Onésimo (historiador da ciência) em contexto [2015]
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ONÉSIMO (HISTORIADOR DA CIÊNCIA) EM CONTEXTO1 Francisco Contente Domingues2 Os novos parâmetros de organização do trabalho científico impuseram-‐‑se algo tarde em Portugal, pensando no campo das Humanidades, mas chegaram de facto e os resultados são visíveis em todas as facetas da investigação e ensino, desde o enquadramento institucional às estratégias de financiamento, dos meios e critérios de publicação à renovação de cursos universitários, sobretudo a nível pós-‐‑graduado. Sabe-‐‑ se que o processo não foi nem é pacífico, nem tão pouco unânime quanto aos seus resultados e consequências. Mas de que é um dado adquirido não restam dúvidas. Os observadores mais atentos não hesitarão em datar as mudanças ocorridas da primeira década deste século, muito embora os sinais viessem de trás. No caso da História da Ciência viu-‐‑se nascer centros de investigação especializados, revistas, cursos universitários, assistiu-‐‑se à sistemática internacionalização do resultado dos trabalhos produzidos entre nós (uma pecha de toda a historiografia portuguesa3), sendo clara a consciência que os próprios cultores da disciplina têm disso mesmo. Mas importa apontar o facto de que, em alguns dos seus capítulos, e um pouco paradoxalmente em relação ao visível atraso que se verifica ou verificou em quase todas as vertentes da historiografia portuguesa, havia muito que em Portugal se verificavam práticas muito avançadas para o tempo: palavras ou expressões como “rede”, “programa de investigação”, “projecto”, hoje enquistadas no jargão da pesquisa científica, serão as 1 O presente texto foi publicado no livro Onésimo. Único e multímodo (Guimarães, Opera Omnia, 2015) sem
que tivessem sido incluídas as notas de rodapé, por motivos a que sou totalmente alheio [colocado online em 12-‐‑03-‐‑2015]. 2 Faculdade de Letras e Centro de História da Universidade de Lisboa. 3 No primeiro número do e-‐‑journal of Portuguese History (http://tinyurl.com/o7rw3wt) foram publicados três artigos sob o tópico “On the Internationalization of Portuguese Historiography”, seguidos por mais cinco no número seguinte.
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melhores para descrever algo que era prática comum já a partir dos anos setenta, localizadamente embora. É porém necessário principiar pela delimitação do âmbito da História da Ciência, por uma questão de clareza em relação a campos disciplinares específicos. Está obviamente ultrapassada a visão linear de um progresso do conhecimento, tipicamente resultante do trabalho de investigadores vindos da História da Ciência e da Técnica, retroprojectando questões: “hoje faço assim , ontem como é que se fazia?” é a pergunta que subjaz aos trabalhos preparados nesta perspectiva mais clássica; seria todavia profundamente errado desvalorizar os resultados eruditos assim obtidos. Mas também há que olhar para alguma cautela com a tendência excessivamente abrangente com que a disciplina se olha nos dias de hoje, no sentido em que, se o acontecimento científico (o facto, a obra, a ideia) requerem por força da sua compreensão a capacidade de perceber toda a envolvência, seja social, económica, religiosa ou institucional, por exemplo, isso não permite dizer que tudo pertence à História da Ciência. De resto o problema é de sempre e nada tem de novo: da História Económica dir-‐‑se-‐‑á exactamente o mesmo – o facto económico, a obra de economia ou o modelo teórico não exigem também, para a sua total compreensão, que devam ser considerados abragentemente? A série de preços de um dado bem de consumo, numa dada praça e período cronológico valem por si ou requerem além do mais a compreensão do seu impacto social? E o que se diz da História Económica diz-‐‑se da História Social, ou das Instituições, ou de outra qualquer. Vem a precaução a propósito de uma pergunta simples: ao reflectir sobre a obra de um historiador “da ciência”, quais são os campos que a delimitam? Hoje, os cultores da História da Ciência incluem nela com facilidade campos temáticos como a Cartografia ou a Náutica; e o propósito desta chamada de atenção é o de defender a especificidade própria de disciplinas que ganham na observância das suas peculiaridades, quer a nível teórico quer a nível metodológico, e um e outro não faltam seguramente em qualquer dos dois exemplos assumidos. Melhor por isso que mantenhamos as especificidades, considerando a História da Cartografia ou a História da Náutica como campos disciplinares próprios, entre tantos mais exemplos similares que podiam ser dados, em vez de meros capítulos da História da Ciência, como por vezes parecem pretender certos assomos “imperalistas” dos cultores desta última – afinal, e mais uma vez, à semelhança
