Oposição religiosa e instituição eclesiástica no reino suevo: um debate com a produção historiográfica

October 27, 2017 | Autor: Nathalia Xavier | Categoria: Historiography, Historiografía, Galician, celtic and suevian suevi history, Reino Suevo
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OPOSIÇÃO RELIGIOSA E INSTITUIÇÃO ECLESIÁSTICA NO REINO SUEVO: UM DEBATE COM A PRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA Nathalia Agostinho Xavier1

1. Considerações introdutórias A presente comunicação tem como objetivo comentar algumas das principais obras e perspectivas sobre o reino suevo, com ênfase em textos voltados para o processo de fortalecimento da instituição eclesiástica na região, este último geralmente associado à figura do bispo Martinho de Braga. Igualmente, interessa-nos a questão da oposição religiosa, isto é, o tratamento e a descrição das fontes sobre as heresias e as superstições na Galiza. Assim, destacamos trabalhos preocupados com a atuação uniformizadora clerical, referentes ao período de ocupação e estabelecimento suevo na região. Observando uma parte desta produção, desenvolvida por teólogos e historiadores no decorrer do século XX, demonstramos tendências e apontamos para caminhos de análise possíveis, sublinhando campos ainda pouco explorados no estudo deste reino romano-germânico.

2. Produção historiográfica acerca da Igreja sueva A temática da dissidência religiosa e sua relação com o poder episcopal para o caso do reino suevo, constituído em meados do século V, recebeu pouca atenção de estudiosos. A historiografia hispânica concentrou-se, principalmente, nos vizinhos visigodos2 e, no que tange à questão religiosa, a Galiza foi estudada apenas como província, ainda que a partir do período em que comportava uma organização monárquica.

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Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) da universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 2 Em recente publicação, Pablo C. Díaz dedica um capítulo introdutório sobre as historiografias hispânica e portuguesa, afirmando que a primeira, em finais do século XIX e princípios do XX, apresentava construções teleológicas olhando para o passado suevo e visigótico preocupada, sobretudo, com a exaltação da nação espanhola. Apresentava-se uma linha contínua que explicasse o espírito nacional, este último uma abstração que estaria presente antes da própria existência geopolítica da Espanha. Nesta linha, havia duas correntes: a que determinava o elemento romano como origem da Espanha, deturpado apenas pela chegada de outros povos; e a que via o mesmo processo na cultura germânica, comemorada nestas produções. DÍAZ, Pablo C. La Historia del reino suevo, entre la indiferencia y la mitificación. In: ______. El reino Suevo (411-585). Madrid: Akal, 2011. p. 5-34.

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Os estudos acerca do reino suevo foram inaugurados por uma historiografia conservadora, em especial, se considerarmos aquela voltada especificamente para a atuação de Martinho de Braga na Galiza. Descrito como principal responsável pela cristianização da região, tal personagem teve sua história contada e recontada por um ponto de vista apologético. Nos anos 50, inclusive, viu-se uma série de escritos relativos a um furor comemorativo dos 1400 anos da chegada do bispo à região.3 Nesta “corrente”, estão incluídos trabalhos oriundos de uma tradição católica e de profissionais vinculados à Igreja portuguesa. De fato, grande parte da produção sobre os documentos eclesiásticos foi realizada no âmbito da Faculdade de Teologia de Braga.4 José Madoz, por exemplo, ressaltou o caráter herético do priscilianismo, doutrina recorrente na Galiza5 para criar uma continuidade entre os esforços da Igreja daquele período e a do século XX. Assumiu o discurso da verdade das múltiplas acusações realizadas por diversos autores da patrística,6 pautando-se na importância desta heresia em particular, pois a seu ver, a oposição a ela teria gerado um crescimento do pensamento clerical, propiciando um melhor entendimento da ortodoxia católica e preparando caminho para o “século de ouro da patrística espanhola”.7 Retrata, então, o que seria um contexto de fortalecimento do catolicismo, pela riqueza da cultura teológica da época. Os equívocos deste tipo de olhar sobre as fontes são muitos e, para além da exaltação da produção eclesiástica sueva por meio de parâmetros valorativos, o autor negligencia o caráter volátil da defesa/formulação de uma ortodoxia, observando-a como algo encerrado e partilhado, prestes a ser lapidado por meio de palavras, que seriam mais importantes por terem sido 3

