ONDE ESTÁ O CURRÍCULO? CAMINHOS PARA UMA BUSCA NA CULTURA ESCOLAR UNIVERSITÁRIA

July 6, 2017 | Autor: Leticia Meira | Categoria: Cultura escolar, Ensino Superior, Teoria Curricular
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ONDE ESTÁ O CURRÍCULO? CAMINHOS PARA UMA BUSCA NA CULTURA ESCOLAR UNIVERSITÁRIA Leticia Mara de Meira – UFPR – [email protected]

RESUMO O presente trabalho tem por objetivo localizar alguns elementos definidores do currículo enquanto artefato historicamente produzido e do funcionamento do mesmo no cotidiano da cultura escolar universitária e propõe alguns caminhos de investigação do tema em história da educação. Aponta os conceitos de cultura escolar, dispositivo, discurso, estratégia e tática como fundamentais para a compreensão do funcionamento do currículo. Discute a relação entre os documentos normativos instituídos em meio a relações de poder e as práticas que muitas vezes os subvertem provocando efeitos imprevistos e defende a importância de buscar os indícios destas práticas para compor o quadro de análise dos projetos educacionais. PALAVRAS-CHAVES: currículo; cultura escolar; ensino superior.

Martin Handford é um ilustrador inglês que em 1987 iniciou a publicação de uma série de livros destinados ao público infanto-juvenil intitulada “Where’s Wally”. No Brasil, os sete livros da série “Onde está Wally?” fizeram grande sucesso na década de 90 e ainda figuram nas bibliotecas e livrarias. O objetivo do livro é fazer o leitor encontrar em cada ilustração, que ocupa duas páginas inteiras e traz as mais diversas cenas, o protagonista da série – Wally – que está sempre caracterizado da mesma maneira: uma camisa listrada em vermelho e branco, gorro, bengala e óculos. Ao refletir sobre a investigação do currículo no ensino superior e ensaiar o mapeamento das fontes disponíveis é possível evocar o cenário de Wally. A polissemia do termo currículo e a multiplicidade de abordagens da nova história compõem uma complexa trama de possibilidades simultâneas que exigem um esforço na delimitação do objeto principal de análise. Para buscar um lugar específico na investigação do currículo, é necessário, para início de conversa, decidir qual é ou o que é o currículo que se procura. A partir dos anos 1990 é visível a cautela de alguns pesquisadores do campo do currículo na definição deste conceito, uma vez que este procedimento traz o risco de congelar algo que é móvel, instável, fugaz, sendo mais relevante investigar o funcionamento deste currículo. Considerando esta questão, para a história da educação, o que se põe como problema é como viabilizar a investigação do currículo em determinado período sem definir este conceito? Como observar o funcionamento do currículo junto aos diferentes sujeitos educacionais, num enredo de acontecimentos simultâneos e nem

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sempre muito bem ordenados, sem conhecer minimamente as características do que se procura? Daí o paralelo com a obra de Handford. Balestrin (2007) também evoca o personagem Wally quando inicia sua reflexão sobre a sexualidade na formação docente. A autora relata a dificuldade em localizar representações que estão o tempo todo em construção, que não se fixam ou se deixam definir facilmente. Anne-Marie Chartier chama atenção para a fascinação que os discursos teóricos das ciências humanas causam ao transformar a “confusão caótica” dos acontecimentos na “maravilhosa legibilidade da ordem do discurso” (CHARTIER, 2004, p. 81). O objetivo deste trabalho é localizar alguns elementos definidores do currículo – o currículo enquanto objeto – e do funcionamento do mesmo – o currículo enquanto ação – na cultura escolar universitária. O conceito “cultura escolar” será utilizado para referir o contexto universitário, entendendo que apesar de utilizar o substantivo escola o mesmo mostra-se útil à análise das instituições de ensino superior, ainda que estas tenham as suas especificidades bem marcadas. O conceito de “forma escolar” elaborado por Vincent, Lahire e Thin (2001, p. 36) possibilita pensar os elementos da cultura escolar para além da instituição escola, influenciando e sendo influenciados pelas mais diferentes relações sociais. Considerando possível pensar em uma “forma escolar” que perpassa diversos contextos, educacionais ou não, pode-se inferir que a cultura universitária tenha características escolares em sua composição. Dominique Julia (2001, p. 10-11) define cultura escolar como: [...] um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas à finalidade que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização).

