OPERAÇÕES DE PAZ DESAFIADAS: COMO ENVIAR TROPAS PARA PAÍSES IMERSOS EM CONFLITOS DE CARÁTER CRÔNICO? O CASO BRASILEIRO

August 10, 2017 | Autor: Vivian Krause | Categoria: Peacekeeping, Democracy, Peacebuilding
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OPERAÇÕES DE PAZ DESAFIADAS: COMO ENVIAR TROPAS PARA PAÍSES IMERSOS EM CONFLITOS DE CARÁTER CRÔNICO? O CASO BRASILEIRO

Vivian Finger Krause (PPGEST/INEST - UFF)

Resumo: Com o fim da Guerra Fria, os conflitos armados que não se enquadram na definição clássica de guerra aumentaram significativamente no cenário internacional. Nesse contexto, as operações de paz onusianas, apesar de serem instrumento para a garantia da segurança internacional, são também instrumento político estatal que agrega complexidade ao cenário atual de conflitos armados. O presente estudo objetiva analisar, tendo como referência o cenário de transformações dos conflitos armados, como o Brasil tem lidado com o envio e a retirada de tropas das missões de paz em que tem participado. A pesquisa inicia-se delineando o desafio brasileiro de participar do regime internacional de segurança enviando tropas para países cujos conflitos armados não podem ser resolvidos pelas operações de paz focadas somente no peacekeeping tradicional. As seguintes questões são propostas: o envio de tropas a países imersos em conflitos complexos, cujas soluções dependem não apenas do reestabelecimento da segurança pública, traz quais dividendos para a política externa e de defesa brasileiras? Como retirar as tropas de países que são instáveis de maneira crônica? A utilização dos militares brasileiros para garantir a segurança pública de outro país reforça a tendência de considerar o militar como garantidor da segurança pública brasileira? Qual o impacto disso para a sociedade brasileira? O estudo conclui que o cenário de conflitos armados do pós-Guerra Fria teve impacto na política de envio de tropas brasileiras para operações de paz, o que tem obrigado o Brasil a repensar quais são as tarefas primordiais das Forças Armadas. PALAVRAS-CHAVE: operações de paz, Forças Armadas, segurança pública, MINUSTAH

Introdução Em 2014, a MINUSTAH – Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti – completou dez anos de existência, o que resultou no aumento dos debates na Academia e no governo brasileiros sobre o tema das missões de paz. Os analistas vem buscando as seguintes respostas: como concluir a missão? Ela foi exitosa? Quais os impactos da participação brasileira na MINUSTAH para o Brasil? Essas perguntas não têm respostas unívocas e simples, mas são em si importantes, uma vez que renovam o debate sobre para que servem as missões de paz. Este artigo busca compreender o que é preciso analisar antes de enviar tropas para países imersos em conflitos de caráter crônico, ou para países que precisam de reconstrução (tarefas de peacebuilding). Ao engajar tropas em missões conhecidas como de quarta geração (KENKEL, 2013a, p. 132), o Brasil assume a responsabilidade de participar dela no longo prazo, e ao engajar tropas em países que apresentam conflitos duradouros, assume a mesma

responsabilidade. Essa decisão afeta tanto a política externa quanto a política de defesa brasileiras no longo prazo. Na primeira parte deste artigo, serão apresentadas as transformações ocorridas na maneira de se realizar uma operação de paz, tentando mapear a discussão acadêmica sobre os motivos dessas mudanças. Na segunda parte, serão analisados os impactos da nova maneira de se realizar operações de paz na estratégia de saída (encerramento da missão). Serão também expostos os casos de participação em operações de paz do Brasil (envio de tropas). Na terceira parte, serão elencados alguns dos benefícios e malefícios que podem advir do envio de tropas brasileiras a missões de paz da ONU. Por fim, será discutida, especialmente, a relação da atuação dos militares brasileiros na MINUSTAH com o aperfeiçoamento da doutrina militar relativa à garantia da lei e da ordem (GLO), a fim de compreender de que maneira a participação em operações de paz pode afetar a profissionalização do militar brasileiro e a sociedade brasileira como um todo.

