Oralidade e tradição na poesia da angolana Paula Tavares

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Oralidade e tradição na poesia da angolana Paula Tavares Dr.ª Maria de Nazaré da Rocha Penna1 Prof. ª Visitante de la UNILAB (Universidade Internacional da Integração da Lusofonia Afro-brasileira) [email protected] [email protected] RESUMO Em áreas rurais de muitos países da África negra, perduram tradições ancestrais baseados na diferença entre os gêneros, extremante opressoras da condição feminina. No sul de Angola, práticas ritualísticas para a subjetivação da tradição demarcam os limites da atuação social da mulher ao âmbito doméstico. As culturas baseadas na oralidade têm uma força de coesão interna que sustenta e preserva a manutenção dessas práticas. A poetisa angolana Paula Tavares, em diálogo com a oralidade, nos revela o peso dessa opressão e, ao mesmo tempo, uma sensibilidade sinestésica de percepção do mundo. Analisando algumas poesias dessa autora, propomos refletir não só sobre a condição feminina e o papel da oralidade, mas também sobre o embotamento dos nossos sentidos na nossa civilização eminentemente visual. Nesse aspecto, a troca de saberes entre culturas aparece como experiência extremamente enriquecedora para ampliarmos o conhecimento da nossa condição humana. PALAVRAS-CHAVE: Condição Feminina, Tradições Africanas, Oralidade, Literatura Angolana, Poesia, Cultura e Tradição Ocidentais. INTRODUÇÃO Nas sociedades tradicionais africanas, as mulheres exerciam o triplo papel de guardiãs do fogo, da água e da terra, com a dupla responsabilidade de manter a fecundidade das colheitas e das gerações humanas. Para Ali A. MAZRUI (2011: 1107), a África tradicional ofereceu magníficos exemplos de interação entre os sexos, porém os desajustes sociais provocados pelo colonialismo levaram às mulheres a situações dramáticas de privação. Muitas instituições que regulavam as relações entre os gêneros colapsaram, de modo geral desfavorecendo a condição feminina. Terence RANGER (1997: 264/265/266) menciona, inclusive, que, no período colonial, os homens reforçaram sua autoridade sobre o sistema econômico e social em transformação, queixando-se que as mulheres não respeitavam a tradição. Para esse autor, aproveitando-se de uma situação de mudança social, os homens impuseram um controle muito mais intenso sobre as crenças religiosas e a organização política. A

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Autorizo a publicação em qualquer formato que o Comitê Acadêmico defina.

entrada no mundo africano do “Cristianismo, do Comércio e da Civilização”,2 proporcionou aos homens novas formas de riqueza e poder negados às mulheres, que se viram despojadas de aspectos que lhes favoreciam na sociedade africana tradicional. No maior esforço de compreensão histórico-cultural do continente - História Geral da África – UNESCO -, do qual participou Mazrui, os historiadores reportaram sucintamente o papel das guerrilheiras nas lutas pela independência, os casos especiais de mulheres como representantes diplomáticas de alguns países no período pós-independência e outras contribuições pontuais. Contudo, é como se não existissem para colaborar na construção interna dos estados independentes, que tivessem sido alijadas da vida pública, - e o foram efetivamente. Inclusive, é o que se poderia supor apenas verificando a ausência da participação feminina na obra mencionada, que registra episodicamente a presença feminina em tópicos elaborados por homens, mas não se encontra a colaboração de estudiosas e pesquisadoras. O silêncio que se avulta sobre a participação feminina na construção dos Estados africanos, nos reportam aos fundamentos onde as culturas de todo o mundo fincaram suas raízes e cimentaram seus alicerces, - a polarização do mundo da vida no que concerne ao masculino e feminino. Na obra A dominação masculina (2012: 51/52), Pierre BOURDIEU identifica que a agorafobia feminina pode subsistir mesmo depois de haver sido abolidas as proibições mais visíveis, conduzindo as mulheres a se excluírem motu proprio da ágora. A violência simbólica a que foram submetidas as coloca além da possibilidade de mudarem seu estatuto social pelo exercício da consciência e da vontade. Segundo o autor, a consciência mesma foi moldada de tal modo que não basta esclarecer a mistificação do poder onipresente dos homens, porque a autoestima que elas constroem para si mesmas, assim como o conceito sobre o opressor, são elaborados pelas condições sociais que os dominadores as fizeram adotar. 1- Uma voz poética Contudo, dez anos depois da independência de Angola, a partir das trincheiras da arte, se escutou a voz poética de Paula TAVARES3 evocando os rituais e o cotidiano da mulher

