Os escravos de Miguelângelo: reflexões desde a sala de aula.

July 14, 2017 | Autor: Beatriz Vieira | Categoria: Political Violence, Direitos Humanos, Ensino de História, Crise civilizacional
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VIEIRA, Beatriz de Moraes . Os escravos de Miguelângelo: reflexões desde a sala de aula. Candelária (Rio de Janeiro), v. 5, p. 29-48, 2008. *

Os escravos de Miguelângelo: reflexões desde a sala de aula1 Em memória de meu “velho tio” Marcus Felicius de Moraes, que acreditava em mundo melhor.

Em seu livro É Isto um Homem?, Primo Levi narra o quanto foi necessário para seu eupersonagem, dentro do horror de um campo de concentração nazista, o esforço de se lembrar de alguns versos de Dante Alighieri: Considerate la vostra semenza: Fatti non foste a viver come bruti, ma per seguir virtude e conoscenza.2

O humanismo renascentista trazia, a um dos núcleos mais duros do catastrófico século XX, um fio tênue que permitia a uns poucos indivíduos – mas de modo algum a um amplo número que se pudesse configurar como maioria – retomar o sentido de humanidade e retomar-se como um ser-além da coisa bruta. Tal concepção do humano estava presente na arte renascentista, como inquietação, pergunta, proposição à espécie, como se vê, por exemplo, na escultura dos “Escravos” de Miguelângelo3, os quais, apresentados como obra inacabada, revelam a forma humana saindo da pedra, dura, contorcida, num movimento de músculos, difícil, no imenso esforço de separar-se da natureza, mineral, animal, do pó que é ao mesmo tempo origem e fim dos seres viventes sobre a Terra, mas ao qual o humano não pode reduzir-se, sob pena de descaracterizar-se enquanto tal. O curso da história, por sua vez, se desdobra como a história desse esforço do escravo da natureza em busca da dimensão-além, cujo nome – também ele difícil e incessantemente buscado, por diversas correntes de pensamento ao longo do tempo – tem sido “espírito”, “linguagem”, “cultura”... todos remetendo, intrinsecamente, a “liberdade”. Nesta imagem, encontravam-se reunidas as dimensões de “cultura” e “civilização” que o Iluminismo alemão posteriormente distinguiria – ao enfatizar, na primeira, o caráter qualitativo derivado do desenvolvimento do juízo crítico, do gosto e do sentimento; e na segunda, a produção material do mundo 4 –, mas ambas resultantes do cultivo, da noção e

da ação contidas no verbo cultivar, exercitando as faculdades do corpo-espírito como quem ara o solo e de seu trabalho extrai frutos e sumos, ou como quem retira leite de pedra... Na história de Primo Levi, coube à faculdade da memória o esforço de resgatar essa semente de humanismo, mediante a poesia de Dante, para redimir (seria ainda possível?), um indivíduo, químico de profissão, que se tornara escravo em um campo de extermínio e trabalhos forçados, na Alemanha nazista, durante a II Guerra Mundial, e que já não sabia mais se ele próprio e seus companheiros eram mesmo homens dignos de tal qualificação 5. O teor catastrófico do século XX tem sido destacado por numerosos autores, unânimes em apontá-lo como o século mais violento de toda a História. As duas guerras mundiais, os fascismos, o stalinismo, os massacres étnicos, os expurgos da alteridade, as bombas atômicas, a brutalidade das guerras de descolonização em África e Ásia, e das ditaduras na América Latina; técnicas, ciências e direitos a serviço da fome, da tortura e da morte; filosofias omissas, artes silentes, religiões coniventes com a destruição, ideias confusas, formaram um conjunto de situações que desagregaram as promessas da modernidade. Nos termos de Hobsbawm, Visto que este século nos ensinou e continua a ensinar que os seres humanos podem aprender a viver nas condições mais brutalizadas e teoricamente intoleráveis, não é fácil apreender a extensão do regresso, por desgraça cada vez mais rápido, ao que nossos ancestrais do século XIX teriam chamado padrões de barbarismo. 6

A racionalidade moderna – fundada no modelo da máquina e dos ganhos produtivos com a exploração do trabalho e da natureza – acabou por restringir-se a um logos mecânico como medida de todas as coisas. Deste modo, como mostra Menegat, a inumanidade do aparato técnico e sua razão fria penetraram toda a organização das relações sociais, econômicas e culturais, as quais, por conseguinte, passaram a funcionar (note-se que o termo também remete ao mundo mecânico) de modo maquinal e utilitário, substituindo os valores de uso e a espontaneidade humana pelas relações de troca. A razão instrumental que passou a imperar sufocou e legou ao esquecimento a possibilidade de uma razão outra, dita objetiva, que só resiste como resultado de um árduo trabalho da memória negativa desta fenomenologia da instrumentalização – o que envolve, como indica Primo Levi, retomar sentidos perdidos do processo de construção de civilidade das sociedades humanas, às quais é exigido, para tal, um salto qualitativo em direção a uma maioridade intelectual e afetivo-social7. Uma vez que isto não foi objetivado na experiência coletiva da vida em sociedade, o que se viu predominar ao longo do século, ao contrário, foi uma violência de tal envergadura, que os sentidos referentes a humano, humanismo e humanidade principiaram a romper-se,

