Ordinary Images: essays on visual cultures / Imagem e Cotidiano: ensiaos sobre culturas visuais.

May 26, 2017 | Autor: Diego Salcedo | Categoria: Visual Culture, Michel de Certeau, Images, The Ordinary
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Imagem & Cotidiano Ensaios de Cultura Visual Paulo Carneiro da Cunha Filho, Diego Andres Salcedo, Raquel de Holanda (orgs.)

© Copyright 2014. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida de qualquer forma ou em qualquer meio, seja eletrônico ou mecânico, sem permissão escrita da editora ou dos autores. Coleção E-CIT: Publicações digitais nas áreas de Comunicação, Informação e Tecnologia.

FICHA TÉCNICA Este livro é um produto da Editora da UFPE, e foi editado em agosto de 2014. Editoração Eletrônica Cassandra Brito Daniel Venegas Thiago Moreira Conselho Editorial Prof. Dr. Diego Andres Salcedo - UFPE Prof. Dr. Javier Diaz-Noci - Univ. Pompeu Fabra, Barcelona - Espanha Prof. Dr. José Afonso Jr. - UFPE Prof. Dr. Marcos Galindo - UFPE Prof. Dr. Marcos Silva Palacios - UFBA Prof. Dr. Paulo Carneiro da Cunha - UFPE Prof. Dr. Paulo César Boni - UEL

Contatos [email protected] Telefone: (81) 2126-8429

Sumário Sobre os autores A construção do cotidiano visual: derivas com Michel de Certeau Paulo Carneiro da Cunha Filho Cotidiano e Identidade: construções entrelaçadas no cinema Raquel Holanda Observar ao redor, observar e sentir: o cotidiano como catalisador de sensações Iomana Rocha de Araújo Silva O cotidiano dos colecionadores de imagens Diego Andres Salcedo Sertão e messianismo: explícito e implícito em Árido Movie José Carlos Gomes da Silva Filesharing e outros espaços de Cinema Bernardo Queiroz de Siqueira Santos O cotidiano na trilogia amorosa de Wong Kar-Wai Amanda Mansur Custódio Nogueira Fotografia e cotidiano na Caixa de Sapato Eduardo Queiroga

Sobre os autores Paulo Carneiro da Cunha Filho Pesquisador 2 do CNPq, avaliador voluntário da CAPES e professor Associado 4 na Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em Artes e Ciências da Arte pela Universidade de Paris I - Panthéon-Sorbonne (1989), fez cinema experimental (sobretudo curtas em super-8 e em 16 milímetros). Foi, durante dois anos, membro do seminário fechado em Teoria do Cinema de Christian Metz na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, onde também obteve o diploma sob orientação do historiador Marc Ferro. Está vinculado, como membro permanente, ao Programa de Pós-Graduação em Design da UFPE. Seus livros mais recentes foram publicados: A Utopia Provinciana: Recife, Cinema, Melancolia (2010), Imagem e Cotidiano: ensaios de cultura visual (2012) e A Imagem e seus Labirintos: o cinema clandestino do Recife, 1930-1964 (2014).

Raquel Holanda Doutoranda em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade de Brasília. Mestra em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Pernambuco (2012). Investigada nas produções audiovisuais temas como cenário cinematográfico, espaços e paisagens urbanos, estética e cultura visual.

Iomana Rocha de Araíjo Silva Professora do Curso de Cinema e Audiovisual da UFPA, Doutora e mestre em Comunicação pela UFPE, graduada em Arte e Mídia Pela UFCG. Tem interesse em poéticas cinematográficas, cinema independente/experimental, arte contemporânea, cinema expandido, hibridismos entre artes e cinema e estudos relacionados à Direção de arte no cinema. Desenvolve também trabalhos práticos em cinema, especialmente na área de Direção de Arte.

Diego Andres Salcedo Bacharel em Biblioteconomia (UFPE), Mestre e Doutor em Comunicação (UFPE). Professor no Departamento de Ciência da Informação da UFPE. Integrou a equipe de Orientador do Ministério da Educação no projeto Mídias na Educação (SEED). Membro pesquisador no Laboratório de Tencologia de Conhecimento (LIBER/UFPE). Na temática da Filatelia publicou os seguintes livros: A ciência nos selos postais comemorativos brasileiros: 19002000. (2010); Pernambuco nos Selos Postais: fragmentos verbo-visuais de pernambucanidade (2011); Bibliofilatelia: fontes de informação para o estudo do mundo postal (2014).

José Carlos Gomes da Silva Bacharel em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco (1981), Especialista em Jornalismo e Crítica Cultural pela Universidade Federal de Pernambuco (2007) e Mestre em comunicação pela UFPE (2012). É assistente administrativo da Universidade Federal de Pernambuco. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Jornalismo e Produção de Textos.

Bernardo Queiroz de Siqueira Santos Jornalista formado pela Universidade Católica de Pernambuco (2005), pós-graduado em Estudos Cinematográficos (2007) e Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (2012). Trabalhou como réporter e editor em TV e portais de internet, além de atuar como professor de Jornalismo, Cinema e Publicidade. Pesquisa as relações entre cultura, estética, cinema e novas mídias audiovisuais. Atualmente é Doutorando pela PUC de São Paulo na área de Comunicação e Semiótica. Continua insone, viciado em dispositivos com telas e nerd assumido. Não crê que isso vai mudar em nenhum futuro visível.

Amanda Mansur Custódio Nogueira Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Possui Mestrado em Comunicação pela mesma instituição. Como professora ministrou aulas nos cursos de Bacharelado em Cinema e Publicidade e Propaganda das faculdades Marista, AESO e Mauricio de Nassau. Além de oficinas e mini-cursos sobre teoria e prática do audiovisual. Dentre as suas atividades profissionais destacam-se a cinematográfica, atuando como assistente de direção e continuísta. É autora do livro O Novo Ciclo de Cinema em Pernambuco: a questão do estilo, lançado pela Editora Universitária da UFPE. No momento, atua como Professora substituta do Departamento de Comunicação Social, na Universidade Federal de Pernambuco.

Eduardo Queiroga Possui graduação em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco (1991) e mestrado em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM-UFPE). Doutorando em Comunicação pelo PPGCOM-UFPE. Coordenador e educador do Projeto Fotolibras. Foi professor e coordenador do Bacharelado em Fotografia das Faculdades Integradas Barros Melo. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Fotografia, atuando principalmente nos seguintes temas: imagem e educação, fotografia e história, fotojornalismo e fotografia contemporânea.

A construção do cotidiano visual: derivas com Michel de Certeau Paulo Carneiro da Cunha Filho

A missa de despedida de Michel de Certeau foi comovente, na manhã de inverno de 9 de janeiro de 1986. Durante a cerimônia de adeus, a pedido dele, se escutou uma velha gravação de Edith Piaf, interpretando Non, je ne regrette rien. Que sentidos pretendeu produzir Certeau, depois de morto, com aquela canção? Que trajetória teria sido esta, que não deixava lugar para o remorço? Primeiro, o óbvio, é claro: tinha enfrentado de peito aberto o destino que lhe coube vida clara, na acepção pasoliniana, constituída também pelos episódios mesquinhos ou grandiosos que a vida reserva a todos, guardadas as devidas proporções. Sem arrependimentos, portanto. Mas, e talvez aqui tenhamos um segundo sentido não sem pecados, na medida em que os erros fazem parte de todo trajeto. Havia então, na voz de Edith Piaf uma dupla visão das coisas da vida: o gesto de ouvir, na nave de uma igreja, as palavras de certo ser impuro, incerto; e a mensagem que a letra da canção afirmava: apesar de tudo, teria sido assim: o arco do possível se estendendo por sobre o chão da utopia. Então, naquele instante, Michel de Certeau reiterava a metodologia que desenvolveu durante décadas, pacientemente: ouvir a voz dos que não têm voz; e deslocar o sentido das coisas, ao transtornar os espaços usuais de circulação dos homens e dos objetos. Dedicado inicialmente ao estudo do século 18, Michel de Certeau foi um historiador que tomou consciência de que não se pode escapar do tempo presente e de suas derivas: não se foge dos desvios, do estranho, do surpreendente que nos habita no instante mesmo em que somos. O acesso para o arrebatamento do inusitado só está real- mente aberto para quem sabe olhar para as dimensões do tempo presente. A história, então, é uma permanente reinvenção do passado, a partir da vida que vivemos hoje. Para Certeau, isso tudo era claro, sobretudo quando ele olhava para as bruxas, os possessos, os místicos ensandecidos. Mas também quando prestava atenção nas pequenas coisas, nas “artes de fazer”, nos “jeitinhos” (como, afinal, traduzir o francês ruses?). “Astúcias”, ele vai dizer, mas também “trampolinagem”. Táticas e estratégias do viver simples, do modo de ser do humano “comum”. “Não tome as pessoas por idiotas”. Nunca suponha que a vida cotidiana, dos que aparentemente não têm poder, dos que muitas vezes se perdem na multidão, seja apenas essa homogeneidade aparente, essa passiva adesão a algo que seria um avassalador poder institucional. Certeau foi um antídoto para os que acham que a vida da maioria das pessoas não tem graça alguma, dos que operam com noções como “massa”, “burguesia” ou “proletariado” - esquecendo que há mais diferenças táticas entre os “iguais” do que pensa certa sociologia. Ali, aonde parece haver apenas o conformismo, ou a força incontrolável do mercado, ou a submissão absoluta aos cânones estabelecidos, se esconde a invenção. A multidão tem olhos. Age. Pensa. Resiste. O poder do mercado existe, evidentemente, e os bens culturais, e não apenas os materiais, são de fato objetos de consumo. No entanto, algo sempre foge do controle. Algo escapa. O conjunto de forças que frequenta a multidão retoma, reinventa, apropria-se, ressignifica. Leva a vida para longe de toda previsibilidade, do que havia sido

programado. “Indisciplina”. E as desobediências são vistas como focos de resistência ao homogêneo, ao que parecia fazer a vida inevitavelmente linear. A esperança singela de Michel de Certeau é a seguinte: não existe uniformização, mas uma contínua e luminosa tensão entre campos de poder. Os textos que compõem esta coletânea surgiram no quadro da disciplina Cultura Visual, do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. O pequeno grupo de pesquisadores reunidos nas aulas era muito diverso, sobretudo no que se referia à temática dos projetos individuais de pesquisa. Num determinado momento do ano, percebemos que a questão do cotidiano poderia sugerir um recorte comum aos vários trabalhos e decidimos fazer um retorno à obra de Michel de Certeau. O resultado foi a produção dos textos reunidos aqui, todos interessados por produtos culturais nos quais é possível detectar alguma forma de “marcar socialmente a distância”, seja pelos consumidores no ato de consumir, seja pelos criadores no instante da criação. Nosso desafio foi, desde o início, articular a observação das práticas e dos usos das representações visuais na condição de “criações anônimas”, presentes na vida cotidiana, mas igualmente das representações dessas mesmas práticas e usos em objetos culturais “assinados”, vinculados à grande produção industrial e, nessa perspectiva, verificar nesses objetos de segunda ordem, reconhecidamente “artísticas” os traços das artimanhas do cotidiano. Afinal, essa produção “de mercado”, “erudita”, também poderia ser revisitada enquanto território de transformação, um lugar em que as práticas de consumo eliminariam o fechamento do objeto, permitindo que o observador (o consumidor) reinventasse-o, produzisse novos sentidos. Cada texto, portanto, tenta definir um conjunto de “microresistências”, pequenas utopias que reintegram aquilo que é, de fato, vivenciado nas representações visuais. Nosso olhar, assim, é o mesmo da gente “simples”, “ordinária”, aquele que necessariamente está longe dos centros do poder. São as nossas circunstâncias que explicam isso: estamos, conscientemente, na periferia da periferia, como acadêmicos e como consumidores ou produtores de imagem. Essa, longe de ser nossa fraqueza, é nossa potência. Mesmo sem poder adotar o princípio de que nossas temáticas surgiam do anonimato, na medida em que muitas das imagens que observamos tinham “nome próprio”, um “nome de autor”, o nosso olhar foi sempre mais sensível às resistências, às táticas complexas e sutis que fazem face aos projetos do sistema dominante. Então, o conceito de cotidiano que vale para o conjunto de textos aqui reunidos parte do princípio de que os indivíduos e os grupos sociais são capazes de se confrontar com os modelos disciplinares, com a Ordem, de formas muito complexas e muito sutis, construindo movimentos de defesa e de antagonismo que vão além dos padrões mais reconhecíveis de contestação. É no cotidiano que se dá, dessa forma, este conjunto de curiosas formulações contra toda sorte de vontade imposta pelos centros hegemônicos de poder.

Para nós, valia sobretudo investigar como as imagens participam desses jogos. Ou seja: trazer à tona um conceito mais amplo de Cultura Visual do que aquele normalmente adotado pela academia. De que modo os objetos da cultura visual fossem considerados na sua capacidade de interagir com a vivência cotidiana ̶ seja na sua materialidade, seja na imaterialidade: a condição efetiva de produzir um espaço secundário, derivado da vida social, uma espécie de teatro da vida aonde igualmente se estruturam as tensões da ordem e da desordem. Havia um desafio que consistiu em evitar fazer Michel de Certeau dizer o que não disse. É evidente que partíamos da ideia de que o mercado tentava impor sua lógica e constituía, mesmo no campo cultural, produtos de consumo. Também consideramos que essa tentativa seguia um roteiro muitas vezes diverso do que pressupunha a própria lógica do mercado. Como lidar com o fato de que nossos temas de pesquisa eram tanto os modos de uso dos objetos visuais como os próprios usos representados dentro desses mesmos objetos? Finalmente, relemos um texto crucial de Michel de Certeau, que serviu para elucidar os caminhos que tomamos na elaboração dos textos dessa coletânea. Justo aquele que trata de "Uma 'arte' brasileira" (CERTEAU, 1990, p. 76), e explora os campos estratificados dos camponeses nordestinos e as missões do místico Frei Damião de Bozzano, um capuchinho italiano que percorreu o Nordeste, tornando-se um dos homens mais venerados na região. Tratava-se, na visão de Michel de Certeau, de um espaço bipolar, capaz de fazer coexistir um campo “polemológico”, (sócio-econômico, clivado pela ancestral disputa entre poderosos e pobres, e no qual estes são sempre os derrotados) e um espaço “utópico”, no qual se afirma o milagre, a redenção onde os pobres encontram uma dimensão que lhes é mais favorável. Ora, nesse texto magnífico, o autor estabelece uma ponte entre o discurso místico do capuchinho Frei Damião de Bozzano, constituído pelos relatos de milagres, e o filme A Cecília, de Jean-Louis Comolli, com seus cantos anarquistas. Descobríamos ali o desdobramento que nos faltava: o espaço “real” e bipolar do Nordeste e o espaço simbólico da experiência cinematográfica e do seu dispositivo. Estava, portanto, na própria “metodologia” certaliana uma ponte entre o ordinário cotidiano, essa arte dos não artistas, e a produção das imagens técnicas, tomada como espaço em si ̶ representando outros espaços “reais” nos quais situam-se outras “artimanhas”, outras ressignificações passíveis de interpretação. Era o que precisávamos para tentar.

Referências CERTEAU, Michel de. L’étranger, ou l’union dans la différence. Paris, Desclée De Brouwer, 1991. ______. La possesion de Loudun. Paris, Gallimard, 1990. ______. La culture au pluriel. Paris, Seuil, 1993.

______. L’écriture de l’histoire. Paris, Gallimard, 1984. ______. La fable mystique XVIe-XVIIe. Paris, Gallimard, 1987. ______. L’invention du quotidien, I: arts de faire. Paris, Gallimard, 1990. ______. L’invention du quotidien, II: habiter, cuisiner. Paris, Gallimard, 1990.

Cotidiano e Identidade: construções entrelaçadas no cinema Raquel Holanda

A intenção deste ensaio é compreender como se dão as construções identitárias nos filmes analisando-as a partir das relações das personagens e dos lugares com seus espaços e usos cotidianos, acrescentando ao cotidiano este caráter de marco da identidade. Formalizando, desta forma, as práticas cotidianas como elementos fundamentais na constituição de uma cultura. Até onde este cotidiano não se constitui enquanto limite de determinado lugar das identidades? De que forma se dá o entrelaçamento entre identidade e cotidiano nos filmes? Estas são alguns pontos a busca-se elucidar ao término deste ensaio. E ao propor analisar as imagens difundidas pelo cinema feito no Nordeste, a intenção é tê-las como objetos de uma própria cultura, não se delimitando a algo marcado ou ligado a tradição, mas ao fato de ser um fruto de um pertencimento a algo, uma narrativa construída a partir da vivência com sua cultura. O corpus deste trabalho é composto por produções contemporâneas, mas a relação do Nordeste com o cinema não é recente, sendo tecida deste o início das atividades cinematográficas no país - de maneira que não somente o espaço territorial desperta interesse nos cineastas, mas a própria cultura das pessoas que habitam esta região. Exemplos de filmes com este foco são muitos, dentre eles: Sob o céu nordestino, de Walfredo Rodriguez (1928); O Canto do mar, de Alberto Cavalcanti (1952); Aruanda, de Linduarte Noronha (1963); Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha (1964), além de muitos que adaptaram obras literárias para o cinema. Numa breve apresentação dos filmes aqui trabalhados, Karim Aïnuoz, diretor cearense, em seu segundo longa-metragem O Céu de Suely (2006), conta a história de Hermila, uma jovem de 21 anos que após dois anos morando em São Paulo com o pai de seu filho retorna para a sua cidade natal, Iguatu no interior do Ceará. As conseqüências deste regresso são o confronto dos desejos da personagem com a sua realidade, o abandono do seu companheiro, a necessidade de se movimentar num espaço onde tudo é estável e imutável e sua ideia de se rifar como forma de conseguir juntar recursos para fugir dessa situação. Fruto da união de Karim Aïnouz e do pernambucano Marcelo Gomes, Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2010), é um filme que traz o protagonista José Renato num relato sobre sua separação e sua viagem a trabalho como possibilidade de fugir da dor que a situação lhe traz. Se dividindo entre a narração de cartas para a amada e de seus sentimentos neste movimento de isolamento, José Renato corta as estradas do sertão cearense e pernambucano, percorrendo as áreas que supostamente irão receber o canal que levará água para a região. No contexto em que a compreensão da cultura provém de uma assimilação das relações simbólicas de poder inseridas na vivência dos sujeitos, ela se coloca como uma mediadora fundamental da sociedade. E neste jogo de apropriações de sentidos no qual os signos são interpretados a partir de sua representação simbólica em determinada cultura, esta acaba de tornando um espaço de luta e de produção de significados. Seguindo esta visão hermenêutica da cultura é possível fazer uma leitura dialética dela,

concebendo-a como um processo que objetiva um entendimento pelo diálogo e pela discussão. Então, se aqui se propõe analisar os filmes feitos no Nordeste pretende-se apreender como a cultura e a identidade dos nordestinos e do próprio Nordeste - enquanto espaço - são colocadas a partir do material audiovisual que o filme apresenta, no qual é possível se perceber as experiências dos sujeitos na sociedade e quais tipos de sentidos estão sendo negociados a partir desta vivência. E por se tratar de um estudo sobre a vivência de uma cultura, suas formas e consequências, é necessário que tanto a cultura como a identidade sejam examinadas em contexto, ou seja, em que situação elas são produzidas, que história pré-existe a elas, qual o cotidiano que vivem. Sendo o sujeito tomado como algo condicionado a suprir na sociedade suas necessidades de vida, costumes, habitação e saúde (GRAMSCI, 1989), a fazer da sua prática da cultura algo diluído em todas as suas práticas cotidianas, construindo-se a partir do que é vivido e não pensado. E a capacidade de ser performático diante dessas situações e de se moldar a todas as atividades às quais é submetido é que desperta interesse em se fazer esta investigação do modo de vida do homem na contemporaneidade. A capacidade de mudança, de reflexão e de transformação da cultura diante desta concepção direciona a compreensão para o fato de que ela deve ser pensada e analisada como uma experiência ordinária. Como coloca Williams (WILLIAMS, 1989), a cultura é uma propriedade de toda uma sociedade e se constitui mediante uma mesma experiência coletiva, a qual leva os indivíduos a interpretarem os signos que estão em jogo nesta relação simbólica e negociarem os sentidos que essas práticas devem ter. Tudo isto faz com que a cultura não se construa de forma sólida e única, ela é algo em contínua ressignificação, cuja construção coletiva a partir da experiência de vida dos sujeitos transpõe para o centro destas relações todas suas práticas cotidianas. E neste processo de materializar as suas relações nos elos culturais que o homem acaba por trazer para a própria cultura tudo o que é ordinário, comum, consequentemente, agrega todas as formas ligadas por um coletivo, ou seja, valores e significados que são partilhados. Significados estes que transitam em contínuo e condicionados pelas próprias experiências em grupo. Ao se considerar a maneira como este espaço de vivência é transportado para o cinema, em filmes como O Céu de Suely e Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo percebemos que eles dialogam. A exemplo da construção de suas narrativas a partir da visão de personagens oriundos de classes mais baixas, que percorrem ambientes considerados à margem do que é oferecido como nobre dentro de suas culturas, seja na castigada Iguatu, no interior do Ceará, que se torna cenário de O Céu de Suely, ou ainda o sertão percorrido por José Renato em Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo. Unanime em todos estes contextos, a negociação de sentidos conduz o movimento das relações. As concordâncias e as disparidades fazem com que os fatores que as influenciam

desloquem-se dos elementos que se relacionam e incorporem tudo aquilo que se situa ao redor desses elementos. Os lugares que ocupam e as situações que vivenciam, assim como as ações que executam e as relações de poder a que pertencem. Nos filmes em questão, no entanto, o movimento ao qual se faz referência nem sempre se limita a um lugar fixo, o deslocamento das personagens de espaços e lugares é outro ponto evidente. No filme O Céu de Suely, Hermila parte e retorna à cidade de Iguatu e em Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo mostra o percurso de José Renato que sai de Fortaleza para uma viagem longa pelo sertão nordestino. Aqui o deslocamento pode ser entendido como algo confluente no cinema feito no Nordeste de maneira mais abrangente, e que no caso dos filmes aqui falados é uma ação realizada por todos os protagonistas. O peculiar nisto é que o sair de ‘seu lugar’ nem sempre tem destino certo, a fuga do próximo deseja ganhar corpo e forma num ‘lugar qualquer’, apenas longe dos seus conflitos, de suas angústias. A cultura desses lugares internaliza esta característica, a encenação de suas identidades adiciona esta fluidez ao seu repertório cultural específico, não só refletindo como organizam sua personalidade como também a maneira como utilizam os espaços urbanos, dando sentido ao seu modo de vida. Essa forma de ver a cultura vai de encontro com os pensamentos de Michel de Certeau (2003, p. 100) à medida que desloca o foco das ações individuais e, acima de tudo, coloca o cotidiano como um elemento fundamental para se compreender a cultura. E ao se colocar como objeto deste estudo o cinema feito no Nordeste não se dispõe a observar as assimilações feitas a partir destas produções, partindo assim para o campo da recepção, mas quais contratos são estabelecidos pelo próprio objeto ao se situar numa rede de lugares e relações. Utilizando-se a maneira como Michel de Certeau apreendeu para formalizar as práticas cotidianas, nesta pesquisa observa-se como se dão as construções da identidade nos filmes a partir das práticas de espaço, dos usos das ritualizações cotidianas, etc. Diante desse contexto, é importante frisar estudos feitos sobre a cultura nordestina até agora, como os feito por Durval Muniz Albuquerque Jr, que coloca que esta região, Nordeste, fora criada nos anos 20 do século passado e fundamentada como uma ‘paisagem imaginária’ mergulhada em sentimentos como saudade e tradição. Estariam estes pontos presentes nos filmes? Pode-se identificar tanto a saudade como a tradição como princípios que movem esta cultura? Até que ponto identidade e cultura são concebidas por essas características? Uma das discussões centrais das ciências sociais desde o final do século passado é a questão da identidade. Como elemento relacional, a identidade tem sua estrutura estabelecida por uma marcação simbólica relativa ao outro e ao contexto no qual o sujeito está inserido, sendo interpelada tanto pelas condições sociais como materiais. A identidade é algo moldável, criado e recriado à medida que a vida e o contexto social se modificam,

