Os dilemas do restauro da pintura eclética nas igrejas barrocas paulistas

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CICOP BRASIL 2014 XII CONGRESSO INTERNACIONAL DE REABILITAÇÃO DO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E EDIFICADO A Dimensão do Cotidiano do Patrimônio e os Desafios para sua Preservação

BAURU-SÃO PAULO 21 A 24 DE OUTUBRO DE 2014 www.cicop2014.com.br Campus UNESP

ROSIO FERNÁNDEZ BACA SALCEDO SAMIR HERNANDES TENÓRIO GOMES VLADIMIR BENINCASA

XII CONGRESSO INTERNACIONAL DE REABILITAÇÃO DO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO E EDIFICADO. DIMENSÃO COTIDIANA DO PATRIMÔNIO E DESAFIOS PARA A SUA PRESERVAÇÃO

1ª Edição

Bauru UNESP - FAAC 2014

Editor: FAAC-Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicações-UNESP 1ª edição Ano publicação 2014 ISBN 978-85-99679-62-3 Número de páginas: 1923 Organização: Rosio Fernández Baca Salcedo, Samir Hernandes Tenório Gomes Vladimir Benincasa Diagramação: Paula Valéria Coiado Chamma www.cicop.com

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40.

OS DILEMAS DO RESTAURO DA PINTURA ECLÉTICA NAS IGREJAS BARROCAS PAULISTAS ROSADA, Mateus1, BORTOLUCCI, Maria Ângela P. C. S.2 1: Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, Brasil e-mail: [email protected] 2: Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, Brasil e-mail: [email protected]

RESUMO Este artigo trata de u àdosàdesdo a e tosàdaàpes uisaàdeàdouto adoà á uitetu aà˃eligiosaà oàEstadoàdeà“ oà Paulo (1600,à a alisa doà uma característica peculiar dos templos do Estado de São Paulo construídos no período: a decoração parietal executada em parte dessas igrejas no período eclético. Observa que fatalmente uma parte das antigas igrejas barrocas ou rococós que se mantiveram, foi adaptada ao novo gosto eclético no início do século XX, período em que um terço dos exemplares paulistas do período recebeu pinturas decorativas com técnica estêncil em suas paredes. Trata, por fim, de intervenções de restauro em alguns desses exemplares e questiona as opções por se manter a pintura eclética ou por suprimi-la, geralmente visando uma maior unidade do estilo, confrontando essas posturas às cartas patrimoniais. O trabalho ressalta ainda a importância de se aprofundar os estudos desses templos para ampliar o entendimento e garantir a preservação de tais bens. PALAVRAS CHAVE: Igreja; Arquitetura Religiosa; São Paulo (Estado); Barroco; Ecletismo. INTRODUÇÃO Para se ter a completa compreensão de toda a arquitetura barroca e rococó produzida pelos paulistas, seria necessário se estudar tudo que foi por eles construído durante o período em que esses padrões artísticos vigoraram em nossas construções. Isso significa, em termos temporais, de levantar a edilícia feita em praticamente 250 anos: desde o século XVII até meados do século XIX, e, em termos de território, de abranger toda a área que até o início do século XVIII fazia parte da primitiva Capitania de São Paulo, o que inclui vários estados brasileiros. Dessa maneira a pesquisa se tornaria demasiado ampla, dado o número de edificações que seriam analisadas. Por esse motivo, restringimos o recorte espacial dentro das divisas atuais do Estado de São Paulo e nos limitamos à arquitetura religiosa urbana remanescente no Estado de São Paulo, edificada entre 1600 e 1870. Em levantamento realizado em livros, guias turísticos e sites religiosos e dos municípios paulistas, foi-nos possível identificar 82 igrejas remanescentes e que não sofreram descaracterizações, localizadas em 57 municípios. Nessas localidades se encontram os exemplares que representam o que os estudiosos, como Germain Bazin (1955), chamaram de Ba o oà Paulista ,à e o aà oà te oà oà te haà sidoà uitoà e à a eitoà e à estudosà poste io esà ET)EL,à ;à TIRAPELI, 2003), por não se tratar de uma escola que criou um estilo próprio, mas sim de uma classificação estritamente toponímica que os agregou. Ainda assim, a arquitetura religiosa pré-republicana no Estado de São Paulo possui algumas características peculiares e únicas, uma delas, a que vamos destacar neste breve estudo, é a pintura parietal decorativa presente em várias de suas igrejas, característica presente quase que exclusivamente neste Estado e que não está atrelada ao barroco nem ao rococó, mas ao ecletismo, movimento arquitetônico que teve muita força nas terras paulistas. As igrejas do período analisado, de um modo geral, apresentavam pinturas, mas sempre aplicadas na talha e nos elementos de madeira. Em raríssimos exemplares encontramos policromia parietal e, quando ela ocorre, é sobre madeira, e não sobre reboco. Desse modo, as igrejas do período apresentam-se, via de regra, com seus interiores brancos e com altares, púlpitos e forros, coloridos. A peculiaridade de São Paulo reside nas pinturas em estêncil aplicadas nas paredes de parte de seus templos, nos marmorizados (faux marble) e amadeirados utilizando cores

