Os Estereótipos Colonizadores em \"A Ilha das Almas Selvagens\" (1932)
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REPRESENTAÇÕES DA AMÉRICA LATINA
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Os estereótipos colonizadores em A ILHA DAS ALMAS SELVAGENS. Vítor da Matta Vívolo
“A Ilha das Almas Selvagens” é daquelles filmes que difficilmente a gente se esquece - dizia o colunista John, na sessão “Celluloide” para o Correio de São Paulo de 26 de abril de 1933. E prosseguia: A retina do “fan” soffre dilatações bruscas de accordo com as scenas que acaba de assistir… Muitas exclamações em que se percebe um misto de horror e repugnância eu ouvi de senhorinhas, ao meu lado. Comparemos este relato com os de jornais americanos que, inclusive, chegaram a notar pessoas vomitando nas salas de cinema e compreenderemos o
impacto do filme supracitado sobre a plateia horrorizada. Filme de ficção científica de 1932 produzido pela Paramount Pictures e dirigido por Erle C. Kenton, The Island of Lost Souls1 é a primeira adaptação do romance “A Ilha do Dr. Moreau”, de 1896 por Herbert George Wells. O próprio autor não gostou do que fizeram com sua obra, afirmando que as questões filosóficas por ele propostas foram apagadas pelos elementos de horror e sangue nas telas. Mas a “blasfêmia”
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Lota (Kathleen Burke), Dr. Moreau (Charles Laughton) e Edward Parker (Richard Arlen) .
não parou por aí, a película cinematográfica chegou a ser banida e/ou censurada em pelo menos doze países por seu conteúdo “profano” e “contra a natureza” (termos estes citados em críticas jornalísticas londrinas). O enredo, livremente adaptado do original de Wells, conta a história de Edward Parker (interpretado por Richard A rl e n ) , n á u f r a g o d e u m acidente e resgatado em alto mar por um assistente c i e n t í fi c o d e u m a i l h a (caracterizado pelo lacônico
Pôster americano do filme.
Representações da América Latina | Pontifícia Universidade Católica | Faculdade Ciências Sociais - História | MA06 | 2013
REPRESENTAÇÕES DA AMÉRICA LATINA Arthur Hohl). Esta, comandada pelo famigerado Doutor Moreau (em uma inimitável inter pretação de Charles Laughton), é uma estação biológica cujo objetivo é o estudo da evolução animal e humana. Moreau executa uma série de experimentos plásticos e científicos que transformam animais em (supostamente) homens. O discurso colonizador, que é marcante desde a ficção de H. G. Wells, torna-se ainda mais audaz nesta adaptação: ele se apresenta através dos elementos discursivos da trama, que exploram a aquisição e elaboração de cultura, o estado de natureza dos seres e a pressão civilizadora que constitui antropologicamente a “humanidade”. Na ilha, Parker - o “civilizado estrangeiro” - é tentado pelo exotismo e erotismo de Lota, a “mulher pantera”, interpretada pela até então anônima Kathleen Burke. Os produtores buscavam alguém de beleza diferenciada e encontraram-na nesta ex-assistente de dentista, de cabelos revoltos e olhos amendoados. Kathleen é a própria encarnação da mulher de sexualidade animalesca: seus lábios e olhos marcados, seu
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figurino esparso e tribal. Quase uma “Iracema”, de “cabelos negros como a asa da graúna”, é a própria alegoria da miscigenação de lábios de mel e atração sexual latente. As personagens são, justamente, capazes de estabelecer vínculos arquetípicos com figuras da colonização latinoamericana. O cenário selvagem, repleto de matas e construído de forma lembrar as próprias florestas amazônicas, não é por mero acaso o plano de fundo dos projetos de Moreau. Alegoria do europeu colonizador e opressor, o cientista pode ser visto como a própria “Europa” em si: moldando os seres a seu bel prazer, tomando sua condição pessoal como a perfeição absoluta a ser atingida pelas demais etnias e culturas. E seu assistente, Montgomery, seria o “colonizador” em si. Enviado às terras desconhecidas do domínio de Moreau, tem como fim domesticar os seres “selvagens” e fazer com que não regridam a seu estado primordial. Ele, no entanto, se compadece dos seus súditos e cria laços emocionais que arriscam sua missão. Os selvagens saídos dos laboratórios da ilha, aqui
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chamados de “homens-besta” e vistos como moradores locais, são como os estereótipos raciais e culturais: absolutamente grotescos por debaixo de suas maquiagens de efeitos especiais, particularmente híbridos em s u a s fi s i o n o m i a s . C o m o colonizados, nunca são definidos de forma integral, mas sim plurifragmentada. Dividem-se em tipos como Ouran, domesticado e capataz de Moreau; M’ling, que vive em regime de servidão dentro dos aposentos de seus mestres, e o Recitador da Lei (interpretado pelo brilhante Bela Lugosi), re p ro d u t o r d a s l i t a n i a s e m a n t e n e d o r d a “ re l i g i ã o ” pregada sobre eles. O processo civilizador se dá através da chamada “Casa da Dor”, o laboratório onde ocorrem as cirurgias plásticas, e da “Lei” repetida pelos nativos: - Não andar de quatro pés, essa é a Lei. Então não somos homens? - Não beber com a língua, essa é a Lei. Então não somos homens? - Não comer peixe nem carne, essa é a Lei. Então não somos homens? - Não arrancar a casca das árvores, essa é a Lei. Então não somos homens? - Não caçar outros homens, essa é a Lei. Então não somos homens? WELLS, 2012, p. 79
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Parker e Lota em uma das cenas de atração entre as personagens arquetípicas.