* Professora Visitante da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). 2 Ranger se refere a uma pesquisa não publicada de Richard Stuart sobre os Chewa da África centrooriental. 3 Paula Tavares é historiadora (estudou em Luanda e Lisboa). Em 1996, concluiu o mestrado em Literaturas Africanas.

angolana do mundo primitivo rural. Porém, o que se encontra na sua poesia, não é simplesmente uma cultura que poderia ser considerada exótica para o gosto ocidental, mas sim sentimentos ancestrais que remetem à condição feminina em estado puro, como podemos identificar no seguinte poema da sua primeira publicação, Ritos de Passagem, de 1985: As coisas delicadas tratam-se com cuidado. Filosofia Cabinda Desossaste-me cuidadosamente inscrevendo-me no teu universo como uma ferida uma prótese perfeita maldita necessária Conduziste todas as minhas veias para que desaguassem nas tuas sem remédio meio pulmão respira em ti o outro, que me lembre mal existe hoje levantei-me cedo pintei de tacula a água fria o corpo aceso não bato a manteiga não ponho o cinto VOU para o sul saltar o cercado.

O poema requer algumas considerações: segundo Rosângela MANTOLVANI (2003/2007), o provérbio da filosofia cabinda, usado como título, parece um toque de ironia frente ao tema articulado por Paula Tavares. Os versos descrevem um “eu feminino” que sofre uma desconstrução e que é retratado pelas práticas atribuídas às mulheres, como bater a manteiga e usar o cinto identificador de seu estado civil; rituais que não mais serão cumpridos. A palavra tacula se refere ao nome de una árvore, cuja madeira solta uma tinta vermelha na água, e serve de metáfora da menstruação feminina. A cerca e o cercado, recorrentes nos poemas de Tavares, são os limites, as fronteiras que

devem ser ultrapassadas para que esse “eu feminino” se liberte dos valores da tradição, valores definidos pelas relações homem-mulher: transpor o cercado é a grande transgressão. Voltando à análise sociológica, uma descrição recente da condição feminina em Angola aparece na investigação de Eugénio ALVES DA SILVA (2011). O autor descreve a situação precária no que se refere aos direitos humanos e às condições de vida material da mulher no meio rural, no qual as práticas socializadoras dos rituais é um dos fatores mais importantes para manter a coesão das comunidades, o que, por sua vez, preserva o descrédito e o desprezo reservado à condição feminina. A existência das mulheres é pautada pela invisibilidade nos assuntos públicos da vida comunitária, mas elas não são poupadas da luta pela sobrevivência econômica. A mulher angolana do campo participa da economia informal, comercializando os produtos que cultiva, e contribui de forma significativa para a renda da família. Os pesados encargos e responsabilidades de trabalho, da educação dos filhos e da gestão doméstica e econômica da família, limitam e sufocam a mulher no mundo privado e, para apoiá-las, arrastam as filhas que são levadas a abandonar a educação formal das escolas. Para o autor, a tendência para a manutenção dessa situação é muito forte, especialmente pelo índice de analfabetismo: 66% entre as mulheres, e 46% entre os homens (UNICEF, 2011: 96). A Educação Tradicional Africana (ETA), segundo o mesmo autor, está estruturada na diferença de gênero. Além disso, as populações rurais vivem isoladas, dispersas pelo território e fechadas às influências externas, fortemente regidas pelos princípios do patriarcado, da gerontocracia e conduzidas pelos “ritos de passagem”. Ao final, o próprio sentido da identidade e dignidade feminina se constrói pela pertinência à cultura local, através dos valores e interesses da comunidade. Em muitas áreas rurais da África, a cultura do colonizador, a modernização e a globalização penetraram muito superficialmente. De modo geral, os grupos étnicos mantêm fortes os regimes do patriarcado e da gerontocracia, de sorte que os anciãos são a fonte de normatividade das comunidades. Restritas ao matrimônio, à maternidade, à educação dos filhos e do lar, a dignidade da mulher está sujeita ao modo como ela honra a sua família. (ALVES DA SILVA, 2011) A interpretação clara da política masculina em relação às mulheres e ao matrimônio nas sociedades tradicionais, se encontra em BOURDIEU (2012: 56), descrita na obra acima citada, segundo uma pesquisa que o autor realizou sobre os bérberes de Cabília:

