OLIVEIRA,. Pedro Aires - \"A descolonização: contornos e dinâmicas internacionais\" in ALMEIDA, P. Cardoso de (coord.), Descolonização. IV. A Solução. Verso da História, 2015, pp. 44-73

June 1, 2017 | Autor: Pedro Aires Oliveira | Categoria: Portuguese Colonialism and Decolonizaton
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A descolonização: contornos e dinâmicas internacionais [publicado em P. Cardoso de Almeida (coord.), Descolonização. IV. A Solução. Verso da História, 2015, pp. 44-73]

Pedro Aires Oliveira IHC-FCSH-NOVA

A dissolução do império africano de Portugal tem lugar num tempo histórico muito preciso: o terceiro quartel do século XX, uma conjuntura marcada pela intersecção das descolonizações europeias e o conflito Leste/Oeste – a Guerra Fria – que desde a década de 1940 configurou, em larga medida, a geopolítica mundial. É, no fundo, o período em que a ascendência europeia, progressivamente afirmada desde a Era Moderna, conhece o seu canto de cisne, com isso abrindo caminho para uma redistribuição do poder à escala global, com repercussões que ainda se estão a manifestar nos dias de hoje. A grande prova de força Trata-se, evidentemente, de um processo que suscita interpretações divergentes quando se trata de identificar nexos de causalidade ou pontos de viragem decisivos. Parece, contudo, haver algum consenso quanto às vantagens de se inscrever a crise dos impérios europeus num arco temporal mais amplo, que dê conta, nomeadamente, de dinâmicas desencadeadas no rescaldo do primeiro conflito mundial, da redistribuição de povos e territórios no âmbito dos mandatos da Liga das Nações ao ímpeto conferido às aspirações de autodeterminação pelo Presidente Wilson, sem esquecer as frustrações geradas pela não universalização das promessas deste último entre as populações não-europeias. Pelo seu alcance planetário, e profundidade dos seus impactos políticos, económicos e societais, a II Guerra Mundial é contudo apontada como o 1

verdadeiro teste ácido à estabilidade das formações imperiais europeias. Algumas dessas potências – França, Bélgica e Holanda – foram submetidas a regimes de ocupação na Europa e, em parte, nos seus domínios ultramarinos. Com resultados desiguais, o Japão explorou à exaustão o ressentimento contra o homem branco e, sobretudo nos momentos derradeiros do conflito, procurou patrocinar lideranças autóctones anti-ocidentais. Mesmo a Grã-Bretanha, embora tirando grande partido do contributo dos seus activos imperiais, não saiu ilesa do assalto montado pelos poderes do Eixo. Na Ásia, a queda da Birmânia e da Malaia, assim com os bastiões de Hong-Kong e Singapura, acompanhada das humilhações físicas e simbólicas infligidas pelos japoneses aos seus soldados e administradores, desfizeram os mitos da superioridade ocidental. A preservação da Índia evitaria um cenário ainda mais catastrófico, mas a “Jóia da Coroa” assistiu à emergência de movimentos colaboracionistas (como o Exército Nacional Indiano de Subhas Chandra Bose), ou ao recrudescimento das campanhas de desobediência civil (“Quit India”) lançadas pelo Partido do Congresso em 1942. As autoridades imperiais britânicas não tiveram grande dificuldade em controlar estas últimas, mas a detenção de figuras com o prestígio de Gandhi e Nehru deu novo fôlego às aspirações nacionalistas. Em vários momentos, os responsáveis ocidentais mostraram-se bem cientes da necessidade de oferecer uma resposta à propaganda do Eixo, que, do Norte de África à Ásia Oriental, conseguira seduzir as elites insatisfeitas com a governação colonial das potências liberais. Embora a contragosto, os britânicos aceitaram aderir à “Carta do Atlântico” (1941), um manifesto aprovado numa cimeira entre Churchill e Roosevelt que fazia referências explícitas ao direito dos povos à autodeterminação, e que será depois transformado na “Declaração das Nações Unidas” (1942). Não indo tão longe, os franceses assumiriam, ainda assim, na Conferência de Brazzaville (1944), uma série de compromissos em relação ao fim do indigenato, do trabalho forçado e do pacto colonial, a par de outras promessas visando abrir os quadros do funcionalismo colonial a um maior número de nativos, ou dar uma maior representatividade às assembleias locais. Por detrás destas concessões encontrava-se também a preocupação com o tipo de pressões políticas que os Estados Unidos se encontravam a exercer em várias frentes. Com algum sentido oportunista, os norte-americanos estavam determinados a tirar o máximo partido da vulnerabilidade dos seus aliados 2

europeus. Acreditavam que a chave para tornar sustentável a sua recuperação económica, impulsionada pelo esforço de guerra, residia no desmantelamento dos esquemas proteccionistas dos espaços imperiais europeus – era a política da “porta aberta”, que, de há longa data, se tornara um artigo de fé das doutrinas expansionistas norte-americanas. Neste domínio, e graças à margem de manobra que lhe era conferida pela sua posição única na coligação aliada, os EUA somariam pontos uma vez chegada a altura de definir os contornos da nova ordem económica internacional, a qual irá progressivamente substituindo os regimes preferenciais dos impérios por acordos baseados nas doutrinas do comércio livre. Num plano mais político, a grande aposta da administração Roosevelt passava pela criação de uma organização internacional que aprendesse com os erros da Sociedade das Nações e servisse, também ela, para facilitar uma dissolução pacífica dos impérios coloniais. Aqui, o Presidente Roosevelt tinha sobretudo em mente uma ampliação do velho regime das “tutelas” (aplicáveis aos territórios

das

potências

coloniais

tidas

como

mais

“retrógradas”