cabendo às identidades assumidas pelo indivíduo serem reconhecidas e aceitas na sociedade. Nesse processo as características dessas identidades ora trazem marcas que sempre estiveram presentes na sua formação, ora trazem traços adquiridos através do cotidiano. Seguramente, a relação com o outro é um fator preponderante quando o assunto é a construção de identidades, uma vez que é em relação ao outro que se torna possível a identificação ou a diferenciação com determinado fato ou característica. Esse processo incessante proporciona a continuidade e/ou a permanência de certos modos de ser, estilos, gostos e pensamentos. Se a identidade é vista por estas características anteriormente descritas poder-se-ia, assim, inseri-la no campo tático? De acordo com Certeau (2003) – que analisa a cultura como uma combinatória de operações que levam em consideração tanto as ações individuais como também todo o contexto ao seu redor – a tática é uma ação calculada e determinada, exatamente, pela ausência de um próprio, não tendo por lugar senão o do outro. Como um movimento interior às relações, a tática se dá pela visão do outro e pelo espaço que por ele é controlado, portanto não se concebe um lugar específico para ela e “este não-lugar lhe permite sem dúvida mobilidade, mas numa docilidade aos azares do tempo, para captar no vôo as possibilidades oferecidas por um instante” (CERTEAU, 2003, p.93). As táticas apontam para uma hábil utilização do tempo, das ocasiões que se apresentam e também dos jogos que introduzem as fundações de um poder, pois elas se determinam pela ausência de poder. Como Certeau (2003, p.102) coloca: As táticas são procedimentos que valem pela pertinência que dão ao tempo ‒ às circunstâncias que o instante preciso de uma intervenção transforma em situação favorável, à rapidez de movimentos que mudam a organização do espaço, às relações entre momentos sucessivos de um ‘golpe’, aos cruzamentos possíveis de durações e ritmos heterogêneos, etc. Conforme esta definição de tática supõe-se a identidade como uma consequência de uma ação decorrente de uma disputa do ser com o outro, neste espaço não ‘próprio’ em que é possível sentir como suas percepções respondem as situações, como se interpreta as relações a cada momento, paralelamente a este jogo as identidades do sujeito vão sendo construídas. Voltando-se para o objeto desta investigação, a narrativa construída nos filmes possibilita a localização das identidades, dos locais de fala de uma individualidade cujo lugar de atuação é composto de uma pluralidade incoerente de suas determinações relacionais. Esta contradição muitas vezes justificada pela ininterrupta trajetória da sua formação levantam pontos que se condensam em certas identidades. E, claro, os espaços cotidianos de sociabilidade nesta relação se consolidam como um marco para esta construção, mediante sua capacidade de tirar proveito e beneficiar-se disto, sem o domínio

do tempo. Diante de uma relação onde o tempo torna-se primordial, é a partir de sua vivência que o lugar é delineado. O lugar não é, portanto, algo estável, mas algo que veio a ser, um espaço comum construído através da interação social. As práticas dos espaços determinam as maneiras de se frequentá-los, instaurando confiabilidade ou não nas situações vividas neles. No campo da análise do filme, a cultura, a identidade e o cotidiano são observados através das conversas e discursos das personagens. Não obstante, as práticas dos sujeitos também habilitam a captação, registro e mesmo abordam como eles se comportam, quais são suas encenações, como se sentem acerca de determinado lugar. As incoerências do percurso traçado pelos sujeitos refletem uma mobilidade plural tanto de interesses como de prazeres, por isso nesta análise o local do objeto e não o seu discurso vem a ser mais importante. Em sociedade, a definição de um comum desencadeia uma série de possibilidades de ações, de relações e de trajetórias. E, por exemplo, ao se pensar o lugar como este comum, ele pode pertencer a qualquer um que viva nesta sociedade. As personagens José Renato e Hermila de Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo e O Céu de Suely, respectivamente, criam um espaço diferente daqueles que ocupam fisicamente. Uma verdade que coexiste com aquele lugar de uma experiência sem ilusões. O posto no qual Hermila desembarca ao retornar para Iguatu, o mesmo que frequenta quando sai à noite e se diverte com a tia e uma amiga, ou ainda o seu local de trabalho temporário que se torna muitas vezes um ‘não-lugar’. De maneira semelhante, José Renato transcorre as rodovias que cortam o Ceará e Pernambuco sertão adentro, construindo uma relação diferente da maioria das pessoas que ali vivem. Aquela vegetação, o Sol, a paisagem que nunca muda é um lugar inexpugnável e que para ele é uma chance de fuga, de isolamento. As práticas cotidianas possibilitam o reemprego de sistemas sociais, de ações que ganham usos diferentes, modificando o funcionamento deste sistema. Isto cria modos de fazer sem se sair do lugar, instaurando a pluralidade à ordem imposta de um lugar. Certeau sobre isto discorre que “essas operações de emprego ou melhor, de reemprego se multiplicam com a extensão dos fenômenos da aculturação, ou seja, com os deslocamentos que substituem maneiras ou ‘métodos’ de transitar pela identificação com o lugar” (CERTEAU, 2003, p. 93). Uma ilustração deste reemprego do sistema vigente na sociedade é a ação de Hermila ao utilizar-se da rifa, uma prática cotidiana do interior do Nordeste, para conseguir dinheiro para fugir de Iguatu. Enquanto ação ela não instaurou nenhuma nova aplicação, visto que os compradores da rifa adquirem um bilhete e concorrem como todos os outros ao prêmio, e é justamente este o elemento inusitado e que rompe que as leis sociais impostas. Hermila rifa um objeto como qualquer rifa comum, só que ela transforma o seu corpo num objeto ‘rifável’, e aqui é estabelecido um novo conceito, uma nova relação da sociedade com esta prática.

Até agora se falou numa abordagem da cultura e da identidade a partir da análise do cotidiano, a maneira como este elemento é capaz de revelar especificidades de uma sociedade e os jogos constantes de validação de significados. No entanto, como se observa estes pontos em filmes, se faz necessária uma pequena consideração sobre as imagens e o próprio material audiovisual. Por lidar com um objeto audiovisual, as imagens são tomadas como o lugar das percepções diretas, cujo significado varia, constantemente, mediante sua captação através da visão e realçada pelos demais sentidos. Os sinais, símbolos e alegorias que formam as imagens se utilizam de meios, no caso deste estudo do cinema, para construir seu processo narrativo. E como em todo momento de leitura e interpretação atribuí-lhe o caráter temporal, aqui este caráter se fixa na contemporaneidade, tendo em vista que os filmes aqui analisados são produções recentes, datadas dos anos 2000 para cá. Levando em consideração as implicações sociais e políticas observadas nos filmes, esta pesquisa pincela ponderações das relações desta visualidade com a estética e a política. À medida que se investiga traços do processo de construção de identidades através dos filmes, cuja materialidade está submetida às relações simbólicas desenvolvidas no campo da cultura, se objetiva conhecer, ou mesmo dar, um sentido aos elementos observados nas produções cinematográficas. Aqui se busca superar a ideia de Leal (LEAL, 1982), demonstrando que o cinema feito no Nordeste também é capaz de ser um elemento possível de análise a partir de sua autenticidade, pertencimento e reconhecimento à cultura desta região. O autor teorizou que Colocando-se à margem os filmes mais importantes, o cinema feito no Nordeste (...) ainda não concebeu uma forma regional, autêntica, para dizer da problemática nordestina, em nível de originalidade e de valor humano. Se algumas dessas películas, por causalidade, mais do que por condições intrínsecas, chegaram a obter prêmios internacionais, elas não conseguiram, todavia, por motivos complexos (...) retratar a verdadeira alma do Nordeste. E o que temos presenciado, na maioria dos casos, é o embuste, o jogo fácil de nossas variantes folclóricas, os demagogos protestos de cunho político- social, a exaltação de um misticismo exagerado e/ou fantasmagórico (LEAL, 1982, p. 47). O Céu de Suely é um filme que revela a trajetória da Hermila num contexto contemporâneo, no qual apresenta logo na abertura lembranças da personagem do período em que engravidou e na sequência seguinte mostra o seu retorno para o sertão cearense. Hermila havia ido tentar a vida com Mateus, pai de seu filho, em São Paulo e motivados pelas dificuldades que enfrentaram eles resolveram voltar a sua cidade natal, combinados que Hermila viria primeiro e ele depois, juntamente com uma máquina de gravar CD e DVD para ser a fonte de renda da família. Embora os planos de Hermila fossem este de

continuar a viver com o marido e o filho Mateuzinho, a vida tomou outro rumo, ela fora abandonada pelo marido e teve que seguir sozinha em Iguatu, contando com o apoio de sua avó e tia. No entanto, a personagem não estava satisfeita com a situação, com o modo de vida que as pessoas da cidade levavam e muito menos com as possibilidades de emprego que ali surgiam, estes foram alguns dos motivos que a levou a decidir partir dali para qualquer lugar, tendo como único critério um lugar que fosse o mais longe possível de Iguatu. Com uma condição de vida precária, Hermila resolve se rifar para conseguir juntar dinheiro para fugir daquela situação. “Uma noite no paraíso” era o prêmio da rifa que passou a vender pela cidade, levantando a ira de alguns, o desprezo de outros e gerando polêmicas em torno de questões morais. Ao final, mesmo sofrendo com sua escolha, Hermila alcança seu objetivo, reúne dinheiro suficiente e consegue deixar Iguatu e o modo de vida que ela despreza. Retomando o debate sobre cultura como um espaço de lutas, um território de incompletudes em permanente mudança, pode-se identificar em O Céu de Suely este diálogo sobre permanências e continuidades ao longo de toda a trama. O filme tem seu início e fim marcados, justamente, pelo movimento, chegada e saída, representações de fugas e uma contínua busca por um espaço de identificação. Com começo e término marcados pelo deslocamento visível de um espaço físico, isto deixa margem para se pensar um movimento bem mais intenso e subjetivo que se passa no imaginário invisível da personagem Hermila. O percurso para se chegar ao final desta história, embora bastante envolvente e bem amarrado, condiciona o espectador a refletir acerca dos pontos de diferenciação entre o que seriam as construções imaginárias dos personagens e a realidade. Até que ponto as mentiras inventadas por Hermila de que ela passara um tempo morando em São Paulo não se transformaria numa fantasia para ela mesma? A fantasia, desta forma, é algo presente desde o início desta narrativa. E os desencontros entre verdade/realidade e a fantasia inventada pela personagem podem ser ilustradas, por exemplo, na cena em que ela chega a Iguatu, desce do ônibus na estrada e fica esperando por sua tia num posto de gasolina; contrapondo-se ao momento em que vai procurar por Mateus, pai de seu filho, que dissera que retornaria para sua cidade natal um mês após a esposa, e se dirige à rodoviária para se informar sobre o ônibus que saíra de São Paulo. Por que o local de chegada dos personagens seria diferente se ambos tinham a mesma origem? Os espaços urbanos de vivência desta cidade são projetados de forma que percorrem lugares de relações de trabalho e lazer. Transitando pela cidade percebe-se a escassez de ruas pavimentadas, construções precárias, a existência de um círculo vicioso de ambientes como feiras, bares, lanchonetes, mercados e o posto. Aqui, atento-me as operações realizadas neste último espaço, no qual práticas cotidianas tanto de trabalho como de lazer ocorrem. O posto é o local de acolhimento de Hermila assim que chega à cidade, o lugar para onde sai para se divertir, o ambiente de trabalho e o local que marca sua mudança.

A história narrada em O Céu de Suely se consolida numa forma simples, na qual vozes do cotidiano são as responsáveis pelo tecer desta narrativa, mesclando suas próprias contradições naturais, deixando de lado toda aquela construção folclórica e demagoga que Leal (1982) associava ao cinema feito no Nordeste. A construção da narrativa em O Céu de Suely propicia situações que constroem um lugar comum nesta cultura, a maneira como se narra às práticas do espaço, as maneiras de frequentar um lugar, os modos de instaurar uma confiabilidade nas situações sofridas são formas de se construir uma narrativa de um pertencimento comum as situações ou espaços. Abrindo uma possibilidade de vivê-las dentro de uma mobilidade plural de interesses. A protagonista da história aos poucos vai definindo um lugar comum aos personagens, que no caso do filme, podemos conceber alguns lugares de vivência como o posto de gasolina ou o mercado, por exemplo, como ambientes de pertencimento de muitos personagens, um local de encontro e desencontros com seus sentimentos, um espaço que embora represente uma passagem física consegue ter elementos de identificação com quem os vive. A narrativa construída em todo o filme dá a impressão de um movimento dialético, ora de personagens que saem e retornam, ora daqueles que estão limitados a um movimento preso. Uma contradição que evidencia o caráter de imobilidade desta ação. A própria Hermila é uma personagem construída desta forma. As perspectivas de uma vida num lugar de passagem, como Iguatu, no qual todos permanecem não demonstra ser algo que lhe apraz. Colocando a narrativa como um local de fala de uma individualidade cujo lugar de atuação é composto de uma pluralidade incongruente de suas ordens sociais e relacionais. Uma narrativa que esclarece quais os espaços cotidianos de sociabilidade da personagem Hermila, transformando-os em marcos de sua identidade. É interessante salientar que não são apenas alguns espaços físicos que ganham voz ao longo do filme, a geladeira torna-se um elemento importante na narrativa, podendo-a ser vista como um espaço no qual a condição econômico-social se revela, demonstrando a oferta do que se comer; ou ainda como sinônimo de poder social, ascensão social. Como exemplo de melhoria social temos o momento em que a mãe de Mateus revela que o filho lhe ajudara a dar entrada na compra deste eletrodoméstico, e fala isto alegremente, expondo toda sua satisfação com a posse deste bem. Este mesmo objeto também é utilizado como uma forma de escapar o calor da região – uma das características mais conhecidas da região Nordeste: o calor –, que exceto quando a personagem Hermila fala com Mateus ao telefone e diz que o filho Mateuzinho não estava adaptado ao clima da cidade, o filme revela essa peculiaridade climática através da ausência de diálogos verbais, como no momento em que Hermila e Georgina se refrescam ficando dentro da geladeira, deixando sua porta aberta e passando alguns minutos imersas no eletrodoméstico como forma de fugir do calor que faz na cidade.

O som ao longo de todo o filme também reflete essa construção narrativa envolvida por uma busca de um lugar comum, uma identificação com aquilo que a cerca. A trilha sonora perpassa diferentes estilos, fazendo uma co-relação com a própria trajetória da personagem Hermila. O brega e o forró se fazem de som ambiente de momentos de descontração da personagem, enquanto os sons eletrônicos remetem às vivências sublimes de Hermila, seus momentos de introspecção. Além ainda dos sons ambientes que constituem falas ao longo de todo o filme, sejam dos pássaros, das motos que transitam pela cidade, do trem que passa, dos auto-falantes do carro, todos são cimento da construção do espaço que o filme está representando. Num espaço onde o jogo e apostas fazem parte do cotidiano das pessoas, Hermila também encontra nesta prática a chance de mais uma fuga. Aludindo à tática que condiciona ações a organizar o espaço a sua volta, fazendo o reemprego de sistemas já existentes, que no caso do filme é a reutilização de uma prática como a rifa. A estratégia usada por Hermila ao assumir o codinome Suely para se rifar foi a maneira encontrada para sair de Iguatu com destino a um lugar qualquer, tendo como único propósito fugir para o lugar mais longe que pudesse. Assim, observa-se que os comportamentos dos personagens vão muito além do lugar físico que ocupam, um exemplo disto foi quando Hermila ao recriar espaços e maneiras de fazer ao decidir rifar seu próprio corpo transformou a forma como ocupava determinado espaço, redefiniu limites e construções tudo isso sem ter saído do mesmo lugar que ocupara antes. As relações estabelecidas pela personagem com os moradores da cidade são muito tênues, de maneira que com a família chefiada pela avó é notória a rigidez de uma formação matriarcal, na qual as ações de qualquer membro da família devem ser aprovadas por ela. Embora Hermila tenha saído de Iguatu motivada pela paixão por Mateus, seu retorno para a cidade também marca a transição para o abandono deste sentimento que é confortado por João, um amigo da personagem que nutre uma antiga paixão pela mesma, ficando sempre a espera de um reencontro. O confronto de valores também é um ponto forte das relações da cultura e, claro, algo bem visível em O Céu de Suely. A resignificação de valores de maneira contínua é percebida, por exemplo, tanto na ação de se rifar da personagem principal, como também na sua própria construção do conceito de prostituição, uma prática cotidiana da cidade e que tem sua presença marcante no posto à beira da estrada. Hermila insere sua experiência como fonte de mudança baseado no que ela entende e coloca como prática da função de prostituta. Para ela, o fato de se rifar não a torna uma prostituta, apenas ela se coloca como mercadoria para ser oferecida e que por trás disso, ela guarda a sua vontade de juntar dinheiro para mais uma fuga, mais uma tentativa de se encontrar num lugar qualquer. E por se comportar de maneira oposta à grande maioria dos que vivem em Iguatu, Hermila vivencia esse campo de lutas que é a cultura, no qual são

produzidos significados de maneira constante e a cultura se coloca como um mediador de todos esses valores simbólicos. Nos momentos finais do filme, enquanto dá banho em seu filho, Hermila escuta uma voz, parecida com a de sua avó, chamando-a como Suely. Seria o seu inconsciente já antecipando a sua nova tentativa de encontrar o seu “céu”, um lugar que possa se sentir pertencida, um lugar para chamar de “seu”? No filme Viajo porque preciso, volto porque te amo inicia-se com um elemento ao qual sempre se remete quando se pensa no termo viagem: uma estrada. Com uma trilha sonora composta pela programação de uma rádio que traz como repertório em sua maioria a música brega. A projeção continua sempre mostrando para o espectador o que o protagonista vê. Inicialmente, o protagonista-narrador, José Renato, descreve o que levara para a viagem e faz a leitura objetiva de seu ‘diário de bordo’ dia após dia, imaginando que a trajetória pela BR-432 tem como objetivo único a observação da região que será desapropriada para a travessia de um canal. E assim são descritos o solo, a vegetação e os moradores da região, até então parece ser apenas uma investigação para o seu trabalho. A tranquilidade até então demonstrada na descrição dos locais por onde passa logo é deixada de lado, quando José Renato coloca a ‘Galega’ como receptora desta conversa. Na verdade, o protagonista passa a ler cartas que supostamente escrevera para a sua exmulher, nas quais deixa explícito o seu lamento pela situação, a falta que sente dela e sua tristeza pela separação. A contagem aqui muda seu rumo, antes o que era crescente (dia um, dia dois) torna-se decrescente: “Agora faltam 27 dias e 12 horas para acabar a viagem. Parece uma eternidade”, comenta José Renato. Aqui, o protagonista cria um imaginário no qual ele ainda permanece casado com Joana (nome verdadeiro de Galega), cujas cartas relatam seu dia-a-dia enquanto estão afastados, exclusivamente, pela viagem. Este imaginário envolve um processo que articula uma série de conflitos que volta e meia se legitimam, conduzindo a uma série de incoerências na própria construção das identidades do personagem. A rádio é sua companheira nesta viagem solitária, o que a torna algo mais duradouro ainda. “A viagem mal começou e tudo me irrita”, é com esta frase que José Renato relata como está sendo sua viagem. A paisagem que não muda, levando a crer não sai do lugar, passando e repassando sempre pelo mesmo espaço, “que agonia este lugar, tudo se arrasta”, comenta o protagonista. Ele ainda reforça que as lembranças da sua amada, carinhosamente apelidada de ‘Galega’ é o que o faz feliz durante a viagem, muito embora pela monotonia da viagem e por pensar demais nela isto chega a cansá-lo. Numa parada num posto de gasolina algo o chama atenção: uma pintura na parede com a frase “Viajo porque preciso, volto porque te amo”. Em mais um diálogo fictício com a amada, José Renato comenta que a sua viagem a trabalho é algo que fora necessário e que seu retorno à Fortaleza se deve por amá-la.

Saudade é um sentimento relembrado durante o filme constantemente, assim como Hermila em O Céu de Suely. Outra semelhança entre os filmes são alguns elementos como a própria estrada, que se faz presente no filme de Karim Aïnouz como local de fluxo dos que passam por Iguatu; o outro elemento é o restaurante na beira da estrada, em Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo ele é o ambiente onde José Renato encontra a figura que lhe chama atenção, é o local que recorre quando tem fome, já em O Céu de Suely ele é o local de trabalho da avó de Hermila. As incoerências entrelaçadas no discurso de José Renato se dão justamente quando se refere à Joana. Embora ele não suporte a ideia de ficar só, as lembranças que tem dela acabam tornando-se o único fator triste da sua viagem. Incoerência ainda podemos considerar o motivo de sua viagem, que não fora motivada unicamente pela necessidade do trabalho, mas pelo seu desejo de fugir de Fortaleza, fugir do término de seu relacionamento, utilizar-se da viagem de 30 dias como tempo necessário para superar a perda e retomar sua vida. Neste filme esta fuga não consegue seu propósito final, já em O Céu de Suely isto fica em aberto, na cena final vê-se a protagonista indo embora para o mais longe que pode, neste caso Porto Alegre, se lá ela conseguiu fugir dos sentimentos que lhe afligia o diretor deixou para que cada espectador tirasse suas próprias conclusões. Em Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo o movimento de buscar o isolamento também é rompido com a própria necessidade do protagonista de se relacionar com pessoas, tanto que atrasa sua viagem numa estada em Caruaru, em Pernambuco, onde busca na feira a companhia de pessoas. Ou mesmo quando foge da rota de sua viagem e chega a Juazeiro, no Ceará, para apenas estar entre pessoas, numa cidade que segundo ele nunca está vazia. Lá ele apela para o sentimento geral que toma a cidade, de devoção a Padre Cícero e de crença em seus milagres, e procura a sala dos milagres para lá deixar uma foto de seu casamento na tentativa que o santo atenda seu desejo. O desespero do protagonista é claro no seu discurso, que revela também a sua não religiosidade: “Tá todo mundo procurando um milagre, inclusive eu”, relata. A contraposição entre seus desejos é constante em todo o filme, a monotonia da viagem, da paisagem só o incomoda, a viagem que antes tinha como objetivo esquecer Joana, em certo momento do filme tem como finalidade encontrar uma flor que a sua ex-mulher procurava para uma pesquisa. O abandono de José Renato o faz sentir “amores e ódios repentinos por você”, como mesmo fala o protagonista quando se lembra de Joana. Como forma de tentar esquecê-la, além de observar os lugares por onde passa e as famílias que visita, José Renato também começa a analisar o cotidiano da região, o que as pessoas fazem como trabalho, a dinâmica das cidades e em mais de uma delas ele se envolve com prostitutas. A forma como elas agem, a maneira como vêm a vida é algo que interessa ao protagonista, e aqui, focamos uma que ele conheceu em Caruaru, a qual revelou um sonho que despertou curiosidade de José Renato, ela sonhava em ter uma ‘vida lazer’. Esta

vida seria uma vida na qual ela seria correspondida no amor, e mais uma vez o amor é o elemento de maior desejo de uma pessoa. Vale lembrar que quando José Renato descrevia as famílias que entrevistou, ele sempre relatava algo que remetia a este sentimento, como o casal de senhores que estavam casados há 50 anos e nunca haviam se separado por uma noite sequer. Embora o cansaço da viagem, a não satisfação com todo o cotidiano que traçou durante dela e a com a solidão que o acompanhará, José Renato ao fim do filme começa a contar seus dias não tendo como marco a dia que saiu de viagem, mas o dia em que se separou. Começa a refletir em como se comportou logo após ela, com imobilidade a qualquer situação, e sua decisão por fazer a viagem como tentativa de se movimentar, de voltar a andar e a fazer suas atividades rotineiras, enfim voltar a viver. O processo para isto não foi fácil e nem se concluiu ao longo do que se vê no filme, mas as transformações pelas quais o personagem passava exemplificava as contradições que a própria constituição de uma identidade remete. Fundamentada na proposta da identidade como uma celebração móvel, formada e transformada continuamente diante das práticas cotidianas do sujeito, e subsequentemente, na ideia da cultura como algo plural, acredito que tanto O Céu de Suely e Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo como grande parte da produção cinematográfica feita no Nordeste na contemporaneidade, são coerentes com esses princípios, com a realidade que se vive e com a multiplicidade de maneiras de ser dos sujeitos de hoje. Numa visão particular, os filmes analisados neste ensaio me parecem bem sensível a estas questões, a fluidez com que as ações acontecem, as histórias dos personagens se entrelaçam, personagens e locais são construídos em meio a uma disputa de valores, numa contínua negociação de relações simbólicas, onde valores, poder e a própria cultura estão em jogo.