É na lógica da economia das trocas simbólicas/ – e, mais precisamente, na construção social das relações de parentesco e do casamento, em que se determina às mulheres seu estatuto social de objeto de troca, definidos segundo os interesses masculinos, e destinados assim a contribuir para a reprodução do capital simbólico dos homens -/, que reside a explicação do primado concedido à masculinidade nas taxinomias culturais.

Segundo uma tradição do sul de Angola, e pelo testemunho de alunas angolanas presentes a um encontro do Núcleo de Políticas de Gênero e Sexualidade da UNILAB, a família do noivo paga à família da noiva o “valor” da moça, – chamado alambamento; o casamento é antes de mais nada um acordo entre as famílias e é o avô o encarregado da negociação. Conforme a explicação de uma das estudantes, o “preço” se estabelece segundo o que se considera a perda da “mão de obra” da jovem, que deixará de trabalhar exclusivamente para sua família e começará a servir à família ampliada a que vai pertencer (a sua unida a de seu noivo). Outra aluna comentou que uma moça com nível universitário deverá ter um valor acrescido para o casamento, pelo que se conclui que costumes ancestrais se adaptam à modernidade de mulheres com títulos de estudo superior. Bourdieu já havia sinalizado para esse comportamento: A violência simbólica se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante (e, portanto, à dominação) quando ele não dispõe, para pensá-la e para se pensar, ou melhor, para pensar sua relação com ele, mais que de instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e que, não sendo mais do que a forma incorporada da relação de dominação, fazem esta relação ser vista como natural, ou, em outros termos, quando os esquemas que se põe em ação para se ver e avaliar, ou para ver e avaliar os dominantes (...), resultam da incorporação de classificações assim naturalizadas, de que seu ser social é produzido. (BOURDIEU: 47)

Voltando à poesia: no mesmo livro, Ritos de Passagem, Paula Tavares descreve a condição feminina de objeto de troca, num poema onde se escutam os ecos solenes e rítmicos da cultura ancestral. Rapariga Cresce comigo o boi com que vão me trocar Amarram-me já às costas, a tábua Eylekessa Filha de Tembo organizo o milho Trago nas pernas as pulseiras pesadas Dos dias que passaram... Sou da clã do boi – Dos meus ancestrais ficou-me a paciência

