Orfeu ou o canto como (im)possibilidade. Morte, imagem e fascinação em M. Blanchot e Dora Ferreira da Silva
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In: A. M. Teixeiro, D. M. Hennrich, G. Aguiar, Vicente e Dora Ferreira da Silva: uma vocação poético-‐filosófica, Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2015, pp. 67-‐81.
Orfeu ou o canto como (im)possibilidade. Morte, imagem e fascinação em Maurice Blanchot e Dora Ferreira da Silva Helena Costa de Carvalho CLEPUL-‐FLUL Resumo:
O presente texto tem como escopo aclarar as intersecções que podemos surpreender entre a poesia de Dora Ferreira da Silva e a concepção de literatura do crítico e escritor francês Maurice Blanchot a partir do mito, em ambos seminal, de Orfeu e das noções de morte, imagem e fascinação às quais a escrita poética, enquanto travessia órfica, surge associada. Guiados pelo archote do vate mítico, veremos de que a forma a poesia doriana manifesta e actualiza alguns dos principais pressupostos do pensamento blanchotiano, tais como a relação entre escrita e morte, a sua noção de imagem poética e a exaltação da fascinação como o modo de olhar próprio do poeta e do poema. Palavras-‐chave: Dora Ferreira da Silva, Blanchot, Poesia, Orfeu.
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Pórtico O presente texto pretende aclarar as intersecções que podemos surpreender entre a poesia de Dora Ferreira da Silva e a concepção de literatura do crítico e escritor francês Maurice Blanchot quando consideradas à luz do mito, em ambos seminal, de Orfeu e das noções blanchotianas de morte, imagem e fascinação às quais a escrita poética, quando pensada como travessia órfica, surge associada. Antes de adentrarmos esta tríade conceptual, esquissamos brevemente um pórtico que inaugure esta viagem na proximidade possível dos dois autores ao apontar as coordenadas que lhes são comuns. Destacamos, primeiramente, a relação capital e fundadora que, em ambos, podemos surpreender entre literatura e alteridade, texto poético e Outro. Em Dora, como em Blanchot, a palavra poética surge como um locus privilegiado de manifestação de um Outro absoluto, de um mistério (para usar o conceito de Mallarmé, um autor de eleição de ambos), que não se manifesta senão como flash ou fulguração, sendo a sua aparição possível já o seu desaparecimento, o seu rasto ou vestígio. O labor poético é, pois, mais exercício de sinalização desse fundo nocturno e secreto que reverbera nas coisas, na linguagem e, de um modo muito particular, na poesia do que estratégia urdida de desvelamento ou captação de tal terrível segredo na orla luminosa do dia. Em segundo lugar, ressaltamos que a relação entre os dois autores, não sendo imediata, no sentido em que não foram interlocutores directos, não deixa de ser significativa. Na verdade, para além de Dora conhecer os textos de Blanchot, a relação entre ambos é auspiciosamente mediada pela família literária na qual se filiam, da qual fazem parte Hölderlin, o já referido Mallarmé e Rilke, entre outros, autores que estarão aqui presentes como a terceira voz que sempre tece e estremece um diálogo. Ademais, não é difícil reconhecer uma consonância no conteúdo, no tom e no timbre dos seus escritos, atestada, por exemplo, pelo mesmo gesto de exaltação do desafio de Orfeu como a metáfora justa do desafio poético. Por último, para além desta comunhão mais teórica ou intelectual, é interessante verificar que ambos os autores, movidos apenas pela convocação total da escrita, foram totalmente avessos à mundanidade literária, ousando aplicar na 2