Referências ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. A invenção do nordeste e outras artes. Recife: Massangana; São Paulo: Cortez, 1999. BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2010. CERTEAU, Michel de. A Invenção do cotidiano 1: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. GRAMSCI, Antonio. “A formação dos intelectuais”. In: Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989. HALL, Stuart. A identidade na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Dp&A, 2005. ______. Da Diáspora. Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte/Brasília: Ed. da UFMG/UMESCO, 2003. LEAL, Wills. O Nordeste no cinema. João Pessoa/Recife/Salvador: UFPB/FUNAPE/UFBA, 1982. WILLIAMS, Raymond. Cultura. São Paulo: Paz e Terra, 1992. ______. Resources of Hope. Londres: Verso, 1989. ______. Palabras clave: un vocabulario de la cultura y la sociedad. Buenos Aires: Nueva Visión, 2003.

Observar ao redor, observar e sentir: o cotidiano como catalisador de sensações Iomana Rocha de Araíjo Silva

Pode-se dizer que é comum, diante de imagens do cotidiano apresentadas por meio cinematográfico, que o espectador tenda a se identificar, buscando se ver nas representações, romantizar situações corriqueiras, evocar lembranças e sensações. A relação com o espaço e com o tempo é inerente à existência humana. Mas a forma de percepção destes elementos sofre uma evolução histórica. A indústria cultural, por sua vez, influencia diretamente na construção destas formas de percepção, bem como na relação afetiva com o passado. Andreas Huyssen (2000) aponta que um dos fenômenos culturais e políticos mais surpreendentes dos anos recentes é a emergência da memória como uma das preocupações culturais e políticas centrais. Neste artigo, observa-se a utilização de imagens do cotidiano pelos filmes de Danilo Carvalho, Supermemórias (2010) e de Marcelo Gomes e Karim Ainouz, Viajo por que preciso, volto por que te amo (2010), focando na poetização que é dada a estas imagens e também na potencialidade destas em catalisar sensações no espectador, em especial, sensações ligadas à lembranças de um imaginário que se mostra hora coletivo, hora individual. Supermemórias é um filme que resulta de um projeto maior, de mesmo nome, no qual o diretor recebe doações espontâneas de filmes de arquivo em super 8, filmados pelos mais diversos moradores da cidade de Fortaleza/CE. A partir destas imagens o diretor cria e ressignifica, resultando em filmes documentários experimentais. O projeto “Supermemórias: mais uma memória para uma cidade sem lembranças” nasce no quadro do Primeiro Edital das Artes promovido pela Prefeitura Municipal de Fortaleza através da Fundação de Cultura, Esporte e Turismo (FUNCET), que objetivava fazer uma tipografia poética da cidade e seus habitantes através da revisitação de imagens de arquivo de moradores locais. Essas imagens de arquivos pessoais são uma série de filmes caseiros captados originalmente para o registro da memória pessoal, e que estariam certamente renegados ao esquecimento se não fosse o projeto. Tais fragmentos mostram famílias, amigos, lugares que já não são os mesmos, atos cotidianos em um passado recente da cidade de Fortaleza. Memórias doadas, seja pessoalmente, ou pelo site do projeto (http://www.filmesupermemorias.com.br/), de forma colaborativa, visando o desenvolvimento de uma poesia coletiva. A partir desses registros, busca-se a construção de um olhar poético sobre a memória da cidade. O objetivo do diretor é fazer uma tipografia da cidade e seus habitantes. Segundo ele: O resultado dessa experimentação simboliza toda uma época, através das suas cores, texturas e ritmo de filmagem. Além da estética, a carga emocional inerente a essas imagens também contribui para a noção de história que esses registros evocam (CARVALHO, 2010). Observa-se neste projeto, uma ode ao romantismo das ‘imagens granuladas’. O uso de

películas com bitola praticamente em desuso (8mm) explora a nostalgia que tal estética trás consigo. A cor e a textura destas imagens se mostram como um catalisador da experiência nostálgica, ou da experiência estética acarretada por estes elementos nostálgicos. E tal experiência irá incidir não apenas naqueles que se identificam mais afetivamente com as imagens os moradores de Fortaleza, mas em qualquer um que as veja, devido à potencialidade nostálgica inerente ao super8 em si. Outro aspecto importante é a temática das imagens, trata-se de imagens que representam o cotidiano em seus momentos mais variados, típicos de praticamente todo núcleo familiar, grupo de amigos, casal, como é o caso de imagens de nascimento dos filhos, casamentos, festas de aniversário, feriados na praia, almoços de família, entre outros. Estas imagens geram uma identificação direta e afetiva com o espectador, que se vê naqueles momentos, se identifica com aquelas imagens que, de certa forma, soa familiar. Estas imagens de memórias e sentimentos gerais potencializam uma fruição na qual o espectador associa tais imagens a suas próprias vidas e suas próprias memórias, através das sensações que estas lhe remetem, e que podem inclusive ser positivas ou não, dependendo da relação de cada um com suas memórias pessoais do cotidiano. Neste filme, o cotidiano é apresentado de forma despersonalizada, não existe a apresentação de personagens específicos, mas uma homogeneização de memórias e sentimentos, que são catalizadoras por sua vez de fruições pessoais. Tais representações generalistas do cotidiano se transformam na fruição individual do espectador. O filme romantiza e poetifica a relação com o cotidiano, de modo que este passa a ser um cotidiano comum a qualquer um. Já em Viajo porque preciso, volto porque te amo o filme foi realizado a partir de imagens gravadas pelos diretores, nos mais diversos suportes (16mm, super 8, câmeras fotográficas, VHS, etc) no decorrer de um período de mais de dez anos. Foi gerado um enorme material bruto de imagens contendo o que, para os diretores, lhe arrebatavam no sertão nordestino, e ao mesmo tempo era carregado de nostalgia. Sem nenhum roteiro prévio, os diretores se puseram a interrelacionar tais imagens e fazer significar. Para unir tais imagens foi inserido uma narrativa póética, e um personagem sem rosto. Tal narrativa relata a trajetória de José Renato, um geólogo, que é enviado para o interior do Nordeste a fim de realizar uma pesquisa de campo. No entanto, seu pensamento é constantemente desviado por questões e devaneios relativos à sua vida pessoal. Sabemos de seus pensamentos e de sua história pregressa conforme ele vai os relembrando. O espectador é assim convidado a embarcar nesta jornada, contextualizada por imagens que nos dão um panorama bastante poético e realista do Nordeste brasileiro, mostrando figuras curiosas, estabelecimentos inóspitos, além das tradicionais paisagens e sons do sertão. Imagens resultantes da passagem dos diretores pelo sertão nordestino, e da interrelaçao com o lugar.

O filme pode ser visto como um diário de viagens, próprio dos diretores, Karim Ainouz e Marcelo Gomes, que é exposto ao público. Um álbum de fotografias móvel, lembranças em movimento, documentos de um lugar, e sobretudo de pessoas. Desenvolvem assim o que para Tarkovski seria a função exata do cinema: construir um vasto edifício de memórias (1998, p. 67). As poéticas imagens deixam exalar um estado de desgaste, que ressignifica toda uma relação nostálgica e emotiva dos diretores com esta região e seus personagens. Sobre este aspecto de desgaste inerente às imagens deste filme, retoma-se Tarkovski, apontando sua relação com o conceito da palavra japonesa Saba, que significa ‘corrosão’, o desgaste natural da matéria, a marca do tempo, e que é visto pelos japoneses como elemento do belo, corporificando a relação entre arte e natureza (1998, p.67). Em sua viagem, o narrador só vê solidão. Estradas sem movimento, caminhos quase desertos parecem de um mundo inabitado. Artifício e miséria convivem, lado a lado. Nos poucos contatos humanos, as pessoas posam, mudas e imobilizadas, para serem fotografadas. Flores de plástico encontradas no caminho da viagem do personagem revelam a crise do que parecia uma relação idílica. Pensando na volta, o narrador especula: “Se eu chego com essa flor, quem sabe volte a reinar a alegria?” Afinal, comenta que houve uma separação. Tem dificuldade em trabalhar. Busca consolo nos motéis com prostitutas de beira da estrada. Já não pensa na volta: “Não quero que essa viagem acabe nunca”. É então que muda a maneira de observar. Pela primeira vez quem filma interage com quem é filmado. Simone da Silva, olhando para a câmera, diz: “Queria ter uma vida lazer. Queria ter um amor reservado só para mim.” O narrador também quer “ter uma vida lazer”. Passa a dizer: “não volto por que ainda te amo.” Documentário e ficção se encontram borrados. Tem como ponto forte a construção poética, não só imagética, mas sonora. É ao mesmo tempo uma experimentação de linguagem, e um filme homenagem. Homenagem ao sertão nordestino, e a tudo aquilo que foi responsável pela construção do imaginário dos diretores. O filme parte exatamente da revisitação deste imaginário - pessoas, locais, imagens, costumes vividos pelos diretores em seus tempos passados, reavivados de forma bastante poética, e carregado de nostalgia. Assim como coloca Tarkovski, o tempo não pode desaparecer sem deixar vestígios, pois é uma categoria espiritual e subjetiva. “e o tempo por nós vivido fixa-se em nossa alma como uma experiência situada no interior do tempo” (TARKOVSKI, 1998, p. 66). O filme se mostra assim como uma compilação de vestígios de lembranças próprias dos diretores. Essa revisitação se mostra de fato como uma relação de causa e efeito, que segundo Tarkovski, são mutuamente dependentes, tanto no sentido de sua projeção para o futuro, como em seu caráter retrospectivo. Um gera o outro. O vínculo de causa e efeito constitui

também a forma de existência do tempo, o meio através do qual ele se materializa na pratica cotidiana. Pode-se dizer que: “Num sentido moral, causa e efeito podem ser ligados por um processo de retroação, quando, então, por assim dizer, uma pessoa volta a seu passado” (TARKOVSKI, 1998, p. 66) O direcionamento dado ao filme em si, por sua vez, busca levar o espectador a se identificar com aquelas lembranças, lugares, pessoas, a sentir essa sensação de nostalgia, de identificação, a imergir em todo aquele contexto do sertão, a sentir toda a solidão, tristeza, e desestabilidade associada ao personagem, e que é um reflexo do cotidiano e do imaginário vivido pelos diretores. E tal imersão se dá mesmo que o espectador não tenha aquela referência de cotidiano, o que é facilitado pela fotografia de caráter realista e por vezes suja e granulada, e pela bem construída paisagem sonora (representação das características sonoras de algum ambiente a partir dos sons que lhes são naturalmente próprios), que tem o poder de levar o espectador a fruir as reminiscências poéticas do sertão, e a olhar as imagens com a carga nostálgica proposta pelos diretores. Um fato observado com os exemplos citados é a comprovação de que, segundo coloca Andreas Huyssen (2000), embora os discursos de memória possam parecer, de certo modo, um fenômeno global, no seu núcleo eles permanecem ligados às histórias de nações e estados específicos. O que se comprova diante das especificidades da abordagem em cada filme: ligadas a um cotidiano regional, no caso de Viajo porque preciso, volto porque te amo, e pessoal, no caso de Supermemórias (porém focado no contexto específico local de Fortaleza). Nestes filmes observa-se uma quebra com a leitura rígida e dirigida do sistema clássico, que tende a produzir enunciados unívocos. Nota-se nestes filmes se incita a cooperação ativa do espectador na construção do sentido, permitindo assim o surgimento de resultados plurívocos. Dentro desta relação de cooperação, é importante se observar a questão cultural e ideológica, seja as que já estão entranhadas na própria obra, seja as características individuais de cada espectador. Essas questões culturais e ideológicas individuais são responsáveis pela heterogeneização das interpretações das obras. Quando se analisa, ou se participa da realização de uma obra, toda a carga de referências e experiências que cada indivíduo adquiriu durante a vida irá determinar a forma como esse formará seus conceitos sobre a obra, influenciará na forma como esse gerará o sentido desta. Serão essas características individuais que determinarão as escolhas dos espectadores na construção desta. Para Comolli (2009), um dos vetores de maior importância para entendermos a dinâmica do documentário é o confronto com o outro, com a mise-en-scène deste outro, pois a partir daí se estabelecem as crises de representação e o acesso ao que seriam os rastros do real, que estarão visíveis, talvez, à sombra do espetáculo, dos olhares cruzados entre

espectador, cineastas e personagens. É importante notar, todavia, que essa interrelação entre aspectos pessoais e culturais e as imagens que se apresentam ocorre não apenas na relação entre a obra e o espectador, mas também no próprio momento de criação entre obra e realizador. No que diz respeito a esta interrelação, Comolli (2009) coloca que uma vez que durante o processo de confecção de um documentário não é apenas o olhar do cineasta que orienta a construção de sentidos, mas o olhar cruzado do mundo, das pessoas, dos objetos, dos espectadores. Assim, podemos afirmar que o cotidiano e seus sujeitos possuem também influencia direta na realização destas obras cinematográficas. Segundo afirma Salles (2006, p. 151) a criatividade do sujeito é constituído por seus engajamentos, dificuldades, conflitos. E é situado, espacialmente, temporalmente, historicamente. Ao tratar deste descentramento do sujeito criativo, Salles ressalta a relação artista obra e a observância dos processos de criação como espaço de constituição da subjetividade. Bem como ressalta Colapietro (1989) que o sujeito não é uma esfera privada, mas um agente comunicativo. Obras e artistas não só estão imbricados de modo vital, como estão sempre em mobilidade, são seres em permanente constituição. Aponta-se então para a presença, nestes filmes, da valorização de uma interrelação entre o diretor e o mundo e entre o resultado desta - a obra - e o espectador. Gerando, a partir de imagens do cotidiano, uma relação dinâmica e aberta, onde o sujeito (seja ele o diretor ou o espectador) é visto como uma combinatória de experiências, passível a constantes mutações. A ligação com o cotidiano e com a nostalgia presente nestas produções é vista, segundo Svetlana Boym (2001), como um mecanismo de defesa para os tempos acelerados atuais. Trata-se da construção da ilusão de um passado, de um anseio por um lugar seguro, mítico, que nunca existiu de fato, apontando para faltas e desejos. Diante da observação deste filmes foi possível notar que ocorre, por parte dos diretores, algo como uma fuga diante de uma plastificação da imagem cinematográfica e da superficialidade dos temas abordados pela produção cada vez mais comercial. Eles vêem no cotidiano e no que é real uma forma de resistência, de fuga. Há por traz da valorização do cotidiano, uma valorização do mínimo, do singelo, do que é real ao homem comum.

Referências BOYM, Svetlana. The future of nostalgia. New York: Library of Congress, 2001. CARVALHO, Danilo. Supermemórias: mais uma memória para uma cidade sem lembranças. Disponível em: http://www.filmesupermemorias.com.br/. Acesso em: 20/07/2010. SALLES, Cecília Almeida. Redes de criação: construção da obra de arte. São Paulo: Horizonte, 2006. COMOLLI, J. L. Ver e poder, a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Ed. Da UFMG, 2009.

COLAPIETRO, Vincent M. Abordagem de Peirce sobre o Indivíduo. Uma Perspectiva Semiótica na Subjetividade Humana. New York: State University of New York Pres, 1989. HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

O cotidiano dos colecionadores de imagens Diego Andres Salcedo

Existe um registro no Times, de Londres (1841), que nos revela o interesse de uma pessoa, que assinava por "E. D.", em adquirir selos postais adesivos usados e em grandes quantidades para forrar as paredes de seu quarto. Esses artefatos, atualmente raros e financeiramente rentáveis, foram os primeiros selos postais emitidos, no mundo, pelo correio britânico, em 1840. O fato citado sugere algumas particularidades. A pessoa não queria selos postais novos, também não os queria para taxar alguma missiva e, muito menos, para ajuntar, colecionar, expor, classificar, catalogar, criar listas hierárquicas e temáticas. Nesse mesmo período, o gentilhomme M. Vetzel, de Lille (França), reconstituía folhas inteiras do primeiro selo postal adesivo - Penny Black - no seu diário, sendo considerado desde então, apesar da improbabilidade desse fato, um dos pioneiros no colecionismo do selo postal. Vale ressaltar, que o colecionismo sistemático do selo postal, na Europa e para além de suas fronteiras, possibilitou e ainda suscita muitas especulações, como mostram os irmãos Williams (1965, p. 64): Não se sabe ao certo sequer quem foi o primeiro coleccionador de selos de correio, mas a idéia de formar uma coleção talvez tenha partido de John Bourke que, em 1774, como Recebedor Geral do Imposto do Selo na Irlanda, iniciou uma coleção de estampilhas fiscais que saíram pela primeira vez nesse ano. Talvez o Dr. John Edward Gray, funcionário do Museu Britânico, que em 1862 escreveu que tinha principiado a colecionar selos de correio pouco depois de o sistema entrar em vigor, tivesse ouvido falar de Bourke e decidido seguir-lhe o exemplo; mas mesmo assim é possível que Gray não tenha sido o primeiro coleccionador de selos de correio [...]. Outro pretendente ao título de primeiro coleccionador de selos é John Tomlynson que recebeu um Penny Black e um sobrescrito-Mulready no dia seguinte à sua emissão, colocando-os num livro como ponto de partida para a sua coleção [...] e também um tal E. van der Beeck, um russo mencionado em The Stamp Collector, por W. J. Hardy e E. D. Bacon, como tendo começado a coleccionar em 1854 e continuado nessa atividade em 1897 quando o livro foi publicado. Tanto o neófito colecionador francês, que colava os selos postais nas folhas de seu diário, quanto a cidadã inglesa, que utilizava os selos postais para forrar as paredes de seu quarto, são meus relatos sobre algumas das possíveis práticas de pessoas comuns. Esses dois atores sociais, em seus tempos históricos, escolheram utilizar esses objetos na busca por uma satisfação pessoal, não obedecendo às regras impositivas estatais de uma cultura de massa eurocêntrica, mas, seguindo códigos culturais e referenciais particulares. A partir desses dois relatos, parece coerente propor que exista alguma relação entre a atividade do colecionismo, utilizando o selo postal como objeto de enfoque, e os estudos sobre a “Invenção do Cotidiano” (CERTEAU, 1994; 1996), admitindo alguns conceitos postulados pelo autor. Para isso, num primeiro momento, enfatizo alguns apontamentos

breves sobre o colecionismo (admitindo que seja uma temática que está encarnada no meu cotidiano, visto que, eu mesmo, sou um colecionador de selos postais). Em seguida, produzo uma narrativa com o objetivo de esclarecer a proposta, tentando relacionar os “modos de fazer” do colecionador com os conceitos binominais “lugar/espaço” e “estratégia/tática”. Inicialmente, parece oportuno esclarecer o que penso sobre colecionismo. Não pretendo realizar uma revisão bibliográfica, pois algumas dimensões teóricas concernentes aos estudos sobre essa categoria, já foram analisadas e debatidas em vasta literatura internacional. A pequena lista a seguir, ordenada alfabéticamente pelo sobre nomes dos autores e que não tem a pretensão de ser exaustiva, mostra àquilo que o discurso científico chama de estado da arte, e que, aqui, representa uma parcela dos estudos sobre o colecionismo na Europa e nas Américas: Alsop, 1982; Baudrillard, 2008; Belk, 1995; Benjamin, 1987; Blom 2003; Bourdieu e Darbel, 2003; Codet, 1921; Cooper, 1963; Csikszentmihalyi e Rochberg-Halton, 1981; Dittmar, 1992; Elsner e Cardinal, 1994; Muensterberger, 1994; Pearce, 1993, 1995 e 1998; Poirier, 2006; Pomian, 1984 e 1990; Rheims, 1961; Sánchez, 1999; Taylor, 1960 etc. Por sua vez, é a partir dessa literatura que ocorrem os escassos, incipientes e inexpressivos debates, no Brasil, sobre o colecionismo, os objetos de coleção, os protagonistas envolvidos num sistema que entendo ser um complexo laboratório contemporâneo. De fato, penso que o enquadramento desses debates permanecem limitadas à algumas áreas, como a Museologia e a Antropologia, o que acarreta a dominação de doutrinas isolantes e reduzem, sobremaneira, as posibilidades de ampliação dos enfoques e dos sentidos inerentes a esse campo de reflexão. Posto isso, resulta dos múltiplos sentidos que atribuo ao termo colecionismo a sua trajetória etimológica. Não cabe aqui realizar esse estudo de forma aprofundada, por isso aceitarei a sugestão de Marshall (2005, p. 13). A etimologia desse termo “encontra-se no proto-indoeuropeu, universo semântico quadrimilenar em que se formou a raiz leg. Nesta formação, assinala-se o vínculo originário entre 'coletar' e 'falar', assim como os traços genéticos e efeitos civilizatórios do colecionar”. A sugestão desse autor provoca e permite uma reflexão: que, apesar da mesma raiz etimológica, existe uma diferença fundamental nos significados dos termos colecionar e colecionismo. Ao contrário do que algumas pessoas podem defender, penso que a ação de colecionar é constituinte da condição e natureza do “bicho-homem” (MORRIS, 2004, p. 9). Essa ação específica é transversal ao desenvolvimento cognitivo e sócio-cultural da auto-denominada espécie humana, desde o ancestral do Homo-Sapiens até o “Pós-humano” de Fukuyama (2003). Colecionar está, direta e necessariamente, relacionado a escolher, é uma imanência humana, a “práxis” aristotélica (GOBRY, 2007, p. 120). Por sua vez, a ação de escolher pressupõe a capacidade simbólica humana, da qual “dependem nossas ações” (SAVATER,