Para além de reuniões como o I Congresso Internacional de Estudos Martinianos, podemos citar a pertinência da edição de Barlow dos documentos escritos por Martinho de Braga, publicada em meio a este ambiente comemorativo, em 1950. MARTINI EPISCOPI BRACARENSIS. Opera Omnia. Edidit Claude W. Barlow. New Haven: The American Academy in Rome, 1950. 4 Trabalhos produzidos dentro desta perspectiva não estiveram limitados aos anos 50. Textos foram produzidos, pelo menos, até a década de 90, como a análise da atuação de Martinho por Manuel da Silva Gomes. GOMES, M. J. da Silva. São Martinho de Dume: a sua ação litúrgicopastoral. In: Congresso Internacional do IX Centenário de dedicação da sé de Braga. 1990, Braga. Atas... Braga: Universidade Católica Portuguesa, 1990, v.3, p.157-166. 5 MADOZ, José. Arrianismo y priscilianismo en Galicia. Bracara Augusta, Braga, v.8, p. 68-87, 1957. 6 “La voz de la tradición, por outra parte, es demasiado grave y múltiple en sus acusaciones para no verla fundada en la verdad.” Id. Ibid., p. 74. 7 Id. Ibid. p. 84.

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deixadas à posteridade como modelos do pensamento cristão. Como percebido, Madoz parte de uma perspectiva parcial, a da religião e a da demonstração de seu valor em uma sociedade. Neste contexto, os estudos estiveram, sobretudo, centrados na figura de Martinho de Braga e limitados a uma exaltação de suas características pessoais ou mesmo “psicológicas”.8 O intuito era apresentá-lo como agente principal da cristianização da Galiza, processo histórico muito ressaltado pelas palavras desta corrente, porém visto de maneira teleológica e fatalista. Neste ponto, autores como David de Azevedo se estendem em considerações acerca da grandiosidade e clareza teológica de Martinho,9 ou prolongam-se sobre a importância de sua atuação frente a outros bispos e monges posteriores a ele, posicionando seus esforços como predecessores de um trabalho de cristianização e organização institucional maior.10 Com efeito, o metropolita de Braga é caracterizado de maneira apologética, sendo apresentando com herói nacional, de acordo com uma historiografia que interpretou literalmente as palavras de descrição utilizadas por Gregório de Tours,11 fixada na busca pelas origens portuguesas por meio da religião, abrindo espaço para afirmativas como as seguintes: “S. Martinho de Dume é, sem dúvida, um dos mais ilustres de quantos prelados Braga alguma vez teve. Não era filho da Lusitânia, mas foi mais que isso: comportou-se como verdadeiro filho, como verdadeiro herói”12 “(...) não é descabido terminar pondo em relevo o talento de organizador e a bagagem cultural de S. Martinho de Dume,