vida a sua concepção de escritor, ou de poeta, como aquele que, à beira do abismo, sem qualquer rede de segurança tecida de influências, aclamação pública ou labor publicitário, apenas pode responder a tal convocação. 1. A poesia ou a escrita no limite: poema e morte Avocando, assim, Orfeu e o seu canto (im)possível como mote e, ao mesmo tempo, como guia, começamos por indagar a proximidade da tematização da morte nos dois autores, noção que, em ambos, surge associada à condição da escrita e do próprio escritor. Num artigo capital da obra La Part du Feu (1949), intitulado “La littérature et le droit à la mort”, Blanchot reflectiu sobre o fenómeno da linguagem e da escrita (literárias) na sua relação com as noções de mundo e de morte. Nesse sentido, dá-‐nos a pensar a literatura como o domínio em que a dupla vocação da linguagem, diurna e nocturna, e a sua condição paradoxal mais se agudizam. Assim, se, por um lado, esta exerce um trabalho de morte das coisas concretas, por outro, procura dar conta do rasto fantasmático que delas permanece, devolvendo tal rasto como uma nova presença e criando, em função desse gesto, uma ambiguidade na linguagem que a liberta dos nexos causais do mundo quotidiano. A literatura surgirá, assim, como o domínio que leva a sério o trabalho de morte da palavra e, simultaneamente, a impossibilidade de captura de algo que, sendo radicalmente Outro e misterioso, não se subjuga à luz perscrutadora das palavras, assumindo-‐se a escrita literária como eterna errância, re-‐escrita e re-‐petição (ressassement éternel). É, pois, aqui que reside o carácter paradoxal e trágico da literatura e, por conseguinte, a possibilidade de a pensarmos à luz do mito de Orfeu: querendo “afirmar a noite”, o murmúrio do que está longe, a literatura depara-‐se com “a noite como a impossibilidade da noite”; ao “negar o dia”, o mundo claro, público, em que as palavras são as palavras de todos, “a literatura reconstrói o dia como fatalidade” (BLANCHOT, 1949, p. 318). Habitando uma zona de fissura – entre o dia e a noite, o mundo e o seu além –, a literatura é o reino da persistência obsessiva 3
das imagens para além das coisas, da eternidade e da repetição, onde a própria morte é uma tarefa sem fim: Ela [a literatura] não está para além do mundo, mas ela já não é o mundo: ela é a presença das coisas antes que o mundo seja, a sua perseverança depois que o mundo desapareceu, a teimosia do que subsiste quando tudo se apaga e o espanto do que aparece quando aí não há nada. (BLANCHOT, 1949, p. 317.) Na sua incontornável obra L’Espace Littéraire (1955), Blanchot irá sustentar, neste sentido, que, ao jogar-‐se entre o dia e a noite, a literatura representa o mesmo esforço trágico de Orfeu para trazer à luz aquilo que, sendo do domínio da noite e do segredo (como a Eurídice morta), encontra, na sua vinda à luz, simultaneamente a condição da sua manifestação e a fatalidade do seu desaparecimento1. Assim, associa as suas duas dimensões – diurna e nocturna – à dupla exigência a que o poeta mítico está obrigado a responder para resgatar a amada do Hades, fazendo notar que a noite de que aqui se trata não é a noite do sono, que é ainda uma projecção do dia, mas uma segunda noite (l’autre nuit), mais exigente porque anterior, que é simultaneamente a possibilidade do canto e o risco do canto como possibilidade. Noite feérica da morte como impossibilidade de morrer, do sonho para lá do sono, da ausência de verdade, sentido ou garantia, da repetição contínua. Trata-‐se, podemos dizer, de uma noite pré-‐conceptual e pré-‐ ontológica (cf. SAN PAYO, 1998, p. 141), que vem antes e para além dos conceitos, das antinomias lógicas e da progressão dialéctica, sendo simultaneamente a sua condição de possibilidade e o seu limite.
O autor liga, pois, a literatura sobretudo à dimensão nocturna da linguagem,
concebendo aquilo a que chama o espaço literário, não como o espaço das essências, mas como o espaço de uma errância na proximidade possível dessa segunda noite testemunhada por Orfeu à qual o autor irá associar a noção de fora, conceito que recupera de Foucault e que será crucial no seu pensamento2. Trata-‐se, 1 Cf. os ensaios “Le dehors, la nuit” e “Le regard d’Orphée”.
