OS DOIS CAMINHOS QUE LEVAM AO HOLISMO \"MODERADO\" DE QUINE

July 12, 2017 | Autor: Araceli Velloso | Categoria: Semantics, Wittgenstein, Willard Van Orman Quine, Phylosophy of Logic
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OS DOIS CAMINHOS QUE LEVAM AO HOLISMO "MODERADO" DE QUINE Profª Drª Araceli Rosich Soares Velloso (UFG)

Resumo Embora muito discutida, a questão sobre as razões que o filósofo americano W. V. O. Quine teria tido para subscrever, em diferentes pontos de sua obra, uma tese semântica holista porém “moderada”, ainda parece suscitar grandes debates. No presente artigo, pretendo discutir duas diferentes vias que teriam levado o citado filósofo a formular as suas teses holistas. Ao longo desse debate, apresentarei as razões que o levaram a percorrer ambos os caminhos: basicamente, um conflito com seu amigo e mentor – Carnap – a respeito de uma tese outrora subscrita por ambos, a tese extensionalista. Indicarei com brevidade a distinção dos rumos tomados pelos dois filósofos. Em seguida, procurarei mostrar como os dois caminhos percorridos por Quine para chegar ao holismo semântico se complementam, bem como mostrar que eles acabam por trazer novas complicações para o filósofo, diferentes daquelas que ele havia enfrentado para chegar a essa posição.

Abstract Although a great deal of work has centered around establishing why Quine has subscribed, in different periods of his development, to the thesis of meaning holism, even in its moderate version, it is still a quite open and polemical subject. In this paper I will propose two different routes that have lead Quine to formulate his holistic thesis. During this discussion I will explore the reasons that he had for proceeding both ways: basically, a conflict with his friend and preceptor – Carnap – about a thesis formerly held by both of them, the extensionality thesis. I will briefly contrast the different approaches of the two philosophers. Next I will attempt to show that the two ways Quine took to reach meaning holism are complementary as well as to point out that they end up

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bringing him a host of new problems; different from the ones he had faced on his way to “moderate” holism.

II. A Primeira Via: da tese reducionista ao holismo semântico. II.1 O critério de transcendência. Em 1950, com a publicação do seu famoso artigo: “Os dois dogmas do empirismo”, Quine apresenta ao mundo, ainda em esboço, as suas críticas ao empirismo dos positivistas do Círculo de Viena. Nessa ocasião, o filósofo põe em debate duas teses que ele considera como dogmas do empirismo Vienense: a distinção analítico-sintético (de agora em diante; "a/s") e o reducionismo. A conclusão retumbante do artigo é a de que o empirismo filosófico dos antigos positivistas lógicos deveria ser expurgado de duas de suas principais teses, sob pena de sucumbir às críticas de seus opositores. A opinião do filósofo americano, nessa época, era a de que, apenas se revigorado através da extirpação desses dois verdadeiros “dogmas” essa importante posição poderia se sustentar e dar seus frutos. Com efeito, tal manobra radical faria com que a filosofia se aproximasse, como era de se esperar, do método usado pelas ciências naturais, tornando-se enfim uma espécie de pragmatismo. Quarenta anos depois, ao rever seu polêmico artigo, Quine reelabora suas antigas opiniões, suavizando principalmente as conclusões holistas. Nessa mesma época, ele aceita a interpretação de Ernst Lepore sobre a sua crítica aos dois famosos dogmas1. Segundo a interpretação do filósofo mais novo, a principal objeção de Quine à noção de “analiticidade” era a de que qualquer noção de “significado” que se apoiasse em um critério verificacionista, como a 1

Muitas foram as defesas e comentários a respeito desse artigo logo após a sua

publicação. A interpretação de Lepore, no entanto, propõe uma nova maneira de se encarar as críticas de Quine aos positivistas naquela ocasião e nos interessa particularmente

por

suas

conseqüências.

Essa

interpretação

pode

ser

encontrada em um artigo intitulado “Quine, Analyticity and Transcendence”, apresentado ao próprio Quine em uma conferência em 1992.