Transformações das operações de paz com o fim da Guerra Fria As operações de paz transformaram-se radicalmente a partir de 1990 (BRAGA, 2012; FONTOURA, 1999; KENKEL, 2012a; KERNIC; KARLBORG, 2010). Inicialmente, elas tinham como objetivo, por exemplo, o monitoramento de fronteiras e a supervisão de cessarfogos, e não eram dotadas de grande capacidade de uso da força (conhecidas como missões de capítulo VI). A Partir de 1990, suas tarefas multiplicaram-se, indo da elaboração e supervisão de eleições, à proteção de civis e à construção de sistemas políticos inteiros (reforma do judiciário, reforma da Polícia, reforma das Forças Armadas, etc). Essa explosão de novas tarefas e de uma nova concepção de paz a ser mantida (ou mesmo construída) foi aos poucos acompanhada de reinterpretações nos três princípios básicos das operações de paz, quais sejam: consentimento, imparcialidade e mínimo uso da força (BRAGA, 2012, p. 53). As transformações, entretanto, não ocorreram todas ao mesmo tempo. Segundo Braga (2012, p. 54), “as tarefas mais complexas e ambiciosas a serem desempenhadas pelas forças de paz não foram, inicialmente, acompanhadas de meios, recursos e mandatos adequados”. Após os três grandes fracassos das Nações Unidas (a atuação em Ruanda, na Somália e na Bósnia durante a década de 1990), a Organização passou a desenhar mandatos mais claros, com mais tarefas, e com maior permissividade em relação ao uso da força. Para que as missões fossem eficazes, elas precisavam ser mais robustas (reinterpretação do mínimo uso da força), e o uso da força passou a ser aceito no nível tático não só na autodefesa dos membros da missão mas também na defesa dos objetivos do mandato (DPKO, 2008).

Apesar da maior eficácia esperada, as transformações das operações de paz trouxeram novos riscos: tornaram a imparcialidade e o consentimento mais frágeis e dinâmicos (reinterpretação dos dois princípios), aumentaram as chances de mortes durante a missão (de civis e dos membros da missão) e aumentaram também as chances de os países que contribuem com tropas danificarem sua reputação (fica mais difícil diferenciar se participam de uma missão de paz ou de uma intervenção sem consentimento). Nesse sentido, a inclusão da proteção aos civis nos mandatos de algumas missões tem servido tanto como resposta às demandas de ativistas pelos direitos humanos quanto como maneira de garantir a legitimidade da missão, posta em xeque pelo aumento do uso da força. Entretanto, essa legitimidade inicial é tambem posta a prova a todo instante, uma vez que o tema dos direitos humanos tem grande visibilidade internacional e qualquer erro tático militar pode comprometer o consentimento inicial à missão, além de comprometer a reputação do país cuja tropa não soube proteger os civis. Além dessa nova dificuldade, as noções de êxito e de fracasso das operações de paz também foram completamente reformuladas a partir de 1990. Segundo Kernic e Karlborg (2010, p. 725), “rather than the suppression of violence, ceasefire maintenance or the limitation of armed conflict, sustainability and ‘positive peace’ are principal goals, leading also to a different notion of ‘mission success’ ”1.

Além

da

preocupação

básica

com

segurança pública, as missões com tarefas relacionadas a peacebuilding (UNTAET2 e MINUSTAH, por exemplo) buscam desenvolver socioeconomicamente o país em que estão alocadas. Essa noção, que vai ao encontro da percepção da política externa brasileira sobre segurança (KENKEL, 2013b, p. 284-285), dificulta que uma missão de paz seja considerada como encerrada ou bem-sucedida. A missão realizada no Timor Leste de 1999 a 2002 (UNTAET), por exemplo, embora considerada um êxito (principalmente em função do contraste com os grandes fracassos anteriores da ONU), revela que mesmo em um país pequeno e com muitos recursos financeiros internacionais, realizar uma missão de paz com objetivos de peacebuilding é uma tarefa de longo prazo e sem grandes vitórias a serem declaradas publicamente (MORROW; WHITE, 2002). Além de entender como as operações de paz se transformaram, é preciso compreender por que motivo elas mudaram. Primeiramente, é possível partir da análise de que o término da Guerra Fria implicou no destravamento da atuação do Conselho de Segurança das Nações 1

