“Os Italianos e a Inquisição Portuguesa: os Homens, as Ideias e as Mercadorias (séculos XVI-XVII)”, Con Gran Mare e Fortuna. Circulação de Mercadorias, Pessoas e Ideias entre Portugal e Itália na Época Moderna, Lisboa, Cátedra de Estudos Sefarditas «Alberto Benveniste» 2015, pp. 179-195.

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Descrição do Produto

CON GRAN MARE E FORTUNA CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS, PESSOAS E IDEIAS ENTRE PORTUGAL E ITÁLIA NA ÉPOCA MODERNA

ORGANIZADORES

NUNZIATELLA ALESSANDRINI SUSANA BASTOS MATEUS MARIAGRAZIA RUSSO GAETANO SABATINI

LISBOA 2015

Cátedra de Estudos Sefarditas «Alberto Benveniste» Directora Maria de Fátima Reis Comissão Científica A. A. Marques de Almeida António Andrade António Borges Coelho João Cosme José da Silva Horta Maria de Fátima Reis Comissão de acompanhamento: Francisco Contente Domingues Monique Marcos de Benveniste Serge Marcos de Benveniste Impressão: Simbolomania-Artes Gráficas Lda - Lisboa Primeira Edição: Dezembro 2015 Depósito Legal: N.º403394/16 ISBN: 978-989-96236-7-5

Propriedade e edição: © Nunziatella Alessandrini, Susana Bastos Mateus, Mariagrazia Russo, Gaetano Sabatini e Cátedra de Estudos Sefarditas «Alberto Benveniste» Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Alameda da Universidade- 1600-214 Lisboa Telef. 21 792 00 00 - Fax: 21 796 0063 Email: [email protected] Web site: www.catedra-alberto-benveniste.org Todos os direitos reservados As reproduções de imagens são da inteira responsabilidade dos autores A edição deste livro teve o apoio de: Centro de História de Além-Mar da Universidade Nova de Lisboa e Universidade dos Açores Fundação para a Ciência e a Tecnologia Associazione Emiliano Romagnoli nella Penisola Iberica (AERPI)

OS ITALIANOS E A INQUISIÇÃO PORTUGUESA: OS HOMENS, AS IDEIAS E AS MERCADORIAS (SÉCULOS XVIXVII) *

ISABEL M. R. MENDES DRUMOND BRAGA

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

1. As realidades políticas e religiosas da Europa Moderna implicaram uma instabilidade fronteiriça sem paralelo em Portugal, um dos primeiros Reinos a definir claramente as suas fronteiras. Territórios que foram sendo anexados ou que se desmembraram foram uma constante por toda a Europa. A existência de espaços como o Sacro Império Romano-Germânico, o nascimento dos Países Baixos, o agrupamento de diversos Reinos sob a mesma monarquia, ou a tardia unificação da Itália, com Vítor Manuel I (1861), implicam a necessidade de ponderar as correctas designações destes povos. Assim, no que se refere à Península Itálica, na Época Moderna, não devemos referir Italianos mas sim Genoveses, Florentinos, Milaneses, Venezianos, Napolitanos, Sicilianos e outros, mas torna-se evidente que, para uma maior comodidade de exposição, se utiliza a designação genérica: Italianos. Isto é, a Península Itálica, realidade geográfica mas não política, era constituída por diversos territórios independentes e rivais1 , a par de outros que foram pertença ou objecto de disputa entre a França e o Império. Isto significa que o termo “Italianos” constitui uma designação abusiva, que esconde diferenças substanciais, mas que se utiliza por comodidade. Sobretudo a partir do século XV, Portugal assistiu à implantação de colónias estrangeiras, facto cujas principais justificações se encontram na necessidade sentida no país de artífices e de gente ligada à guerra e também no interesse despertado pelo comércio e pelos Descobrimentos, entre os súbditos de outros Reinos2. Na guerra, no comércio e nos ofícios, os estrangeiros conviveram com os

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Neste artigo retoma-se e actualiza-se a investigação apresentada em Isabel M. R. Mendes Drumond BRAGA, Os Estrangeiros e a Inquisição Portuguesa (séculos XVI-XVII), Lisboa, Hugin Editores, 2002. 1 Sobre as divisões internas deste espaço e a consciência dos contemporâneos dos acontecimentos cf. Humberto Baquero MORENO, “Uma Carta do Cardeal Alpedrinha ao Príncipe D. João sobre a Situação Política da Itália de 1480”, Revista de História, vol. 1, Porto, 1984, pp. 195-204. 2 Sobre os estrangeiros em Portugal faltam estudos de conjunto. Para uma introdução ao tema veja-se, para a Idade Média, A. H. de Oliveira MARQUES, Portugal na Crise dos séculos XIV a XV (= Nova História de Portugal, direcção do mesmo e de Joel Serrão, vol. 4), Lisboa, Presença, 1987, pp. 40-44



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Portugueses, nem sempre de modo pacífico. Não podemos esquecer que o estrangeiro era aquele que não fazia parte do grupo, que não pertencia ao Reino, que não era súbdito do Rei. Na perspectiva jurídica, como J. Gaudemet chamou a atenção, “l'étranger est avant tout celui qui n'appartient pas à ce cadre et qui, pour cette raison, a un statut juridique particulier”3. Do ponto de vista sociológico, a situação não era melhor. Segundo o mesmo autor, o estrangeiro “est celui 'qui n'est pas”4. A Coroa, ao definir o estrangeiro por um estatuto jurídico, estabelecia os direitos que lhe eram reconhecidos e também os que lhe eram recusados, não obstante a concessão de determinados privilégios específicos para os súbditos de certas nações, ou a outorga de mercês a título particular. Na Época Moderna, o recurso às cartas de naturalização também facilitou a vida aos súbditos de outros espaços5. De qualquer modo, a condição do estrangeiro era sensível à conjuntura política do momento6, sendo uma constante por toda a Europa que o estrangeiro, especialmente o que estava de passagem, procurasse abrigo em casa de compatriotas, nomeadamente em estalagens e afins para, desse modo, beneficiar dos laços de sociabilidade e de solidariedade do grupo7. 2. Foi bastante diferenciada a presença de pessoas oriundas da Península Itálica em Portugal. Tendo-se verificado, desde cedo, a abertura dos portos portugueses à navegação italiana, rapidamente foi possível criar bases para uma colaboração intensa e diversificada, traduzida na afluência de mercadores provenientes de diversas zonas e também no estabelecimento de casas comerciais. As questões relativas aos Descobrimentos portugueses foram seguidas de perto, em determinadas zonas da Península Itálica, mormente em Veneza e em Roma. As influências culturais de Itália foram marcantes, sobretudo ao nível da formação intelectual de muitos estudantes e ainda dos contactos com o humanismo transalpino e com a arte. Com Roma, as ligações foram anteriores e muito próximas, desde a formação da nacionalidade. As embaixadas enviadas a Roma mantiveram-se de forma regular, sendo o leque de assuntos tratados tão diversos

