Os desafios e dilemas da construção da paz na Colômbia: potenciais aprendizagens a partir de várias experiencias internacionais

July 6, 2017 | Autor: M. Barreto Henriques | Categoria: Peace and Conflict Studies, Colombia, Conflict Resolution, Procesos de paz, Proceso De Paz En Colombia
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Tempo exterior Nº 30, Vol. XV (I), 2015, páxinas 19-34

Os desafios e dilemas da construção da paz na Colômbia: potenciais aprendizagens a partir de várias experiencias internacionais Miguel Barreto Henriques Introdução A Colômbia encontra-se actualmente face a um dos maiores desafios da sua história recente: colocar fim a mais de cinco décadas de conflito armado. O actual processo de paz entre o governo nacional e as FARC em Havana permite vislumbrar uma possível solução negociada para o conflito, mas também suscita várias questões sobre o modelo e conteúdo do possível acordo, bem como as diversas exigências e desafios da construção paz num potencial cenário de pós-conflito. Este artigo tem por base algumas das conclusões do projecto de investigação “Experiências de paz: lições aprendidas para a Colômbia”, desenvolvido no Observatório de Construção de Paz da Universidade de Bogotá Jorge Tadeo Lozano. Pretende olhar para o tema da paz e do processo de negociação na Colômbia a partir de diferentes experiencias de processos de paz e pós-conflito no mundo. Procurará identificar, recompilar e sistematizar algumas potenciais aprendizagens para a construção da paz no país, estabelecendo analogias com diversos casos de estudo internacionais(1). Em jogo está não só identificar, analisar e problematizar mecanismos, instrumentos, modelos e práticas potencialmente aplicáveis ao caso colombiano, mas também erros a não repetir. Distinguir-se-á elementos de aprendizagem em duas etapas distintas e igualmente exigentes para a construção da paz e a superação de um conflito armado: lições no âmbito e decurso de um processo de negociação, e aprendizagens no período imediatamente posterior à assinatura de um acordo e na etapa de pós-conflito.

Lições aprendidas para a Colômbia Do estudo e análise dos diversos casos que se abordaram na investigação, a primeira conclusão que emerge é que cada conflito armado tem uma especificidade muito própria, produto da sua história, causas, contexto político e social, o que se traduziu em formas, instrumentos e vias muito diferentes de caminhar para a paz em cada caso estudado. Nesse sentido, conclui-se que a solução para o conflito armado na Colômbia, também é necessariamente “colombiana”, resultado da sua própria especificidade e dos consensos e diálogos estabelecidos no interior da sociedade colombiana. Não há receitas gerais para a paz, nem modelos “copy paste” de resolução de conflitos replicáveis como uma fotocópia ou (1)

Foram incluídos nesta investigação os seguintes estudos de caso: África do Sul, El Salvador, Filipinas, República Democrática do Congo, Irlanda do Norte, Indonesia, Sudao do Sul, Burundi, Guatemala, Nepal e Colômbia.

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transladáveis como uma planta. Como Paris (2004: 206) aponta, não existem métodos fáceis, baratos e rápidos para estabelecer a paz, nem vacinas para imunizar as sociedades contra a violência. Mas há factores transversais e comuns a cada conflito armado, questões, problemas, dilemas e desafios impostos aos actores armados e à sociedade, antes, no decurso e depois de um processo de paz. Portanto, foi possível identificar, no âmbito desta investigação, algumas lições aprendidas que a Colômbia poderia ter em conta na sua procura da paz e de superação do conflito armado. Não só alguns instrumentos e mecanismos se revelaram como boas práticas nos casos estudados, como se verificaram erros recorrentes que seria importante evitar.

Aprendizagens para o processo de paz A não inevitabilidade da guerra Nos vários casos estudados, os processos de paz culminaram num acordo negociado entre os grupos armados que abriu as portas para a paz após anos de guerra. Nesta medida, torna-se evidente que a guerra não é uma inevitabilidade, nem uma fatalidade, e que, mesmo nos conflitos mais enraizados e de longa duração, como a Irlanda do Norte, África do Sul e Filipinas, nos quais o grau de vitimização e ressentimento é maior e onde tentativas anteriores de negociação falharam, é possível construir a paz. De facto, nos últimos 30 anos, 82% dos conflitos armados cessaram através de negociações e não pelas armas (Fisas, 2013: 16). Esta é uma lição válida para a Colômbia, que ostenta o mais longo conflito armado do Hemisfério Ocidental, e onde as experiências fracassadas de processos de negociação com as FARC e o ELN no passado geraram fortes anticorpos e cepticismo em alguns sectores sociais e políticos em relação à viabilidade de uma solução política para o conflito. A importância de fazer concessões e evitar posições maximalistas Um processo de paz envolve uma variedade de dilemas, tanto para os actores que se sentam na mesa de negociação, como para a própria sociedade. Chegar a um acordo de paz é um grande desafio, que requer a superação de muitas dificuldades e barreiras. Na maioria dos casos analisados, isto implicou que os diversos grupos armados (legais ou ilegais) fizessem várias concessões importantes e moderassem as suas expectativas, o que pressupôs o abandono parcial ou total de algumas das suas reivindicações políticas, agenda e bandeiras históricas. Na verdade, este é necessariamente um processo difícil e doloroso para estes grupos, e que pode até mesmo ser considerado como uma traição para as suas bases sociais, mas que é absolutamente necessário para superar ou transformar um conflito armado. Em qualquer processo de paz, há elementos políticos que os grupos armados não vão obter e reivindicações às quais terão de renunciar. Portanto, é aconselhável evitar posições maximalistas, tanto na mesa de negociações, como na sociedade, em favor de valor maior e um bem político mais importante que é a paz. Não há vitórias absolutas num acordo negociado. A paz implica e exige sempre fazer

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concessões e chegar a compromissos. Como afirma Martin McGuiness (2014), ex-membro do IRA, “é necessário assumir riscos para a paz. Tem que haver generosidade em ambas partes”. Efectivamente, é um processo que exige boa fé e vontade política de mudança. Como menciona Lederach (2008: 71): “A gente que vive em cenários de conflitos muito enraizados enfrenta-se a uma extraordinária ironia: a violência é conhecida, o mistério é a paz. Pela sua própria natureza, a construção da paz exige um caminho guiado pela imaginação do risco.”