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Em sua preocupação em destacar as qualidades e limites de Martinho de Braga como teólogo, Azevedo afirma: “Tratando-se dum homem como S. Martinho de Dume, cuja produção científica (sic), pelo menos a que nos resta, é relativamente pequena, tal caracterização psicológica seria ainda de grande utilidade, porquanto permitir-nos-ia julgar duma actividade intelectual possivelmente existente, embora historicamente de difícil verificação.” AZEVEDO, P. Dr. David de. S. Marinho de Dume como Teólogo. Bracara Augusta, Braga, v.8, p. 9-28, 1957. p. 9. Grifo nosso. 9 AZEVEDO, P. Dr. David de. op. cit. 10 “Doutra parte, suas obras, bem como a análise doutrinal delas, revelou, não são desprovidas de interesse para o teólogo. O texto do símbolo apostólico é importante para a história dessa regra de fé na Península, e até para a da formação da sua forma actual.” PÉREZ DE URBEL, Justo. San Martin y el monaquismo. Bracara Augusta, Braga, v.8, p. 7-29, 1957. p. 27-28. 11 Isto porque uma das fontes que a que temos acesso para o estudo sobre a vida e obra de Martinho de Braga é a Historia Francorum de Gregório de Tours. 12 O grifo é nosso e a citação é pertinente ao encerramento de seu texto, no qual propõe uma relação entre o bispo da Panônia e a restauração da Arquidiocese bracarense cinco séculos depois. Desta forma, estabeleceu-se uma linha de continuidade institucional. GOMES, M. J. da Silva. Op. Cit., p. 166.

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certamente um dos maiores estadistas que atuaram no território que hoje é Portugal.”13

Visualiza-se, portanto, um esforço de cunho institucional por trás destes trabalhos e, considerando a pouca atenção que este reino recebeu da historiografia,14 análises menos superficiais que se preocupassem mais com problemáticas caras às ciências sociais e menos com objetivos préestabelecidos de enaltecimento de uma religião ou de uma pátria fizeram-se necessárias. Com efeito, em certo momento, o foco na atuação de apenas um agente se perdeu e os estudos acerca de grupos sociais, bem como da relação entre os âmbitos político e religioso, foram as temáticas privilegiadas quando a influência das correntes marxistas e de uma visão mais sociológica das experiências religiosas15 deu voz a um grupo de trabalhos preocupados, sobretudo, com o priscilianismo, doutrina surgida e perpetuada na região, condenada como herética. Foi, assim, caracterizada como movimento social e interpretada como fruto de demandas pertinentes a uma configuração estrutural da sociedade, em muito relacionada a questões econômicas. O que observamos, para além de um amadurecimento das análises anteriores sobre a Igreja no reino suevo, é a busca comum por elementos que

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O grifo é nosso e a citação encerra um texto no qual Amaral procurou, com consideráveis problemas na interpretação documental, delimitar questões de cunho sócio econômico na região da Galiza. AMARAL, João Ferreira do. O reino suevo (550-585): alguns condicionalismos socioeconomicos. Bracara Augusta, Braga, v. XXXVI, p. 267-284, 1982. 14 Sobre a questão, escreveu Leila Rodrigues, em capítulo-síntese sobre a produção acerca deste reino. Neste sentido, afirmou: “O comportamento da historiografia parece indicar que, devido ao fato de os suevos terem sido incorporados pelos visigodos, portanto, claramente inferiores do ponto de vista militar, deveriam ser tratados como um grupo de segunda categoria, sobre o qual se compensaria debruçar apenas na medida em que a sua história se relacionasse com a visigótica." SILVA, Leila Rodrigues. Monarquia e Igreja na Galiza na segunda metade do século VI: o modelo de monarca nas obras de Martinho de Braga dedicadas ao rei suevo. Rio de Janeiro: EdUFF, 2008. p. 15. 15 Podemos destacar a influência de uma corrente historiográfica, em muito representada por um colóquio francês cujos resultados foram publicados com organização de Jacques Le Goff. Neste momento, as heresias foram pensadas por sua inserção em contextos específicos, permeados por conflitos sociais. Assim, são observadas como demonstrativas de tensões e demandas conjunturais, de cunho social, associadas a um descontentamento em relação à própria Igreja como instituição e/ou à sua hierarquia. As principais questões levantadas são aquelas relativas à origem do herege, ao seu vínculo com uma comunidade ou grupo social e, principalmente, ao seu papel no desenrolar de processos e contextos tomados como pressupostos neste tipo de análise. LE GOFF, Jacques. (org.). Herejias y sociedades en la Europa pré-industrial (siglos XI-XVIII). Comunicaciones y debates del Coloquio de Royamont presentados por Jacques Le Goff. Madrid, Siglo XXI, 1962.