e para o século XVI, Isabel M. R. Mendes Drumond BRAGA, “A Circulação e a Distribuição dos Produtos”, Portugal do Renascimento à Crise Dinástica, coordenação de João José Alves Dias (= Nova História de Portugal, direcção de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, vol. 5), Lisboa, Presença, 1998, pp. 232-237; Idem, Os Estrangeiros e a Inquisição Portuguesa, cit., 2002. 3 Jean GAUDEMET, “L'Étranger: de l'Image au Statut”, in Histoire des Étrangers et de l'Immigration en France, direcção de Yves Lequin, Paris, Larousse, 1992, p. 18. 4 Jean GAUDEMET, “L'Étranger: de l'Image au Statut”, in Histoire des Étrangers, cit., 1992, p. 18. 5 Núria SALES, “Naturalizações Catalãs. Séculos XV a XVIII”, Ler História, vol. 9, Lisboa, 1986, pp. 41-63; Paulo Drumond BRAGA, “Estrangeiros em Portugal no Reinado de D. João II. As Cartas de Naturalização”, Portugueses no Estrangeiro, Estrangeiros em Portugal, Lisboa, Hugin, 2005, pp. 211-220. 6 Nöel COULET, “La Malédiction de Babel”, in Histoire des Étrangers, cit., 1992, p. 179. 7 Nöel COULET, “La Malédiction de Babel”, in Histoire des Étrangers, cit., 1992, pp. 175-178.



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como as divisões administrativas eclesiásticas, a apresentações de bispos, a instauração de novas ordens religiosas e a participação portuguesa no Concílio de Trento, para não referir contendas pontuais e negociações que se arrastaram conhecendo avanços e recuos, como por exemplo o estabelecimento do Santo Ofício8. Não foram muito significativas as alianças matrimoniais estabelecidas entre Portugal e os estados italianos. Se bem que tenham começado com o primeiro monarca português – D. Afonso Henriques casou com D. Mafalda, filha do conde de Sabóia, em 1146 9 – será só no século XVI que se voltará a tal prática, nomeadamente com os enlaces de D. Beatriz, filha de D. Manuel I, com o duque de Sabóia, Carlos III, em 152110 e o de D. Maria, filha do infante D. Duarte e neta do mesmo monarca português, com Alexandre Farnese, duque de Parma, em 156511.

8

José de CASTRO, Portugal em Roma, vol. 1, Lisboa, União Gráfica, 1939; A. D. WRIGHT, “The Interaction of the Portuguese and Italian Churches in the Counter-Reformation”, Cultural Links between Portugal and Italy in the Renaissance, direcção de K. J. P. LOWE, Oxford, Oxford University Press, 2000, pp. 61-74. Sobre os núncios cf. Mariagrazia RUSSO, “Relações Interculturais Luso-Italianas no século XVI através da Nunciatura Apostólica de Lisboa”, Di Buon Affetto e Commerzio. Relações Luso-Italianas na Idade Moderna, organização de Nunziatella Alessandrini, Mariagrazia Russo, Gaetano Sabatini e Antonella Viola, Lisboa, CHAM, 2012, pp. 41-68. 9 Francesco ERCOLE, “Mafalda di Savoia Prima Regina di Portogallo”, Relazioni Storiche fra l’ Italia e il Portogallo: Memorie e Documenti, Roma, Real Accademia d’Italia, 1940, pp. 87-89; Manuel CÔRTE-REAL, “As Alianças Matrimoniais dos Filhos de D. Afonso Henriques na Política Externa Portuguesa”, Actas do 2.º Congresso Histórico de Guimarães, vol. 2 (A Política Portuguesa e as suas Relações Exteriores), Guimarães, Câmara Municipal de Guimarães, Universidade do Minho, [1997], p. 451. Cf. ainda Maria Alegria Fernandes MARQUES, “Mafalda de Mouriana”, As Primeiras Rainhas. Mafalda de Mouriana. Dulce de Barcelona e Aragão. Urraca de Castela. Mecia Lopes de Haro. Beatriz Afonso, Lisboa, Círculo de Leitores, 2012, pp. 13-104; Idem, “Mafalda de Mouriana e Sabóia (1130/1133-1158)”, Portugal e o Piemonte: a Casa Real Portuguesa e os Sabóias. Nove Séculos de Relações Dinásticas e Destinos Políticos (XII-XX), coordenação de Maria Antónia Lopes e de Blythe Alice Raviola, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012, pp. 15-50. 10 Gaudenzio CLARETTA, Notizie Storiche Intorno alla Vita et al Tempi di Beatrice di Portogallo, Duchessa de Savoia, Turim, [s.n.], 1863; Sousa VITERBO, “Do Dote de D. Beatriz de Portugal, Duquesa de Sabóia”, Archivo Historico Portuguez, vol. 6, Lisboa, 1908, pp. 118-120; Conde de São Payo, Os que foram para Sabóia com a Infanta Duquesa, Lisboa, [s.n.], 1930; Ana Isabel BUESCU, “A Infanta Beatriz de Portugal e o seu Casamento na Casa de Sabóia (1504-1521)”, Portugal e o Piemonte: a Casa Real Portuguesa e os Sabóias. Nove Séculos de Relações Dinásticas e Destinos Políticos (XII-XX), coordenação de Maria Antónia Lopes e de Blythe Alice Raviola, cit., 2012, pp. 51-100. 11 Luís F. de Sá FARDILHA, “A Celebração Poética em Portugal do Casamento de Maria e Alexandre”, D. Maria de Portugal, Princesa de Parma (1565-1577) e o seu Tempo. As Relações Culturais entre Portugal e a Itália na segunda metade de Quinhentos, Porto, Centro Interuniversitário de História da Espiritualidade, Instituto de Cultura Portuguesa, 1999, pp. 29-48; Giuseppe BERTINI, “L’ Entrata Solenne di Maria di Portogallo a Parma nel 1566”, Ibidem, pp. 6984; Idem, “The Marriage of Alessandro Farnese and D. Maria of Portugal in 1565: Court Life in Lisbon and Parma”, Cultural Links between Portugal and Italy in the Renaissance, cit., pp. 45-59; Idem, Le Nozze di Alessandro Farnese. Feste alle Corti di Lisbona e Bruxelles, Milão, Skira, 1997; Idem e Annemarie JORDAN, Il Guardaroba di una Principessa del Rinascimento. L’ Inventario di