2 Não obstante a extrema complexidade deste conceito, podemos entender o fora blanchotiano como uma exterioridade que se abre na linguagem e se ilimita a partir do seu próprio interior, arrastando-‐a para fora de si e deslocando, estremecendo ou fazendo deslizar continuamente o seu sentido e a significação que procura a cada momento instituir. De acordo com as palavras do próprio autor, trata-‐se da “distância infinita que faz com que estar na linguagem seja já estar no seu fora” (BLANCHOT, 1973, p. 173). Diz-‐nos, a propósito, Leslie Hill, um dos maiores estudiosos do
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assim, de um espaço onde reina o não-‐poder e o não-‐saber, e no qual o escritor está sempre à beira do abismo, condenado à rasura infinita e ao seu próprio desaparecimento. Constituindo-‐se em torno desse fora, o que se manifesta na literatura é aquilo a que Blanchot chamará o impessoal, o anónimo e, a partir dos anos 60, com a intenção de radicalizar o seu carácter desconhecido, o neutro, que, interrompendo a cada momento a escrita e a obra, as impede de coincidir consigo mesmas e as condena ao desastre. O fragmento e a poesia tornam-‐se, neste contexto, as formas possíveis de uma escrita que assume e acolhe em si essa diferença que nela assoma, esse resíduo irredutível e disruptivo que a atravessa desde sempre como o seu Outro. Encontramos, em Dora, a mesma relação fundamental entre poesia e alteridade. Na senda de Rilke e da sua procura do Deus terrível, a poeta lança-‐nos, ao longo da sua obra, na busca órfica de um Outro, sempre presente/ausente num jogo de re-‐velação, que se pressente entre o mundo e o seu para lá. Revestindo-‐se, como em Blanchot, de um carácter misterioso, impessoal e secreto, o Outro de Dora assume a figura do Sagrado, um sagrado que se ancora no plano imanente, na natureza e no telúrico, podendo ser tanto o cosmos infinito, como uma figura humana – o pai, um amigo, um amante – ou um lugar ou elemento da natureza – os lugares da infância e dos mitos, o pássaro, a montanha ou o rio. É, pois, neste sentido que críticos como José Paulo Paes vêem na poesia de Dora um caso de hierofania, ressalvando, no entanto, este autor algo que nos permite aumentar a proximidade entre Dora e Blanchot: No domínio da poesia, esta presença [do sagrado] não deve ser entendida no sentido restrito de manifestação direta do divino, e sim no sentido mais amplo de ânsia de transcendência do Eu rumo ao Outro. (PAES, 1999, p. 410.) Para além disso, e ainda que adquira um carácter imanente ao projectar-‐se ou presentificar-‐se nos entes, o Outro ou o Sagrado de Dora surge, em si mesmo, como um incerto longínquo onde ouvimos ressoar a segunda noite que Blanchot pensamento blanchotiano: “A linguagem e o sentido nunca são proporcionais um ao outro; tal como há sempre demasiadas palavras para muito poucos sentidos, há igualmente demasiados sentidos para muito poucas palavras” (HILL, 1997, p. 132).
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antevê para lá da morte e na qual Orfeu faz a sua travessia impossível. Diz-‐nos, neste sentido, Dora no poema “Alguém” (Poemas da Estrangeira): O incerto longe é a minha vocação. O longe do longe onde talvez estás sempre em despedida. do invólucro que não te retém. (SILVA, 1999, p. 300.) A preponderância dos mitemas órficos na poesia doriana decorre precisamente desta busca da alteridade que perpassa toda a sua poesia. Não admitindo um acesso directo, o Outro ou o Sagrado exige a mediação da palavra poética, sendo neste sentido que a poesia surge privilegiadamente associada a Orfeu e à sua catábase iniciática enquanto meio de ligação ao sagrado, canto propiciatório ou oração que ultrapassa o conceptual gerando uma forma de conhecimento superior. Por seu turno, o poeta surge, à semelhança de Orfeu, como o portador de uma sabedoria ancestral que lhe é revelada através da sua poesia, ou do seu canto, como epifania.