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confirmação ou infirmação de sentenças, seria uma noção “imanente” a uma linguagem específica (ou paroquial) e, portanto, já impregnada de teoria. Assim, uma noção de “significado” que se apoiasse em critérios verificacionistas (ou mesmo confirmacionistas) não seria capaz de resolver o problema que os positivistas lógicos esperavam que ela resolvesse: explicar a significação das sentenças necessárias, apesar da sua falta de conteúdo empírico. As razões que apóiam a interpretação de Lepore são bastante convincentes: não é provável que Quine estivesse apenas exigido uma definição não circular, ou necessária e suficiente, para a noção de “analiticidade”2. O ponto, muito bem levantado por Quine em seu antigo artigo e frisado por Lepore, é o de que a raiz de todas as dificuldades com essa noção está no próprio critério empirista de significado proposto pelos positivistas lógicos. Em detalhes, se identificamos de alguma maneira “significado” e “condições de confirmação”, subordinamos a nossa semântica às nossas teorias sobre o mundo, o significado de cada sentença passará a depender dessas mesmas teorias. Uma conseqüência desagradável da imanência intrínseca do significado de qualquer sentença em relação a alguma teoria é a de que ficaríamos com problemas para explicar a significância de sentenças que fossem necessariamente verdadeiras, e não verdadeiras apenas segundo aquela teoria. A dificuldade com essa classe de sentenças é simples: o seu significado e a sua verdade teriam de depender da linguagem na qual elas estivessem imersas e não poderiam ser os mesmos para qualquer linguagem e qualquer falante. Por sua vez, a noção de “analiticidade”, que deveria realizar a tarefa de garantir o significado dessas sentenças em qualquer linguagem, seria imanente e não transcendente, ou universal, não logrando explicar assim a necessidade das mesmas.

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Essas são as duas principais reclamações de Quine no entender de Grice e

Strawson. (Grice e Strawson, 1971, p.91)

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II.2 Uma alternativa que proveria um critério de significado empirista e transcendente: a tese reducionista. Uma tese que, se bem sucedida, teria resolvido o problema da atribuição de um significado individualizado a cada sentença em bases puramente empíricas é a tese reducionista defendida pelos positivistas do círculo de Viena. A tese reducionista rezava que cada sentença teórica, considerada individualmente, poderia ser reduzida a um conjunto de sentenças atômicas que contivesse apenas termos da lógica e termos observacionais. Assim, o significado dessa sentença teórica deveria ser dado por esse conjunto de sentenças atômicas, que, por sua vez, seriam um relato direto das suas situações confirmadoras ou infirmadoras. Assim, essa redução, caso bem sucedida, nos forneceria um critério para atribuir a cada sentença individualmente um significado que fosse independente da teoria adotada, um critério transcendente de significação. A tese reducionista teria também a vantagem de estar em conformidade com o princípio empirista de significado mencionado por Quine no "Dois dogmas" segundo o qual: o significado de uma sentença é o seu método empírico de confirmação ou infirmação. (Quine, 1951a, p.37)

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A tese reducionista apresentada no parágrafo precedente recebe de Quine o cognome de “segundo dogma do empirismo”. Isso porque, de acordo com o filósofo, não foram encontradas razões que justificassem tal tese. Com efeito, Carnap, em seu livro Der Logische aufbau der Welt, se dedica ao projeto de colocar em prática a mencionada redução, construindo uma linguagem de dados sensórios (a linguagem da ciência) para a qual a nossa linguagem ordinária pudésse ser traduzida. Caso fosse bem sucedido, esse projeto seria capaz de fundamentar semânticamente a ciência, ainda que não fosse possível uma fundamentação epistêmica (uma base empírica para a verdade de nossas sentenças teóricas).

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Embora Quine se refira à noção de “método de confirmação”, ele a abandona

logo em seguida, preferindo falar em relatos puros e simples da experiência.

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No artigo "Os dois dogmas do empirismo", Quine esboça o seu primeiro ataque a esse último bastião do positivismo lógico. A investigação inicial sobre as dificuldades com a tese reducionista, feita por Quine nessa ocasião, envolve duas etapas. Uma primeira, na qual a tradução seria feita termo-a-termo, ou seja, a unidade mínima significante seria a palavra. E uma segunda etapa, na qual considerar-se-ia uma sentença inteira como a unidade mínima significante. Após longas considerações, Quine conclui que, mesmo considerando a sentença como a unidade mínima indecomponível, o projeto de tradução seria impossível, não apenas por dificuldades inerentes à sua execução, mas em princípio, i.e., ele seria logicamente impossível. As razões para o fracasso da tese reducionista nessa primeira versão mais radical não são muito surpreendentes. Com efeito, como era de se esperar a partir da crítica de Hume à indução empírica, o mesmo conjunto de sentenças atômicas poderia ser candidato a traduzir diferentes hipóteses sobre o mundo. Sendo assim, seria possível que um conjunto de sentenças atômicas tivesse como correlato mais de uma sentença teórica, o que tornaria a redução ambígua e incompleta. Além do reducionismo na sua forma mais radical,