O sono profundo do deserto, a falta de limite... Da mistura do boi e da árvore a efervescência o desejo a intranquilidade a proximidade do mar Filha de Huco Com sua primeira esposa uma vaca sagrada, Concedeu-me o favor de suas tetas úberes. Seguindo a MANTOLVANI (2003/2007) na análise do poema, encontramos o ritual da tábua Eylekessa que se põe às costas da jovem, significando que ela está cedida em matrimônio e que seus pais receberão o dote do noivo (o alambamento), geralmente pago em bois, nessa região. Entre as atribuições da jovem está a tarefa de “organizar o milho”. O poema assinala sua origem, identidade e valor social através da figura paterna e da genealogia de seus ancestrais. As pulseiras nas suas pernas representam a quantidade de animais que correspondem a ela, por seu clã. Estão presentes no poema os antepassados, a herança, as tradições, os costumes e dois elementos fundamentais para a vida do povo angolano: a árvore e o boi. Este último representa para o mundo material o que a árvore significa no plano espiritual, pois nelas habitam os espíritos dos mortos que asseguram o equilíbrio emocional das comunidades. (MANTOLVANI). Destacam-se igualmente o tempo lento e a inquietação da jovem; vislumbram-se cores de uma paisagem agrícola, o mar, o milho, o deserto.4 A poesia é considerada a mais legitimamente africana de todas as formas literárias, dado que os cantos dos “griots”, nos centros das aldeias, sustentaram por milênios a tradição poética da comunicação oral. No caso de Angola, - país de muitas línguas e grupos étnicos, um violento processo colonial seguido de uma cruel e sanguinária luta pela independência -, a crítica literária é unânime em afirmar que os escritores têm construído uma literatura capaz de expressar a alma e resgatar a dignidade de seu povo, combinando história e realidade, impregnando de oralidade a língua portuguesa. (BACCEGA, 1993: 134/143) 4

Mantolvani, op.cit., - as páginas do texto não estão numeradas.

Muito já se escreveu sobre a poesia de Paula Tavares. Mas seu encanto seguirá estimulando àqueles a quem ela desperta os sentidos. É que, ao criar sua obra nos limites entre a escritura e a oralidade, sua poética nos põe em relação direta com o objeto referenciado. Segundo Walter Ong, aos olhos ocidentais, viciados no sentido da visão, o mundo está feito de vocábulos planos, lisos, que, em geral, usamos de etiquetas que colamos aos objetos. Para ele, somos “gente caligráfica y tipográfica irreflexiva” (ONG, 2004), ou seja, nós, letrados, articulamos nossos pensamentos através de palavras-objetos visíveis. Diferentemente, para o mundo pulsante da oralidade, a magia da palavra está viva. 2- Oralidade, fator axial da cultura africana Conforme Ong5, nas culturas pautadas pela oralidade, a existência e identificação das palavras se encontra apenas no seu próprio som, e sua única referência é o objeto a que se refere. Com isso, se estabelece entre os povos de cultura oral uma outra fenomenologia da existência muito mais próxima ao mundo vital. As relações empáticas e participativas se mantêm estreitamente conectadas, pois, para que se resguarde o conhecimento acumulado necessário à manutenção da vida, transmitido de geração a geração e que deve preservar a memória coletiva, é indispensável uma comunhão estreita entre as pessoas. Daí, também, tendências conservadoras e tradicionalistas, que reprimem a experimentação intelectual. Ademais, segundo Ong, as sociedades orais vivem mais intensamente o presente, são mais comunitárias e exteriorizadas, e muito menos introspectivas que as escolarizadas, pois ler e escrever são atividades solitárias que fazem a mente concentrar-se em si mesma. Como característica do mundo auditivo, tem-se que o som envolve o ouvinte, situando-o em uma espécie de núcleo de sensação e existência, de modo que as representações percebidas pela psique são situacionais e não abstratas. La acción concentradora del sonido (el campo del sonido, no se despliega frente a mí, sino que me envuelve) afecta la percepción que el hombre tiene del cosmos. Para las culturas orales, el cosmos es un suceso progresivo con el hombre en el centro. (ONG: 76/77)

O ouvido unifica, centraliza e interioriza os sons percebidos. Na organização verbal dominada pelo som, identifica-se um “holismo” conservador, cujas expressões “formulárias” buscam manter um presente “homeostático” que deverá permanecer intacto para dar continuidade à cultura. (ONG: 77)

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Conferir o Cap. III.