São sobreposições e
Retornando à figura de Lota, “a
Lota e sua projeção em tentar se
esmagamentos culturais,
mais perfeita criação” da ilha,
equiparar a Parker não
domesticação de corpos através
vemos como a mulher selvagem
consegue, portanto, se
da dor - visto que Moreau
é uma espécie de isca no plano
exteriorizar na simbologia das
executa suas cirurgias sem
de se manter o colonizador em
mãos na cultura “civilizada”:
anestesia, crendo que parte das
terras estrangeiras. Moreau
responsáveis pelas bênçãos, pela
ferramentas do devir evolutivo é
deseja que Parker se envolva
prece, pelo cumprimento, pela
o sofrimento - e controle das
sexualmente com ela, para que
comunicação corporal e por
mentalidades. Respectivamente,
seu processo civilizador tenha
expressões como “conduzir pela
ambos recursos representam o
continuidade. Ela só se tornará
mão” ou “pedir a mão em
bruto contato inicial entre
uma “mulher de verdade” caso
casamento”.
culturas e a manutenção do
consiga carregar um filho
sistema de dominação das
civilizado em seu ventre. A
Também é válido notarmos que
colônias de exploração.
ironia dá-se ao pensarmos que a
enquanto Lota é inocente em
Ta m b é m é e s t r i t a m e n t e
culminação dessa simbiose de
suas atitudes, torna-se um
proibida a ingestão de sangue,
dois mundos opostos é, ao
contraste gritante com Ruth
clara alusão ao combate ao
mesmo tempo, vista como ideal
(Leila Hyams), noiva de Parker.
canibalismo (típico nos discursos
e anti-natural. Em uma cena de
E s t a , a fi g u r a d a e s p o s a
colonizadores e religiosos):
sensibilidade notável, a pobre
e u ro p é i a d o a l é m - m a r, é
como se tal prática, por si só,
nativa é rechaçada por seu
civilizada e saudosa em suas
fosse capaz de despertar as
amado assim que ele nota que
atitudes. Também capaz de ser
criaturas de seu simulacro
suas mãos são semelhantes a
romântica mas sagaz, chegando
artificial e fazê-las regredir ao
afiadas garras. Essa eterna luta
a convencer a Embaixada
tribalismo inicial.
entre o resgate das raízes de
Americana de enviá-la em um
!
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REPRESENTAÇÕES DA AMÉRICA LATINA navio de resgate a seu marido. A “primeira grande conquista”, segundo o Dr., foi fazer os animalescos seres falarem. A linguagem adquirida, no entanto, como fica claro na própria personagem de Shakespeare, Calibã, pode ser usada tanto como característica de submissão quanto de revolta. Sabendo se comunicar, os nativos organizam uma rebelião logo após Moreau ordenar a um deles que mate o capitão do recém-chegado navio de resgate de Parker. O derramamento de sangue tem início, em um processo de emancipação que se utiliza do recurso dominador, que é o monopólio da violência, em combate ao próprio símbolo repressor. Ao perceberem que os “estrangeiros” podem morrer, cada nativo se equipara, através da mortalidade, a seus superiores na hierarquia social vigente. E assim se inicia o “processo de independência” da ilha, cujo primeiro a sucumbir é o próprio Moreau. Lota se sacrifica para salvar Parker que, junto de Ruth e Montgomery, foge em um pequeno barco enquanto podemos observar a ilha em chamas e gritos ao fundo. A frase final do filme é extremamente
!
marcante: “não olhem para trás!”. Talvez seja essa a própria mensagem deixada pelos períodos pós-independência em vários países latinos.
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então atribui características dos povos nativos da América Latina a tais termos.
Notas:
O perigoso matagal, a bela indígena, a violência dos homens t r i b a i s … To d a s s ã o representações que culminaram na fama “estrangeira” das frutas de Carmem Miranda ou do musgo do Monstro da Lagoa Negra: outro filme de horror, de 1954, que se passa na floresta amazônica brasileira e repleto de personagens cujos nomes são “Lucas”, “Chico”, “Zé” e até m e s m o “ D r. M a t o s ” … Aparentemente, à época, ao menos este último causou alguma reflexão: o Diário da Noite o cita como rodado num Amazonas imaginário e com um monstro também imaginário. Nos propusemos aqui a analisar, de forma interdisciplinar, uma das produções de Hollywood que são frutos de uma representação discursiva quase inconsciente das diversas figuras da colonização. Hoje em dia já enraizadas nos estereótipos culturais ao pensarmos em temas como “selvageria” ou “exotismo”, vemos que a cultura norteamericana e européia desde
A tradução correta do título seria “A Ilha das Almas Perdidas”, mas no Brasil foi adaptado para “A Ilha das Almas Selvagens”. Apenas nos resta especular os motivos de tal escolha. 1
Referências: “A Ilha das Almas Selvagens”, The Island of Lost Souls (título original), produzido por Erle C. Kenton: Paramount Pictures, 1932. DVD (70 min). Preto e branco. Som. Mono. Correio de São Paulo, 26/04/1933, disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/ DocReader.aspx?bib=720216&pesq= %22Ilha%20das%20Almas %20Selvagens%22&pasta=ano %20193, acesso em 01/12/13. Curiosidades a cerca da produção do fi l m e, d i s p o n í ve i s e m : h t t p : / / www.imdb.com/title/tt0024188/, acesso em 01/12/13. D i á r i o d a N o i t e, 0 1 / 1 1 / 1 9 5 4 , disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/ D o c R e a d e r . a s p x ? bib=221961_03&pesq=%22O %20Monstro%20da%20Lagoa %20Negra%22&pasta=ano%20195, acesso em 01/12/13. WELLS, H. G.; A Ilha do Dr. Moreau; 1a Edição: Rio de Janeiro, Objetiva, 2012.
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