e

“incompetentes”, como a França e Portugal) para garantir uma evolução para a independência dos povos colonizados sob a égide de uma autoridade supranacional. Os poderes imperiais europeus terminam pois o conflito numa posição, no mínimo, ambivalente. Por um lado, estão financeiramente exangues e têm de lidar com um crescendo de contestação em vários pontos do globo, na sequência das mudanças trazidas pela guerra e da deslegitimação das velhas ideologias e modos de administração colonial. Por outro lado, a consciência dessa vulnerabilidade não deixava de constituir um incentivo à conservação de alguns dos seus activos imperiais, sem os quais a recuperação económica das metrópoles era vista como eminentemente incerta. Será na intersecção dos focos de tensão locais e do desenrolar das grandes coordenadas da geopolítica mundial que o futuro das formações imperiais se jogará nas décadas seguintes, num processo feito de resistências, negociações e cedências, mas invariavelmente marcado por contornos de grande violência. Partir e resistir na Ásia Num primeiro momento, é no Próximo Oriente e na Ásia que os impérios, tanto os “formais” como os “informais”, se debatem com os desafios mais sérios. 3

Na Síria e no Líbano, os franceses revelam-se incapazes de resistir às pressões para uma liquidação rápida dos seus antigos mandatos internacionais, retirandose sem conseguir sequer celebrar um tratado de independência. Situação semelhante acabaria por se verificar na Palestina, onde os britânicos se reconhecem impotentes para travar a escalada de violência entre árabes e judeus, e promover um entendimento que oferecesse um mínimo de estabilidade às fronteiras do novo estado entretanto criado. Denunciado como uma “debandada” por políticos de veia imperialista, como Churchill, o mesmo padrão de impotência e pragmatismo estaria também em evidência na forma como o Raj britânico foi desmantelado em 1947. Depois de anos a cultivar uma política de “dividir para reinar”, explorando animosidades de tipo identitário e confessional, as autoridades britânicas viram-se confrontadas com uma espiral de violência que rapidamente

ameaçou

tornar-se

incontrolável.

Economicamente

falida,

pressionada com uma agenda doméstica exigente (a construção do Estadoprovidência), e outras solicitações de ordem estratégica, a Grã-Bretanha percebeu que a sua prioridade consistia em encenar o melhor possível uma “saída com honra”. Esforços de última hora para conciliar hindus, muçulmanos e sikhs saíram frustrados, o que levou a uma divisão assaz arbitrária das áreas territoriais adstritas aos novos estados sucessores, a União Indiana e o Paquistão. Dessa partilha apressada resultaria um cortejo trágico de êxodos populacionais, massacres colectivos, pilhagens e atentados, bem como diferendos fronteiriços (caso de Caxemira), que corrigem a imagem de um final pacífico e harmonioso do ciclo imperial britânico na Índia. De uma forma menos problemática, Ceilão e Birmânia acederiam à independência em 1948, situação que não vai todavia ocorrer na Malaia, onde, durante mais de uma década (1948-1960), forças da Commonwealth estrariam envolvidas na eliminação de uma guerrilha comunista local. Um conflito onde a componente política não deixou, contudo, de estar sempre presente na mente dos decisores britânicos. Apesar dos bons resultados proporcionados pelas suas tácticas de aliciamento das populações (a luta pelos “corações e mentes”), estes sabiam que a situação no território dificilmente estabilizaria sem um envolvimento de forças nacionalistas locais (de inclinação moderada, de preferência) na busca de um compromisso, o que vem a ser conseguido em 1957, data da independência da Malaia.

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Ainda no Sudeste Asiático, franceses e holandeses enfrentariam também eles o duro teste da resistência armada às tentativas de reposição do status quo imperial, nomeadamente na Indochina e na Indonésia. O desfecho foi, em ambos os casos, idêntico, mas as circunstâncias da retirada foram distintas e reveladoras da importância que os factores geopolíticos estavam a assumir na contestação aos impérios europeus. Em Paris e na Haia, governos de coligação sensíveis a toda a sorte de pressões domésticas mostraram inicialmente grande relutância em fazer cedências que seriam passíveis de acentuar ainda mais o sentimento de humilhação nacional experimentado no decurso do segundo conflito mundial. Questões como a honra do exército, ou até mesmo cálculos de natureza económica (mais relevantes no caso da Holanda), pesaram na decisão de resistir às reivindicações dos nacionalismos armados que se batiam pela independência. Em ambos os casos, a posição assumida pelos EUA revelar-se-ia preponderante no prolongamento ou abreviação da contenda. No caso da Indochina, os franceses foram capazes de persuadir os norte-americanos do risco que uma vitória do VietMinh, um movimento nacionalista de orientação marxista, representaria para os interesses ocidentais na região. O resultado seria um progressivo empenhamento de Washington ao lado dos franceses, que apenas em 1954, no rescaldo do desastre de Dien Bien Phu, se resignariam a procurar um entendimento com os partidários de Ho Chi Minh. No caso das Índias Orientais holandesas, a ausência dessa conotação ideológica entre os nacionalistas indonésios impediu que os norte-americanos transigissem com a obstinação holandesa. Um primeiro confronto com o braço armado do Partido Nacionalista Indonésio deu origem a uma trégua em 1946, que se revelaria precária. Seguiram-se dois anos de “acções policiais” (1947-49), repletas de episódios singularmente brutais, que suscitam a atenção das Nações Unidas e provocam uma ameaça americana de suspensão da assistência concedida à Holanda ao abrigo do Plano Marshall. Com o impasse instalado, os holandeses convencem-se, finalmente, da futilidade do seu esforço. Apesar de alguma retórica anti-ocidental, e uma orientação socializante, o primeiro presidente indonésio, Sukarno, revelar-se-ia aberto à permanência dos interesses económicos da antiga metrópole no novo estado, desmentindo assim as previsões mais catastrofistas que alguns “falcões” da política neerlandesa tinham formulado para justificar a resistência à descolonização.

