Os Caprichos de Pangloss

June 28, 2017 | Autor: Wisley Vilela | Categoria: Comparative Literature, Literary Theory
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OS CAPRICHOS DE PANGLOSS Durante o período de 1979-80, o Filósofo francês Jacques Derrida apresentou uma série de seis preleções em francês na Universidade Yale (EUA), reunidas sob o título “O conceito de literatura comparada e os problemas teóricos da tradução” (tradução livre 1 do título em inglês The concept of comparative literaturare and the theoretical problems of translation). Na primeira preleção da série, Derrida explicou que sua intenção não era inovar, criticar ou iniciar algo. Ao contrário, ele tencionava ‘trazer para o centro das atenções uma oposição conceitual existente em todo redor, mas sempre regida pela poderosa “lógica da lógica”’. (DERRIDA, 1980 p. 24) Para Derrida, em oposição a essa oposição conceitual estavam instituições, a literatura, a tradução e departamentos de literatura comparada. Ressaltando não ser a crítica radical seu objetivo, Derrida estabelece

as

bases

para

seu

argumento

por

observar

que

o

estabelecimento de relações em todas as formas, em todas as figuras e em todos os trópicos entre diferentes literaturas é ao mesmo tempo objeto e razão de ser da literatura comparada. (Op. cit. p. 26) Derrida sugere que o “próprio escrever literário” parece ser em si mesmo comparação literária num sentido mais amplo. (Op. cit. p. 27) A seguir, o autor examina o problemático estudo da literatura geral e

escolhe

a

Encyclopedia Universalis,

sob

o

verbete

Literatura

Comparada, escrito pelo intelectual Étiemble, para ilustrar seu argumento de que a tentativa de provar a existência de uma literatura pura pode fazer da literatura comparada uma disciplina vaga, “tão delirante quanto bulímica em seu enciclopedismo desenfreado. (Op. cit. p. 30) Derrida denuncia o totalitarismo de Étiemble como defensor de

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Todos os trechos de (DERRIDA, 1980) presentes neste trabalho foram traduzidos pelo aluno.

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uma disciplina que tenta categorizar a diversidade literária numa estrutura “paranoica de racionalidade enciclopédica”, o que, para Derrida, é posicionamento absurdo, tal como seria o estabelecimento de um departamento de literatura comparada para gerir a diversidade criativa mundial. Nas palavras de Étiemble, citadas por Derrida, a disciplina por ele defendida tem o “único propósito de combater toda forma de chauvinismo cultural e ensinar respeito ou admiração por outros (…) ”. Sobre o modo de operação e identidade desse departamento sob a batuta da UNESCO, Étiemble argumenta que “comissões nacionais de estados membros seriam responsáveis pela coleta de materiais em cada país, que seriam centralizados, tratados e difundidos por essa organização” em nome de ‘uma bibliografia internacional de literatura comparada’. (Op. cit. p. 32) Dessa forma, Étiemble advoga a constituição de comparatistas em defensores e guardiães da cultura, o Pangloss constituído e empossado. Sobre o pior cenário resultante da aceitação da proposta de Étiemble, Derrida declara: Parece-me que uma das imagens do pior seria que os Panglosses das instituições, depois de centralizar tudo de acordo com suas vontades, tivessem (…) autoridade para determinar aos pesquisadorestradutores-escritores o que é boa literatura ou o que deveria ser, em outras palavras, que devesse criar normas de produção, um axioma de avaliação, uma espécie de gosto — não apenas um gosto de julgamento, mas um gosto que moldasse a produção. Que seria da literatura se sua única ambição fosse a de se submeter ao gosto do Pangloss II? Que seria da literatura se todos os escritores escrevessem para agradar Étiemble ou receber dele um prêmio (…)? Ou pior, uma literatura que o quisesse imitar, visto que, harmonizando seus atos às suas palavras, Étiemble também escreve romances. Não é exagero meu, em absoluto, não estou forçando a suspeita além da conta por falar do desejo normativo e prescritivo que pode ser lido nesse projeto enciclopédico imperialista, Panglóssico. (DERRIDA, 1980)

Parece haver no pensamento de Étiemble traços do pensamento de Goethe, que sonhava uma literatura universal, segundo Natali, “um conceito abstrato e neutro, anterior a qualquer comparação e além de

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qualquer localismo”, no qual Goethe teria concebido seu sistema mundial.

