Os caminhos d\' O Marinheiro entre criação e auto-tradução

July 5, 2017 | Autor: Claudia Fischer | Categoria: Fernando Pessoa, Static Drama, Selftranslation, Revista Orpheu, O Marinheiro
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Versos iniciais de poema em francês atribuível a Alexander Search (Pessoa 2014: 281). Sendo provável que a ortografia errada de "blue" no lugar de "bleue" tenha resultado de um lapso, ela reflecte uma interferência entre as línguas que, a par do português, Pessoa usou para compor poesia: o inglês e o francês.
Encontram-se no espólio pessoano esboços de outros dramas, como o Fausto (Pessoa, 1952 e 1988) e fragmentos dramáticos dos quais alguns manuscritos foram pela primeira vez publicados por Lopes em 1977. Quanto ao projecto de escrever mais dramas estáticos, constam do espólio da Biblioteca Nacional de Portugal anotações dispersas que remetem para essa intenção. (Cf. Fischer, 2012).
Texto publicado pela primeira vez na revista Tricornio, a 15 de Novembro de 1952. Em Pessoa (1966), é atribuido a Álvaro de Campos, porém não há no espólio assinatura que esclareça a sua paternidade. Zenith (2007: 240) atribui o texto a Thomas Crosse.
Este poema foi publicado ainda em vida de Pessoa, encabeçado pelo o título "depois de ler o seu drama statico O Marinheiro em Orpheu I" (Pessoa 1929).
Constam na biblioteca particular de Pessoa, albergada na Casa Fernando Pessoa, três volumes muito sublinhados de peças de teatro de Maeterlinck (Casa Fernando Pessoa 8-333), adquiridos no seu dia de aniversário em 1914 e, de André Beaunier, La Poésie nouvelle (Casa Fernando Pessoa 8-31), cujo capítulo sobre Maeterlinck se encontra igualmente bastante sublinhado, sobretudo onde se transcrevem citações deste dramaturgo (cf. Pizarro, Ferrari, Cardiello, 2010). Refira-se também uma página do diário de Pessoa que assinala a leitura de Maeterlinck nos dias 3 e 4 de Junho de 1914, alguns dias antes da aquisição do livro (Pessoa, 2009: 449). N' O Marinheiro verifica-se uma clara influência do drama L'Intruse, de 1891, bastando para tal ver a didascália inicial. Tal não significa, contudo, que esta seja a única influência literária para a concepção do drama de Pessoa. Para um estudo de outras possíveis fontes para O Marinheiro (nomeadamente Nikolai Evréinof e Oscar Wilde), consulte-se Fischer (2012).
Como exemplo flagrante de como a auto-tradução é antes recriação entre línguas, Bassnett refere o volume Poems in English by Samuel Beckett, publicado em 1961, onde o autor apresenta versões bilingues de poemas traduzidos de forma muito infiel. (Cf. Basnett 2013: 22).
Cf. Pizarro, Ferrari, Cardiello (2010).
Contudo, Pessoa deixou diversos poemas e fragmentos poéticos escritos em francês, recentemente publicados em França (Pessoa 2014).
Publicando algumas imagens dos fragmentos franceses d' O Marinheiro, Lopes (1977) defende esta tese, nunca questionada até Fischer (2012).
A hipótese de o arqui-Marinheiro ter sido inicialmente concebido em francês teria um precedente na génese do drama estático de Oscar Wilde, Salomé, concebido em francês, na sequência da leitura de Maeterlinck.
Para a obtenção de todas as cotas e reproduções dos documentos relativos a O Marinheiro em francês e em inglês, consulte-se Fischer (2012).
A metáfora do espelho para representar o processo da tradução e a ideia de a auto-tradução implicar a viragem do espelho, de modo a que original e tradução trocam de lugar, é uma reflexão desenvolvida por Santoyo (2013).
Cf., em Fischer (2012), todos os exemplos de confrontação que reforçam a tese de que os primeiros esboços do drama foram concebidos em francês, tendo ulteriormente sido desenvolvidos na versão portuguesa.
As cotas dizem respeito à localização dos documentos no espólio E3, guardado na BNP.
A versão publicada aproxima-se mais da escolha lexical francesa (attitude/atitude).

Ao contrário dos documentos em francês, as versões em inglês de passagens d' O Marinheiro não oferecem dúvidas de que correspondem a traduções da versão portuguesa.
Anotação que, além disso, reforça a ligação do drama de Pessoa a Maeterlinck.
Cf. poema em epígrafe.