Quine

especula se haveria lugar para a tese reducionista numa versão moderada. Essa nova tese rezaria que uma sentença isolada poderia se relacionar de modo provisório com um conjunto de sentenças atômicas que falariam a favor da sua confirmação e com um outro que falaria contra ela. Nesse caso, ainda poderíamos falar de reducionismo, só que de uma forma atenuada. Quine chama essa última alternativa de "reducionismo menos radical". Esse último resquício reducionista também é descartado pelo filósofo, que se apóia, para tanto, nas considerações epistemológicas holistas de Duhem. Duhem, a quem preocupam mais questões epistemológicas do que semânticas, queria esclarecer, na verdade, o contraste existente entre duas práticas científicas diferentes: a de um físico, em seu laboratório, tendo que lidar com um conjunto de hipóteses a serem testadas por um experimento; e a de um fisiologista procurando distinguir um nervo motor de um nervo sensitivo por meio

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de estimulação direta. Sua observação é a de que a formulação de qualquer hipótese (ou afirmação geral) da física, por exemplo, envolve sempre a formulação de outras hipóteses auxiliares que são pressupostas necessariamente por ela. Assim, embora possamos aparentemente estar infirmando ou confirmando a hipótese principal através de observações e testes, não teríamos como determinar, diante de uma experiência recalcitrante, se a hipótese falsa é a principal, ou uma das hipóteses auxiliares. No caso de consideramos a nossa hipótese principal muito confiável poderíamos optar por reformular uma ou mais das auxiliares (vendo algum erro em uma delas, por exemplo). Ou mesmo, num caso extremo, acrescentar hipóteses ad hoc com a única e exclusiva intenção de salvaguardar a nossa hipótese principal. Lembremos do famoso exemplo do flogístico dado por Kuhn. Para salvar a hipótese de que o fogo era um fluído que saía dos corpos (hipótese essa ameaçada pelos experimentos de Lavoisier), os cientistas adeptos dessa concepção insistiam em dizer que o flogístico existia sim, mas tinha peso negativo. Segundo essa sugestão desesperada, ao sair dos corpos o flogístico acrescentaria peso aos corpos carbonizados. As considerações de Duhem são aproveitadas por Quine. O filósofo, no entanto, tira delas conclusões que parecem ir além das pretensões do epistemólogo francês. Para compreendermos melhor essas conclusões vamos retomar o princípio de significatividade empirista (PS), segundo o qual o significado de uma sentença é determinado pelo seu método de verificação. De acordo com Quine, o método de verificação seria um relato do conjunto de observações diretamente conectadas à experiência que confirmassem uma determinada sentença, ou do conjunto das observações que a infirmassem. Mas, como o filósofo havia concluído ser impossível decidir de modo inequívoco se certas situações confirmadoras ou infirmadoras dizem respeito àquela sentença isolada ou se elas incidem apenas nas hipóteses auxiliares (essa é a contribuição de Duhem), então é apenas em bloco que as sentenças teóricas poderiam ter significação empírica.

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II.3 A primeira conclusão holista. A conclusão de Quine parece bastante razoável: só poderíamos traduzir uma sentença (em termos de situações confirmadoras ou infirmadoras) se a considerássemos em conjunto com outras sentenças, as hipóteses auxiliares. Uma ressalva, porém, é muito importante a respeito dessa conclusão de Quine; o adendo “em termos de situações confirmadoras ou infirmadoras”. Como veremos mais adiante, poderíamos realizar essa tradução perfeitamente em outros termos, mas nesse caso estaríamos recorrendo a algo mais além das situações no mundo que a confirmariam ou infirmariam. Segundo essa nossa interpretação, Quine estaria apenas objetando a que, dada uma certa conjunção entre, por um lado, a tese de Duhem e, por outro, a versão do princípio verificacionista representada por PS, pudéssemos ainda falar em analiticidade no sentido mais forte, ou seja, transcendente. Essa é, com efeito, uma das maneiras como o próprio Quine descreve a sua inferência: Se reconhecêssemos, juntamente com Peirce, que o significado de um enunciado consistiria unicamente naquilo que contaria como justificativa empírica para a sua verdade, e se reconhecêssemos, juntamente com Duhem, que os enunciados teóricos não possuem dados empíricos quando considerados isoladamente, mas apenas quando formam blocos teóricos maiores, então a indeterminação da tradução dos enunciados teóricos seria uma conclusão natural. (Quine, 1969a, p.79-81) [grifo meu]