A importância que os acordos de paz tenham em conta as causas profundas dos conflitos Os conflitos armados são geralmente um sintoma de problemas estruturais de uma sociedade e revelam falhas e debilidades no seu sistema político e políticas públicas (Jeong, 2000: 33). Não nascem num vazio, têm causas e raízes que, em alguns casos, seria necessário abordar mesmo que não houvesse violência armada. Para Burton (1990), o risco de não abordar as causas subjacentes dos conflitos é tão grande como não tratar os sintomas de uma doença. Tal como estes, os conflitos são sintomas de outra coisa: são sinais de deficiências estruturais, de falências de um sistema (político e social) no cumprimento das necessidades das pessoas (Väyrynen, 1998). Por conseguinte, é fundamental que os processos de paz e as estratégias de construção de paz num contexto de pós-conflito, tenham em conta estes elementos e as causas específicas da violência e da conflitualidade. Se não se transforma a estrutura de uma sociedade de forma que proporcione todas as soluções a estas necessidades, o conflito continuará sendo intratável (Burgess e Burgess, 2003). Assim, se os acordos de paz não abordam as questões subjacentes ao conflito e se limitam a dar vantagens as elites dos grupos armados, criarão acordos que não persistirão (Wallensteen, 2002: 39, 40). A transformação e resolução de conflitos é muito mais do que levar as pessoas a uma mesa de negociação. De facto, alguns casos, como o centro-americano, proporcionam exemplos de um continuum de violência(s) (Freire e Lopes, 2008: 13), num ambiente de paz negativa que se seguiu aos acordos formais de paz. Se as causas profundas do conflito permanecem intactas, o processo pode reciclar-se indefinidamente e as mudanças podem ser puramente cosméticas. Na verdade, assistiu-se nestes países não só uma permanência ou mesmo agravamento da violência, mas também das estruturas de exclusão e desigualdade socioeconómica, factores que estiveram na origem da insurgência e do conflito (Paris, 2004: 115). Esta é uma lição que a Colômbia deve considerar: não haverá paz duradoura sem abordar as condições sociais que desencadearam a guerra (op cit, 134.). Noutros casos, os processos de paz contemplaram transformações significativas. Um bom exemplo é o Nepal, que, em virtude dos acordos, iniciou uma reforma agrária e estabeleceu uma reestruturação do Estado para garantir a inclusão das minorias. Estes elementos incidiram sobre uma das raízes profundas do conflito armado e contribuíram a democratização do país, factor fundamental para a construção de uma paz sustentável. O caso da África do Sul também revela uma importante aprendizagem política a este nível: apesar das profundas mudanças vividas pela sociedade sul-africana, como resultado Tempo Exterior / 30 (segunda etapa) - xaneiro/xuño 2015

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do acordo de paz e do processo de democratização, 20 anos após o fim do apartheid, a desigualdade persiste entre brancos e negros, especialmente no campo económico. Esta situação demonstra quão difícil e exigente é construir a paz. Na Colômbia devem-se necessariamente ter em conta estes ensinamentos. Se as causas da conflitualidade permanecem intocadas, especialmente no que diz respeito às condições de vida nas áreas rurais, qualquer esforço para a paz pode ser limitado, efêmero, insustentável ou em vão. Continuarão alimentando-se formas de violência no país, bem como grupos com a capacidade de desafiar o monopólio legítimo da força nos territórios periféricos, seja na forma de guerrilhas, grupos paramilitares, narcotraficantes ou gangs. Dado o historial de violência política, os elementos da violência estrutural e cultural, o carácter multidimensional e regionalmente diferenciado do conflito, sem uma transformação do mesmo, existe o risco de que o país não seja verdadeiramente pacificado e que reincida a violência ou assuma novas formas e modalidades (Barreto Henriques, 2012: 776). Neste sentido, é fundamental gerar uma presença integral do Estado no território. A paz na Colômbia passa necessariamente por integrar, institucional e socioeconomicamente, as regiões e territórios historicamente marginalizados, que alimentaram e sofreram historicamente a violência armada. Não só a presença física do Estado é essencial, mas também construir uma presença legítima e integral do Estado como um prestador de serviços públicos para todo o território e toda a população (Barreto Henriques, 2012: 149). Se essas condições não se concretizam, as áreas que estavam sob o controle das forças insurgentes podem cair, depois de se assinar um acordo de paz nas mãos de outros grupos ilegais, como as chamadas BACRIM(2), especialmente se são territórios onde estão presentes cultivos ilegais. A presença integral do Estado no território é essencial para garantir a não repetição ou transfiguração da violência. Estes factores são fundamentais para a construção da paz na Colômbia, não só porque representam as causas profundas do conflito, mas também porque constituem os problemas estruturais da sociedade e do sistema político colombiano que seria necessário enfrentar mesmo que houvesse violência armada. A construção da paz como statebuilding e a importância de integrar os grupos armados na vida política e na arena democrática Como mencionado acima, os conflitos revelam fragilidades e lacunas nas sociedades. Os processos de paz são oportunidades para enfrentá-los, transformá-los ou mitigá-los. Na maioria dos casos estudados neste projecto de investigação, os processos de paz converteram-se em verdadeiros processos de statebuilding, isto é, implicaram transformações políticas profundas, reformas constitucionais e institucionais, e, nalguns casos, processos de democratização que abriram as portas à participação e à inclusão política. Um dos elementos mais recorrentes neste âmbito é o estabelecimento de mecanismos para integrar os grupos armados ilegais e as suas bases no sistema político. Impôs-se na maioria dos casos uma prática conhecida como “bullets for ballots”, isto é, a substituição da (2) Bandas criminais