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justificassem a presença do priscilianismo – geralmente, explicada por fatores como a ruralização da Galiza e sua fraca romanização.16 Tais discussões sempre tangenciam ou reforçam a ideia que as diferenças religiosas se pautam em oposições outras, seja entre concepções ascético-radicais e hierárquicas,17 seja entre o âmbito rural e o urbano, ou mesmo entre grupos sociais, como camponeses e senhores ou a elite eclesiástica e os clérigos marginalizados em áreas rurais. Pode-se dizer, por esta via, que há uma questão a ser (re) considerada acerca desta perspectiva: a delimitação, demasiado rígida, entre grupos dicotômicos, desconsidera a fluidez com a qual as questões acerca da fé devem ser analisadas. De outra forma, as nuances da produção destas fontes e a flexibilidade das relações políticas são, comumente, negligenciadas. Em síntese, no que tange à rejeição e caracterização de dissidências religiosas pela Igreja local, certas condições culturais18 e sócio econômicas foram precocemente associadas a escolhas e experiências religiosas. Outrossim o camponês ficou invariavelmente relacionado à idolatria e ao paganismo, e aceitou-se a caracterização supersticiosa do priscilianismo como forma de explicação de sua perpetuação na Galiza. Por outro lado, cabe propor uma noção um pouco diferenciada: a posição em uma hierarquia social não define a crença, e sim a habilidade de conferir o caráter de verdade a uma 16

A propagação do priscilianismo na região foi explicada desta maneira por diversos autores. Dentre outros, ver: LORING GARCÍA, María Isabel. La difusion del cristianismo en los medios rurales de la Península Iberica a fines del Imperio Romano. Studia Historica, M. Antigo. Salamanca, v. 4-5, n. 1, p. 195- 204, 1986-1987. p. 195.; PLÁCIDO SUÁREZ, Domingo. El cristianismo y las mutaciones sociales del noroeste pensinsular. Antig. Crist. n. 7, p. 197-205, 1990. p. 197-198; ROEDEL, Leila Rodrigues. Movimento Social e Contestação religiosa: As Duas Fases de uma Historia. Revista de História. Vitória: departamento de História da UFES, n. 4, p.87-96, 1995. 17 Esta questão é tangenciada por outros autores, neste texto já ressaltados, mas neste ponto se destaca como escopo de artigo escrito por Plácido Suárez, acerca da cristianização da região peninsular, fornecendo uma caracterização ascética para o priscilianismo e explicando seu afastamento às margens da instituição por meio da oposição entre seu ascetismo rigoroso e um monasticismo mais voltado para elites, este alcançado, segundo o autor, por Martinho de Tours. PLÁCIDO SUÁREZ, Domingo. op. cit. 18 Sobre a crítica ao ambiente cultural “atrasado”, o tradutor do sermão De Correctione Rusticorum, escrito por Martinho de Braga, ressalta em seu texto “A cultura bracarense...” a necessidade em rever uma noção de “atraso” cultural para a região, não pela via da crítica ao evolucionismo nesta concepção, mas pelo levantamento da hipótese de que o conhecimento do grego por Pascásio, monge até então avaliado como simples discípulo de Martinho, era pertinente a um ambiente de educação em comunidades monásticas e circulação de textos vários. Reforça a ideia pelo argumento da rapidez dos resultados obtidos. NASCIMENTO, Aires A. A Cultura bracarense no séc. VI: uma revisitação necessária. Notas Diplomáticas. Estudos em homenagem ao professor doutor José Marques, Lisboa, v.1, p. 87-104, 2006.

