Os espaços literários portugueses das narrativas infantojuvenis de Ana Saldanha

Share Embed


Descrição do Produto

Literatura e Turismo: Turistas, viajantes e lugares literários

{ 56 } Referências bibliográficas BASTO, A. M. (1932). O Porto do Romantismo. Coimbra: Imprensa da Universidade. BRITO, A. F. (1997). O Porto e a Literatura Romântica. In H. C. Buescu (Org.), Dicionário do Romantismo Literário Português (pp. 434-437). Lisboa: Caminho. BUESCU, H. C. (1990). Incidências do Olhar: Percepção e Representação. Lisboa: Caminho. ___________ (1997). Descrição. In H. C. Buescu (Org.), Dicionário do Romantismo Literário Português (pp. 120-127). Lisboa: Caminho. CABRAL, E. (31 de outubro de 1997). Escreveu de Leve, Morreu de Leve. Público: Artes e Ócios, 5. COLLOT, M. (2012). Rumo a uma Geografia Literária. (Trad. Ida Alves). Gragoatá, 33 (2), 17-31. CUNHA, C. (2010). A(s) Geografia(s) da Literatura: do Nacional ao Global. Provas de Agregação em Teoria da Literatura. Portugal: Universidade do Minho. DINIS, J. (s/d a). Uma Família Inglesa. In J. Dinis, Obras de Júlio Dinis (pp. 589895), vol. I. Porto: Lello & Irmão Editores. _______ (s/d b). Inéditos e Esparsos. In J. Dinis, Obras de Júlio Dinis (pp. 521905), vol. II. Porto: Lello & Irmão Editores. HERCULANO, A. (1879). Opúsculos, vol. IV. Lisboa: Casa Viúva Bertrand & Sucessores Carvalho e Cª. PEREIRA, G. M. (1986). Estruturas Familiares na Cidade do Porto em Meados do Século XIX: A Freguesia de Cedofeita. Dissertação de Mestrado em História Moderna e Contemporânea. Portugal: Faculdade de Letras da Universidade do Porto. PINTO, J. R. (2007). O Porto Oriental no Final do Século XIX: Um Retrato Urbano (1875-1900). Porto: Edições Afrontamento. QUEIROZ, A. (2010). Convite para as Paisagens Literárias Urbanas. http://paisagensliterarias.ielt.org/config/paisagensliterarias/conteudo/pp/ queiroz_iel t_final-rev.pdf (consultado 27 maio 2015). REIS, C. e LOPES, A. C. (2011). Dicionário de Narratologia. Coimbra: Livraria Almedina. SANTOS, M. L. L. (1979). Sobre os Intelectuais Portugueses no Século XIX: Do Vintismo à Regeneração. Análise Social: Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, XV (57), 69-115. SILVA, G. (2008). Porto: Sítios com História. Cruz Quebrada: Casa das Letras. _______ (1989). O Porto de Júlio Dinis. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 384, 1. STERN, I. (1972). Júlio Dinis e o Romance Português (1860-1870). Porto: Lello & Irmão Editores. WILLIAMS, R. (1973). The Country and The City. Londres: Chatto & Wind. __________ (1961). The Long Revolution. Londres: Chatto & Windus.

Os espaços literários portugueses das narrativas infantojuvenis de Ana Saldanha Ana Rita Gonçalves Soares IES San Clemente [email protected]

1. Nota introdutória A produção literária infantojuvenil portuguesa contemporânea privilegia o contacto com o património geográfico, histórico e cultural português, um processo apoiado pela progressiva afirmação de temáticas relacionadas com o quotidiano adolescente, e pela consolidação de um mercado juvenil nacional que se verificou principalmente durante a década de 1980. Dessa tendência são exemplo autoras com uma presença significativa no mercado editorial português atual, como Alice Vieira, Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada – que situam a maior parte das suas narrativas na capital portuguesa – ou Álvaro Magalhães, natural do Porto, que opta por utilizar a sua cidade como espaço literário privilegiado. O mesmo se verifica com autoras como Agustina Bessa-Luís, que utiliza o Norte de Portugal como cenário ou António Mota, que descreve frequentemente as aldeias do Douro Litoral. A estes junta-se Ana Saldanha, considerada por Francesca Blockeel (2001: 108) como uma das mais prolíferas escritoras infantojuvenis em Portugal, e reconhecida como uma das “principais escritoras portuguesas no domínio da literatura para adolescentes.” (Gomes e Pires, 2011: s/p). Tal como nos casos mencionados anteriormente, também as narrativas da autora portuense repetem algumas das tendências da produção literária infantojuvenil publicada em Portugal depois de 1974 como, por exemplo, a representação privilegiada de espaços da geografia portuguesa, com particular destaque para o ambiente urbano (Blockeel, 2001: 225-242). Ana Saldanha explora com frequência questões recorrentes do quotidiano dos/as adolescentes atuais, como a falta de afetividade, os problemas geracionais, os conflitos e os preconceitos sociais e a inadaptação. Simultaneamente persistem nas suas obras temas tradicionais de caráter político, social e cultural, recorrentes na produção literária nacional (Balça, 2008: 7). O contexto citadino português que é apresentado nas novelas da autora confere portanto às histórias um realismo acrescido, dado que, como comenta Ana Tavares Fonseca (2012: 27), estes são temas que refletem a sociedade urbana atual. Excluindo a coletânea Pico no Dedo, as dezassete narrativas infantojuvenis publicadas entre 1995 e 2005 nas coleções “Vamos Viajar”, “Edinter Jovem”, “Livros do Dia e da Noite” e “Era uma vez…outra vez” são exemplos dessa tendência: representam espaços que potenciem a proximidade com a entidade leitora e que conferem simultaneamente maior verosimilhança ao enredo. Como se pode constatar na tabela 1, onze delas incluem referências

A. Soares

Literatura e Turismo: Turistas, viajantes e lugares literários

{ 58 }

toponímicas inequívocas e nove – sobre as quais incide este artigo – situam a sua ação no Porto e, de forma secundária, no Minho e no Algarve. Tabela 1: Quadro-síntese dos espaços das narrativas Obra

Espaços

A Caminho de Santiago

Porto (Portugal) Barcelos (Portugal) Ponte de Lima (Portugal) Vigo (Espanha) Santiago de Compostela (Espanha)

Animais e Cª

Porto (Portugal) Maia (Portugal) Santarém (Portugal)

Dentro de Mim

Porto (Portugal) Póvoa do Varzim (Portugal)

Doçura Amarga

Porto (Portugal) Génova (Itália) Florença (Itália) Veneza (Itália) Roma (Itália) Atenas (Grécia)

Escrito na Parede

Porto (Portugal)

Irlanda Verde e Laranja

Porto (Portugal) Portaferry (Irlanda do Norte)

Num Reino do Norte

Porto (Portugal) Lichfield (Inglaterra)

Uma Questão de Cor

Porto (Portugal)

Umas Férias com Música

Porto (Portugal) Prades (França)

Fonte: Elaboração própria.