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do que já aconteceu com tantos e tantos mais domínios científicos neste grande mundo das Humanidades: como não lembrar o tempo em que tudo, mas tudo, era História Social, ou aquele em que tudo era do domínio do económico? Por outro lado, e sem prejuízo dos amplos espaços de intersecção que não só existem como forçosamente se têm de percorrer para percepcionar concretamente as questões, há perguntas específicas que delimitam o espaço. Quando se pensa no contributo de Onésimo Teotónio de Almeida, historiador da ciência, vem à baila a questão essencial que debateu: afinal, qual foi o contributo do tempo das navegações e das viagens ibéricas dos séculos XV e XVI para a ciência moderna? O reparo feito acima não se aplica de todo em todo a este autor, cuja obra não invadiu outras áreas com o rótulo (ou a pretexto) da História da Ciência, mas serve apenas para reforçar a medida em que este é um dos seus problemas principais e simultaneamente específicos. Sobre o qual escreveu textos fundamentais ao longo das décadas de oitenta e noventa, nos quais há que atentar. Bem entendido, a sua contribuição não fica por aqui: mas é sobre este período que me quero debruçar neste momento. Refiro-‐‑me concretamente a uma comunicação à Academia das Ciências de Lisboa, intitulada "Sobre o papel de Portugal na revolução científica do Século XVII"4, e ao capítulo de um livro editado por George Winius, “Portugal and the Dawn of Modern Science”5; ambos com títulos elucidativos. Em texto ainda inédito, Onésimo Almeida explica como se deu a sua “chegada” a Portugal e à historiografia portuguesa no tocante a estas questões6, testemunhando o interesse de José Sebastião da Silva Dias pelo seu trabalho e o contacto com Luís de
4 História e Desenvolvimento da Ciência em Portugal (Sécs. XVI-‐‑XIX), 2º vol., Lisboa, Academia das Ciências,
1987, pp. 1173-‐‑1222. 5 George Winius (ed.), Portugal, The Pathfinder. Journeys from the Medieval towards the Modern World. 1300-‐‑ca. 1600, Madison, WI, Hispanic Seminary of Medieval Studies, 1995, pp. 347-‐‑368. 6 “Historial do meu envolvimento na temática da história da ciência no período dos descobrimentos” (agradeço ao autor o ter-‐‑me cedido este texto, com certeza provisoriamente titulado).
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Albuquerque, um pouco mais tarde, o qual o levaria ao conhecimento da obra de Reyer Hooykaas a partir do seu estudo seminal “Science in Manueline Style”7. São duas situações completamente diferentes. De J. S. da Silva Dias, autor de trabalhos fundamentais para a História da Cultura Portuguesa dos séculos XVI a XVIII, pode dizer-‐‑se hoje que está injustamente esquecido, quer por esse seu contributo considerado em geral e em relação a problemas mais específicos que tratou com profundidade, como é o caso da influência dos estrangeirados na formação da modernidade cultural portuguesa8, quer em particular em relação aos problemas decorrentes da articulação cultura portuguesa – navegações9.
Não será estranha a este “esquecimento” de Silva Dias a profunda influência da
obra de Jorge Borges de Macedo, nomeadamente do seu Estrangeirados. Um conceito a rever10: a tese de Silva Dias tem de ser lida com a precaução devida, é afinal um texto com meio século, mas o texto de Macedo, com larga fortuna entre os seus discípulos, é de facto perfeitamente conforme e ao jeito de uma visão tradicionalista e conservadora da cultura portuguesa (interessante para o Estado Novo), que não via qualquer contributo dos estrangeirados – cuja existência acaba em última análise por não reconhecer –, porque no fundo tudo sempre cá se tinha sabido; um pouco na linha dos artigos que a partir da década de 40 e nos anos seguintes foram aparecendo na revista Brotéria, devidos a nomes como Domingos Maurício Gomes dos Santos ou João Pereira Gomes, valha a verdade que com outra consistência erudita, sendo por isso alguns deles de leitura essencial 11 . Nem sequer o seu estudo magistral “Cultura e obstáculo
7 “Science in Manueline Style: the historical context of D. João de Castro’s works”, in Obras Completas de D.