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forma de fé, configurada e reconfigurada em meio a deliberações de uma elite episcopal. Digno de nota, o lugar-comum da associação campo/paganismo, observado, também, em meio à obra pastoral de Martinho de Braga, deve e pode ser revisto. Em especial se atentarmos para a análise do sermão por ele escrito, o De Correctione Rusticorum. Muito estudado por sua admoestação aos idólatras cristãos, o documento possui uma introdução na qual Martinho expõe sua preocupação em adaptar o discurso ao público, simplificando-o. Trata-se de um recurso de adaptação já utilizado por Agostinho de Hipona que, juntamente com outros aspectos presentes no texto, demonstra a influência deste sobre o escrito do bispo bracarense.19 Neste sentido, relembra-se que os rustici, em Agostinho, não são referentes às gentes rurais, mas sim aos ignorantes no que tange ao catecumenato cristão.20 Com efeito, a vinculação entre ignorância e superstição é o mote da argumentação do bispo bracarense, e a possibilidade de ampliação de um público destinatário, antes muito restrito, é importante ponto de partida para novas hipóteses.21 Tais questionamentos são pertinentes a partir de um segundo olhar sobre as fontes e de defesa de uma metodologia que se prenda, também, à lógica social de produção daqueles documentos. Isto é, que se dedique a observar os porquês de alguns posicionamentos, atentando para as características específicas de cada gênero literário, bem como para as motivações de seus produtores. Sobre tal ponto, e também se dedicando à leitura do sermão supracitado, o historiador José Meirinhos aborda o problema da literalidade, indo em caminho oposto ao de historiadores do período, que observam neste

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NASCIMENTO, Aires A. O De Correctione Rusticorum: forma, conteúdos, intencionalidade. In: MARTINHO DE BRAGA. Instrução pastoral sobre superstições populares. De Correctione Rusticorum. Edição, tradução, introdução e comentários de Aires A. Nascimento, com a colaboração de Maria João V. Branco. Lisboa: Cosmos, 1997. p. 40-41. 20 Ver: MEIRINHOS, J. F. Martinho de Braga e a compreensão da natureza na alta Idade Média (séc. VI): símbolos da fé contra a idolatria dos rústicos. Estudos em homenagem ao Professor Doutor José Marques Porto: Ed. da Faculdade de Letras da Universidade do Porto: 2006. 4 V. v.2. p. 395-414; NASCIMENTO, Aires A. op. cit.. p. 40-41. 21 Há de se atentar para o fato de que não há uma divisão campo/cidade vista de forma dicotômica, pois para o período a separação entre os espaços rural e urbano não pode ser considerada de forma dicotômica. A despeito da tradução do documento, que especificamente se refere às “gentes rurais” [rusticorum], pode-se ressaltar que este detalhe deve ser entendido como indicativo de que parte do público ao qual o sermão destinava-se consistia nas populações fixadas em regiões relativamente distantes das igrejas episcopais e, principalmente, de Braga.

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um relato descritivo do qual seria possível apreender uma cultura ou um apanhado de costumes, afirmando: “O sermão não é um exercício descritivo de práticas populares, mas usa o impulso destas para estabelecer, com a esperada adesão de seu auditório, um modo de sobreposição, transferência e substituição em que a fé cristã vai ocupar o espaço da crença nas superstições que, segundo Martinho, o rústico deve abandonar.”22