“Ao invés de supressão da violência, respeito ao cessar-fogo ou limitação do conflito armado, sustentabilidade e ‘paz positiva’ são os principais objetivos, levando também a uma noção diferente de ‘êxito da missão’”. Tradução nossa. 2 UNTAET – United Nations transitional administration in East Timor.

Unidas (UNSC), fazendo com que as missões de paz finalmente começassem a ser aprovadas (KENKEL, 2012a, p. 29). Nesse sentido, a demanda por operações de paz já existia, mas estava sendo reprimida (DIEHL, 2008 apud KENKEL, 2013a, p. 127). Outros autores, como Kaldor (2007), enfatizam as transformações ocorridas na natureza dos conflitos internacionais, que teriam passado a ser majoritariamente intra-estatais e mais complexos. Essa concepção, por sua vez, tem sido muito criticada por alguns autores neorrealistas, os quais defendem que não houve mudança ontológica dos conflitos, ainda que políticos e acadêmicos tenham modificado sua percepção de segurança. Além disso, autores como Ku e Jacobson (2002, p. 378-379) e Diehl (2008 apud KENKEL, 2013a, p. 127) citam o maior destaque dado aos direitos humanos e à proteção dos civis durante os conflitos como um dos elementos que transformaram as operações de paz, tema que não era tão relevante antes de 1990. Por fim, é preciso observar que a prática em operações de paz gerou lições aprendidas tanto para a ONU quanto para os países que contribuíram com tropas. As transformações das missões, portanto, relacionam-se também aos erros e acertos vividos e ao estudo das necessidades de cada caso. Nem todas as missões atuais são dedicadas ao peacebuilding, nem todas têm como objetivo, em seu mandato, a proteção de civis, e algumas missões continuam servindo para garantir a manutenção de fronteiras e de cessar-fogos (UNFICYP e UNMOGIP3 por exemplo).

Estratégias de saída A participação de um país em uma missão de paz pode ser encerrada de três maneiras distintas: i) quando as Nações Unidas decide terminar a missão; ii) quando o país que recebe a missão decide terminar a missão; e iii) quando o país que envia tropas decide, sozinho, que quer se retirar. No primeiro caso, quando a ONU encerra a missão, podem-se elencar quatro motivos para o encerramento: 1) Seus objetivos foram cumpridos (êxito da missão) 2) A segurança dos membros da missão está severamente ameaçada 3) Não há mais interesse político do CSNU em manter a missão 4) Há pressão política dos principais contribuintes com tropas para o fim da missão Se se considera que a saída das tropas ocorrerá quando o êxito da missão for alcançado, as estratégias de saída variam drasticamente de acordo com o tipo de conflito que a missão tenta 3

UNFICYP – United Nations Peacekeeping force in Cyprus; UNMOGIP - United Nations military observer group in India and Pakistan.

resolver (crônico ou pontual, inter ou intraestatal, religioso, etc) e com a quantidade de objetivos que ela deseja cumprir. A hipótese que se pode imaginar é a de que quanto mais objetivos a missão tenta cumprir, mais tempo levará para alcançar algum sucesso. Embora uma missão tradicional de supervisão de cessar-fogo possa ou não demorar anos para terminar, uma missão que incorpore entre seus objetivos as tarefas típicas de peacebuilding seguramente demorará para terminar. Diante desse quadro de operações de paz robustas e multifuncionais, em que missões de paz incorporam diversas tarefas e duram muito tempo e em que a tarefa de proteção dos civis garante, ao mesmo tempo em que desafia, a legitimidade das missões (colocando politicamente em risco os países que contribuem com tropas), o Brasil tem optado por participar