Os caminhos d' O Marinheiro entre criação e auto-tradução

Claudia J. Fischer
(Universidade de Lisboa)



La mer, cette mer qui inonde
Peut croire que la couleur,
Cette couleur blue et profonde
Lui appartient comme son coeur
C'est le reflet – hélas! d'un autre monde
C'est le reflet du ciel, et jamais l'onde
[...]



Com o subtítulo "Drama estático em um quadro" – género que, atendendo a diversas anotações no seu espólio, pretendia vir a desenvolver –, Pessoa publica O Marinheiro no primeiro número da revista Orpheu em Março de 1915. Tratando-se do único drama alguma vez completado e publicado por Pessoa em vida e tendo em consideração que este guardava meticulosamente toda a sua produção escrita, é de estranhar que não se encontre entre os seus papéis um manuscrito ou dactiloscrito desta obra que, nas suas palavras (ou de alguns dos seus heterónimos), se destacava por uma excelência poética. Num fragmento, possivelmente destinado a circular como crítica à revista Orpheu, que considerava ser o porta-voz da estética sensacionista, atribui a este drama qualidades que remontam à tradição dramática da Grécia Antiga:

O mais extraordinario é a grande divergencia de individualidades que uma corrente tão nova já comporta. Ha os poemas de Sá-Carneiro, perturbadores e geniaes […] e, finalmente, esse nocturno "drama estático" de Fernando Pessôa, revelação de uma vida interior espantosamente rica, e onde o fogo central de uma tragedia que se passa apenas nos sonhos de trez figuras (ellas proprias talvez tambem sonhos) é contido dentro de uma sobriedade externa difficil de encontrar fóra da Grecia antiga. (Pessoa, 2009: 47).

Para uma projectada antologia inglesa de poetas sensacionistas e entrando na pele de um hipotético prefaciador, Pessoa compara O Marinheiro com a produção dramatúrgica precisamente daquele que, nos finais do século XIX, se evidenciara pela criação do chamado "théâtre statique" o dramaturgo simbolista Maurice Maeterlinck , e vê naquele uma superação qualitativa de prerrogativas poéticas advogadas pelos simbolistas, tal como a subtileza e a nebulosidade poéticas:

Fernando Pessoa is more purely intellectual; his power lies more in the intellectual analysis of feeling and emotion, which he has carried to a perfection which renders us almost breathless. Of his static drama The Sailor a reader once said: "It makes the exterior world quite unreal", and it does. No more remote thing exists in literature. Maeterlinck's best nebulosity and subtlety is coarse and carnal by comparison. (Pessoa, 2009: 216).

Já num registo totalmente diferente e "depois de ler o seu drama statico O Marinheiro em Orpheu I", o engenheiro Álvaro de Campos dedica a Fernando Pessoa um poema jocoso, no qual satiriza a "langorosa magia" das suas personagens:

Depois de doze minutos
Do seu drama O Marinheiro,
Em que os mais ageis e astutos
Se sentem com somno e brutos,
E de sentido nem cheiro,
Diz uma das veladoras
Com langorosa magia:

De eterno e bello ha apenas o sono. Porque estamos nós fallando ainda?

Ora isso mesmo é que eu ia
Perguntar a essas senhoras...
(Pessoa, 2014a: 228)