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Impérios sob pressão procuram modernizar-se Relativamente ao continente africano – onde se situava o coração do império ultramarino de Portugal – a atmosfera internacional revelar-se-ia mais benigna para os poderes europeus, designadamente na primeira década após a guerra. Em termos de pressões exteriores, a Organização das Nações Unidas (ONU) e as suas agências não representavam ainda uma ameaça à soberania colonial europeia. A sua Carta era suficientemente ambígua para dar respaldo aos poderes europeus para rejeitarem qualquer interferência externa nos respectivos territórios ultramarinos. Certamente que os princípios do trusteeship, da igualdade racial e da autodeterminação dos povos, inscritos na Carta ou noutros textos normativos relevantes, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), permitiram que a noção de accountability em matéria de política colonial, e até a ideia de uma futura dissolução dos vínculos imperiais, fossem fazendo o seu caminho. Mas, num organismo ainda tão dominado, em termos de equilíbrio de forças, pelas potências ocidentais, esse horizonte pós-colonial parecia ainda algo longínquo. Numa primeira fase, o papel crucial da ONU em matéria de descolonização será o de monitorizar o acesso à independência das antigas colónias italianas (Líbia e Somália italiana), e de proporcionar uma tribuna global às correntes de opinião anti-coloniais, com a União Indiana a assumir grande destaque nesse papel. Alguns dos seus comités procuram também avaliar os aspectos mais controversos dos sistemas coloniais, nomeadamente a persistência de formas de trabalho compelido, num escrutínio complementar ao de instituições como a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Os poderes europeus revelaram-se solidários nos seus esforços para neutralizar estes desafios, embora com algumas nuances. Assim, enquanto os britânicos evidenciavam uma postura mais cooperante, ou “apaziguadora”, franceses e belgas reagiam de forma mais crispada e defensiva a todos os pedidos de informação oriundos do Secretariado e de outras instâncias onusianas. Excluído da organização até 1955 (em virtude de um impasse gerado entre os EUA e a URSS a propósito dos critérios de admissão de novos membros), Portugal nem por isso deixou de acompanhar atentamente – e com ansiedade – a evolução do novo quadro normativo internacional, bem como as pressões que poderiam emanar de algumas instituições. Em 1953, por exemplo, a situação laboral no 6

Congo belga e nas colónias africanas de Portugal foi explicitamente visada num relatório da OIT, o qual encontrou evidência suficiente para atestar a persistência de sistemas de trabalho compelido nesses territórios. Três anos mais tarde, no âmbito da mesma organização, seria aprovada uma Convenção para a Abolição do Trabalho Forçado, a que o Estado português percebeu que não poderia deixar de aderir sob a pena de atrair ainda mais atenções para as facetas arcaizantes do seu sistema colonial. Por outro lado, o adensamento da Guerra Fria, a partir de 1947, representou um alívio para as formações imperiais europeias em África. O receio da penetração comunista, em evidência na Ásia Oriental, moldou decisivamente as percepções dos norte-americanos em relação à possibilidade de uma retirada “prematura” dos europeus de África. Mais a mais, a eclosão do conflito na península da Coreia, em 1950, emprestaria um sentido de urgência à acumulação de stocks de matérias-primas estratégias que apenas algumas colónias africanas estavam em condições de garantir. Em várias capitais europeias, ganhou então curso a ideia de que a transferência das tensões geopolíticas entre americanos e soviéticos para o mundo não-europeu poderia ajudar à ressurgência do velho continente, revitalizado pela exploração mais eficiente dos seus recursos coloniais africanos. Graças ao aumento das cotações de muitas matérias-primas coloniais, a realização de investimentos que permitissem um incremento da capacidade exportadora dos territórios ultramarinos tornou-se uma opção atraente. A obtenção de ganhos de divisas por essa via ajudaria a equilibrar as ainda muito fragilizadas finanças metropolitanas, reduzindo a dependência face aos EUA. Por fim, a ameaça que o “expansionismo” soviético era suposto representar revelouse, afinal, largamente exagerada. Até à morte de Estaline, as prioridades de Moscovo estiveram muito mais orientadas para a consolidação da sua esfera de influência europeia-oriental, sendo a África uma área notoriamente marginal na definição das coordenadas estratégicas da URSS. A maior parte dos poderes europeus, porém, estava ciente de que o imobilismo, ou uma política de repressão cega das aspirações de mudança, seria uma atitude contraproducente e perigosa. Apenas através de reformas seria possível renovar os fundamentos da “missão civilizacional” que, para todos os efeitos, ainda servia de legitimação aos seus projectos imperiais. Inevitavelmente, a cultura política de cada potência colonial acabaria por determinar o figurino 7

dessas reformas, que nunca dispensaram, é importante notá-lo, a manutenção de um aparato repressivo pronto a ser accionado a qualquer momento (atente-se, por exemplo, nas impressionantes operações de segurança levadas a cabo pela França em Madagáscar, em 1947, onde uma insurreição nacionalista foi sufocada com um balanço estimado de 80 mil mortes entre os rebeldes). Os britânicos, alegadamente mais flexíveis nos seus métodos governativos (o célebre indirect rule, uma abordagem que procurava delegar nas elites “tradicionais” tarefas administrativas e de manutenção da ordem), tinham uma reputação de lidar com o protesto através de concessões que procuravam confundir, e desmobilizar, os seus críticos. Isso foi patente, por exemplo, na forma como, em vários dos seus territórios da África Ocidental, prosseguiram uma política de alianças com as lideranças tradicionais, sem descurar porém alguma abertura a sectores mais urbanos e modernos, que procuravam envolver nalguns patamares do funcionalismo colonial, ou até mesmo na esfera governativa, por via de instituições como os conselhos legislativos. Esta abordagem, contudo, não foi uniforme. Onde existissem núcleos significativos de colonos brancos, desfrutando de uma posição hegemónica nas estruturas políticas e económicas locais, a margem para impor reformas “esclarecidas” foi sempre mais estreita. As situações do Quénia ou da Rodésia do Sul são paradigmáticas. Em ambos os casos uma elite de proprietários monopolizava o aparelho de Estado colonial e, no tocante à Rodésia, desfrutava mesmo de uma ampla autonomia relativamente a Londres. Não por acaso, a primeira será o palco de uma das mais dramáticas “emergências” do império britânico em África no pós-guerra – a rebelião dos Mau-Mau (1952-1960), dinamizada principalmente por elementos da etnia kikuyu, para quem décadas de governação colonial pouco mais haviam representado do que expropriações de terras, exacções fiscais, serviço militar e trabalho compelido. Vinculados às suas promessas feitas em Brazzaville, os franceses tudo fariam para impor um ritmo mais lento às reformas que, a título preventivo, acabariam por empreender. A sua grande iniciativa no imediato pós-guerra foi a a União Francesa (1946), criada alegadamente num espírito de “parceria” e não de “subordinação”. Na verdade, as contradições do republicanismo colonial francês informavam todo o projecto. A par de uma invocação de generosos princípios universalistas, e de uma série de transformações de ordem semântica, 8