Com efeito, podemos observar que há uma diferença entre a maneira como Lepore descreve a posição de Quine e o modo como o próprio filósofo tira as suas conclusões holistas no trecho anterior. No caso de Lepore, o objetivo parece ser o de salvar a possibilidade de se falar em critérios de analiticidade transcendentes, mostrando que as críticas de Quine incidiam apenas sobre o positivismo lógico dos participantes do Círculo de Viena, bem como sobre aqueles que quisessem manter uma semântica baseada em algum princípio parecido com o princípio empirista de significado adotado por esses filósofos. Já Quine parece estar, na verdade, disposto a ir bem mais longe, ou seja, a se

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comprometer com alguma forma de holismo semântico, ainda que moderado, que inclua apenas uma noção de “analiticidade” imanente de sentenças permanentes (ou paroquial). Em outras palavras ainda, uma noção que possa ser determinada com base apenas em critério comportamentais observáveis. Descrevemos, em linhas breves, o primeiro tipo de argumento através do qual Quine teria chegado à tese que ficou conhecida na literatura filosófica como o “holismo semântico”. Em resumo, o argumento geral teria a seguinte forma: o verificacionismo dos positivistas (ou Peirce se quisermos) + o holismo da confirmação (resultante das dificuldades encontradas por Quine em subscrever à tese reducionista) = Holismo Semântico. Em seguida, investigaremos a segunda via através da qual Quine teria reafirmado o seu holismo semântico.

III. A segunda via: a tese da inescrutabilidade da referência. III.1 O experimento de tradução radical. Em 1960, com a publicação do W & O, Quine deixa ainda mais clara a sua posição, com auxílio da famosa tese da inescrutabilidade da referência. Essa tese, por um lado, viria para se juntar aos argumentos anti-reducionistas que acabamos de expor, reforçando a tese do holismo semântico. Mas, por outro lado, é também ela que nos deixa entrever uma saída para as dificuldades enfrentadas por Quine em decorrência de seu famoso ataque aos mencionados dogmas. As razões oferecidas por Quine nessa ocasião para sustentar a tese de que não poderíamos atribuir um significado determinado às nossas sentenças quando essas fossem consideradas isoladamente é ilustrada em um experimento imaginário: a tradução radical. Como sabemos, o experimento imaginário de Quine consistia em uma situação na qual duas pessoas de culturas e línguas totalmente diferentes se encontrassem e tentassem se comunicar. Essas duas pessoas poderiam ser, por exemplo, um lingüista de campo e um nativo de uma cultura estrangeira e desconhecida. O radicalismo do experimento é crucial para o desenrolar dos argumentos de Quine: nem o nativo nem o lingüista de campo teriam um interprete, dicionário ou gramática disponíveis previamente a