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luta armada pela mobilização democrática e eleitoral. Em jogo está, não o desaparecimento destes grupos, nem da sua agenda e reivindicações políticas, mas sim a sua conversão em grupos políticos civis. É importante sublinhar que nestes casos o conflito não cessa nem se soluciona em si mesmo, transforma-se, ou seja, o antagonismo mantém-se, mas perde a sua dimensão armada. A luta é transladada para a arena democrática e eleitoral, de forma pacífica e civil. As balas substituem-se por boletins de voto. Estes processos de conversão política deram-se em vários dos casos de estudo com resultados bastante positivos: na Irlanda do Norte, o IRA, e o seu braço político, o Sinn Feinn, renunciaram à luta armada e são uma das maiores forças políticas do país (Corporación Nuevo Arco Iris, 2012). Martin McGuiness, ex-dirigente do conselho militar do grupo armado, assume presentemente o papel de vice-primeiro ministro. No Nepal, a guerrilha maoísta, convertida em partido político, hoje governa o país. Em El Salvador, também o FMLN se transformou em partido e tem obtido representação política e triunfos eleitorais. Mas o caso colombiano assistiu igualmente a este tipo de processos. O M-19 converteu-se, depois da sua desmobilização, num grupo político com algum êxito, e actualmente, alguns dos seus desmobilizados, como Gustavo Petro e Antonio Navarro Wolff, ocupam lugares políticos importantes no país. A integração de grupos armados na vida política passou igualmente, em casos como a Irlanda do Norte e Filipinas, por mecanismos de divisão de poder, ou instrumentos de favorabilidade política para os grupos armados. Em cenários donde existiam sistemas políticos autoritários ou excludentes, como África do Sul, El Salvador, Guatemala e Nepal, a possibilidade de participação política de novos grupos foi aberta mediante a democratização dos regimes. É assim manifesto que, em muitos casos, os acordos de paz converteram-se quase em constituições, abrindo o caminho a transformações profundas dos sistemas políticos, eleitorais e judiciais. Não obstante, o caso colombiano evidencia algumas diferenças significativas relativamente a estes casos. Não estaria necessariamente em jogo uma mudança de regime ou de sistema político, na medida em que a sua democracia está consolidada, sobretudo após a Constituição de 1991, e confere amplas possibilidades de participação. No entanto, é uma democracia com algumas limitações e insuficiências políticas, razão pela qual, não seria absurdo realizar algumas reformas institucionais a fim de aperfeiçoar o seu sistema, “democratizar a sua democracia” (Sousa Santos, 2003), e torná-lo mais eficaz e inclusivo Da mesma forma, de maneira a permitir que o processo de mudança de “balas por boletins de voto” ocorra na Colômbia, seria importante que, apesar da profunda resistência no país em relação a esta possibilidade, a sociedade colombiana se preparasse para que líderes das FARC participem na política através de movimentos como a Marcha Patriótica ou a Unión Patriótica. Esta é uma lição importante dos processos de paz estudados, e uma condição fundamental para permitir que se gerem condições para a paz e a desmobilização dos grupos armados. A possibilidade de participação política de quem assina os acordos constitui “o coração” da maioria dos processos de paz no mundo. Além do mais, a exclusão de alguns sectores políticos do acesso ao poder está na raiz de muitos conflitos, entre os quais o colombiano. Tempo Exterior / 30 (segunda etapa) - xaneiro/xuño 2015