O estudo da cultura escolar deve incluir a análise das relações que ela mantém com o conjunto das culturas com as quais se relaciona, mais ou menos pacificamente, no mesmo período histórico. O autor fala da importância de se analisar as normas e as práticas que compõem a cultura escolar no uso, mediado por dispositivos pedagógicos, que delas fazem os profissionais e o campo de tensão que se forma entre as prescrições normativas e esses usos. O estudo das normas que regem as instituições educacionais é a mais tradicional via de estudo na história da educação devido à facilidade de obter os textos reguladores das mesmas e em contrapartida, as práticas culturais são os fatos menos

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acessíveis porque muitas vezes não deixam registros, uma vez que não tem a necessidade intrínseca de serem escritas. (JULIA, 2001, p. 15 e 19) É importante, no entanto, acrescentar à estas considerações duas mais: 1) os documentos normativos nem sempre estão tão facilmente acessíveis, uma vez que a lógica de organização dos arquivos (ou a falta dela) e a própria dinâmica de produção e conservação de documentos de cada instituição exigem o empenho do pesquisador na reconstituição de determinado contexto; 2) as práticas nem sempre são tão fugazes e, ainda que não sejam oficiais ou que não produzam registros formais, deixam marcas, rastros, indícios, pistas que podem ser seguidos pelo pesquisador e utilizados na composição de um quadro amplo de interpretação da cultura escolar. De qualquer forma, a recomposição das práticas que compõem a cultura escolar só é possível ao pesquisador atento ao que Ginzburg (1989, p. 152) denomina de “pormenores mais negligenciáveis”, a quem é capaz de considerar as singularidades, os detalhes, ao invés da obra no conjunto ou das generalizações próprias das ciências modernas. O paradigma indiciário considera, na análise de casos individuais, pistas, sintomas, indícios e para tanto entram em jogo, ao invés de regras gerais de funcionamento, elementos imponderáveis como faro, golpe de vista e intuição. Indícios são dados que podem passar despercebidos, mas que, se qualificados no percurso investigativo, transformam-se em pistas que permitem decifrar as realidades mais opacas. (GINZBURG, 1989, p. 177) Sendo assim as práticas recompostas, somadas aos documentos preservados, permitem remontar a cultura escolar universitária em determinado período histórico. Faria Filho (2002, p. 17) ressalta que a noção de cultura escolar permite articular de forma complexa os principais elementos do fenômeno educativo: tempos, espaços, sujeitos, conhecimentos e práticas escolares. Destacar, entre estes elementos, o currículo, responde a necessidade de delimitar o campo de análise, desde que não se desconsidere que os mesmos funcionam de forma indissociável no campo das práticas. Considerando a inter-relação dos conhecimentos com os demais elementos da cultura escolar, busca-se apreender o currículo em uso, em movimento, produzindo efeitos. A análise do currículo como documento nos possibilita chegar somente até o ponto em que termina um projeto institucionalizado, não permitindo enxergar os desdobramentos deste projeto em diferentes circunstâncias materiais e sob a influência