gerando uma dinâmica que pode ser identificada, segundo a bela metáfora de Enzo Traverso, como um “rasgo na história” 8. Cisões profundas se fizeram sulcar entre o progresso materialtécnico-científico e o desenvolvimento humano, ético, social: o primeiro, marcado pela capacidade de destruição e pelos interesses econômicos de grupos restritos; o segundo, pela exigência de um processo construtivo de formação coletiva, no que concerne tanto à instância subjetiva quanto à social, cujos fundamentos foram solapados desde que, sobre a concepção do esforço cultural renascentista, sobrepôs-se e prevaleceu a concepção hobbesiana, animalizadora, voraz, competitiva e mortífera, do “homem lobo do homem”. Assim, Auschwitz, compreendido não como o campo em si, mas como um signo de todos os horrores da primeira metade do século XX, não representou um momento de decadência ou um parênteses histórico, mas uma hipertrofia da razão instrumental, levada ao genocídio e ao irreparável, convertendo-se, portanto, na metáfora da culminação da história moderna e contemporânea na mais abjeta violação: marca um vinco radical, um rasgo da trama mais profunda da solidariedade humana e de nossa civilização, sob a qual o pensamento se extravia do caminho de uma reconciliação com a experiência e as palavras padecem uma metamorfose”. 9

Sem laços de união, nem palavras adequadas à vivência, já nada se faz como antes, nem arte, nem filosofia, nem religião, tampouco educação ou história... A polêmica afirmação de Adorno10, acerca da impossibilidade de se fazer poesia após Auschwitz – isto que constituiria um “imperativo categórico adorniano”11, segundo Traverso – é explicada por este autor como um chamado à urgência de se refletir sobre a profunda transformação que a violenta história do século exerceu sobre as práticas culturais e sobre as próprias noções de cultura e civilização. O que se tornava impossível não era criar poesia e/ou cultura, mas fazêlo como antes, visto que a ruptura civilizacional produzida provocou uma dessubstancialização das relações e da linguagem, ou seja, mudou a matéria mesma da cultura, fundada em laços sociais e nos vínculos entre linguagem e experiência, desfigurados pela catástrofe.12 Evidentemente, mudanças se impuseram em toda parte, filosóficas, existenciais, jurídicas, políticas, e inúmeras tentativas de recuperação dos desgastes da civilização foram realizadas após 1945, em todos os setores de pensamento e ação, que se reposicionaram diante da crise da modernidade como se o mundo fosse um corpo doente a ser sanado. Neste quadro se deu a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) e a re-arquitetura do Direito Internacional, visando a regular a relação entre povos e nações e a estabelecer limites éticos

ao poder dos Estados; neste quadro se renovou a ideia de direitos humanos inalienáveis, a serem valorizados e protegidos por todas as sociedades; bem como se firmou a noção de Estado interventor para o bem-estar social, e a viva figura do intelectual atuante nos debates políticos e culturais, de que Sartre foi protótipo. Ao longo dos anos 50 e 60, por conseguinte, viu-se uma generalizada e diligente busca de critérios – por definição filosóficos, mas alicerçados nos variados universos, político, institucional, cultural, econômico etc. – que atuassem como princípios norteadores do pensar e do agir, estabelecendo a fronteira que não se deve ultrapassar entre o humano e o inumano. Em outras palavras, pode-se dizer, buscou-se uma “linha de costura” para suturar as feridas e rasgos históricos. A esperança alentada por essa possibilidade pode ser ilustrada (e vale a longa citação) pela seguinte argumentação de Nilo Odália: Os anos de guerra, contudo, não foram apenas uma experiência da capacidade de resistência do sofrimento humano; representaram, também, anos de provação para a capacidade de solidariedade humana, que se revelou (incentivada por uma máquina de propaganda cuidadosamente preparada) no esforço de guerra desenvolvido conjuntamente por países cujas ideologias mutuamente se repeliam, e na colaboração, dentro dos movimentos de resistência subterrânea, entre participantes cujos objetivos políticos divergentes foram reprimidos e colocados segundo plano. A experiência de um trabalho comum se não comoveu nem demoveu os dirigentes das grandes potências de suas divergências, como demonstram sucessivos desacordos na maneira de conduzir a guerra, trouxe para os povos que sentiam na própria carne os efeitos da matança indiscriminada, a esperança de que, terminado o conflito, uma nova era de paz e de concórdia haveria de se instalar, com o beneplácito de todos os grandes Estados beneficiários do final vitorioso. A opressão padecida transmudava-se, no futuro, em liberdade, a intolerância e o asco pelo inimigo metamorfoseavam-se num quadro de harmonia, onde todos comungavam dos mesmos ideais de tolerância e fraternidade. Quadro idílico de confraternização universal dos povos. Pode-se dizer que havia, latente, um estado de euforia pela liberdade que perpassava todos os grupos humanos, quaisquer as latitudes que se encontrassem. Talvez, em nenhum momento da história, se utilizara tanto a palavra “liberdade” como instrumento de luta de libertação. [...] Em primeiro lugar, a euforia pela liberdade manifesta-se no plano individual: é o homem da rua, o homem sem nacionalidade, porque é de todas as nações, o combatente silencioso das noites de guerra que reage contra sua própria miséria física e moral, contra a impossibilidade de comunicação com o outro, com a esperança de que um dia pertenceria a um mundo onde não mais existissem fronteiras físicas ou ideológicas, que o separam dos outros, que separam as nações em ricas e pobres, em fracas e poderosas. Esperança de um mundo novo, onde a sorte de um é a sorte de todos; onde a solidão de agora se transforma em vivência comum. De tal estado de espírito, nada mais característico do que a pretensão de uma sociedade universal em que o indivíduo abandona sua nacionalidade para ser um cidadão do mundo e sua existência é tudo quanto necessita para ser considerado um homem.13