as novas disposições constitucionais deixaram intactas as premissas que definiam os laços de sujeição coloniais. A filosofia do regime do indigenato, em vias de extinção, sobrevivia na forma como os novos esquemas de representação foram concebidos: os territórios ultramarinos, por exemplo, enviavam muito menos deputados ao parlamento de Paris do que os departamentos metropolitanos, ao passo que a maior parte das assembleias locais entretanto criadas nas possessões africanas eram eleitas por colégios eleitorais duais, um composto por “residentes”, outro por “indígenas”. A assembleia da União, por seu turno, estava remetida a um papel exclusivamente consultivo, ao mesmo tempo que o presidente da República era declarado o seu líder de jure. Não menos relevante, o carácter “uno e indivisível” da França era reafirmado, o que parecia negar a ideia do “livre consentimento” como um dos princípios estruturantes da União; sem surpresa, aos cidadãos ultramarinos foi recusada a possibilidade de aprovarem a Constituição em referendo, contrariamente ao sucedido com os seus congéneres metropolitanos. E tal como nas colónias britânicas de “povoamento”, territórios como a Argélia, onde um milhão de europeus perfazia cerca de 10 por cento da população total, revelar-se-iam particularmente resistentes à introdução de quaisquer medidas que pudessem actuar sobre as estruturas de desigualdade em que assentava o sistema colonial. Britânicos e franceses alegavam que seria irresponsável iniciar processos de capacitação política dos seus súbitos coloniais sem antes porem em marcha planos de modernização económica e social. Na segunda metade da década de 1940, algo de semelhante a uma “segunda ocupação colonial” teria lugar nos impérios africanos destas duas potências. Contingentes apreciáveis de técnicos e peritos instalaram-se nos territórios coloniais de ambas para supervisionar a aplicação de ambiciosos planos de investimentos e obras públicas. Num segundo momento, afectaram-se igualmente recursos destinados a melhorar os níveis educativos e as condições de bem-estar das populações, da habitação aos cuidados de saúde. Os efeitos deste élan “desenvolvimentista” revelar-se-iam, contudo, profundamente ambivalentes. Vários projectos orientados para o incremento da capacidade exportadora das colónias configuravam novas formas de intrusão nos hábitos de vida das comunidades camponesas, muitas vezes com implicações disruptivas nos equilíbrios ambientais. E, como seria de esperar, o acesso à educação de novas camadas populacionais fez aumentar o grau de 9

consciência crítica relativamente às contradições típicas dos sistemas de dominação colonial, fornecendo novos recrutas para movimentos contestatários. Nos espaços imperiais da Bélgica e Portugal, as mudanças políticas do pósguerra foram mais limitadas. Na grande colónia do Congo, os belgas resistiram até bastante tarde a introduzir alterações ao seu sistema paternalista e autoritário, em grande medida organizado para servir as necessidades dos interesses capitalistas reunidos na Societé General. Controlando algumas das jazidas minerais mais cobiçadas do planeta (como o urânio, indispensável ao programa nuclear norte-americano), a administração belga esteve pouco pressionada para realizar reformas que alterassem de forma significativa o status quo. Para além da legalização dos sindicatos, da criação de um “Fundo de BemEstar” indígena e de uma reorganização da administração colonial, apenas em 1956 é que um plano de descolonização a longo prazo (30 anos) seria discutido em Bruxelas, aliás sem suscitar grande entusiasmo. O surto económico do território, porém, propiciou o crescimento de uma pequena burguesia negra escolarizada, a qual, vendo as suas oportunidades de progressão social e expressão política bloqueadas, se aproximaria das posições avançadas pelas novas organizações nacionalistas que ofereciam uma alternativa mais “militante” às lideranças de perfil tradicional-religioso. Com os seus territórios africanos poupados às incidências directas da guerra, e governado por um regime anti-democrático, Portugal revelou-se um reformador ainda mais relutante do que ao Bélgica. O seu sistema colonial manteve-se até bastante tarde vinculado a um modelo nacionalista fechado, muito orientado para servir as necessidades da metrópole. Os investidores estrangeiros não eram bem-vindos, mas Salazar também não estava disposto a permitir às burguesias coloniais de Angola e Moçambique que utilizassem os lucros alcançados durante o período da guerra na dinamização de sectores de actividade (indústrias manufactureiras) que depois viessem mexer nos equilíbrios definidos pela filosofia do pacto colonial. Nesse sentido, os investimentos de maior envergadura ocorreriam no quadro dos primeiros planos de fomento dirigidos para o ultramar, em meados da década de 1950. A ausência de uma estratégia modernizadora levou à perpetuação do indigenato e dos códigos laborais que davam cobertura a esquemas de trabalho forçado, que se manteriam em pleno vigor até 1961 (ou até mais tarde). Para lidar com focos de 10