É neste contexto que, tal como Rilke, Dora elege Orfeu como o vate iniciático
que a conduz nos grandes mistérios. Assim, vemos que Dora não só canta Orfeu como aquele que ousa adentrar a noite – a segunda noite –, acercando-‐se dos segredos da vida e da morte, como se identifica com ele no seu próprio labor poético –“Canto canções/ para os que morreram (…) sob as folhas vivas/ sustento na mão a lira.” (SILVA, 1999, p. 93) –, simulando o mesmo movimento catabático através da sua poesia, o que nos permitirá, por um lado, aproximá-‐la tematicamente de Blanchot e, por outro, ver nela uma poesia que reflecte em si mesma a concepção blachotiana de literatura que apresentámos. A morte torna-‐se, desta forma, um tema central na sua demanda poética, identificando-‐se, como propõe Vilém Flusser, com “as regiões distantes do espírito primordial” (FLUSSER, 1999, p. 419), que são a origem e o fim da poesia. Lembremos, neste sentido, a primeira estrofe do famoso poema de Andanças, intitulado precisamente “Nascimento do Poema”: É preciso que venha de longe do vento mais antigo ou da morte 6
é preciso que venha impreciso inesperado como a rosa ou como o riso o poema inecessário. (SILVA, 1999, p. 39.) Defende Flusser, e nós com ele, que “o termo ‘ou’ não é aqui indicativo de alternativa, mas de identidade, e a morte é vivenciada como volta ao espírito primeiro” (FLUSSER, 1999, p. 419). Assim, descobrimos em Dora a mesma exigência blanchotiana de ousar escrever na e pela morte, morte que é, a um tempo, a que nos assombra a vida e a escrita, tornando-‐as uma e a mesma coisa. É, pois, preciso acolher essa alteridade primordial e antiga que vem de longe, representando a catábase de Orfeu o movimento arquetípico daqueles que, acolhendo-‐a, ousam viver/escrever sempre à beira do abismo. É neste sentido que, no poema “Órfica” – cuja importância no contexto da sua obra é atestada pelo facto de merecer uma tríplice aparição, em Uma Via de Ver as Coisas (1973), Poemas da Estrangeira (1995) e Hídrias (2004) –, Dora, assumindo a voz de Orfeu, faz do poema o próprio Hades e da palavra que o anima o pharmakon que opera a construção do “corpo” poemático ao mesmo tempo que o coloca, bem como ao poeta, perante a iminência da sua morte. Não coincidindo com o rumor mistérico que almeja nem consigo mesma, a palavra poética revela-‐se uma eterna “véspera” (noção na qual também ouvimos ecoar Blanchot), algo que antecipa, que preludia, que tenta o eu lírico a entrar numa zona mística sem nunca, no entanto, com ela coincidir: Não me destruas Poema enquanto ergo a estrutura do teu corpo e as lápides do mundo morto. […] Não caias sobre mim, que te ergo, ferindo cordas duras, pedindo o não-‐perdido do que se foi. E tento conformar-‐te à forma do buscado. Não me tentes Palavra além do que serás num horizonte de vésperas. (SILVA, 1999, pp. 306-‐7.) Esta noção de poesia como experiência da morte, ou seja, do breve acesso ao além-‐mundo, ao Sagrado, surge em Dora como a possibilidade do conhecimento humano dos grandes mistérios, bem como do autoconhecimento. A poeta mostra-‐ 7
nos, neste sentido, que a catábase de Orfeu (a sua morte momentânea) e a perda inexorável de Eurídice (a segunda morte da amada) são as condições negativas da experiência iniciática da coincidência entre vida e morte – lembremos o último verso de “Canto Órfico”: “Vida e morte irmãs gémeas se tornaram” (SILVA, 1999, p. 308) – e, assim, da revelação do destino final de todos os homens, conhecimento que ele poderá agora transmitir através da sua poesia. 2. A interrupção do olhar ou um modo acústico de ver: a imagem, paixão da fascinação Dada a continuidade que as noções de Outro e de morte nos permitem surpreender entre Blanchot e Dora, propomo-‐nos agora continuar esta arriscada travessia seguindo pelas noções blanchotianas de imagem e de fascinação. Segundo Blanchot, a literatura, ao trazer a morte de forma subtil, negando-‐ se constantemente a si mesma, é o domínio que coloca em questão a natureza segunda da linguagem, a vinda das palavras depois das coisas, surgindo como o reino da imagem. Este tema surge cedo nos seus artigos, sendo tratado de forma mais pormenorizada em L’Espace Littéraire, no ensaio “As duas versões do imaginário”, no qual o autor nos apresenta duas possibilidades da imagem. A primeira, mais comum e própria da palavra quotidiana, pressupõe que a imagem é posterior à coisa, consistindo na possibilidade ideal