O desejo de liberdade e solidariedade, de uma sociedade universal regida por um sentido de cidadania cosmopolita e pelo valor intrínseco da existência como critério fundamental de pensamento, comportamento e organização sócio-política, parece ter-se

mantido vigente até os anos 70, havendo encontrado nos eventos libertários do ano de 1968 seu momento de culminância. No entanto, em todo o mundo, os acontecimentos das últimas décadas do século XX e início do XXI mostraram-se devastadores a ponto de tornar o período de trinta anos, compreendido aproximadamente entre 1945 e 1975, numa mera “trégua”. 14 O processo de globalização, correspondente no campo da cultura ao que se tem denominado de pósmodernidade ou modernidade tardia, fez-se acompanhar de novas camadas de violência intra e internacionais, novas guerras e nacionalismos, guerras civis, genocídios, massacres, racismos e discriminações de toda ordem, abusos de poder, cerceamento de liberdades, supressão de direitos adquiridos, desrespeito aos direitos humanos, atos terroristas, destruição de cidades, de população civil e patrimônio cultural, por vezes milenar, além da fome e tantas outras formas de indignidade, em todos os continentes. O processo de mundialização do capitalismo, a terceira Revolução Industrial, baseada na tecnologia eletrônica, e a reorganização produtiva, descentralizando a produção e as empresas e segmentando os mercados, estimularam ao mesmo tempo a especialização, a flexibilização e a precarização do trabalho (além do desemprego estrutural), exigindo um tipo de sociedade adaptável às inovações e à crescente sensação de compressão do tempo e do espaço, capaz de lidar com a instabilidade, de consumir e de manter-se sempre suscetível à canalização dos desejos para as novas “necessidades” mercadológicas. Observando os custos pessoais e coletivos deste processo a partir do universo de trabalho, Richard Sennett15 sublinha o quanto os indivíduos estão submetidos à solidão e à ruptura de laços duradouros, seja com tarefas ou companheiros de trabalho e lazer, o que impossibilita qualquer estabilidade e desfaz referências locais, comunitárias, de parentesco e tradições culturais. Na transitoriedade vigente nas sociedades de capitalismo tardio, não há mais objetivos de longo prazo, nem consistência nas ligações rotineiras, nem valores sólidos, pois que estes, parecendo cumprir as predições de Marx e Engels, de fato se desmancharam no ar, e a insegurança e a desorientação imperam soberanas. Danifica-se, assim, a vida interior dos indivíduos, cujo valor ético também se corrói – uma vez que depende de tempo para construir laços de fidelidade, bem como da escolha consciente dos limites à liberdade e interesses pessoais, em prol da alteridade e da vida coletiva –, afetando consequentemente sua capacidade de solidariedade, que um dia se denominou poeticamente de fraternidade 16. Geram-se, por conseguinte, graves dissociações no comportamento e na vida pública, pois que se rompem tanto o sentido do encadeamento histórico, quanto o compromisso com causas comuns, uma vez que estes “sujeitos”, perdidos de suas tradições e inseguros ante o futuro,