protesto, os estados imperiais europeus recorreram regularmente a medidas de “excepção” que já só muito raramente tinham uso nas metrópoles. No caso de Portugal, essa dualidade não era tão flagrante. Consequentemente, o seu governo deparava-se com menos restrições para empregar a violência de uma forma mais rotineira e sistemática, tanto para encarcerar dissidentes urbanos, como para conter desordens rurais. Em termos de arquitectura institucional, o regime de Salazar também não deu sinais de poder convergir com a abordagem mais “progressiva” evidenciada por alguns dos seus parceiros europeus. Em 1951, uma revisão constitucional consagraria mudanças de ordem semântica (“império” e “colónias” dão lugar ao “ultramar” e “províncias ultramarinas”), mas, em termos substantivos, pouco ou nada se alterou. Para além de se livrar de um termo visto como menos aceitável no zeitgeist do pós-guerra, o regime tentava sobretudo prevenir uma futura interpelação das Nações Unidas à natureza dos vínculos entre a metrópole e os territórios de além-mar, ao abrigo de certas disposições da Carta. Bandung, Suez e os “Ventos de Mudança” Sensivelmente em meados da década de 1950, o ambiente geopolítico vai tornar-se novamente menos favorável às unidades imperiais europeias. A relativa estabilização política na Ásia, com o término da Guerra da Coreia, em 1953, e os acordos que põem termo ao conflito na Indochina, em 1954, vai abrir espaço para novas formas de pensar as noções de ordem e justiça nas relações internacionais. Em Bandung (1955), na Indonésia, uma cimeira reunindo líderes de 29 países da Ásia, Médio Oriente e África (alguns ainda não formalmente estados independentes), reclama uma revisão dos termos do relacionamento Norte/Sul, repudia a polarização gerada pela Guerra Fria e apela à condenação do colonialismo “em todas as suas formas”, o que foi lido tanto como uma invectiva dirigida aos poderes europeus, como uma mensagem às intenções “neo-coloniais” que americanos e soviéticos pudessem acalentar. Nas Nações Unidas, os representantes afro-asiáticos revelariam depois grande coesão e persistência nas discussões que visavam directamente as potências coloniais, fazendo aprovar, em 1960, um conjunto de resoluções, na Assembleia Geral, que definiriam o quadro normativo da descolonização no plano internacional.

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Embora afirmando a sua equidistância em relação às duas superpotências, e aos modelos sociais que uma e outra encarnavam, muitas das potências de Bandung estavam mais próximas de uma filosofia de governação socialista, de orientação desenvolvimentista-estatizante. Embora numa linguagem contida, alguns dos pontos da “Declaração sobre a Promoção da Paz Mundial e Cooperação”, aprovada na cimeira, configuravam uma crítica velada às posições imensamente vantajosas que empresas ocidentais desfrutavam em antigas colónias europeias, situação que deveria ser corrigida em nome da “reciprocidade” de interesses. Atentos a estes recados, vários observadores no Ocidente perceberam que seria perigoso criar pretextos que pudessem galvanizar esta nova solidariedade afro-asiática. Tanto mais que, uma vez encerrada a transição no poder em Moscovo, após a morte de Estaline em 1953, o novo secretário-geral do PCUS, Nikita Khrushchev, mostrava uma maior apetência pelo envolvimento soviético com países que, não obstante puderem exibir reservas quanto ao modelo político da URSS, mostravam-se em geral impressionados com a forma como esta evoluíra, num curto lapso de tempo, de uma sociedade agrária tradicional para uma de tipo industrial. Por conseguinte, foi com inquietação que os norte-americanos acompanharam a intervenção da Grã-Bretanha, França e Israel contra o Egipto, de Nasser, em Outubro de 1956, destinada a restaurar o controlo dos dois primeiros sobre o Canal do Suez e a permitir aos israelitas ocuparem a península do Sinai. Temendo alienar a boa vontade de vários países árabes, onde as grandes petrolíferas

norte-americanas

possuíam

vastos

interesses,

Washington

demarcou-se sem ambiguidades dos seus aliados, votando ao lado da URSS uma resolução da ONU que exigia a retirada das tropas invasoras da zona do Canal. Em qualquer análise à história da descolonização, é difícil subestimar a relevância deste episódio – sobretudo para os britânicos. O recurso a um modus operandi claramente reminiscente da época da “diplomacia da canhoeira” constituiu um profundo choque para vários líderes da Commonwealth, e deu azo a declarações iradas do primeiro-ministro indiano, Nehru. A autoridade moral da GrãBretanha na organização que desde o fim da II Guerra Mundial passara a ser encarada como o veículo por excelência da influência britânica nos seus antigos espaços imperiais foi fortemente abalada pela crise. Num plano mais tangível, o ataque especulativo à libra, e a chantagem exercida pelos EUA para sanar a 12

