu`esperanças, meu Deus! E o mundo agora 58. Se inunda em tanto sol no céu da tarde! 59. Acorda, coração!... Mas no meu peito 60. Lábio de morte murmurou - É tarde! 61. É tarde! e quando o peito estremecia 62. Sentir-me abandonado e moribubdo! 63. É tarde! é tarde! ó ilusões da vida, 64. Morreu com ela da esperança o mundo!... 65. No leito virginal de minha noiva 66. Quero, nas sombras do verão da vida, 67. Prantear os meus únicos amores, 68. Das minhas noites a visão perdida! 69. Quero ali, no luar, sentir passando 70. Por alta noite a viração marinha, 71. E ouvir, bem junto às flores do sepulcro, 72. Os sonhos de sua alma inocentinha. 73. E quando a mágoa devorar meu peito, 74. E quando eu morra de esperar por ela, 75. Deixai que eu durma ali e que descanse, 669 76. Na morte ao menos, junto ao seio dela.

LÁGRIMAS DE SANGUE Taedet animam meam vita mae. Job

1. 2. 3. 4. 5. 6.

Ao pé das aras no clarão dos círios Eu te devera consagrar meus dias; Perdão, meu Deus! perdão Se neguei meu Senhor nos meus delírios E um canto de enganosas melodias Levou meu coração!

7. Só tu, tu podias o meu peito 8. Fartar de imenso amor e luz infinda 9. E uma saudade calma; 10. Ao sol de tua fé doirar meu leito 11. E de fulgores inundar ainda 12. A aurora na minh`alma. 13. Pela treva do espírito lancei-me, 14. Das esperanças suicidei-me rindo... 15. Sufoquei-as sem dó. 16. No vale dos cadáveres sentei-me 669

Idem. p.101-5.

284 17. E minhas flores semeei sorrindo 18. Dos túmulos no pó. 19. Indolente Vestal, deixei no templo 20. A pira se apagar - na noite escura 21. O meu gênio descreu. 22. Voltei-me para a vida... só contemplo 23. A cinza da ilusão que ali murmura: 24. Morre! - tudo morreu! 25. Cinzas, cinzas... Meu Deus! só tu podias 26. À alma que se perdeu bradar de novo: 27. Ressurge-te ao amor! 28. Macilento, das minhas agonias 29. Eu deixaria as multidões do povo 30. Para amar o Senhor! 31. Do leito aonde o vício acalentou-me 32. O meu primeiro amor fugiu chorando... 33. Pobre virgem de Deus! 34. Um vendaval sem norte arrebatou-me, 35. Acordei-me na treva... profanando 36. Os puros sonhos meus! 37. Oh! se eu pudesse amar!... - É impossível! 38. Mão fatal escreveu na minha vida; 39. A dor me envelheceu. 40. O desespero pálido, impassível, 41. Agoirou minha aurora entristecida, 42. De meu astro descreu. 43. Oh! se eu pudesse amar! Mas não: agora 44. Que a dor emurcheceu meus breves dias, 45. Quero na cruz sanguenta 46. Derramá-los na lágrima que implora, 47. Que mendiga perdão pela agonia 48. Da noite lutulenta! 49. Quero na solidão - nas ermas grutas 50. A tua sombra procurar chorando 51. Com meu olhar incerto: 52. As pálpebras doridas nunca enxutas 53. Queimarei... teus fantasmas invocando 54. No vento do deserto. 55. De meus dias a lâmpada se apaga, 56. Roeram meu viver mortais venenos; 57. Curvo-me ao vento forte. 58. Teu fúnebre clarão que a noite alaga, 59. Como a estrela oriental me guie ao menos 60. Té ao vale da morte! 61. No mar dos vivos o cadáver bóia, 62. - A lua é descorada como um crânio, 63. Este sol não reluz: 64. Quando na morte a pálpebra se engoia,