não conseguem construir identidades individuais e coletivas, e consequentemente não podem assumir os riscos da ação e tendem à apatia política, demandando cada vez mais proteção e aceitando cada vez menos participar da vida pública. O impacto de tudo isto sobre o processo democrático é sentido em uma menor força de resistência e contestação, acrescida da fragilidade dos movimentos sociais diante de um capital cada vez mais especulativo, volátil e globalizado. Agregam-se a este fenômeno as grandes massas desempregadas em todo o mundo que, como lembra Bauman, não servem sequer como exército industrial de reserva e, na mera condição de “consumidores falhos” ou refugo humano, ameaçam as fronteiras internacionais, submergem na violência urbana ou apenas vegetam à espera da morte. Deste modo, os avanços da sociedade capitalista trazem consigo o aumento dos “fracassados”, dos que se perderam pelo caminho, ou dos que ficaram reduzidos à apatia, à indiferença, à dor psíquica e mesmo à desumanização17. Novos muros foram erigidos, nas Américas ou no Oriente Médio, para separar estes grupos sociais da auto-intitulada boa civilização, configurando um movimento de cisão que se contrapõe à queda do Muro de Berlim, anunciada como símbolo do fim da Guerra Fria e da história, e como advento de uma nova era de pacífica uniformidade, alicerçada num sistemamundo estável e no “pensamento único”. Falaciosamente, identificou-se o fio de unidade da espécie humana, a experiência comum de constituir-se culturalmente como um ser-além da pedra ou da animalidade, com a ideologia (neo)liberal ora hegemônica. Ainda pior, exerceu-se um vasto processo “pedagógico” de naturalização da força bruta, isto é, passou a ser considerada como verdade inquestionável a visão liberal da “natureza” humana fundada na competição e na violência18. A (de?)formação das novas gerações neste tipo de visão de mundo torna-se crescentemente preocupante à medida que se destaca no pensamento pós-moderno, conforme nota Ellen Wood19, uma notável insensibilidade à história, inclusive à sua própria, uma vez que – diferentemente das análises anteriores de fim de época que anunciaram as muitas mortes da modernidade, mantendo porém a crise como condição histórica passível de conhecimento – o pós-modernismo também parece conceber seus postulados como a condição humana em si, sem alternativas e em última instância incognoscível, posto que ao insistir no caráter de construção e/ou invenção do conhecimento, esmaece a diferença entre o real e sua representação discursiva, tendendo no extremo a negar a realidade. Negando também a existência de conexões estruturais e análises causais, substituídas por fragmentos e contingências, opõe-se a conceber os sistemas sociais (como o capitalista, por exemplo) como

unidades sistêmicas com leis dinâmicas próprias, afirmando apenas a existência de diferentes tipos de poder, opressão, identidade e discurso, sem nexos estruturados ou explicáveis, o que significa rejeitar não só as antigas “histórias grandiosas”, como também a noção de processo histórico e causalidade inteligíveis, logo, qualquer ideia de escrever a história. Portanto, confundindo realidade com um construto social historicamente variável, os intelectuais pósmodernos tendem a constituir uma epistemologia dúbia, e, embora muitos não subscrevam o relativismo (e até solipsismo) epistêmico extremo, seus pressupostos acabam por conduzir a tal. A despeito de seu mérito, a ênfase nos saberes específicos e na diferença de identidades particulares, tais como gênero, etnia, sexualidade implica, na visão pós-moderna, uma rejeição do conhecimento “totalizante” e de valores “universalistas”, incluindo as concepções ocidentais de racionalidade, igualdade (quer liberais ou socialistas), humanidade e emancipação humana geral, de cunho iluminista ou marxista. A política nos sentidos tradicionais do termo, relativos ao poder dominante de classes ou Estado e suas oposições, cede lugar a lutas fragmentadas de identidades ou mesmo pessoais. A crítica ou política anticapitalista, tidas por demasiado totalizantes, não são sequer possíveis, posto que inexistem sistemas no discurso pós-moderno. Deriva daí um ceticismo epistemológico e um pessimismo político profundos que, em contrapartida, sustentam-se numa visão bastante otimista da prosperidade capitalista e o que dela se espera usufruir (somente abalada no presente ano, com a crise mundial das bolhas especulativas). Se os pós-modernos representam uma reação às condições do mundo contemporâneo – e é importante frisar que têm base material e cultural para tal –, costumam associar um tanto simploriamente, porém, os males do capitalismo ao Iluminismo, para onde dirigem suas críticas, tornando-se indiferentes ou incapazes ante o poder do capital, acabando por reiterar o processo de naturalização deste, bem como a confortável irresponsabilidade ético-política do cidadão comum. Assim, tudo somado, o que se vê na virada do século XX para o XXI, é o declínio daqueles critérios e princípios norteadores do pensamento e da conduta que traçam a fina linha entre o humano e o inumano, e que haviam sido construídos no período da “trégua”. A ONU, além de financeiramente deficitária, não cumpre satisfatoriamente seus objetivos primordiais de supremo órgão regulador das nações; o direito internacional é desrespeitado; os direitos humanos são desprezados em toda parte, por Estados, grupos civis, religiosos ou paramilitares. Desfizeram-se os alinhavos nos rasgos da história que os fios de costura no segundo pós-guerra haviam cuidadosamente intentado. Com efeito, mostra-se acertada a formulação adorniana: o caráter formadorhumanizador da cultura só poderia subsistir como manifestação de uma dialética negativa, a