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em tons mais queimados e em padrões tono sul tono, bastante diferente das intervenções pictóricas barrocas, de fortes contrastes e cores vivas, quase sempre dominadas pelas primárias. As pinturas murais que tratamos em São Paulo foram executadas entre 1890 e 1940, não são barrocas, mas modificaram os ambientes em que se inseriram e já foram assimiladas como parte das igrejas em que se encontram, tornando-se uma característica a mais a ser considerada na análise dos templos paulistas. O intuito deste texto é rever posturas de intervenção e avaliar se não é legítimo manter tais ornamentações pictóricas, incorporadas aos interiores dos templos há setenta, cem anos. 1. A PINTURA ECLÉTICA NOS INTERIORES BARROCOS E ROCOCÓS Atualmente, restam 82 templos no Estado de São Paulo que, construídos até a década de 1870, permanecem sem grandes alterações na planta e nos retábulos. Também não é pequeno o número de igrejas dentro desse grupo que sofreram algum tipo de melhoria para se adaptar aos novos tempos do ecletismo, em especial de pintura decorativa interna. Os padrões repetitivos realizados com estêncil (imitando papéis de parede) e os marmorizados, tão em voga em fins do século XIX e início do XX, foram aplicados em inúmeras construções civis, assim como no interior dos edifícios religiosos. Outras, que ainda não possuíam pintura de forro à época de sua inauguração, receberam imagens em seus tetos, executadas já em padrões de pintura acadêmica, neoclássica. Entre essas igrejas, 38 delas, quase a metade, ostentam algum tipo de decoração pictórica, sendo que em apenas onze exemplares o padrão é barroco ou rococó, realizado até a década de 1810. São elas:

1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11.

Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário, em Embu, Igreja Matriz de Nossa Senhora da Candelária, em Itu, Igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Mogi das Cruzes, Igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Mogi das Cruzes, Capela de São Miguel Arcanjo, em São Paulo, Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte, em São Paulo, Igreja de Santo Antônio, em São Paulo, Igreja Matriz de Nossa Senhora do Carmo, em São Paulo, Capela do Sítio de Santo Antônio, em São Roque, Igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Itu, Igreja das Chagas do Seráfico Pai São Francisco (Ordem Terceira de São Francisco), em São Paulo.

Nos dois últimos exemplos, ainda, na Igreja do Carmo de Itu e na Ordem Terceira de São Francisco de São Paulo, foram feitas intervenções no século XX e aos painéis rococós das mesmas se somaram planos marmorizados, falsas madeiras e pedras fingidas nas paredes.