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No período pós Restauração, será D. Maria Francisca Isabel de Sabóia a contrair matrimónio primeiro com D. Afonso VI, em 1666, e, posteriormente, em 1668, com o antigo cunhado, D. Pedro, futuro D. Pedro II, num contexto de grande instabilidade política12. A nação italiana foi crescendo de tal modo que, no século XVI, sentiu necessidade de construir uma igreja paroquial própria em Lisboa. A mesma foi erigida com invocação de Nossa Senhora do Loreto, tendo sido reconhecida pelo Papa, em 1551. O Loreto ficou anexo a São João de Latrão e teve uma confraria obrigatoriamente administrada por transalpinos. Lucas Giraldi, um mercador florentino residente em Lisboa, acabou de pagar a construção da capela-mor13. Em 1651, a igreja sofreu um violento incêndio, sendo reconstruida nos anos seguintes. A paróquia da nação italiana persistiu até 1698, data em que foi integrada na de Nossa Senhora da Encarnação. Em 1553, apareceu no Reino um novo templo. Desta feita, Genoveses, Milaneses e Sicilianos fundaram a igreja de Nossa Senhora do Porto Salvo, em Lagos14. 3. Fixemo-nos nos italianos presos e penitenciados pelo Santo Ofício português. Como não sabemos quantos estrangeiros viveram em Portugal nos séculos XVI e XVII, não podemos calcular a percentagem dos que foram processados pela Inquisição. Contudo, parece lícito supor que o número dos que passaram pelo Tribunal terá sido proporcional ao dos residentes ou estantes estrangeiros no Reino. Se tivermos em conta aqueles que foram objecto de perdão, no âmbito da justiça régia, talvez possamos reforçar esta convicção 15 . Se esta hipótese tiver fundamento, as colónias mais significativas do ponto de vista numérico eram

Maria di Portogallo, Sposa di Alessandro Farnese, Parma, Il Cavaliere Azzuro, Guaraldi/ Gu.Fo, 1999; Annemarie JORDAN, “A Masterpiece of Indo-Portuguese Art: the Mounted Rhinoceros Cup of Maria of Portugal, Princess of Parma”, Oriental Arts, vol. 46, n.º 3, Nova Iorque, 2000, pp. 48-58. 12 Isabel Drumond BRAGA, Paulo Drumond BRAGA, Duas Rainhas em Tempo de Novos Equilíbrios Europeus. Maria Francisca Isabel de Saboia. Maria Sofia Isabel de Neuburg, [Lisboa], Círculo de Leitores, 2011; Isabel M. R. Mendes Drumond BRAGA, “D. Maria Francisca Isabel de Sabóia (1646-1683), Rainha de Portugal”, Portugal e o Piemonte: a Casa Real Portuguesa e os Sabóias. Nove Séculos de Relações Dinásticas e Destinos Políticos (XII-XX), coordenação de Maria Antónia Lopes e de Blythe Alice Raviola, cit., 2012, pp. 167-210. 13 Sobre este mercador cf. Nunziatella ALESSANDRINI, “Contributo alla Storia della Famiglia Giraldi, Mercanti Banchieri Fiorentini alla Corte di Lisbona nel XVI secolo”, in Storia Economica, n.º 3, 2011, pp. 377-407. 14 Joaquim Romero MAGALHÃES, Para o Estudo do Algarve Económico no século XVI, Lisboa, Cosmos, 1970, p. 156. 15 Tendo em conta as cartas de perdão outorgadas pelos monarcas portugueses entre 1521 e 1578 verifica-se que aparecem por ordem decrescente Espanhóis, Flamengos, Franceses, Italianos, Ingleses, Alemães, Holandeses e Gregos. Cf. Isabel M. R. Mendes Drumond BRAGA, “Os Estrangeiros e a Justiça Civil Portuguesa durante o século XVI (1521-1578)”, Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, vol. 37, Lisboa, Paris, 1998, p. 355.



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constituídas pelos estrangeiros que geograficamente se situavam mais perto de Portugal.

Quadro 1- Nacionalidade dos Estrangeiros Processados

Nacionalidades Espanhóis Franceses Flamengos e Holandeses Italianos Ingleses Alemães Irlandeses Gregos Outros Total

Número 466 207 95

Percentagem 48 21 10

60 60 38 13 14 18 971

6,2 6,2 4 1,3 1,4 1,9 100

Os locais de origem e de acolhimento destas pessoas foram bastante diversificados, mesmo tendo em conta as dificuldades em identificar alguns topónimos, tal como muitos dos nomes e dos apelidos. Há que salientar muitas imprecisões. Uns referiram apenas ser, por exemplo, Castelhanos, Franceses, ou Italianos, outros afirmaram-se naturais de certa diocese, outros ainda indicaram a cidade mais próxima da pequena localidade da qual eram naturais. Assim, embora nem todos tenham especificado quais as terras de origem propriamente ditas, conseguem detectar-se algumas zonas de maior afluência de pessoas. Na Península Itálica, urbes como Génova, Milão, Veneza e também a ilha da Sicília, foram os locais mais significativos. No que se refere aos locais de residência, verifica-se a presença de estrangeiros um pouco por todo o país, mas com uma especial incidência em Lisboa. Outras cidades e vilas atraíram igualmente muitos forasteiros, embora em muito menor número, tais foram os casos, por ordem decrescente, de Évora, Bragança, Setúbal, Coimbra, Chaves, Porto, Elvas e Campo Maior. De notar que as terras do interior raiano de Trás-os-Montes, Beiras, Alentejo e Algarve contaram quase exclusivamente com Espanhóis, por vezes com uma parte da família em Espanha e outra em Portugal. A maioria dos estrangeiros não teve uma grande preocupação em justificar o motivo da vinda para Portugal. Se muitos chegaram de forma acidental e independente da vontade própria, nunca tendo fixado residência – pensemos nos



