Os 2048 modos

September 18, 2017 | Autor: Paulo Pereira | Categoria: Music Theory, Popular Music, Música
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INVESTIGAÇÃO

OS 2048 MODOS POR PAULO PEREIRA INTRODUÇÃO Quando nos deparamos com a música de raiz de qualquer país, a característica essencial que a separa da música moderna é a sua riqueza modal. Na maioria das vezes, a música moderna utiliza apenas dois modos, ao passo que na música identitária de cada país e cada região são sempre utilizados mais de 5 ou 6 modos, e estes diferem de região para região, desde as pentatónicas chinesas, às hexatónicas vietnamitas, passando pelas ragas indianas (mais de 50 modos), terminando nas heptatónicas da Europa oriental (com intervalos de tom e meio) e ocidental (com intervalos que raramente ultrapassam um tom); os nossos modos vêm indiretamente dos modos gregos, via teóricos medievais que os interpretaram mal: a lógica musical grega era descendente, em sintonia com a “música” da língua falada, enquanto que os gregorianos aplicaram uma lógica ascendente, dirigida a Deus. Os sete modos gregos viram-se assim transformados em 4 modos (mas isso é outra história). Regra geral, um modo é definido pelo número de intervalos que está contido numa oitava e pela organização e dimensão desses intervalos. Assim, temos modos de 5, 6 ou 7 intervalos, e a cada grupo modal assim definido correspondem modos singulares, cada um com uma combinação única de intervalos. Na totalidade, se descartarmos intervalos inferiores a meio tom nesta sistematização modal, e considerarmos os modos de 1 a 12 intervalos, podemos contar 2048 modos. Os modos são meios privilegiados de canalizar emoções, e usarmos apenas meia dúzia de modos é tentar pintar uma obra de arte a preto e branco. E estamos a perder exatamente cerca de 211 cores emocionais. Se considerarmos que no conjunto da Europa (ocidental e de leste) usamos aproximadamente uns 50 modos diferentes, então quer dizer que ainda nos resta explorar cerca de 98% dos modos existentes. Mas como lá chegamos?

TEORIA DOS MODOS PARTE I

TETRACÓRDIOS E ESCRITA MUSICAL NUMÉRICA Para chegarmos lá, temos de voltar aos gregos. Foi no berço da democracia que pela primeira vez se sistematizaram modos. Para os gregos, os modos (neste caso apenas do grupo de 7 intervalos) eram divididos em tetracórdios, cada um com 4 notas e 3 intervalos. Os modos perfeitos eram aqueles em que os dois tetracórdios eram exatamente iguais, intervalados por um tom. Consideramos assim que dos 7 modos gregos, 3 eram perfeitos, como exemplifica a figura seguinte.

Modo de dó, um dos modos perfeitos gregos, já que os dois tetracórdios têm a mesma estrutura: 221.

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Para nos ajudar, utilizaremos a tradução matemática dos modos, onde o intervalo de meiotom = 1, um tom = 2, tom-e-meio = 3, e assim sucessivamente. Cada unidade corresponde a um meio-tom, e nesta sistematização, esse é o intervalo mínimo que iremos considerar. Nesta notação, separando os tetracórdios com hífens, teremos 221-2-221, ou seja, o 1 (a que corresponde o meio tom) está sempre na terceira posição de cada um dos dois tetracórdios. A soma de todos os intervalos de um modo é sempre 12, tendo como casos extremos o modo de um intervalo (oitava) que é 12 e a escala cromática de doze intervalos (1+1+1+1+1+1+1+1+1+1+1+1). A divisão em tetracórdios é muito útil para a sistematização e classificação dos modos, já que corresponde ao segundo intervalo harmónico natural, a quinta; o primeiro intervalo harmónico, a oitava limita a extensão natural de cada modo. A utilização destes tetracórdios é também comum em instrumentos harmónicos como a fraita, com a obrigatoriedade de ter modos perfeitos nas três configurações possíveis, em modo de dó, ré ou mi, já que o harmónico está sempre a uma 5ª perfeita da nota base, o que obriga o segundo tetracórdio a ser igual ao primeiro. A fraita é um instrumento de modos perfeitos, como se pode observar na figura seguinte.