No primeiro poema do mesmo livro de Paula Tavares, se encontram características desse “holismo” conservador, formuladas da seguinte maneira: Cerimónia de passagem "a zebra feriu-se na pedra a pedra produziu lume" a rapariga provou o sangue o sangue deu fruto a mulher semeou o campo o campo amadureceu o vinho o homem bebeu o vinho o vinho cresceu o canto o velho começou o círculo o círculo fechou o princípio "a zebra feriu-se na pedra a pedra produziu lume" A circularidade reiterativa, o movimento do “eterno retorno” dos ciclos do tempo e das relações humanas com a terra e as tradições, são descritos no cenário angolano do poema. Mais uma vez, a referência ao sangue fecundo da jovem, o qual se torna “fruto”, e ao trabalho da mulher no campo. Segundo MANTOLVANI (2003/2007), a simbologia da energia mecânica do atrito entre o animal e a pedra para a produção do fogo, está em paralelo com o modo como os fonemas (línguo-dentais e bi-labiais) são frotados pelo rr, o que traz uma dificuldade, um atrito. O fogo (como fogueira), está no centro da vida tribal africana, e transforma a energia mecânica em energia térmica nos ciclos da vida humana: moça/mulher, homem/velho. O espaço sociocultural das relações primárias se dá

numa

paisagem

parcialmente

selvagem:

zebra/pedra/sangue/fruto/campo

/vinho/canto/círculo/princípio, - unidos aos elementos fogo e terra. Ao final, o círculo encerra o princípio. Também as cores são evocadas: os vermelhos aparecem no fogo, no sangue, no vinho. A zebra, animal familiar para a angolana Paula Tavares, está na paisagem com seus tons de branco/negro, assim como a cor cinza da pedra. “Todos tecem o elo da vida, o círculo vital da sobrevivência da espécie.” (MANTOLVANI; idem). 3- O erotismo em Paula Tavares O erotismo é outro aspecto da poesia de Paula Tavares, manifesto nos poemas que ela incluiu sob o título “Do cheiro macio ao tato”, da mesma obra Ritos de Passagem, produzida na efervescência libertária do período pós-revolucionário das lutas pela independência de seu país. Vários de seus comentadores o tem tematizado. Chamam, em geral, de “rebeldia feminina” transgressora, o que é feito para os prazeres dos sentidos.

Paula Tavares efetivamente alude a prazeres, estabelecendo relações sinestésicas de interlocução entre as sensações físicas do tato, do paladar e do olfato com os frutos da terra. Mencionarei um dos poemas que nos traz essa proximidade com os sentidos, factível à autora talvez por sua experiência de vida nas proximidades das culturas tradicionais do sul de Angola, por haver construído sua obra nos limites entre a escritura e a oralidade. O poema se chama Manga Fruta de paraíso companheira dos deuses as mãos tiram-lhe a pele dúctil (maleável/condescendente) como se de mantos se tratasse surge a carne chegadinha fio a fio ao coração leve morno mastigável O cheiro permanece para que a encontrem os meninos pelo faro.

Conclusões (não conclusivas) Ademais de nos transmitir as tradições culturais opressoras da condição feminina, as fontes da oralidade propiciaram à sensibilidade de Paula Tavares uma relação direta com o objeto referenciado e uma proximidade com o mundo vital humano que nós, “caligráficos y tipográficos irreflexivos”, talvez devêssemos pensar em desenvolver, pela saúde mesma de nossa civilização, para que pudéssemos viver todas as nossas potencialidades sensíveis de seres humanos. Não é possível aprofundarmo-nos nesse aspecto, mas vale lembra a Gaston Bachelard para quem a cultura ocidental é marcada pelo “vício da ocularidade, o que tem levado o pensamento científico e filosófico a enfatizar a “causa formal” e a negligenciar a “causa material”. O próprio vocabulário científico e filosófico (“ideia”, “evidência”, “teoria”, “visão de mundo” etc.) revelaria esse preconceito que faz do