Neste universo ficcional de potencial receção infantojuvenil contempla-se a existência de duas entidades leitoras, com diferentes capacidades de interação com o texto: a criança/jovem e o/a adulto/a (que atua, frequentemente, como mediador/a). O público-alvo mais jovem, embora seja capaz de compreender e analisar estratégias verbais e icónicas, poderá aceder ao texto com maior eficácia com o auxílio de um/a mediador/a, que tem como função facilitar livros e ferramentas que possibilitem a formação de leitores/as competentes (Roig Rechou, 2013: 15-17). Retomando as considerações anteriores, note-se que as obras de Ana Saldanha proporcionam elementos que podem ser amplamente explorados pelos/as mediadores/as no sentido de despertar o interesse e de instruir os/as mais novos/as. Por se tratar de um universo narrativo delimitável do ponto de vista espacial, os lugares mencionados podem ser objeto de análise e debate,

estimulando possivelmente nas crianças e nos/as adolescentes “la necesidad o curiosidad de querer comprobar el parecido entre la realidad y la descripción plasmada en el libro.” (Magadán Díaz e Rivas García, 2011: 9). Nesse sentido, entre as práticas de promoção de leitura pode estar, por exemplo, uma visita ao centro da cidade do Porto norteada pelas descrições de Daniel (protagonista de Escrito na Parede) ou uma viagem até Santiago de Compostela que repita os passos dos/as jovens personagens de A Caminho de Santiago. 2. Representação espacial nas narrativas infantojuvenis de Ana Saldanha Nas obras analisadas, as personagens principais narram as suas próprias vivências, uma opção discursiva que potencia a proximidade com o/a recetor/a preferencial. Com esse objetivo, Ana Saldanha adota frequentemente o arquétipo do contador de histórias na primeira pessoa, uma estratégia que dota os relatos de parcialidade, condicionando e manipulando a codificação e perceção dos espaços por parte dos/as leitores/as. A entidade leitora identificase assim com as personagens, com os seus gostos e preocupações, além de se rever nos universos ficcionais retratados – entre os quais se destacam o familiar e o escolar, como se pode ver na ilustração 1 – e, em muitas circunstâncias, pode até conhecer os espaços urbanos recriados, caracterizados por um grande grau de realismo descritivo. Segundo Mike Robinson e Hans Christian Andersen (2003: 24), a produção literária infantojuvenil mais canonizada “provides a rich vein for purpose-built attractions and theme parks in the entertainment industry”, destacando-se aliás como o género dominante no que se refere ao aproveitamento da relação entre literatura e turismo. Os editores de Literature and Tourism relacionam este fenómeno precisamente com o realismo descritivo dos cenários das histórias direcionadas para os/as mais jovens, e também com a importância para o setor turístico do chamado “family market” (ibidem). Conclui-se portanto que, talvez em maior escala do que em qualquer outro género, as narrativas infantojuvenis apresentam características que incentivam os/as leitores/as, os/as mediadores/as e até a indústria do turismo a explorar a relação que nelas se estabelece entre espaço real e espaço ficcional.

Ilustração 1. Escola Secundária n.º2 Fonte: Saldanha (1995a).

As cinco obras da coleção “Vamos Viajar” foram publicadas pela editora Campo das Letras entre 1995 e 1997, e reeditadas, em 2010 e 2011, pela

{ 59 }

A. Soares

Literatura e Turismo: Turistas, viajantes e lugares literários

{ 60 }

Editorial Caminho. Como o título da coleção indica, o tema central das histórias são as viagens de Cláudia e dos/as seus/as amigos/as a pequenas cidades europeias como Lichfield, Prades ou Santiago de Compostela. Estes espaços assumem, contudo, um papel complementar ao foco da ação no Porto, onde a protagonista reside “no 135 da Rua de Ponte de Sor, mesmo ao fundo da rua de Alter do Chão.” (Saldanha, 1995a: 20). Através do tópico da viagem, esta coleção dá à entidade leitora a oportunidade de ampliar a sua capacidade de diálogo com outras culturas e, simultaneamente, permite visibilizar temas da sociedade portuguesa contemporânea, como a emigração ou o meio ambiente. Reiterando o que foi dito nos parágrafos anteriores, pode constatar-se que Ana Saldanha utiliza com frequência os cenários que descreve – alguns deles pouco retratados na literatura portuguesa – como um pretexto para expor a entidade leitora a temas sociais que marcam a realidade de Portugal e/ou dos países representados. Na coleção “Vamos Viajar” em particular, a diversidade de cenários e de culturas retratados permitem também visibilizar o tópico do “país estrangeiro” e, portanto, a dicotomia identidade/alteridade – uma vertente pouco explorada na produção literária preferencialmente vocacionada para um destinatário infantojuvenil (Blockeel, 2001: 314). José António Gomes (1998: 47) situa a coleção “Vamos Viajar” na mesma linha da conhecida série de Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, onde as autoras manifestam interesse em transmitir aos leitores e leitoras conhecimentos geográfico-culturais, históricos e artísticos sobre Portugal. António Garcia Barreto (2002: 265) considera que também os “Os Imbatíveis” (1997 - 1999), da autoria de Manuela Moniz Lopes e Cremilde Madail – atualmente sob a chancela da Civilização Editora – partilha características com a coleção “Vamos Viajar”, entre as quais o interesse em representar cidades estrangeiras e incluir múltiplas alusões a monumentos e locais relevantes da sua geografia urbana. Estas coleções refletem, portanto, um objetivo pedagógico-didático associado à representação dos espaços literários plasmado, por exemplo, na inclusão de dados históricos e culturais, na introdução de fragmentos noutras línguas – complementados com notas explicativas em língua portuguesa – e na descrição de pormenores relativos a paisagens, climas, hábitos e costumes que sedimentam a reconstrução ficcional dos espaços. Em suma, a literatura infantojuvenil em geral e estas coleções em particular assumem-se frequentemente como “reservoirs of particular knowlegdes from which readers can extract images, identities and imaginings of places and people.” (Robinson, 2013: 40). No caso de Ana Saldanha, essa vocação formativa manifesta-se ainda na recriação do contexto escolar à qual se aludiu anteriormente, que funciona como pretexto para a autora incluir informações complementares à ação, facultando à entidade leitora dados históricos sobre os lugares visitados pelas personagens:

‘‘

E o nosso professor contou-nos como o tal Offa tinha mandado construir à volta do seu reino uma barreira que continuava a servir de

linha divisória entre a Inglaterra e o País de Gales; […] com a morte do rei Offa, o seu reino entrou em declínio, acabando por ficar sob a alçada do reino de Wessex. (Saldanha, 1995a: 55)

‘‘

As ilustrações da primeira edição da coleção, da autoria de Fernando Oliveira, representam as paisagens e os monumentos descritos com detalhe, respondendo à intenção explícita de instruir a entidade leitora. Como se pode concluir pela observação da ilustração 2, nestas narrativas, a componente visual reforça e complementa a expressão do espaço, ou seja, “words and pictures complement each other’s stories and compensate for each other’s insufficiencies.” (Nikolajeva, 2005: 226). A temática comum aos cinco volumes desta série potencia a nomeação e a representação de espaços concretos da geografia nacional e internacional. Note-se nesse sentido que os títulos de três das obras remetem diretamente para o cenário das narrativas: Num Reino do Norte, A Caminho de Santiago e Irlanda Verde e Laranja. Também ao longo das histórias, a autora introduz várias referências toponímicas explícitas como “Porto”, “Santiago de Compostela”, “Prades”, Ilustração 2. Ponte de Lima Fonte: Saldanha (1995c). “Portaferry” ou “Lichfield”, além de representar seções do espaço físico real – geospace de acordo com a terminologia dos/as investigadores/ as do Instituto de Cartografia e Geoinformação de Zurique – delimitadas e identificáveis. O primeiro volume da coleção “Vamos Viajar”, Num Reino do Norte (1995), evidencia algumas das características do estilo que Ana Saldanha viria a manter nas histórias editadas posteriormente. Entre elas destaca-se a importância do espaço físico como um dos alicerces da construção narrativa, consolidado graças aos “offer information about places and historical epochs, which go beyond the young readers’ experience.” (Nikolajeva, 1997: 41), introduzidos com subtileza nas imagens ou nos diálogos entre Cláudia e os demais personagens. Esta narrativa descreve as férias da Páscoa passadas em Lichfield, no Reino Unido, incluindo a chegada ao aeroporto de Heathrow e a visita ao castelo de Warwick. Retomando as considerações anteriores, parece correto concluir que a inclusão reiterada de topónimos é uma das características mais notórias desta série: além da palavra “Inglaterra”, repetida trinta e sete vezes, também são apresentadas referências a cidades como Birmingham ou Tamworth, a cerca de doze quilómetros de Lichfield. Estas alusões assumem uma função

{ 61 }

A. Soares

Literatura e Turismo: Turistas, viajantes e lugares literários

{ 62 }

denotativa – indicando “the geographical range and horizon of a fictional space” (Reuschel et al, 2009: 2) – e sedimentam também a importância do espaço como potenciador do desenvolvimento da narrativa, uma estratégia coerente com a temática da viagem. No segundo volume da coleção “Vamos Viajar”, Umas Férias com Música (1995), Ana Saldanha descreve a viagem de Cláudia e dos/as seus/ suas amigos/as até Prades, que a protagonista compara com uma cidade pequena da província portuguesa. Tal como nos demais volumes da série a autora mantém a estrutura diarística e dialogada, além de construir o relato da viagem de Cláudia num registo coloquial que contribui para a criação de empatia entre a protagonista e o/a potencial recetor/a. Esta narrativa permite também visibilizar o tema da emigração portuguesa através da história do primo Adérito – emigrado em Paris há dez anos, voltava apenas a Portugal durante as festas de verão da aldeia – ou da experiência da dona Alcinda da mercearia, que tinha visitado recentemente a irmã que estava a trabalhar em França:

‘‘

A dona Alcinda saiu do balcão e veio fazer-me companhia à porta: – Ai, adorei, Claudinha, é quase como a nossa terrinha: tudo muito verde, muito arranjadinho, dá gostinho. Que eu praticamente não saí da casa da minha irmã. Que a minha irmãzinha tem uma casinha que é um miminho, lá isso é. […] A dona Alcinda tem uma irmã que é emigrante em França e, depois de muitas insistências, tinha ido visitá-la. (Saldanha, 1995b: 33)

‘‘

Revista e alterada aquando da segunda edição (2010), a novela A Caminho de Santiago (1995) retoma o esquema narrativo dos volumes precedentes: a viagem é, novamente, o motor diegético desta história. Sara Reis da Silva (s/d) considera que este volume “representa também um interessante «roteiro» (naturalmente com as devidas «reservas») de visita à cidade galega”. A observação da investigadora alude à utilização reiterada de topónimos – entre os quais nomes de ruas – e à inclusão de um mapa do centro de Santiago de Compostela. Estas características confirmam a capacidade destas novelas de, em certa medida, “substituir a las guías turísticas e invitar al turista a viajar a los escenarios de ficción novelada, además de servir como guía del viaje” (Madagán Díaz e Rivas García, 2011: 9). A etapa Porto – Barcelos é a primeira das cincos descritas na obra, até à chegada a Santiago de Compostela. Durante a viagem as personagens pernoitam em Ponte de Lima e, na manhã seguinte, vão a Valença. Por último, depois de uma paragem no El Corte Inglés de Vigo, a protagonista e os seus amigos passeiam em Santiago de Compostela “pelas ruas estreitas e pitorescas à volta da Catedral, pela Rua de San Francisco, pela Rua do Vilar, pela Rua Nova.” (Saldanha, 1995c: 98). A nomeação das ruas, aliada à representação de um mapa (apresentado na ilustração 3), condiciona e orienta a assimilação das referências espaciais por parte da entidade leitora.