Estes modos perfeitos fazem parte de um grupo mais vasto de modos simétricos no qual se incluem a maioria dos modos utilizados na Europa, e provavelmente no resto do mundo. A notação 5-2-5 assinala esse grupo de modos que corresponde aos modos com tetracórdios separados por um tom (2) e com uma extensão de uma 4ª perfeita (5); este grupo, como tem os modos mais utilizados em todo o mundo, pintamos de verde para assinalar a sua audibilidade consensual.

AS ESCALAS OU RODAS MODAIS Se considerarmos agora a armação de clave, podemos observar que para a escala diatónica com a armação sem alterações (notas brancas do piano) podemos obter 7 modos diferentes, um a começar em cada nota (bordão). A representação desta escala como uma roda modal (a amarelo meios tons e a azul tons inteiros) facilita a sua compreensão, bastando começar em cada uma das notas da roda para obter cada um dos modos.

ESCALA DIATÓNICA

BORDÃO

MODO

GRUPO

NOME

C - DÓ

221-2-221 212-2-212

5-2-5 5-2-5

Dórico

E - MI

122-2-122

5-2-5

Frígio

F - FÁ

222-1-221

6-1-5

Lídio

G - SOL

221-2-212 212-2-122

5-2-5 5-2-5

Mixolídio

A - LÁ B - SI

122-1-222

5-1-6

Lócrio

D - RÉ

Jónico

Eólico

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Pode-se ainda constatar que os modos com bordão em C, D e E são todos simétricos e perfeitos. De forma análoga obtemos mais duas escalas únicas de 7 intervalos de meiotom (1) e tom (2). A primeira, com a armação de clave de Eb e a segunda com C# e Eb. Com esta configuração (modos de 7 intervalos, intervalos utilizados 1 e 2), esgotámos todas as possibilidades, obtendo 3 escalas e 21 modos. ESCALA C/ ARMAÇÃO DE CLAVE DE EB

ESCALA C/ ARMAÇÃO DE CLAVE DE EB E C#

BORDÃO

MODO

GRUPO

NOME

C - DÓ D - RÉ

222-1-212 221-2-122

6-1-5 5-2-5

Estídico

Eb - Mib

212-1-222

5-1-6

Lórico

F - FÁ

121-2-222

4-2-6

Iónódico

G - SOL

212-2-221

Bócrio Mixolítio

Lítico

A - LÁ

122-2-212

5-2-5 5-2-5

B - SI

222-2-121

6-2-4

Lárico

BORDÃO

MODO

GRUPO

NOME

C# - DÓ#

112-2-222 122-2-221

4-2-6 5-2-5

Tídio

D - RÉ

Pítio

Eb - Mib

222-2-211

6-2-4

Eólino

F - FÁ

222-2-112

6-2-4

Eróptio

G - SOL

222-1-122

A - LÁ

221-1-222

6-1-5 5-1-6

Gótio

B - SI

211-2-222

4-2-6

Estóriano

Fírio

De acordo com William Zeitler (músico e compositor), é possível ainda para cada escala medirmos o seu grau de perfeição. A 5ª perfeita, 2º harmónico natural, é o intervalo mais comum na história da música a seguir à oitava. Assim, se contarmos o número de quintas que é possível formar utilizando apenas as notas da escala, poderemos ter uma medida geral de perfeição, ou melhor, de imperfeição da escala. Assim, a escala diatónica tem apenas uma imperfeição (Si), enquanto que a escala de Eb tem três e a de Eb e C# tem cinco. Os nomes dos modos estão de acordo com a sistematização feita por William Zeitler na sua página (http://www.allthescales.org).

CÁLCULO DO NÚMERO DE COMBINAÇÕES POSSÍVEIS Outra de forma de chegarmos a este número de modos, é através do cálculo de todas as combinações possíveis de intervalos, seguindo determinadas premissas definidas pelas 3 rodas modais analisadas. Apenas com tetracórdios de valor 4, 5 e 6 (soma de todos os intervalos dentro do tetracórdio) e com intervalos possíveis de 1 e 2 podemos calcular o número total de modos a obter. Para um tetracórdio com valor 4 (cuja extensão é uma 3ª maior), temos 3 combinações possíveis de intervalos – 112, 121 e 211; para obtermos tetracórdios de valor 5 (4ª perfeita) voltamos a ter 3 combinações possíveis, a saber: 221, 212 e 122; finalmente, para um tetracórdio de valor 6 (5ª diminuta) existe apenas uma combinação possível de intervalos, 222. Com as possibilidades combinatórias de cada tetracórdio considerado (para tetracórdios de 5 e de 4=3 combinações possíveis; para 6 = 1), podemos agora calcular o número de modos para cada um dos três grupos de modos (verde, amarelo e laranja). Grupo verde: 5-2-5 (combinação de dois tetracórdios de 5) = 3 x 3 combinações possíveis = 9 modos Grupo amarelo: 6-1-5 (combinação de um tetracórdio de 6 e de um de 5) + 5-1-6 (combinação de um tetracórdio de 5 e de um de 6) = 1x3 + 3x1 = 6 modos Grupo laranja: 6-2-4 (combinação de um tetracórdio de 6 e de um de 4) + 4-2-6 (combinação de um tetracórdio de 4 e de um de 6) = 1x3 + 3x1 = 6 modos