conhecimento uma experiência ótica, um desdobramento da imaginação formal. E supõe o mundo como um espetáculo dado à contemplação, um panorama oferecido à visão, um teatro para o espectador. No terreno da poesia, do devaneio, do onirismo é que se manifestaria a imaginação material, desenrolada a partir das sugestões dos elementos que já Empédocles de Agrigento (séc. V a.C.) considerava as “raízes” da realidade (água, ar, terra e fogo). (Coleção OS PENSADORES, Introdução: XI)

Bachelard estende sua crítica a Freud e a Sartre, acusando a origem burguesa da psicanálise “que negligencia frequentemente o aspecto materialista da vontade humana. O trabalho sobre os objetos, contra a matéria, é uma espécie de psicanálise natural.” Marcado também pelo “vício da ocularidade”, Sartre tenderia a traduzir em termos racionais as imagens que seriam, na verdade, originárias de outra fonte: do contato corpo a corpo com a matéria. Por isso é que imagens como o pastoso e o viscoso podem simbolizar, para Sartre, a irracionalidade que suscita a náusea. Ao contrário, Bachelard reivindica a legitimidade e a irredutibilidade das imagens que a mão recolhe na matéria: “A mão ociosa e acariciadora que percorre linhas bem feitas, que inspeciona um trabalho já concluído, pode se encantar com uma geometria fácil. Ela conduz à filosofia de um filósofo que vê o trabalhador trabalhar. No reino da estética essa visualização conduz naturalmente à supremacia da imaginação formal. Ao contrário, a mão trabalhadora e imperiosa apreende a dinamogenia especial da realidade, ao trabalhar uma matéria que, ao mesmo tempo, resiste e cede como uma carne amante e rebelde.” (IDEM, acima: XII)

É certo que, sem a escritura, afirma Ong (: 23, 24), a consciência humana não poderia alcançar seu pleno potencial. Nesse sentido, a oralidade está destinada a produzir a escritura: o conhecimento desta foi indispensável para o desenvolvimento filosófico, científico, histórico, assim como à interpretação e criação de obras literárias e artísticas, inclusive também para o conhecimento da linguagem e da própria fala. Com o apoio da escritura, podemos recuperar, se não totalmente, pelo menos parte da consciência humana anterior aos sistemas gráficos. Segundo Ong (:81) Una comprensión más profunda de la oralidad prístina o primaria nos capacita para entender mejor el nuevo mundo de la escritura, lo que en realidad es y lo que de hecho son los seres humanos funcionalmente escolarizados: seres cuyos procesos de pensamiento no se originan en poderes meramente naturales, sino en estos poderes según sean estructurados, directa o indirectamente, por la tecnología de la escritura.

A associação da mente caligráfica ao desenvolvimento tecnológico e a todo o sistema/mundo que o reforça, nos dá uma experiência de vida que, ao tornar-se mais tecnologicamente condicionada, mais alienada se torna do mundo vital. Hannah Arendt,