Fig.01: Capela-mor

Santuário do Senhor Bom Jesus do

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Matosinhos (Igreja de São Benedito), em Mogi das Cruzes, com retábulo rococó e pintura eclética. Foto: Mateus Rosada, 2014.

Dentro do universo que analisamos, encontramos 29 templos que receberam decoração pictórica de padrão eclético (incluem-se aqui o Carmo de Itu e a Ordem Terceira de São Francisco), realizados entre 1890 e 1940, seja em seus retábulos, forros e/ou paredes. Isso representa 35%, mais um terço do total, número bastante expressivo. E, com certeza, muitos dos templos coloniais e imperiais demolidos ao longo do século XX também possuíam essas características, como é o caso, por exemplo, da antiga Sé paulistana, cujo forro da nave possuía uma pintura de Almeida Júnior (1850-1899) (BIZZOTTO, 2010, s.p.). Fora do Estado de São Paulo, encontramos esse mesmo tipo de pintura interna em uma quantidade muito mais reduzida de igrejas. Como exemplo de outros estados, temos a Catedral de Florianópolis (SC), a Igreja do Carmo de Campos (RJ) (SALIM, 2009, p. 206-08), a Igreja de Nossa Senhora dos Remédios de Parati (RJ) (ETZEL, 1974, p. 145) e a Igreja Matriz Sagrado Coração de Jesus de Laranjeiras (SE). Há, certamente, outros exemplares com acabamento semelhante nos estados do Sul do Brasil, onde a imigração também foi mais maciça, mas em número bem menor, o que faz dessa conformação de igrejas com talha barroca ou rococó e pintura decorativa eclética uma característica muito mais presente em território paulista. Em todo o Estado, possuem as características mencionadas os seguintes edifícios religiosos: 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24. 25. 26. 27. 28. 29.

Basílica Velha de Nossa Senhora Aparecida, em Aparecida, Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, em Atibaia, Igreja Matriz de São João Batista, em Atibaia, Igreja Matriz do Bom Jesus do Livramento, em Bananal, Santuário do Bom Jesus dos Perdões, em Bom Jesus dos Perdões, Capela da Santa Cruz, em Campinas (no retábulo), Catedral Metropolitana de Nossa Senhora da Conceição, em Campinas (na Capela do Santíssimo), Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em Cunha, Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bonsucesso, em Guarulhos, Basílica Santuário do Bom Jesus do Iguape, em Iguape, Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Iguape, Igreja Matriz de Nossa Senhora da Ajuda, em Ilhabela, Igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Itu, Igreja de Santa Rita, em Itu, Igreja de Bom Jesus, em Itu, Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte e Assunção, em Limeira, Igreja Matriz de Santa Cruz (Capela do Ribeirão, distrito de Taiaçupeba), em Mogi das Cruzes, Santuário do Senhor Bom Jesus do Matosinhos (Igreja de São Benedito), em Mogi das Cruzes, Igreja Matriz de Santo Antônio, em Paraibuna, Igreja de São José da Vila Real, em Pindamonhangaba, Igreja Matriz de Santo Antônio da Cachoeira, em Piracaia, Igreja Matriz de Nossa Senhora Mãe dos Homens, em Porto Feliz, Igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Santos (no retábulo), Igreja do Convento de Santo Antônio do Valongo, em Santos, Igreja de São Benedito, em São José dos Campos (no retábulo), Igreja de São Francisco, em São Paulo, Igreja das Chagas do Seráfico Pai São Francisco (Ordem Terceira de São Francisco), em São Paulo, Igreja de São Gonçalo Garcia, em São Paulo, Santuário do Bom Jesus, em Tremembé.