285 65. O anjo se acorda em nós - e subitâneo 66. Voa ao mundo da luz! 67. Do val de Josaphat pelas gargantas 68. Uiva na treva o temporal sem norte 69. E os fantasmas murmuram... 70. Irei deitar-me nessas trevas santas, 71. Banhar-me na friez lustral da morte, 72. Onde as almas se apuram! 73. Mordendo as clinas do corcel da sombra, 74. Sufocado, arquejante passarei 75. Na noite do infinito. 76. Ouvirei essa voz que a treva assombra, 77. Dos lábios de minh`alma entornarei 78. O meu cântico aflito! 79. Flores cheias de aroma e de alegria, 80. Porque na primavera abrir cheirosas 81. E orvalhar-vos abrindo? 82. As torrentes da morte vêm sombrias, 83. Hão-de amanhã nas águas tenebrosas 84. Vos rebentar bramindo. 85. Morrer! morrer! É voz das sepulturas! 86. Como a lua nas salas festivais 87. A morte em nós se estampa! 88. E os pobres sonhadores de venturas 89. Roxeiam amanhã nos funerais 90. E vão rolar na campa! 91. Que vale a glória, a saudação que enleva 92. Dos hinos triunfais na ardente nota, 93. E as turbas devaneia? 94. Tudo isso é vão, e cala-se na treva... 95. - Tudo é vão, como em lábios de idiota 96. Cantiga sem idéia. 97. Que importa? quando a morte se descarna, 98. A esperança do céu flutua e brilha 99. Do túmulo no leito: 100.O sepulcro é o ventre onde se encarna 101.Um verbo divinal que Deus perfilha 102.E abisma no seu peito! 103.Não chorem! que essa lágrima profunda 104.Ao cadáver sem luz não dá conforto... 105.Não o acorda um momento! 106.Quando a treva medonha o peito inunda, 107.Derrama-se nas pálpebras do morto 108.Luar do esquecimento! 109.Caminha no deserto a caravana, 110.Numa noite sem lua arqueja e chora... 111.O termo... é um sigilo! 112.O meu peito cansou da vida insana:

286 113.Da cruz à sombra, junto aos meus, agora 114.Eu dormirei tranqüilo! 115.Dorme ali muito amor... muitas amantes, 116.Donzelas puras que eu sonhei chorando 117.E vi adormecer. 118.Ouço da terra cânticos errantes, 119.E as almas saudosas suspirando, 120.Que falam em morrer... 121.Aqui dormem sagradas esperanças, 122.Almas sublimes que o amor erguia... 123.E gelaram tão cedo! 124.Meu pobre sonhador! aí descansas, 125.Coração que a existência consumia 126.E roeu em segredo!... 127.Quando o trovão romper as sepulturas, 128.Os crânios confundidos acordando 129.No lodo tremerão... 130.No lodo pelas tênebras impuras 131.Os ossos estalados tiritando 132.Dos vales surgirão! 133.Como rugindo a chama encarcerada 134.Dos negros flancos do vulcão rebenta 135.Golfejando nos céus, 136.Entre nuvem ardente e trovejada 137.Minh`alma se erguerá, fria, sangrenta, 138.Ao trono de meu Deus... 139.Perdoa, meu Senhor! O errante crente 140.Nos desesperos em que a mente abrasar 141.Não o arrojes p`lo crime! 142.Se eu fui um anjo que descreu demente 143.E no oceano do mal rompeu as asas, 670 144.Perdão! arrependi-me!

IDÉIAS ÍNTIMAS

Fragmento

La chaise où je m'assieds, la natte où je me couche, La table où je t'écris,............................. .................................................... Mes gros souliers ferrés, mon bâton, mon chapeau, Mes livres pêle-mêle entassés sur leur planche 670

Idem. p.113-8.

287 .................................................... De cet espace étroit sont tout l`ameublement. Lamartine, Jocelyn