A

proposta

de

Étiemble,

ao

que

parece,

seria

uma

implementação do sonho de Goethe de, pela “atenção a outras tradições literárias, (…) [pelo] abandono de preconceitos localistas”, universalizar a literatura. Segundo Natali, a Weltliteratur (Literatura Mundial) de Goethe era um projeto idealizado com um objeto materializado, a saber, “uma espécie de arquivo literário global”. (Além da Literatura, 2006 p. 31) O ideal utópico de Étiemble referente à literatura previa a criação de uma barreira protetora em torno do objeto de Goethe pela imposição de filtros e normas por parte de um todo-poderoso comitê, forma pouco velada de censura, pelos quais os limites da boa literatura haveriam de ser estabelecidos e vigiados. Por melhor intencionadas que fossem as propostas de Étiemble, os riscos inerentes a esse brincar-de-ser-deus legitimam a inquietação e o desconforto de Derrida ante a ideia. As vicissitudes humanas, a morte entre elas, seriam barreira maior ao êxito da ambiciosa proposta de Étiemble, do que as barreiras prescritivas em defesa da ‘boa’ literatura. No pior cenário visto por Derrida decorrente da hipotética implementação da ideia de Étiemble, “o que seria da literatura mundial se sua única ambição fosse se submeter ao gosto de Pangloss”, o autor sugere sutilmente que a literatura mundial só existe porque não há quem a controle. Pode-se dizer que a diversidade das circunstâncias raciais, culturais, sociais e econômicas, a existência ou ausência de conflitos, os interesses das comunidades, suas expectativas, são todos fatores inerentes à existência humana que não podem ser controlados. Esses fatores estão entretecidos na produção literária ao redor do mundo. Negar sua manifestação seria negar a literatura mundial da qual se pretende preservar a pureza e, em última análise, a própria natureza humana. As medidas propostas por Étiemble sugerem que ele talvez visse na imprevisibilidade do próximo lance da literatura mundial, e na

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inexistência de mecanismos eficazes para mudar o jogo, uma instância do caos que assombra e intimida. Numa palavra, confusão. Essa palavra nos remete ao texto Torres de Babel, de Derrida. Não há dúvida de que a diversidade linguística contribua para a heterogeneidade da produção literária mundial. Derrida argumenta que na Babel bíblica os semitas teriam tido sua língua confundida também por Incontestavelmente terem querido assim se fazer (…) eles mesmos seu próprio nome, reunir-se aí (“que nós não sejamos mais dispersados…”) como na unidade de um lugar que é ao mesmo tempo uma língua e uma torre, uma como a outra (…) uma genealogia única e universal. (Derrida, 2002 p. 17)

Embora em Torres de Babel Derrida trate primariamente da teoria da tradução, podemos nos aproveitar dos conceitos explanados naquele texto como prisma sob o qual as ambições de Étiemble ganham novo contorno. De certo modo, a proposta deste ensaísta se assemelha à proposta dos semitas de manter estrito controle sobre seu nome e sobre o que este poderia vir a representar. O que seria para os semitas uma torre gigantesca, corresponde ao “mundo inteiro que se tornaria um imenso departamento de literatura comparada administrado pela Associação Internacional de Literatura Comparada”, o comitê normativo, restritivo, e prescritivo idealizado por Étiemble e ironizado por Derrida. (DERRIDA, 1980 p. 31) Tal como a torre teria função de uniformizar as massas e perpetuar um nome, esse gigantesco departamento de litcomp teria de restringir mudanças para muitos pela escolha muito poucos. Os quadros em Torres de Babel, muitos para satisfazer poucos, e na comissão centralizadora proposta por Étiemble são análogos. Preservar-se-ia