É provável que o número de igrejas com pinturas decorativas realizadas no século XX seja ainda maior, pois muitas repinturas podem ter escondido as camadas precedentes. O que se observa é que, como esses edifícios permanecem em constante uso, recebem mais manutenção e são, com isso, modificados aos poucos. Com o passar dos anos, muitas das pinturas desses templos, que já foram executadas a, no mínimo, setenta anos (algumas são mais que centenárias), passaram a apresentar sinais de desgaste, conferindo aos espaços um aspecto desagradável. Na tentativa de manter ou renovar esse aspecto, algumas igrejas passaram por processos

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de restauração ou de repintura, apagando parte de suas decorações pictóricas do período do ecletismo. Isso foi uitoà o u à eà à u à fatoà ueà o ti uaà o o e do.à “eà o se a osàosà e e pla esà et atadosà oà li oà Ig ejasà Paulistas: Barroco e ˃o o ,àdeàPe i alàTi apelià ,àoà aio àle a ta e toàfeitoàat àhojeà oàEstado,à e e osà que, transcorridos 11 anos desde a publicação, pelo menos três daquelas igrejas já sofreram supressão de pinturas ecléticas. Tal fato decorre de três motivos principais. O primeiro é a falta de conhecimento das comunidades e párocos sobre a possibilidade do restauro do bem que, sem acompanhamento técnico, acarreta na simples repintura do mesmo, cobrindo desenhos até então existentes. O segundo é a falta de recursos das comunidades para recuperar/reconstituir as pinturas. E o terceiro e mais preocupante é o da opção de equipes de restauro, com pessoal especializado, em tentar retornar a decoração do templo em sua composição mais antiga ou buscar uma unidade de estilo, geralmente visando o original, barroco, e muitas vezes removendo camadas pictóricas decorativas que, assim, não poderão mais ser recuperadas. Um resultado destas ações é a descaracterização das igrejas, alteradas em seu aspecto interno e, em casos como esses, empobrecidas em sua decoração, em boa parte das vezes, em detrimento de uma unidade estilística que talvez esses templos nunca tenham tido. Há tempos que a disciplina de restauro dedica-se a evidenciar as marcas que contam a história dos edifícios e não apenas fazê-lo voltar ao seu aspecto original. Segundo Cesare Brandi (1906-1988), cuja abordagem do restauro é uma das mais seguidas até os dias de hoje, mais do que analisar a obra e seu contexto, o restaurador deve fazer a análise crítica da mesma, o que significa compreendê-la profundamente e interpretá-la para, apenas depois disso, intervir. Para ele: O restauro é um ato crítico, dirigido ao reconhecimento da obra de arte (sem o que a restauração não é o que deve ser); voltado à reconstituição do te toà aut ti oà daà o a;à ate toà aoà juízoà deà alo à e ess ioà pa aà supe a ,à f e teà aoà p o le aà espe ífi oà dasà adiç es,à aà dial ti aà dasà duasà instâncias, a histórica e a estética (CARBONARA, 2004, p. 12).

Note-se que a forma de conhecimento do bem histórico a que Brandi se refere distancia-se bastante da compreensão imaginada quase uma centena de anos antes por Viollet-le-Duc (1814-1879), um dos primeiros pensadores na área. Este último procurava perceber todos os traços do estilo para complementar a obra da forma que mais se aproximasse da sua concepção original. Ao contrário, o primeiro busca um conhecimento mais profundo, de entender a essência da obra artística (e arquitetônica, por conseguinte) e contextualizá-la no ambiente em que ela se insere, resultando em uma postura crítica do restaurador e embasada em questões mais filosóficas de autenticidade, ambiência e valor estético, em que o aspecto original do bem não tem necessariamente papel primordial. Ao mesmo tempo em que propõe uma ação intervencionista, Brandi prega que se respeite a história do monumento e as características da obra, propondo um uso racional e adequado para as necessidades contemporâneas. No caso de edificações, o estudo da documentação sobre a edificação e a análise da própria matéria da construção são elementos que auxiliam na intervenção. O reconhecimento de cronologias arquitetônicas requer avaliações múltiplas e imbricadas. No aspecto da análise histórica, contam os documentos textuais e iconográficos (sempre raros, escassos), como também o entendimento das alterações estruturais, morfológicas, programáticas e ambientais havidas ao longo da vida dos edifícios, e que nem sempre são tão evidentes e lógicas quanto se desejaria. Se as lacunas documentais são uma constância – bem o sabem os profissionais que atuam na área – grande utilidade e valia adquire o testemunho dado pelos próprios materiais constitutivos de um edifício estudado. A matéria é, por excelência, o suporte do tempo. Resta a nós interpretá-la corretamente (TIRELLO, 2006, p. 148).