situação (o acatamento das sanções em troca de um empréstimo de emergência através do FMI), revelou, de forma nua e crua, os limites do poderio britânico. Harold Macmillan, o sucessor de Eden em Downing Street, tirou várias ilações do episódio. A primeira era o risco de prosseguir uma linha de acção internacional que pusesse em perigo a “relação especial” com Washington, tida como crítica para a prosperidade e a segurança nacional do Reino Unido. Em segundo lugar, se Londres pretendesse continuar a aspirar a um papel global na política internacional, através da Commonwealth e da ONU, então iniciativas que alienassem de forma tão evidente a opinião pública mundial teriam de ser evitadas. Finalmente, era imprescindível avaliar os custos e os benefícios do império, e perceber até que ponto fazia sentido continuar a suportar os encargos de uma administração directa de territórios, quando os mesmos proveitos poderiam ser alcançados através de modalidades de influência mais subtis. Muito embora os calendários para esta metamorfose fossem pensados em termos de décadas, sempre que dinâmicas locais ou internacionais ditaram uma aceleração dos acontecimentos, Macmillan soube ajustar os seus planos e criar a ilusão de que era Londres quem mantinha a iniciativa. Em 1960, o seu célebre discurso na Cidade do Cabo, perante o parlamento sul-africano, aludindo aos “ventos de mudança” (i.e., os ventos do nacionalismo negro), permitiu à Grã-Bretanha ser vista como uma potência sintonizada com as aspirações emancipalistas que então varriam o continente negro. A dissolução do império britânico em África esteve longe de ser um processo harmonioso, onde políticos metropolitanos, funcionários coloniais e líderes nacionalistas, sentados à volta de uma mesa redonda, acertavam os pormenores para o estabelecimento de regimes democráticos, segundo o “modelo de Westminster”. Mas, com a excepção do caso da Rodésia do Sul, a colónia rebelde que em 1965 declararia unilateralmente a sua independência, sob um governo de minoria branca, a transferência do poder foi realizada com alguma economia da violência. Muitos dos novos estados viveriam depois experiências altamente sobressaltadas, fruto tanto de condicionalismos estruturais como de opções desastradas das suas elites. À antiga potência imperial restou, pelo menos, a consolação de ter conseguido evitar que a maior parte deles gravitasse para a órbita do comunismo. De Gaulle e os espinhos da descolonização francesa 13

Embora de forma porventura mais discreta, a crise do Suez teve também as suas incidências em França, reforçando uma tendência de opinião que nos anos seguintes ganharia um peso crescente entre as elites francesas: a noção de que entre o destino europeu do país e a prossecução de políticas imperiais vistas como anacrónicas não havia conciliação possível. O caso da França, porém, ilustra bem até que ponto a descolonização poderia ser um assunto altamente complexo, cuja resolução estava longe de depender apenas da vontade política de elites metropolitanas. Apesar de alguns dos seus governantes terem dado provas de um assinalável pragmatismo quando se tratou de encontrar uma solução política para o conflito no Vietname, e assim concluir a retirada francesa da Indochina (1954), noutras paragens o encerramento do dossier imperial viria revelar-se muito mais espinhoso. Mais uma vez, isso sucedia sobretudo quando entravam em cena colonos europeus com capacidade de influenciar os centros de poder metropolitanos, ora através de aliados políticos, ora através de ligações ao exército e às forças de segurança. No império africano da França, na região do Magrebe, esse problema colocou-se fundamentalmente no caso da Argélia. Nos protectorados de Marrocos e Tunísia, foi possível encontrar interlocutores “sensatos” nas figuras do sultão Mohammed V e do líder nacionalista Habib Bourguiba, os dois vistos como “moderados” em Paris. Em ambos os casos, erros de avaliação política misturados com intransigência conduziram a uma deterioração das condições políticas, colocando os territórios no limiar da revolta armada, mas o pragmatismo levou a melhor e o acesso à independência, concretizado em 1956 e 1957, respectivamente, seria selado com a assinatura de acordos de cooperação bilaterais. Tudo seria mais complicado na Argélia, onde pieds-noirs e vários grupos nacionalistas argelinos se manifestaram irredutíveis a qualquer ideia de compromisso. Apesar de ter de enfrentar a oposição de altas patentes militares, o general De Gaulle, regressado ao poder para resolver a crise argelina, foi gradualmente preparando a opinião pública francesa para uma independência do território, desfecho até então visto como um tabu. Esta acabaria por se concretizar em 1962, através dos acordos de Evian, que todavia não foram capazes de prevenir nem o êxodo massivo da população europeia, nem os ajustes de contas da Frente de Libertação Nacional com todos os argelinos que haviam colaborado com os franceses (os harkis). Na história das descolonizações, o caso 14

argelino merece figurar como o exemplo clássico de uma situação que, a partir de um determinado ponto, já não se presta a soluções sem dor. A De Gaulle coube o mérito de perceber que à França pouco mais restaria do que gerir os danos da forma mais pragmática possível e, pelo menos, salvar aquilo que restava da sua reputação liberal-republicana, perante si própria e o mundo. A sul do Saara, o desmantelamento das estruturas imperiais formais não se fez sem sobressaltos e compromissos, mas os dirigentes franceses chegaram à conclusão de que se conseguissem reeditar o desfecho dos processos marroquino e tunisino isso seria um resultado mais do que satisfatório. Em 1958, a refundação do regime republicano em Paris coincidiu também com o lançamento do projecto da Comunidade Francesa, a entidade que sucedeu à União Francesa no âmbito da revisão constitucional desse ano. Sem usar a palavra federalismo, os territórios ultramarinos gauleses foram aliciados para um projecto com esses contornos. A troco de uma autonomia interna (e do direito à secessão), aceitariam, após consulta em referendo, submeter-se à autoridade da França em domínios como a política externa, a defesa e a moeda; caso optassem pela independência, porém, perderiam o direito a qualquer espécie de assistência económica francesa. Apesar do acolhimento favorável nalguns deles, a rejeição do projecto na Guiné-Conackry virou a maré contra as expectativas das autoridades gaullistas e, em 1960, a grande maioria das antigas colónias africanas da França tinham-se tornado estados independentes. Apesar de algum agastamento, De Gaulle assumiu uma atitude contemporizadora, manteve a oferta de ajuda pósindependência e, com isso, Paris ganharia uma vasta zona de influência “informal” (ou, se quisermos, “neo-colonial”) na África tropical, bem mais coesa, aliás, do que aquela que a Grã-Bretanha tentara forjar para si através da Commonwealth. De forma mais ou menos explícita, as coordenadas da Guerra Fria nunca estiveram arredadas destes processos, estabelecendo um quadro de ansiedades, mas também de oportunidades, para os diferentes actores neles implicados. Para os europeus, e uma vez afastada a hipótese de conduzirem eles próprios os processos de nation-building nos seus espaços imperiais, restava a via pragmática de procurarem o entendimento possível com elites que não se mostrassem hostis ao Ocidente. Para os grupos nacionalistas, o conflito bipolar permitia-lhes jogar com os dois campos rivais, diversificar fontes de apoio e 15