ativamente

tanto

no

debate

sobre

“responsabilidade

de

proteger”

e

“responsabilidade ao proteger” (KENKEL, 2012b, p. 18) quanto com o envio de tropas. Embora haja a equivocada tendência de se afirmar que existe uma tradição de participação em operações de paz por parte do Brasil desde 1948 (pois somente houve participação relevante com tropas em sete missões da ONU), é fato que o Brasil, a partir da redemocratização, ampliou sua participação com o envio de tropas (cinco das sete participações ocorreram a partir da década de 1990). A seguir, um quadro com as missões da ONU para as quais o Brasil enviou tropas, o tipo de conflito, a duração da participação brasileira e a razão de saída4:

Missão

Tipo de

Duração da

Conflito

participação

Maneira de saída

brasileira UNEF I – First UN Interestatal

1957-1967

emergence force ONUC



UN Intra-estatal

Operation



sai

quando

ONU

quando

ONU

quando

ONU

quando

ONU

determina 1960-64

operation in Congo ONUMOZ

Brasil

Brasil

sai

determina

UN Intra-estatal

1994

in

Brasil

sai

determina

Mozambique UNAVEM III – UN Intra-estatal

4

1995-1997

Brasil

sai

Dados organizados a partir de informações disponíveis em Fontoura (1999, p. 134-137 e p. 215-217) e no sítio eletrônico do DPKO (2014).

Angola

verification

determina

mission III UNTAET

Interestatal –

UNMISET

UN intra-estatal

e 1999-2002 5

Brasil

sai

2002-2005

determina

2004-presente

-

quando

ONU

mission of support in East Timor MINUSTAH UNIFIL interim

– force

Intra-estatal

e 2011 – presente

UN Interestatal in intra-estatal

-

6

Lebanom

Como a tabela demonstra, a tradição brasileira é a de esperar até que a ONU determine o fim da missão, não cabendo ao Brasil o ônus de definir o motivo da saída. Entretanto, uma vez que o comando militar da MINUSTAH é brasileiro, e que a política externa dedica bastante atenção ao caráter brasileiro de fazer missões de paz (enfatizando que segurança e desenvolvimento andam juntos e que peacebuilding é importante), o fim da MINUSTAH trará ônus para o Brasil, uma vez que o êxito ou o fracasso da missão será diretamente relacionado com a atuação brasileira e com o êxito das tarefas de peacebuilding. Além disso, uma vez que o Brasil é o maior contribuinte com tropas da MINUSTAH, o país tem influência direta sobre a decisão de quando e de como encerrar a missão. A saída da UNIFIL, se vislumbrada, também apresenta dificuldades, uma vez que a missão foi iniciada em 1978 e não tem previsão para acabar. Isso significa que o Brasil terá duas opções: ou se compromete a participar da missão indefinidamente (o que é improvável), ou terá que definir, por conta própria, critérios para deixar a missão.

Perdas e ganhos para o Brasil Se as operações de paz atuais tendem a durar mais tempo e a terem mandatos mais ambiciosos, cujas tarefas são mais variadas e arriscam a vida das tropas e a reputação dos países que contribuem com tropas, por que os países continuam participando das missões da

5

O conflito no Timor Oriental foi inicialmente inter-estatal, em uma guerra de independência da Indonésia que terminou em 1999. Entretanto, em razão da destruição em que se encontrava o país após a independência e a sua instabilidade política, tensões intra-estatais foram as preocupações centrais das missões de 1999 a 2006. 6 O mandato original da UNIFIL demonstra que a missão buscava resolver o conflito entre israelenses e libaneses, mas em razão da guerra civil libanesa o mandato tem, atualmente, relação também com a resolução do conflito intraestatal.