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Obtemos desta forma 21 modos, que correspondem exatamente às 3 escalas (cada escala tem 7 modos) de que falámos anteriormente. Se alargarmos os critérios de definição dos modos integrando a possibilidade de ter intervalos de 3ª menor (intervalo de valor 3), então o número de combinações possíveis passa de 21 para 266. Estes 266 modos, que incluem muitos dos modos orientais, distribuem-se por 38 escalas ou rodas modais com armações de clave únicas, contando com as 3 escalas que já analisámos, 15 escalas com um intervalo de 3 e 20 escalas com dois intervalos de 3. Neste caso, o número de combinações em cada tetracórdio aumenta (para um tetracórdio de 6, temos 7 combinações: 222 | 321 | 312 | 231 | 132 | 213 |123) e aos grupos verdes, amarelos e laranja juntam-se muitos outros. No esquema em baixo, o número de modos de cada grupo resultante da combinação de tetracórdios está entre parênteses retos. Cada linha corresponde aos modos cujo intervalo entre tetracórdios tem o mesmo valor (1, 2 ou 3). 1 entre tetracórdios: 8-1-3 [3]| 3-1-8 [3]| 7-1-4 [18] 4 -1-7 [18] 6-1-5 [42] 5-1-6 [42] = 126 2 entre tetracórdios: 7-2-3 [6] 3-2-7 [6] 6-2-4 [21] 4-2-6 [21] 5-2-5 [36] = 90 3 entre tetracórdios: 6-3-3 [7] 3-3-6 [7] 5-3-4 [18] 4-3-5 [18] = 50 Mais uma vez, as cores representam uma forma de arrumarmos os modos de acordo com a sua simetria, dos verdes e amarelos mais orelhudos para os azeitona, bordeaux e azul claro, com modos bastante menos audíveis.

mais orelhudo 6-1-5 6-2-4 5-3-4 7-1-4 7-2-3 6-3-3 8-1-3 5-2-5 5-1-6 4-2-6 4-3-5 4-1-7 3-2-7 3-3-6 3-1-8

Estas novas escalas podem também ser arrumadas, e entre as 15 escalas com um intervalo de 3, merecem destaque 6 que podem ser obtidas fazendo uma única alteração na escala diatónica. Na tabela, a escala diatónica está na primeira linha; seguidamente, estão a 6 escalas orientais (Or de oriental e o nome diferencial é a armação de clave mais simples para esta escala, pelo que OrG# é a escala oriental com armação de clave de G#, onde o 6º modo corresponde ao conhecido modo menor harmónico); à direita estão as armações de clave (AC) e as harmonias possíveis (I-VII), correspondendo os números aos intervalos do acorde, com 43 a ser o maior e 34 o menor: Diat OrG# OrAb OrDb OrD# OrGb OrA#

1º MODO

2º MODO

4º MODO

5º MODO

6º MODO

7º MODO

AC

221-2-221 221-3-121 221-2-131 131-2-221 311-2-221 221-1-321 221-2-311

212-2-212 122-2-122 222-1-221 213-1-212 131-2-122 312-1-221 212-1-312 121-3-122 213-1-221 312-2-211 122-2-113 222-1-131 112-2-213 122-2-131 222-1-311 211-3-212 113-2-122 132-1-221 212-3-112 123-1-122 231-1-221