I 1 Ossian o bardo é triste como a sombra 2 Que seus cantos povoa. O Lamartine 3 É monótono e belo como a noite, 4 Como a lua no mar e o som das ondas... 5 Mas pranteia uma eterna monodia, 6 Tem na lira do gênio uma só corda, 7 Fibra de amor e Deus que um sopro agita: 8 Se desmaia de amor a Deus se volta, 9 Se pranteia por Deus de amor suspira. 10 Basta de Shakespeare. Vem tu agora, 11 Fantástico alemão, poeta ardente 12 Que ilumina o clarão das gotas pálidas 13 Do nobre Johannisberg! Nos teus romances 14 Meu coração deleita-se... Contudo 15 Parece-me que vou perdendo o gosto, 16 Vou ficando blasé, passeio os dias 17 Pelo meu corredor, sem companheiro, 18 Sem ler, nem poetar. Vivo fumando. 19 Minha casa não tem menores névoas 20 Que as deste céu d`inverno... Solitário 21 Passo as noites aqui e os dias longos; 22 Dei-me agora ao charuto em corpo e alma; 23 Debalde ali de um canto um beijo implora, 24 Como a beleza que o Sultão despreza, 25 Meu cachimbo alemão abandonado! 26 Não passeio a cavalo e não namoro; 27 Odeio o lasquenet... Palavra d'honra! 28 Se assim me continuam por dois meses 29 Os diabos azuis nos frouxos membros, 30 Dou na Praia Vermelha ou no Parnaso. II 31 Enchi o meu salão de mil figuras. 32 Aqui voa um cavalo no galope, 33 Um roxo dominó as costas volta 34 A um cavaleiro de alemães bigodes, 35 Um preto beberrão sobre uma pipa, 36 Aos grossos beiços a garrafa aperta... 37 Ao longo das paredes se derramam 38 Extintas inscrições de versos mortos, 39 E mortos ao nascer... Ali na alcova 40 Em águas negras se levanta a ilha 41 Romântica, sombria à flor das ondas 42 De um rio que se perde na floresta... 43 Um sonho de mancebo e de poeta, 44 El-Dorado de amor que a mente cria 45 Como um Éden de noites deleitosas... 46 Era ali que eu podia no silêncio 47 Junto de um anjo... Além o romantismo! 48 Borra adiante folgaz criatura

288 49 Com tinta de escrever e pó vermelho 50 A gorda face, o volumoso abdómen, 51 E a grossa penca do nariz purpúreo 52 Do alegre vendilhão entre botelhas 53 Metido num tonel... Na minha cômoda 54 Meio encetado o copo inda verbera 55 As águas d`oiro do Cognac fogoso. 56 Negreja ao pé narcótica botelha 57 Que da essência de flores de laranja 58 Guarda o licor que nectariza os nervos. 59 Ali mistura-se o charuto Havano 60 Ao mesquinho cigarro e ao meu cachimbo. 61 A mesa escura cambaleia ao peso 62 Do titânio Digesto, e ao lado dele 63 Childe-Harold entreaberto ou Lamartine 64 Mostra que o romantismo se descuida 65 E que a poesia sobrenada sempre 66 Ao pesadelo clássico do estudo. III 67 Reina a desordem pela sala antiga, 68 Desde a teia de aranha as bambinelas 69 À estante pulvurenta. A roupa, os livros 70 Sobre as cadeiras poucas se confundem. 71 Marca a folha do Faust um colarinho 72 E Alfredo de Musset encobre às vezes 73 De Guerreiro ou Valasco um texto obscuro. 74 Como outrora do mundo os elementos 75 Pela treva jogando cambalhotas, 76 Meu quarto, mundo em caos, espera um Fiat! IV 77 Na minha sala três retratos pendem. 78 Ali Victor Hugo. Na larga fronte 79 Erguidos luzem os cabelos loiros 80 Como c`roa soberba. Homem sublime, 81 O poeta de Deus e amores puros 82 Que sonhou Triboulet, Marion Delorme 83 E Esmeralda a Cigana... e diz a crônica 84 Que foi aos tribunais parar um dia 85 Por amar as mulheres dos amigos 86 E adúlteros fazer romances vivos. V 87 Aquele é Lamennais - o bardo santo, 88 Cabeça de profeta, ungido crente, 89 Alma de fogo na mundana argila 90 Que as harpas de Sion vibrou na sombra, 91 Pela noite do século chamando 92 A Deus e à liberdade as loucas turbas. 93 Por ele a George Sand morreu de amores, 94 E dizem que... Defronte, aquele moço, 95 Pálido, pensativo, a fronte erguida,