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renegados cujas embarcações deram à costa, ou que foram capturados em navios corsários, tal é o caso da maioria dos Italianos, dos Gregos, dos Escandinavos e dos homens oriundos da Europa de Leste e da ilha de Malta – outros houve que chegaram e partiram a bordo de embarcações de comércio, sem qualquer intuito de permanecer e que só palavras ou actos imprudentes os obrigaram a ficar algum tempo. No que se refere aos estantes, alguns deles casados com mulheres portuguesas, o leque de motivos apontados para se terem fixado foi bastante variado. Das guerras religiosas europeias, ao comércio, passando pela necessidade de aprender português, de fugir à justiça de outro Reino, ou de ver novas terras, tudo foi motivo para acabar por permanecer. Os estrangeiros foram veículos de transmissão de notícias, particularmente no que se referiu à conturbada situação religiosa da Europa de então. A Inquisição portuguesa processou, entre 1536 e 1700, pouco menos de 1000 estrangeiros, sob a acusação de diversos crimes que, grosso modo, acabaram por traçar, ou pelo menos esboçar, a geografia religiosa da Europa Moderna. Alguns dos processados, ao prestarem depoimento, não escamotearam situações a que tinham assistido ou, mais raramente, de que tinham ouvido falar. Muito escassos foram os testemunhos acerca das cidades italianas. Pedro de Loreto, carpinteiro, natural de Paris, contou, em 1560, que soubera através de um outro francês que no Piemonte “nom davam la nada pelas cousas do Papa e que as suas cousas eram vemto dizemdo mais bullas vão bullas vem e tudo he vemto”16. Antes ainda, em 1555, Martim da Guerras, das Astúrias, afirmou que “ouvira dizer que nelle [no Concílio de Trento] pediam hos luttheranos que os clerygos fosem casados e que em cada bispado nam ouvese mays de sete igrejas [...] diziam os lutheranos e o pediam em o concilyo que os benefficios fosem patrymoniaes e se desem por exame aos mays abilles que ahi ouvesse naturaes da terra”17. O mesmo declarou ainda que tinha sabido por certo ermitão brigantino que “os lutheranos motejavão do Papa e o tachavão de symonyaco [...] que os lutheranos o pintavão com hua bomsa (sic) de dinheyro na mão”18.

No caso da Inquisição portuguesa, tendo deixado de lado os estrangeiros oriundos de outros espaços que não a Europa, foram processados, no período em estudo, pelo menos 971 pessoas, 495 das quais durante o século XVI, o que nos dá 9,3% dos 5323 que o tribunal julgou entre 1536 e 160019. Podemos verificar a predominância do peso dos Espanhóis, os quais representaram 48% dos

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Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, proc. 10947. ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 12874. As críticas e os boatos acerca do concílio fizeram sentirse um pouco por toda a parte. No caso português, a Inquisição, através das visitas, conseguiu apurar o sentir do clero nortenho. Sobre este assunto cf. Isabel M. R. Mendes Drumond BRAGA, “A Visita da Inquisição a Braga, Viana do Castelo e Vila do Conde em 1565”, Revista de la Inquisición, n.º 3, Madrid, 1994, pp. 29-67 e a bibliografia aí citada. 18 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 12874. 19 Isaías da Rosa PEREIRA, “Notas sobre a Inquisição em Portugal no século XVI”, Lusitania Sacra, vol. 2, Madrid, 1992, p. 262. 17



Ingleses 6.2%

Alemães 3.9%

Irlandeses 1.3%

Gregos 1.4%

Outros 1.9% Espanhois 48.0%

Italianos 6.2% Flamengos e Holandeses 9.8% Franceses 21.3%

Pecado Nefando Solicitação 2.8% 0.1%

Bigamia Magia 3.6% 2.4% Contra o Santo Ofício 1.4%

Judaísmo 23.1%

Desrespeito 2.6% Proposições 7.5%

Protestantismo 25.5%

Mercadorias Defesas 0.4% Outros Crimes 1.4%

Islamismo (Mouriscos) 4.6%

Islamismo (Renegados) 24.5%

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Explicite-se que os renegados eram o resultado da falta de entendimento entre a Cristandade e o Islão e torne-se claro que era fácil passar da condição de livre a cativo para qualquer cristão que vivesse no litoral, desempenhasse alguma actividade marítima, viajasse por mar, se deslocasse para terras do Islão, vivesse próximo do reino de Granada, até à data da conquista; ou que, a partir de 1415, habitasse em terras do Norte de África sob o domínio português ou castelhano ou ainda participasse nas campanhas militares para conquistar ou defender praças. De facto, se bem que estas variáveis não tenham tido todas o mesmo peso – as viagens marítimas e a actividade piscícola foram, por toda a Europa, responsáveis por mais de metade dos aprisionamentos verificados ao longo da Época Moderna − constituíram as diversas possibilidades que levaram ao aprisionamento dos cristãos por parte dos muçulmanos. Após este passo, duas opções se colocavam: manteremse fiéis ao Cristianismo e esperar uma ocasião propícia para regressar, fosse através do resgate ou de fuga; ou enveredar pela mudança de religião, isto é, renegar, passando a ser indivíduos integrados no seio dos seus anteriores inimigos. Os que optavam por esta segunda via eram conhecidos por renegados ou elches. Para a Época Moderna, tal opção era sinónimo de traição à fé e ao Reino. O Santo Ofício português processou naturais e estrangeiros, num total de cerca de 300 pessoas, para o período compreendido entre 1536 e 1700. Entre os estrangeiros, o islamismo representou 24,5% do total dos delitos pelos quais estes foram penitenciados. No caso dos Italianos, foram presos e penitenciados 33, ou seja, 14%, entre os 238 homens estrangeiros processados. Em termos sociológicos, os renegados que compareceram perante os tribunais portugueses eram adultos jovens, quase todos do sexo masculino, embora haja cinco processos de mulheres renegadas. O tempo que passaram no Islão variou bastante, embora a maior parte por lá tivesse permanecido menos de 15 anos. A maioria dos renegados não forneceu informações acerca do seu estado matrimonial notando-se, contudo, de entre os que o fizeram, um grande número de homens solteiros. As actividades socioprofissionais estavam, sobretudo, ligadas ao mar – mareantes, pescadores e outros – e à guerra. Detectam-se ainda comerciantes e artesãos, além de um pequeno número de homens de ofícios diversos20. Ou seja, a leitura dos processos