ao analisar a vida humana característica da nossa época, ou seja, as atividades do “animal laborans” (H. ARENDT; 1958), entendeu e identificou os fatores civilizacionais que levaram o ser humano moderno à “triunfal alienação do mundo” que caracteriza a contemporaneidade. Para o filósofo de arte, Sir Herbert READ (1968), os ideais do homem pós moderno apontam para a amortecimento da sensibilidade e dos sentidos, pois a busca da saciedade completa dos instintos, própria à sociedade de consumo, leva até ao limite a indiferença frente ao mundo. Por sua vez, o controle racional desenvolvido para dominar a intensidade da vida, estendido a todas as dimensões existenciais, quer oferecer todas as respostas às questões humanas, mas fracassa na resolução do indizível e do indecifrável da humana condição. O mundo completamente racionalizado no âmbito do trabalho, a sociedade totalmente administrada, reguladora do entretenimento, das emoções e da religiosidade, a “triunfal alienação” de um mundo comum compartilhado e vital, abre espaço para fundamentalismos e violência. Segundo o autor: (...) Se ver e manusear, tocar e ouvir e todos os refinamentos da sensação que se desenvolveram historicamente na conquista da natureza e na manipulação das substâncias materiais não forem aperfeiçoados e educados desde o nascimento até a maturidade, o resultado é um ser que mal merece ser chamado de humano: um autômato de olhos lânguidos, entediado e indiferente, cujo único desejo é a violência numa forma ou noutra - ação violenta, sons violentos, quaisquer tipos de distrações que possam penetrá-lo até seus nervos amortecidos. Suas distrações preferidas são: o estádio desportivo, (...), a atitude passiva do ‘espectador’ do crime, farsa e sadismo na televisão, vício no jogo e nos entorpecentes. (READ; pp. 27/28)

Por outro lado, desfrutamos da oportunidade de vivermos uma época em que a comunicação passou a ser imediata e dominante nas relações planetárias, estamos, portanto, no momento propício à interlocução. Temos diante de nós a possibilidade de conhecermos e aprendermos como nunca antes o que outras culturas têm para nos dizer, assim como queremos e esperamos que elas possam aprender com a nossa. Mas o momento de maior interesse no diálogo intercultural é quando situamos o nosso próprio lugar no encontro. A poesia de Paula Tavares pode propiciar esse momento de reflexão, ou talvez, melhor dizendo, esse ponto de inflexão: ao olharmos a “outredade”, começamos a entender e ver melhor a nós mesmos. Aprendemos que a filosofia é “filha da polis”, que ela surgiu quando os cidadãos, de posse da isegoria e da isonomia, se tornaram livres. A partir dessa conquista, o pensamento pode

florescer e elevar seu potencial criador que permitiu chegarmos aonde chegamos como civilização. A metáfora foi utilizada para dizer que a expressão da sensibilidade feminina, da qual Paula Tavares nos dá um breve lampejo, ainda não alcançou plenamente a ágora da civilização ocidental, que ainda estamos construindo nosso próprio espaço de expressão numa civilização que se desenvolveu a partir de uma visão de mundo que, em sua origem, preteriu a condição feminina. BIBLIOGRAFIA: ALVES DA SILVA, Eugénio. “Tradição e identidade de gênero em Angola: ser mulher no mundo rural.” In Revista Angolana de Sociologia, 08/2011, on line desde 29/07/2013. URL: http://ras.revues.org/508;DOI:104000/ras.508 ARENDT, Hannah. A condição humana. 10ª ed. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. BACCEGA, Maria Aparecida. “História e Arte. Reflexões sobre a cultura angolana.” In Revista USP- Dossiê Brasil/África, 134-143, jun-ago/1993. BACHELARD, Gastón. Coleção Os Pensadores. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984. BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Tradução Maria Helena Kühner. 11ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. (Org.) A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. MANTOLVANI, Rosângela (Universidade do Estado de São Paulo – Assis/2003). Escrita de mulheres. Publicado e disponível na web desde 07 de janeiro de 2007. MAZRUI, Ali A. História Geral da África. vol. VIII. (África desde 1935). São Paulo: Cortez Editora – UNESCO, 2011 ONG, Walter J. Oralidad y escritura. Tecnologías de la palabra. Tradução, para o espanhol, de Angélica Sherp. México: Fondo de Cultura Económica, 1987. (6ª reimpressão, 2004). READ, Herbert. Arte e alienação: o papel do artista na sociedade. Tradução de Edmond Jorge. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968. TAVARES, Paula. Ritos da Passagem. Luanda: União dos Escritores Africanos, 1985.

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