2004, p. 23). Assim, colecionar não sugere relação, mas ação. Por outro lado, colecionismo ou “colecionamento” (GONÇALVES, 2007, p. 24) não é uma ação ou uma prática, mas um processo que indica, para além da ação, uma relação. Ela pode ocorrer tanto entre uma pessoa, um grupo de pessoas ou uma instituição com um ou mais objetos, quanto no deslocamento do objeto de sua função primeira (ligada à produção/utilização), para a função de “possuído” (BAUDRILLARD, 2008, p. 94), ou ainda, ao ultrapassar o estágio da coleta e passar ao do ajuntamento, acondicionamento, armazenamento e colecionamento. É uma atividade do homem sobre e com os objetos para além da práxis, é a “poiésis” de Aristóteles (GOBRY, 2007, p. 118). Na prática do colecionismo reside a ação de colecionar, mas o inverso não é válido. Outro aspecto que não posso dispensar, diz respeito a duas características fundamentais do colecionismo, mas, também, em grande medida, sobre os “modos de fazer” do sujeito comum. Uma diz respeito sobre a organicidade do mundo e a outra sobre a relação entre nós e os objetos. Ao mencionar esse termo, me refiro, apenas, ao objeto material. O objeto imaterial, como analisado por Gorz (2005), apesar de provocar importantes orientações aos estudos do colecionismo e às suas práticas de mercado, não será considerado neste texto. Do ponto de vista do ordenamento, Marshall (2005, p. 14) sugere que “o colecionismo desponta como um dos fundamentos culturais de mais profundo enraizamento e de mais amplas consequências em toda a trajetória humana”. Concomitante a isso, Pearce (1995, p. 3) afirma que “our relationship with the material world of things is crucial to our lives because without them our lives could not happen, and collecting is a fundamentally significant aspect of this complex and fascinating relationship”. O termo collecting, faz referência a ação de coleccionar e não ao processo de colecionismo. Entendo, então, que a organicidade do mundo objetivo e as diversas e distintas maneiras com as quais nos relacionamos com os objetos ocorre naqueles mesmos lugares e espaços estudados por Certeau (1996, p. 31), “naquilo que nos é dado cada dia, que nos prende intimamente”. Instantes de tempo em que as “artes de fazer” são astuciosas manobras praticadas, pelo homem comum, para enfrentar múltiplas imposições, onde o humano constrói o seu mundo imediato, (re)produz diretamente o individual e indiretamente o coletivo. Mais além, um pequeno trecho de Borges (1998, p. 539) ilustra como essa relação é, também, uma ato de recordação, ou seja, a memória humana é um lugar/espaço de inventários de lembranças, mesmo que limitada. Essa limitação do objeto mnemônico permite um paralelo com o colecionismo de selos postais, visto que, desde meados do século XIX, é insensato e ineficaz o colecionismo exaustivo de todos os selos postais emitidos. Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos, povoa um

espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naus, de ilhas, de peixes, de moradas, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu próprio rosto. Nesse sentido, o colecionador é uma pessoa que busca, e às vezes impõe uma relação com um objeto. Nos termos de Benjamin (2006, p. 240), “o colecionador consegue lançar um olhar incomparável sobre o objeto, um olhar que vê mais e enxerga diferentes coisas”. É um olhar que nos conecta ao mundo, carregado de uma ética cognoscitiva, de respeito e de moral. O mundo que vemos, respeitamos e servimos é o mesmo que nos vê, nos respeita e nos serve. Tratamos de ordenar as coisas e as palavras e essa ordem implica uma ética do olhar. Um olhar atento, respeitoso, ético, questionador, em que “que se olhem inúmeras vezes, em repetidas oportunidades” (ESQUIROL, 2008, p. 54). Essa assertiva, apesar de apontar para tratados filosóficos, indica uma prática cotidiana. A relação entre o objeto colecionável e o colecionador pressupõe a elevação do artefato à posição do sublime, a despeito de seu valor original, de sua função social primeira. Pomian (1984, p. 53, apud, SÁNCHEZ, 1999, p. 15) sugere que “los objetos pueden pasar de marginales, eliminados de la circulación de la cultura y de la naturaleza, puestos aparte, liberados del esfuerzo de ser útiles, a productos reconocidos, elegidos estéticamente, que vuelven a recibir el aura singular de lo exclusivo”. Sob uma visão mercadológica, econômica, importará ao colecionador mais o valor afetivo, não o de mercado, acarretando uma modificação no valor material do objeto. No momento em que o colecionador adquire o objeto, ele é abstraído de uma função utilitarista, sendo requalificado pelo colecionador. A partir daí, o colecionador interpela o objeto, já no seio de uma coleção, com distintos e diversos códigos lingüísticos, criando as condições para que existam outros processos comunicativos. Se considero que os estudos de Certeau admitem que dentro dos espaços, o tempo e a posição de elementos constituintes são controlados, posso propor uma relação entre essa categoria teórica com os espaços das práticas de colecionismo, enquanto uma organização socialmente constituída. Nesse mesmo sentido, Pomian (1984, p. 54) sugere que uma coleção é “qualquer conjunto de objetos naturais ou artificiais, mantido temporariamente ou definitivamente fora do circuito das atividades econômicas, sujeitos a uma proteção especial num local fechado preparado para esse fim, e exposto ao olhar do público”. Vale ressaltar, que não é todo o colecionador que expõe seus objetos ao público. O deslocamento de objetos de coleção do campo pessoal para o público (MENESES, 1998), assim como, o processo de institucionalização de uma coleção (PEDROCHI e MURGUIA, 2007) são debates que merecem uma maior atenção. Para que um objeto adquirido faça parte de uma coleção, alguns ingredientes são necessários. O colecionador atribui novos sentidos ao artefato. Conforme Baudrillard (2008, p. 94), “o objeto puro, privado de função ou abstraído de seu uso, toma um estatuto

estritamente subjetivo: torna-se objeto de coleção”, uma definição que o autor vai chamar de “sistema marginal” e que nos possibilita estabelecer um elo entre a função afetiva e a tática de Certeau, se entendo que a afetividade não segue padrões ou modelos estratégicos, mas é ágil, flexível e, normalmente, baseada numa improvisação. Aquilo que parece ser uma prática passiva é, de certo, uma idealização ativa que é atribuida ao objeto de coleção e que, ao mesmo tempo, o identifica enquanto singular, individual e partícipe de um conjunto, acervo, coleção. Alguns ingredientes participam desse processo de resignificação do objeto. A coerência e individualidade de cada objeto; a possibilidade de pertencimento a uma mesma categoria ou classe, por meio de algum sistema de classificação, que no sentido de Foucault (2002, p. 25) permitiria “encadear para que as coisas possam assemelhar-se”; a aplicação de técnicas de organização e racionalização; a utilização de normalizações e normatizações; o interesse pelo especial e pelo que é raro. O processo de colecionismo de selos postais admite uma sistemática em que o sujeito tenta fazer com que o seu objeto de coleção coexista em um todo finito, organizado num espaço de simetria, por vezes, havendo uma busca pela combinação de cores, de tamanhos, de formas. Ainda assim, é relevante mencionar que essa simetria sempre permite um transbordamento para o assimétrico. Barthes (1994, p. 45-49), em seus textos sobre a fotografia, sugere que essa situação ocorre quando o “punctum”, o elemento de desvio, estimula o “studium”, ou seja, “o campo meramente cultural da ordem e da própria idéia de coleção”. O sujeito encontra no processo de classificação, uma forma de evitar esse estímulo. Esse processo é uma maneira particular de captar o organicidade que dá sentido à coleção e aos objetos colecionados, como sugere Foucault (2002, p. 67) “por sob as diferenças nomeadas e cotidianamente previstas”. Para encerrar estas breves colocações sobre o colecionismo, os objetos de coleção e os colecionadores é importante revelar que quando o colecionador retira o objeto de seu espaço utilitarista, mercadológico, estratégico, está optando por uma tática, no sentido postulado por Certeau. Os objetos nesse processo de deslocamento, não apenas podem ser considerados metonímias do contexto de que foram retirados, mas passam a constituir novos espaços com nomenclaturas próprias, marcados por novos lugares de relação de poder e de trocas, lugares em que novas funções podem ser-lhe atribuídas. Considerados esses aspectos, estabeleço uma relação entre as funções estatal e administrativa, do selo postal, com os conceitos postulados por Certeau. Para isso, considero que as funções atribuídas aos selos postais servem como indicativos para o entendimento sobre a essência e a trajetória desse tipo específico de artefato. Essas funções foram atribuídas ao selo postal, enquanto proposta teórica, com o intuito de caminharmos rumo a um estatuto teórico desse objeto. Vale ressaltar, que a validade dessas funções passa pela admissão de que o selo postal adesivo participa de um “regime de informação”

(GÓMEZ, 2002, p. 34) específico formado por um conjunto mais ou menos estável de redes sociocomunicacionais formais e informais nas quais informações podem ser geradas, organizadas e transferidas de diferentes produtores, através de muitos e diversos meios, canais e organizações, a diferentes destinatários ou receptores, sejam estes usuários específicos ou públicos amplos. Assim, por uma questão de respeito histórico, no momento do surgimento do selo postal adesivo, em 1840, apenas uma função poder-lhe-ia ser outorgada. Essa primeira função, segundo Ferreira (2003, p. 14) “formaliza e evidencia o contrato tácito entre um expedidor de uma missiva postal, e um serviço público que torna expressamente a seu cargo o transporte e a entrega a um destinatário”, o que configura a função que vamos denominar administrativa. Em outros termos, esse contrato ocorre quando um selo postal é disposto sobre uma correspondência em que o mesmo deve ser obliterado (carimbado), configurando, então, um contrato legal e instituído, em que é realizado um pagamento antecipado, de uma taxa, por um serviço que irá ser prestado. Ou como defende Habermas (2006, p. 32-33) quando afirma que "a forma institucional da troca é o contrato [...] a acção complementar é mediada por símbolos que fixam expectativas obrigatórias de comportamento". No caso do Brasil, os Correios têm autonomia exclusiva para explorar esse serviço desde os tempos do Império. No entanto, essa função administrativa tem uma característica essencial. Ela é, em verdade, apenas possível de ser exercida porque é o efeito do que considera Salcedo (2006a, p. 109): "o selo postal é um artefato produzido pelo Estado". Assim, seria oportuno dizer que antes da função administrativa existe uma função que chamaremos de estatal. A função administrativa do selo postal pressupõe, necessariamente, a função estatal. Por sua vez, essa função está diretamente relacionada ao modo de produção de um selo postal, o qual é regulado pela "Portaria nº 500, de 8 de novembro de 2005, do Ministério das Comunicações" (BRASIL, 2005). É nessa prática cotidiana de pagar uma taxa aos Correios, para poder enviar uma correspondência, que reside o que Certeau chamou de "estratégias". Elas são oporações de ordem governamental, institucional, estatal, comercial, mercadológica que buscam racionalizar as práticas do homem comum, ordinário por meio do controle e da organização das práticas. "São procedimentos que organizam os lugares [...]. As estratégias organizam, determinam um lugar que pode ser administrado em relação a uma exterioridade composta de alvos e ameaças" (CERTEAU, 1994, p. 59). O fato é que o advento do selo postal adesivo, propriamente dito, é o resultado de uma reorganização do poder, visto que os sujeitos, antes de 1840, não pagavam os custos das correspondÊncias, utilizando códigos no verso ou anverso das mesmas, as "práticas informais de resistências", de Certeau. Foi a partir dessa prática cotidiana do século XIX, beirando a ilegalidade, que o governo britânico reordenou o seu sistema postal, com o objetivo de manter a sua eficácia,

eliminando, assim, o descontrole do poder imperial sobre as comunicações, como mostra a cena contada por Almeida e Vasquez (2003, p. 16). Trata sobre uma jovem, empregada de estalagem, que estava à porta do estabelecimento, quando se aproximou o carteiro. Cumprindo sua tarefa, o estafeta entregou a carta à jovem, e permaneceu aguardando o dinheiro para o pagamento dos serviços. O porte médio das cartas no Reino Unido no período era de 1 shilling, considerado alto para a maioria da população. Após manusear o exterior da carta por alguns instantes, sem abrí-la, a jovem simulou espanto e a devolveu imediatamente ao carteiro, alegando dificuldades financeiras. Diante da negação, o carteiro afastou-se, levando consigo a correspondência, mais uma entre tantas outras destinadas à incineração. Após assistir silenciosamente ao ocorrido, o professor não se conteve e foi ao encontro da jovem para indagar sobre o motivo da recusa: - Por que a senhorita não pagou pelo recebimento da carta? - Por acaso era desconhecido o remetente? - Não, pelo contrário! Era uma correspondência do meu noivo, que está estudando em Londres. Mas, então, qual a razão para recusá-la? - Tenho códigos previamente combinados com ele, que são marcados em forma de sinais no exterior da carta. Basta manuseá-la para entender a mensagem, sem a necessidade de abrí-la, economizando o dinheiro da taxa dos Correios. Pois bem, até então vimos que as funções estatal e administrativa, do selo postal, estão entrelaçadas tanto às estratégias, quanto aos "modos de fazer" do usuário do sistema postal, aquele que, até a metade do século XIX tentava contornar a racionalidade dos dispositivos estabelecidos pela ordem estatal e comercial, do sistema postal britânico. De fato, o uso do selo postal adesivo para o envio das correspondências, enquanto uma "prática organizada", a partir de 1840, "tornou-se uma máquina auto-reguladora" (CERTEAU, 1994, p. 201), algo parecido com o aparato corretor ou disciplinar de Foucault (2006). Considero, assim, que o advento do selo postal adesvio foi um produto de consumo estrategicamente criado para o uso cotidiano e passivo do sujeito ordinário. Mas, isso logo mudou de figura. Os selos postais passaram a ser utilizados para além das suas funções estatal e administrativa, ou seja, o sujeito tornou-se ativo, seguiu códigos de comportamento singulares, como foi demonstrado no primeiro parágrafo deste texto. Certeau, nesse sentido, postulou uma inversão de perspectiva, em que fundamenta a sua "Invenção do Cotidiano", deslocando, assim, a atenção sobre o consumo, pressupostamente passivo daqueles produtos recebidos, para o nascimento de uma prática, pautada na criação anônima, do desvio da utilização desses mesmos produtos, àquilo que ele vai propor enquanto "modos de fazer de uma cultura ordinária", sendo um deles o colecionismo de selos postais adesivos. A utilização do selo postal enquanto objeto de coleção, me permite fazer uma relação entre a afetividade dessa prática cotidiana, desse "espaço que é um lugar praticado"

diariamente, pelos colecionadores, em que é possível identificar as diferenças e perceer as microrresistências que fundam microliberdades e deslocam fronteiras de dominação, ou seja, o uso de táticas que fogem ao controle do poder instituído. Mais ainda, pra mim, é uma temática fecunda à compreensão do papel estruturador que os objetos materiais cumprem na criação e (re)produção de padrões sociais e psíquicas para o tecido social. Assim, o colecionador, a partir de sua potência de individação enquanto manifestação criativa e através de sua interpretação pessoal, pode se auto-representar como pertencente a um mundo cultural que se constitui no momento mesmo de sua apresentação. [...] O mundo somente pode ser produzido pelos indivíduos que fazem parte deste mundo e por isso sua imaginação pessoal está sempre situada: criando o mundo, eles próprios e suas perspectivas sobre este mundo. Seguindo este paradigma, a realidade sociocultural nada mais é do que as histórias contadas sobre isso, as narrativas pelas quais ele representa e apresenta esta realizada através de si e do outro (Gonçalves, 2009, 25-26). Considerar o selo postal, sob uma visão afetiva, permite um olhar ético e respeitoso com relação ao processo da pessoalização das práticas culturais, visto que os próprios selos e as práticas cotidianas de seu colecionismo são objetos narrativos, ainda que, entendo que isso ocorra num sistema social de (re)produção. Esses objetos colecionáveis e as práticas de narrativas e fabulações encontram no homem ordinário, nesse "herói que é o murmúrio das sociedades", um lugar de fala, um lugar em que o sujeito as produz para falar e reproduzir mundos, possíveis individações e vivências, mesmo que invisíveis e silenciosas, pertencentes à imaginação e ao imaginário do sujeito. De fato, o objeto que é selecionado, coletado e colecionado é transversal, inerente e partícipe do cotidiano humano, em toda a sua extensão temporal e espacial. O colecionador anônimo, por meio de "astúcias sutis", abre o próprio caminho por meio da coleção de selos postais, produtos impostos pelos sistemas de comunicação postal, num complexo labirinto libertário em que procura (sobre)viver, do melhor modo possível à ordem social e à violência das coisas. Certeau (1994, p. 142) considera que toda atividade humana pode ser cultura, mas ela não o é necessariamente ou, não é forçosamente reconhecida como tal, pois "para que haja cultura, não basta ser autor das práticas sociais; é preciso que essas práticas sociais tenham significado para aquele que as realiza." Debater sobre o colecionismo de selos postais e das práticas envolvidas nesse processo é refletir, também, o cotidiano a partir dos postulados de Certeau (1994, p. 13), cuja proposta é a de uma inversão de perspectiva, de um "deslocamento da atenção do consumo supostamente passiva dos produtos recebidos para a criação anônima nascida da prática do desvio no uso desses produtos". Identificar e analisar sentidos nos artes de fazer colecionadores e considerar a legitimidade de seus saberes e valores, os quais permeiam as práticas do colecionismo, suas estratégias e táticas próprias é, em certa medida, a proposta

deste texto.

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Sertão e messianismo: explícito e implícito em Árido Movie José Carlos Gomes da Silva

Árido Movie (2006), filme do diretor pernambucano Lírio Ferreira, conta a história de Jonas, jornalista que apresenta as previsões do tempo num telejornal de São Paulo. A obra mostra os dilemas existenciais vividos pelo personagem, interpretado pelo ator gaúcho Guilherme Weber, ao entrar em contato com uma realidade totalmente oposta a sua. Esse choque cultural ocorre quando ele retorna à cidade fictícia de Rocha, onde nascera, convidado pela sua avó Dona Carmo (Maria de Jesus Bacarelli), sob o pretexto de assistir ao enterro do seu pai, Lázaro (Paulo César Pereio), assassinado pelo índio Jurandir (Luís Carlos Vasconcelos). A partir desse encontro com a família, que mal conhece e que tem valores totalmente opostos aos seus, Jonas questiona sua vida e tenta compreender sua própria origem num lugar onde o tempo parece ter parado. A obra, porém, vai além dos problemas existenciais do protagonista,desencadeando uma discussão sobre o uso político da água. É a posse dela que, numaregião seca como Rocha, determina a posição de cada um de seus habitantes na escalade poder local. Começase então um intrincado jogo de interesses cuja peça chave é Meu Velho, personagem místico vivido por José Celso Martinez Corrêa. O outro elo dessacorrente é a documentarista, Soledad, personagem de Giulia Gam. Ela percorre o Sertão entrevistando habitantes do lugar e personagens como os “procuradores de água” para a produção de um documentário sobre o drama da escassez de água na região. Nesse jogo estão envolvidos ainda Salustiano (Mateus Nachtergaele) e Márcio Greyck (Aramis Trindade), tio e primo de Jonas, respectivamente. O primeiro representa a inteligência e o outro a força, elementos determinantes no jogo do poder político naquela região árida. A maioria dos trabalhos feitos por estudiosos do cinema sobre Árido Movie destaca em Salustiano, personagem de Nachtergaele, o hibridismo do Sertão representado nessa obra, em clara oposição à problematização do Nordeste feita pelo cinema novo brasileiro; os problemas de identidade vivenciados por Jonas, além do forte misticismo religioso protagonizado por “Meu Velho”. Essas características citadas acima são realmente as mais visíveis na obra de Lírio Ferreira, havendo mesmo um forte parentesco de Árido Movie com o cinema novo, inclusive no nome da cidade natal de Jonas que é uma alusão a Glauber Rocha, o cineasta mais representativo desse movimento cinematográfico. Não há, portanto, como fugir desse tipo de abordagem ao se fazer uma análise de Árido Movie. Porém, esse trabalho, tentará trazer à tona aspectos menos visíveis, ou os menos explorados em outros textos acadêmicos, como por exemplo, os sinais de messianismo presentes na missão de Jonas, o que acaba por lhe conferir o papel de Messias. Para isso serão utilizados os conceitos propostos pela socióloga Maria Isaura Queiroz, contidos no livro "O messianismo no Brasil e no mundo", em sua segunda edição de 1977. As características místicas de Jonas compõem uma trama subjacente. Às vezes elas são destacadas pelas semelhanças apontadas pela socióloga, em outras, elas podem ser vislumbradas pelo contraponto a essas definições. Uma semelhança repousa no fato de

Jonas ter saído da terra em que viveu e retornado com a missão de “trazer a vitória do bem sobre o mal” (QUEIROZ, 1977, p.26), assim como é determinado por Deus a seus enviados. Uma negação do conceito de Messias, seria a sua negação em realizar a missão, além de rejeitar a companhia de seus seguidores, que nesse caso, são representados pelos amigos Bob (Selton Mello), Falcão (Gustavo Falcão) e Verinha (Mariana Lima). Antes de fazer uma abordagem direta da mensagem contida em Árido Movie, é necessário fazer uma rápida análise do messianismo e de seu líder, o Messias. A busca do homem pela criação de mundos perfeitos remonta a tempos que podem ser chamados de imemoriais. Os primeiros registros históricos sobre a criação desses paraísos aparecem dentro da religião israelita. Na tradição judaica, o Messias tem papel fundamental no alcance da felicidade. Ele é o personagem concebido como um guia divino que deve levar o povo eleito ao desenlace natural de sua história, isto é, a humilhação dos inimigos e ao restabelecimento de um reino terreno e glorioso para Israel. A criação deste reino coincidirá com o final dos tempos e significará o restabelecimento do paraíso na terra. Maria Isaura Queiroz (1977) explica que, com o advento do cristianismo, acreditava-se que o messianismo ficaria circunscrito unicamente aos israelitas, uma vez que para os cristãos o Messias, sob a forma de Jesus, já havia chegado.Segundo ela, o que se notou, no entanto, foi a junção da crença messiânica com a ideia do juízo final. Os crentes esperam o retorno de Cristo e a “sua volta será o sinal do fim das eras” (QUEIROZ, 1977, p.26). Nessa nova vinda ao reino dos homens, o Messias virá modificado. Não será mais o salvador e sim um infalível líder guerreiro, combatente do anticristo, a personificação do mal, cuja vitória sobre os justos constitui o prenúncio do fim do mundo. A concepção popular de Messias deriva, segundo Isaura Queiroz, das palavras do profeta Isaias garantindo que: O povo que andava em trevas viu grande luz; os que moravam em terra de sombras da morte a luz resplandeceu sobre eles. Porque um menino nos nasceu, nos foi dados um filho; traz o governo em seus ombros. Seu nome será Conselheiro Admirável, Herói de Deus, Padre Eterno, Príncipe da Paz, nascido para restabelecê-la e afirmá-la através do direito e da justiça, desde agora e para sempre (QUEIROZ, 1977, p.25). Essa definição capta os aspectos mais gerais do fenômeno podendo significar que o Messias é alguém enviado por uma divindade para trazer a vitória do bem sobre o mal, ou para corrigir as imperfeições do mundo, permitindo o advento do paraíso terrestre. Tratase, portanto de um líder religioso e social. Para Queiroz (1977), a definição assim formulada não se refere apenas aos indivíduos que se autodenominavam enviados divinos ou a outros que se pretendiam a reencarnação de personagens históricos. Ela abre perspectiva para o aparecimento de líderes que não estão presos unicamente a aspectos religiosos, podendo a lenda messiânica ser observada

principalmente sob dois aspectos. No primeiro deles, um personagem imaginário, mítico, é investido do papel do salvador divino. No outro, um personagem histórico, tendo marcado fortemente o seu povo e em torno do qual se desenvolveram lendas de milagres e de visões é visto pelos seus seguidores com um enviado dos deuses. Figuras reais de príncipes e cavaleiros em cuja morte não se acreditou e das quais se espera o retorno triunfal, podem como os santos, ou o próprio Cristo, ser objetos de espera messiânica, ou até mesmo, terem reencarnado em algum líder de uma seita religiosa. Para Queiroz (1977), a definição assim formulada não se refere apenas aos indivíduos que se autodenominavam enviados divinos ou a outros que se pretendiam a reencarnação de personagens históricos. Ela abre perspectiva para o aparecimento de líderes que não estão presos unicamente a aspectos religiosos, podendo a lenda messiânica ser observada principalmente sob dois aspectos. No primeiro deles, um personagem imaginário, mítico, é investido do papel do salvador divino. No outro, um personagem histórico, tendo marcado fortemente o seu povo e em torno do qual se desenvolveram lendas de milagres e de visões é visto pelos seus seguidores com um enviado dos deuses. Figuras reais de príncipes e cavaleiros em cuja morte não se acreditou e das quais se espera o retorno triunfal, podem como os santos, ou o próprio Cristo, ser objetos de espera messiânica, ou até mesmo, terem reencarnado em algum líder de uma seita religiosa. Para Queiroz (1977), a definição assim formulada não se refere apenas aos indivíduos que se autodenominavam enviados divinos ou a outros que se pretendiam a reencarnação de personagens históricos. Ela abre perspectiva para o aparecimento de líderes que não estão presos unicamente a aspectos religiosos, podendo a lenda messiânica ser observada principalmente sob dois aspectos. No primeiro deles, um personagem imaginário, mítico, é investido do papel do salvador divino. No outro, um personagem histórico, tendo marcado fortemente o seu povo e em torno do qual se desenvolveram lendas de milagres e de visões é visto pelos seus seguidores com um enviado dos deuses. Figuras reais de príncipes e cavaleiros em cuja morte não se acreditou e das quais se espera o retorno triunfal, podem como os santos, ou o próprio Cristo, ser objetos de espera messiânica, ou até mesmo, terem reencarnado em algum líder de uma seita religiosa. A aparição de um grande líder que se auto-proclame enviado de Deus é insuficiente para deflagrar um movimento messiânico. A transformação do povo não se operará mecanicamente. É necessária a predisposição para a obediência a essa entidade. É preciso que os adeptos sigam seus mandamentos cegamente. Os fatores que determinam a adesão à liderança estão, na sua maioria, situados nas precárias condições de vida de um povo. Mas, a solução dessas questões será operada, num futuro para muito além dos tempos, no campo do religioso pelo enviado divino. O líder messiânico, no entanto, é o intermediário que transmite as ordens, mas é dever do homem trabalhar para sanar as injustiças do mundo. Isaura Queiroz (1977) lembra que essas características demonstram que o messianismo é