Como salienta Ana Margarida Ramos (2009: 45), a presença destes elementos “permite […] estabelecer afinidades com o discurso de tipo pedagógico ou, pelo menos, de divulgação científica”, além de materializar a interação entre os significantes visuais e verbais, e de responder às necessidades e expetativas do público-alvo pré-adolescente. Estes mapas representam assim “uma espécie de tentativa para o leitor se desconcentrar do seu espaço e do seu mundo e, por uns segundos, recriar a realidade a partir de pontos Ilustração 3. Mapa de Santiago de Compostela de vista alternativos, distantes e, Fonte: Oliveira (1995c). possivelmente, desconhecidos e/ou esquecidos” (idem: 46). No quarto volume, Animais e Cª (1996), Cláudia viaja com Annabel até ao Ribatejo, permitindo à amiga inglesa “ficar com uma imagem muito mais completa de Portugal” (Saldanha, 1996: 18). Como se pode concluir, ainda que Ana Saldanha destaque os “núcleos espácio-culturais afastados de Portugal, […] não se furta a percorrer alguns locais e a dar a conhecer determinados costumes do nosso país.” (Reis da Silva, 2008: 291). Como se verifica nas referências à tourada ou ao uso de animais para fins de investigação científica, Animais e Cª volta a permitir visibilizar temas controversos da sociedade portuguesa, além de destacar espaços da geografia portuguesa pouco recorrentes nas narrativas infantojuvenis. Este cenário permite também à autora explorar os elementos que diferenciam o universo rural e citadino: no Ribatejo, Cláudia – que se assume orgulhosamente como uma jovem citadina – “ia por fim ver cavalos ao perto, e não apenas em desfiles na televisão ou à distância, montados por guardas.” (Saldanha, 1996: 121). Em Irlanda Verde e Laranja (1997), cumprindo simultaneamente o propósito de conferir realismo à narrativa e de instruir a entidade leitora, a autora explicita, por exemplo, o significado de topónimos como Ulster ou Portaferry, recorrendo a explicitações etimológicas e históricas. Reiterando também a intenção pedagógica das narrativas anteriores, as intervenções das personagens tendem a apresentar uma perceção comparativa, oferecendo aos/às leitores/as uma confrontação entre a realidade que potencialmente reconhece (portuguesa) e a narrada: “Por falar em dinheiro, as notas da Irlanda do Norte são diferentes das que estão em circulação no resto do Reino Unido, mas valem o mesmo e podem ser usadas na Inglaterra, no País de Gales e na Escócia […]. É como se a Madeira e os Açores tivessem as suas próprias notas.” (Saldanha, 1997a: 69). Editada em 1997, em simultâneo com alguns dos volumes da coleção “Vamos

{ 63 }

A. Soares

Literatura e Turismo: Turistas, viajantes e lugares literários

{ 64 }

Viajar”, Doçura Amarga narra a história de Loló, uma adolescente diabética. Ana Saldanha apresenta nesta obra a perspetiva de várias personagens que vivenciam a situação de Loló de formas díspares. Ainda que a inexistência de topónimos impeça uma identificação exata do cenário de Doçura Amarga, pode-se concluir que a principal zone of action (Reuschel e Hurni, 2011: 294) está circunscrita a um espaço citadino, possivelmente uma cidade universitária do litoral. Corroborando essa hipótese, Ana Mimoso (2002) inclui esta narrativa quando analisa a presença do Porto na produção literária infantojuvenil contemporânea. Como sugere a investigadora, apesar de não haver direct references (Reuschel et al, 2009: 3), a análise das referências indiretas permite inferir que o cenário da narrativa é a cidade portuense. Tal como na coleção “Vamos Viajar”, os paratextos apresentados nesta narrativa contribuem para o reconhecimento e caracterização do geospace (Reuschel e Hurni, 2011: 294) representado. Nas ilustrações de José Pedro Costa, por exemplo, o cenário, ainda que desempenhe um papel secundário, permite cimentar “estratégias de espacialização a que recorre o relato, reforçam e/ou ampliam os sentidos verbais, fomentam uma perspetiva plural ou plurifocada.” (Reis da Silva, 2011: 162). Nos volumes da autora publicados na coleção “Livros do Dia e da Noite” são retratadas situações familiares de conflito como, por exemplo, o abandono parental ou a violência doméstica. Ana Saldanha dá também destaque a temas como o racismo e a discriminação social, incentivando o respeito mútuo e a tolerância. Como explica Sara Reis da Silva (2008: 289290), as situações narradas permitem o debate sobre “temáticas que marcam a contemporaneidade [...] ganhando, portanto, especial relevo, em alguns momentos, a crítica social.”. Como defende Francesca Blockeel (2001: 227), “na literatura infantojuvenil a interação espaço fictício – espaço do leitor é um fator importante, na medida em que as histórias que se contam às crianças ou que elas leem contribuem para uma melhor perceção de identidade.”. Nesta coleção, ainda que nem sempre seja nomeada uma secção do geospace (geoespaço) e que as imagens contribuam pouco para a identificação dos cenários, o espaço narrativo, essencialmente urbano, facilita a criação de uma rede de padrões que permitem à entidade leitora articular a sua experiência leitora e cimentar “uma melhor perceção de identidade.”. Da série “Livros do Dia e da Noite” destaca-se a novela Uma Questão de Cor, publicada pela primeira vez em 1995 pela editora Edinter e reeditada pela Editorial Caminho em 2002. A narrativa, essencialmente de tipo diarístico, é entrecortada pela presença de outras tipologias textuais, como é o caso da epistolar. Tal como na coleção “Vamos Viajar”, “o registo de fragmentos narrativos, frequentemente pontuados pelo discurso direto […] concede voz às outras personagens, pelo que o dinamismo […] acaba por se sobrepor à análise intimista e subjetiva característica do diário.” (Silva, 2012: 28). A questão do racismo – sugerida desde o título como central no desenvolvimento da novela – surge quando Daniel, primo de Nina, vai viver para o Porto. Como explica Maria Madalena Silva (2012: 26), “a protagonista

toma a seu cargo a defesa do primo, personagem secundária, contra ataques quase exclusivamente traduzidos pela superficialidade de preconceitos irreflectidos.”. A eficácia e o realismo com que Ana Saldanha incide em linhas temáticas controversas como o racismo, justificam que Uma Questão de Cor tenha sido recomendada pela Secção Portuguesa IBBY (The International Board on Books for Young People) e selecionada como obra finalista do Prémio Unesco de Literatura Infantil e Juvenil em Prol da Tolerância de 1997, sendo posteriormente incluída em vários manuais da Porto Editora do 8.º ano de escolaridade. Da mesma coleção salienta-se também Escrito na Parede (2005), uma história que se centra em Daniel, um jovem que vive num bairro degradado do Porto que cheira a cimento húmido. Uma vez mais são representados, predominantemente, os espaços citadinos. Nesta narrativa, os cenários descritos imprimem maior verosimilhança à história, enquadrando os principais conflitos relatados. Os espaços físicos contribuem simultaneamente para realçar as características psicológicas e ocupações rotineiras das personagens. Como comenta Rosa de Fátima Pereira (2009: 135), “deparamonos, portanto, com diferentes personagens, muito heterogéneas, associadas a espaços físicos distintos.”. Esta narrativa inclui descrições detalhadas da cidade portuense, com a inserção reiterada de topónimos que permitem inclusivamente mapear do trajeto seguido pelo protagonista:

‘‘

Em vez de descer a rua em direção à Ribeira, volta para trás e ladeia o Passeio da Cordoaria sob o olhar cego das estátuas do palácio da Justiça. Junto ao Hospital de Santo António, vira à direita. Ao passar pelo quartel da GNR, o hábito fá-lo espreitar para o pátio interior. […] À esquina da Praça dos Leões, junto às igrejas das Carmelitas e do Carmo, vira à esquerda e dirige-se para a Praça Carlos Alberto. (Saldanha, 2005a: 122)

‘‘

Os títulos da coleção “Era uma vez… outra vez”, publicados pela editora Caminho entre 2002 e 2005, recriam contos tradicionais, contextualizando-os na sociedade atual. Como explica Susana Campos (2006: 3) na sua tese sobre a influência dos contos tradicionais nesta coleção, Ana Saldanha apresenta aqui um “espaço diegético de captação de temáticas que textualizam relações do quotidiano características da sociedade contemporânea.”. As histórias desta coleção mantêm um diálogo intertextual com contos clássicos como O Capuchinho Vermelho ou Hansel e Gretel, apresentando atualizações que as aproximam do quotidiano situacional da entidade leitora. Com esse objetivo, a autora afasta-se dos cenários idealizados pelos irmãos Grimm e aposta, maioritariamente, no espaço citadino. Nestas narrativas, contudo, Ana Saldanha raramente utiliza topónimos reais ou descreve espaços que possam ser identificados cartograficamente, optando por utilizar referências que contribuem para a consolidação do imaginário relativo ao hipotexto. Na narrativa Nem Pato, nem Cisne (2003), por exemplo, os nomes das ruas assumem-se como referências a várias espécies de aves,

{ 65 }

A. Soares

Literatura e Turismo: Turistas, viajantes e lugares literários

{ 66 }

sedimentando a alusão ao conto do Patinho Feio: “Do apartamento escuro como um túnel […] para uma moradia na esquina da Rua da Garça Real com a Rua do Rouxinol, no Bairro que se chamava das Aves quando era de renda económica, e que a vizinhança conhecia agora popularmente como Bairro dos Passarões, ou dos Doutores.” (Saldanha, 2003: 21). A principal exceção é a obra Dentro de Mim (2005), na qual a autora transpõe a história da jovem guardadora de cabras – protagonista do conto tradicional A Cabreirinha e o Mal – para a figura de uma jovem adolescente citadina. Nesta narrativa Ana Saldanha inclui alguns elementos que contribuem para a identificação e caracterização do topos urbano, com particular destaque para a menção do centro comercial Texas, também referido na narrativa Escrito na Parede. Assim, ainda que não haja uma menção explícita à cidade portuense, a convergência de algumas indicações geográficas e a analogia com outras obras da autora, permitem inferir que, uma vez mais, Ana Saldanha situa a ação no Porto. 3. Espaços literários portugueses: Estudo comparativo das narrativas Tal como sugere Francesca Blockeel (2001: 228) ao analisar a produção literária contemporânea, “os autores preferem falar da sua própria cidade ou região”. Também no caso de Ana Saldanha é possível reconhecer traços comuns entre a biografia da autora portuense e os cenários das suas obras. A leitura das suas histórias permite, portanto, “rever e encontrar muito do que são as suas próprias vivências filtradas pela imaginação da autora.” (Reis da Silva, 2008: 280). Anabela Mimoso (2002) inclui efetivamente Ana Saldanha, além de Álvaro Magalhães ou António Mota, entre os/as autores/as portugueses/as que utilizam o Porto como cenário recorrente das suas obras. Vários volumes da coleção juvenil “Triângulo Jota” de Álvaro Magalhães decorrem na cidade do Porto: Corre, Michel, Corre (1989), por exemplo, descreve a aventura dos três protagonistas na noite de véspera da festa de São João, no Porto. Ao longo da narrativa, o autor nomeia bairros, ruas e lugares de interesse da cidade monumental. António Mota, ao contrário do anterior, aborda o Porto através da perspetiva do camponês que vê a grande cidade como um lugar de oportunidades. Anabela Mimoso (2002: 14) considera que nas histórias de Os Sonhadores (1991), Os Heróis do 6ºF (1996) ou O Agosto que Nunca Esquecerei (1998) o Porto “é o espaço que marca o fim da infância, por isso é mais referenciado na novela juvenil, e identifica-se com a dignidade conquistada pela força do trabalho e recompensada com um salário tão almejado.”. Em consonância com a tendência das narrativas juvenis de aventuras, as histórias destes autores incluem descrições detalhadas e realistas das cidades que descrevem. Apesar do ritmo agitado da cidade, o Porto não é caracterizado como um lugar desumanizado e alienante. Genericamente, a cidade nortenha é descrita como um espaço apelativo para os jovens protagonistas pela diversidade de lugares icónicos e pelo ambiente desafiante. Simultaneamente

são nomeados com frequência espaços como escolas, cinemas ou centros comerciais numa tentativa de imprimir verosimilhança aos relatos sobre o quotidiano dos jovens que vivem no Porto. Quanto às obras de Ana Saldanha, das nove narrativas que incluem referências toponímicas relativas ao espaço físico português, todas situam a sua ação na cidade portuense. Tal como nas obras citadas anteriormente, nas narrativas da autora, a cidade é apresentada de forma realista, representando lugares icónicos e espaços típicos do topos urbano. Simultaneamente são apresentados dois polos que sintetizam a multidimensionalidade do Porto: 1) a cidade como espaço aliciante e idealizado e 2) a cidade como espaço perigoso e stressante, representante do “dangerous world of adults, with all its temptations, enticing and freighting.” (Nikolajeva, 1997: 41). Coincidindo com as conclusões de Anabela Mimoso (ibidem) sobre quais as marcas de identidade da cidade na produção infantojuvenil contemporânea, também Ana Saldanha refere o Rio Douro, as festas de São João ou os habitantes mais característicos da cidade. Em Escrito na Parede, por exemplo, a autora caracteriza com particular detalhe alguns personagens que encaram “as virtudes da cidade: o espírito mercantilista, leia-se empreendedor, ou de «desenrascanço», a persistência, a solidariedade, o desafio à autoridade” (Mimoso, 2002: 20). Artur e Lindinha dedicam-se à venda de guarda-chuvas, toalhas de praia, canetas, pentes, desodorizantes e gel de banho, dependendo da estação do ano. É no dobrar da esquina da Igreja dos Congregados que Daniel os encontra:

‘‘

Ela está a vender guarda-chuvas à porta do banco e o Artur, encolhido, enfiado, puxa uma fumaça e cospe para o chão, é quase um tique. – Ó freguês, vai um guarda-chuvinha? […] – […] Ó senhor, cuidado! – diz a Lindinha a um homem de meiaidade que dobrou a esquina e se desvia para não tropeçar no caixote de guarda-chuvas. – Veja lá não caia! Ó freguês, vai um guarda-chuvinha? (Saldanha, 2005a: 42-45)

‘‘

À semelhança do que se pode verificar, por exemplo, nalguns títulos da coleção “Triângulo Jota”, também Ana Saldanha privilegia as referências à parte histórica da cidade do Porto. Do corpus analisado, volta a destacar-se o livro Escrito na Parede pelas descrições detalhadas e realistas de várias zonas da cidade portuense, entre as quais a Baixa ou a Batalha, além do Largo da Maternidade, do Jardim da Cordoaria ou do Palácio de Cristal. Analisando os critérios de Anne-Kathrin Reuschel e Lorenz Hurni (2011: 296) quanto à função e significado dos espaços literários, o Porto pode ser classificado com o que denominam thematic scenery: “the scenery is essential for the plot and is described plastically (portrayal of landscapes, architecture and atmosphere).”. Este e outros exemplos permitem concluir que o espaço das narrativas de Ana Saldanha funciona genericamente como integral setting (Nikolajeva, 2005: 127), atuando como caracterizador das personagens, e permitindo justificar e enquadrar as suas atitudes e costumes. Como salienta Reis da Silva

{ 67 }

A. Soares

Literatura e Turismo: Turistas, viajantes e lugares literários

{ 68 }

(2008: 286), “a referência a este espaço físico urbano imprime verosimilhança à narrativa, funcionando como elo de ligação ao real”, uma característica que se deve à correspondência entre o setting narrativo e a realidade representada (Reuschel e Hurni, 2011: 296). Para este objetivo contribui principalmente o grau de detalhe notável com que é descrita a cidade do Porto, uma estratégia que Ana Saldanha não reproduz quando se centra em núcleos geográficos menos cosmopolitas, como o Minho ou o Algarve. Das trinta e três narrativas – publicadas entre 1974 e 1994 – analisadas por Blockeel (2001) dezassete têm Lisboa ou o Porto como cenário, mas apenas seis histórias retratam ambientes mais descentralizados. Analisando as coleções de Ana Saldanha constata-se que nenhum livro foca exclusivamente o cenário rural, ainda que estejam presentes várias referências a lugares que, ao contrário da cidade, se destacam pela presença da Natureza. A narradora da coleção “Vamos Viajar”, por exemplo, estabelece comparações entre o Porto e os lugares que visita, refletindo, frequentemente, sobre a dicotomia cidade-campo. No primeiro volume da série que Cláudia protagoniza, a personagem assume-se como citadina, confessando que “quem é, como eu, da cidade, […] trata a Natureza à distância” (Saldanha, 1995a: 60). Também no livro Umas Férias com Música, Cláudia tenta dissuadir os amigos de fazerem um passeio pelo monte, alegando que, apesar de gostar da Natureza, preferia “passar um dia a respirar o fumo de automóveis e a ver montras” (Saldanha, 1995b: 66). A protagonista considera ainda que em Prades, “metida no meio dos montes”, a única forma de ocupar o tempo será a “comer e dormir” (idem: 16). Também em Doçura Amarga é introduzida, com alguma ironia, a equiparação entre a cidade e a “civilização” que, por sua vez, se opõe ao espaço natural. Constata-se portanto que, ainda que sejam incluídas algumas referências ao campo, nenhuma narrativa se situa integralmente no espaço rural. Note-se também que as deslocações de algumas personagens a estes lugares são marcadas por referências genéricas como “Minho” ou apresentam nomes fictícios, uma tendência que corrobora as conclusões de Blockeel (2001: 232-233):

‘‘

Que o campo é alvo de menos interesse do que o espaço urbano verifica-se também no número maior de livros com espaços não identificados situados no campo. Nas narrativas situadas nas cidades, estas vêm quase sempre nomeadas [enquanto que nas situadas no interior do país] só se conhecem dois sítios, ficando os outros vagos («perto de Viseu») ou tendo um nome fictício.

‘‘

Como foi referido anteriormente, as personagens de A Caminho de Santiago escolhem o itinerário Porto – Barcelos – Ponte de Lima – Valença. A caracterização do Minho, contudo, tem uma presença mais significativa noutras narrativas onde não funciona como espaço narrativo, como, por exemplo, na história Doçura Amarga. Aqui o cenário minhoto atua como delimitador do horizonte ficcional da narrativa e como place of remembering