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dos mais diferentes atores sociais. O currículo-documento é o produto pacificado de lutas e conflitos que conformam um determinado projeto. O currículo-documento é um produto estratégico que será manejado tacitamente, podendo ou não, no uso cotidiano, produzir os efeitos desejados. Desta forma, inaugura-se a caracterização do objeto de análise – o currículo – apresentando algumas características que auxiliam no seu reconhecimento e na identificação do seu funcionamento. Voltando à ilustração inicial, não pode-se dizer quem é, essencial e definitivamente, Wally, mas para localizá-lo é possível atribuir-lhe algumas características e a maneira que costuma agir, se comportar, funcionar. Então, concordando com Silva (2001) caracteriza-se o currículo como uma representação enredada em diferentes relações de poder, superfície de inscrição onde circulam signos já produzidos ao mesmo tempo em que produz novos signos. A superfície de representação que é o currículo é, pois, uma área altamente contestada. Representar significa, em última análise, definir o que conta como real, o que conta como conhecimento. É esse poder de definição que está em jogo no currículo concebido como representação. A representação, como prática de linguagem, consiste precisamente na tentativa de domesticar o processo selvagem, rebelde, da significação. A representação é uma tentativa – sempre frustrada – de fixação, de fechamento, do processo de significação. Fixar, fechar: é nisso, precisamente, que consiste o jogo do poder. Como terreno onde se joga o jogo da significação e da representação, o currículo é, assim, objeto de uma disputa vital. (SILVA, 2001, p. 65)

Para Certeau (2007) no uso cotidiano os sujeitos subvertem as representações a que são submetidos. O uso é ação constituinte e organizadora, desta forma o pesquisador voltado ao cotidiano não pode considerar as representações, entre elas as palavras, fora do seu contexto de uso, com o risco de obter uma visão reduzida à formalidade do objeto que pretende investigar. Nas palavras do autor: Na realidade, diante de uma produção racionalizada, expansionista, centralizada, espetacular e barulhenta, posta-se uma produção de tipo totalmente diverso, qualificada como “consumo”, que tem como característica suas astúcias, seu esfarelamento em conformidade com as ocasiões, suas “piratarias”, sua clandestinidade, seu murmúrio incansável, em suma, uma quase-invisibilidade, pois ela quase não se faz notar por produtos próprios (onde teria o seu lugar?) mas por uma arte de utilizar aqueles que lhe são impostos. (2007, p. 94) [...] Esses elementos (realizar, apropriar-se, inserir-se numa rede relacional, situarse no tempo) fazem do enunciado, e secundariamente do uso, um nó de circunstâncias, uma nodosidade inseparável do “contexto”, do qual abstratamente se distingue. (2007, p.96)

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Tendo em vista que para Certeau o sujeito fabrica novas realidades na sua agência e que, para além das palavras e das normas instituídas e das estratégias formais do poder, as práticas do tipo tático subvertem a norma e multiplicam os significados é possível pesquisar os desdobramentos de um currículo oficialmente instituído. Goodson (2003, p. 17-28) apresenta algumas distinções entre o currículo projetado, institucionalizado e o currículo praticado nos espaços escolares. Ele apresenta em contraposição, ainda que afirme que se trata de uma falsa dicotomia, a definição préativa de currículo e realização interativa, o currículo como fato e currículo como prática, o currículo escrito e currículo como atividade em sala de aula. Sobre o que chama de “currículo escrito”, que é o currículo em sua dimensão préativa, ressalta que a produção, negociação e reprodução do mesmo não acontecem sem conflitos. Este currículo depõe sobre as suas lutas, que envolvem prioridades sociopolíticas e discursos de ordem intelectual, na definição dos objetivos da escolarização. O currículo escrito não passa de um testemunho visível, público e sujeito a mudanças, uma lógica que se escolhe para, mediante sua retórica, legitimar uma escolarização. Como tal, o currículo escrito promulga e justifica determinadas intenções básicas de escolarização, à medida que vão sendo operacionalizadas em estruturas e instituições. [...] Em síntese, o currículo escrito nos proporciona um testemunho, uma fonte documental, um mapa do terreno sujeito a modificações; constitui também um dos melhores roteiros oficiais para a estrutura institucionalizada da escolarização. (GOODSON, 2003, p. 21)

Apreender os conceitos de estratégia e tática na cultura do cotidiano, da forma como nos apresenta Certeau, pode auxiliar na compreensão do que Goodson apresenta como configurações pré-ativas e interativas do currículo, bem como o porquê é falsa a dicotomia em que os apresenta, mas para tanto é necessário partir do entendimento de currículo como parte de um dispositivo entretecido por diferentes discursos em meio a relações de poder. Michel Foucalt (2006, p. 244) define dispositivo como: [...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos.