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No entanto, o facto de que as FARC tenham uma legitimidade e aceitação popular reduzidas na Colômbia – sobretudo nos centros urbanos - , em comparação com alguns dos actores armados estudados, dificulta a sua integração e participação no sistema político e eleitoral. Todavia, as FARC desempenharam um importante papel social nalguns territórios do país, como Meta, Caquetá e Cauca, seus bastiões históricos, assim como em Putumayo e nas regiões do Pacífico, na actualidade, razão pela qual, especialmente nessas regiões, poderiam desempenhar um papel importante no pós-conflito, não sendo inconcebível que ex membros e líderes das FARC possam representar cargos políticos a nível local, como presidentes de câmara ou vereadores. A participação da comunidade internacional como uma mais valia num processo de paz A participação de actores externos internacionais num processo de paz, seja como facilitadores, mediadores ou observadores, configura una mais valia. Constitui um factor de garantia e confiança entre as partes, de geração de incentivos, novas ideias e opções para a superação de um conflito; assim como de um ambiente propício à fluidez e avance das negociações, especialmente nos momentos mais difíceis e delicados (Zartman y Touval: 1992). Um actor terceiro funciona como um canal de comunicação que estabelece “pontes” entre os grupos armados, facilita o diálogo, busca gerar confiança entre as partes, encontrar os procedimentos mais adequados para as conversações e desbloquear situações de impasse. Um processo de negociação beneficia significativamente da presença e da voz da comunidade internacional. Vicenç Fisas (2013: 16) defende que os processos de paz no mundo nos quais há uma intervenção de terceiros geralmente funcionam melhor. Um terceiro actor confere maior solidez a um processo de paz, ao trazer mais credibilidade política e confiança entre as partes na negociação, e um maior leque de soluções a mesa. Como referem Borda e Cepeda (2012: ix), “dar voz à comunidade internacional e não apenas sentá-los a ouvir pode contribuir para a resolução rápida e eficaz dos nós górdios que surgem durante o processo de negociação”. Nesta medida, a presença internacional num processo de paz configura um elemento benéfico para que a negociação chegue a bom porto. A maioria dos casos analisados nesta investigação envolveu alguma forma de presença ou participação da comunidade internacional, com resultados positivos. Em casos como as Filipinas, a pressão externa por parte de diversos actores internacionais, como o Japão, Malásia, Noruega e a União Europeia, desempenhou um papel importante na obtenção de um compromisso e na verificação do acordo. Também na Irlanda do Norte, o papel do Presidente Bill Clinton, e da pressão do governo dos EUA sobre as partes em conflito, foram determinantes para o desenlace do processo de paz. Outro caso em que a presença de actores internacionais foi decisivo foi El Salvador, onde as Nações Unidas, a União Europeia e os países da região, integrado no Grupo de Contadora, tiveram uma contribuição significativa no decurso do processo. De certa forma, estas lições já foram tidas em conta na forma como foi concebido o actual processo de negociação na Colômbia entre o governo presidido por Juan Manuel Santos e as FARC. Não só as negociações teriam lugar fora do território colombiano, numa primeira

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fase em Oslo, na Noruega, e na segunda, e, Havana, Cuba, como se definiram dois países acompanhantes para o processo, Venezuela e Chile, e dois país garantes, Cuba e Noruega. A importância de integrar a sociedade civil nos processos de negociação e na construção de paz Um processo de construção de paz é muito mais amplo que um processo de paz. Assim, a participação da sociedade civil é fundamental neste âmbito. A sua importância resulta da necessidade de garantir a sustentabilidade da paz, na medida em que um processo de paz, só é sustentável se for apropriado pela população (Mouly, 2011: 304). Para que a paz se consolide e ganhe raízes há que criar a paz entre vizinhos e no seio das comunidades. De acordo a Lederach (1997: 94), requer-se uma “circunscrição de paz”, ou seja, uma força popular de apoio. Como afirma Barnes (2005: 20): “Os processos de paz costumam ser incompletos e imperfeitos. Os conflitos não se transformam somente por acordos. [...] Se o público e a sociedade civil organizada foram excluídos do processo, ou creem que não se ocuparam das suas necessidades reais, são menos propensos a trabalhar activamente na sua aplicação. Sem um eleitorado amplo como base, há poucas salvaguardas contra aqueles que queiram fazer fracassar o acordo”.

Uma abordagem abrangente e sustentável para a paz requer necessariamente a participação de múltiplos actores, actividades e níveis de construção da paz (Lederach (1997: xvi). Nos casos estudados encontram-se alguns exemplos a seguir e erros a evitar, no que respeita à integração da sociedade civil no processo de negociação e construção da paz. Particularmente na Guatemala, foram estabelecidos mecanismos interessantes e frutíferos de integração da sociedade civil no processo, através da criação de uma Assembleia Permanente da Sociedade Civil, destinada a discutir as questões levantadas nas negociações e fornecer feedback à mesa de negociações. Este instrumento provou ser um modelo real para a participação dos cidadãos que poderia ser replicado (Fisas, 2010). O processo de paz em marcha na Colômbia suscita algumas questões e dúvidas relativamente a este tema. A participação e integração da sociedade civil foi, até ao momento, escassa. Apesar da organização de varias rondas de diálogo dos negociadores com vitimas do conflito em Havana e da retroalimentação da mesa de negociação com alguns documentos e relatórios produzidos por universidades em temas de paz, há uma percepção generalizada na Colômbia de um processo de paz à distância e de costas para a sociedade, factor que pode complicar a construção da paz no país.

Aprendizagens para a etapa pós-assinatura de um acordo de paz Como legitimar e implementar os acordos? Um acordo de paz não é um ponto final num conflito. Em geral, é um ponto de partida para um longo, exigente e difícil processo de construção da paz. Neste âmbito, um dos elementos fundamentais a serem abordados é legitimar política, institucional e socialmente Tempo Exterior / 30 (segunda etapa) - xaneiro/xuño 2015