(Reuschel e Hurni, 2011: 297) – trata-se de um ambiente que é recordado por Gonçalo, um espaço da sua infância – e é descrito como “um lugar de mulheres peludas e atarracadas, com molhos de couves à cabeça e um capão entalado entre o braço esquerdo e o tronco, na outra mão as asas desfiadas de uma cesta de verga.” (Saldanha, 1997b: 16). Anabela Mimoso (2002: 15) considera que Ana Saldanha oferece à entidade leitora “uma visão otimista da vida citadina e o campo aparece como lugar de férias, de descanso” e, muitas vezes, de aventuras imprevistas – uma imagem repetida em várias outras narrativas infantojuvenis. Também o Algarve é representado frequentemente como cenário de férias de verão, reiterando elementos que se repetem nas obras, nas ilustrações e em testemunhos pessoais da autora (Saldanha, 2006: s/p). Como foi referido anteriormente, à semelhança da região minhota, também neste caso é utilizado o hiperónimo “Algarve” em detrimento da menção de cidades ou vilas concretas. Cláudia confessa que “só de pensar nas preparações necessárias para passar um mês a esturricar ao sol, e na viagem interminável para atravessar o país de norte a sul (é que são seiscentos quilómetros!) até me davam dores de cabeça” (Saldanha, 1995b: 11). Perante a sugestão de Afonso de ir acampar para o Algarve no verão, Loló, protagonista de Doçura Amarga, responde de forma semelhante: “Para o Algarve? Para a praia? Mas tu julgas que eu me vou esturricar para o sol? Era só o que me faltava. Detesto praia.” (idem, 1997b: 34). 4. Considerações finais Comparando com o estudo quantitativo realizado por Blockeel (2001), é possível concluir que as obras de Ana Saldanha publicadas entre 1995 e 2005 reproduzem a maior parte das tendências da literatura infantojuvenil portuguesa datada do período entre 1974 e 1994; por exemplo, a representação maioritária de espaços reais, em território português, com particular destaque para o ambiente urbano. Estes espaços servem frequentemente como pretexto para visibilizar temas atuais de caráter social, político ou histórico, respondendo ao propósito pedagógico de instruir, informar ou promover a reflexão por parte da entidade leitora, permitindo ainda caracterizar com maior detalhe a realidade geográfica descrita. Nestas representações, também os paratextos apresentados – ao repetirem imagens associadas a universos reconhecíveis pelo público-alvo – contribuem para o reconhecimento e para a caracterização do geoespaço representado. No caso da Ana Saldanha, o cenário privilegiado é o Porto – de onde a autora é natural – representado em todas as suas obras infantojuvenis publicadas entre 1995 e 2005 que apresentam referências toponímicas inequívocas. A análise destas histórias permite concluir que a cidade do Porto tem principalmente a dupla função de situar as personagens num determinado contexto histórico e socioeconómico, além de assumir o papel de estabelecer um “elo de ligação ao real” (Reis da Silva, 2008: 286), confirmando frequentemente as expectativas da entidade leitora. Parece estar também patente a intenção de Ana Saldanha de visibilizar o norte de Portugal e cidades de países estrangeiros tidas como

{ 69 }

A. Soares

Literatura e Turismo: Turistas, viajantes e lugares literários

{ 70 }

“secundárias”; uma estratégia que pode estar associada não só às vivências pessoais da autora, mas também à tentativa de atrair e despertar a curiosidade dos/as mais novos/as para estes lugares. Nesse sentido, a cidade do Porto é descrita em conformidade com a realidade geográfica, representando principalmente com um grande grau de detalhe os lugares mais icónicos da cidade e aqueles que mais se associam ao quotidiano dos/as jovens. Confirmando novamente a tendência à qual alude Francesca Blockeel (2001: 225-242), os núcleos geográficos menos cosmopolitas, pelo contrário, são caracterizados com traços genéricos e estereotipados, correspondendo a “imagens globais” sobre estes lugares, sem características diferenciadoras claras entre regiões. Note-se nesse sentido que tanto o cenário minhoto como o algarvio atuam frequentemente como delimitadores do horizonte ficcional da história e fazem parte do imaginário dos personagens mas não são espaços narrativos, assumindo assim principalmente um caráter referencial e simbólico. Por último, importa sublinhar que, tanto no âmbito escolar como no extraescolar, a leitura destas obras permite aos/às mais novos/as ter contacto com o património nacional e internacional além de, como se disse anteriormente, promover a reflexão sobre temas sociais, políticos e históricos atuais. Destaca-se, nesse sentido, a importância da figura do/a mediador/a no âmbito da educação literária e a sua função de propiciar práticas culturais associadas à literatura como, por exemplo, o turismo literário.

Referências bibliográficas BALÇA, Â. (2008). Literatura Infantil Portuguesa – de Temas Emergentes a Temas Consolidados. http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4668.pdf (consultado 26 abril 2014). BARRETO, A. G. (2002). Dicionário de Literatura Infantil Portuguesa. Porto: Campo das Letras. BLOCKEEL, F. (2001). Literatura Juvenil Portuguesa Contemporânea: Identidade e Alteridade. Lisboa: Caminho. CAMPOS, S. (2006). Ecos do Passado pela Voz de Ana Saldanha. Revisitar a Memória de Alguns Contos dos Irmãos Grimm e de Hans Christian Andersen. Dissertação de Mestrado em Estudos da Criança. Braga: Universidade do Minho. http://repositorium.sdum.uminho.pt/dspace/bitstream/1822/7374/1/Disserta %c3%a7%c3%a3ode%20mestrado-%20Susana%20Certo%20Campos.pdf (consultado 21 março 2014). FONSECA, A. T. (2012). Representações da Sexualidade na Obra de Ana Saldanha. Dissertação de Mestrado. Aveiro: Universidade de Aveiro. GOMES, J. A e PIRES, M. N. (2011). Biografia de Ana Saldanha. http://www.dglb. pt/sites/DGLB/Portugues/autores/Paginas/PesquisaAutores1.aspx?AutorId=10663 (consultado 13 junho 2014). GOMES, J. A. (1998). Para uma História da Literatura para a Infância e a Juventude. Lisboa: Instituto do Livro e das Bibliotecas. GOMES, J. A., REIS DA SILVA, S. e RAMOS, A. M. (2006). Multiculturalismo, Identidades Permeáveis e Literatura Infanto-juvenil: Comentário com Vista à Formação Leitora de Uma Questão de Cor de Ana Saldanha. In B.-A. Roig-Rechou, I. Soto López e P. Lucas Domínguez (Coords.), Multiculturalismo j Identidades Permeabeis na Literatura Infantil e Xuvenil (pp. 189-201). Vigo: Edicións Xerais de Galicia. MADAGÁN DÍAZ, M. e RIVAS GARCÍA, J. (2011). Turismo Literario. Oviedo: Septem Universitas. MIMOSO, A. (2002). A Cidade do Porto na Literatura Infanto-Juvenil. Malasartes. Cadernos de Literatura para a Infância e a Juventude, 10, 9-20. NIKOLAJEVA, M. (2005). Aesthetic Approaches to Children’s Literature: An Introduction. Maryland: Scarecrow Press. ______________ (1997). Introduction to the Theory of Children’s Literature. Tallinn: Tallinn Pedagogical University. PEREIRA, R. F. (2009). Um Contributo para o Estudo da Personagem e do Leitor em “Escrito na Parede” e em “O Romance de Rita R.”, de Ana Saldanha. Dissertação de Mestrado. Lisboa: Universidade Aberta. http://repositorioaberto.uab.pt/ bitstream/10400.2/1355/1/DISSERTA%C3%87%C3%83O.pdf (consultado 23 março 2014). RAMOS, A. M. (2009). As Histórias que as Imagens Contam – Caminhos de Leitura no Álbum. Malasartes. Cadernos de Literatura para a Infância e a Juventude, 17, 3946. REIS DA SILVA, S. (2011). Entre Textos: Perspetivas sobre a Literatura para a Infância e Juventude. Porto: Tropelias e Companhia. ________________ (2008). Tendências da Narrativa Juvenil Contemporânea: O Caso de Ana Saldanha. Boletín Galego de Literatura, 39, 279-295. ________________ (s/d). Recensão de A Caminho de Santiago. http://195.23.38.178/casadaleitura/portalbeta/bo/portal.pl?pag=sol_la_ fichaLivro&id=2435 (consultado 27 abril 2014).