de a apreender, enquanto que, numa segunda versão, a imagem remete, já não para a coisa ausente, mas para a sua ausência como uma nova presença, para o duplo neutro do objecto cuja relação ao mundo se dissipou (BLANCHOT, 1955, p. 353). No contexto da literatura, é sobretudo esta segunda versão que interessa a Blanchot. Para esclarecer o que nela se joga, o autor irá relacionar a noção de imagem com a de cadáver e com a fascinação que ele exerce. Da mesma forma que o cadáver não corresponde já ao vivente, ainda que tenha a sua forma, sendo “mais belo, mais imponente, já monumental” (BLANCHOT, 1955, p. 346), algo que, não sendo já deste mundo e estando para além de qualquer valor ou sentido, fascina, também a imagem não nos garante a compreensão da coisa, não é o seu sentido e 8
muito menos a sua significação, mantendo-‐se antes na imobilidade de uma semelhança espectral que, como no cadáver, já não tem nada a que se assemelhar. Nesta medida, ainda que se jogue entre as duas versões, a especificidade do texto literário assenta sobretudo na segunda, a que desperta a fascinação, na qual a imagem não falaria mais do mundo, nem teria já nenhum valor ou significado: “lá onde a imagem é o movimento da passividade, não tem nenhum valor, nem significativo, nem afectivo, é a paixão da indiferença” (BLANCHOT, 1955, p. 354). É, pois, dentro desta possibilidade da imagem que é possível a afirmação irreal (não positiva) da narrativa e do poema. Na obra L’Entretien Infini (1969), mais precisamente no texto “Vaste comme la nuit” – título inspirado num verso de Baudelaire –, Blanchot, aludindo à noção de imagem poética que Bachelard propõe em La Poétique de l’Espace, defende que o que se torna manifesto num poema é uma ausência profunda da imagem pensada num sentido perceptual e, nessa ausência, “a própria presença do espaço da escrita (designada por vezes imaginário), a evidência da sua realidade na afirmação irreal (não positiva) do poema”. Assim, o que o poema nos propõe não é um conjunto de imagens do mundo, mas de imagens de linguagem que manifestam antes “a presença desse contra-‐mundo que é talvez o imaginário”. Nesta acepção, a imagem já não é só um desdobramento entre signo e sentido, mas sobretudo uma “figura do infigurável, forma do informe”, manifestação do fora feita reverberação (retentissement) (BLANCHOT, 1969, pp. 472-‐476). Por conseguinte, o autor propõe uma mudança do paradigma da visão, característico da fenomenologia, para o da fascinação, a “paixão da imagem”, que exige um contacto à distância (BLANCHOT, 1955, p. 29). Assim, contra um olhar de vocação medusiana, o escritor deverá ensaiar um modo de ver acústico, dócil e indirecto, como o exigido a Orfeu, dispondo a linguagem sob a fascinação e demorando-‐se nela, nesse olhar infinito que encontra, na distância que o torna possível, o poder que o neutraliza (cf. BLANCHOT, 1955, pp. 29, 31). Neste sentido, é no poema que a imagem atinge a sua força plena ao mesmo tempo que corre o maior risco, perdendo qualquer fundamento que a caucione e arriscando-‐se ela mesma a introduzir-‐nos “naquele ponto em que do ser nada se pode dizer, nada se 9
pode fazer, onde tudo recomeça sem cessar e onde morrer mesmo é uma tarefa sem fim.” (BLANCHOT, 1955, p. 206). Pensamos encontrar na poesia da autora de Hídrias uma ilustração vívida do pressuposto blanchotiano de que a palavra poética se liga essencialmente a uma segunda possibilidade da imagem, bem como do olhar próprio da fascinação. A vocação demiúrgica que vários críticos lhe reconhecem, ao considerarem que, pela sua escrita, a poeta se faz parteira de novos mundos, permitir-‐nos-‐á encontrar nela a palavra-‐imagem, que não remete já para os entes, como o seu duplo, mas para uma presença outra, transcendente, incessante e excessiva que os anima e assombra. Tal gesto é visível logo em Andanças pela profusão de várias imagens, como as “águas taciturnas”, as “mansas colinas” ou o “pássaro marinho”, que só no além-‐ mundo poderiam ter algo a que se assemelhar. O poema “Elementária” é talvez o mais flagrante pelo seu tom caótico e pelo seu mundo de criaturas impossíveis e fantásticas (fantasma do ermo, cavaleiro do espaço, deusa insone), imagens difusas que pairam na tal segunda noite que se abre na e pela palavra literária. Euryalo Cannabrava, num artigo que escreve para a Colóquio Letras, ajuda-‐nos a confirmar esta disposição da escrita de Dora para fazer da palavra