20

Sobre os renegados em Portugal, cf. Isabel M. R. Mendes Drumond BRAGA, Entre a Cristandade e o Islão. Cativos e Renegados nas Franjas de duas Sociedades em Confronto, Ceuta, Instituto de Estudios Ceutíes, Ciudad Autónoma de Ceuta, 1998; Idem, “Rinnegati. Portogallo”, Dizionario Storico dell’ Inquisizione, direcção de Adriano Prosperi, com a colaboração de Vicenzo Lavenia e John Tedeschi, vol. 3, Pisa, Edizione della Normale, 2010, pp. 1320-1322. Para outros espaços, cf. Ellen G. FRIEDMAN, Spanish Captives in North Africa in the Early Modern Age, Madison, University of Wisconsin Press, 1983; Bartolomé et Lucile BENNASSAR, Los Cristianos de Alá. La Fascinante Aventura de los Renegados, tradução de José Luis Gil Aristu, Madrid, Nerea, 1989; Anita GONZÁLEZ-RAYMOND, La Croix et le Croissant. Les Inquisiteurs des Iles face à l’ Islam 15501700, Paris, CNRS, 1992; Mercedes GARCÍA-ARENAL, Miguel Angel de BUNES, Los Españoles y



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permite conhecer homens, ideias e mercadorias num mundo em constante conflito religioso. Neles vão desfilando vidas atribuladas, nas quais perpassam aventuras e desventuras, guerras, traições, mudanças de credo, corso, fugas, regressos provocados e regressos indesejados a par de muitas informações sobre o Islão. Aos inquisidores importava perceber como tinham os cristãos chegado ao mundo muçulmano. Ou seja, em que circunstâncias tinham passado ao cativeiro e, posteriormente, à condição de renegados. No caso dos Italianos em estudo, aparecem referências aos ataques às terras do litoral mas também à pesca, às viagens marítimas e até à batalha de Alcácer-Quibir, enquanto palcos do cativeiro das suas pessoas. Pantaleão foi aprisionado na ribeira de Génova com sete anos, levado a Argel e daí a Constantinopla, tendo andado também por Alexandria, Trípoli e Marrocos21. Outro genovês, Nicolau, foi levado a Argel após ter sido apanhado nas “praias da sua terra”22. Um outro homem, natural de Nápoles, nem sabia o nome cristão que até aos dois anos tinha tido, pois quando tinha essa idade fora capturado pelos Turcos23. Um tal António, da Calábria, foi aprisionado pelos Turcos na sua terra quando era pequeno, ainda antes da idade de se confessar24. Lourenço, natural da Sardenha, foi tomado com a mãe na sua própria terra, após um ataque turco bem-sucedido. Andou por Argel, Túnis e Constantinopla25 . Um seu conterrâneo, de nome Sebastião, foi igualmente aprisionado tal como todos os seus vizinhos, e conduzido a Túnis, local onde se encontrava em 1535, data em que o imperador Carlos V tomou a cidade26. A maior parte destes homens estava perfeitamente integrada no mundo muçulmano, tendo chegado à Cristandade a corso, sem qualquer intuito de se reintegrar. No mar as situações de risco eram igualmente significativas. Por exemplo, em 1548, Jácome, um genovês que se dedicava à pesca do coral, cativou na Córsega27. Um seu conterrâneo, Agostinho, foi apanhado quando a sua embarcação estava no porto de Marbella28, enquanto Rogel de Esperança, de Messina, foi cativado quando viajava de Lagos para a Sicília numa caravela veneziana carregada de atum 29 . Um outro genovês, André, cativou no Mar da Sardenha30, enquanto João de Melo, igualmente de Génova, ao viajar com a mãe daquela localidade para a Sicília, foi levado a Constantinopla31. Por seu turno, Francisco Escuro, de Nápoles, foi capturado quando

el Norte de Africa. Siglos XV-XVIII, Madrid, Mapfre, 1992; Mirella MAFRICI, Mezzogiorno e Pirateria nell’ Età Moderna (secoli XVI-XVII), Salermo, Università degli Studi de Salermo, 1995; Emilio SOLA CASTAÑO, “Los que van y vienen. Marinos, Espias y Rescatadores de Cautivos en la Frontera Mediterránea”, Renegados, Viajeros y Tránsfugas. Comportamientos Heterodoxos y de Frontera en el siglo XVI, [s. l.], Fugaz, 2000. 21 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 796. 22 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 6619. 23 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 2432. 24 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 10840. 25 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc.15094. 26 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 12044. 27 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 5666. 28 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 13100. 29 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 1669. 30 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 1058. 31 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 1606.



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viajava de Messina com destino ao Levante32. O mesmo aconteceu junto de Túnis, a Carlos, natural de Messina, quando se dirigia à Turquia para comprar linho 33 e a Francisco, de Milão, durante uma viagem de Veneza para Ancona. Desta feita, mais uma vez o destino foi Argel e posteriormente Tetuão34. Em terras marroquinas, a batalha de Alcácer Quibir deu azo a muitos aprisionamentos. No caso dos Italiano, refira-se que, em 1581, compareceu perante a Inquisição de Lisboa, Pedro Guterres, natural da Lombardia, cativo durante a batalha35. Anos depois, em 1587, foi a vez de Baptista, um lombardo36. Mas, havia também os que de livre vontade deixavam as terras sob o domínio cristão. É relevante o depoimento de António Fernandes, um siciliano, que afirmou ter estado seis meses em Melilla, ao fim dos quais pretendeu regressar a Málaga. O capitão da praça não o autorizou “e vendo-se elle com trabalhos e necessidades o atentou o demónio pera se ir aos mouros”37. Dirigiu-se a Cazaza, onde o mouro Zeque Haudalae, o chefe local, lhe perguntou se queria renegar. Perante uma resposta afirmativa, foi-lhe explicado “que se não fisesse mouro porque melhor era ser christão e que estaria aly até o virem resgatar e se iria outra ves pera a sua terra e la viveria como christão, mostrando o dito mouro que o queria antes christão pera ser seu cativo e o poder vender que mouro porque sendo-o ficava forro e não tinha proveito algum delle”38 . Outras situações desagradáveis conduziam a idênticos resultados. Reinaldo Michal, veneziano, de 30 anos, homem casado, estando farto de andar numa galé de Veneza, fugiu para os Turcos, no ano de 1675. Sete anos depois, estava arrependido e, ao conseguir regressar à Europa numa embarcação, chegou a Lisboa e apresentou-se voluntariamente ao Santo Ofício39.