João de Castro, edição crítica de Armando Cortesão e Luís de Albuquerque, vol. IV, Lisboa, Academia Internacional da Cultura Portuguesa, 1982, pp. 231-‐‑426. 8 O estudo essencial de J. S. da Silva Dias é "Portugal e a cultura europeia (séc.s XVI a XVIII)", Biblos, vol. XXVIII, 1952, pp. 203-‐‑498 (reed. Porto, Campo das Letras, 2006). 9 Como em Os Descobrimentos e a Problemática cultural do Século XVI, Lisboa, Editorial Presença, 1982 (1ª edição: Coimbra, 1973). 10 Apresentado como comunicação a um colóquio em 1973, o texto correu sobretudo como opúsculo publicado em Lisboa, pelas Edições do Templo, s/d. 11 E em muito mais sítios e por muito mais autores: refiro a Brotéria e estes dois nomes em particular porque, apesar de serem estudos apostados na recuperação da imagem da Companhia de Jesus, em primeiro lugar, notadamente no campo cultural, destacam-‐‑se pela capacidade analítica e rigor erudito, bem ao contrário de outros que não passaram do nível propagandístico, mais ou menos disfarçadamente.
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epistemológico do Renascimento ao Iluminismo em Portugal"12 foi devidamente lido (muito menos citado) pelos autores que vieram na esteira de quem acabámos de citar: e o que é curioso é que no fundo é Silva Dias a pôr a questão nos seus devidos termos, com o rigor erudito de sempre (por norma ausente nos seus críticos, encapotados ou não), neste trabalho deveras notável em que mostrou como os defensores da filosofia peripatética, no amplo debate intelectual que os opôs aos ecléticos e aos “modernos” em geral, não rejeitavam a modernidade per si mas acreditavam na perenidade do sistema filosófico que defendiam.
O encontro de Onésimo Almeida com Luís de Albuquerque veio por seu turno a
ser decisivo.
A vinda para Portugal de Armando Cortesão deu azo à criação de um ambiente de
investigação que não teve paralelo no país, nem na altura nem nos tempos imediatamente subsequentes. Primeiramente em torno dos trabalhos de preparação da monumental Portugaliae Monumenta Cartographica, depois consubstanciado na criação dos Agrupamentos de Estudos de Cartografia Antiga de Coimbra e Lisboa (aqui sob direcção de Teixeira da Mota), naquela cidade viria a florescer um cosmopolitismo científico inédito, também devido ao contributo de Albuquerque, que se dedicou aí os seus estudos de História da Náutica; juntamente com Cortesão desenvolveu um verdadeiro programa de investigação (muito antes, como se disse acima, de o conceito ser uma prática corrente nos meios da investigação em História), e a rede de contactos de ambos fez com que durante um longo período de tempo tudo se soubesse em Coimbra, e o mundo científico estivesse perfeitamente a par do que aí se fazia: é ainda hoje difícil avaliar o alcance mundial da obra destes dois homens, tão distantes em O próprio texto de Borges de Macedo a este propósito está muito longe da acutilância e qualidade que se lhe reconhece em outros trabalhos, onde a sua filiação ideológica é menos evidente. De João Pereira Gomes existe uma publicação recente de compilação dos seus estudos históricos, organizada por Henrique Leitão e José Eduardo Franco: Jesuítas, Ciência e Cultura no Portugal Moderno, Lisboa, Esfera do Caos, 2012; precisar-‐‑se-‐‑ia de idêntico esforço em relação a Domingos Maurício, cujos importantes estudos sobre a época dos Descobrimentos fazem por vezes serem esquececidos os seus contributos para a História da Cultura portuguesa dos séculos XVII e XVIII. 12 V. A Abertura do Mundo. Estudos de história dos descobrimentos europeus em homenagem a Luís de Albuquerque, org. de Francisco Contente Domingues e Luís Filipe Barreto, vol. I, Lisboa, Presença, 1986, pp. 41-‐‑52.