uma força prática e não uma crença passiva e inerte, formada por pessoas resignadas com os males a que foram destinadas, como a maioria das pessoas pensa. Essa ideia de resignação está ligada ao “tempo de expectativa messiânica” (QUEIROZ, 1977, p.30) que antecede sempre a vinda do líder que, por sua vez, é sempre “anunciado” por um personagem anterior que profecia sua “vinda e apregoa sua doutrina” (Ibidem), ou então, ele mesmo aparece, faz sua peregrinação entre os fiéis e se retira para um lugar santificado para voltar trazendo a idade do ouro. Na Idade Média acreditava-se que esse tempo em que na terra jorraria leite e mel duraria mil anos, daí o termo milênio. Nele, os homens encontrariam o reino messiânico, portanto, um reino do futuro. Espera-se por ele. A sua natureza pode ser espiritual ou material. Mas, a sua concretização será sempre o resultado da obra dos adeptos, isto é, um movimento sócio-religioso no qual o Messias é o personagem principal. Sobre esse aspecto Michel de Certeau no livro "A invenção do cotidiano – Artes de fazer" (2002), ressalta a figura de Frei Damião que viveu num espaço sócio-econômico onde na luta entre “poderosos” e “pobres” prevalecia perpetuamente a vitória dos ricos e da polícia. Essas duas classes alimentavam “O reinado da mentira (ali nunca se podia dizer a verdade a não ser em voz baixa e nas rodas dos lavradores)... Ali sempre os fortes ganham e as palavras enganam” (CERTEAU, 2002, p. 76). O autor ressalva que apesar dessas circunstâncias adversas, havia a resistência, com a perspicácia dos lavradores tecendo uma rede inumerável de conflitos, escondida sob o manto da língua falada. Havia um espaço utópico onde se afirmava, em relatos religiosos, que os castigos dos céus atingiriam seus inimigos. Frei Damião era o centro desse movimento de resistência. Para Michel de Certeau, havia uma injustiça reconhecida. Era uma realidade permanentemente repetida. Mas, nada autorizava a espera de uma mudança. “No entanto, dizia-se uma inaceitabilidade da ordem estabelecida, a justo título sob a forma de milagre” (CERTEAU, 2002, p. 77). As loas cantadas constatam essa opressão e “oferecem ao possível um lugar inexpugnável, por ser um não-lugar, uma utopia” (CERTEAU, 2002, p. 78). Os seguidores do Messias desfazem assim a fatalidade da ordem estabelecida. Fazem isso mesmo utilizando um quadro de referência externo, a religião imposta pelos missionários. Reempregam, portanto, um sistema que foi construído e propagado por outros. Os poderosos sempre olharam com suspeita essa movimentação. Para eles, era imperdoável que as classes populares ressignificassem a doutrina da Igreja ortodoxa. Os crentes passaram a contestar as hierarquias do poder. Um uso “popular” da religião modificava o funcionamento do sistema, constituindo a resistência à lei histórica de um estado de fato e suas legitimações dogmáticas. O messianismo deriva dessa insatisfação humana diante das imperfeições do mundo. O

seu paradigma é a pureza de um modelo sobrenatural. Nesse sentido, Isaura Queiroz (1977) lembra que para os crentes, o reino celeste terá sempre as características do terreno, mas será santificado e perfeito. A coexistência de fatores religiosos e fatores sociais, do espiritual com o temporal, de valores celeste e terrestres, suspende o milênio entre o céu e a terra. Não é só essa ambiguidade que caracteriza o messianismo. Outro aspecto fundamental desse fenômeno é que suas promessas não estão destinadas a um homem só e sim, a coletividade. A abordagem do fenômeno messiânico fora da perspectiva teológica permitiu que manifestações com as mesmas características fossem constatadas antes mesmo dos primeiros contatos do homem branco com povos primitivos. Acreditava-se que o messianismo era uma imposição cultural dos brancos aos povos colonizados. Isaura Queiroz (1977) admite que a vinda dos colonizadores tornou mais estreita a ligação entre o mito do regresso do herói e a ideia de uma idade do ouro. Mas logo, os brancos que foram confundidos com o benfeitor e seus companheiros ao regressarem, conforme tinham prometido, o que reforça ainda mais o aspecto messiânico de sua presença, se tornaram cruéis opressores. A expulsão do invasor tornou-se então um elemento inteiramente novo incorporado à antiga lenda. Nessas civilizações pré-coloniais, segundo Isaura Queiroz (1997), não há nenhuma ligação segura entre um Deus único, moralmente perfeito com a noção de messias, um salvador que vem acabar com as injustiças de um mundo imperfeito. Nas tribos indígenas norte-americanas, por exemplo, o salvador não precisa resumir as qualidades éticas estabelecidas como cânone religioso, podendo ser, ao mesmo tempo, altruísta e trapaceiro. Michel de Certeau (2002) também faz referência a essa resistência dissimulada ao afirmar que ela (a resistência) “cria, ao menos um jogo, por manobras entre forças desiguais e por referências utópicas” (CERTEAU, 2002, p.79). Aí se manifestaria a opacidade da cultura popular. Ele diz o que se chama de “sabedoria” pode ser definido como “trampolinagem”, sendo essa uma palavra associada à acrobacia do saltimbanco e a sua arte de saltar no trampolim. Também pode ser vista como trapaçaria, astúcia e esperteza no modo de utilizar ou de driblar os termos dos contratos sociais, “existindo nesses estratagemas de combates, uma arte dos golpes, dos lances, um prazer em alterar as regras do espaço opressor” (CERTEAU, 2002, p.79). A concepção de Messias, portanto, não pertence apenas às religiões monoteístas e ávidas pela perfeição, revelando que o aparecimento de crenças messiânicas não deriva exclusivamente da miséria social, nem do desejo de renovação religiosa. “A existência de mitos messiânicos anteriores ao contato com os brancos, entre os povos primitivos, cuja situação era de independência faz supor que circunstâncias internas que fomentem insatisfação com as condições habituais de existência podem levar à concepção do reino ideal que um enviado divino instalará no mundo” (QUEIROZ, 1977, p.37).

Apesar da constatação de que a miséria não é a única causa do surgimento dos mitos messiânicos, Isaura Queiroz (1977) ressalta que o meio rural brasileiro, área que concentra a maioria dos problemas socioeconômicos do país, produziu vários movimentos religiosos, “tanto no seio do catolicismo quanto fora dele. Isso porque nesse meio, a religião antes de promover o aperfeiçoamento individual e a redenção extraterrestre busca a coesão e a reestruturação social” (QUEIROZ, 1977, p.7). O messianismo é uma porta aberta para a fuga ou a superação das dificuldades e dos sofrimentos terrenos ligados tanto ao próprio individuo quanto ao torrão natal. Em outras palavras, é o instrumento para vencer das moléstias humanas às pragas agrícolas. A autora identifica no Brasil a existência de dois tipos de catolicismo: o ortodoxo e o popular. O primeiro é o encontrado nas sociedades urbanas, o outro é característico das sociedades rurais. Segundo ela, as causas dessa coexistência consistem principalmente na falta de sacerdotes e na miscigenação cultural ocorrida entre as diferentes etnias formadoras da nação, gerando pequenas seitas dentro dos grandes núcleos religiosos. Isaura Queiroz (1977) explica que a escassez do clérigo, no entanto, não impediu a realização de cerimônias religiosas, bastando, para o cumprimento do ritual alguém que conheça as orações e saiba o desenvolvimento do culto. Ela acredita que se origina daí a quantidade de “penitentes”, “beatos”, “santos” “líderes religiosos” que se julgam os representantes por direito de Deus, inspirados por Ele enquanto os sacerdotes oficiais são apenas funcionários da igreja. São esses homens “santos” que cuidam das pessoas e das plantações, que pregam a moral e os bons costumes, nos quais os fiéis depositam sua fé e esperança numa vida melhor. O breve relato sobre o messianismo e os movimentos messiânicos feitos nas primeiras páginas desse trabalho, enfocado sob o ponto de vista antropológico, procura ressaltar as principais características dos dois fenômenos para que se possa fazer uma identificação das suas representações em Árido Movie. Tarefa das mais complexas em decorrência das mudanças sofridas pelos temas abordados na obra de Lírio Ferreira: o Nordeste, o Sertão e o Cinema. Percebe-se também, ao se analisar a produção cinematográfica que tem a região como seu tema central que ela e mais especificamente o Sertão, constituiu-se muito mais em ideia na cabeça dos cineastas do que propriamente a retratação de sua realidade. Por conta disso, é mister ter a compreensão do contexto em que essas obras foram realizadas. O Nordeste, portanto, teve várias faces ao longo da história do cinema brasileiro. A mais nítida e duradoura de todas, com eco nos trabalhos que são feitos ainda hoje, como é o caso de Árido Movie, foi pintada pelo Cinema Novo, capitaneado por Glauber Rocha. Movimento fortemente marcado pela conjuntura dos anos 1960, a utopia purista que alimentou o início do Cinema Novo, representada em sua totalidade no filme Deus e o diabo na terra do sol (1964), era marcada pela dualidade, pela demarcação clara das fronteiras entre o Sertão e o Litoral,

pelas diferenças na formação da população desses dois lugares. Outro aspecto ressaltado era o isolamento da região, com o Sertão representando claramente a situação das classes sociais que formavam o Brasil daquela época. Para o teórico do cinema brasileiro, Ismail Xavier, o cinema produzido por Glauber Rocha radicalizava esse isolamento do Sertão, apresentando-o como um mundo autônomo, dotado de forças próprias e personagens absolutamente peculiares: “tal endogenia é condição para que tal mundo possa adquirir a qualidade do que, separado do resto e organizado como um cosmo fechado, se torna um espaço alegórico que representa a nação” (XAVIER, 2000, p.114). Em contrapartida, os filmes mais atuais perderam essa ânsia da representação do Sertão como uma região isolada e isenta das influências das mazelas da urbanidade. Seria muito difícil manter o purismo reivindicado por Glauber Rocha nesses tempos de globalização cultural. As obras atuais perderam, acima de tudo, considerando a postura dos cinemanovistas, o desejo de propor mudanças a partir da conscientização proporcionada pelas denúncias promovidas pela força do Cinema. A maior preocupação agora é com a representação do indivíduo, sem é claro, desconsiderar a inserção desses sujeitos em seus respectivos contextos sócio-econômicoculturais, mas, sem dúvida, desesperançados quanto às possibilidades de modificação dessas realidades a partir de suas obras. É essa postura que move cineastas como Lírio Ferreira e fica claramente representada na sua obra Árido Movie. O cinema pernambucano da retomada é fortemente marcado pelo signo da violência, presente nos filmes de Cláudio Assis Amarelo Manga (2003) e Baixio das bestas (2007). Contrariando essa tendência, apesar de não se negar a mostrá-la de forma clara, Árido Movie se encarrega precipuamente de fazer uma reflexão sobre a temática da identidade, trazendo um protagonista típico da contemporaneidade, sujeito à multiplicidade das influências culturais do mundo globalizado e discutir o pertencimento a um determinado lugar, tanto de Jonas quanto do seu grupo de amigos. Juntamente a isso, temas muito caros ao Cinema Novo como o uso político da água, o coronelismo moderno, o misticismo e as relações de poder percorrem seu enredo. É preciso, no entanto, ressaltar que a perspectiva na abordagem desses temas é absolutamente oposta ao cinema engajado da década de 60. O Cinema Novo pregava a luta pela mudança, enquanto Árido Movie é descrente e prega o conformismo. Jonas é o sujeito deslocado em Árido Movie. Durante todo desenrolar do filme apresenta um ar entediado ao vivenciar qualquer situação. Nasceu na cidade de Rocha, mudou-se para São Paulo, perdeu suas origens, mas também não fixou raízes na grande metrópole. Sua condição de estar permanentemente “deslocado” é explicitada numa citação que ele faz do livro "O estrangeiro" de Albert Camus: “É que eu me sinto estrangeiro em qualquer lugar. Até nos meus sonhos”. A vingança para a qual foi convocado, os costumes, a história, a tradição, tudo passa a ter seu sentido questionado.

O dilema de Jonas em se definir é metaforizado por Lírio Ferreira quando mostra pela primeira vez seu rosto desfocado na televisão. O embaçamento dessa imagem já prenuncia a indefinição contida no personagem. Jonas é o homem do tempo num telejornal de São Paulo. No momento em que está fazendo a previsão do tempo na TV, seu pai, Lázaro está sendo assassinado num hotel em Rocha. A convocação para a vingança é mais um ingrediente no sentimento de não pertencimento de Jonas. Sua avó, Dona Carmo, aponta o caminho que o une ao passado e a terra: “Queira ou não queira, você tem a ver com isso”. É a voz da tradição que apela para um dos componentes de sua identidade, o elo com a família, a obrigação de vingar os membros mortos de forma violenta. A família de Jonas simboliza o conservadorismo que ainda perdura no Nordeste e luta para manter essa condição de hegemonia. Os dois executores da violência opressiva contra os contestadores desse status quo são Márcio Greyck e Salustiano que representam a força e a inteligência, ingredientes indispensáveis a qualquer regime político, seja ele democrático ou tirânico. A segurança dos negócios é feita por um bando de jagunços montados não mais em cavalos, mas em motocicletas, conhecidos na cidade como a gang da CG. Os negócios giram em torno das plantações de maconha e do controle econômico e político da água da região. Essa estratificação social se quebra por ocasião do assassinato de Lázaro. Quem mata o “coronel” é o índio Jurandir (Luiz Carlos Vaconcelos), ato que tem um forte conteúdo, apesar da motivação ter sido a defesa da honra da irmã do índio, Wedja (Suyane Moreira). Essa morte é precedida de uma frase essencial para a compreensão do confronto entre as classes sociais. Diante da arma apontada para sua cabeça, Lázaro lança o desafio, consciente da sua superioridade: “cada uma! Tu és um merda! Tu faz o teu serviço que eu faço o meu! É assim que o mundo gira”. A resposta do índio foi o tiro fatal. Na tentativa de restabelecer a ordem, os jagunços da família de Jonas começam uma perseguição ao assassino. A morte de Jurandir não significava nada além do saciamento da sede de vingança porque a ela não seguiria nenhum processo transformador. É nesse momento, que a câmera filma a televisão onde aparece a imagem de Jonas fazendo previsões do tempo no telejornal de São Paulo. Ao dizer no final de sua apresentação que “não há previsões de mudanças”, parece fazer um reconhecimento do imobilismo que vence os habitantes de Rocha. O próprio Zé Elétrico, personagem vivido por José Dumont, que esconde Jurandir para não ser morto pelos jagunços, tem absoluta consciência da impossibilidade de mudança. Ele se vale de um chá alucinógeno para fugir dessa dura realidade. O mesmo chá que oferece a Jonas no final do filme e que desencadeia nele o transe e uma confusão mental. Todas essas características mostradas explicitamente no filme foram amplamente discutidas pelos estudiosos do Cinema. No entanto, um dos aspectos menos analisados em Árido Movie por esses especialistas são as referências ao messianismo. Talvez porque elas ocorram em sua trama secundária. O messias explícito é o Meu Velho. Trata-se de um

trapaceiro, uma liderança dos homens que controlam a água de Rocha para uso político. Ao contrário do que se imagina, essa peculiaridade é uma das características dessa entidade, aproximando-o, segundo Isaura Queiroz (1977), do herói cultural encontrado em "Macunaína" (1928) e no personagem João Grilo, do "Auto da Compadecida" (1955), algumas de suas expressões na cultura brasileira. O Messias, assim como o herói cultural é um semideus, um semi-humano. Apresenta um caráter dualístico: altruísta e malicioso, ao mesmo tempo, benfeitor e malandro. Capaz de ludibriar os donos do poder para beneficiar os mais fracos. Meu Velho é carismático, seu discurso é envolvente e impressiona a todos sem distinção de classe ou nível intelectual. Soledad, a intelectualizada documentarista, termina por se constituir uma das vítimas do seu fascínio. Ela veio do Recife para fazer um documentário sobre os usos político e religioso da água no Sertão nordestino, queria também conhecê-lo e documentar sua história. Totalmente integrado à política local, o Messias moderno, mantém diálogo com a família de Dona Carmo. Mas, na verdade, isso não importa aos que o seguem já que o reino prometido por ele não é desse mundo, como consta no receituário do messianismo. Ninguém é capaz de indicar o local onde será criado o paraíso terrestre. Esse não-lugar é uma outra constante do fenômeno messiânico, assim como a origem nebulosa dos seus líderes. Consciente de sua auto-imagem de semi-deus, ao ser perguntado por Soledad onde se estabeleceria seu reino, Meu Velho responde, certo do seu convencimento: em Júpiter. Ela, ao invés de demonstrar sua decepção com o absurdo da resposta, expressou através de um sorriso alegre, sua satisfação. Paralela, a essa trama em que são ressaltadas de forma explícita as características do Meu Velho como Messias, Lírio Ferreira monta para Jonas um perfil surpreendentemente próximo dos líderes de movimentos messiânicos. Às vezes destaca essa aproximação pela semelhança, em outros casos, pelo contraste. Sugestivamente, o protagonista recebeu um nome bíblico, Jonas é um Messias que teria passado três dias no interior do estômago de uma baleia, e que assim como o personagem de Árido Movie, deveria cumprir seu papel de profeta e transformar a vida do povo de Nínive. Em seguida, constata-se sua condição de “extraditado”. Ele nasceu em Rocha, conviveu com os seus habitantes, vivenciou os seus costumes, para em seguida, se retirar para um lugar distante. Mesmo assim, está presente no dia-a-dia do povo de Rocha, não nas suas orações, mas visto pela TV, onde faz previsões meteorológicas, enquanto na lenda messiânica as previsões eram sobre o futuro dos homens. Sua volta também era ansiosamente esperada pelos seus seguidores, que no caso de Jonas eram as matriarcas da família. O contraponto consiste na sua resistência à essa volta ao torrão natal. Seus seguidores eram seus três amigos, que também buscavam uma “terra sem males”. Jonas voltava para cumprir seu destino messiânico, como diz Isaura Queiroz,

de “restabelecimento da justiça, trazer a vitória do bem sobre o mal, ou corrigir a imperfeição do mundo” (QUEIROZ, 1977, p.27). O cristo modificado, como prenuncia o messianismo, transformado em soldado, líder guerreiro, combatente do anticristo. Jonas não assume esse papel de vingador. Ele o rejeita, assim como faz com seus amigos que teimam em acompanhá-lo na viagem e que são retratados como um bando de alienados, como são vistos pela maioria da sociedade, de forma equivocada, pelo entendimento de Isaura Queiroz (1977), o povo que segue os pregadores das “boas novas” que perambulam pelos povoados do interior do Brasil. Para a autora, esse povo tem plena consciência da sua missão de criar um novo mundo. Ao contrário, num outro contraponto ao messianismo, os três amigos de Jonas, Bob, Falcão e Verinha de forma consciente, estavam em busca de aventuras. Eles queriam encontrar a “plantação dos sonhos”, uma imensa lavoura de maconha. Os três passam toda a trama alheios aos problemas vividos pelo protagonista, se divertindo, tomando cerveja e fumando maconha. Antes da partida rumo a Rocha, Falcão dá uma amostra da alienação do grupo e do esvaziamento político de suas ações, com a expressão: “o Sertão é massa, né veio?” É a reafirmação do compromisso da contemporaneidade com a individualidade. O Sertão de Lírio Ferreira tem celulares, motos e uma TV permanentemente ligada. Objetos que ligam Rocha ao mundo contemporâneo. O universo sertanejo aproxima referências culturais entre o tradicional e o pop, o local e o global. Observa-se na abordagem do diretor a tentativa de criar uma continuidade entre Sertão e mar, quase identificados entre si. Enquanto isso, o diretor alimenta as diferenças e semelhanças entre Jonas e sua missão messiânica. Uma trama subterrânea, que no dizer de Michel de Certeau (2002) é muito própria desses movimentos religiosos que se desenvolvem por baixo do manto de autoritarismo estendido sobre as “classes populares”. Não é por acaso que o pai do protagonista se chama Lázaro. Sua missão, no entanto, não é ressuscitá-lo, a exemplo do que fez o Messias cristão, Jesus, com seu amigo, também chamado Lázaro na história relatada na bíblia. A missão dele era vingá-lo. Por semelhança, a pedido da minoria, como diferença, a constatação que essa minoria não era a classe oprimida e sim, a opressora. Os antropólogos e historiadores que se debruçam sobre o fenômeno do messianismo, não encontram elementos suficientes para decretar o sucesso ou o fracasso das missões de criar o paraíso na terra encabeçadas por personagens como Antônio Conselheiro, Padre Cícero, Jacobina, João Maria e Silvestre José dos Santos. Talvez por isso, Lírio Ferreira tenha deixado o final de Árido Movie em aberto. Depois de ter tomado o chá alucinógeno oferecido por Zé Elétrico, o descendente de índio interpretado por José Dumont, Jonas entrou num transe e numa confusão mental que poderia tê-lo levado a cumprir até a missão que ele tanto rejeitava. O seu delírio produziu até a ressurreição de Lázaro, o que provavelmente era o desejo mais íntimo de sua avó, Dona Carmo. O certo é que as coisas “não têm previsão de mudanças”, como diz, no

telejornal paulista, o Messias do tempo. Isso, tanto no Sertão de Pernambuco, no de Glauber Rocha, quanto no de Lírio Ferreira.

Referências ÁRIDO MOVIE, Ficha Técnica e Premiações. Adorocinema. Disponível em: http://www.adorocinema.com/filmes/aridomovie/ficha-tecnica-e-premios/. Acesso em: 20 mar. 2011. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O messianismo no Brasil e no mundo. Editora Alfa-Omega, São Paulo,1977. CERTEAU, Michel de. “Culturas Populares”. In: A invenção do cotidiano: 1.artes de fazer. 7 ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. GAGNEBIN, Jeanne-Marie.“Teologia e Messianismo no pensamento de W. Benjamin”. In: Scielo. Estudos Avançados, vol.13, n.37. São Paulo: Set./Dez. 1999. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010340141999000300010&script=sci_arttext. Acesso em: 26 jan. 2011. MAIRINS, Simão Vieira de. “Árido Movie: transversalidade dialética”. In: Webartigos. Disponível em: http://www.webartigos.com/articles/14982/1/Uma-Analise-de-Arido-Movie/pagina1.html. Acesso em: 20 mar. 2011. XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro nos anos 90. Entrevista à revista Praga – estudos marxistas, São Paulo, Editora Hucitec, n 9, junho de 2000, p 97-138.