elaboração reflexiva ou estética de uma ferida que rechaça tanto o consolo lírico quanto a pretensão de recompor os elos de uma cadeia sistêmica rompida 20. Parece haver ocorrido, porém, o contrário. Uma cisão mais profunda nos laços sociais e um afastamento entre pensamento e experiência comum maior do que se supunha permitiram, por um lado, o retorno de princípios conservadores – tais como a defesa de bandeiras racistas, xenófobas, patriarcais, homofóbicas, ditatoriais etc. que voltaram a ser abertamente levantadas nas páginas da imprensa, nas imagens midiáticas, nos debates universitários, por parte de alunos e professores (!) muito ciosos de suas convicções –, diante dos quais Alain Badiou 21 sugere, ironicamente, falar em uma nova “Restauração”, desde as últimas décadas do século XX, em alusão ao movimento pós-napoleônico de restauração do Antigo Regime na Europa. Em um outro lado do mesmo poliedro, observa-se um vasto processo de dessolidarização, violência e desumanização no cerne do cotidiano de todas as classes e países, patenteando a vitória da razão instrumental e o impedimento da eticidade – compreendida como construção de uma razão coletiva e dialógica –, a vitória dos valores reificantes sobre os humanizadores, da mercantilização sobre todas as relações sociais, configurando o quadro que Menegat aponta como a “crise da crise da modernidade”22. É certo que no Brasil – como em todos os países cuja situação de ex-colônia ou de dependência econômica e política os condicionou à pobreza ou a incontáveis limites para o decantado progresso ou desenvolvimento – há diferenças importantes no que se refere à constituição da cultura e da assim chamada civilização, bem como às suas crises e seus eventos e datas demarcatórias. A herança dos quatrocentos anos de escravidão, da sociedade senhorial, patriarcal e conservadora, o legado inquisitorial e patrimonialista, as práticas republicanas oligárquicas e autoritárias, a cultura do favor e do subterfúgio diante das falhas na racionalidade do Estado ou mesmo da sua ausência, a dupla face da cordialidade, os meandros anti-éticos das relações políticas ou das formas de sobrevivência de diferentes grupos sociais, as ditaduras militares ou civis, a pobreza, a miséria, a doença, o analfabetismo (estatisticamente constatado ou funcional), a concentração de riqueza e a abismal diferença social... carregam a história brasileira com muitos e muitos fardos de violência física e simbólica, os quais – além de terem constituído a contraface do processo civilizatório europeu, como sabido – marcam a nossa cultura com modos bem peculiares (como de resto em toda cultura), e talvez mais árduos (?), de esculpir o humano a partir da pedra. Com esta história nacional se entrecruzam as vicissitudes catastróficas mundiais, como também as linhas de costura buscadas, endossando, umas e outras, os fardos e as esperanças mútuas. O significado da postura conservadora e anti-humanista de alunos brasileiros em sala

de aula, defendendo a prática da tortura, da violência de Estado em nome da ordem, ou de regimes ditatoriais em nome do desenvolvimento econômico, vincula-se decerto a toda nossa trajetória histórica, mas também ao presente contexto mundial de “Restauração” ou “crise da crise” dos pilares culturais modernos, que buscaram estruturar o mundo racional e “humanisticamente”. Nos anos 70, durante a vigência da ditadura militar no país, o processo de modernização conservadora23 conduzida pelo Estado, quer no plano econômico quanto no educacional, administrativo e cultural em geral, contribuiu para efetivar-se justamente aquilo que Adorno recomendava evitar, isto é, o consolo lírico e a tentativa de recompor os elos sistêmicos rompidos: reprimidos, censurados ou mortos aqueles que recusavam essa solução e buscavam constituir outro tipo de racionalidade sócio-cultural, política e histórica, faltaram ao restante da sociedade, em geral, os elementos reflexivos necessários a uma dialética negativa, para compreender em profundidade suficiente o estado de coisas e recusar a repetição e o agravamento da violência de sua herança histórica. O desastroso resultado foi denunciado em verso e prosa ainda na época, conforme constatam, por exemplo, os versos de “Fado Tropical”, música de Chico Buarque e Rui Guerra, pertencente ao repertório da peça teatral Calabar: “Sabe, no fundo eu sou um sentimental Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dose de lirismo... (além da sífilis, é claro) Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora.” [...] “Meu coração tem um sereno jeito E as minhas mãos o golpe duro e presto De tal maneira que, depois de feito Desencontrado, eu mesmo me contesto” [...]