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esse seu primeiro contato para ajudar na tradução das sentenças um do outro. Assim, após esse seu primeiro contato, o lingüista possuiria apenas as reações comportamentais do nativo diante dos seus proferimentos e as forças que ele vê afetarem a "superfície do nativo" (as estimulações) para ajudá-lo na tarefa de tradução. A proposta de Quine – considerar a situação extremada de uma tradução radical – foi, na verdade, inspirada pela discussão que vinha sendo travada entre ele e Carnap. Como é sabido, historicamente, o ponto de união entre os dois filósofos havia sido a defesa da tese extensionalista: a tese que reza que através da referência dos termos singulares e do princípio do contexto poderíamos também fixar a extensão dos termos gerais, e que isso seria tudo o que deveríamos fazer em semântica. Com efeito, até mais ou menos 1936, ambos os filósofos acreditavam que poderiam encontrar uma base empírica a partir da qual apoiar a construção de uma linguagem puramente extensional. Ou seja, encontrar uma linguagem na qual não tivéssemos predicados aplicáveis a outros predicados e, portanto, só se pudesse falar sobre objetos (Russell, PM, p659ff). Numa linguagem como essa, qualquer substituição de termos coextensionais ou coreferenciais preservaria o valor de verdade do todo. Assim, num sistema lingüístico construído desse modo, a verdade dos enunciados teóricos dependeria exclusivamente do conteúdo empírico dos enunciados atômicos, sendo finalmente o melhor candidato à linguagem universal da ciência. Embora o objetivo de ambos os filósofos, na época em que defendiam a tese extensionalista, fosse o de fixar um "significado" que pudesse ser testado empiricamente, ambos chegam a conclusão de que apenas a extensão não é suficiente para determinar o predicado ao qual nosso interlocutor estiver se referindo. Para Carnap, no entanto, essa conclusão é bastante séria, ela significa que não podemos construir uma linguagem que sirva como a linguagem universal da ciência. Assim,

em Meaning and Necessity in Natural Languages,

Carnap modifica a sua posição, introduzindo, como necessária para a semântica,

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uma noção "intensional" de significado. E, mais tarde, num artigo publicado como apêndice a esse livro, chamado "Meaning and synonymy in natural languages", ele sugere, antes do próprio Quine, o experimento imaginário em questão. Em resumo, o problema vislumbrado por Carnap diz respeito ao fato de que dois falantes podem concordar quanto à aplicação de uma expressão a todos os casos compartilhados sem, no entanto, usarem para designar essa extensão o mesmo predicado. Assim, segundo Carnap, seria necessário também que recorrêssemos a estimulações contra-factuais para fixar univocamente o predicado (ou propriedade) em questão4. A essa noção mais "forte" de significado verificável empiricamente, Carnap chama "significado intensional pragmático". (Carnap, 1956, p.233). III.2 A noção de "significado estimulativo" como uma herdeira da noção de "intensão pragmática" de Carnap. Seguindo o exemplo de Carnap e visando mostrar que a noção de intensão pragmática do outro filósofo não era suficiente para estabelecer um significado intensional unívoco para qualquer expressão da linguagem, Quine sugere a sua própria noção de

significado pragmático, a qual ele chama

"Significado estimulativo". Assim, em W&O, encontramos a seguinte definição dessa noção dada por Quine: “a classe de todas as estimulações […] que poderiam incitar o seu assentimento […] ou dissentimento […] para um falante a”. Mais adiante, ele conclui que “o significado estimulativo de uma sentença para um indivíduo sintetiza suas disposições para assentimento a, ou dissentimento de, uma sentença em resposta a estimulação presente” (Quine, p.33). Dois elementos presentes nessas definições são fundamentais para a compreensão dos objetivos de Quine com o seu experimento radical: o emprego da expressão modal, “poderiam”, no trecho citado, e o recurso a noção

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Um detalhe deve ser lembrado: no experimento de Carnap os dois indivíduos

falam o mesmo idioma, o alemão.

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de "disposições". Como era a intenção de Carnap com o seu próprio experimento, esses dois elementos da definição de Quine também foram propostos com o intuito de investigar se seria possível capturar, com uma noção mais forte de significado do que a noção de "significado extensional", a noção investigada por Carnap de "intensão pragmática". De fato, essa última envolveria não só os casos atuais (que se prestam a uma comparação extensional), mas também todos os casos possíveis. O grande mérito dessa noção seria, portanto, oferecer uma solução para problemas semânticos como, por exemplo, a determinação completa do significado de predicados do tipo "Criaturas com rins" e "Criaturas com coração", em função de critérios empíricos. III.3 A coextensionalidade não é necessária para a "sinonímia estimulativa". Após definir a sua noção de "significado estimulativo", Quine prossegue em sua argumentação introduzindo o conhecido exemplo do termo nativo fictício “Gavagai” (considerado propositadamente com letra maiúscula). Ao sugerir esse exemplo, o filósofo insiste em assinalar que essa expressão representa um todo frasal e não está determinado ainda se ela deve ou não ser compreendida como um termo, singular ou geral. A primeira consideração importante de Quine com relação à expressão nativa "Gavagai" é a de que, como estrutura lingüística, ela seria opaca para nós numa situação de tradução radical: a mesma estimulação seria compatível com diferentes hipóteses de tradução cogitáveis e, sendo assim, não teríamos como determinar, apenas pela observação do comportamento verbal do nativo (ou seja, empiricamente), se aquele proferimento deveria ser interpretado de uma ou de outra maneira. Essa tese, que foi apresentada por Quine pela primeira vez no W&O (1960, p.52, e 1969c, p.35), ficou conhecida por todos como a tese da inescrutabilidade da referência. Segundo a tese da inescrutabilidade da referência, “Gavagai” poderia ser uma estrutura bastante complexa ou, ao contrário, bem simples; ser traduzível por uma sentença inteira em nossa língua, ou apenas por uma palavra.