O dispositivo é a rede, a relação, o movimento, os artefatos em uso e a soma de

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práticas, discursivas ou não, que são orquestradas nas relações de poder visando um determinado fim. Assim, ao aproximar o conceito à história da educação, Veiga (2002, p. 91) aponta a escolarização, e não a escola, como o dispositivo, uma vez que podemos caracterizá-la como uma rede de caráter estratégico, produzida e produtora de saber, que se estabelece diante de elementos heterogêneos no âmbito das relações de poder envolvendo: “os discursos, o espaço escolar, as ideias, o currículo, os materiais escolares, os procedimentos administrativos, etc.” O currículo, desta forma, figura como um dos elementos do dispositivo de escolarização. Vieira, Hypólito e Duarte (2009) por sua vez relacionam o currículo aos dispositivos de controle do trabalho docente que atuam no interior da organização escolar e que asseguram o poder institucional assentado nas normas legais. Ainda que possam gerar respostas impensadas o objetivo primeiro dos dispositivos é a conformação à norma, uma vez que os mesmos integram os aparelhos institucionais como prática de intervenção nas relações de poder: Os dispositivos ocorrem sob variados formatos, e sua duração permanece o tempo que for conveniente para manter, garantir, impedir uma ação desviante. Portanto, seus efeitos somente podem ser sentidos quando postos em ação, prescindindo, a princípio, da necessidade de regulação legal, embora possam se valer de normas preestabelecidas: as leis e as hierarquias de comando por elas estabelecidas dentro e entre instituições. (VIEIRA; HYPÓLITO; DUARTE, 2009, p. 225)

Mesmo que os efeitos do dispositivo não possam ser tão totalmente determinados à priori e que a resistência faça parte do poder, o dispositivo tem uma função estratégica dominante que o movimenta em determinada direção. Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes a transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas, ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais.” (FOUCAULT, 2003, p. 88-89)

O currículo pode ser entendido como uma estratégia que sintetiza os arranjos educacionais que buscam estabelecer o quadro de trabalho e os discursos que legitimam o modelo social e a cultura hegemônica. A pretensa imaterialidade do currículo oculta sua efetiva influência na vida social, ou seja, o currículo dita condutas e ao selecionar saberes, constrói subjetividades e classifica pessoas. O processo de seleção está na base da

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constituição do currículo: “Selecionar é uma operação de poder. Privilegiar um tipo de conhecimento é uma operação de poder. Destacar, entre as múltiplas possibilidades, uma identidade ou subjetividade como sendo a ideal é uma operação de poder”. (SILVA, 2005, p.16). Para Foucault, os discursos são considerados na sua positividade, como “fatos” relacionados às condições que possibilitam sua emergência. As regras que presidem seu surgimento, seu funcionamento, suas mudanças e seu desaparecimento, são dadas em uma determinada época, definindo no contexto o que deve ser reconhecido como verdadeiro e o que deve ser excluído como desqualificável. (MUCHAIL, 1992, p. 8) O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só com uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir. (FOUCAULT, 2006, p. 8)