causar o maior embaraço possível às potências coloniais quando uma situação de impasse se instalava. Acreditando ser possível reconfigurar o seu imperium através de novas modalidades de cooperação e assistência, estas perceberam a importância de evitar uma erosão do seu prestígio à conta das denúncias em torno dos aspectos mais “sujos” que, inevitavelmente, pautavam as “emergências” nos espaços coloniais (do uso da tortura na Argélia às mortes nos centros de detenção no Quénia, exemplos não faltam), mesmo que isso pudesse implicar uma retirada avaliada como “prematura”. Os redutos brancos na África Meridional No início da década de 1960, os governantes portugueses rejeitaram seguir este tipo de raciocínio para lidar com os movimentos contestatários nos seus domínios em África. Em inúmeras conversas com estadistas e diplomatas ocidentais, Salazar alegou que a maneira mais eficaz de resistir à penetração do comunismo era aquela que Portugal estava a seguir, ou seja, a de não fraquejar e resistir a qualquer ideia de uma descolonização extemporânea. A acontecer, esta só poderia dar origem a regimes fracos, que deixariam os novos países resvalar para situações de caos e anarquia, criando assim um terreno fértil para a penetração comunista. A via portuguesa era a de, sem metas temporais definidas, ir preparando as províncias ultramarinas para uma evolução lenta, mas consistente (e tendo como referência o Brasil, cuja independência se processara sob a égide de elites colonas de origem europeia). Aos seus colaboradores, Salazar mostrava-se também desconfiado das verdadeiras razões dos conselhos dados pelos seus aliados ocidentais, nomeadamente os EUA, a quem imputava a intenção velada de quererem apressar uma saída portuguesa de África para aí exercerem o seu imperialismo económico. Esta falta de sintonia entre Lisboa e Washington na apreciação ao fenómeno da descolonização tornar-se-ia uma fonte de atritos significativos até 1963. Na ONU, Portugal seria visado por várias resoluções apresentadas tanto no Conselho de Segurança como na AG, que contaram com o patrocínio e voto dos norte-americanos. Sob a liderança de John F. Kennedy, os EUA estavam empenhados em marcar pontos no chamado “Terceiro Mundo”, evitando que as antigas áreas imperiais sucumbissem às atracções da via soviética para a modernidade. Os EUA estavam prontos a investir recursos consideráveis no 16

apoio a processos de transição que colocassem no poder os líderes “certos”, tanto sob a forma de investimentos, créditos e programas de ajuda, como pela via das operações clandestinas e dos golpes militares (como sucedeu no Congo após a saída dos belgas). Perante a inflexibilidade de Salazar, chegariam até a proporcionar algum apoio a dirigentes nacionalistas angolanos, como Holden Roberto, o líder da União dos Povos de Angola. Tentaram igualmente demover Salazar da sua irredutibilidade, acenando-lhe, em 1963, com fundos para um programa de descolonização a executar no prazo de dez anos, algo que o ditador português enjeitou, convencido de que se tratava de uma espécie de Cavalo de Tróia para o neo-colonialismo americano. A partir de certa altura, contudo, essas pressões abrandaram e depois praticamente desapareceram. A agenda securitária da Guerra Fria sobrepôs-se à agenda mais “terceiro-mundista” que havia ganho alguma expressão no início do mandato de Kennedy. Com as suas bases açorianas no coração do Atlântico, e condição de membro fundador da NATO, Portugal era visto pelos elementos que em Washington davam prioridade à estratégia de “contenção” da URSS na Europa como um aliado indispensável, por muito equívocas que pudessem ser as ideias de Salazar em matéria de descolonização. A partir de meados da década de 1960, a posição de Portugal revestia-se aspectos paradoxais. Por um lado, era a última potência europeia que teimava em manter um império colonial formal, não dando o menor sinal de pretender vir a adoptar reformas que sinalizassem alguma abertura à ideia de autodeterminação. Nessa altura, recorde-se, o essencial da descolonização europeia em África estava feito. Para além de franceses e britânicos, os belgas haviam procedido a uma retirada (aliás, bastante caótica) do Congo, e concedido a independência ao Ruanda e Burundi. Até a Espanha de Franco, um regime que até ao fim da II Guerra Mundial alimentou a ilusão de poder voltar a dar cartas no jogo dos imperialismos em África, tomara a decisão pragmática de renunciar a partes do seu protectorado em Marrocos (1956), e negociar a independência da Guiné Equatorial (1960-68), para melhorar a sua posição junto dos países que haviam passado a estar em maioria na ONU. Durante algum tempo, a euforia criada com o desmantelamento rápido das estruturas imperiais fez os novos estados africanos acreditar que a queda dos últimos focos de supremacia branca, as colónias portuguesas, a Rodésia de Ian Smith e África do Sul do apartheid, poderia estar para muito breve. Tal não sucedeu. Apesar do consenso geral em 17