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Poderia ainda ser, tanto um termo geral, quanto um termo singular. Dentre as várias opções disponíveis para “Gavagai”, caso escolhêssemos traduzi-lo por um termo, teríamos: (1) um termo geral que denota um animal, "um coelho"; (2) um termo singular, “a coelhitude presente”; (3) um termo singular, "o segmento temporal de coelho presente"; (4) um termo geral, "as partes não destacadas de um coelho" (Quine, 1960, p.51-52); (5) um termo geral, "um complemento universal de coelho" (Quine, 1995, p.71)5. Poderíamos também traduzi-lo por uma sentença, como, por exemplo, "Ali vai um coelho!". A importante conclusão tirada por Quine desse exemplo é a de que "Gavagai" poderia ser traduzida por expressões que, ao serem substituídas uma pela outra numa sentença, não manteriam o valor de verdade da mesma, ou seja, não seriam inter-substituíveis salva veritate, e que, portanto, (1) – (5) não seriam coextensionais (ou co-referenciais), quando considerados como tradução de "Gavagai-sentença". Contudo, embora não fossem coextensionais, todas essas traduções da língua nativa para língua do lingüista seriam sinônimas estimulativas da expressão "Gavagai" (e possivelmente sinônimas intensionais pragmáticas de acordo com Carnap). Segundo Quine, portanto, em (1) – (5), tanto a extensão (ou referência), quanto à própria distinção entre termos gerais e termos singulares, seria inescrutável nessa situação (ou indeterminada como Quine prefere chamar mais tarde). Em outras palavras, a natureza e a referência de termos não seria acessível de modo "transcendente". Ou ainda, não poderia ser traduzida de um modo único de uma linguagem para outra. O que a tese da inescrutabilidade da referência nos diz, com efeito, é que há uma limitação inerente, ou em princípio, no processo de aprendizagem (ou tradução) de uma língua radicalmente diferente. O resultado dessa limitação é que, se temos para nos guiar durante todo o processo de tradução

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Com esse exemplo, Quine enfatiza a ausência de coextensionalidade,

mostrando que a hipótese de tradução pode envolver até mesmo uma localização espacial diferente (na verdade, necessariamente oposta).

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(e/ou de aprendizado de uma língua nativa) apenas o comportamento verbal do nativo e as forças que vemos afetarem a sua superfície, então não podemos estabelecer de modo determinado, nem a intensão, nem a extensão da expressão lingüística do nativo. Ou seja, a única tradução que podemos oferecer, do ponto de vista transcendente, ou interlingüístico, são estimulações consideradas em sua totalidade como sendo o significado de sentenças completas, não podemos oferecer uma tradução específica para termos sub-sentenciais. Esse tipo de relação entre uma sentença inteira e uma estimulação completa será chamada por Quine mais tarde (Quine, 1970, p.182) de interpretação holofrástica. Em decorrência da constatação dessas limitações, e da tese da inescrutabilidade da referência, Quine decide ir mais além do ponto onde havia ido Carnap e concluir que, além da extensionalidade não ser suficiente para garantir sinonímia-estimulativa, ela também não seria necessária. Ou seja, poderia haver sinonímia estimulativa entre dois predicados e, ainda assim, não haver coextensionalidade. Conseqüentemente, a noção de "significado estimulativo" não seria suficiente, nem mesmo para determinar as próprias extensões dessas expressões. Nas palavras do próprio Quine: (...) a coextensionalidade de termos, ou mesmo a crença nessa coextensionalidade, não é suficiente para garantir a sua sinonímia estimulativa quando usados como sentenças de ocasião. Agora vemos também que ela não é necessária. (Quine, 1960, p. 54)