A ironia com que a contradição é exposta – além de consistir em uma das figuras de linguagem mais utilizadas no período e de remeter ao tema da "cordialidade" como elemento fundamental da cultura brasileira, como estudado por Sérgio Buarque de Holanda –, aponta também, ou sobretudo, para a triste situação de um sentido de humanidade tão degradado que a má-fé do lirismo não pode ocultar. Mesmo que a condição do algoz nas atrocidades do século XX tenha sido já discutida, como na obra de Hannah Arendt, a sociedade brasileira ainda não o elaborou o bastante, nem de forma satisfatória, como demonstram os embates em

torno da Lei de Anistia no país. Não cabe fazê-lo nos limites dessas páginas, nem a um autor sozinho “resolver” o que resulta do debate de toda uma sociedade, mas algumas considerações podem ser pertinentes: Não é que ignoremos o ressurgimento da tortura, ou mesmo do assassinato, como parte normal das operações de segurança pública nos Estados modernos, mas é provável que não avaliemos com precisão a dramática reviravolta implícita, considerando-se a longa era de desenvolvimento jurídico, desde a primeira abolição formal da tortura num país ocidental, na década de 1880, até 1914.24

Entre as diferenças qualitativas que Hobsbawm detecta entre o início e o fim do século XX, marcando isto que chama de dramática reviravolta implícita – envolvendo o problema da tortura e da violência exercida pelo Estado sobre seus cidadãos, geralmente justificada pelas doutrinas de segurança nacional –, destaca-se a desintegração de padrões de relacionamento social, mais especificamente, “a quebra dos elos entre as gerações”, o que significa uma fissura entre passado e presente. Isto acontece tanto nas sociedades capitalistas avançadas, onde primam os valores de um “individualismo associal absoluto”, seja nas ideologias oficiais ou mesmo não oficiais, quanto no mundo do assim chamado socialismo real. Em ambos, desde fins do século XX, o passado perdeu seu papel, sua função cartográfica e orientadora dos movimentos humanos, individuais e coletivos, na paisagem do mundo.25 Tal cesura temporal-geracional possui implicações que comumente não são de todo dimensionadas, mas que podem chegar a ser devastadoras. Sendo a constituição do humano enquanto tal um processo esforçado de criação social e cultural, não depende ele apenas de cada geração que surge, mas também de um acúmulo histórico derivado da transmissão intergeracional. Aprendemos a “sair da pedra” com nossos pais e avós, embora haja sempre dimensões inusitadas desse movimento a cada novo contexto, que demandam relações fraternais horizontais, quando não a própria solidão, para que se possa discernir o joio do trigo na herança transmitida, de modo a tecer novas formas de sociabilidade e, por sua vez, legar novas heranças. No ensaio “A Imaginação como elemento político”, escrito nos anos de chumbo do Brasil, Roberto Schwarz observava a existência nos meios artísticos e intelectuais brasileiros de “sinais rápidos e fragmentários da sobrevivência da razão política, e instâncias para não deixá-la morrer”. Encontravam-se tais sinais no valor da imaginação intelectual concebida “na dimensão idiossincrática da existência pessoal”, da qual derivava a “tensão de uma expectativa espiritual” de transmissão de conhecimento:

Note-se a aparência arcaica deste processo de transmissão, onde ocasionalmente e pelas razões mais pessoais, sempre exigindo intensidade mental, um indivíduo assimila alguma coisa de outro. Concebe-se algo mais marginal em face da eletrônica e do grande público? Pois bem, uma das revelações implicadas nesses testemunhos poder-se-ia resumir, justamente, na consistência e constância de atuação deste processo antediluviano de influência e formação pessoal. [...] Se a reflexão coletiva sobre o futuro e os caminhos possíveis esteve monopolizada e esterilizada por uma organização prático-teórica de alcance tremendo, o que não é exagero, a esfera da aventura pessoal seria o que resta, e apareceria como um reduto onde garimpar manifestações não-falsificadas, embora idiossincráticas por definição, o desejo social de homens vivos. O horizonte próximo é brasileiro, dado pelos anos negros da ditadura na primeira metade da década de 70. [...] Neste contexto, o recurso à linha interior do indivíduo designa e traz à consciência de uns tantos uma força possivelmente capaz de competir, ainda que apenas no foro íntimo, com as compensações do milagre econômico e do anticomunismo a que cumpria sobreviver.26

Tudo indica, na história brasileira recente, que a “reflexão coletiva sobre o futuro e os caminhos possíveis” foi de tal forma esterilizada, como sugere o autor, que, com exceção de alguns indivíduos ou pequenos grupos, entre os quais se mantém o “processo antediluviano” e mentalmente intenso de formação interpessoal, o fio de transmissão de experiência e conhecimento acerca dos sentidos do ser-além da brutalidade, da relação entre liberdade e humanidade, ou a noção mínima de respeito à integridade do corpo-espírito alheio também aqui se rompeu. No vazio promovido pela ausência desse fio, o reconhecimento da humanidade do outro que constitui o “calor humano” abre espaço para ser substituído pelo que Adorno denomina “a frieza das mônadas sociais” 27, ou seja, indivíduos isolados cuja subjetividade danificada é selada pela competição e pela indiferença quanto ao destino alheio, ou o destino comum. A questão benjaminiana, acerca da suspensão da transmissão da experiência na modernidade, adquire neste ponto suas feições mais terríveis, ao atingir o próprio cerne constitutivo do humano. Esta palavra mesma, assim como “liberdade”, “razão”, “fraternidade”, “democracia”, “igualdade e diferença”, “revolução”, entre tantas outras, já são transmitidas, quando o são, desprovidas da substância emancipadora que um dia possuíram28, quando traziam a memória ainda imbuída dos esforços dos escravos de Miguelângelo. Que versos agora nos redimiriam?