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tantas matérias e por vezes duramente críticos um do outro, mas colaborantes nessa visão de uma prática científica sem fronteiras, como se pode verificar pelas impressionantes colecções de separatas que ambos reuniram, separatas vindas de toda a parte do globo com dedicatórias de todos os nomes cimeiros da historiografia internacional – o que se fazia no mundo chegava prontamente a Coimbra, o que a correspondência de ambos testemunha por igual, sobretudo a vultuosíssima rede de correspondentes de Luís de Albuquerque13. Como resultado, entre outros, a realização em Coimbra da Reunião Internacional de História da Náutica que aí teve lugar em 1968 juntou um grupo impressionante de top scholars a nível mundial14: quem era alguém na matéria esteve em Coimbra nesse ano, e o dossier da correspondência de Luís de Albuquerque enquanto secretário da Reunião é em si mesmo a prova evidente desse cosmopolitismo científico sem igual no Portugal de então.
A idade e o estatuto de Armando Cortesão levaram-‐‑no a presidir à Reunião, na
abertura da qual não regateou aliás elogios ao seu colega mais jovem, a quem atribuiu a iniciativa. Albuquerque, matemático de formação e de carreira (chegara a catedrático pouco antes) cimentara já um extenso rol de ligações profissionais no mundo da História da Ciência, e entre outros relacionara-‐‑se com dois nomes de referência da historiografia internacional: Reyer Hooykaas, presente na Reunião15 com a primeira versão do que viria a ser depois um dos seus livros fundamentais16. Hooykaas já publicara em Coimbra
13 O espólio de Armando Cortesão está hoje à guarda do Departamento de Matemática da Universidade de
Coimbra, que albergava nas suas instalações o Agrupamento de Estudos de Cartografia Antiga, e o de Luís de Albuquerque encontra-‐‑se na Biblioteca Geral da mesma Universidade, da qual foi director. Ambos estes espólios necessitam de ser estudados para se ter uma cabal compreensão da mundivivência científica destes dois investigadores. 14 V. Francisco Contente Domingues, “Forty years of nautical science”, in Arte de Navegar | Nautical Science 1400-‐‑1800, ed. de António Costa Canas et al., Coimbra, Departamento de Matemática da Universidade de Coimbra, 2014, pp. 9-‐‑13. 15 “The impact of the voyages of discovery on portuguese humanist literature”, in Revista da Universidade de Coimbra, Vol. XXIV, 1 971, pp. 5 51-‐‑5 64. 16 Humanism and the voyages of discovery in 16th century Portuguese science and letters, Amsterdam, New York, Noord-‐‑Hollandsche U. M., 1979. Há uma excelente tradução portuguesa de José Augusto Bragança de Miranda, acompanhada pelo autor: O Humanismo e os Descobrimentos na Ciência e nas Letras Portuguesas, Lisboa, Gradiva, 1983.
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um livro importante17, e seria aí, pela mão de Albuquerque18, que sairia à estampa uma colecção de esparsos: Selected studies in history of science19.
É ainda e sempre pela mão de Luís de Albuquerque que um outro historiador da
ciência, cimeiro na segunda metade do século XX, chega a Portugal: refiro-‐‑me a William Graham Lister Randles, também ele autor de uma obra notável, onde avulta um livro monumental pela extraordinária capacidade analítica e erudição extensíssima (apesar do volume em si não chegar às 300 páginas): The Unmaking of the medieval Christian Cosmos, 1500-‐‑176020.