Após seu experimento, e em decorrência dos argumentos apresentados em favor da tese da inescrutabilidade da referência, Quine assume uma posição cada vez mais distante de seu antigo mestre e mentor. Enquanto Carnap se aproxima da lógica modal e de noções intensionais, considerando-as um mal necessário, Embora normalmente não gostemos de empregar linguagens intensionais, ainda assim penso que não podemos nos furtar a analisálas. O que você pensaria de um etimologista que se recusasse a investigar moscas e traças, porque elas lhe desagradavam? (Quine, 1991, p.267)

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Quine repudia tais noções, acusando Carnap de ter sucumbido a uma espécie de vício: Bem, as moscas e traças se mostraram viciantes. Por volta de 1946 ele estava liderando a lógica modal. (Quine, 1991, p.267)

Mas, se o caminho da lógica modal está fechado para Quine, será que restariam opções ao filósofo para estabelecer a referência dos termos (ou a sua extensão) de uma língua em função de critérios empíricos comportamentais? A resposta de Quine a essa pergunta é, mais uma vez, a tese que ele chama de holismo semântico, só que numa versão "moderada", como veremos a seguir. III.4 A conclusão Holista pela segunda via e sua relação com a primeira. A tese da inescrutabilidade da referência constitui, por assim dizer, a segunda via através da qual Quine acaba chegando novamente ao seu holismo semântico, na nova versão "moderada". Em poucas palavras, se as sentenças proferidas pelo nativo numa situação de tradução radical não puderem ser determinados de modo unívoco, elas só poderão adquirir algum significado quando imersas em um conjunto maior de sentenças. Apenas no contexto mais amplo de uma língua, poderíamos ter a nossa disposição vários conjuntos de hipóteses6 de como interpretar um proferimento, e cada um deles determinaria arbitrariamente a escolha de uma tradução possível para as sentenças nativas, ou mesmo para o "idioleto" de um outro falante da mesma língua. Essa segunda via, no entanto, apresenta uma diferença importante em relação à primeira: ela vai de “baixo para cima”, como ressalta o próprio Quine, Existem dois caminhos para se pressionar a doutrina da indeterminação da tradução a maximizar o seu escopo. Podemos pressionar de cima ou pressionar de baixo, jogando os dois extremos para o meio. […] por pressionar de baixo eu quero dizer quaisquer

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Quine chama essas hipóteses de "hipóteses analíticas".

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argumentos em favor da indeterminação da tradução7 que possam se basear na inescrutabilidade da referência. (Quine, 1970, p.183)

Em contraste, a primeira via envolveria, alternativamente, quaisquer argumentos que se baseassem na subdeterminação das teorias por todos os dados empíricos possíveis, ou seja: o holismo da confirmação. No extremo superior, há o argumento, […], que visa persuadir qualquer um a reconhecer a indeterminação da tradução das porções da ciência natural que ele aceite como tais, como subdeterminadas por todas as observações possíveis. Se eu puder levar as pessoas a verem que essa lassidão empírica afeta, não apenas a física altamente teórica, mas o discurso sobre corpos que seja absolutamente senso-comum, poderei convencê-las a admitir a indeterminação da tradução do discurso de senso-comum sobre corpos. (Quine, 1970, p.183)

Foi essa primeira via que apresentamos no início do artigo, na seção III. Assim, tanto "por cima" como "por baixo", Quine chega à mesma conclusão: nossas sentenças teóricas são indeterminadas numa situação de tradução radical no que concerne a sua estrutura predicativa (quais seriam os termos gerais e os termos singulares).

IV. O holismo semântico "moderado"e suas conseqüências. A diferença importante que pudemos observar entre a primeira e a segunda via concerne à rejeição da tese extensionalista, movimento esse que fica bem mais claro a partir de 1960, em Word and Object. Esse passo não representa só uma reafirmação por parte de Quine do seu comprometimento com uma posição anti-mentalista e anti-intensionalista, como também lança o filósofo numa série nova, embora não completamente inédita, de dificuldades teóricas. A mais importante dessas dificuldades é a que foi apontada pelo próprio Lepore em seu artigo “Quine, Analyticity and Transcendence” e

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Estamos considerando como holismo semântico qualquer tese que implique na

indeterminação semântica de sentenças isoladas.