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Resumo Partindo da experiência atual de desconsideração de pressupostos básicos do humanismo, diante da crescente violência que assola a sociedade brasileira, este texto propõe uma certa interpretação sobre o significado de “cultura” e sua dissolução ao longo do violento século XX, em geral, e da história recente do Brasil, em particular, considerando os meios reflexivos encontrados por alguns autores – como Primo Levi, Adorno, Hobsbawm, entre outros – para reafirmar criticamente um sentido de humanidade. Palavras-chave: cultura - (des)humanização - crise da modernidade Abstract The present text, basing on a general experience of despite concerning the humanist values, in face of the crescent violence that we see today in Brazilian society, proposes a kind of interpretation about the meaning of the word “culture”, and its dissolution during the XXe. century, as a whole, and during the recent Brazilian history, in particular, considering the means some authors have found – as Primo Levi, Adorno, Hobsbawm and so one – to reconsign critically a sense of humanity. Key-words: culture - (des)humanization - the modernity crisis

Beatriz de Moraes Vieira é doutora em história social pela UFF e professora de história no Instituto de Humanidades e na Faculdade de Direito/Niterói, da UCAM. [email protected] tel (21) 2245-8228 e 9733-5893

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O presente texto resulta de minha experiência como professora da disciplina de História do Direito, na faculdade de Direito da UCAM-Niterói, especialmente do fato de assistir alunos (em certos casos respaldados por alguns professores) defenderem acriticamente a prática da tortura e da violência por parte do Estado, em geral quando se posicionam diante da crescentemente violenta experiência social em que nos encontramos. As reflexões aqui compartilhadas são fruto da angústia dessa situação e deste tempo. 2 “Considerai vossa semente:/Não fostes feitos para viver como animais,/mas para buscar virtude e conhecimento” [tradução livre]. São versos do canto de Ulisses, no XXVI Canto do Inferno da Divina Comédia. Na tradução brasileira de Cristiano Martins: “Relembrai vossa origem, vossa essência:/criados não fostes como os animais, mas donos de vontade e consciência.” DANTE ALIGHIERI. A Divina Comédia. v.1. Trad. e notas Cristiano Martins. 2.ed. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1979, p.328. Este relato de Primo LEVI encontra-se no livro É isto um homem? Trad. Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p.116. Agradeço ao prof. Marildo Menegat haver-me chamado a atenção para o sentido desses versos na obra de Primo Levi. Em grandes linhas, a estrutura do presente artigo deriva do livro deste professor: MENEGAT, M. Depois do fim do mundo: a crise da modernidade e a barbárie. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/Faperj, 2003, e ao grupo de estudos e debates que se formou em torno de seu trabalho. 3 Refiro-me especificamente às quatro esculturas dos “Prigioni”, postos na galeria de entrada da Galleria della Accademia, em Florença. Para uma visão dessas imagens, ver as reproduções da obra de Miguelangelo, como em SANTINI, Loretta. Michelangelo: pittore, scultore, architetto. Roma: Plurigraf, 1982, p.58-61. 4 Cf. verbetes “cultura” e “civilização” em LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 5 No poema de abertura do livro, se lê: “[...] pensem bem se isto é um homem/que trabalha no meio do barro,/que não conhece paz,/que luta por um pedaço de pão,/que morre por um sim ou por um não./Pensem bem se isto é uma mulher,/sem cabelos e sem nome,/sem mais força para lembrar,/vazios os olhos, frio o ventre,/como um sapo no inverno.[...]”. LEVI, Primo. op.cit., p.9. 6 HOBSBAWM, Eric. O Século: vista aérea. In: Era dos extremos: o breve século XX. Trad. Marcos Santarrita. 2.ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1995, p.22. 7 Cf. MENEGAT, M. Depois do fim do mundo, p.61 ss. Trata-se de uma análise, como se vê, fundada em premissas frankfurtianas. 8 Cf. TRAVERSO, Enzo. L'Histoire dechirée. Éditions du Cerf, Paris, 1997. Esta obra, na encruzilhada da história das idéias, dos intelectuais e da sociologia da cultura, busca reconstruir a primeira reflexão realizada sobre o genocídio judeu, nos anos 40 e 50, quando ainda não havia encontrado lugar no seio da cultura européia, que se manteve cega à catástrofe por um bom tempo. Estudando vida e obra dos exilados judeu-alemães e de sobreviventes do massacre nazista, explora uma paisagem composta de pensamento filosófico (Adorno, Anders), político (Arendt) e literário (Levi, Améry, Celan), para discutir questões éticas e epistemológicas, considerando as feridas infringidas à cultura, a tal ponto que Auschwitz (termo simbólico de todo este processo) se tornou um “rasgo na história”. O livro foi aqui utilizado em sua tradução espanhola: TRAVERSO, E. La historia desgarrada: ensayo sobre Auschwitz y los intelectuales. Barcelona: Herder, 2001. 9 TRAVERSO, idem, p.154. A frase citada traz a bela imagem da “história rasgada” que o título sintetiza. Os demais raciocínios do autor aqui trabalhados estão no mesmo capítulo, passim. 10 ADORNO, T. Crítica cultural e sociedade. In: Prismas. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Ática, 1998, p.26: “quanto mais totalitária for a sociedade, tanto mais reificado será também o espírito, e tanto mais paradoxal será o seu intento de escapar por si mesmo da reificação [...] A crítica cultural encontra-se diante do último estágio de dialética entre cultura e barbárie: escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de porque hoje se tornou impossível escrever poemas.” 11 Em referência aos imperativos categóricos que Kant, na Crítica da Razão Prática, estabelece como imperativos éticos necessários à civilização, especialmente aquele que determina que o ser humano deve ser sempre um fim, jamais um meio para os outros. Diz Traverso que, sobretudo na Dialética Negativa, Adorno insistia em que a experiência de Auschwitz mudou o olhar sobre a cultura e a história, e passou a exigir das novas gerações uma nova postura ética: “um novo imperativo categórico: pensar e atuar de modo que Auschwitz não se repita, que nunca ocorra nada parecido”, nas palavras do próprio Adorno. Cf. TRAVERSO. La historia desgarrada, cap.5, p.154. 12 Cf. Ibidem, p.134. 13 ODÁLIA, Nilo. O Brasil nas relações internacionais: 1945-1964. In: MOTA, Carlos Guilherme. (org). Brasil em perspectiva. 17 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988, p.351-353. Grifos do autor. 14 Cf. MENEGAT, op.cit., p.173. 15 SENNET, R. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Record, 1999. 16 Para um debate sobre as diferentes formas de fraternidade, aquela que respeita a alteridade e aquela que a subsume por fundir o eu e o outro, ver BADIOU, Alain. El siglo. Trad. ao espanhol Horacio Pons. Buenos Aires: Manancial, 2005, p.126-127. 17 BAUMAN, Z. Globalização, as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. Igualmente, observa Hobsbawm que “talvez a característica mais impressionante do fim do século XX seja a tensão entre processo de globalização cada vez mais acelerado e a incapacidade conjunta das instituições públicas e do comportamento coletivo dos seres humanos de se acomodarem a ele”. Op.cit., p.24. 18 Cf. MENEGAT, M. Quem são os bárbaros? In: O olho da barbárie. São Paulo: Expressão Popular, 2006, cap.3.