No entanto, a técnica de se realizar a estratigrafia das paredes leva o restaurador a conhecer todas as pinturas que ela recebeu e a ter a tentação de recuperar a cor original, esquecendo-se que outras colorações que pintaram as paredes da edificação podem possuir valor histórico e artístico superior a ela. Afinal, fazer prospecções para e o he e à pote iaisà o esà o igi ais à o igi alà e à elaç oà aà u ?à aà ua do? à deà a ie tesà ouà fa hadasà deà edifícios antigos? É oportuno refletir um pouco sobre essa questão (TIRELLO, 2006-07, p. 149).

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O costume de se restaurar para que tudo volte a ser igual ao original ainda é muito arraigado em nossa cultura. Mas corre-se o risco de se fazer um restauro pictórico seguindo os preceitos de Viollet-le-Duc, descartando toda a discussão posterior ocorrida no campo do restauro e até mesmo as recomendações expressas nas cartas patrimoniais: As contribuições válidas de todas as épocas para a edificação do monumento devem ser respeitadas, visto que a unidade de estilo não é a finalidade a alcançar no curso de uma restauração (ICOMOS, 1964, artigo 11º). Ainda assim, o retorno ao padrão original é indicado nas cartilhas dos órgãos oficiais de preservação do patrimônio, como o IPHAN e o Condephaat (KÜHL in IAU, 2011, palestra, apresentação oral), como forma de se atingir uma melhor unidade de estilo. 2. ESTUDOS DE CASO: REPINTURAS DE IGREJAS BARROCAS PAULISTAS Vê-se que as regras de restauro deveriam, em tese, ser aplicadas em toda e qualquer obra arquitetônica, fosse ela moderna ou antiga, mas o que se vê, em geral, é que muitas restaurações são feitas sem o acompanhamento de profissionais habilitados e sem a devida análise do bem para que sejam tomadas decisões mais acertadas de repintura ou restauração. Analisaremos aqui, brevemente, o caso de três igrejas barrocas, alvo de nossa pesquisa de doutorado (Arquitetura Religiosa Barroca Paulista, iniciada em 2011), que sofreram intervenções que alteraram seu aspecto pictórico interno. 2.1. Igreja de Nossa Senhora do Carmo, em ItuA igreja ituana de Nossa Senhora do Carmo é um dos exemplares mais extraordinários da pintura colonial paulista, com o belíssimo teto da capela-mor de autoria do Padre Jesuíno do Monte Carmelo e um medalhão do Menino Jesus de Praga do mesmo autor. Foi construída em 1776-1782 e poucos anos após a inauguração recebeu as pinturas em todo o seu interior. Originalmente, os painéis do Padre Jesuíno revestiam todos os tetos e paredes da capela mor e da nave (ANDRADE, 1963, p. 131). O templo foi reformado em 1861, 1902, 1917-1918 e outra vez em 1947. As pinturas jesuínicas, parietais e de forro, eram feitas sobre tábuas que revestiam inclusive as paredes e que, danificadas, foram removidas e descartadas. Com isso, a maior parte da obra artística se perdeu, provavelmente na reforma de 1918.

Fig.02: Interior da Igreja do Carmo ituana na década de 1920, logo após receber a pintura de Adelmo Perdiza, e atualmente, com as paredes pintadas de branco. Fotos: Acervo do Arquivo Central da Província Carmelitana de santo Elias, c. 1920 / Mateus Rosada, 2013.