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reafirmado em conjunção com Fodor no segundo capítulo do livro, escrito a quatro mãos, intitulado Holism: a shopper guide. Segundo os filósofos, o holismo semântico de Quine apresentaria dificuldades insuperáveis como teoria semântica e levaria a uma posição relativista, com todas as suas conseqüências desagradáveis. Com efeito, uma conseqüência imediata do processo arbitrário de fixação do significado adotado por uma teoria semântica holista seria a de que, caso as hipóteses analíticas utilizadas fossem modificadas, o próprio significado dos termos (ou mesmo a própria classificação em termo singular e termo geral) também sofreria modificações, alterando, conseqüentemente, até mesmo o significado das sentenças que não dependessem de estimulações presentes para serem aceitas como verdadeiras, as chamadas sentenças permanentes. Ou seja, qualquer mudança no modo de compreender uma única sentença alteraria o significado de todas as outras sentenças de uma língua para cada falante individual. É razoável concluir que, ao não aceitar, nem o caminho oferecido pela lógica modal, nem a alternativa mentalista, na construção de sua posição filosófica, torna-se imperioso para Quine resolver esse problema seriíssimo: o relativismo, tanto o semântico, quanto o epistemológico. As conseqüências do relativismo para a semântica, a filosofia da mente e a epistemologia são bem conhecidas: se não dispomos de critérios interlingüísticos que nos permitam comparar duas teorias diferentes e/ou duas línguas diferentes, não podemos atribuir linguagem a outro falante, nem tão pouco decidir qual seria a melhor teoria científica dentre as várias teorias formuláveis adequadas àquelas experiências. A solução apontada pelos próprios Fodor e Lepore como o caminho alternativo que poderia ter sido escolhido por Quine para essas dificuldades consiste em postular um elemento transcendente que fizesse a ponte entre as diferentes teorias/línguas (Fodor e Lepore, 1992, p.42). Mas, para que essa ponte fosse construída, seria preciso dispor ao menos de uma parte da linguagem que não fosse indeterminada quanto à tradução. Essa exigência, no

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entanto, nos remete obviamente aos antigos argumentos do próprio Quine contra a possibilidade de tal determinação. Com o objetivo de suavizar as suas conclusões holistas, Quine oferece, já no próprio segundo capítulo do W&O, uma versão moderada do holismo semântico (Quine, 1969a, p.79-81). Segundo essa versão, apenas o significado das sentenças teóricas (ou permanentes) seria indeterminado, o que resguardaria às sentenças de observação (aquelas que dependem de uma estimulação presente) um significado estimulativo determinado que pudesse ser considerado o seu "verdadeiro" significado. Esse seria, com efeito, o único caminho que poderia ser ainda trilhado por Quine sem que fosse preciso abandonar a intuição fundamental de que a experiência deveria ser o tribunal último de nossas contendas semânticas e teóricas. Assim, resta a Quine a possibilidade de ressuscitar as velhas sentenças de observação (enunciados básicos ou sentenças protocolares) e encontrar para elas um papel em seu novo verificacionismo, agora destituído de seus dois antigos dogmas. Como podemos observar no final da obra de Quine nos livros Pursuit of Truth e Stimulus to Science, os candidatos a portarem esse conteúdo empírico

teoricamente

neutro,

responsáveis

pela

superação

da

incomensurabilidade semântica e epistemológica de nossas linguagens/teorias seriam, na verdade, não as sentenças observacionais elas próprias, mas as sentenças que Quine chama de "categóricos de observação". Essas sentenças especiais,

compostas

por

duas

sentenças

de

observação

(consideradas

holofrasticamente) e um conectivo lógico (a implicação) seriam, enfim, as viabilizadoras do holismo “moderado”, uma espécie de novo “verificacionismo” sem dogmas, proposto por Quine. Os categóricos assinalam, a meu ver, a tentativa do filósofo americano de manter intacto um derradeiro bastião da posição verificacionista: considerar a experiência como o tribunal último de nossas contendas teóricas e conflitos radicais. O novo verificacionismo proposto por Quine, contudo, não poderia ser descrito fielmente como uma modalidade aprimorada de empirismo sem os seus antigos dois “dogmas". Seria mais correto dizer que ele seria uma

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versão falsificacionista (ou "popperiana") do verificacionismo, sem contudo envolver, nesse processo de falsificação, uma noção mais forte de significação. Esse, no entanto, é tema para um outro debate.

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