Não se trata, é importante sublinhar, de uma crítica à análise da documentação por sua consideração prévia de contextos sócio-políticos, mas sim de um reposicionamento da problemática. Cabe destacar a ainda tímida produção sobre a questão da oposição às dissidências religiosas. Como antes dito, o sermão De Correctione Rusticorum recebeu alguma atenção, mas foi analisado, em grande parte, como “retrato” da realidade religiosa da região;23 e o priscilianismo, por sua vez, também foi consideravelmente trabalhado, mas em grande parte como “permanência” nos campos, – descrita por uma repetição da documentação eclesiástica opositora – ou para verificação de seu caráter mais ou menos ortodoxo – como se o ortodoxo estive dado e encerrado como um conjunto de normas homogêneas prontas a serem seguidas ou não. Talvez se distanciando de toda esta corrente, a autora Maria Escribano Paño tem mais a colaborar sobre a temática. Especialista no fenômeno do priscilianismo, sintetiza as principais contribuições das tendências citadas. Por um lado, reconhece no aparecimento do priscilianismo o indício de uma desintegração do coletivo eclesiástico, sendo sua rejeição por um grupo de bispos denotativa de tensões sociopolíticas; por outro lado, está menos inclinada a buscar as motivações para o surgimento da seita que a investigar como a atribuição desta ao maniqueísmo, dentre outros elementos, funcionam de forma a excluir opositores, numa lógica de definição e negativização da “alteridade religiosa”. Do mesmo modo aponta para a ausência de uma definição clara da ortodoxia e seus limites e para a dificuldade de delimitação do

que

seria

heresia.

Ambas

as

categorias

estariam

associadas,

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MEIRINHOS, J. F. op. cit.. p. 401. Dentre os autores que partilham esta concepção, Pio Alves de Sousa é sublinhado por resumir tal pensamento na seguinte exposição: “Os conteúdos das obras que chegaram até nós incidem, prevalentemente, em questões morais, ascéticas e de disciplina. Ajudam também a reconstruir a vida de um povo nos seus costumes ainda marcados pelo paganismo.” SOUSA, Pio G. Alves de. O baptismo em S. Martinho de Dume. Communio et Sacramentum. En el 70 aniversaio del Profesor Pedro Rodríguez. Pamplona, p. 367-375, 2003. p. 369. 23

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respectivamente, à autoridade episcopal e à quebra desta, e tal aspecto apareceria com mais pertinência que o próprio conteúdo doutrinal. 24 A priori, há de se reconhecer que a cristianização da região, ainda que heterogênea, não pode ser pensada em termos simplistas ou a partir de um gráfico evolutivo; ou seja, reforçar um entendimento único da ortodoxia, associando-a a um todo coeso de clérigos sofrendo a oposição de ouro grupo, tão superficialmente definido quanto, é desconsiderar a volatilidade das decisões internas ao corpo clerical, e a própria possibilidade de acordos, conflitos e demandas institucionais de curto prazo. Sem completamente responder a esta crítica, uma historiografia dedicada às questões políticas prementes e lidas na escassa documentação vem sendo produzida. Alguns deles pouco se diferenciam de uma historiografia tradicional e se limitam a considerar a sucessão de reis suevos e a união Igreja-monarquia por uma análise superficial. Em geral, comenta-se a sucessão de reis e suas escolhas religiosas como estratégias políticas de alinhamento com elites locais ou outros reinos.25 Problemáticas interessantes são destacadas, mas pouco aprofundadas, aparecendo como respostas a silêncios documentais em trabalhos que apresentam uma vontade de organização dos dados cronológicos pela leitura de (quase) todas as fontes produzidas sobre a região/período.26 As ações da Igreja como instituição e a própria vinda do metropolita bracarense são pensadas, dentro deste escopo, por interpretações de cunho diplomático. Deste modo, muito se comentou o papel das conversões dos reis ao arianismo e ao cristianismo niceno, como formas de alinhamento com as Gálias católicas ou relativas à expansão justiniana, mesmo que, a nosso ver, 24