Esta visão produtora e nem sempre previsível do poder em funcionamento remete novamente ao conceito de tática. Se Foucault ao analisar a “microfísica”, o funcionamento “miúdo” da sociedade, o faz buscando as formas de regulação, de disciplinamento e de conformação dos indivíduos numa lógica fundada pelo “olho” que tudo vê e que não é visto, Certeau procura dar visibilidade ao funcionamento de “formiga” que subverte esta lógica, não pelo confronto, mas pelo uso aleatório e invisível das representações a que é exposto. Duma lógica exterior que tudo regula sem que as pessoas percebam que estão sendo reguladas, vamos para uma subversão invisível pela ação imprevista, que não se deixa marcar por não ter um “lugar” que as fixe. A produção descrita por Certeau acontece na ação e, por não deixar marcas, some quando esta finda, desta forma surge o interesse pelo lugar que pode ser produzido pelo individuo nas micro redes e a “lógica deste pensamento que não se pensa” (2007, p.43). Enquanto a estratégia do poder busca (e encontra) o homogêneo e a identidade, a fragmentação analítica proposta por Certeau busca a heterogeneidade do cotidiano, ou melhor, a heterogeneidade que compõe o cotidiano. As ferramentas conceituais dispostas por Foucault e Certeau possibilitaram e possibilitam novas e importantes formas de abordagem do currículo como objeto de estudo. A combinação destas duas perspectivas mostra as relações de poder distribuídas, ainda que assimetricamente, em diferentes lugares de ação e reação. A dimensão

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produtiva, para além da coercitiva, das relações de poder é localizada em diferentes lugares da prática onde as normas são também tecidas, uma vez que as normas também são construídas em práticas discursivas. Voltando ao conceito de cultura escolar, à luz dos elementos conceituais apresentados, pode-se reafirmar a inter-relação entre os elementos normativos e práticos que a compõem e ressaltar que estes elementos estão articulados em torno de uma finalidade específica, e que esta finalidade está relacionada a um determinado contexto histórico, político e cultural. Os elementos da cultura escolar estão articulados em torno de um projeto político de sociedade que inclui a hierarquização de saberes, a produção de identidades e a alocação de papéis sociais de acordo com uma determinada lógica, e quase sempre visando à manutenção da ordem instituída. Os projetos institucionais podem ser mais ou menos conservadores de acordo com o momento histórico em que estão inseridos e as diferentes forças políticas em ação. No entanto, os diferentes sujeitos, no uso das normas e nas táticas que inventam, podem subverter a norma imposta estrategicamente e isso nem sempre significa que os novos sentidos são mais ousados ou transformadores, as táticas podem ser mais conservadoras do que as próprias estratégias a que estão respondendo. Da mesma forma, o terreno institucional não é livre de táticas de toda a ordem. Estratégia e tática não são instâncias polarizadas ou blocos monolíticos. Ao mesmo tempo em que não existe poder destituído de lugar, não existem lugares absolutos de poder: as instâncias normativas também possuem suas táticas. É um reducionismo impor a oposição binária entre a estratégia como própria da autoridade e a tática como exclusiva do sujeito submetido a esta autoridade. A tática é organizada em função do outro, mas o lugar do mesmo e do outro não estão tão seguramente determinados. Estas considerações possibilitam identificar no documento curricular ou no “currículo escrito” de Goodson (1995) um vasto potencial de investigações que pode superar o lugar mais tradicional já bastante explorado na história da educação. Os currículos oficiais quando postos em ação por profissionais e estudantes geram, pelas táticas próprias do uso, um universo de novas referências onde estão em jogo subjetividades, projetos alternativos, resistências, tradições. Da mesma forma, o processo de produção dos documentos oficiais também acontece em meio a diferentes relações de