ONU? Isso acontece porque a percepção dos benefícios com o envio de tropas supera a percepção dos malefícios. A literatura que trata especificamente sobre os impactos da participação em operações de paz na política doméstica do país que contribue com tropas é relativamente recente. Até 1990, a maioria dos estudos que tratavam do assunto eram estudos de caso, cujas preocupações estavam mais orientadas para os países que recebiam as missões. Um dos estudos mais bem elaborados que reúne as motivações políticas para o envio de tropas e discute os benefícios esperados é o de Bellamy e Williams (2013). Esses autores sintetizaram em um quadro os principais estímulos e inibidores ao envio de tropas (BELLAMY, WILLIAMS, 2013, p. 423, tradução nossa):

Setor

Motivações

Inibidores

Político

Prestígio nacional

Prioridades alternativas

Voz em assuntos internacionais /

Excepcionalismo

ONU

Ausência de pressão internacional

Pressão dos pares

Difícil política doméstica

Aprofundar outros objetivos da

Danos à reputação nacional

política externa Segurança

Resolver conflitos regionais

Preferências por soluções fora da

Contribuir com a paz global

ONU

Apoiar uma das partes do conflito Econômico

Recompensas financeiras: estados,

Impõe custos adicionais

ministérios, militares, indivíduos, empresas Institucional

Ganhar experiência operacional Evitar

o

envolvimento

Antipatia militar pela ONU dos

militares com a política doméstica

Nenhum incentivo interno pelas missões de paz da ONU

Melhorar interoperatividade Legitimar Forças Armadas Normativo

Bom samaritano / humanitário

Desconforto

Apoiar sistema ONU

normativa Desconforto

com

com

agenda

peacekeeping

robustas

Um dos benefícios que mais incentivam o envio de tropas, mencionado por Bellamy e Williams, são as recompensas financeiras. Alguns países, ao serem reembolsados pela ONU

pelo emprego das tropas, acabam lucrando com o envio (2013, p. 421). É o caso, por exemplo, de Bangladesh (ISLAM, 2010). Outros autores desenvolveram estudos sobre os benefícios e malefícios auferidos pelo Brasil ao se enviar tropas para operações de paz. Braga (2010) menciona como a MINUSTAH aumentou a cooperação entre os países da América do Sul que contribuem com tropas. Kenkel (2012b, p. 30), por sua vez, menciona:

Brazil has embarked upon a self-conscious and enthusiastic quest for more influence at the global level – in particular, a permanent seat on the UN Security Council - and has chosen peace operations as a primary locus of that striving 7.

Uziel (2010, p. 91), ao estudar o processo decisório brasileiro para a aprovação do envio de tropas para Angola, Moçambique e Haiti, conclui:

A análise do conjunto dos casos permite listar as seguintes motivações: 1) inserir plenamente o país no mecanismo de segurança coletiva das Nações Unidas, que voltou a ser atuante após o fim da Guerra Fria; 2) aumentar a influência brasileira nos órgãos de tomada de decisão das Nações Unidas; 3) cumprir os preceitos que regem as relações internacionais do Brasil constantes do artigo 4º da Constituição Federal; 4) reforçar a própria ideia de multilateralismo e inserir os interesses brasileiros entre aqueles que orientam as decisões, inclusive para minimizar questões como o double standards do CSNU; 5) validar a candidatura brasileira a membro permanente do Conselho de Segurança; 6) aproveitar oportunidades de cooperação identificadas no curso da implementação dos processos de paz; 7) proporcionar maior experiência internacional para as Forças Armadas .

Da perspectiva militar, Cavalcante (2010, p. 145) resume os objetivos almejados pelo país que envia tropas com sua participação em missões de paz: “guaranteeing states’ own security, testing operational aspects of military doctrines and strategies, forming and instructing national contingents, and/or guaranteeing their state of preparedness at comparatively low cost”8. Rocha (2009, p. 153), por sua vez, menciona o impacto da participação em operações de paz para o aumento da cooperação entre militares e diplomatas. São inegáveis os potenciais benefícios que a participação em operações de paz podem oferecer, tanto para a política externa como para a política de defesa de um país, e é impossível definir uma lista que consiga elencar todos os possíveis incentivos. Entretanto, é preciso compreender que enviar tropas para missões de paz pode causar problemas 7