Filesharing e outros espaços de Cinema Bernardo Queiroz de Siqueira Santos

Caminhar pelos centros comerciais das grandes cidades brasileiras é sempre uma experiência curiosa, particularmente para pessoas com certo circuito de leituras. É como caminhar com um círculo de amigos imaginários, que de vez em quando, fazem comentários jocosos, reviram os olhos. Comentam que, nos tempos deles, as coisas faziam sentido, as crianças respeitavam seus velhos, e os bancos eram confiáveis. Mas algo em específico que chama a atenção são as carrocinhas. Não que carrocinhas no centro sejam raras, ou um conceito novo, mas o que comercializam. Um número impressionante deles vende filmes. Os últimos lançamentos, alguns ainda disponíveis somente enquanto cópias de exibição em cinema, ainda não lançados para DVD no país. Como moro numa área que não é considerada centro cultural do país, alguns filmes nunca chegam a ser exibidos na tela grande por aqui. Vão direto para as locadoras, quando vão. Algumas vezes, vejo filmes que só foram vistos em trailers, mas que nunca foram agendados para lançamento nas salas locais. Já voltei para casa num fim de tarde, quando cessa o comércio do centro, e observei essas carrocinhas voltando, completamente vazias. Foi um dia bom para o comércio. Mas nem é preciso ir tão longe, já que posso observar algo assim na minha própria casa. Minha irmã, 24 anos, apenas 5 anos mais nova que eu, assistia a um filme na nossa TV de plasma da sala. O filme é Os Outros, de Alfonso Cuarón, às duas horas da tarde. Aqui na região Nordeste, às 14 horas, o Sol está a pino, batendo nas cortinas e esquentando a sala de estar. Ainda assim, ela abraçava os próprios joelhos, contraída, os olhos grudados na TV, imersa, enquanto uma sirene de ambulância pode ser ouvida lá fora, a distância. E ainda assim, alguma coisa que eu só consigo fruir numa sala de cinema (onde vi Os Outros na sua época de lançamento, por sinal) é possível para ela no seu laptop do quarto, numa tela de 15 polegadas e com fones de ouvido, por sinal, bastante vagabundos. O que me fez pensar que ir ao cinema é um ritual que para muita gente, se tornou desnecessário para fruir um filme. Embora o que seja necessário para se ter “uma verdadeira experiência de cinema” seja uma discussão constante e por vezes enfadonha, eu quero propor neste texto um olhar sobre essa formas não-canônicas de consumo de cinema narrativo comum, e como as novas tecnologias de circulação de imagem são usadas no cotidiano para minar um formato de cinema de mais de 100 anos que agora enfrenta seus primeiros sinais de engessamento. Primeiro, vamos deixar claro que não defendo a pirataria enquanto comércio. Não é um artigo de apologia ou um manifesto, mas sim que observa o crescimento da pirataria do cinema como um sintoma de que o modelo cinematográfico hegemônico, tanto enquanto mercado como enquanto forma de consumo/percepção precisa se analisado e revisto. Afirmo isso não como geralmente fazemos na academia, olhando de fora, como um binóculo, mas como parte de um sistema conflitante de táticas que possuem regras

próprias, criadas por uma situação em particular aliada a um processo de evolução tecnológica contínuo do qual fazemos parte. O que nos leva a pensar sobre o cinema em si. E quando me refiro ao cinema, me refiro também ao cinema enquanto espaço. No que chamamos geralmente de senso comum atual, a sala de cinema é um conjunto muito específico de circunstâncias tanto físicas, quanto geográficas como políticas. Ora, o cinema é um espaço cuja entrada é controlada, afinal, ele é fechado e a entrada possui custos. É geralmente uma experiência grupal, se você não tiver a sorte, ou o azar, de ser a única pessoa da sala. Tem uma hora específica para seu início. A entrada requer um ritual específico de passagem por espaços repletos de conteúdos visuais pesados, cartazes, néons, telas múltiplas, bilheterias informatizadas. Não é permitido ir vestido de qualquer jeito. Dentro da sala, a tela está sempre a frente, e não se pode atender telefone ou conversar durante o filme, e não se pode interromper a narrativa. Enfim, a lista continua indefinidamente. Enfim, é possível comparar a sala de cinema ao espaço da igreja, como fez McGinn (2005), sob um prisma de que, arquitetonicamente, salas de cinema e igrejas não são diferentes, no que se refere ao perfurar dos miasmas sombrios por imagens luminosas: a tela ou o vitral. Ambos provêem prazeres visuais, presentes para os olhos. A experiência também não é totalmente visual. Existem hinos e sermões, música de órgãos e coros para preencher a narrativa visual da tela. Portanto, a sala a manifestação física de todo um jogo completo e complexo de situações que gera efeitos específicos no usuário. Como disse Anna Marie Duguet (2009, p.55), a sala de cinema: Visa à produção de efeitos específicos. De início, esse 'agenciamento dos efeitos de um mecanismo' é um sistema gerador que, a cada vez, estrutura a experiência sensível de maneira específica. Mais do que uma simples organização técnica, o dispositivo põe em jogo diferentes instancias enunciadoras ou figurativas e implica tanto situações institucionais quanto processos de percepção. Mais importante, também é um templo dedicado a uma indústria, uma foram cultural uma instituição, que como tal, tem o desejo de exercer poder, determinar formas culturais para si mesma e claro manter-se tão inalterada quanto for possível. Tanto é o caso que usamos um modelo de sala social e arquitetonicamente constante desde as primeiras três décadas do século XX. E no século onde, provavelmente, aconteceram as mudanças mais rápidas na recente história humana, um espaço que se exerce tanto poder a ponto de se recusar a mudar que pode ser considerado praticamente um fóssil. É um atestado ao que Michel de Certeau (2009) define como estratégia. São portanto ações que, graças a um postulado de um lugar de poder (a propriedade de

um próprio), elaboram lugares teóricos (sistemas e discursos totalizantes), capazes de articular um conjunto de lugares físicos onde as forças se distribuem. É muito curioso como essa forma “estrategicamente reforçada” de cinema parece ter se forçado sobre o homem comum das ruas no último século, ao ponto de nós não conseguimos imaginar o cinema sem obedecer a essas linhas. A sala existe como construto espacial, com sua estrutura, suas cadeiras, sua tela e caixas de som, aparato de proteção. Mas existe também como cultura, como comportamento, como que tipo de atividade humana pode ser realizada naquele espaço, que tipo de pessoas podem ser seus freqüentadores, concordando com um set específico de regras e horários. São jogos de forças, relações de poder. E pensa-se que sempre foi assim. Ignora-se que no seu nascimento, o cinema era um conteúdo visto em muitos lugares em muitas situações. Esquecemos que o cinema existia enquanto um dispositivo, uma curiosidade, quase uma geringonça, em seu início. E a sala de projeção de Lumiére não era a única maneira de se assistir a imagens em movimento. Podemos lembrar do kinetoscópio, onde o conteúdo era assistido numa geringonça que hoje em dia lembraria muito mais uma jukebox num bar do que qualquer relação com o que chamamos ordinariamente de sala de cinema. Podemos citar os cineramas do fim do século XIX, que foram sucessos de bilheteria para a época, e que possuíam várias semelhanças e marcantes diferenças em relação ao cinema estrategicamente inalterado que podemos assistir quando pagamos ingresso. Nas palavras de Arlindo Machado (2008, p. 70). O cinema, tal como o conhecemos hoje, é uma instalação que se cristalizou numa forma única: um spot de luz situado atrás da platéia, ao atravessar uma película, projeta as imagens ampliadas desta última numa única tela à frente dos espectadores mergulhados numa sala escura. Essa instalação foi planejada pela primeira vez quase 400 anos antes de Cristo por Platão, em seu livro A República, mais especificamente na sua famosa alegoria da caverna, mas foi generalizada no século XVII por Athanasius Kircher, com o seu modelo de espetáculo de lanterna mágica. O cinema petrificou esse modelo durante mais de 100 anos e constitui mesmo um fato surpreendente que durante esse tempo todo pessoas de todo o mundo tenham saído de casa todos os dias para ver sempre a mesma instalação, ainda que com imagens diferentes. Enfim, agora que já sabemos como a indústria cristalizou seus procedimentos, podemos observar como o homem comum de hoje usou isso para dar seus jeitinhos... O que tem acontecido desde que a TV começou a se popularizar foi uma progressiva mudança de hábitos e cultura do público em relação à maneira de se assistir a um filme. Pode parecer pouco quando olhamos agora, mas foi tremenda a quantidade de mudanças que essa conversão do cinema em TV criou no expectador comum. Um filme voltou, progressivamente, a poder ser uma experiência individual. É muito importante essa distinção. O que foi estrategicamente colocado como um fator determinante do cinema

“hegemônico” foi a questão dele ser um consumo grupal. Que diferença isso faz? Muita. Qualquer pessoa que já foi ao cinema numa estréia de um filme da saga Crepúsculo (aconteceu comigo quando assisti ao filme Lua Nova (2010) junto com os fãs no dia de sua estreia nos cinemas. Tem experiências que realmente queremos esquecer e não podemos...), cheia de adolescente púberes descontrolados gritando, “Edward, LINDOO!!!!”, pode lhe dizer que um grupo numa sala de cinema pode modificar completamente a fruição de um indivíduo em particular. Fora isso, o cinema enquanto espaço público reforça regras estratégicas específicas. Para exemplificar, pelo bem da ilustração, não se deve falar no celular, nem entrar na sala de cinema usando somente cuecas. Com a conversão dos filmes para TV, um filme visto em casa pode ser visto mais nos termos do espaço privado. Ou seja, cinema visto num espaço menos governado por regras institucionalizadas do espaço público. Ou seja, telefones e cuecas agora são permitidos! Assim começam as pequenas mudanças que tornarão, mais tarde, um filme ser possível de ser consumido nos termos do indivíduo, e não da Forma Cinema institucionalizada. Claro, não é assim tão bonito quando se olha mais de perto. Embora o conteúdo fosse consumido em casa, tanto de maneira solitária quanto familiar, o controle do consumo não estava na mão de quem assistia: assim como no cinema, o controle do tempo narrativo e da fruição era externo. Os filmes de TV tem uma hora marcada para começar e terminar, com intervalos comerciais definidos pela emissora. E para problematizar ainda mais, frequentemente os filmes possuem suas proporções modificadas de 16:9, a imagem horizontalizada do cinema para 4:3, o quase quadrado das telas de TV dos anos prételevisões digitais. Mais grave ainda, a própria narrativa pode editada cortada, para retirar cenas sangrentas de modo que o filme possa ser exibido em horários de audiências mais sensíveis, um fato que é amplamente notado e discutido graças a internet - ao menos de acordo com os fóruns de discussão sobre TV Brasileira, ao exemplo do TV Magazine um fórum específico para discussões sobre programação televisiva. (Cf. http://www.vmagazine.com.br/talktv). Ou, mais simplesmente ainda, para que filmes mais longos possam ser mostrados numa mesma janela de 2 horas. Com a popularização do formato VHS, como um suporte de consumo doméstico, o controle aumenta já que a fruição vai se tornando mais controlável: o indivíduo que assiste passa de audiência para usuário, já que é capaz de controlar cada vez mais o tempo e o ritmo da fruição: avançar e retroceder, rever cenas, pular partes que deseje, simplesmente rever todo o filme imediatamente depois, observar o conteúdo frame (o que criou a ideia de comunidades de internet inteiramente baseadas nesses erros, como a encontrada em www.moviemistakes.com), mas mais importante, criando a ideia de um conteúdo de audiovisual por demanda. Ao invés de trabalhar num modelo de distribuição centralizado, no sentido um para

todos, temos uma pulverização de material em pontos nodais de armazenagem de material cinematográfico: locadoras. Quando deseja-se ver um filme, vai-se ao ponto mais próximo da residência, aluga-se conteúdo durante um determinado período que pode ser consumido de qualquer maneira que o consumidor deseje. Certos tipos de obras audiovisuais baseadas em pastiche de materiais fílmicos só conseguiram realmente chegar a luz do dia devido a essa facilidade de acesso e modificação, já que o acesso às películas e ao equipamento de montagem/edição baseados em negativo era caro, pouco portátil e de difícil aquisição. Mais importante, o conteúdo se torna reprodutível numa escala doméstica, já que fitas podem ser copiadas com facilidade. E quando você invoca o gênio pra fora da garrafa, não dá mais para colocá-lo de volta. A conversão de formatos com a chegada do DVD só faz as possibilidades de consumos alternativos de imagem ficarem mais tentadores: DVDs tinham mais qualidade, eram materiais já digitalizados, imagens convertidas em algoritmos de áudio e vídeo. Portanto, também eram mais fáceis de alterar, reproduzir e, sobretudo, copiar. A quantidade de informação envolvida também alterou-se, já que um disco de DVD aceitava muito mais informação do que uma fita VHS num espaço muito menor. Com isso, a ideia de uma filmoteca, um espaço de armazenagem de imagens fílmicas ficou mais acessível para o indivíduo comum. DVDs eram liberados com grande velocidade no mercado, a preços competitivos, e eram copiáveis sem muito trabalho mesmo com as melhores travas de copyright. Mas mais importante, o DVD permitiu que a filmoteca privada, pessoal, se tornasse a realidade para o homem comum, e com isso, tornou real a chance de eu, o indivíduo, poder não somente assistir a um filme em casa, mas na hora que me for conveniente, e pulando as partes mais chatas. Limitações: estar necessitaria em casa na frente do sistema de DVD em casa. Nada mais. Conforme novas tecnologias audiovisuais vão ficando mais disponíveis, a quantidade de brechas na estratégia institucional de cinema vão ficando mais frequentes. Graças ao barateamento da capacidade de memória, a capacidade de armazenar imagens cresce vertiginosamente enquanto os aparelhos que contem essa armazenagem diminuem de tamanho, e de acordo com Huyssen (2000), com claras mudanças para a maneira como tratamos nossa própria memória, que não somente se expande, mas também se degrada. O que antes era uma empoeirada estante de fitas frágeis e cheias de mofo se torna uma simples pilha de DVDs, ou melhor ainda, um único hard drive externo de cerca de 400 gramas, como o que estou usando para armazenar este artigo. Nos seus 640 gigas em qualidade de 1080p (high definition), eu posso colocar cerca de 70 filmes longa metragem de 2 horas e meia. Se eu aceitar o material de qualidade “mais baixa” em 720p, esse número sobe para 128 filmes. Se esses 80 longas metragens material existissem em negativos, ele ocuparia vários metros cúbicos de espaço e pesaria algumas centenas de quilos. No espaço

do tamanho de uma carteira. O que nos leva a outra conseqüência, as mudanças causadas pelo simples fato do cinema existir enquanto informação mais simples, composta de bits e bytes organizados de modo algorítmico. O filme como uma mídia digitalmente nativa, tão fácil de copiar que faz a ideia de reprodutibilidade de Benjamin parecer brincadeira de playground. O custo de reprodução cai para virtualmente zero, o custo de transporte também. Todo o jogo de circulação muda, já que a imagem convertida a algoritmos pode ser circulada através da rede mundial de computadores. Como consequência, mudam as táticas de uso e consumo desta informação, já que novas possibilidades são abertas. Concordo com Certeau (1994, p. 102), quando ele define a tática com sendo uma oposição aos movimentos estratégicos que vêm das instituições, a oposição aos procedimentos de estratégicos institucionais, os procedimentos que se pela pertinência que dão ao tempo – às circunstâncias em que o instante de uma intervenção precisa transforma uma situação desfavorável em favorável, à rapidez com que mudam uma organização do espaço, as relações entre os momentos sucessivos de um “golpe”, [...] elas apontam para uma hábil utilização do tempo, das ocasiões e dos jogos que introduz dentro de um poder. Assim, esses bancos de dados compostos por “quais usuários possuem quais imagens em quais computadores” são orquestrados, e novas redes de indivíduos anônimos e nãocorrelacionados são geradas de maneira livre e de crescimento orgânico. É assim que funcionam as redes de Torrent e de Ed2k (que são redes peer to peer, redes de distribuição de informações não alinhadas a um sistema servidor central, de modo que todos os computadores de todos os usuários trocam informação ao mesmo tempo e não de maneira linear), onde um arquivo, no caso um filme, é fatiado, e cada usuário contribui com uma fatia, remontando o filme a partir da junção das mesmas no computador de destino, num processo análogo à montagem do filme a partir de múltiplas latas num projetor. São pedaços de um grande algoritmo, um sistema pré indexado que se remonta durante o processo de download de arquivos. Esses pedaços de informação vêm de todas as partes do mundo, e portanto, vazam por entre as rachaduras das estratégias institucionais, tanto técnicas quanto legais, da indústria de cinema hegemônica. Como se pode imaginar, para as instituições que lucram a partir de ideias analógicas de copyright, e que efetivamente decidem quem assiste o que, onde e de que horas, é um tremendo pesadelo. Não somente pela possibilidade, mas por que a facilidade de acesso a informação possibilita a criação de uma cultura de consumo muito mais tática do que estratégica, que existe onde existe tempo de conexão e banda larga disponível, e que portanto é mutável, móvel, existindo num momento e desaparecendo em outro. O filme deixa de pertencer a uma pessoa, o “meu DVD”, para pertencer a rede, se tornando “o nosso arquivo”. Isso gera um campo cinza, repleto de usos, abusos, golpes e

contragolpes, particularmente entre as instituições e os grupos de indivíduos que fazem a catalogação e indexação destes algoritmos de busca de dados. Esta é uma era de remixagem e de compartilhamento, e se você pode ver a relação entre compartilhamento e cultura verá que guerra entre quem possui os direitos e os consumidores nunca acabará e os detentores de direitos nunca vencerão. A internet é uma máquina de informação muito mais eficiente do que a prensa ou videocassete jamais foram, é um bicho com uma natureza diferente. É hora das indústrias de conteúdo aprenderem que devem descartar noções passadas de como fazer negócio baseadas numa economia de escassez. Eu citaria os comentários do departamento legais do Piratesbay.org, o mais famoso site de Torrents do mundo, mas são respostas menos educadas, onde os organizadores do site sugerem que os advogados da produtora de cinema DreamWorks SKG deveriam procurar algo mais útil para fazer, com palavras menos polidas do que as usadas para escrever este artigo (Cf. Subject: Re: Unauthorized Use of DreamWorks SKG Properties In: http://static.thepiratebay.org/ dreamworks_response.txt. Acessado dia 03/01/2011) Essa facilidade de circulação e distribuição cria redes. Redes de contatos entre anônimos que não se conhecem, e que nunca se encontrarão, articulando conexões sempre mutáveis de distribuição, que inclusive são capazes de burlar uma série de barreiras institucionais, como a maioria de redes de censura mundiais. Somente no ano passado a China conseguiu banir as maiores destas redes de distribuição de vídeo via P2P, embora ainda conte com centenas de redes menores tentando correr ao redor da proibição. No Irã, o sentido ocorreu em via contrária, permitindo que imagens proibidas e censuradas percorressem o mundo sem nenhum controle do Estado ou das redes de televisão que cobriam o ocorrido. Se dependesse da CNN e das redes de broadcasting da velha escola, você nunca poderia ter ouvido falar de Neda, uma iraniana de 16 anos. Ela foi atingida no coração por tidos das Forças de Segurança do Irã enquanto o telefone celular gravava e seu pai estava ao seu lado. Mais do que algum programa de filtragem de internet, esses guardiães da tv foram os verdadeiros censores. Isso reforça a ideia das redes de circulação de imagens via P2P como táticas e não como estratégias. São caminhos de comunicação que tem origem nos indivíduos, passando por eles e terminando neles. Certamente podem ser mal utilizados, como qualquer ferramenta. São redes dobradoras de espaço, que borram fronteiras e circunvizinham limitações estratégicas institucionais como a censura e o policiamento informacional, mas mais importante, para o assunto original sobre o qual falávamos, são ferramentas que facilitam a fuga da imagem das convenções espaciais e sociais que lhe foram impostas por uma forma hegemônica de cinema. Assim, temos imagens de cinema que circulam muito mais livremente do que aconteceria através das redes institucionais de veiculação, e onde alguns projetos são necessariamente vetados de existir. Como são dados, eles podem ser lidos por uma

infinidade de artefatos: não somente podem ser gravados e assistidos em DVDs e computadores, mas também media centers e, sobretudo, dispositivos móveis. Celulares vêm adquirindo capacidades de armazenagem, autonomia de baterias e resolução de exibição de imagens cada vez maiores, enquanto seu tamanho efetivo vai diminuindo, tornando-os mais portáteis. E podemos usá-los para assistir imagens. Na praia, enquanto fingimos que assistimos a uma aula, no metrô, antes de dormir. Nesse aspecto, o filme “portátil” assume uma fruição que anteriormente era das narrativas impressas como os quadrinhos ou livros, algo que pode ser aproveitado entre as horas do dia, entre os espaços e durante o deslocamento. Ou como uma sequência de tira gostos, em pequenos bocados, conforme for conveniente, filmes se tornam similares à como sanduíches que podemos dar uma mordida, re-embalar tudo e guardar na mochila para mais tarde. É o que é chamado pela publicação virtual Wired de Snack Culture, uma forma descentralizada, interconectada, meio neurótica, constante e pessoal, de consumo de conteúdo: Hoje a mídia em pedacinhos é um modo de vida. De manhã vemos notícias e e-mails nos nossos laptops. No trabalho, pastamos em videologs e blogs. Quando chegamos em casa, a HDTV nos espera oferecendo um banquete de 10 pratos – Por exemplo, uma temporada inteira de 24 horas. Entre elas, estão as iguarias para preencher esses tantos minutos: um jogo de 30 segundos no seu Nintendo DS, um web episódio de 60 segundos no seu telefone celular, ou um podcast de 3 minutos no seu MP3 player (MILLER, 2008). O que nos leva a pensar no que isso significa para a cultura em que vivemos. Essa nova “situação cinema” pode nos dizer muito sobre o ritmo da vida cotidiana. Não seria a primeira vez que isso é feito. Walter Benjamin e por Ben Synger fizeram isso se referindo a virada do século XIX para o século XX, falando do cinema como a forma de arte mais adequada à vida veloz, neurologicamente chocante e agressiva das cidades, que espelhava os anseios e medos típicos da modernidade. O Cinema corresponde a mudanças profundas no aparelho perceptivo – mudanças que são experimentas em escala individual pelo homem na rua no tráfego da cidade grande e , em escala histórica, por qualquer cidadão dos dias de hoje. O ritmo rápido do cinema e sua fragmentação audiovisual de auto-impacto constituíram um paralelo aos choques e intensidade sensórias da vida moderna. Podemos argumentar que a cultura do cinema finalmente chegou ao ponto onde o resto da o resto da cultura de consumo de dados e informação já se encontra desde o fim da década de 90: A Imagem de Cinema como um conteúdo (e um olhar) móvel e instável, afetado pelo sujeito que a olha de maneiras imprevisíveis para as instancias produtivas, já que não sabemos quando e em que condições uma material pode ser visto de antemão. Pode ser em qualquer lugar. É assustadora a quantidade de relatos de ipods/iphones que caem dentro de vasos sanitários (Disponível em http://blogdoiphone.com/2008/02/seu-iphone-

caiu-na-agua-adeus-garantia/. Acessado dia 03/01/2011. Os comentários são verdadeiramente relatos insólitos). É uma fruição de cinema que obedece os processos nômades de pessoas que estão sempre indo de um lugar para o outro durante o dia, não possuem horário certo para fazer nada, mas que ao mesmo tempo são incapazes de escapar de um mundo que é essencialmente coberto de e composto de imagens que clamam por atenção permamente. O que observamos nesse cinema assistido em dispositivos móveis é uma adaptação do cinema para dentro das realidades da vida pratica: transformar o cinema numa pratica móvel, fragmentada, interligada, e ansiosa. Isso não necessariamente é algo ruim. Não existe razão para que algo cômodo e ordinário não possa ser considerado uma maneira de resistência à imposições e relações de força. Podemos enxergar o cinema em dispositivos móveis como uma tentativa de uso do cinema como processos culturais de subjetivação. Em seus diálogos com Foucault, Deleuze trabalhava a ideia da subjetivação como uma forma do sujeito usar a arte (e artimanhas, artes do fazer, por que não?) para se por fora das relações de poder, tanto quanto isso seja possível, anulando-as. É isso a subjetivação: dar uma curvatura a linha, fazer com que ela retorne sobre si mesma, ou que a força afete a si mesma. Se isso já aconteceu com a música, num processo ainda mais lento, não vejo razão pela qual seria diferente com o cinema. De resto, falta observamos que efeitos essa práticas terão sobre as instituições que originalmente eram as detentoras do modus operandi do cinema, as donas da Forma Cinema. A indústria musical já sentiu o baque em suas estruturas, sendo obrigada a reformular todo o seu sistema de relações com o usuário devido a esses novos usos circulatórios que desafiam as estratégias convencionais de venda, compra, autoria e copywrites. O cinema, particularmente o comercial, é baseado num sistema que está para completar um século sem grande alterações. Um fóssil. O que não quer dizer que o cinema como existe vá ser extinto pelo P2P. O que eu proponho estar ocorrendo é uma volta do cinema as sua origens, como uma multiplicidade de dispositivos, uma possibilidade de das regras que fomos ensinados quando crianças no que se concerne ao cinema. Tela grande no lugar da pequena, fones de ouvido no lugar das caixas de som, a fruição solitária no lugar do conforto grupal, a hora que me for mais conveniente no lugar da hora que me é informado que tal filme começa, com as pausas nos lugares onde eu achar que elas devem ser. Talvez, um cinema mais meu do que nosso, mais individual sem ser mais pessoal, menos cheio de coisas que preciso fazer para assistir, mais conveniente. Quem sabe? A gente vai dando um jeitinho.