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os processos de paz. Para que a paz ganhe raízes, se solidifique e se torne sustentável e duradoura, é determinante encontrar formas para fazê-lo. Diferentes mecanismos foram implementados nos casos analisados: na Irlanda do Norte, por exemplo, os acordos foram submetidos a um referendo, o que lhe permitiu conferir uma legitimidade adicional junto dos cidadãos e da sociedade. Em casos como Nepal e África do Sul, conformaram-se assembleias constituintes, que redigiram novas cartas magnas para os países e redesenharam o mapa político, de maneira a instituir novos sistemas políticos mais inclusivos, que respondessem às exigências dos acordos de paz. Ambos os métodos e instrumentos são válidos no sentido de legitimar os acordos e consolidar a paz. Nos casos em que o conflito armado está intimamente ligado com insuficiências e limitações do seu sistema político é conveniente e recomendável a conformação de uma Assembleia Constituinte. A Colômbia viveu esse processo na sequência dos acordos de paz dos anos 90 com o M-19, EPL, a PRT, Quintin Lame e a Corriente de Renovación Socialista. Actualmente, a opção por um referendo poderia ser suficiente. Neste campo, outra das lições colhidas na pesquisa é a importância de socializar os acordos, de modo transversal, entre a população. Este é um elemento fundamental para gerar aceitação e conferir legitimidade a um processo de paz aos olhos dos cidadãos. A Irlanda do Norte configura um exemplo a seguir nesta matéria, na medida em que colocou em prática mecanismos de divulgação, discussão e socialização intercomunitária dos acordos de paz, através de organizações criadas por ex-combatentes (Beristain, 2003). A importância de um desarmamento efectivo e os benefícios de uma verificação internacional dos acordos Outro elemento determinante para o período após a assinatura de um acordo de paz é o cumprimento dos pontos acordados. O espectro do regresso às armas ainda está presentes neste período, e, portanto, é essencial que se estabeleçam mecanismos eficazes de verificação. Neste âmbito, a efectividade do processo de desarmamento e recolha de armas dos grupos armados assume uma importância determinante para a sustentabilidade da paz num país. O fluxo e acessibilidade de armas, ainda que num contexto de paz, alimenta cenários de insegurança, contribuindo para uma reincidência da violência, seja de natureza política ou criminosa. O caso de El Salvador evidencia, a este nível, os riscos de um desarmamento deficiente. A disponibilidade de armas remanescentes da guerrilha foi um dos factores que contribuiu para gerar elevados níveis de insegurança na etapa de pós-conflito, catalisando a expansão de redes criminosas e gangs com uma vocação violenta (Paris, 2004: 126), que mitigaram fortemente os dividendos da paz no país. Seria politicamente prudente que a Colômbia tivesse em conta este risco e que adoptasse medidas para o prevenir. Adicionalmente, o facto de que o país enfrente problemas graves de narcotráfico exponencia este perigo e a exigência de adoptar medidas e estratégias para combatê-lo. Neste contexto, o estabelecimento de mecanismos internacionais de verificação dos acordos e do processo de desarmamento evidencia-se como uma das melhores práticas a seguir. Na maioria dos casos estudados, algum tipo de verificação internacional foi estabeleci-

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da. A ONU emerge como o actor mais recorrente neste campo, com uma grande experiência acumulada nesta área, tendo desempenhado um papel de supervisão em países como Nepal e El Salvador, e que incluiu, em casos como o Congo, Guatemala e Burundi, missões de paz. O envolvimento de actores internacionais terceiros tem várias vantagens: a participação da comunidade internacional funciona como uma maior garantia de cumprimento, na medida em que introduz uma dinâmica de neutralidade e independência que reduz os níveis de desconfiança das partes, solidificando e blindando, de alguma forma, o processo. De igual forma, possibilita uma fonte adicional de ajuda financeira, que se revela essencial, sobretudo em países com recursos limitados. A construção de paz e os processos de desarmamento têm custos, partilhá-los é benéfico. Neste sentido, o potencial da cooperação internacional é amplo, não apenas durante o processo de paz, mas no período pós-conflito. Em países como o Nepal, Irlanda do Norte e Filipinas, a comunidade internacional desempenhou um papel importante na reconstrução pós-bélica, apoiando actividades e programas de reintegração de combatentes, reconciliação, recuperação de infraestrutura e construção da paz desde a sociedade civil. Por esta razão, seria sensato que a Colômbia estruturasse um processo de verificação dos acordos com a participação da comunidade internacional, podendo envolver a actores com experiencia e credibilidade a este nível, como as Nações Unidas. Boas práticas e lições aprendidas no campo de desmobilização e reintegração dos combatentes O processo de desarmamento, desmobilização e reintegração (DDR) de combatentes constitui um dos principais desafios que se impõem a uma sociedade no período que se segue a assinatura de um acordo de paz. Neste contexto, o risco de reincidência da violência armada ou de transfiguração é sério e um processo de DDR mal realizado facilmente “empurra” a ex combatentes para a violência armada ou a para a ilegalidade. Para muitos dos combatentes de um grupo armado, a guerra tornou-se não só um trabalho, mas um modo de vida. Neste sentido, o desarmamento e desmobilização coloca um desafio profundo, não só a estes indivíduos, também à mesma sociedade: Como transformar as suas vidas? Como proceder e facilitar a sua transição para a paz? Que condições de emprego proporcionar? Vários mecanismos, instrumentos e abordagens foram adoptados nos casos estudados, com resultados e alcances diferentes. »» Programas públicos de ajuda à reinserção No campo do DDR, o aspecto mais determinante e o maior desafio que se impõe é a reintegração na sociedade. Neste contexto, o estabelecimento de programas públicos de ajuda à reinserção, tanto em termos sociais como económicos, e mesmo a nível psicológico, é fundamental. A paz também tem custos, mesmo que inferiores aos custos humanos e financeiros da guerra. Portanto, evidencia-se como uma boa prática a seguir a concessão de ajudas públicas que facilitem esta reinserção na vida civil. O estabelecimento de programas de capacitação educativa e técnica para ex combatentes revela-se de grande importância e utilidade a este nível, na medida em que confere Tempo Exterior / 30 (segunda etapa) - xaneiro/xuño 2015