O Brasil iniciou uma busca entusiasmada e deliberada por mais influência em nível global – em particular, um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU – e escolheu as operações de paz como um dos locus privilegiados para esse empreendimento.” Tradução nossa. 8 “garantir a segurança do próprio Estado, testar aspectos operacionais das estratégias e doutrinas militares, formar e instruir contingentes nacionais e/ou garantir um nível alto de prontidão a um custo comparativamente baixo”. Tradução nossa.

domésticos ao país que as envia, principalmente se as lideranças civis de um país não conseguem orientar a atuação das Forças Armadas, e se Ministério da Defesa e Ministério das Relações Exteriores não se coordenam bem. Para entender como esse processo de má orientação ocorre, será analisado o uso dos militares na garantia da segurança pública no Haiti e o transbordamento dessa atuação para a garantia da lei e da ordem no Brasil.

Operações de paz e a garantia da segurança pública A participação brasileira no Haiti tem sido usada para o aperfeiçoamento da doutrina em GLO (missões de garantia da lei e da ordem). “Segundo dados da imprensa, dos oitocentos militares mobilizados para atuar no Complexo do Alemão, 60% tinham experiência na MINUSTAH” (ARAÚJO, 2010 apud SOUZA NETO, 2012, p. 257). A maneira como a atuação em operações de paz tem impactado na profissionalização dos militares brasileiros tem trazido preocupações entre acadêmicos. Segundo Brancoli e Rodrigues (2012): A significant portion of the troops who acted in the so called ‘Pacification Force’ were MINUSTAH veterans, and had been trained and deployed in the Haitian slums, like ‘Cité Soleil’. This new scenario, namely the enmeshment of Peacekeeping training and internal security missions, raises new and important issues for further discussion9.

Alsina Jr (2008) demonstra uma posição mais crítica:

o caráter policial de operações desse tipo pode contribuir para reforçar as correntes de opinião que enxergam no envolvimento das Forças Armadas na segurança pública uma espécie de bala de prata para a resolução dos problemas de criminalidade registrados no Brasil.

Um dos autores que mais tem se aprofundado no tema do impacto das operações de paz nas relações civis-militares brasileiras é Sotomayor (2014). O autor afirma sobre o Brasil: The country’s engagement in MINUSTAH serves as a training ground for developing the military’s urban operations skills, with a view to using the forces for the so-called pacification of favelas (slums). In this case, the emphasis is not on developing new professional skills to help reorient the armed forces toward external missions; rather, the focus is on developing skills to reinforce the military’s traditional inward-looking approach (SOTOMAYOR, 2014, p.86)10. 9

“Uma porção significativa das tropas que atuaram na chamada ‘Força Pacificadora’ eram veteranos da MINUSTAH, e foram treinados e empregados nas favelas haitianas, como ‘Cité Soleil’. Esse novo cenário, a saber, o enredamento do treinamento para operações de paz com missões de segurança pública, traz novos e importantes temas para futuras discussões”. Tradução nossa. 10 “A participação do país na MINUSTAH serve como meio de treino a fim de desenvolver habilidades operacionais urbanas dos militares, com o objetivo de usar as forças para a assim chamada pacificação das favelas. Nesse caso, a ênfase não está em desenvolver novas habilidades profissionais que auxiliem a reorientar

O autor comenta que essa tendência de usar o militar para realizar tarefas de polícia está relacionada com a leniência das autoridades civis: “Decision makers have assumed a laissez-faire approach to issues regarding doctrine, training and organization for peacekeeping”11 (SOTOMAYOR, 2014, p.80). O uso da experiência no Haiti para aperfeiçoar a doutrina militar relativa a sua tarefa constitucional no Brasil não pode, entretanto, ser encarado como algo intrinsecamente negativo. Se é tarefa constitucional das Forças Armadas atuarem, quando solicitadas, na garantia da lei e da ordem, é importante que elas estejam preparadas para exercer essa função. O caput do artigo 142 da CF/88 é claro (BRASIL, 2014):

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem (grifo nosso).