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DELEUZE, Giles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. DUGUET, Anne-Marie, Cinema do Dispositivo. In: MACIEL, Kátia (Org). Transcinemas, Contra Capa Editora, Rio de Janeiro. 2009. JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. Aleph, São Paulo, 2006. HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória. Aeroplano, 2000. MCGINN, Collin. The Power of Movies: how screen and mind interact. Pantheon: Nova York, 2005. MACHADO, Arlindo. Cinema e a Condição Pós-Midiática. In: MACIEL, Kátia. Cinema Sim – Narrativas e Projeções. São Paulo: Itaú Cultural, 2008. MANNOVICH, Lev. Understanding Hybrid Media./ In: www.manovich.net/DOCS/hybrid_media_pictures.doc MILLER, Nancy, Manifesto for a New Age, Wired Magazine, Conde Nasté Group, 2008. Disponível em: http://www.wired.com/wired/archive/15.03/snackminifesto.html SINGER, Ben. Modernidade, Hiperestímulo e Sensacionalismo Popular. In: CHARNEY, Leo e SWCHARTZ, Vanessa. O Cinema e a Invenção da Vida Moderna. São Paulo: Cosacnaify, 2007.

O cotidiano na trilogia amorosa de Wong Kar-Wai Amanda Mansur Custódio Nogueira

O cinema é a representação de um sistema de comunicação visual pré-existente. O diretor de cinema é uma espécie de “ser divino” que constrói um mundo onde nada existe: a arquitetura, as personagens que vão habitá-lo, as cores, a sonoridade, a história que vai se desenvolver dentro do universo do filme. O espectador, por sua vez, vê este mundo inventado resumido em uma série de ações, gestos e hábitos. Uma característica fundamental de um bom diretor de cinema é a sua capacidade de síntese: transformar a ideia, páginas de um roteiro, uma cena com certa função dramática, em imagem. Observar o mundo (o cotidiano) em seus mais banais detalhes e com bastante atenção faz com que diretores como Wong Kar-Wai não só sintetizem o sentimento do mundo em imagens, mas transforme essas imagens em poesia. A intenção deste artigo é demonstrar como o diretor chinês Wong Kar-Wai trabalha com a representação das práticas cotidianas fazendo delas a síntese do seu cinema. Entre memórias enlatadas em conserva; amores expressos e eternos; luzes amarelas, vermelhas, verdes, azuis que dão tom dramático de cada cena, junto ao reflexo dos vidros das vitrines, dos bares, carros, lojas de conveniência e aquários; almoços ordinários no centro da cidade; Wong Kar-Wai constrói a “sua” cidade de Hong Kong (na década de 60 em bairro habitado por imigrantes de Xangai e em seu ritmo de metrópole na década de 90) e a “sua” cidade de Buenos Aires (construída entre as ruínas e a modernidade), como o mundo para explorar o amor em seus mais diferentes tons, nos filmes: Chungking Express (1994), Happy Together (1997) e, In the Mood for Love (2001). As cidades são personagens dos seus filmes, principalmente Hong Kong, na qual ele transpõe para as telas o dia a dia de seus bairros, estabelece uma relação de memória da sua infância e adolescência e constrói as tramas a partir de fragmentos de realidade. Nascido em Xangai, Wong Kar-Wai mudou-se com os pais para Hong Kong aos cinco anos. O cinema surgiu na sua vida por um problema de comunicação. Como o idioma falado em Hong Kong era o cantonês, ele não conseguia fazer amigos e, sua mãe começou a levá-lo todos os dias para o cinema onde ele compreendia o sentido através das imagens. Antes de colocar qualquer linha do papel, Wong Kar-Wai escolhe as locações. Escreve o roteiro de seus filmes como uma gênese dos lugares, as imagens prevalecem às palavras. Depois de delimitar o espaço no qual a história se desenrola, define quem são as personagens que vão evoluir na narrativa e como vão falar e se deslocar (KAR-WAI, 2006). Primeiro demarca os espaços e posteriormente preenche os vazios de significações. A representação das práticas cotidianas nos fragmentos temporais em seus filmes, dão à sua obra como um todo, um aspecto de realização inacabada onde o improviso e o acaso desempenham importantes papéis. So most of the time we are working with a very tight budget. Like Chungking Express: basically, we made this film just like a student film. We don’t have time to set up, like big set-up. We just shoot — at that point, we call ourselves CNN. We just do it like

CNN: just bring the camera and shoot It — without permits, without any licenses. And we even got caught, because we shot in the subway without any license. We had a warning from the airport because we just bring it to the airport and shot it. So every day is like planning a robbery (KAR-WAI, 2008, p.6). De fato, parte do estilo do diretor chinês vem de cenas de ficção “roubadas” dentro de um contexto natural. Em seus primeiros filmes a equipe chegava em locações reais, funcionando na sua devida normalidade, o diretor inseria seu elenco no espaço, ligava a câmera e rodava seu filme. Hoje, o também diretor de publicidade, filma por meses seguidos e se não aprecia o resultado começa tudo novamente. A unidade estilística dos filmes de Kar-Wai também é garantida pela recorrência na escolha da equipe dos seus filmes, o diretor de fotografia, Christopher Doyle, e o Diretor de Arte e Montador, William Chang, assinam a trilogia aqui analisada, fora outros seis dos seus dez longas. Segundo relato de Christopher Doyle no diário Don’t try for me Argentina escrito durante a produção de Happy Together em Buenos Aires, o processo de criação de Wong Kar-Wai nas filmagens é espontaneamente coletivo, havendo intensa participação da equipe de fotografia, da arte e do elenco. Os dois personagens principais de Happy Together, têm os nomes dos assistentes de câmera de Doyle. Em debate no Museu da Imagem em Movimento de Nova York, durante o lançamento do filme My Blueberry Nights (2006), Kar-Wai fala da sua maneira de filmar, de como foi se caracterizando, a partir de Happy Together, o seu estilo. I still remember when we shot Happy Together (1997) in Argentina, we shot one day a place called Ushuaia, which is the [most southern] part of America—because after that will be Antarctica, right. It’s so far away from Buenos Aires. We shot and shot until we realized, with Chris, I said, “Do we have enough film stock?” “No, we ran out of film stock.” “But we still have one scene. What we are supposed to do?” Then we sit down and then Chris comes up with an idea. So we go to all these photo shops to buy film rolls. Film rolls normally have thirty-six frames, or twenty-four frames. So we just rolled it and make this whole scene in still shots. So each shot lasts one second. And this is the way to do it. And we had fun, because I think at that point, we all feel this is an accomplishment! Sometimes people think, “Well, this is your style.” But I always want to explain—to students, especially—I say, “Well it’s not only an aesthetic decision. Sometimes it is a practical solution to solve your problem.” One of the jobs of a director is you have to solve problems (KAR-WAI, 2008, p.7). O estilo de Wong Kar-Wai surge não só no seu modo de conceber as ideias, em páginas de roteiros inacabados, como também no modo como os filmes são realizados com a equipe e o elenco como inspiração. Na linha do improviso característico do início da carreira de Kar-Wai, Chungking

Express (1994) foi produzido em vinte e três dias. O filme, dividido em duas partes, conta as histórias de dois policiais apaixonados de Hong Kong. O policial 223 (Takeshi Kaneshiro) rompe um relacionamento de cinco anos e se encanta por uma mulher misteriosa traficante de heroína. Ele compra uma lata de abacaxi por dia durante um mês com a data de validade 1 de maio. Ao final do mês ele percebe que seu amor expirou para sempre. O policial 663 (Tony Leung Chiu Wai), após ser rejeitado pela namorada, comissária de bordo, passa a conversar com os objetos deixados pela moça em sua casa (bicho de pelúcia, avião em miniatura). Encontra a possibilidade de um novo relacionamento com uma atendente de fast-food, que todos os dias escuta “California Dreaming” do grupo The Mamas and the Papas. A partir da metade do filme a música toca 18 vezes e reforça a ideia da repetição e da rotina. As luzes do centro de Hong Kong e a velocidade com que as pessoas caminham pela cidade inspiram visualmente o diretor que investe em uma fotografia colorida e preto e branca, com uso variados de filtros, velocidade e uma diversidade de recursos técnicos possíveis garantidos pelo aparato cinematográfico para intensificar a falta de linearidade em suas histórias. Nos pequenos encontros casuais, o ato de comer se torna um elo de ligação entre as personagens. O policial 223 acredita que o amor tem prazo de validade e expira como o abacaxi enlatado que consome, comprado em lojas de conveniência na madrugada. Enquanto 663 durante o expediente sempre acaba passando pela loja de fastfood onde faz refeições e é observado atentamente por sua pretendente. Não só em Chungking Express (1994), mas no conjunto da obra, a comida é um elemento fundamental do cotidiano, tanto a sua preparação quanto o consumo é representado nos filmes de Kar-Wai e esboça uma direta relação com os encontros e desencontros amorosos. O vinho apaga as memórias em Ashes of Time (1994); o abacaxi enlatado expira o amor em Chungking Express; o macarrão won ton promove os encontros dos vizinhos em In the mood for Love (2000); as comidas feitas na cozinha para o amado acidentado em Happy Together (1997); o bife de sabor inconfundível que não vai ser mais degustado, feito pelo pai de Takeshi Kaneshiro em Fallen Angels (1995). O tempo, representado pelos horários das refeições e pela figura do próprio relógio em si, é outro elemento do cotidiano presente nos filmes. O relógio em Chungking Express e em Happy Together reforça a ideia da rotina na vida dos seus personagens. Em Happy Together, o plano do relógio digital recortado pelo Obelisco na cidade de Buenos Aires acompanha o movimento na cidade e corre em toda velocidade. A montagem nos dois filmes se destaca pelas repetições, pelo uso fragmentado do tempo incluindo dentro dele a subjetividade das personagens. Entre a realidade da história e os sonhos das personagens o espectador se perde nos valiosos instantes concebidos visualmente. Em Happy Together (1997), Yui-fai (Tony Leung Chiu Wai) e Po-wing (Leslie Cheung), são um casal de namorados, que vai para Argentina e quer conhecer as Cataratas do Iguaçu.

No meio do caminho em direção as cataratas se perdem e o relacionamento dos dois desmorona. Seguem caminhos distintos entre as ruínas e a modernidade de Buenos Aires: Yui-fai arruma emprego em um casa de tango e pensa em retornar para Hong Kong; Powing se afunda na degradação se prostituindo e usando drogas. Há uma dimensão sexual na relação do casal e política (o ano da morte do líder chinês Deng Xiaoping) no filme apontando para a questão da alteridade. A questão central de Happy Together é: há possibilidade dois opostos viverem felizes juntos? As idas e vindas do casal são marcadas por momentos de solidão, discussões, movimentos, tango e também felicidade. Entre as ruínas da região portuária de uma Buenos Aires dos anos 90, em meio as pensões baratas e fábricas abandonadas, o tango bailado densamente pelo casal de personagens tem toda a magnitude de um fim, opostos que se distanciam a cada passo dado. Quando Po-Wing adoece, Yui-fai cuida dele em seu apartamento: limpa e troca seus curativos, cozinha, coloca repelente ao redor da cama para evitar moscas, sai no meio da noite para lhe comprar cigarros. São justamente esses fragmentos da rotina dos dois amantes que expõe a dificuldade em viverem juntos. Há uma certa incompatibilidade entre o amor erótico e a vida cotidiana, entre o delicado romance e o banal (CHOW, 1999). Yui-fai e Po-wing estão presos à um destino que nunca se concretiza. Na abertura de Happy Together as lágrimas da relação em permanente rompimento (Yui-fai e Po-wing decidem dar um tempo nos primeiros minutos do filme) são sintetizadas na imagem do desaguar imenso das Cataratas do Iguaçu. Associadas a música “Paloma” cantada por Caetano Veloso intensificam a dor de Yui-fai e suspendem o espectador para o início de um tormento audiovisual. Para Wong Kar-Wai a música é como a cor dos seus filmes e define o ritmo dos movimentos da câmera de Christopher Doyle. If only film was jazz, IF only we could ‘jam’... We get closer to this with each film; my camera becomes more and more of a musical instrument. On and off, different film speeds, frame changes in shot... these are my key and register shifts. I riff, you solo, we Jam towards a free form that we believe a film can be (DOYLE, 2006, p. 288). O diretor chinês coleciona músicas que lhe parecem interessantes visualmente, grava e guarda em um banco de dados musical, o qual recorre ao começar a escrever seus filmes. Em geral usa músicas que não fazem parte daquele contexto (como Edith Piaf no velório de De Certeau na nave da Igreja) ou daquela época, o que deixa a atmosfera mais ambígua. Os corpos das personagens na trilogia amorosa de Kar-Wai têm seus movimentos visualmente intensificados por uma câmera à quarenta quadros que os acompanha como um voyer, um terceiro parceiro de dança. Na imagem granulada e quase sem luz de Chungking Express e Happy Together, e, na poesia visual e técnica de In the Mood for Love. In the Mood for Love (2000), nos leva para a Hong Kong do início anos 60, ainda sob domínio inglês, quando Su Li-zhen Chan (Maggie Cheung) e Chow Mo-wan (Tony Leung Chiu Wai), alugam quartos em apartamentos vizinhos em um distrito habitado por

imigrantes de Xangai. Chow Mo-wan é jornalista e muda-se com a esposa, para um novo quarto. No mesmo prédio, conhece Su Li-zhen Chan, que é também casada. Com o tempo, vão se tornando amigos cada vez mais próximos, uma vez que seus cônjuges passam boa parte do tempo fora. Ambos descobrem que seus respectivos companheiros têm um caso. No filme, o tempo é simbolizado pelas roupas. A gravata de Zhou e a bolsa de Su, são peças chave que confirmam a desconfiança deles da traição dos seus respectivos cônjuges. A troca de roupas (qipaos, tipo de vestido usado pelas chinesas desde início do século 20), jogo de mahjong, utensílios de cozinha (panela elétrica de cozinhar arroz, latas térmicas de carregar macarrão noodles) jornais e rádio vão pontuando o dia a dia. O fazer e seus detalhes do cotidiano vão sendo repetidos em um tom que beira à melancolia, imprimindo ao universo diegético um sentimentalismo nostálgico (CHOW, 2002, p. 648). Para Michel de Certeau (1994), o espaço é um lugar praticado, ou seja, os lugares são produzidos pelos usos e sentidos que estabelecem em cada contexto cultural. Nesse sentido, cada lugar de Buenos Aires e Hong Kong (ruas, bares, carros, ônibus), vai obtendo significações a partir das práticas das personagens transitórias. A loja de conveniência se torna um lugar solitário na madrugada, frequentada por seres noturnos, como o policial 223 que compra latas de abacaxi em conserva. Do mesmo modo, os banheiros públicos e profanos do bairro de La Boca e as ruas de Buenos Aires tornam-se lugares dotados da nostalgia de uma modernidade tardia, seus habitantes mal transitam pelas ruas. “O caminhante transforma em outra coisa cada significante espacial” (CERTEAU, 1994, p. 178). Os filmes de Wong Kar-Wai, noturnos em seu cerne, são iluminados por diferentes pontos de luzes das ruas da cidade, postes, aquários, televisão, luminária. Os sentimentos das personagens de “carne e osso” extrapolam as fronteiras dos pequenos cômodos, se desenvolvem nas feiras do centro, no ônibus, na quadra de esportes, na casa de tango, e se concretizam no meio dos centros modernos e avenidas movimentadas e ruas abandonadas e em ruínas de Hong Kong e Buenos Aires. Suas obras provocam um êxtase audiovisual permeados por poucos, mas, definitivos diálogos das personagens. Os usos do cotidiano para tratar das relações humanas nos filmes acima mencionados funcionam como um artifício para abordar o drama humano. O cotidiano seria uma espécie de convenção, adotada por Wong Kar Wai, que emerge como uma forma viável de contar histórias nas telas (CHOW, 2002). É peculiar do seu cinema o interesse pelo dia a dia, sob a forma de acontecimentos, como encontros casuais e a exploração das trivialidades mundanas que compõe os ambientes e lugares habitados. O diretor chinês transforma simples ações cotidianas em espetáculo. O cotidiano emerge da rede de elementos fílmicos: visual, auditivo e narrativo. O recurso da imagem a quarenta quadros por segundo, tão empregado por Kar-Wai torna os simples movimentos dos corpos de suas personagens ações expressivas que articuladas ao som da música ocidental, provocam verdadeiras suspensões narrativas. Inspirado pelos diretores da

Nouvelle Vague francesa, dos quais as técnicas ele toma emprestado, transforma esses movimentos em acontecimentos, experiências alternativas, onde desfamiliariza (repetitivo, habitual) a natureza do movimento através de uma manipulação da sua textura cinemática e olhar acerca do tempo (CHOW, 2002). Para Pasolini o cinema tem uma dupla natureza: é ao mesmo tempo extremamente objetivo e extremamente subjetivo. Utiliza-se dos objetos (signos) para operar em um nível metafórico (simbólico). Em Heretical Empiricism (1988), Pasolini disserta sobre a significação do cotidiano no cinema. The filmmaker chooses a series of objects, or things, or landscapes, or persons as syntagmas (signs of a symbolic language) which, while they have a grammatical history invented in that moment – as in a sort of happening dominated by the Idea of selection and montage – do, however, have an already lengthy and intense pregrammatical history (PASOLINI, 1988, p. 171). Cinema, lacking a conceptual, abstract vocabulary, is powerfully metaphoric; as a matter of fact, a fortiori it operates immediately on the metaphoric level. Particular, deliberately generated metaphors, however always have some quality that is inevitably crude and convetional (PASOLINI , 1988, p. 174). Nos filmes de Kaw-Wai, as ações e objetos do cotidiano reproduzidos constituem tanto uma objetivamente composta representação visual como uma metafórica e complexa subjetividade. O diretor tem a capacidade para fundar planos objetivos e subjetivos ao mesmo tempo, os quais Christopher Doyle chama de planos kongjing (AGUILAR, 2009). In the Mood for Love, acaba com imagens de ruínas antigas em Cambodja, que nos remetem as Cataratas do Iguaçu em Happy Together, sugerindo a transcendência “do lugar” em relação ao mundo e ao “tempo” humano. Nessa organização de objetos/acontecimentos em prol de uma composição fílmica particular, Wong Kar Wai fala de amor. A busca pelo amor em Chungking Express; amor, que nunca se concretiza de Happy Together; e, o amor reprimido em In the Mood for Love. O amor em seus pequenos detalhes cotidianos.

Referências AGUILAR, Gonzalo. Oriente grau zero: Happy Together de Wong Kar-Wai. In:Passagens 4, RJ: Vozes, dezembro de 2009. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. CHOW, Rey. Nostalgia of the New Wave: Structure in Wong Kar-wai’s Happy Together. In: Camera Obscura, 42 (1999), p. 30 – 49. ______. Sentimental Returns: On the Uses of the Everyday in the Recent Films of Zhang Yimou and Wong Kar-wai. In: New Literary History - Volume 33, Number 4, Autumn 2002, pp. 639-654 DOYLE, Christopher: “Don’t Try for me, Argentina :A Journal of the Shooting of Wong Kar-Wai’s Happy Together in

Argentina. In: The Director’s Cut: the best of projections. Edited by John Boorman and Walter Donohue, 2006. KAR-WAI, Wong. Transcript: A Pinewood dialogue with Wong Kar-Wai. New York: Museum of the Moving Image, 2008. Transcrição de entrevista. Disponível em: http://www.movingimagesource.us/files/dialogues/3/71112_programs_transcript_html_303.htm PASOLINI, Pier Paolo. Heretical Empiricism, ed. LouiseK. Barnett, tr. Ben Lawton and Louise K. Barnett. Bloomington, 1988. TIRARD, Laurent. Grandes diretores de cinema. Tradução Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