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ferramentas para uma mais fácil inserção no mercado laboral, factor fundamental para que não exista una recaída em actividades violentas ou criminais. Nos casos da Indonésia e Guatemala, concederam-se terras aos desmobilizados para que as pudessem trabalhar, elemento que, tendo em conta o contexto social e a natureza eminentemente rural do conflito colombiano, poderiam configurar um exemplo a seguir no sentido da reintegração. De igual forma, o apoio psicológico a ex-combatentes e às vítimas do conflito revelase como essencial. A guerra deixa marcas e feridas profundas nos indivíduos, que podem não desaparecer até ao final das suas vidas e gerar uma propensão para a violência. Em muitos casos, a guerra não sai mais das suas cabeças e coração. Portanto, a construção da paz também passa por este processo de transformação e recuperação psicológica. »» Reintegração de combatentes na força pública Diversos dos casos estudados, como Filipinas, Sudão, El Salvador e Congo, revelam que a incorporação de ex-combatentes de grupos armados ilegais na força pública não só é uma possibilidade viável, como constitui um mecanismo válido e eficaz de reintegração. Permite um aproveitamento e “reciclagem” destes soldados, sob um comando do Estado, distanciando-os simultaneamente de opções criminais. Estes processos de reincorporação seguiram diversos métodos que dependeram do contexto de cada conflito. Passaram geralmente por um período de treino e formação especial aos desmobilizados pelas forças públicas, de maneira a integrá-los e adaptá-los a um novo contexto e estrutura. Em países como as Filipinas, Congo e El Salvador, após o processo de paz, refundaram-se as forças armadas, criando novos organismos e instituições. Este processo tem algumas vantagens: permite virar a página e criar uma nova etapa no país dando à sociedade um sinal claro de mudança, sobretudo, em cenários onde as forças de segurança foram responsáveis por violência contra a população civil e por violações aos direitos humanos. Estas reestruturações institucionais foram acompanhadas frequentemente pela mudança da doutrina de segurança das Forças Armadas, renunciando assim, a concepções contra-insurgentes, em detrimento de noções de segurança direcionadas para tempos de paz. A aplicação deste tipo de mecanismos ao caso colombiano não é simples. Na verdade, há uma forte resistência por parte das Forças Armadas relativamente a esta possibilidade. De igual forma, tanto no caso das FARC, como do ELN, não houve exigências ou pedidos neste sentido. Não obstante, não seria desprovido de sentido a incorporação de alguns combatentes a organismos de inteligência e segurança, como ocorreu no passado com elementos do EPL, ou a criação de novas forças de segurança para zonas rurais, que integrariam ex combatentes da guerrilha, sob um comando do Exército Nacional. Os desafios da reconciliação: a necessidade de um ponto medio Um dos maiores desafios da construção da paz após a obtenção de um acordo é encontrar caminhos e instrumentos para a reconciliação, e formas de sarar as feridas que anos de guerra deixaram entre vários sectores da sociedade. Este processo é extremamente difícil e exigente, mas é uma condição indispensável para que uma paz duradoura e sustentável se consolide.

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Neste âmbito, uma sociedade enfrenta-se a diversos dilemas e tensões: por um lado, há exigências de aplicação de justiça, assim como de atenção e reparação as vítimas, que passam, pela sanção aos vitimários, responsáveis por violações aos direitos humanos e ao direito internacional humanitário; por outro, há a necessidade de virar a página e perdoar, de forma a poder construir-se a paz. Como afirma McGuiness (2014), é importante ter em conta o passado e lidar com ele, mas este não deve ser um obstáculo para construir o futuro. A construção da paz é a edificação de novos países. Neste sentido, o desafio consiste em encontrar um ponto médio e de equilíbrio entre os diferentes interesses e perspectivas em jogo: por um lado, conseguir satisfazer os direitos das vítimas à verdade, justiça e reparação; por outro, lidar com os interesses dos grupos armados na sua conversão em actores legais e civis, o que pode implicar que os negociadores e a sociedade aceitem a ideia de reduzir penas ou amnistiar aos vitimários. Nos diversos casos estudados, encontraram-se formas e mecanismos distintos para abordar política e juridicamente este tema. O exemplo da África do Sul revela-se como paradigmático a este nível. Neste país fez-se uma aposta clara e explícita pela reconciliação, em detrimento de uma justiça punitiva, mediante a conformação de uma Comissão para a Verdade e a Reconciliação. Esta colocou em prática um sistema através do qual os vitimários contavam e assumiam as suas violações em audiências públicas frente às vítimas, em troca de perdão. Esta experiencia foi inovadora e obteve resultados bastante positivos, convertendo-se num referente para todo o mundo, que já foi replicado em vários cenários de conflito. O principal ensinamento desta experiencia é que a aplicação de formas convencionais de justiça não configura necessariamente o melhor caminho para a reconciliação nacional, elemento que a Colômbia poderia ter em consideração. Como defende o Pe. Francisco De Roux (2013), a reconciliação implica as vezes “perdoar o imperdoável”, a fim de um bem maior que é construir um novo país em paz. Para que possa abrir-se o caminho para a reconciliação, a justiça deve ser colocada numa perspectiva mais ampla que a simples punição dos criminosos. Como afirma Shriver (1999), uma justiça restaurativa tem maior utilidade, ao ser composta por duas dimensões de perdão – a abdicação da vingança e a humanização mútua. Romper os ciclos de vingança e contra-vingança é fundamental para a consolidação de um país em paz. Nesta medida, a conformação de uma comissão de verdade e reconciliação na Colômbia, adaptada ao seu contexto específico, pode constituir um bom caminho a seguir. Estes instrumentos ajudam a traçar rotas para a reconciliação nacional, ao integrar em simultâneo vítimas e vitimários num mesmo processo, permitindo conhecer a verdade e os factos de um conflito, como forma de conseguir o trânsito para o perdão e a recuperação psicossocial. Efectivamente, colocar em marcha mecanismos de justiça e verdade tem uma função terapêutica e catártica em sociedades que vivenciaram experiencias dolorosas de conflito. O acesso à verdade ajuda a sarar as feridas. Para que seja possível uma reconciliação, os familiares das vítimas necessitam saber que passou com os seus seres queridos, qual é o paradeiro dos desaparecidos e onde se encontram os corpos (Beristain, 2002). O esquecimento não garante uma verdadeira paz. No entanto, se o perdão é importante, no sentido da construção de uma sociedade em paz, é igualmente necessário evitar o outro extremo, a impunidade. Neste âmbito, os Tempo Exterior / 30 (segunda etapa) - xaneiro/xuño 2015