A brilhante carreira de Randles culminou com dois livros. Este (no fundo fruto de
quarenta anos de trabalho), onde algumas páginas dão bem conta do seu profundo conhecimento da cultura portuguesa do período moderno21, e a colectânea de ensaios Geography, Cartography and Nautical Science in the Renaissance22, e aqui sim, a presença das navegações portuguesas é determinante, como aliás a referência a “nautical science” no título deixa adivinhar: pois não foi este autor que escreveu de Luís de Albuquerque que transformara a História da Náutica de assunto secundário em core subject da História das Navegações? Não por acaso, Randles foi presença regular nas Reuniões Internacionais de História da Náutica, significativamente nas realizadas em Portugal23. 17 Introdução à História das Ciências, Coimbra, Atlântida, 1965 (e em separata da Revista da Faculdade de
Ciências da Universidade de Coimbra, 1963). 18 V. Luís de Albuquerque, "Professor R. Hooykaas and the History of Sciences in Portugal", in Janus. Revue internationale de l'histoire des sciences, de la médecine , de la pharmacie et de la technique, vol. LXIV, 1977, pp. 1-‐‑13. 19 Coimbra, Universidade, 1983. 20 W. G. L. Randles, The Unmaking of the medieval Christian Cosmos, 1500-‐‑1760. From Solid Heavens to Boundless Aether, Aldershot, Ashgate, 1999. 21 William Randles falava e lia fluentemente o Português, em consequência de um facto generalmente ignorado da sua biografia: os dez anos que passou na Faculdade de Letras de Lisboa como leitor de Inglês (era sul-‐‑africano de nascimento). Liminarmente dispensado, viria logo depois a encontrar colocação na Escola Prática de Altos Estudos de Paris, onde fez toda a sua carreira, até se mudar para Bordéus por motivos familiares e leccionar nos últimos anos de actividade na Maison des Pays Ibériques daquela cidade. 22 Aldershot, Ashgate (Variorum), 2000. 23 “La naissance d'un concept nouveau à l'époque des Grandes Découvertes Maritimes: le globe terráqué”, in Revista da Universidade de Coimbra, Vol. XXXII, 1985, pp. 329-‐‑3 38; “Bartolomeu Dias and the discovery of the south-‐‑east passage linking the Atlantic to the Indian Ocean (1488)”, in Revista da Universidade de Coimbra, vol. XXXIV, 1987, pp. 19-‐‑2 8; “The artilleries and land fortifications of the Portuguese and of ther adversaries in the early period of the Discoveries”, Limites do Mar e da Terra. Limits of the Land and Sea, ed. by Inácio Guerreiro and Francisco Contente
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Fez-‐‑se excelente História da Ciência nessa Coimbra dos anos oitenta, e sobretudo,
o que Hooykaas e Randles fizeram também foi colocar as problemáticas da relação das navegações portuguesas com a ciência da época moderna na rota dos temas e problemas da historiografia internacional, sobretudo anglo-‐‑saxónica. O próprio Luís de Albuquerque, que muito pouco publicou em Inglês, ver-‐‑se-‐‑ia reconhecido nesse meio quando, por proposta de Wilcomb Washburn e Ursula Lamb (mais duas presenças na Reuniões de História da Náutica), foi o 76º eleito para membro honorário da American Historical Association, na sua 101ª reunião anual, lista de homenageados que tinha começado com nada menos que Leopold von Ranke.
Foi neste ambiente, introduzido pelo contacto com Luís de Albuquerque, que a
obra de Onésimo Teotónio de Almeida ganhou significado, e daí a importância dos seus dois estudos que referi, escolhidos um porque foi editado nos Estados Unidos oferecendo aos seus leitores um modelo de explicação do impacto das navegações na ciência moderna, o outro porque no sentido contrário trouxe para Portugal uma visão não luso-‐‑cêntrica da mesma questão.
Está fora do âmbito deste estudo o acompanhamento da evolução dessa
ambiência coimbrã, que fez da Imprensa da Universidade um editor de referência internacional, tal a qualidade e quantidade dos estudos que se publicaram então. Dir-‐‑se-‐‑ à porém que não teve o impacto nacional que merecia, pois na verdade há que levar em linha de conta a influência de Joaquim Barradas de Carvalho, vindo do exílio para leccionar na Faculdade de Letras de Lisboa em 1977, morto prematuramente, com apenas 60 anos de idade, em 1980, e a quem a Fundação Calouste Gulbenkian publicou postumamente a sua tese de doutoramento de Estado na Sorbonne: À la recherche de la spécificité de la Renaissance portugaise – L ' Esmeraldo de situ orbis de Duarte Pacheco Pereira et Ia litérature portugaise de voyages à l' époque des grandes découvertes – Contribution à l' étude des origines de Ia pensée moderne24. Um título impressionante para uma obra impressionante, apresentada por nada menos que Fernand Braudel e Pierre Chaunu. Domingues. Cascais, Patrimonia, 1998, pp. 329-‐‑3 40 (este último um tema atípico no conjunto da sua obra). 24 Paris, Foundation Calouste Gulbenkian, 1983.