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Quatro anos mais tarde, a igreja recebeu nova pintura decorativa nas paredes e retábulos, feita por Adelmo Perdiza, que é a que se pode ver na fig.02, com imitação madeira nos retábulos, fingimento de alvenaria de pedra nas paredes, um barrado decorado e alguns medalhões com imagens na capela-mor. Posteriormente, em outra reforma, essa pintura foi recoberta por uma camada totalmente branca. Não sabemos o motivo da supressão dessa segunda decoração. É possível, inclusive, que tenha sido realizada por orientação do Condephaat, uma vez que não havia como recuperar as pinturas de Jesuíno do Monte Carmelo e a composição elaborada por Perdiza fosse de um estilo diferente do original. 3.2. Matriz Basílica de Nossa Senhora Aparecida (Basílica Velha), em Aparecida. A Basílica Velha de Aparecida é, segundo Percival Tirapelli (2003), o exemplar mais tardio do barroco no Estado de São Paulo: suas obras iniciaram-se em 1780, e houve reformas em 1845-52, 1878-80 e a última em 1882-88, quando se instalou o último altar (TIRAPELLI, 2003, p. 292-5). Sabe-se que a Basílica possui pelo menos três camadas pictóricas decorativas, uma de fins do século XIX, outra de 1904 (MELLO, 1904, s.p) e outra posterior a essa.

Fig.03: Aspecto da nave da Basílica Velha de Aparecida antes e depois da restauração. Fotos: Percival Tirapeli, 2003 / Mateus Rosada, 2014.

Em 2004, iniciou-se o processo de restauração da Basílica, que optou por recuperar os barrados imitando madeira da pintura de uma camada anterior, mas remover toda a pintura mural verde da nave, acima desse barrado, e provavelmente do mesmo período: Os trabalhos de restauração da Matriz-Basílica de Aparecida, mais conhecida como Basílica Velha estão a todo vapor, procurando devolver à Igreja suas feições originais.. (...) A recuperação da pintura original da Matriz Basílica foi a maior dificuldade encontrada pelos restauradores. Estava encoberta por diversas camadas de tinta aplicadas sem critério ao longo de sua história (...). Foram descobertas sete camadas diferentes de tinta até finalmente ser encontrada a pintura interna original (SOUZA, 2012).

No texto, a repórter deixa claro o senso comum de que a restauração deve sempre recuperar o original, desconsiderando o fato de que o padrão esverdeado das paredes da nave já estivesse incorporado à memória dos

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fiéis que visitam periodicamente a igreja. Tal postura pode ter sido uma opção da equipe de restauro, uma orientação do Condephaat, que vistoria as obras, ou mesmo uma imposição da reitoria do Santuário. Isso alterou consideravelmente o aspecto interior do templo e encobriu desenhos artísticos das paredes. É muito difícil saber qual foi a recepção dessa mudança pelos frequentadores, pois a cidade tem um fluxo muito sazonal de pessoas e os fiéis não vivem em Aparecida, apenas a visitam algumas vezes na vida. 2.3. Igreja de São Gonçalo Garcia, em São Paulo O Caso da Igreja de São Gonçalo é o mais dramático. O templo foi construído em 1757 e sofreu reparos em 1858 e em 1880-1881. Em 1878 foi feito novo frontispício. Em 1892 foram adquiridos os retábulos da Basílica de Aparecida, que tinha substituído os seus por novos, de mármore. A igreja, ao longo do tempo, ganhou uma cúpula, típica do neoclassicismo, e teve a frontaria adaptada ao padrão neocolonial numa reforma de 1935, quando recebeu o relógio da antiga Sé paulistana, demolida.

Fig.04: Igreja de São Gonçalo ostentando os painéis parietais com representações de cenas bíblicas em 1971 e atualmente, após a supressão das pinturas. Fotos: CONDEPHAAT, 1971 / Mateus Rosada, 2013.