Fotografia e cotidiano na Caixa de Sapato Eduardo Queiroga

Dormir, acordar, tomar banho, comer, pegar metrô, trabalhar, estudar, cozinhar, morar. A lista pode não terminar nunca. São os fazeres do dia a dia. Um conjunto de atividades que se perdem num emaranhado, que podem até ser confundidas com um não fazer. Ações do cotidiano, pequenas, individualizadas, rotineiras. Práticas que raramente entram na contabilidade de feitos das pessoas ou das instituições. Fatos corriqueiros, que não se destacam na massa, não viram notícia, não são especiais, não são lembrados. Para virar notícia, precisa ser novo, inédito, precisa atingir alguém de destaque, uma celebridade, precisa diferenciar-se do lugar comum. “Se um cão morde uma pessoa, não é notícia; mas se uma pessoa morde um cão...” diz uma anedota tão comum quanto batida nos cursos de comunicação. Repetir caminhos, reproduzir processos, seguir regras de conduta, agir sob modelos de comportamento: tudo isso são maneiras de diluir individualidades, ou, dizendo de outra forma, são mecanismos de controle da população, minimizando a desordem e potencializando a produtividade. Foucault, que dedicou muita energia ao estudo daquilo que chamou de microfísica do poder (2002), acreditava que a história se construía em gestos localizados. Ele nos mostra como a disciplina foi interessante para a condução de uma sociedade que estava em transição para um modelo industrial, moderno. “As disciplinas funcionam cada vez mais como técnicas que fabricam indivíduos úteis” (FOUCAULT, 1996, p. 233). São modeladoras dos comportamentos, aumentando a produtividade através da anulação das individualidades destoantes. Os desvios de conduta atrapalham o melhor aproveitamento das energias e potencialidades. O desvio atrapalha o lucro. A sociedade disciplinar ganha força ao longo do século XVIII, quando se multiplicam as instituições disciplinares: prisão, hospital, escola, entre outras. A explosão demográfica está entre os principais motivos de tais medidas. Era preciso administrar o aumento da população e suas consequentes movimentações. Aumentou a escala quantitativa dos grupos que precisavam ser controlados ou manipulados. Uma maneira eficiente de fazer isso era estender os tentáculos do poder até os indivíduos. As mudanças econômicas do século XVIII tornaram necessário fazer circular os efeitos do poder, por canais cada vez mais sutis, chegando até os próprios indivíduos, seus corpos, seus gestos, cada um de seus desempenhos cotidianos. Que o poder, mesmo tendo uma multiplicidade de homens a gerir, seja tão eficaz quanto se ele se exercesse sobre um só. (FOUCAULT, 2002, p.118) O panóptico é o modelo perfeito para isso. Com origem na arquitetura, criado por Jeremy Bentham, é uma construção de forma circular, dividida em compartimentos ligados a uma torre central. Feita de maneira que a torre fica na penumbra e as pessoas que estão no interior desses compartimentos – celas – não conseguem distinguir as pessoas – guardas – da torre. Um sentimento de ser vigiado 24h por dia faz com que os presos não se rebelem nem tentem fugir. Algo parecido com o que acontece nos estabelecimentos que fixam em

suas paredes os dizeres “sorria, você está sendo filmado”. O indivíduo é visto sem poder ver. Não sabe exatamente quando está sendo vigiado, o que significa pensar que está sendo vigiado o tempo todo. Suas pequenas ações são influenciadas por essa possibilidade de “ter alguém vendo”. O resultado é uma docilidade sem a real necessidade de vigilância. O que interessa aqui é conduzir as massas dentro de uma ordem, aproveitando ao máximo suas potencialidades, coordenando habilidades, reforçando poderes instituídos. A sociedade como uma grande engrenagem, onde cada peça precisava desempenhar sua função específica, mas de uma maneira articulada com as demais. Trabalhar fora de eixos pré estabelecidos não era interessante para o bom funcionamento dessa engrenagem. Nesse modelo, as arestas são cortadas. Os desvios são abafados em nome de uma maior eficiência e ordem, da criação de uma massa anônima e passiva. Se ao poder administrativo interessa a imposição de normas comuns e procedimentos unificados, diversos estudiosos percebem e se dedicam aos traços mais plurais dessa mesma sociedade. Michel de Certeau inicia nos anos 1970 sua pesquisa que culminaria com a obra "Invenção do Cotidiano" (2008), que tem por “objetivo explicitar as combinatórias de operações que compõem […] uma cultura e exumar os modelos de ação característicos dos usuários, dos quais se esconde, sob o pudico nome de consumidores, o estatuto de dominados” (Ibid, p. 38). Este autor nos fala de uma não passividade no consumo das ideias. Os usuários se reapropriam dos espaços organizados de maneira plural. E são essas maneiras de fazer que constroem o cotidiano, através de traçados indeterminados desprovidos, apenas aparentemente, de sentido. Os indivíduos aparentam estar consumindo os bens culturais de maneira passiva, seguindo fluxos programados, porém a forma como fazem isso opera transformações, segundo suas subjetividades. São ações táticas apontadas para uma utilização hábil do tempo e das ocasiões apresentadas, inserindo novas possibilidades aos caminhos trilhados. Certeau chega a tratar de uma subversão cotidiana que se contrapõe à disciplina panóptica (p.175). Para ele, existe um saber não sabido, um conhecimento que não é reconhecido pelo sujeito. Um saber anônimo e referencial sobre os quais os praticantes – os que praticam essas ações – não refletem, que é formado pelas práticas cotidianas e não pertence a ninguém. Mas, mesmo inconscientes, são escritas. Daí a importância de se analisar e dar atenção a “práticas microbianas”, singulares e plurais, que deveriam ser suprimidas pelo sistema. Pertinente notar, aqui, um ponto de contato com a filosofia de Flusser. Esse que se tornou referência entre estudiosos da imagem, com a sua Filosofia da caixa preta, alerta para a falta de consciência por parte dos fotógrafos em relação à sua práxis. Temos de destacar que Flusser (2002) usa a fotografia como um modelo epistemológico para uma reflexão que tem como objeto a vida do homem futuro. Ele quer falar da humanidade e lança mão de alguns conceitos como aparelho, que dá conta de uma totalidade; ou funcionário, aquele que age em função do aparelho e de suas configurações previamente

programadas. Para ele, o fotógrafo se diferencia do funcionário ao buscar dar ao aparelho novas funcionalidades. Numa espécie de resumo do universo fotográfico, diz que “tudo se passa automaticamente e não serve a nenhum interesse humano. Contra essa automação estúpida, lutam determinados fotógrafos que procuram inserir intenções humanas ao jogo” (p.70). Mais adiante: “liberdade é jogar contra o aparelho. E isto é possível” (p.75). Os atos corriqueiros e diários, aparentemente passivos, mesmo que inconscientes, podem gerar uma escrita diferente da disciplina e da ordem previamente planejada. Os sujeitos, na forma como fazem essas atividades, inscrevem novos significados às suas produções. Existem uma cultura e um saber produzidos por essas novas inscrições, tornando os indivíduos também produtores, não apenas consumidores passivos. Se a sociedade disciplinar atua num apagamento dos atos individuais, transformandoos em rotineiros, como mecanismo de controle, no campo da imagem este fenômeno se sobrepõe a outras questões de ordem prática, que culminam na pouca presença dos atos diários como assunto de fotografias. A fotografia, quando inicia sua história na primeira metade do século XIX, consequentemente alinhada a anseios modernos, era uma tecnologia de difícil acesso e manuseio. Era necessário um domínio de princípios de diversas áreas. O fotógrafo precisava conhecer um pouco de química, para preparar emulsões, reveladores e fixadores. Precisava saber um tanto de física para construir e operar seus aparatos óticos, além de ter alguma disposição física – ou ajudantes – para transportar e montar aparelhos pesados. A captação, por sua vez, necessitava de boas condições de iluminação e demandava um longo tempo de exposição. Não se podia fazer fotografias em qualquer lugar ou ocasião. Tomadas em ambientes fechados precisavam de claraboias – aberturas no teto – ou grandes janelas, que proporcionassem uma quantidade mínima de luz. As pessoas precisavam ficar imóveis por segundos ou até minutos. Nos primeiros tempos, fotografias com gente contavam com a ajuda de desconfortáveis traquitanas para imobilizar cabeça e braços. Além disso era um processo caro, que usava aparelhagem especial e produtos nobres, como a prata. Não se fotografava em qualquer situação. Embora tenha sido responsável por uma enorme “democratização” da imagem, era um procedimento especial. Era usada em ocasiões específicas, grandes eventos ou momentos que mereciam serem ‘guardados para a posteridade. Até hoje a vinculação com a fotografia como momento “especial” tem rendido questões no campo da antropologia e da sociologia. Até que ponto a presença de uma câmera influencia os comportamentos? Até que ponto há uma representação por parte do indivíduo fotografado/pesquisado? Aqui a questão não é quantitativa, pois o número de imagens produzidas no dia a dia é impressionantemente grande, mas toca na questão de ser uma documentação de práticas cotidianas ou de representações, de criações de uma personalidade interessante de ser externalizada. Esses fazeres comuns pouco apareciam como tema dos daguerreótipos, ambrótipos e

outras imagens fotográficas da época. Ainda hoje, mesmo com o aumento de acesso a aparatos fotográficos presentes no dia a dia — em telefones celulares, computadores, câmeras amadoras etc — ainda se discute sobre o real crescimento de registros do cotidiano das pessoas. Mas o fato é que, durante alguns séculos, caminhamos numa doutrinação das ações padronizadas, não apenas na vida, mas também nos registros fotográficos. Os desvios podiam ser vistos como infrações, loucura, doença, passíveis de punição. Ou eram feitos extraordinários, prêmios, destaque. A regra é o expediente de trabalho, o descanso é luxo. Ócio é malandragem. As férias são ocasiões especiais. No final do século XIX a Kodak revoluciona a prática fotográfica com sua câmera que, de tão simples, levava o conhecido slogan “você aperta o botão e nós fazemos o resto”. A partir daí a fotografia entra na casa das pessoas, passa a estar presente com mais frequência no dia a dia, mas ainda assim, em geral para momentos importantes: comemorações, realizações, viagens. Ao longo do século XX a fotografia torna-se cada vez mais disseminada, culminando com o barateamento da tecnologia digital, acessível a um número muito maior de pessoas, associada aos mais diversos aparatos, como já foi citado. Hoje estamos rodeados de imagens por todos os lados e a todo momento. “Neste turbilhão de imagens, ver é bem mais do que crer. Não é apenas parte da vida cotidiana, é a vida cotidiana” (MIRZOEFF, 2000, apud FABRIS, 2007). Nesta trajetória, muitos foram os fotógrafos e movimentos que contribuíram para dissolver a fronteira entre grandes eventos e a vida comum. No campo do fotojornalismo, tivemos Erich Salomon, que visitava ambientes antes nunca fotografados, e registrava juristas, ministros e outras celebridades – da época – em situações banais como cochilando, ou conversando. Ou podemos citar Robert Frank, na jornada que resultou no livro The Americans, que percorreu os Estados Unidos fotografando cenas de rua, interiores de casas, lanchonetes, drive-ins, sempre com um olhar buscando esses momentos do dia a dia, rotineiros. A modernidade traz em si o gosto pelo homem comum e pela vida cotidiana. Nos anos 1980, a fotógrafa americana Nan Goldin publica seu trabalho mais famoso: The Ballad of Sexual Dependency. Uma espécie de crônica visual, de diário, sobre aquilo que ela chama de sua tribo: os amigos, amores e ela mesma. São imagens feitas sem combinações prévias, sem direção. Possuem uma estética de snapshot – fotos tiradas com câmeras compactas, muitas vezes com flash direto, espontâneas, sem tanto cuidado com luz ou enquadramento, mais preocupada com o momento, com a cena – e trazem tomadas de interiores de casas, carros, festas. O trabalho de Nan Goldin não era apenas mais uma série de fotografias da contracultura novaiorquina, permeada pelo uso de drogas, movimento punk ou violência. O ensaio mexeu com a crítica e o público, a ponto de provocar comoção nos espaços onde era apresentado. O que ele traz é um relato de muita intimidade de alguém que não apenas viu ou presenciou, mas que viveu cada uma daquelas situações. Que chorou, se divertiu, sofreu violência e

sentiu a perda. Muitos dos protagonistas das fotografias morreram por overdose ou AIDS, algumas dessas mortes registradas nas fotografias de Goldin. The Ballad of Sexual Dependency continuou sendo desenvolvido ao longo dos anos seguintes, com mais e mais fotografias sendo incorporadas. Foi apresentado na 29ª Bienal de São Paulo, em 2010, na forma de um slide show com 45 minutos de duração e cerca de 800 imagens coletadas entre 1979 e 2004. Se as fotografias de Nan Goldin trazem uma força, uma energia, um choque de algo que pode até causar sensações desagradáveis, mas que não nos dão a opção de passar por elas incólume, é porque possuem uma densidade de vida. Uma vida comum, cotidiana, mas vivida em toda sua força. Uma relação de fazer parte da história que está sendo contada, daquilo ser parte da sua carne, da sua pele – e não estamos nos referindo apenas aos momentos em que ela sofreu violência ou esteve diretamente incluída no fato registrado. Falando de seu processo criativo, ela diz que seu trabalho “é sobre tentar sentir o que a outra pessoa está sentindo. Há uma parede de vidro entre as pessoas e eu quero quebrá-la”. Mais adiante: “a necessidade emocional vem primeiro e depois vêm as fotos” (JAGUARIBE, 2006, p.128). O interesse do público no trabalho de Goldin está ligado à experiência vivida, uma história contada por quem a está vivendo e no momento em que está acontecendo, esta última uma característica da fotografia. Na 29ª Bienal de São Paulo, que reuniu 160 artistas, houve relatos de pessoas que disseram ir ao evento apenas para ver de perto a obra The Ballad of Sexual Dependency, de Nan Goldin (Cf. http://dobrasvisuais. wordpress.com/2011/02/07/tornar-visivel-o-que-nao-vemos/). No retrato de vida da autobiografia, o que está em pauta é uma busca pela significação da experiência pessoal. A condição do ser é ontologicamente solitária na medida em que ninguém pode nascer o nosso nascimento, existir a nossa existência ou morrer a nossa morte. (JAGUARIBE, 2006, p.115) Um enfoque que passa longe do sensacionalismo de outros relatos de intimidade muitas vezes apenas encenada para finalidades midiáticas - como os do universo paparazzi enfocando suas celebridades ou de produtos do tipo reality show (SIBÍLIA, 2008; JAGUARIBE, 2006). Outro trabalho que traz as características de um relato da própria vida cotidiana é o Caixa de Sapato, desenvolvido pelo coletivo fotográfico paulista Cia de Foto. A forma de atuação desse grupo tem colocado em discussão diversas questões ligadas ao fazer fotográfico. Uma delas está relacionada ao conceito de autoria na fotografia e aparece — também — na forma de uma assinatura coletiva. A Cia de Foto é formada por um núcleo composto por três fotógrafos e uma designer, além de outros três integrantes em funções administrativas e de apoio. Independentemente de quem esteja mais diretamente envolvido na produção de um trabalho, o único crédito é o do coletivo. Eles defendem que é uma maneira mais “honesta” de reconhecer um resultado que não seria possível

individualmente. Há um diálogo, uma interação entre os participantes do grupo, envolvendo discussão e crítica constantes, uma troca permanente sem a qual não seria possível se chegar ao resultado apresentado. Dessa postura deriva um primeiro diferencial do Caixa de Sapato em relação The Ballad of Sexual Dependency: no trabalho de Nan Goldin existia um universo de afetos e de relações fotografado por uma pessoa; no Caixa de Sapato esse universo é fotografado por um grupo. Isso reforça o imbricamento de vivências e sentimentos, um relato que envolve uma coletividade não apenas do lado dos fotografados, mas também dos produtores das imagens. O Caixa de Sapato já foi publicado na forma de vídeo e também pode ser comprado numa galeria de arte, em cópias impressas. Mas o seu ambiente principal é o Flickr (Cf. http://www.flickr.com/photos/ciadefoto), uma plataforma de gerenciamento e compartilhamento de imagens, muito popular entre fotógrafos profissionais e amadores, disponível na web. O Flickr disponibiliza uma série de ferramentas e recursos, tanto para o proprietário dos álbuns, aquele que coloca suas imagens lá, quanto para o usuário que está visitando o espaço. Aqui vale uma observação: ninguém é apenas visitante ou espectador nesse tipo de plataforma. Através de tais ferramentas, podemos comentar, criar exposições, ver detalhes da imagem, formar ligações entre fotos de autores diferentes. Possibilidades muito presentes na internet, que trazem de modo mais direto e facilitado a reorganização, a apropriação, a quebra da linearidade, a liberação do polo emissor. Nesse tipo de experiência, não somos passivos. Mesmo que não deixemos nenhum comentário, que não façamos nenhuma interferência mais direta nas imagens, nossa navegação, o simples fato de “abrirmos” uma fotografia e não outra, já deixa rastros, marcas, escritas. Se assistimos ao vídeo (Cf. www.youtube.com/ watch?v=_dYnKUyoyg8), nos deparamos com o tempo, com o sincronismo com a trilha sonora, com a sequência, somos conduzidos por uma narrativa pré-determinada. Não é o mesmo que acontece com o Flickr. Nele podemos ver da imagem mais recente até a mais antiga – por data de publicação –, mas também podemos seguir navegações aleatórias ou ligadas por tags em comum. Aqui o que nos interessa é destacar duas questões. A primeira é o fato de que construímos novos significados através da associação de mais de uma imagem. Há uma diferença entre observar imagens associadas entre si ou separadamente. Mesmo que elas não tenham ligação entre si, sem que percebamos, somos levados a conectar situações, pessoas e construímos histórias que, embora tenham um fundo biográfico, real, registro de existências, podem tomar traços ficcionais nesses novos enredos. A segunda é que podemos interferir na forma como outros irão fruir tal trabalho a partir de nossa participação. A observação do material do Caixa de Sapato publicado no Flickr, nos permite perceber que: não há uma regularidade de publicação de novas imagens – pode passar mais ou menos tempo de intervalo entre uma fotografia e outra –, mas o álbum está sendo abastecido constantemente; as fotografias não recebem nenhum tipo de legenda ou identificação sobre

as pessoas e situações retratadas, apenas uma numeração crescente. A primeira imagem foi postada em maio de 2008, mesmo que algumas tenham sido produzidas em anos anteriores a esse. Embora em muitas das fotografias não nos seja possível reconhecer as pessoas envolvidas, por conta de algum desfoque, de estarem em áreas escuras ou escondidas de alguma forma, muitos dos “personagens” são vistos em várias imagens e situações diferentes. A Cia de Foto é reconhecida no meio fotográfico por um tratamento de imagem apurado, com características bem marcadas. Neste trabalho, porém, não é o viés estético que dá amarração ao conjunto. O Caixa de Sapato é alinhavado pela abordagem temática: o cotidiano do universo expandido que forma o coletivo – não apenas os seus integrantes, mas a família, os amigos, o entorno. Os momentos retratados vão de um prosaico passeio de final de semana na vizinhança a reuniões e celebrações entre amigos, passando por relações sexuais ou retratos mais posados. Várias são as cenas em banheiros, cozinhas, corredores. Estão lá o andar, o dormir, o acordar, o comer, o tomar banho, o dançar, o brincar e até o urinar do mundo – ou, usando o termo de Nan Goldin, da tribo – da Cia de Foto. São os fazeres cotidianos, aqueles sobre os quais não se fala muito, momentos da intimidade. O título Caixa de Sapato é uma referência direta ao arquivo presente em quase toda família, geralmente numa gaveta ou caixa – de sapato ou não – embaixo da cama ou na prateleira mais alta do armário, onde se guardam fotos, desenhos, anotações e outras recordações. Um emaranhado de imagens, muitas vezes desconexas, sem identificação, mas que remontam à memória daquele grupo familiar e afetivo. São amontoados de fotos produzidas por muitas pessoas diferentes, presentes em cada uma daquelas celebrações, viagens, encontros. Não importam tanto os autores e muitas informações mais factuais se perdem ao longo do tempo, permanecendo os laços afetivos e as significações. Para Jaguaribe (2006, p. 112), “através de diários, cartas, fotografias, vídeos e souvenirs, sedimentamos as peças que compõem um enredo maior cujo final não podemos antever”. O trabalho da Cia traz uma experiência que passa pela própria externalização do ideário do coletivo fotográfico, onde as identidades individuais são diluídas em prol de um resultado plural, onde a afetividade é um importante ingrediente dessa aglutinação, em que a produção de conteúdo não se dá num espaço – geográfico e temporal – estanque. O coletivo vem quebrar algumas fronteiras do fazer fotográfico e essas questões estão presentes no Caixa de Sapato. Vida e trabalho estão juntos. Família, amizade e ambiente profissional se misturam. Permeados por objetivos em comum e laços afetivos. “O ponto claro de nossa pesquisa é a ausência de algo decisivo. É a formação de um espaço por uma duração e, o que queremos nesse trabalho, é confirmarmos uma construção de existência” (CIA DE FOTO, 2009). A obra Caixa de Sapato coloca em pauta diversos aspectos trazidos pela prática dos

coletivos fotográficos, entre elas as da autoria e da formação de redes. Existe, em sua essência, a presença de uma criação coletiva por parte dos integrantes do grupo. Um projeto que já parte do princípio de colaboração na sua concepção, mas que estimula um desdobrar desse fazer coletivo através de apropriações por outros artistas e fotógrafos. A Cia de Foto deixou aberto para que qualquer pessoa possa usar as imagens deste ensaio em outros trabalhos, num movimento que remete às construções simbólicas que são feitas por cada pessoa ao ver um álbum de família. Uma artista baseada em Paris, Elisa v. Randow produziu refotografias — fotografou algumas das imagens do Caixa de Sapato através da tela do computador, dando novos cortes, imprimindo novas texturas, causando ressignificações. Ações como essa, mesmo não sendo uma invenção recente, são práticas comuns tanto na arte contemporânea — onde se fala da diluição do autor —, quanto na cultura de convergência, que é fortemente influenciada pelas possibilidades de interação trazidas pelas novas tecnologias. Essas novas possibilidades, que tem na internet um de seus principais vetores, tem trazido uma série de transformações à sociedade. “Nesse movimento, transformam-se também os tipos de corpos que são produzidos no dia a dia, bem como as formas de ser e estar no mundo” (SIBÍLIA, 2008 p.15). Entendemos que novos arranjos produtivos no campo da fotografia têm surgido com maior intensidade na última década também influenciados por essas transformações (QUEIROGA, 2010). Os coletivos fotográficos contemporâneos são um exemplo disso. O Caixa de Sapato deve ser entendido como um laboratório, um ambiente onde se dá a experiência do fazer coletivo, permeado pelo afeto, em que o cotidiano é o principal ingrediente para a construção de significados, através de camadas de apropriações. Há aí uma produção de saber, que se dá em rede. Há uma escrita, que acontece não apenas pelos fotógrafos produtores das imagens, mas pelos que estão nelas, nos seus fazeres mais corriqueiros. O interesse que esse trabalho desperta no público não está na celebridade dos protagonistas — são pessoas comuns — nem no extraordinário dos acontecimentos — são eventos comuns. Está numa potência de vida, assim como no trabalho de Nan Goldin. Não é objetivo deste artigo analisar as duas obras do ponto de vista do documental ou da relação com a realidade. Embora tenham um caráter autobiográfico – não podemos nos distanciar dessa característica de estar falando da vida daqueles que produzem as imagens, e em toda abordagem autobiográfica esteja pressuposta a autenticidade, o reconhecimento de uma realidade vivida — o repertório de possíveis interpretações é mais loquaz que uma manifestação de documento. No Caixa de Sapato isso é ainda mais presente pois não há qualquer indicação de quem são as pessoas ou do que está se passando ali. Os significados são construídos apenas com o que a imagem nos oferece, ou seja, com toda uma infinidade de possibilidades. O Flickr permite que os visitantes registrem comentários. Além disso, podemos ver a grande quantidade de acessos de cada uma das fotos. São muitos os

comentários que tentam dar conta de uma contextualização ou interpretação, nos deixando perceber um pouco desses possíveis caminhos que cada imagem toma, seja individualmente ou no conjunto. O que nos interessa ao observar a dinâmica de funcionamento de tal plataforma de compartilhamento de imagens é perceber a importância das inscrições aparentemente tímidas — irrelevantes aos olhos de alguns — feitas pelos usuários. Um usuário que marca uma foto como “favorita”, dá uma outra visibilidade a essa imagem, a faz circular por outros meios, junto a seus conhecidos, expande seu âmbito de atuação, assim como a artista que se apropria de uma foto em suas obras. As aberturas do Flickr para nossa participação formam uma escrita através do nosso comportamento. Nossas pequenas atuações cotidianas inserem novas informações. As individualidades e seus atos corriqueiros são achatados numa sociedade disciplinar e consumista. Porém essas mesmas individualidades são potências de escrita e, até mesmo, de consumo. Aparentando passividade, consciente ou inconscientemente, as pessoas se apropriam das práticas cotidianas e inscrevem novos pontos de fuga. Fotógrafos desenvolvem trabalhos voltados para seus próprios cotidianos coletivos e permitem, com isso, erupções de vitalidade. A fotografia renova suas contribuições no refletir sobre o homem e sobre a sociedade.

Referências CERTEAU, Michael de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 14. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. CIA DE FOTO. Processo de criação. In: Olhavê. Disponível em http://www.olhave.com.br/blog/?p=3689. Acessado em 10 de fevereiro de 2011. FABRIS, Annateresa. Discutindo a imagem fotográfica. In: Fotografia Contemporânea (site). 2007. Disponível em: http://www.fotografiacontemporanea.com.br/artigo.php?id=17. Acessado em 10 de fevereiro de 2011. FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 2002. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir nascimento da prisão. 14. ed. -. Petropolis (RJ) Vozes 1996. ______. Microfísica do poder. 17. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2002. JAGUARIBE, Beatriz. Realismo sujo e experiência autobiográfica. In: FATORELLI, Antônio; BRUNO, Fernanda (orgs). Limiares da imagem: tecnologia e estética na cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006. QUEIROGA, Eduardo. Fotografia: da ausência do sujeito ao coletivo contemporâneo. Anais do XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. São Paulo: Intercom, 2010 Disponível em: http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2010/resumos/R5-1844-1.pdf SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. São Paulo: Nova Fronteira, 2008.

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