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É também impressionante, volvidos mais de trinta anos, compreender a imensa
influência de Barradas de Carvalho quando comparado com a descrição com que exactamente pela mesma altura iam publicando Albuquerque, Hooykaas e Randles: e Onésimo a par deles. A linguagem grandiloquente, a formalização de grandes temas e problemas, sedutora na sua forma para qualquer leitor, são notórias. As profundas debilidades epistemológicas do althuserianismo de Barradas são porém também evidentes, mas a elas já se referiu com propriedade o próprio Onésimo Teotónio de Almeida. Para a tão louvada erudição (tão louvada quanto maçuda) chame-‐‑se aqui a atenção: centenas de páginas de notas em corpo minúsculo esmagam pelo aparato, mas são apenas e tantas vezes longas e intermináveis citações de autores. Veja-‐‑se o caso do capítulo com que abre o segundo volume da obra, sobre as palavras “descobrir” e “descobrimento”: 13 páginas de texto, 113 de notas, algumas maiores que o próprio capítulo!, mas que são no fundo citações intermináveis de ocorrências daquelas palavras na literatura que o bom senso e o bom critério metodológico mandariam imperativamente colocar como um corpus de ocorrências em anexo. Folheie-‐‑se outra obra do autor, Da História Crónica à História Ciência25, e veja-‐‑se o que diz da “revolução epistemológica” na Química: compreender-‐‑se-‐‑á que escusa qualquer comentário. Veja-‐‑se a teorização da Literatura de Viagens na entrada do Dicionário de História de Portugal para se ver como se cria um modelo com cinco categorias, se consideram apenas 13 espécies, e mesmo assim o “modelo” não consegue mostrar-‐‑se capaz de inserir todos os 13 textos nessas cinco categorias…26
Todavia a influência de Barradas de Carvalho foi muito grande, não tanto por
acção do próprio mas pela forma como os seus discípulos o assumiram: como um autor sacrossanto. O autor destas linhas é ele próprio testemunha desse tempo em que a mais leve suspeita de crítica era “esmagada” por correligionários políticos, professores universitários embora, que nunca levavam as discussões para o plano das ideias mas simplesmente não admitiam que alguém pudesse sugerir uma crítica leve que fosse: 25 Lisboa, Livros Horizonte, 1991. 26 Barradas
de Carvalho considerou os textos de Literatura de Viagens até 1505-‐‑8, ou seja até ao Esmeraldo, apenas, e sem qualquer explicação lógica, quando é certo que são muitos mais os textos que podem ser assim considerados depois daquelas datas. É uma das debilidades estruturais da sua obra que curiosamente não foi questionada seriamente durante mais de duas dezenas de anos.
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Onésimo Almeida testemunhou-‐‑o também27. As simpatias pessoais e relações sociais nos meios intelectuais da época, o prestígio que o longo exílio granjeou nos meios da oposição democrática ao Estado Novo, a filiação política num quadrante que não primou nunca por ter historiadores de primeira plana (com excepção de António Borges Coelho, quando mais alinhado politicamente), o ascendente da cultura francesa ao tempo, a aura do doutoramento de Estado28, enfim a morte prematura, tudo concorreu para o mesmo efeito. Não resultou daqui nada de substantivo, como obviamente tinha de acontecer, mas houve um efeito de desconhecimento e esquecimento das obras fundamentais (ainda hoje) no panorama internacional que Albuquerque, Hooykaas e Randles iam publicando em Coimbra. Não menciono sequer outros autores com contribuições muito relevantes também que passaram pelas Reuniões de História da Náutica, onde as navegações e a ciência moderna estavam sempre presentes: aos leitores da “revolução epistemológica” a Revista da Universidade de Coimbra não era seguramente apetecível29.