torno de conceitos como a igualdade racial e a autodeterminação, não existia à época a correspondente vontade política para os fazer prevalecer em regiões como a África Meridional, nomeadamente se isso exigisse a aplicação de sanções ou outro tipo de intervenções. Na ONU, várias iniciativas movidas pelos estados africanos com o propósito de punir aqueles párias internacionais depararam-se sistematicamente com a oposição de vários países ocidentais. Para além dos já referidos laços estratégicos que os uniam a países como Portugal, é importante assinalar o peso específico dos interesses económicos ocidentais implicados nos “bastiões brancos” por via do comércio, dos investimentos e da importação do ouro e outros minérios. Por outro lado, em termos de percepções ao nível das elites e da opinião pública ocidentais, a trajectória de vários estados africanos desde a independência, marcada pelo emprego massivo da violência de Estado e abusos humanitários de toda a ordem, não facilitava a vida àqueles que advogavam um enfrentamento do status quo racista e um apoio às lutas de libertação. Em 1969, a recém-instalada administração Nixon iria inclusivamente proceder a uma rectificação da política norte-americana para a África Meridional, baseada na premissa de que “os brancos estavam para ficar”, assim como na ideia de que as melhores esperanças de uma transformação positiva nessa região dependeriam de mudanças económicas progressivas, as quais só seriam possíveis através da manutenção de um relacionamento estreito com o Ocidente. O efeito dominó da descolonização portuguesa O impasse instalado na região seria apenas quebrado em 1974, quando uma inesperada reviravolta política ocorreu em Lisboa, na sequência do derrube da ditadura de Caetano, que após seis anos no poder fora incapaz de encontrar uma “saída com honra” para um exército impaciente com os bloqueios políticos na metrópole e nas colónias africanas. Apesar do quadro geopolítico benigno dos últimos anos, os pontos de stress na estrutura imperial portuguesa tinham-se vindo a acumular, com destaque para a situação vivida na Guiné e, cada vez mais, Moçambique. Uma das economias mais débeis da Europa Ocidental, Portugal deparava-se com dificuldades crescentes para responder às exigências próprias de uma guerra em três frentes, separadas por milhares de quilómetros de distância. A partir do momento em que a disciplina imposta pela sua carapaça autoritária quebrou, os 18

movimentos independentistas revelaram uma notável eficácia em mobilizar apoios

para

uma

transferência

de

poderes

rápida

e

sem

grandes

condicionalismos. Se uma potência como a França fora incapaz de levar por diante o seu projecto imperial-federal em 1960, a fórmula spinolista de uma descolonização plebiscitária, de propósitos “neo-coloniais”, suscitou as maiores reservas na cena internacional, até entre países aliados de Portugal. Por muito severo que pudesse ser o balanço a uma década de independências em África, a ideia de que o Estado-nação era o corolário lógico da desintegração dos laços imperais tinha sido assimilada como algo de inevitável, sobretudo quando isso era visto como a única forma de impedir a continuação de conflitos que só poderiam aproveitar aos adversários do Ocidente. As inclinações anti-liberais dos movimentos independentistas das colónias portuguesas, e a sua proximidade ao campo socialista, não escaparam à atenção das chancelarias ocidentais, mas estas sabiam que a descolonização, na maior parte dos casos, mais não era do que um exercício de controlo de danos, de escolha da alternativa menos má. E tendo em conta a tensões e animosidades geradas pela resistência portuguesa à autodeterminação, então a abordagem sensata seria a de procurar abrir, tão rapidamente quanto possível, canais de diálogo com os novos poderes emergentes, mostrando-lhes que teriam tudo a ganhar se não se submetessem por completo à influência da URSS ou da China. Estes raciocínios, porém, só no médio e longo prazo é que puderam frutificar. O caso mais complexo da descolonização portuguesa, sob o ponto de vista dos equilíbrios estratégicos da Guerra Fria, foi o de Angola, onde a divisão dos nacionalistas em três facções irredutíveis na sua busca pela supremacia conduziu a uma guerra civil devastadora, alimentada pelas duas superpotências e os seus aliados. O conflito angolano constituiria mais um exemplo da lógica perversa do antagonismo Leste/Oeste – congelada pelo equilíbrio do terror nuclear, a confrontação entre a NATO e o Pacto de Varsóvia tendia a desenrolarse por procuração, em palcos ditos “periféricos”. Desta feita, sobressaiu a iniciativa da Cuba castrista, potência com alguma tradição de envolvimento nas “guerras de libertação” do continente africano, bem como a intervenção da África do Sul, cujas colunas militares chegaram a ameaçar a proclamação da independência pelo MPLA, em Luanda, em Novembro de 1975.

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Apesar das reservas que uma presença cubano-soviética em Angola suscitava em vários países africanos, a intervenção sul-africana causou consternação geral num continente onde o repúdio do apartheid era um ponto que unia praticamente todos os estados, qualquer que fosse a sua orientação ideológica. A dissolução do império português deu pois um primeiro contributo para a eliminação, a médio prazo, dos sistemas de supremacia racial que representavam porventura o legado mais contestado do colonialismo em África. Com um governo comprometido com o nacionalismo negro na Rodésia estabelecido em Moçambique, o regime de Ian Smith passou a ter de enfrentar um contexto regional muito mais adverso e, passados alguns anos, viu-se forçado a chegar a um compromisso com seus opositores, o qual daria azo à independência do Zimbabué (1980). A presença cubana em Angola seria também um factor de desgaste para a África do Sul, que em 1988 aceitaria finalmente acatar as resoluções da ONU e proceder à retirada da Namíbia. Os reveses pontuais sofridos pelas suas forças em Angola foram um factor de galvanização da oposição ao apartheid após 1976, desencadeando uma dinâmica de contestação que nunca mais daria tréguas às autoridades em Pretória. Estas terão sido as repercussões sistémicas mais assinaláveis da dissolução do império português em África.

Bibliografia: Bernard Droz, Histoire de la décolonisation (Paris, Éditions du Seuil, 1996) Dietmar Rothermund, Decolonization (Londres, Routledge, 2006) John D. Hargreaves, Decolonization in Africa (Londres, Longman, 1996) Miguel Bandeira Jerónimo e António Costa Pinto (org.), Portugal e o Fim do Colonialismo. Dimensões Internacionais (Lisboa, Edições 70, 2014) Odd Arne Westad, The Global Cold War. Third World Interventions and the Making of Our Times (Cambridge, Cambridge University Press, 2007) Pedro Aires Oliveira, Os Despojos da Aliança. A Grã-Bretanha e a Questão Colonial Portuguesa, 1945-1975 (Lisboa,Tinta da China, 2007)

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