Como já se explicitou, após os aprisionamentos duas opções se colocavam: manter-se fiel à fé original ou renegar. Esse momento de passagem tinha que ser devidamente explicado e, nos depoimentos, não raras vezes se faz apelo a um discurso de desculpabilização no intuito de justificar a opção tomada alegando maus tratos, perda da esperança de ser resgatado, procura de uma vida menos dura, etc. ao mesmo tempo que se alegou ter mantido a fé no coração. Contudo, as fontes de que dispomos para o estudo desta temática não são as melhores, pois nem sempre se mostram isentas. Os réus sabiam os objectivos dos inquisidores e conheciam os seus métodos. Logo, limitavam as suas expressões 40 . Muitos dos elches que se viram processados alegavam em sua defesa terem sido constrangidos devido a maus tratos, o que choca com a prerrogativa islâmica que proíbe

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ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 7552. ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 6335. 34 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 9684. 35 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 7114. 36 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 5147. 37 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 280. 38 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 280. 39 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 9795. 40 Miguel Angel DE BUNES IBARRA, “Reflexiones sobre la Conversión al Islam de los Renegados en los Siglos XVI y XVII”, Hispania Sacra, vol. 42, n.º 85, Madrid, 1990, pp. 188 e 192. 33



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taxativamente tal comportamento, se bem que isso não impedisse a existência de algumas pressões41. No caso dos Italianos, os testemunhos acerca da mudança de credo foram discretos. Por exemplo, José Orlando, de Palermo, afirmou perante os inquisidores que “faltando-lhe a paciencia no fim delles [seis anos] por força do ditto mao tratamento”42, renegou, enquanto Filipe Cavalin, de Milão, “desesperado de se poder resgatar se tornou mouro”43.

No extremo oposto aparecem alguns renegados bastante integrados, os quais não hesitaram em fazer causa comum com os muçulmanos, molestando os cativos cristãos. Mas também se encontraram alguns que, não prejudicando os seus antigos companheiros de crença, se tinham adaptado totalmente à vida muçulmana chegando a desempenhar funções de relevo. Estes renegados foram, compreensivelmente, uma excepção. Pantaleão, de Génova, admitiu ter feito mal aos cativos e tê-los induzido a renegar44, confessando igualmente que nos últimos oito anos tinha andado nas fustas como “mercante tratamdo compramdo e vendemdo cativos e roupa”45. Lourenço Sauti, de Génova, cativo aos 11 anos, aprendeu a escrever árabe, bem como o ofício de serralheiro. Desenvolveu os seus conhecimentos de tal modo que gravava frases do Alcorão nas moedas, actividade, segundo o próprio, só possível de ser efectuada por muçulmanos46.

A mudança de credo implicava a alteração de nome e de aspecto. Algo se sabe sobre os trajes muçulmanos47 , mas pouco se conhece sobre a indumentária dos renegados. As dos cativos eram pobres, uns trapos a que eles próprios chamavam andrajos48, uma vez que se eram feitos cativos com boa roupa, dela se viam logo privados. De um modo geral, após terem renegado, os neófitos mudavam de traje e adoptavam um penteado diferente. A Giovanni, de Roma, que também usou roupa à moda dos muçulmanos, raparem-lhe o cabelo, deixando-lhe apenas uma “gadelha”49. José Orlando, siciliano, tinha uma



41 Miguel Angel DE BUNES IBARRA, “Reflexiones sobre la Conversión...”, cit., 1990, p. 188, nota 26; Mercedes GARCÍA-ARENAL e Miguel Angel DE BUNES IBARRA, Los Españoles y el Norte de Africa, cit., 1992, pp. 245-246. 42 ANTT, Inquisição de Évora, proc. 7700. 43 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 1474. 44 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 796. 45 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 706. 46 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 8517. 47 Guillermo GOZALBES BUSTO, Estudios sobre Marruecos en la Edad Media, Granada, [s.n.], 1989, pp. 283-338. 48 Cf. Isabel M. R. Mendes Drumond BRAGA, Entre a Cristandade e o Islão, cit., 1998, p. 63. 49 ANTT, Inquisição de Évora, proc. 2755.



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camisa fechada à frente 50 , enquanto Lourenço Sauti, de Génova, usava “traje de mouro” com uma touca na cabeça51.

A mudança de religião, neste caso concreto de cristão a muçulmano, obedecia a um cerimonial bastante fácil. O indivíduo apenas tinha que levantar o indicador da mão direita e dizer "La ilah illa Allah Muhammed rezul Allah", ou seja, "Não há outra divindade a não ser Deus e Maomé é o seu profeta"52. Depois desta simples frase, o cristão passava a ser muçulmano. Quase todos os que renegaram fizeram alusão a este procedimento, não obstante alguns ignorarem o significado de tais palavras, ou terem uma ideia deturpada do significado das mesmas. Baptista, de Milão, traduziu-a por “Deus he Deus e Mafoma he a segunda pessoa e está a sua mão direita”53. Gaspar Bento, de Veneza, supunha significar “o mundo não tem mais que hum so Deus e Mafoma junto a elle”54.

De um modo geral, a passagem de uma religião a outra era feita em privado, em caso do amo do cativo. No entanto, quer em casos de cristãos que voluntariamente se deslocavam ao Islão55 quer quando os muçulmanos queriam dar destaque a esse acto que os prestigiava56, a cerimónia passava a ter um carácter público. Registamse, no entanto, algumas variantes. Por exemplo, Sebastião, da Sardenha afirmou ter sido presenteado com uma pequena festa após a conversão: “fizerão festa e correrão cavallos e comeram”57. Após a adesão ao islamismo, havia que seguir outros preceitos inerentes à nova religião adoptada. Um deles era a circuncisão, acto quase sempre imediato, cuja prática era em muitos casos motivo de angústia, não só porque constituía uma marca que nunca mais se iria apagar, ligando a pessoa à reputação de muçulmano, como também devido ao medo da dor física e das consequências nefastas que poderiam ocorrer em resultado de uma intervenção deficiente58, realizada com uma navalha. A maioria dos elches utilizou a palavra cortado ou retalhado para se referir à circuncisão. Contudo, a palavra fanado também apareceu.

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ANTT, Inquisição de Évora, proc. 7700. ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 8517. 52 Bartolomé e Lucille BENNASSAR, Los Cristianos de Alá, cit., 1989, p. 350 53 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 5147. 54 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 3018. 55 Bartolomé e Lucille BENNASSAR, Los Cristianos de Alá, cit., 1989, p. 374; Bartolomé BENNASSAR, “Conversion ou Reniement? Modalités d'une Adhésion Ambigue des Chrétiens à l'Islam (XVIe - XVIIe siècles)”, Annales, Economies, Sociétés, Civilisations, 43.º ano, n.º 6, Paris, 1988, p. 1357. 56 Mercedes GARCÍA-ARENAL e Miguel Angel DE BUNES, Los Españoles y el Norte de Africa [...], p. 250. 57 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 12044. 58 Bartolomé e Lucille BENNASSAR, Los Cristianos de Alá, cit., 1989, pp. 376-378. 51



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António, da Calábria, explicou que “hua vez se embebedou tomando hua herva que se chama hanfiam que como a comem se embebedão e então o mandou retalhar por força”59. O mesmo explicou ainda que “quando o retalharão chorava por seu pay e por sua may”60. Francisco, de Milão, que, com muitos outros, renegou à pressa de modo a poder integrar um exército envolvido nas lutas intestinas de Marrocos, não foi circuncidado61.