poética imagem, no sentido blanchotiano, ao identificar nela, a propósito de “Margens”, a última parte de Andanças, a sua técnica de “pôr em parênteses o ‘sentido’ directo e imediato das palavras para explorar a sua imagem de indeterminação no mundo do discurso poético” (CANNABRAVA, 1972, p. 13). Por conseguinte, podemos dizer que a fascinação é o olhar próprio de Dora quando, na sua poesia, pássaros, árvores, flores e montanhas se tornam imagens dos seus mundos poéticos e do além-‐mundo ou Sagrado que neles se re-‐vela. A subjectividade poética, que em Dora surge amiúde associada ao coração, está, assim, associada a um olhar sensível e infinito, a um tempo contemplativo e místico, que vê, na concretude solar da natureza e nas coisas prosaicas do mundo, vestígios de um além nocturno e metafísico. Ouçamos, neste sentido, dois poemas, o primeiro do livro Talhamar (1982) e o segundo de Poemas da Estrangeira (1995), nos quais as imagens construídas, parecendo remeter para momentos, 10
espaços ou elementos familiares e tangíveis, acabam por revelar-‐se, à guisa de Blanchot, figuras do infigurável, aparição fugaz do assombro que se esconde na tessitura do quotidiano, feridas abertas no mundo: Mulher e pássaro Voltamos ao jardim ao banco lavado pela chuva. Pedimos o verde ao verde a flor à flor sem quebrar-‐lhe a haste. Bastaria a manhã. […] Mas se nada pedimos como quem dorme seguindo a linha natural do corpo respiramos o puro abandono: um pássaro alveja o azul (sem par) ultrapassa o muro do possível e assim damos um ao outro a súbita presença do Céu. (SILVA, 1999, p. 263.) Sotão I Aqui – calçada de pássaros – vêem-‐se coisas que poderiam não pousar nos olhos. Sem perturbá-‐las caminha-‐se na mesma direção e passada a surpresa de termos nascido nós nelas e elas em nós vê-‐se que esta simples comunhão muda o sentido dos dias. O ensimesmar-‐se com o imprevisto: estranha companhia. (SILVA, 1999, p. 281.) Evocamos, neste ponto, as palavras de Constança Marcondes César quando, concordando com a leitura de José Paulo Paes, nos diz que, em Dora, tal como em Rilke, o visível e o invisível são um “continuum sem hiatos”, “verso e reverso de 11
uma só realidade”, sendo o modo de olhar próprio do poeta aquele que vê “o invisível, no visível; a eternidade, no tempo; a unidade entre a vida e a morte” (CÉSAR, 1999, pp. 475-‐6), modo de ver que, diríamos nós, não pode ser outro senão o da fascinação. É, pois, este olhar místico e fascinado de Dora, bem como a sua consciência do poema como imagem, que nos permite ver nela, como propõe Gerardo Mello Mourão, uma poesia transmutada em mitologema, algo que, ainda que nascendo do sopro criador do poeta, vive para lá dele, da história e do mundo, retornando àquele território auroral do mito, onde vida e morte se tornam gémeas, que testemunhou já o seu nascimento: E o Poema vive para sempre, para lá da história, no regaço do mito, no território numinoso da aurora dos tempos e dos seres, quando os seres vivos saúdam os mortos e os mortos saúdam os vivos, e a vida e a morte se cantam no mesmo tom na viola d’amore do poeta. (MOURÃO, 1999, p. 27.) Considerações finais Ao longo do presente texto, pensamos ter descortinado linhas de contacto entre os dois autores que nos permitem confirmar a fecundidade de uma investigação que os coloque em diálogo. Enlevados pelo canto de Orfeu, descobrimos, em ambos, a busca e, ao mesmo tempo, a exigência de um Outro que ecoa no espaço de coincidência entre a vida e a morte e que só a palavra poética poderá acolher e manifestar, fazendo-‐se imagem e exercitando um modo de olhar que é o da fascinação. Assim, podemos dizer que, na radicalidade das suas vozes, Blanchot e Dora desenham o mesmo gesto de descentramento do ser e, por conseguinte, de superação da ontologia tradicional. Ainda que seja problemático apontar em Dora exactamente a mesma pulsão anti-‐ontológica ou meta-‐ontológica que Blanchot, a partir do neutro, evidencia, é certo que a poeta projecta a sua poesia pelo menos para fora dos limites da ontologia vigente. Nelly Novaes Coelho ajuda-‐nos a confirmar isto mesmo ao dizer, no seu Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras, que a “Sua poesia é irmã daquelas que, mesmo por diferentes caminhos, se 12
empenharam (e empenham) em descobrir uma nova ontologia ou nova teoria do ser, a partir de uma concepção de mundo, já não transcendente […], mas imanente […]” (COELHO, 2002, p. 165).