No século XX, dentre as modificações, a São Gonçalo teve suas paredes internas decoradas com pinturas. Na capela-mor, fotos antigas (sem data) registram as pinturas acadêmicas de traço bastante elegante com ep ese taç esàdeà Jesusà o àasàC ia ças àeà daà“a taàCeia .àE à àfoiàto adaàpeloàPat i ioàNa io al,à asà em 1953, após uma vistoria do IPHAN, foi removida do Livro de Tombo Nacional, segundo parecer de José Wasth Rodrigues: Submetida [a Igreja de são Gonçalo] posteriormente a obras, aplicaram-lhe no interior da nave pilastras, altares laterais e ornatos nas janelas e sôbre o côrpo do altar-mór construíram a cúpola para efeito de iluminação. Há poucos anos, antes de ser tombada, reformaram-lhe a fachada com nôvo frontão e torre, e a face lateral com platibanda. Numerosas imagens, grandes e pequenas, cada uma com seu docel (sic), apoiam-seà âsà pilast asà ouà e t eà osà alta es,à u asà deà a aç o ,à outras imitando pedra (...). Tôda superfície lisa está decorada com pinturas nos mais variados estilos, que se entrechocam: ornatos, frisos, marmorizados, símbolos, painéis com cenas religiosas, etc. Tudo isso dá a igreja um aspecto caótico e de mau-gosto lamentáveis. (...) Não sendo a igreja notável pela antiguidade nem de significação histórica nem de valor artístico, voto pelo cancelamento de seu tombamento (1953, p. 42-3).

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Em 1971, a possibilidade da venda para uma empreiteira que a demoliria para fazer um edifício sensibilizou a população local, que solicitou seu tombamento ao CONDEPHAAT. Foi tombada em esfera estadual no ano seguinte. Como se pode ver na fala de José Wasth Rodrigues, por muito tempo o Serviço de Patrimônio Histórico cultivou como ideal de bem histórico aquele que mantinha suas características originais, vendo como menores os acréscimos e as obras artísticas posteriores ou que não mantivessem o mesmo estilo. Essa visão pejorativa ante as obras do ecletismo perdurou por anos e provavelmente esse sentimento foi responsável para que intervenções posteriores aos anos 1970 (e ao tombamento da igreja) apagassem as pinturas decorativas, para valorar os retábulos coloniais.