3º MODO

221-2-212 121-2-213 131-2-212 221-1-312 221-3-112 321-2-211 311-2-212

212-2-122 212-2-131 312-2-121 211-3-122 213-1-122 212-2-113 112-2-123

122-1-222 122-1-312 122-1-213 113-1-222 131-1-222 122-1-132 122-1-231

43 G# 44 Ab 43 Db 43 D# 43 Gb 42 A# 43

I

II

III

IV

V

34 34 33 44 24 34 35

34 43 34 34 34 25 34

43 43 34 43 43 43 52

43 33 43 33 44 44 43

VI VII

34 34 44 34 34 34 24

33 33 33 24 42 33 33

Como podemos observar, a modificação de uma única nota na escala diatónica (excluindo as notas vizinhas dos meios tons) leva-nos para um novo universo modal oriental; baixar (aplicar um bemol) ou altear (aplicar um sustenido) o sol, o lá e o ré são a chave desses universos. Se voltarmos a alargar os critérios para todos os intervalos possíveis, o número total de modos de 7 intervalos passa agora a ser 462, distribuídos por 66 escalas únicas (462 = 66 x 7) a que correspondem 66 armações de clave não transponíveis entre elas.

ANOMALIAS DE MESSIEN E A PERFEIÇÃO ABSOLUTA DA SIMETRIA DE TODOS OS MODOS Podemos agora fazer o mesmo exercício para todos os modos, de 1 a 12 intervalos, esgotando as possibilidades de combinações matemáticas. Contudo, quando fazemos este cálculo para os modos de seis intervalos, o número total de modos não corresponde ao número de rodas, já que temos 80 rodas para 462 modos de 6 intervalos possíveis (80 x 6 = 480 modos, se cada roda produzisse 6 modos únicos). O que aconteceu aos 18 modos em falta? Este fenómeno acontece porque há escalas de 6 intervalos que não têm 6 modos. O caso mais flagrante é a escala de tons inteiros, que podemos escrever como 222-222. Esta escala, independentemente do bordão, resulta sempre no mesmo modo, pelo que 5 modos são redundantes. Messien tinha identificado estas escalas e algumas delas são efetivamente os modos de transposição limitada de Messien. Há ao todo 5 escalas

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anómalas (por não terem o mesmo número de modos que de bordões) nos modos de 6 intervalos, a que correspondem 12 modos diferentes. Se não fossem anómalas, estas 5 escalas resultariam em 30 modos. Os 18 modos correspondem justamente a esta diferença (30 normais - 12 anómalos = 18). Assim, juntando as escalas anómalas às ditas normais, temos ao todo 462 modos (os mesmos que os obtidos para os modos de 7 intervalos), distribuídos por 80 rodas, 75 normais e 5 anómalas.

Podemos agora calcular o número de modos para todos os intervalos, tendo como resultado 2048 modos. As escalas que integram estes modos são 351, ou seja, há 351 armações de clave únicas e intransponíveis que abarcam toda a música que é possível fazer (com intervalos superiores a meio-tom). Por agora ficam aqui 9 armações de clave para explorar (escalas ocidentais diatónica, de Eb e de EbC#, e as 6 escalas orientais derivadas da diatónica por uma única alteração; estas escalas correspondem a 63 modos), e em próximos números da revista iremos falar de pentatónicas e hexatónicas, análise e técnicas de composição modal, modos de outros continentes e muito mais.

É de notar ainda a simetria absoluta destes gráficos, o que quer dizer que os modos de 6 e 7 intervalos são em número igual (462) e que os modos de 4 e 9 intervalos têm exatamente 165 combinações modais; as escalas heptatónicas e pentatónicas, para além de serem 66, não têm nenhuma anómala, e as escalas hexatónicas são as mais numerosas com 80 armações de clave possíveis. Esta perfeição matemática da música é inesperada e surpreendente, levando-nos a encarar a exploração de todo este novo universo como uma viagem à perfeição última de todas as coisas. Mais, leva-nos a pensar que desprezar um só modo ou uma só escala destrói irremediavelmente esta perfeição, ou por outras palavras, estamos ainda a 98% de atingir a perfeição modal… Voltando com os pés à terra, onde a imperfeição reina e a sobrevivência dita as suas exigências mais triviais, esta teoria é essencialmente uma ferramenta empírica e de experimentação ao serviço da música, permitindo alargar horizontes e ter material de composição praticamente inesgotável. A fácil aplicação prática desta teoria é a sua grande virtuosidade, e já permitiu a muitos músicos quebrar as grilhetas do tonalismo e alargar as barreiras do nosso limitado modalismo abraçando, de alguma forma, a dimensão universal da música. Atreve-te tu também!

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