Deste modo, e ainda que a distância que medeia os dois autores possa
nalguns momentos alongar-‐se, desvendámos nós bastantes para os identificarmos como membros de uma mesma constelação de escritores, aqueles que, assombrados pela força ctónica que assoma no texto poético e perante a exigência absoluta do Outro, não se filiam em nenhum movimento teórico ou literário, nem concebem a sua escrita num dos lados da tradicional distinção entre crítico e poético. Em Blanchot, pela força disseminadora do neutro, desconstroem-‐se as fronteiras entre géneros literários, bem como entre filosofia e literatura, postura com a qual não é difícil identificar Dora Ferreira da Silva, quer pela dificuldade em catalogar a sua poesia e inseri-‐la num determinado movimento literário, quer por encontrarmos nela uma forma de sentir que é já uma forma de pensar, e vice-‐versa. É, pois, através desta razão poética, para utilizarmos a feliz expressão de Maria Zambrano, que a autora procura descobrir, no mundo visível e claro, lampejos de um sagrado magnífico e secreto.
Uma ideia, ao mesmo tempo inaugural e derradeira, parece ecoar
infinitamente no encontro destas duas vozes: que o desafio de escrever, à semelhança do de Orfeu, exige não menos que uma travessia da morte, o demorar-‐ se numa zona de fenda ou de fissura, de disrupção do mundo, na qual as palavras e os olhos respiram à beira do abismo, cativos da fascinação, confiados ao risco e ao mesmo tempo à esperança de que possível e impossível, vida e morte, telúrico e ctónico, sejam, afinal, duas faces de um. 13
Referências bibliográficas: BLANCHOT, Maurice, “La littérature et le droit à la mort”, in: La Part du Feu, Paris: Éditions Gallimard, 1949, pp. 293-‐331. ____________, L’Espace Littéraire, Paris: Gallimard, 1955. ____________, L’Entretien Infini, Paris: Gallimard, 1969. ____________, Le Pas Au-‐Delá, Paris: Gallimard, 1973. BONAFIM, Alexandre, “A graça poética do sagrado: a poesia hierofânica de Dora Ferreira da Silva”, Agulha Revista de Cultura [online], n.º 55, Jan./Fev. 2007. Disponível em: http://www.revista.agulha.nom.br/ag55silva.htm (consultado em 30/03/2014). CANNABRAVA, Euryalo, “O projecto criador em Dora Ferreira da Silva”, Colóquio – Letras, nº 9, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Set. 1972. CÉSAR, Constança Marcondes, “O poetar pensante de Dora Ferreira da Silva”, in: Dora Ferreira da Silva, Poesia Reunida, Rio de Janeiro: Topbooks Editora, 1999, pp. 475-‐81. COELHO, Nelly Novaes, Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras: 1711-‐2001, São Paulo: Escrituras Editora, 2002. FLUSSER, Vilém, “Nascimento do Poema”, in: Dora Ferreira da Silva, Poesia Reunida, op. cit., pp. 416-‐420. HILL, Leslie, Blanchot: Extreme Contemporary, Warwick Studies in European Philosophy, New York/London: Routledge, 1997. MOURÃO, Gerardo Mello, “Poesia, Poeta, Poema: Introdução a Dora Ferreira da Silva”, in: Dora Ferreira da Silva, Poesia Reunida, op. cit., pp. 25-‐32. PAES, José Paulo, “A presença do sagrado, numa obra sensível e plena”, in: Dora Ferreira da Silva, Poesia Reunida, op. cit., pp. 410-‐413.
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SAN PAYO, Patrícia, Escritura e Leitura em Maurice Blanchot (tese de doutoramento), Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1998. SILVA, Dora Ferreira da, Poesia Reunida, Rio de Janeiro: Topbooks Editora, 1999.
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