{ 71 }

Literatura e Turismo: Turistas, viajantes e lugares literários

{ 72 } REUSCHEL, A.-K. e HURNI, L. (2011). Mapping Literature: Visualisation of Spatial Uncertainty in fiction. The Cartographic Journal. http://www.literaturatlas. eu/files/2012/02/Reuschel2011_CAJ.pdf (consultado 10 julho 2014). REUSCHEL, A.-K., PIATTI, B. e HURNI, L. (2009). Mapping Literature: The Prototype of a Literary Atlas of Europe. http://www.literaturatlas.eu/en/2012/01/03/ mapping-literature-the-prototype-of-a-literary-atlas-of-europe/ (consultado 6 abril 2014). ROBINSON, M. (2003). Between and Beyond the Pages: Literature-Tourism Relationships. In M. Robinson e H. C. Andersen (Eds.), Literature and Tourism. Essays in the Reading and Writing of Tourism (pp. 39-79). Cornwall: Thomson Learning. ROBINSON, M. e ANDERSEN, H.C. (2003). Literature and the Creation of Touristic Spaces. In M. Robinson e H. Christian Andersen (Eds.), Literature and Tourism. Essays in the Reading and Writing of Tourism (pp. 1-38). Cornwall: Thomson Learning. ROIG RECHOU, B.-A. (2013). Educación Literaria, Historia Literaria e Literatura Infantil e Xuvenil. In M. M. Silva e I. G. Mociño (Coords.), Literatura para a Infância e a Juventude e Edução Literária (pp. 12-31). Porto: Derivada Editores. SALDANHA, A. (2006). Que Prazer Ter um Livro para Ler. http://195.23.38.178/ casadaleitura/portalbeta/bo/documentos/lmi_a%20Saldanha_a_C.pdf (consultado 04 maio 2014) ______________ (2005a). Escrito na Parede. Lisboa: Caminho. ______________ (2005b). Dentro de Mim. Lisboa: Caminho. ______________ (2003). Nem Pato, nem Cisne. Lisboa: Caminho. ______________ (2002). Uma Questão de Cor. Lisboa: Caminho. ______________ (1997a). Irlanda Verde e Laranja. Porto: Campo das Letras. ______________ (1997b). Doçura Amarga. Porto: Edinter. ______________ (1996). Animais e Cª. Porto: Campo das Letras. ______________ (1995a). Num Reino do Norte. Porto: Campo das Letras. ______________ (1995b). Umas Férias com Música. Porto: Campo das Letras. ______________ (1995c). A Caminho de Santiago. Porto: Campo das Letras. SILVA, M. M. (2012). Uma Escrita de Transição. Contributos para uma Reflexão sobre Literatura Juvenil. In B.-A. Roig Rechou, I. Soto López, e M. Neira Rodríguez (Coords.), A Narrativa Xuvenil a Debate (2000-2011) (pp. 13-36). Vigo: Edicións Xerais de Galicia.

Ler Lisboa através da antologia: O exemplo de Lissabon. Eine Literarische Einladung (2010) Philipp Kampschroer Universidade de Lisboa [email protected]

1. Introdução: Lisboa na Alemanha Terá sido a partir da publicação póstuma do Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, na tradução de Georg Rudolf Lind em 1985, que Lisboa mereceu atenção como cidade literária, na Alemanha. Não se devem naturalmente esquecer as incursões de escritores como Erich-Maria Remarque e Thomas Mann, cujo romance Die Bekenntnisse des Hochstaplers Felix Krull decorre, em parte, na capital portuguesa, dando uma ideia desta cidade aos leitores alemães. Mas começa sem dúvida com Fernando Pessoa e, a seguir, com José Saramago e António Lobo Antunes, a fundação de um interesse profundo pela “Lisboa literária” no público alemão. Esta relativa popularidade transparece também no cinema, com Wim Wenders e o seu Lisbon Story (1994), que marca um ponto importante na historiografia cultural da cidade. Mais recentemente, o romance Nachtzug nach Lissabon (2004), escrito, sob o pseudónimo Pascal Mercier, do suíço Peter Bieri, professor de filosofia em Berlim, despertou um interesse internacional que chegou mesmo a resultar num filme de notável divulgação. Ao mesmo tempo, a cidade do Rio Tejo, sobretudo depois da entrada de Portugal na Comunidade Europeia, tornou-se um dos destinos mais visitados no continente, ganhando uma enorme popularidade na Alemanha. Sem dúvida, um fenómeno que impulsionou também uma maior atenção da imprensa alemã sobre Portugal. Hoje existem numerosos guias turísticos de Lisboa em língua alemã, publicados pelas maiores editoras especializadas em viagem. Na década de 1990, surgiram os primeiros títulos, revelando caminhos alternativos para conhecer a capital portuguesa, isto é, rotas literárias e culturais – uma evolução que reflete a popularidade de Fernando Pessoa, de José Saramago e de António Lobo Antunes, e, por fim, do Fado. Adicionalmente, há dois eventos dos anos 90 que não podemos deixar de referir: a nomeação de Lisboa, em 1994, como Capital Europeia da Cultura e o convite de Portugal como Gastland (“país-tema”) na feira do livro de Frankfurt de 1997, o que resultou em diversas campanhas publicitárias para apoiar a literatura portuguesa, pelas editoras alemãs.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.