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casos do Burundi e Guatemala configuram exemplos a não seguir. Nestes países, o ambiente de impunidade que se fez sentir desde os acordos de paz é esmagador, e impede, em grande medida, a construção de uma verdadeira paz. Neste último país, cuja realidade social demonstra algumas semelhanças com a colombiana, as estruturas sociais, políticas, militares, e mesmo culturais da contrainsurgência, não foram desmanteladas (Peacock y Beltrán, 2003), evidenciando os riscos de perpetuação de dinâmicas de conflito num contexto de paz formal. Por conseguinte, no caso de violações graves dos direitos humanos e do direito internacional humanitário, a amnistia total, como ocorreu nas Filipinas e nos processos de paz da Colômbia nos anos noventa, não parece ser a solução mais adequada. Além do mais, ao haver ratificado o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, a Colômbia deve ajustar-se a uma série de parâmetros internacionais, que estabelecem um conjunto de obrigações mínimas de garantia às vítimas, e de penalização de casos de crimes de guerra e de lesa humanidade. A importância de estabelecer mecanismos regionalmente diferenciados de construção de paz Para que a paz seja duradoura e sustentável, a sua construção deve enraizar-se no mesmo solo em que o conflito se desenvolveu (Lederach, 1997: 107) e só se conseguirá mediante a participação dos protagonistas e vítimas da violência em cada território e localidade do conflito. A paz não se constrói só desde a centralidade do Estado, dos actores armados e dos processos de negociação a nível nacional. Passa pelas bases, a nível local e regional, pelas comunidades que vivenciaram a violência. A construção da paz, aqui é entendida como a exploração e desenvolvimento desde o quotidiano de novas formas de relação e inter-relacao, que superem a polarização do conflito armado e construam alternativas à violência, gerando inclusão em termos sociais, económicos, políticos e culturais (Barreto Henriques, 2012: 386). Portanto, é fundamental que as estratégias de construção de paz e de implementação dos acordos não sejam exclusivamente verticais, e tomem em consideração as especificidades das regiões e territórios que experimentaram o conflito armado. A descentralização das estratégias de construção de paz é vital para garantir a sustentabilidade deste processo. Nalguns dos casos estudados, como as Filipinas, África do Sul e Sudão, verificam-se algumas boas práticas neste âmbito, ao se haver colocado em prática abordagens territoriais de construção de paz e mecanismos de descentralização da implementação dos acordos. Na África do Sul, por exemplo, formaram-se comissões regionais e locais de paz, compostas por actores da sociedade civil, destinadas a debater os temas da agenda de negociação, desde as necessidades específicas das regiões (Fisas, 2010: 10). Apesar de que a natureza destes conflitos seja bastante diferente da colombiana, esta lição é fundamental para a Colômbia. A matriz regionalmente diferenciada do conflito colombiano exige que alguma forma de descentralização da implementação dos acordos seja posta em prática, e que mecanismos e estratégias de construção de paz desde um foco territorial sejam implementados. É fundamental que os acordos “baixem” às regiões e às comunidades que viveram décadas de violência. Uma política ou processo de paz na Colômbia que não