A passagem de testemunho geracional em Coimbra e o ambiente em Lisboa são
de facto a explicação para que a obra de Onésimo Almeida tenha tardado mais do que devia a afirmar-‐‑se, embora não fosse desconhecida. E deve-‐‑se-‐‑lhe hoje como ontem a continuidade de um esforço imenso de inserção do conhecimento do mundo das navegações portuguesas na esfera historiográfica anglo-‐‑saxónica, não obstante o que já foi alcançado. Mesmo nos dias actuais, se os historiadores da ciência olham já diferentemente para o mundo ibérico, não deixa de ser verdade que a emergência do Espanhol como língua internacional com cada vez maior projecção leva a que demasiadas vezes se fale apenas das navegações espanholas, com desconhecimento da realidade portuguesa, cronologicamente anterior, e de tudo o que se lhe sucedeu. O exemplo de Pedro de Medina é gritante: o reconhecimento de que a náutica inglesa se 27 Vide o texto inédito citado anteriormente. 28 Jorge Reis, discípulo, admirador confesso e biógrafo de Aquilino, contou em público numa sessão no
Anfiteatro I da Faculdade de Letras um episódio revelador do ambiente em que decorreu o doutoramento de Barradas de Carvalho em Paris. Ao vê-‐‑lo entrar na sala no decorrer da prova, o presidente do júri, Pierre Chaunu, chamou Aquilino para o fazer sentar junto dos outros membros do júri... 29 Pela mesma altura um então jovem assistente da Faculdade de Letras iniciava um percurso importante e singular sobre as mesmas matérias, e sobretudo no seu terceiro livro, Os Descobrimentos e a Ordem do Saber (Lisboa, Gradiva, 1987) Luís Filipe Barreto oferecia um novo modelo explicativo do que chamava a Sabedoria do Mar. Mas a obra de Luís Filipe Barreto, muito influente em Portugal, não chegou ao universo anglo-‐‑saxónico, óptica em que discuto a contribuição de Onésimo Almeida.
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formou a partir da leitura deste autor leva historiadores nossos contemporâneos a enaltecer a arte de navegar espanhola, por desconhecimento de que já em 1958 David Waters (significativamente o autor com mais presenças até hoje nas Reuniões de História da Náutica…), no seu estudo monumental intitulado The Art of Navigation in England in Elizabethan and Early Stuart Times30, tinha mostrado claramente como Pedro de Medina tudo bebera da náutica portuguesa.
O mérito de Onésimo Almeida é pois duplo: por um lado, introduziu neste tema
uma capacidade de explicação teórica que estava em boa medida ausente naqueles que dele tratavam e tratam dentro ou fora de Portugal. Por outro, internacionalizou-‐‑o deliberadamente e mais do que ninguém31, continuando o que Reyer Hooykaas e William Randles tinham feito antes, tal como antes deles Armando Cortesão -‐‑ o mais internacional dos historiadores portugueses do século XX, e por isso tantas vezes citado ainda hoje -‐‑, para a História da Cartografia. Este texto não tem pretensões eruditas nem muito menos teóricas, como o leitor já se apercebeu – em rigor, aliás, nem seria preciso dizê-‐‑lo. É sim e apenas um testemunho, de quem acompanha atentamente o campo em franca afirmação da História da Ciência, sobretudo no tocante a esta questão essencial que é a de compreender o contributo das navegações dos séculos XV e XVI, ibéricas e portuguesas em particular, para a ciência moderna; mas não esquecendo, antes procurando chamar a atenção para a necessidade de valorizar devidamente um momento decisivo do discurso historiográfico português e do que se fez em Portugal, nele incluindo este autor do qual há que dizer taxativamente: é preciso ler – outra vez – Onésimo Teotónio de Almeida.
30 Londres, Hollies and Carter, 1958. 31 Continuando
a fazê-‐‑lo, como se vê por este estudo recente: “Experiência a madre das cousas – experience, the mother of things – on the ‘revolution of experience’ in 16th century Portuguese maritime discoveries and its foundational role in the emergence of the scientific worldview”, in Maria Berbara and Karl A. E. Enenkel, eds, Portuguese Humanism, Leiden, Brill, 2011, pp. 381-‐‑400.
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