ESCIBANO PAÑO, María Victoria. Alteridad Religiosa y maniqueísmo en el siglo IV d.C. Studia historica. Historia antigua, n. 8, p. 29-47, 1990. ___. Herejía e poder en el s. IV. In: CANDAU MORÓN, J. M. et al (org.). La Conversión de Roma: Cristianismo y Paganismo. Madrid: Clássicas, 1990. p. 151- 189. 25 Para Garcia Moreno a conversão de Requiário era também uma busca por “(...) um certo entendimento com a poderosa hierarquia católica galacia; para Pablo C. Díaz, a segunda conversão de um monarca suevo ocorreria por conta de “(...) um enfrentamento com a monarquia visigoda ariana. DÍAZ MARTINEZ, Pablo C. La monarquia sueva en el s. V. Aspectos políticos y prosopograficos. Studia Historica. Historia Antigua. Salamanca, v. 4/5, n. 1, p. 205-226, 1986-1987. p. 224. GARCIA MORENO, Luis A. La Iglesia y el cristianismo en la Galecia de época sueva. Antig. Crist. Murcia, v. 23, p. 39-55, 2006. p. 45. 26 Ver, por exemplo: GARCIA MORENO, Luis A. Op. Cit.; GONZÁLES LÓPEZ, Emilio. Historia de Galicia. La Coruña: La voz de Galicia, 1980; PALLARÉS MENDEZ, Carmen. Edad Media. In: Galícia Eterna. Barcelona: Nauta, 1984. p. 93-101.

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os dados sejam insuficientes para atestar uma aliança entre reinos apenas pela escolha religiosa.27 A relação entra a Igreja e a monarquia, de fato aprofundada e observada em nível local, ganhou proeminência com os estudos de Leila Rodrigues da Silva. Por intermédio dos quatro escritos do bispo, dedicados ao rei Miro e voltados para questões de ordem moral,28 a autora demonstrou o processo de aproximação entre as duas instituições. A construção de um ideal de conduta para o cristão, com vistas à formulação de um modelo de monarca que, seguindo estes parâmetros e virtudes, selaria seu compromisso com Deus, serviram a este propósito e ao consequente fortalecimento de ambas.29 Entre as recentes contribuições, é importante perceber que o que tem sido escrito sobre estes personagens, cujos protagonismos nos processos históricos estudados começam a ser observados como evidência de motivações e interesses destes agentes por sua inserção institucional, esvaziando um “individualismo” nas ações do bispo-abade e a exacerbação de suas qualidades intelectuais,30 e preocupando-se em considerá-lo pelo cunho coletivo de sua obra.31 Nesse ínterim, Ubric Rabaneda, autora do recente texto “Los Limites del poder: Iglesia y disidencia religiosa en el siglo V hispano” não parece inovar. A associação entre político e religioso aparece, ao que tudo indica, como parte de um processo que tem como marco o período constantiniano. Assim, sua análise parte do pressuposto de identificação entre Igreja e Estado, no caso desde o Império Romano, para explicar o acirramento das disputas em torno da 27

Por outro lado, quando ocorre a conversão de Remismundo ao arianismo, podemos atestar com mais propriedade a relação entre os reinos suevo e visigodo, de acordo com a presença de um bispo ariano na corte sueva. 28 No caso, Formula vitae honestae, De superbia, Pro repellenda iactantia e Exhortatio humilitatis. 29 Tal é a hipótese central trabalhada em sua tese doutoral. Ver: SILVA, Leila Rodrigues. op. cit. 30 Recusando-se a ler literalmente os elogios utilizados por Venâncio Fortunato para descrever Martinho de Braga, apresentados como pertinentes a uma lógica de produção daquele material ou como topos, Aires Nascimento chega a afirmar que o bispo “não revela conhecimento particular do grego (...) no conjunto, a sua cultura monástica não revela particular originalidade e até apresenta erros (...)”. Para além de uma revisitação ao lugar-comum da formação oriental monástica de Martinho, o autor segue na contracorrente de grande parte dos estudiosos de sua vida e obra, por não preocupar-se com a exaltação de suas qualidades intelectuais, relativizando-as. NASCIMENTO, Aires A. op. cit., p. 99. 31 Melhor se exemplifica a afirmativa também por meio do trabalho de Leila Rodrigues, em que o bispo foi destacado por seu papel de porta-voz das autoridades episcopais, uma vez reconhecido por sua autoridade frente à hierarquia eclesiástica e como representante dos seus anseios. Ver: SILVA, Leila Rodrigues da. op. cit. p. 72-76.