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WOOD, E. “O que é a agenda ‘pós-moderna’”, in: WOOD e FOSTER. Em defesa da história. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999, p.7-22. 20 Cf. TRAVERSO, op.cit., p134. Em caso contrário, a cultura se torna aderente à desumanização que a dizima, à sua própria dissolução, pois que, por definição, ela funda os laços sociais imprescindíveis ao humano. 21 Cf. BADIOU, op.cit. 22 Cf. MENEGAT, Depois do fim do mundo, parte II. 23 Para uma discussão da origem e significado desse conceito, com uma conclusão inteiramente diversa desta aqui apresentada, ver DOMINGUES, José Maurício. A Dialética da modernização conservadora e a nova história do Brasil. Dados - Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v.45, n° 3, 2002, pp.459-482. 24 HOBSBAWM, op.cit., p.23. 25 Idem ibidem, p.24-25. 26 SCHWARZ, R. A imaginação como elemento político. In: Que horas são?, p.52-54. [Grifo meu]. 27 “A frieza das mônadas sociais, do competidor isolado, enquanto indiferença frente ao destino dos demais, foi precondição para que só uns poucos se movessem. Bem o sabem os torturadores; tantas vezes o comprovam!” ADORNO, Educação após Auschwitz, In: Palavras e sinais, modelos críticos 2. Petrópolis: Vozes, pp.104-123; citação à p.120. 28 Alguns autores argentinos discutem o trauma a que a língua foi submetida durante a ditadura militar em seu país (1976-1983), quando palavras, sintagmas e enunciados diversos foram degradados pela ação repressora, que não se sustentara apenas na censura, mas também em uma espécie de língua estatal que culpava a sociedade e que produzia enunciados corrompidos, fazendo-os perder seu valor de designação. Slogans, eufemismos, toda uma fraseologia que ocultava a violação dos direitos humanos caracterizam este processo, percebido pelos argentinos como um arruinamento de sua língua por parte do regime ditatorial. Cf. MANZONI, C. (org). Violencia y silencio: literatura latinoamericana contemporânea. Buenos Aires: Corregidor, 2005. A discussão sobre o trauma na linguagem, iniciada pelos alemães, já encontra alguma repercussão no Brasil, embora me pareça que muito há ainda a ser estudado sobre as mudanças de sentido nas palavras derivadas do processo cultural vivido sob os vinte anos de ditadura militar no país.

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