Eis três exemplos paradigmáticos para a ilustração do diálogo bidireccional entre leituras e escritas que a obra pessoana frequentemente deixa entrever. A partir da leitura de Maeterlinck, no original em francês, Pessoa parece, com o seu Marinheiro, ter embarcado na aventura da sua própria reinterpretação do drama estático, procurando superar a matriz, transformá-la com a sua poética polifónica, na sua língua materna, encenando depois um teatro de crítica, onde reintegra os protagonistas das suas criações e leituras.
Acontece que além do facto de não constar no espólio a versão que conhecemos publicada no Orpheu se encontram entre os seus papéis nada menos que 25 folhas (algumas manuscritas e outras dactilografadas) de passagens d' O Marinheiro em francês e duas com passagens manuscritas em inglês. Trata-se de um caso particularmente interessante de auto-tradução, não só por envolver versões, concebidas pelo próprio autor, de um mesmo texto em três línguas, mas também por convidar a uma discussão fecunda acerca dos limites da auto-tradução relativamente ao acto criativo da escrita.
Num artigo recente sobre auto-tradução, Susan Bassnett (2013) começa por considerar esta designação problemática e falaciosa, visto a noção de tradução pressupor a existência de um binómio entre um original de partida e uma tradução de chegada, o que raramente se observa no caso de autores que são bilingues ou cujo universo de escrita se movimenta entre línguas. O testemunho de muitos destes autores aponta antes para uma escrita em que o texto se vai reconfigurando entre línguas, podendo, inclusive, a tradução fazer parte do processo de constituição do "original". A par do caso mais conhecido de Samuel Beckett, tem vindo a ser descrita toda uma diversidade de exemplos que legitima a problematização de uma definição demasiado linear de auto-tradução. Refira-se, entre outros, o autor queniano Ngugi Wa Thiong'o (2009) que, relatando a sua experiência de uma auto-tradução repentinamente convertida num processo de criação, faz uso da sugestiva imagem: "The muse would possess me again".
Como se sabe, no caso de Pessoa, a solidez e desenvoltura no domínio da língua inglesa, adquiridas nos seus anos de escolaridade em Durban, mantiveram-se até à sua morte, sendo esta a língua escolhida no que dizia respeito à maioria das suas leituras comprovadas e a uma parte substancial dos seus escritos poéticos, ensaísticos ou de ordem prática. Já o francês, língua que dominava na perfeição para a leitura, não se oferecia de forma tão natural no que dizia respeito à sua escrita, justificando-se assim plenamente a suposição de que, no caso d' O Marinheiro, a versão portuguesa seja o original aquela que atingiu a forma acabada e se viu publicada no Orpheu , constituindo as versões francesa e inglesa esboços posteriores de traduções deste texto de partida. Porém, uma análise cuidada dos rascunhos franceses de Pessoa poderá subverter a ideia vigente e consolidada de que os fragmentos em francês do drama estático Le Matelot sejam meros esboços de tradução do original português.
Começando pela abertura do drama, o facto de dela existirem nada menos do que seis versões em francês levanta de imediato a suspeita de estarmos perante um processo de natureza criativa em lugar da tradução de um original fixado. Contudo, é a observação de algumas opções tradutórias que nos levam à sensação de que, caso consideremos como ponto de partida a versão portuguesa, nos encontramos por vezes do lado errado do espelho. Tal acontece principalmente quando, em confronto com a versão portuguesa, se verifica um manifesto empobrecimento das escolhas poéticas na passagem do português ao francês o que corresponderia a um enriquecimento se considerássemos o sentido inverso. Apenas a título de exemplo, seria difícil de conceber que uma passagem como "quando alguém canta, eu não posso estar comigo. Tenho que não poder recordar-me", fosse traduzida por Pessoa simplesmente como "Quand on chante, je ne puis pas me souvenir", como encontramos num dos fragmentos em francês. Por outro lado, uma locução como "chez mon passé", vertida para "em casa de meu passado", trai claramente a sua origem gálica, criando, por seu lado, um efeito poeticamente inovador na língua portuguesa.
São contudo dois manuscritos (74B-20 e 74B-22) que parecem fornecer-nos as provas mais persuasivas para a tese de que Pessoa, embalado pela leitura de Maeterlinck, começou por conceber o seu drama em francês e, aparentemente perdendo o fôlego numa língua que não dominava com mestria, acabou por lhe dar uma forma completa e publicável em português. No primeiro documento, trata-se de um momento avançado da peça, seguido da didascália final. Numa escrita tortuosa em francês, um diálogo entre as veladoras deixa-nos entrever uma passagem em português.


Fig. 1. Pormenor de BNP/E3, 74B-20r

Transcrição:

Il est humain et convenable que nous prenions [ chacune son] attitude de tristesse [ a sua postura servil de tristeza]


Versão publicada no número I da revista Orpheu:

É humano e conveniente que tomemos, cada qual, a sua atitude de tristeza.

Já no verso da mesma folha, que corresponde à continuação desta passagem, o francês desaparece e o autor deixa-se inteiramente levar para a criação em português, dando forma a um momento fulcral da obra, a didascália final, cujas palavras são levadas ao rubro na versão publicada.


Fig. 2. Pormenor de BNP/E3, 74B-20v



Transcrição:

Um gallo canta/.\ /A\ luz, parece que subitamente, augmenta…Chia ao longe um carro n'uma estrada… As trez veladoras quedam-se silenciosas e tristes e sem olharem umas para as outras. [ cada uma sem olhar para as outras]
Ao longe [ No fim], [ n'uma] estrada, um vago carro geme e chia

Versão publicada:

Um galo canta. A luz, como que subitamente, aumenta. As três veladoras quedam-se silenciosas e sem olharem umas para as outras. Não muito longe, por uma estrada, um vago carro geme e chia.

No documento com a cota 74B-22 é ainda mais notório como, em pleno acto da escrita, ocorre a cedência à língua que predomina no poeta, convertendo o processo criativo em francês num processo criativo em português.