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poder e possui suas táticas, suas disputas, muitas vezes ignoradas pela reificação do documento que apaga suas marcas de produção e suas contingências históricas. Ao investigar a história do currículo, o pesquisador deve dar luz aos conhecimentos, valores e habilidades que eram considerados verdadeiros e legítimos no período delimitado sem desconsiderar o processo pelo qual esta legitimidade foi estabelecida. Deve-se considerar que este processo não é totalmente lógico e coerente, mas que está entremeado pelos fragmentos das diferentes forças que o determinaram e que determinarão novos ordenamentos O esforço discursivo deste artigo busca cercar um território para identificar possibilidades investigativas de apreender, mais do que definir, o que é o currículo, como ele funciona, onde se localiza, que forças o movimentam, como é produzido e o que visa produzir. Talvez sejam necessários ainda outros elementos para localizar o currículo na cultura escolar universitária e mais ainda em uma determinada cultura universitária configurada num período histórico específico. Sem a pretensão de esgotar esta discussão, apresenta-se o currículo que procurado neste momento e os locais onde há a possibilidade de encontrar seus registros, suas pistas, seus rastros. Considerando que o currículo é um artefato produzido historicamente nas relações sociais, respondendo a uma determinada configuração institucional ao mesmo tempo que influencia o modo de organização da mesma (VIEIRA, 2009, P. 14), pretende-se apontar algumas possibilidades de investigação em História da Educação, localizando os caminhos do currículo ou os seus indícios no contexto universitário. A viabilidade da investigação de cada um destes aspectos está condicionada à localização de fontes em cada instituição. O currículo habita a universidade como documento regulador de práticas, como disciplina e como objeto de pesquisa. Moreira (1990) registrou o desenvolvimento do campo de pesquisa sobre currículo no Brasil e demonstra que as Faculdades de Educação, desde os anos 1970 se ocupam das teorias do currículo seguindo diferentes influências e orientações. A produção discente e docente no âmbito dos cursos de graduação e pósgraduação em educação podem ser caminhos frutíferos para a investigação do currículo, tanto para compreender a concepção de currículo adotada em cada época como para capturar os conteúdos que eram trabalhados ou priorizados em cada contexto. Planos de aula, projetos, registros de grupos de estudo, relatos de pesquisas, dissertações, teses,

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anotações de aulas, trabalhos acadêmicos, entre outros, podem ser fontes privilegiadas para este enfoque. As revistas editadas pelas universidades também são um importante meio de acesso a produção acadêmica. Quando se pensa em produção discente e docente, é necessário lembrar que esta produção é realizada pelas pessoas que ocupam estes lugares. Sendo assim é necessário levantar quem eram estas pessoas, quem eram os alunos, as alunas, os professores e as professoras que produziam no contexto acadêmico investigado. Como viviam, em que contexto foram formados, quais influências sofreram, que livros liam, que forma de organização experimentavam, o histórico de aproveitamento escolar, são questões que podem trazer elementos importantes para a investigação do currículo. A utilização de fontes orais também é muito valiosa e permite dar voz aos sujeitos normalmente silenciados nos entremeios do currículo. Ferraço (2012, p. 71) defende a necessidade de “entender/valorizar” as criações anônimas dos sujeitos no cotidiano e estas ações não produzem registros formais. Desta forma, além dos docentes e discentes, temos o corpo técnico e burocrático que se encarrega dos passos menos visíveis da construção curricular. Segundo Martins (2007, p. 45) a memória instaura um lembrar ativo sobre o passado, considerando a possibilidade de uma compreensão e de um esclarecimento do passado, mas também do presente. A legislação educacional, apesar de ser uma abordagem mais convencional e já bastante explorada no campo da história da educação, é uma dimensão privilegiada para a análise do currículo uma vez que traz em si um projeto formativo. A legislação demonstra a intervenção do estado nas relações sociais e os seus desdobramentos nas normas institucionais. A norma pode ser fonte e pode ser objeto de pesquisa (FARIA FILHO, 1998, p. 110). Os principais alvos da ação normatizadora são: [...] a redefinição de currículos e programas, a criação e a abolição de disciplinas, o valor dos títulos escolares, o poder de regular o trabalho dos especialistas da área e outras situações que estão a despeito da defesa de qualquer doutrina ou postura, em estado de permanente confronto com os procedimentos que expressam e regulam.” (NUNES, dez.1993/jun.1994, p. 13)

A investigação da legislação e das normas do currículo deve levar em conta o contexto mais amplo das quais a mesmas emanam, que no caso do ensino superior está localizado em âmbito nacional. Leis, decretos, pareceres e resoluções versam sobre currículos. No âmbito local tem-se também documentos de política curricular em diversas configurações. Além dos documentos instituídos há que se considerar também os