Aceite a nova crença, importava viver de acordo com os seus princípios, respeitando certas proibições e praticando determinados actos. Como se sabe, o islamismo assenta em cinco pilares: a profissão de fé, a oração ritual, o jejum do Ramadão, a esmola legal e a peregrinação62. Por vezes, os renegados afirmavam desconhecer o significado das práticas islâmicas63, ou o conteúdo das orações, as quais proferiam frequentemente sem saber o que queriam dizer, até porque a maior parte não dominava o árabe64 . É de notar que, em muitas cidades corsárias do Norte de África utilizava-se frequentemente a chamada língua franca, ou seja, uma aglutinação de vocábulos de todos os idiomas dos países mediterrânicos 65 . Não obstante, Lourenço Sauti, de Génova, não só falava como escrevia árabe 66 . Importante era a ida às mesquitas e a realização da salat. Mas, nem todos os que renegavam cumpriam este ritual. O mesmo se pode afirmar em relação aos banhos, outra cerimónia 67 que parece ter sido popular em resultado de proporcionar higiene. Alguns Italianos referiram parte dos procedimentos enunciados. Por exemplo, Miguel de Sousa, de Veneza, costumava ir com os amos “quando hia as mesquitas levar o tapete em que se assentavam seus amos fingia que rezava bolindo com a boca”68. Frequentador assíduo das mesquitas, parece ter sido João Baptista, de Roma, qua ia



59 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 10840. Recorde-se que anfiam era a designação de ópio o qual, segundo Garcia d'Orta, ao ser ingerido punha as pessoas “como fora de si”. Cf. Colóquios dos Simples e das Drogas da Índia, reprodução em fac-símile da edição de 1891 dirigida e anotada pelo Conde de Ficalho, vol. 2, [Lisboa], Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, pp. 171-179. 60 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 10840. 61 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 9684. 62 Cf., entre outros, Dominique SOURDEL, O Islão, tradução de Mariana Quintela, [s.l.], EuropaAmérica, [s.d.], pp. 56-60. 63 Miguel Angel DE BUNES IBARRA, “Reflexiones sobre la Conversión...”, cit., 1990, pp. 188. 64 Sobre a língua árabe, cf. Bernard LEWIS, Os Árabes na História, tradução de Maria do Rosário Quintela, Lisboa, Estampa, 1990, p. 149, passim. 65 Miguel Angel DE BUNES IBARRA, La Imagen de los Musulmanes y del Norte de África en la España de los Siglos XVI y XVII. Los Caracteres de una Hostilidad, Madrid, C.S.I.C., 1989, p. 185. 66 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 8517. 67 Importa não confundir os banhos de água com os “banhos”, bairros onde viviam os cristãos e onde se praticavam sérios delitos doutrinais. Cf. Miguel Angel de BUNES IBARRA, “Reflexiones sobre la Conversion ...”, cit, 1990, p. 195; Bartolomé e Lucille BENNASSAR, Los Cristianos de Alá, cit., 1989, p. 296; Ellen G. FRIEDMAN, Spanish Captives..., cit. 1983, p. 60. 68 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 2872.



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diariamente e “tanto que entrava nellas se lançava no chão beijando-o na forma que o costumão fazer os mouros”69. Já José Orlando, de Palermo, afirmou ter ido uma vez aos banhos para ficar livre do pecado, mas a impressão que reteve foi a de que a cerimónia era um embuste70.

Era difícil sair do interior de Marrocos. Mesmo assim alguns conseguiam. Lourenço Sauti, de Génova, com outros, comprou um mouro – cada um pagou 350 onças de oito vinténs cada71 –, para este o ajudar a sair de Meknés e a chegar a Mazagão. Semelhante percurso deve ter feito Francisco Escuro, de Nápoles, embora sozinho72. Além da fuga suscitar a desconfiança dos amos, ou a aumento dela, havia também casos de retaliação sobre as pessoas dos fugitivos. Por exemplo, André, de Génova, afirmou ter visto cortar a cabeça a cristãos fugitivos73. Além das fugas importa referir os regressos acidentais. Temos casos diversos em que os aprisionamentos de renegados se fizeram por europeus de diversas nacionalidades. Em 1555, Sebastião, da Sardenha, foi apanhado ao largo do Algarve, após uma peleja em que houve mortos entre os cristãos e os muçulmanos74. Pouco depois, em 1558, Jácome, de Génova, ao ser apanhado como corsário foi conduzido às galés e, três anos depois, à Inquisição75. Assem, de Nápoles, elche cujo nome cristão ele próprio ignorava, andava tentando a sua sorte no Algarve quando foi apanhado em Lagos76. Igualmente no Algarve foram detidos Pantaleão, de Génova, o qual já tinha fugido das embarcações que vigiavam a costa andaluza77 e Maurício Noel, que regressou à Cristandade do mesmo modo que tinha ido para o Islão, ou seja, através do aprisionamento no mar78.

Os renegados que eram apanhados a fazer corso, estavam, obviamente, em condições mais difíceis de provar o seu desejo de regressar à Cristandade. A sua situação era bastante desfavorável pois, ao serem encontrados a fazer causa comum com os muçulmanos, contra os seus conterrâneos, ou contra os cristãos de um modo geral, não tinham praticamente nada que abonasse a seu favor, excepto o depoimento de algum companheiro, além das suas próprias explicações. O modo como os antigos cristãos tinham chegado ao Islão, a maneira como haviam passado a adoptar um credo diferente, as cerimónias que tinham praticado e o regresso que haviam empreendido para de novo se integrarem na Cristandade,

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ANTT, Inquisição de Évora, proc. 2755. ANTT, Inquisição de Évora, proc. 7700. 71 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 8517. 72 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 7552. 73 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 1058. 74 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 12044. 75 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 5666. 76 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 2432. 77 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 706. 78 ANTT, Inquisição de Évora, proc. 2509. 70