Fig. 3. BNP/E3, 74B-22r






Transcrição :

comme s'il ne se passait pas. Voyez; le ciel est déjà vert… L'horizon se dore… Mes yeux /sont chaudes/ comme si j'avais pleuré. [ de (eu ter pensado em chorar) poder ter chorado]
- Vous avez en effet pleuré, ma soeur.
- Peut-être. [ Dizei-me uma cousa… Porque não será a unica cousa real n'isto tudo o marinheiro, e nós e tudo isto apenas um sonho d'elle… E… Porque olhastes assim?]
– Não falleis mais, não falleis mais… Isso é tão estranho que deve ser verdade… Não continueis… O < > que ieis dizer não sei o que é, mas deve sêr demais n'alma… Tenho mêdo do que ieis [ não chegastes a] dizer.– Vêde, vêde, é já dia… etc. – Ø

Torna-se aqui bem evidente que o documento não nos dá testemunho de uma tradução francesa de um original português, mas sim que adoptando a imagem de Ngugi Wa Thiong'o a musa francesa, incapaz de corresponder ao ímpeto poético do momento, passou a palavra à musa portuguesa. A haver auto-tradução (como gesto fundador da criação, note-se), ela ocorreu posteriormente, das passagens em francês para o português, visando dar forma final ao drama publicado no Orpheu. Este facto não exclui evidentemente a possibilidade de Pessoa vir a considerar uma re-auto-tradução, desta vez completa, para o francês e para o inglês, como parece revelar a pequena anotação também existente no espólio:


Fig. 4. Pormenor de BNP/E3, 133M-98 r; Pessoa, 2009: 438
Graças às pistas deixadas na profícua arca, O Marinheiro revela-se, assim, um lugar de contaminação entre leitura, escrita e tradução, peças móveis de uma dinâmica profundamente enraizada no processo criativo de Pessoa. Nascida, neste caso, como onda em reacção a uma leitura nesta língua, a escrita em francês acabou, porém, por se revelar ao poeta como "le reflet – hélas! d'un autre monde".




Referências bibliográficas

Bassnett, Susan (2013), "The self-translator as rewriter", in Self-Translation. Brokering Originality in Hybrid Culture. Ed. Anthony Cordingley, London, New Delhi, New York, Sydney: Bloomsbury, pp.13- 25.
Fischer, Claudia J. (2012). "Auto-tradução e experimentação interlinguística na génese d' «O Marinheiro» de Fernando Pessoa", Pessoa Plural. Revista de Estudos Pessoanos, nº 1, p. 1 – 69. http://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Studies/ejph/pessoaplural/Issue1/PDF/I1A01.pdf
Lopes, Teresa Rita (1977). Fernando Pessoa et le Drame Symboliste. Paris: F. C. Gulbenkian.
Maeterlinck, Maurice (1908-1912). Théâtre. 3 vols. Bruxelles: Paul Lecomblez, éditeur.
Ngugi Wa Thiong'o (2009). "My life In-Between languages", Translation Studies 2.1: 17-21.
Pessoa, Fernando (2014). Poèmes français. Édition établie et annotée par Patricio Ferrari avec la collaboration de Patrick Quillier. Paris: Éditions de la Différence.
____ (2014a). Álvaro de Campos. Obra Completa. Ed. Jerónimo Pizarro e Antonio Cardiello. Lisboa: Tinta-da-China.
____ (2009). Sensacionismo e Outros Ismos. Ed. de Jerónimo Pizarro. Lisboa: INCM.
____ (2007). Prosa Íntima e de Autoconhecimento. Ed. de Richard Zenith. Lisboa: Assírio e Alvim.
____ (1988). Fausto – Tragédia Subjectiva. Edição de Teresa Sobral Cunha. Lisboa: Presença.
____ (1966). Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Ed. de Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho. Lisboa: Ática.
____ (1952). Poemas Dramáticos. Edição de Eduardo Freitas da Costa. Lisboa: Ática.
____ (1929). Revista Solução Editora, nº4, Lisboa.
Pizarro, Jerónimo; Ferrari, Patricio; Cardiello, Antonio (2010). A Biblioteca Particular de Fernando Pessoa. Lisboa: Dom Quixote. Acervo Casa Fernando Pessoa, vol. I.
Santoyo, Julio-César (2013). "On mirrors, dynamics and self-translations" in Self-Translation. Brokering Originality in Hybrid Culture, ed. Anthony Cordingley, London, New Delhi, New York, Sydney: Bloomsbury, pp. 27- 38.


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