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registros dos processos de negociação dos mesmos que podem figurar em atas, relatórios e projetos e demonstrar cenários bastante complexos: Por sua própria natureza, os documentos de política curricular são codificados de forma complexa, em meio a lutas, negociações, compromissos, alianças, espelhando a sua própria historicidade. Mas é também verdade que, na qualidade de formuladores de políticas, os seus autores esforçam-se por controlar os significados dos documentos, de modo a facilitar a viabilização de determinadas finalidades sociopolíticas, os seus autores esforçam-se por controlar os significados dos documentos, de modo a facilitar a viabilização de determinadas finalidades sociopolíticas e dificultar outras. Está-se diante de um paradoxo que não se pode resolver – a trama política, de um lado, deixando abertos espaços para ações não-previstas, e de outro, fortalecendo os mecanismos de controle.” (MACEDO, 2002, p. 138)

O risco de obter informações unicamente em documentos oficiais é, como nos alerta Felgueiras (2010, p. 30), estudar propostas de reformas que nunca foram materializadas, ou seja, “nunca passaram da pena do legislador para o território das práticas”. Uma outra possibilidade de abordagem é a investigação da cultura material escolar, definida por Peres e Souza (2011, p. 56) como o “conjunto dos artefatos materiais em circulação e uso nas escolas, mediados pela relação pedagógica”. Para Peres e Souza (2011, p. 45-55), os discursos pedagógicos instituem e organizam o universo escolar ao determinar os lugares, os comportamentos, as posições e as ações dos seus sujeitos. Envolvem disputas entre diferentes formas de ordenação, de explicação, de hierarquização e de classificação do mundo escolar, desta forma não é possível pensar a escola sem considerar a sua dimensão material. A materialidade expressa projetos e racionalidades pedagógicas, e entre os dispositivos que instrumentaliza está o currículo. A organização do espaço e o gerenciamento dos tempos, os objetos que compõem o cenário acadêmico, os livros que circulam ou que povoam as bibliotecas pedagógicas, os instrumentos que figuram nos laboratórios falam também do currículo universitário, se articulados aos demais elementos que compõem a cultura escolar: [...] reconhecemos que é necessário analisar articuladamente os projetos sociais e os projetos de escolarização, os cenários culturais e os escolares, os discursos políticos e os discursos pedagógicos, a instância econômica e a escolar, as inovações sociais e as pedagógicas, as estratégias de disciplinamento da população dentro e fora da escola, a comercialização de produtos em geral e de produtos escolares, a produção científica em diferentes áreas e a Pedagogia, entre outras relações que podem contribuir para construir um quadro analítico qualificado da cultura material escolar, mesmo que a partir apenas de documentos escritos e apesar de seus limites. (PERES; SOUZA, 2011, p. 55)

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Ao apresentar estes caminhos de investigação do currículo no território da cultura escolar universitária não pretende-se diluir o conceito ao ponto de não conservar-lhe nenhuma identidade. O currículo não domina ou suplanta todos os elementos desta cultura, uma vez que ao fim e ao cabo, o material do currículo são os conhecimentos selecionados e a finalidade é a formação dos sujeitos de acordo com um determinado projeto pedagógico. Acredita-se, no entanto, que todos os elementos da cultura escolar universitária estão intimamente relacionados ao currículo, o afetam e são por ele afetados. O currículo não está em todos os lugares, mas em muitos deles pode-se perceber as suas marcas. Ainda que não se saiba ao certo “quem é Wally”, é possível acercar suas características, seu comportamento, seu modo próprio de se pôr na cena, o que faz com que pessoas se ocupem em procura-lo e se divirtam ao encontrá-lo. Valorizar os indícios, as marcas, os rastros é uma forma mais segura de conhecer a imensa trama em que os saberes estão enredados, desde que não se tenha a pretensão de construir uma totalidade aprisionante e com pretensões de coerência. Investigar o currículo na perspectiva da História da Educação é um trabalho desafiador onde o lugar e as particularidades de cada elemento devem ser considerados na composição, sempre complexa, de um projeto educacional.

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