289 96 Olhar de Bonaparte em face Austríaca, 97 Foi do homem secular as esperanças. 98 No berço imperial um céu de Agosto 99 Nos cantos do triunfo despertou-o... 100 As águias de Wagram e de Marengo 101 Abriam flamejando as longas asas 102 Impregnadas do fumo dos combates, 103 Na púrpura dos Césares, guardando-o. 104 E o gênio do futuro parecia 105 Predestiná-lo à glória. A história dele? 106 Resta um crânio nas urnas do estrangeiro... 107 Um loureiro sem flores nem sementes... 108 E um passado de lágrimas... A terra 109 Tremeu ao sepultar-se o Rei de Roma. 110 Pode o mundo chorar sua agonia 111 E os louros de seu pai na fronte dele 112 Infecundos depor... Estrela morta, 113 Só pode o menestrel sagrar-te prantos! VI 114 Junto a meu leito, com as mãos unidas, 115 Olhos fitos no céu, cabelos soltos, 116 Pálida sombra de mulher formosa 117 Entre nuvens azuis pranteia orando. 118 É um retrato talvez. Naquele seio 119 Porventura sonhei doiradas noites: 120 Talvez sonhando desatei sorrindo 121 Alguma vez nos ombros perfumados 122 Esses cabelos negros, e em delíquio 123 Nos lábios dela suspirei tremendo. 124 Foi-se minha visão. E resta agora 125 Aquela vaga sombra na parede 126 - Fantasma de carvão e pó cerúleo, 127 Tão vaga, tão extinta e fumarenta 128 Como de um sonho o recordar incerto. VII 129 Em frente do meu leito, em negro quadro 130 A minha amante dorme. É uma estampa 131 De bela adormecida. A rósea face 132 Parece em visos de um amor lascivo 133 De fogos vagabundos acender-se... 134 E com a nívea mão recata o seio... 135 Oh! quantas vezes, ideal mimoso, 136 Não encheste minh`alma de ventura, 137 Quando louco, sedento e arquejante, 138 Meus tristes lábios imprimi ardentes 139 No poento vidro que te guarda o sono! VIII 140 O pobre leito meu desfeito ainda 141 A febre aponta da noturna insônia 142 Aqui lânguido a noite debati-me

290 143 Em vãos delírios anelando um beijo... 144 E a donzela ideal nos róseos lábios, 145 No doce berço do moreno seio 146 Minha vida embalou estremecendo... 147 Foram sonhos contudo. A minha vida 148 Se esgota em ilusões. E quando a fada 149 Que diviniza meu pensar ardente 150 Um instante em seus braços me descansa 151 E roça a medo em meus ardentes lábios 152 Um beijo que de amor me turva os olhos, 153 Me ateia o sangue, me elanguesce a fronte, 154 Um espírito negro me desperta, 155 O encanto do meu sonho se evapora 156 E das nuvens de nácar da ventura 157 Rolo tremendo à solidão da vida! IX 158 Oh! ter vinte anos sem gozar de leve 159 A ventura de uma alma de donzela! 160 E sem na vida ter sentido nunca 161 Na suave atração de um róseo corpo 162 Meus olhos turvos se fechar de gozo! 163 Oh! nos meus sonhos, pelas noites minhas 164 Passam tantas visões sobre meu peito! 165 Palor de febre meu semblante cobre, 166 Bate meu coração com tanto fogo! 167 Um doce nome os lábios meus suspiram, 168 Um nome de mulher... e vejo lânguida 169 No véu suave de amorosas sombras 170 Seminua, abatida, a mão no seio, 171 Perfumada visão romper a nuvem, 172 Sentar-se junto a mim, nas minhas pálpebras 173 O alento fresco e leve como a vida 174 Passar delicioso... Que delírios! 175 Acordo palpitante... inda a procuro; 176 Embalde a chamo, embalde as minhas lágrimas 177 Banham meus olhos, e suspiro e gemo... 178 Imploro uma ilusão... tudo é silêncio! 179 Só o leito deserto, a sala muda! 180 Amorosa visão, mulher dos sonhos, 181 Eu sou tão infeliz, eu sofro tanto! 182 Nunca virás iluminar meu peito 183 Com um raio de luz desses teus olhos? X 184 Meu pobre leito! eu amo-te contudo! 185 Aqui levei sonhando noites belas; 186 As longas horas olvidei libando 187 Ardentes gotas de licor doirado, 188 Esqueci-as no fumo, na leitura 189 Das páginas lascivas do romance... 190 Meu leito juvenil, da minha vida