um

nome,

uma

tradição,

uma

unidade

e,

consequentemente, poder — mas a que custo? Atribui-se a John DalberActon (1834-1902) a máxima ‘poder tende a corromper, e poder absoluto corrompe absolutamente’. (From Wikipedia, the free encyclopedia, 16) Não

obstante

as

poucas

precauções

que

fez

sobre

riscos

de

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burocratização e tirania inerentes à sua proposta, Étiemble parecia minimizar os riscos e superestimar os benefícios de sua torre antibabel (DERRIDA, 1980 p. 43). O texto de Derrida Who or What Is Compared, por inferência, suscita adicionalmente a questão da soberania dos povos sobre sua expressão literária independentemente de quem a queira julgar de boa ou má qualidade, ou mesmo daqueles que a coloquem à margem de suas pré-moldadas e fechadas colunas de categorização. A mesma questão, em outro contexto, é abordada por Spivak em Pode o Subalterno Falar. Comentando uma citação que faz de Marx sobre pequenos proprietários camponeses que “não podem representar a si mesmos; devem ser representados (…) [por] seu mestre, como uma autoridade sobre eles”, a autora afirma que “tal modelo de dissimulação social (…) implica não apenas uma crítica ao sujeito como um agente individual, mas também uma crítica à subjetividade de um agenciamento coletivo”. (SPIVAK, 2014 2ª reimp. p. 46) A dissimulação social de que fala a autora, e as críticas implícitas nessa dissimulação, ajudam a não desperceber que nem sempre o agente individual deseja ter voz, mas prefere ser representado. Note-se, porém, que o agente individual em questão eram camponeses que, dada a natureza de sua ocupação principal, talvez considerassem vantajoso ter um representante a quem delegar sua fala. O subalterno, como parece ser o caso na citação da autora, às vezes não pode falar por estar inserido num sistema que o faz delegar seu direito ao poder de fala a seu representante. Dificilmente seria esse o caso de quem produz literatura. A necessidade de falar e ser ouvido é o que move o escritor, o tradutor e o pesquisador. Sendo movidos por essa necessidade, porque abririam mão da escolha de falar apenas para se submeter aos caprichos de Pangloss? Consideramos o problema levantado por Derrida sobre a proposta de Étiemble e sua relação com o direito à liberdade de escolha e

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contribuição de outros autores à discussão do tema. Com base nesse exame pode-se argumentar que o direito dos povos à produção de sua própria literatura, independentemente de como os críticos comparatistas a classifiquem, é o que faz da literatura um instrumento de compreensão da identidade. Uma futura abordagem desse tema poderia examinar até que ponto a literatura é fruto do meio e o meio fruto da literatura.

REFERÊNCIAS Além da Literatura. Natali, Marcos Piason. 2006. 2006, Literatura e Sociedade, pp. 30-43. DERRIDA, J. 1980. Who or What Is Compared? The Concept. 1980. Derrida, Jaques. 2002. Torres de Babel. [ed.] Ana Maria Morais. [trans.] Junia Barreto. Belo Horizonte : UFMG, 2002. From Wikipedia, the free encyclopedia. 16. John Dalberg-Acton, 1st Baron Acton. Wikipedia The Free Encyclopedia. [Online] 09 2015, 16. [Cited: 10 08, 2015.] https://en.wikipedia.org/wiki/John_Dalberg-Acton,_1st_Baron_Acton. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. 2014 2ª reimp.. Pode o Subalterno Falar? [ed.] Michel Gannam. [trad.] Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte : UFMG, 2014 2ª reimp. p. 174.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ FACULDADE DE LETRAS Departamento de Ciência da Literatura Wisley do Carmo Vilela http://wisley.net

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