É tarefa da liderança civil acompanhar as refomas da doutrina militar relativa a GLO e o tempo relativo gasto pelos militares no preparo para essa função em relação a suas outras funções. É também tarefa da liderança civil somente solicitar o apoio das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem em situações extremas (ROCHA, 2009, p. 39). É também tarefa da liderança civil repensar a possível alteração do artigo 142. Segundo OLIVEIRA (2004, p. 39):

O art. 142, cerne da relação das Forças Armadas com o chefe de Estado, é obscuro e infeliz, pois não estabelece um canal único e indiscutível de autoridade. De fato, as Forças Armadas podem ser objeto da iniciativa de qualquer dos três poderes da República para atuar na missão mais discutível e polêmica: a preservação da ordem no plano nacional.

Portanto, é o controle civil democrático que parece falhar no caso brasileiro. Se o Brasil decide participar de missões cujos mandatos colocam os militares atuando em funções de garantia da lei e da ordem, os líderes civis, com ênfase no papel do Ministério da Defesa e do Ministério das Relações Exteriores, devem monitorar o impacto dessa decisão na profissionalização dos militares.

as Forças Armadas para missões externas; pelo contrário, o foco está em desenvolver habilidades que reforcem a abordagem tradicional dos militares de olhar para dentro”. Tradução nossa. 11 “Os tomadores de decisões assumiram uma posição leniente em relação a temas como doutrina, treinamento e organização para operações de paz”. Tradução nossa.

Conclusão A atuação em operações de paz da ONU traz à superfície não somente o debate sobre como encerrar uma missão, e sobre quais benefícios podem ser observados nos países que enviam tropas: essa participação resgata o debate sobre quais são as missões primordiais das Forças Armadas na atualidade, e de que maneira se dá o equilíbrio de poder nas relações civis-militares no Brasil. As operações de paz transformaram-se desde o fim da Guerra Fria, podendo atualmente ter mandatos mais robustos e variados, obrigando os países que enviam tropas a fortalecer suas instituições democráticas se querem atuar com êxito nessas missões e se querem, também, receber todos os benefícios domésticos que a experiência em missões pode gerar. Segundo Sotomayor (2014, p. 4):

Peacekeeping has multiple, varying and divergent effects on mission orientation and training. The armed forces may embrace peacekeeping as a mission and train their soldiers accordingly, but doing so does not necessarily make soldiers more outward oriented nor change their inward-looking doctrines12.

É preciso que Ministério da Defesa e Ministério das Relações Exteriores ampliem sua cooperação no processo de tomada de decisão relativo ao envio de tropas brasileiras a missões de paz, a fim de que os interesses da política de defesa e da política externa se somem. É preciso que um dos critérios de seleção para esse envio de tropas seja a escolha de missões com mandatos variados, estimulando a atuação das três forças em todo tipo de tarefa. Os militares não devem associar as missões de paz somente com a garantia da segurança pública de um país nem com a construção de infra-estrutura: as missões de paz oferecem aos militares uma gama variada de atividades que podem servir para o aperfeiçoamento do treinamento e da doutrina militares. A atuação na MINUSTAH, dentre as diversas lições aprendidas e benefícios gerados, tem sido importante para ressaltar quão complexa é a atividade de peacebuilding e que reconstruir um país em convulsão política e social é uma tarefa de longo prazo sem claras vitórias a serem declaradas. A probabilidade é a de que, ao sair do Haiti, as tropas brasileiras tenham transformado não só a vida dos haitianos, mas também a dinâmica das relações civismilitares no Brasil.

Referências bibliográficas 12

“As operações de paz têm efeitos múltiplos, variados e divergentes no treinamento e na orientação da missão. As Forças Armadas podem adotar as operações de paz como uma de suas missões e treinar seus soldados de acordo com suas necessidades, mas ao fazer isso os soldados não necessariamente se tornam mais orientados para tarefas externas nem mudam suas doutrinas voltadas para dentro”. Tradução nossa.

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