291 191 És a página d`oiro. Em teu asilo 192 Eu sonho-me poeta, e sou ditoso, 193 E a mente errante devaneia em mundos 194 Que esmalta a fantasia! Oh! quantas vezes 195 Do levante no sol entre odaliscas 196 Momentos não passei que valem vidas! 197 Quanta música ouvi que me encantava! 198 Quantas virgens amei! que Margaridas, 199 Que Elviras saudosas e Clarissas 200 Mais trêmulo que Faust eu não beijava, 201 Mais feliz que Don Juan e Lovelace 202 Não apertei ao peito desmaiando! 203 Ó meus sonhos de amor e mocidade, 204 Por que ser tão formosos, se devíeis 205 Me abandonar tão cedo... e eu acordava 206 Arquejando a beijar meu travesseiro? XI 207 Junto do leito meus poetas dormem 208 - O Dante, a Bíblia, Shakespeare e Byron 209 Na mesa confundidos. Junto deles 210 Meu velho candieiro se espreguiça 211 E parece pedir a formatura. 212 Ó meu amigo, ó velador noturno, 213 Tu não me abandonaste nas vigílias, 214 Quer eu perdesse a noite sobre os livros, 215 Quer, sentado no leito, pensativo 216 Relesse as minhas cartas de namoro! 217 Quero-te muito bem, ó meu comparsa 218 Nas doudas cenas de meu drama obscuro! 219 E num dia de spleen, vindo a pachorra, 220 Hei de evocar-te num poema heróico 221 Na rima de Camões e de Ariosto 222 Como padrão às lâmpadas futuras! ......................................... XII 223 Aqui sobre esta mesa junto ao leito 224 Em caixa negra dous retratos guardo. 225 Não os profanem indiscretas vistas. 226 Eu beijo-os cada noite: neste exílio 227 Venero-os juntos e os prefiro unidos 228 - Meu pai e minha mãe. - Se acaso um dia 229 Na minha solidão me acharem morto, 230 Não os abra ninguém. Sobre meu peito 231 Lancem-os em meu túmulo. Mais doce 232 Será certo o dormir na noite negra 233 Tendo no peito essas imagens puras. XIII 234 Havia uma outra imagem que eu sonhava 235 No meu peito na vida e no sepulcro.

292 236 Mas ela não o quis... rompeu a tela 237 Onde eu pintara meus doirados sonhos. 238 Se posso no viver sonhar com ela, 239 Essa trança beijar de seus cabelos 240 E essas violetas inodoras, murchas, 241 Nos lábios frios comprimir chorando, 242 Não poderei na sepultura, ao menos, 243 Sua imagem divina ter no peito. XIV 244 Parece que chorei... Sinto na face 245 Uma perdida lágrima rolando... 246 Satã leve a tristeza! Olá, meu pajem, 247 Derrama no meu copo as gotas últimas 248 Dessa garrafa negra... 249 Eia! bebamos! 250 És o sangue do gênio, o puro néctar 251 Que as almas do poeta diviniza, 252 O condão que abre o mundo das magias! 253 Vem, fogoso Cognac! É só contigo 254 Que sinto-me viver. Inda palpito, 255 Quando os eflúvios dessas gotas áureas 256 Filtram no sangue meu correndo a vida, 257 Vibram-me os nervos e as artérias queimam, 258 Os meus olhos ardentes se escurecem 259 E no cérebro passam delirosos 260 Assomos de poesia... Dentre a sombra 261 Vejo num leito d'oiro a imagem dela 262 Palpitante, que dorme e que suspira, 263 Que seus braços me estende... 264 Eu me esquecia: 265 Faz-se noite; traz fogo e dous charutos 266 E na mesa do estudo acende a lâmpada...

MALVA-MAÇÃ A P...