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oposição à dissidência religiosa,32 servindo a um pressuposto geral: o de ampliação das atribuições e poderes dos bispos no Ocidente após a configuração de reinos romano-germânicos. Dentre as produções mais recentes, o trabalho de fôlego de Pablo Díaz, publicado em 2011, parece-nos indicativo de novas tendências e, no entanto, não supera o tom fatalista sobre a cristianização da região. O uso de termos como “residual” e “sobrevivente”, associados às práticas pagãs e/ou heréticas, aparece constantemente no capitulo dedicado às querelas de ordem religiosa.33 Entretanto, sua contribuição nos questionamentos acerca da historiografia anterior e no apontamento de caminhos a serem pesquisados devem ser considerados. Criticando os estudos de cunho ideológico-nacionalista e ressaltando a necessidade de revisão das fontes atualmente publicadas em novas edições, realça a importância do estudo do reino suevo “descolado” de preocupações acerca da origem de uma nação ou da construção de uma. O vínculo passado-presente-futuro é descartado como perspectiva para estes estudos e o historiador propõe uma leitura que observe aquele contexto “por ele mesmo”, visando a compreender suas especificidades nos campos do social, político ou cultural. Seu ponto de vista alcança, inclusive, certa radicalização quando afirma que agora “estamos em condições de construir uma verdadeira história do reino suevo.”34 Defende, assim, a urgência e a pertinência de análises que se pautem em questões mais atuais e em novos métodos de crítica documental.

3. Considerações Finais Num trabalho de síntese, por meio da seleção de alguns textos, fez-se possível apresentar tendências e correntes historiográficas referentes ao estudo da Igreja no reino suevo. Mais especificamente, tratamos daqueles voltados para a questão da organização eclesiástica na região e da oposição 32

Segue a linha de Fernandez Ubiña, que se debruça sobre o longo processo de cristianização do Império Romano com pressupostos semelhantes, apresentando um contexto de aproximação entre a Igreja e a práxis social romana que teria contribuído para um ambiente de intolerância e condenação de doutrinas como heréticas. Ver: FERNANDEZ UBIÑA, José. Privilegios episcopales y genealogía de la intolerancia Cristiana en época de Constantino. PYRENAE, v.1, n.40, p. 81-119, 2009. 33 DÍAZ, Pablo C. El control de las conciencias. In: ______. El reino Suevo (411-585). Madrid: Akal, 2011. p. 207-253. 34 DÍAZ, Pablo C. Op. Cit. p. 34. Grifo e tradução nossos.

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religiosa a hereges e supersticiosos. Neste sentindo, expusemos três tendências desta produção: a apologético/nacionalista, oriunda de uma perspectiva

católica

conservadora,

cuja

análise

personalista

dos

acontecimentos era constante; a da História Social, em muito preocupada com a heresia priscilianista e o com o contexto que teria gerado o movimento e; por fim, a pertinente a um recorrente esforço de compreensão dos acontecimentos por meio do prisma do campo político-institucional. Sem defender uma lógica de contraposição cronológica, que significasse a substituição de uma tendência historiográfica pela seguinte, ressaltamos apenas a existência de diferentes interesses e perspectivas de estudo, considerados para que pudessem ser aplicados ou não. Não limitado a um apontamento de tais correntes, os comentários foram feitos com o objetivo de elaborar uma percepção crítica acerca das possibilidades no estudo da questão da dissidência religiosa. Deste modo, defendemos uma leitura que considere a fluidez das delimitações entre ortodoxo e heterodoxo, pela inserção do processo de cristianização da Galiza em um contexto de relações de poder específicas.

4. Bibliografia

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