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tenham em conta a variável territorial e as especificidades regionais, está fadado ao fracasso ou a obter impactos mitigados (Barreto Henriques, 2014: 185). Um acordo de paz não é um ponto final, é um ponto de partida Varias das experiencias analisadas nesta investigação mostraram-nos que a etapa que se segue à assinatura de um acordo traz tantos desafios políticos e sociais a um país como o próprio processo de paz e o conflito armado. Um processo de negociação e um acordo de paz têm um alcance limitado. Permitem um primeiro passo fundamental e indispensável para a paz: o calar das armas dos grupos armados, mas não necessariamente eliminam os germes da violência e as raízes da conflitualidade. Incidem somente sobre uma das dimensões de um conflito, os aparatos armados dos grupos ilegais e os seus comandos políticos. Portanto, não são a garantia de um país verdadeiramente pacificado, mas de uma paz frágil, limitada e imperfeita. Não geram uma paz sustentável e duradoura, que atravesse todos os níveis e esferas das relações sociais (Barreto Henriques, 2014: 182). Em vários dos casos estudados, como o Sudão, El Salvador, Guatemala e Irlanda do Norte, à assinatura do acordo de paz sucedeu-se uma etapa de recrudescimento ou transfiguração da violência armada. Na Irlanda do Norte cessaram as hostilidades dos grupos armados, mas a segregação, as tensões intercomunitárias e a violência sectária de base persistiram. No Sudão verificaram-se continuas violações ao acordo de paz. Na Guatemala, o não desmantelamento das estruturas contra-insurgentes e a debilidade na aplicação dos mecanismos de justiça traduziram-se numa perpetuação da violência paramilitar sobre diversos sectores da sociedade (Peacock, Beltrán, 2003). Em El Salvador verificou-se uma transfiguração da natureza da violência no país; a uma guerra de frentes sucedeu-se uma “guerra de todas as esquinas” (Vincenti, 2008), evidenciando-se, paradoxalmente, um crescimento significativo da violência e das taxas de homicídio num período de paz formal e de pós-conflito, devido à afirmação do fenómeno das “maras” e da criminalidade urbana. Todos estes casos põem em evidência os imensos desafios e riscos de uma etapa de pós-conflito. A paz negativa não implica necessariamente uma paz positiva. A construção de uma paz sustentável e duradoura envolve mudanças profundas na sociedade, que levam anos, se não décadas, para executar. Neste sentido, pode-se dizer que um acordo de paz é um ponto de partida, não um ponto final para um país que viveu um conflito armado. Os processos de paz não terminam com a assinatura de um acordo, devem seguir avançando no período posterior. Há sempre muitos temas “pendentes” num pós-conflito, que exigem estratégias abrangentes e multidimensionais de construção da paz. A Colômbia deve preparar-se para evitar estes cenários, procurando incidir sobre as causas da violência. Uma “centro-americanização” do pós-conflito é um risco sério para o país, tendo em conta os graves problemas de criminalidade e tráfico de drogas de que padece a Colômbia. Além disso, o fenómeno das BACRIM, como as Águilas Negras, os Rastrojos e os Urabeños, que sucedeu ao processo formal de desmobilização das AUC, revela em grande medida esta realidade, e constitui um alerta para os perigos e os riscos de um cenário pósnegociação (Barreto Henriques, 2014: 182). Tempo Exterior / 30 (segunda etapa) - xaneiro/xuño 2015

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Construir paz é construir sociedade Uma importante lição política que os vários estudos de caso evidenciaram é que a paz não se materializa como um “café instantâneo” no dia em que se assina um acordo entre os grupos armados. A construção de uma paz duradoura, sustentável e positiva implica um processo mais longo, que requer a participação de muitos actores da sociedade, para além do Estado e dos actores armados. Construir a paz num país é um processo complexo, longo e multidimensional. Implica frequentemente reformas estruturais no sistema político, institucional e socioeconómico, mas passa igualmente por todos os sectores da população. Os processos de transformação operam a diferentes níveis: passam pela alteração das estruturas e das pessoas. Em última instancia, a paz passa pela reestruturação das relações sociais e pela transformação dos códigos culturais que sustentam e legitimam a violência. A transformação da sociedade é também o resultado indireto da transformação dos indivíduos, e não apenas da reestruturação institucional e das reformas sociais e políticas (Mitchell, 2002: 12). Todos os actores sociais são veículos fundamentais de estratégias e processos de paz. Neste sentido, construir paz é construir sociedade, é construir um novo país. Neste sentido, evidencia-se que a construção da paz na Colômbia não passará exclusivamente pelas políticas macro definidas desde a Casa de Nariño, em Bogotá. Implica um “desarmamento” social, político, económico e cultural da sociedade colombiana (Barreto Henriques, 2014: 183). É um processo paulatino e progressivo que se joga a varias escalas e niveles, e que implica a participação ampla da população. Todos os actores políticos, económicos e sociais do país, desde os partidos às universidades, dos empresários às ONG, dos governos departamentais às comunidades de base, dos indivíduos às organizações da comunidade internacional, terão um papel a desempenhar e uma contribuição a dar à construção de uma Colômbia em paz.

Conclusão As diferentes experiências e casos analisados no âmbito deste projecto mostram que existem diferentes caminhos para chegar à paz e que este é um processo multidimensional e de longo prazo, que é jogado a vários níveis e deve invocar e envolver diferentes sectores políticos e sociais de um país. Poem em evidencia também que são múltiplos os desafios, riscos e dilemas que se colocam a uma nação para superar a violência, tanto no decurso de um processo de negociação, como na fase de pós-conflito. A assinatura de um acordo de paz fecha uma etapa importante no caminho para a paz, mas abre outras questões, desafios e problemas, tais como o desarmamento, desmobilização e reintegração dos combatentes, apoio e reparação às vítimas, e a procura da reconciliação nacional. A Colômbia encontra-se face a uma oportunidade histórica para pôr fim a cinco décadas de conflito armado, mas também para corrigir algumas das deficiências estruturais e dívidas históricas com amplos sectores sociais e territórios do país. A construção de uma paz duradoura, sustentável positiva será um processo longo e exigente, que implica “democratizar a sua democracia”, fortalecer as instituições, o gerar um

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desenvolvimento humano e uma presença integral do Estado em todo o território nacional, e transformar uma cultura de violência numa cultura de paz. Esse caminho deve atravessá-lo a sociedade colombiana como um todo, construindo uma nova nação em paz. Neste processo pode evitar os erros do passado e aprender com as experiências de outros países que passaram por situações e contextos análogos de violência e mostraram que a paz é possível.

Miguel Barreto Henriques é Licenciado em Relações Internacionais e doutorado em “Política Internacional e Resolução de Conflitos” pela Universidade de Coimbra, em Portugal. Presentemente é professor associado do Departamento de Relações Internacionais da Universidad de Bogotá Jorge Tadeo Lozano, e director do Observatorio de Construcción de Paz.

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