1. 2. 3. 4. 5. 6.

De teus seios tão mimosos Quem gozasse o talismã! Quem ali deitasse a fronte Cheia de amoroso afã! E quem nele respirasse A tua malva-maçã!

7. Dá-me tua folha cheirosa 8. Que treme ao seio teu! 9. Dá-me a folha... hei de beijá-la 10. Sedenta no lábio meu! 11. Não vês que o calor do seio 12. Tua malva emurcheceu... 13. A pobrezinha em teu colo 14. Tantos amores gozou,

293 15. Viveu em tanto perfume 16. Que de enlevos expirou! 17. Quem pudesse no teu seio 18. Morrer como ela murchou! 19. Teu cabelo me inebria, 20. Teu ardente olhar seduz; 21. A flor de teus olhos negros 22. De tua alma raia à luz, 23. E sinto nos lábios teus 24. Fogo do céu que transluz! 25. O teu seio que estremece 26. Enlanguesce-me de gozo. 27. Há um quê de tão suave 28. No colo voluptuoso, 29. Que num trêmulo delíquio 30. Faz-me sonhar venturoso! 31. Descansar nesses teus braços 32. Fora angélica ventura: 33. Fora morrer - nos teus lábios 34. Aspirar tua alma pura! 35. Fora ser Deus dar-te um beijo 36. Na divina formosura! 37. Mas o que eu peço, donzela, 38. Meus amores, não é tanto! 39. Basta-me a flor do seio 40. Para que eu viva no encanto, 41. E em noites enamoradas 42. Eu verta amoroso pranto! 43. Oh! virgem dos meus amores, 44. Dá-me essa folha singela! 45. Quero sentir teu perfume 46. Nos doces aromas dela... 47. E nessa malva-maçã 48. Sonhar teu seio, donzela! 49. Uma folha assim perdida 50. De um seio virgem no afã 51. Acorda ignotas doçuras 52. Com divino talismã! 53. Dá-me do seio esta folha 54. - A tua malva-maçã! 55. Quero apertá-la a meu peito 56. E beijá-la com ternura... 57. Dormir com ela nos lábios 58. Desse aroma na frescura... 59. Beijando-a sonhar contigo 60. E desmaiar de ventura! 61. A folha que tens no seio 62. De joelhos pedirei...

294 63. Se posso viver sem ela 64. Não o creio!... oh! eu não sei! 65. Dá-me pelo amor de Deus, 66. Que sem ela morrerei!... 67. Pelas estrelas da noite, 68. Pelas brisas da manhã, 69. Por teus amores mais puros, 70. Pelo amor de tua irmã, 71. Dá-me essa folha cheirosa, 671 72. - A tua malva-maçã!

671

Idem. p.254-6.

295 Dürer - Melencolia I

296 Theodore Géricault - Le soir

297 Theodore Géricault - Scène de déluge

298 Theodore Géricault - Le radeau de la méduse

299 Philippe Jacques de Loutheborg - Coalbrookdale, la nuit

300 Wright of Derby - L `eruption du Vesuve

301 William Turner - Báteau de negriers

302 Casper David Friedrich - L `abbaye dans un bois

303 Caspar David Friedrich - Femme au coucher du soleil

304 Casper David Friedrich - Le matin de Pâques

305 Casper David Friedrich - Deux hommes contemplant la lune

306 Casper David Friedrich - Lever de lune sur la mer

307 Casper David Friedrich - Un homme et une femme contemplant la lune

308

Bibliografia Edição utilizada AZEVEDO, Álvares de. Obras Completas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942.2v. Edições consultadas AZEVEDO, Álvares de. Os melhores poemas. São Paulo: Global, 1994. _____. Obras. Rio de Janeiro / Paris: Garnier, s.d. 6 ed. t.I. _____. Lira dos vinte anos. São Paulo: FTD, 1994. _____. Poesias completas. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. _____. Lira dos vinte anos. São Paulo: Martins Fontes, 1996. _____. Poesia. Rio de Janeiro: Agir, 1957. _____. Melhores poemas de Lira dos vinte anos. São Paulo: Núcleo, 1994. _____. Poemas malditos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.

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