CONSIDERAÇÕES Em todas as épocas, desde o século XVII até o século XX, as igrejas passaram por transformações que as alteraram ou mesmo que as reconstruíram: as maneiristas passaram a barrocas, muitas barrocas sofreram reformas para se tornarem rococó. O homem sempre buscou manter a casa de Deus com o melhor que poderia dar e tentou atualizar o templo que frequentava. Não foi diferente no século XX: ao mesmo tempo em que velhas igrejas eram postas no chão para dar lugar a novos templos, outras recebiam um novo tratamento estilístico para se adequarem aos gostos vigentes, muitas delas seriam apenas repintadas, mas agora com motivos artísticos, florais, coloridos, e com painéis e telas, como era de bom grado no período eclético. Longe de ser uma intervenção que descaracterizou os antigos templos barrocos, a pintura decorativa do período eclético buscou realçá-los e conferirlhes um maior refinamento. Infelizmente, essa forma de decoração que se utiliza de moldes vazados não foi e não é vista por uma parte dos estudiosos como arte e por isso não se fizeram levantamentos, pois pouco interessava saber quem foram os artistas que adornaram o interior das igrejas no ecletismo. Desse modo, sabemos muito pouco atualmente sobre esses profissionais: quem foram, onde trabalharam e quais foram suas influências. Mas (poucos) estudos recentes têm resgatado as pinturas ecléticas, reconhecido seu status de arte e a necessidade de haver um aprofundamento das pesquisas nesse tema. Essas intervenções decorativas modificaram e enriqueceram os espaços litúrgicos e conferiu novas características a eles, característica essa, digamos, eminentemente paulista, pois fora do Estado de São Paulo há pouquíssimos exemplares de templos coloniais reconfigurados por pinturas do século XX. Assim, não se pode negar a importância dessas pinturas que são parte do saber dos paulistas e são intrínsecas às suas igrejas. Dos templos mencionados neste estudo, três deles já não possuem mais a mesma configuração pictórica: perderam sua decoração na nessa primeira década do século XXI, o que nos leva a crer que mais igrejas do período barroco tenham ostentado uma decoração parietal eclética no século passado, mas que devem ter sido apagadas por conta do desconhecimento de formas de recuperá-las ou por restauros que se preocuparam em tentar voltar à forma original o bem intervencionado, ao invés de respeitar todas as fases do edifício, como já apregoam as cartas patrimoniais desde Veneza, há cinquenta anos. Novos estudos devem ser feitos para que conheçamos e compreendamos que bens que possuímos, se fazem parte de um conjunto maior, e percebermos que são, sim, partes de um todo imenso, de um grande contexto histórico, e não apenas exemplares isolados. A preservação dessas igrejas, de suas pinturas, de sua arte, depende de conhecermos profundamente esses bens. REFERÊNCIAS ANDRADE, Mário de. Padre Jesuíno do Monte Carmelo. São Paulo, Martins, 1963. BAZIN, Germain. Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil. 2v. Rio de Janeiro: Record, 1956-58. BIZZOTTO, Ana Bizzotto. Museu Paulista fará restauro ao vivo de obra. O Estado de São Paulo. 16 out 2010. Disponível em , Acesso em: 15 mai. 2012. s.p. BRANDI, Cesare. Teoria da Restauração. Cotia: Ateliê editorial, 2004.

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CARBONARA. Apresentação. In: BRANDI, Cesare. Teoria da Restauração. Cotia: Ateliê Editorial, 2004. p. 9-18. ETZEL, Eduardo. O Barroco no Brasil: Psicologia – Remanescentes em São Paulo, Goiás, Mato Grosso, Paraná, santa Catarina, Rio Grande do Sul. 2 ed. São Paulo: Melhoramentos, Edusp, 1974. IAU-USP. Instituto de Arquitetura e Urbanismo. Mesa Redonda – Patrimônio Cultural. Com a presença de Beatriz Mugayar Kühl e Ana Lúcia Cerávolo. São Carlos, IAU, 19 out 2011. ICOMOS. Conselho Internacional de Monumentos e Sítios Históricos. Carta de Veneza. II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos. Veneza: ICOMOS, mai. 1964. SOUZA, Marinella. Restauração da Basílica Velha entra na fase final em Aparecida. O Vale. 11 nov. 2012. Disponível em: . Acesso em: 15 mai. 2013. MELLO, José Marcondes Homem de. Coroação de Nossa Senhora Apparecida. São Paulo: Duprat, 1904. RODRIGUES, José Wasth. Parecer. In: SÃO PAULO (ESTADO). Secretaria de Estado da Cultura. Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo. Processo 1179/71 – Tombamento da Igreja de São Gonçalo, São Paulo. São Paulo: CONDEPHAAT, 1971. f. 41-42v. SALIM, Alex. Arte Barroca Brasileira. São Paulo: Decor, 2009. SÃO PAULO (ESTADO). Secretaria de Estado da Cultura. Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo. Processo 1179/71 – Tombamento da Igreja de São Gonçalo, São Paulo. São Paulo: CONDEPHAAT, 1971. TIRAPELI, Percival. Igrejas Paulistas: Barroco e Rococó. São Paulo: Imprensa Oficial, Edunesp, 2003. TIRELLO, Regina Andrade. A Arqueologia da Arquitetura: Um Modo de Entender e Conservar Edifícios Históricos. Revista CPC. São Paulo, n. 3, p. 145-165, nov. 2006/abr. 2007.

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