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eram registados pelos inquisidores, que pretendiam apurar o grau de responsabilidade dos réus. Ao contrário do que acontecia com outros arguidos, no caso dos renegados, a maior parte dos processos não tinha testemunhas de acusação porque eram os próprios réus que, ao chegarem, se dirigiam aos párocos, que os conduziam ao tribunal da zona, ou eram presos – no caso dos que vinham a corso – e aí levados. Só nesta situação, como em muitos casos não chegava apenas um renegado, as culpas de cada um apareciam também nos processos de outros, uma vez que lhes era habitualmente questionado se conheciam mais cristãos que tivessem renegado. De um modo geral, podemos afirmar que a Inquisição foi bastante benevolente face aos renegados. Decerto interessava o regresso do maior número de pessoas, que poderiam dar informações úteis e servir nos seus mesteres, além de se recuperarem "almas perdidas". A 23 de Julho de 1550, o cardeal infante D. Henrique, na sua função de inquisidor, deu conta disso mesmo ao dirigir-se aos provisores, vigários e justiças eclesiásticas dos lugares de África, explicitando que tinha conhecimento que muitas pessoas que haviam cativado ou livremente se tinham passado para o Islão abraçavam o islamismo e o judaísmo. No entanto, alguns arrependiam-se e, como nas praças africanas não podiam ser absolvidos, as dificuldades de reintegração aumentavam. Assim, determinou o inquisidor que, “vos comettemos nossas vezes quanto com dereito podemos e devemos pera que tanto que as taes pessoas se vierem a esses lugares arrependidos de suas culpas e erros e os confessem inteiramente diante vos declarando todos os actos e cirimonias que fizerão de mouros ou judeus os possaes absolver in forma ecclesia da excomunhão em que incurrerão”. Posteriormente, tais pessoas deveriam ser remetidas à Inquisição de Lisboa “pera delles receberem bons conselhos e ensinos e a mais penitencia que parecer saudavel pera suas almas e lhe passareis vossa certidão de como forão absolutos”. O inquisidor considerou ainda que os renegados deveriam ser tratados “com muita caridade e benignidade quanto for possivel pera que as pessoas que andarem em terra de mouros vendo quam benignamente são tratados tenhão mais animo a se tornarem a nossa santa fe catholica” 79. Assim se compreende que, sendo o islamismo um dos delitos maiores, as penas aplicadas aos elches não fossem, de uma maneira geral, das mais rigorosas, desde

79

ANTT, Conselho Geral do Santo Ofício, liv. 323, fls. 1-1v, 2-2v, e 23-23v, desta feita com a data de 1579. Elvira da Cunha Azevedo MEA citou este documento mas teve dele uma interpretação diversa uma vez que escreveu, relativamente aos três elches penitenciados em Coimbra durante o século XVI: “parece-nos demasiado a condenação de 2 "levi" suspeitos e de um de "vehementi" suspeito mesmo tendo-se apresentado apesar da legislação em vigor, desde uma primeira provisão de D. Henrique de 3.7.1550 até uma outra datada de 9.2.1579, portanto já reflexo de Alcácer-Quibir, em que se reitera uma absolvição completa”. Cf. A Inquisição de Coimbra. A Instituição, os Homens e a Sociedade, Porto, Fundação Engenheiro António de Almeida, 1997, p. 356. Ora, há que ter em conta que o documento refere a absolvição, mas também a aplicação de penitências a determinar pelos inquisidores.



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que os renegados confessassem espontaneamente 80 . Independentemente da existência de certidões passadas aos renegados, em número pouco significativo face ao total dos elches penitenciados, sabemos que a maioria das sentenças dos processos implicou abjuração de leve suspeito na fé, mais raramente de veemente, absolvição ad cautelam da eventual excomunhão em que tivessem incorrido, instrução, penitências espirituais e eventual pagamento de custas. Em outros tribunais a situação foi semelhante 81 , detectando-se contudo, em alguns casos, maior rigor82. Lembremos também a concessão dos éditos de graça, destinados a ser conhecidos no Norte de África, levando assim muitos a voltar sem receio da Inquisição83. Os éditos eram, assim, uma forma de incentivar alguns ao regresso, conseguindo recuperar a liberdade total. Não foi por acaso que, em Espanha, entre 1519 e 1617, se promulgaram 36 éditos prometendo perdão aos que voluntariamente regressassem à religião católica84. 4. Em conclusão, pode afirmar-se que os Italianos presos e penitenciados pelo Santo Ofício português, durante os séculos XVI e XVII, foram, em especial, homens com actividades marítimas ou guerreiras, os quais chegaram a Portugal, na maior parte dos casos, não por vontade própria mas em resultado de terem sido aprisionados quando andaram a corso ou por terem conseguido fugir do Magrebe para o primeiro local cristão. Este quadro aproxima os Italianos dos Gregos mas, mesmo assim, é mais diversificado, não apenas em número como também no tipo de delitos – caso do protestantismo e do pecado nefando de sodomia – os únicos crimes que apesar de terem conhecido baixa representatividade, acabaram por se evidenciar em comparação, por exemplo, com a magia, a bigamia ou a solicitação. Neste contexto, homens, ideias e mercadorias quase se confundem, pois os protagonistas foram pessoas que em algum momento das suas vidas estiveram na condição de mercadorias humanas, isto é, de cativos. Já as suas ideias parecem ser bastante sincréticas. Em muitos casos pouco claras acerca do Islão, do islamismo e dos muçulmanos e até do próprio cristianismo. Uma amálgama de experiências vividas sem preparação que permitisse compreender cabalmente os dois mundos que se enfrentavam e nos quais tinham sido apanhados. 

80

Jean-Pierre DEDIEU, “La Inquisición frente al Islam”, Granada 1492-1992. Del Reino de Granada al Futuro del Mundo Mediterráneo, direcção de Manuel Barrios Aguilera e Bernard Vincent, Granada, Universidade de Granada, Diputación Provincial, 1995, p. 215. 81 Cf. nomeadamente, Juan BLÁZQUEZ MIGUEL, La Inquisición en Cataluña. El Tribunal del Santo Oficio de Barcelona (1487-1820), Toledo, Editorial Arcano, 1990, p. 151. 82 Anita GONZÁLEZ-RAYMOND, La Croix et le Croissant..., cit., 1992, pp. 84-103. 83 Sobre as funções dos éditos de graça cf. Bartolomé BENNASSAR, “Les Inquisitions Espagnole, Portugaise et Venitienne et la Problématique des Rénegats”, Inquisição, Ensaios sobre Mentalidade, Heresias e Arte, S. Paulo,Universidade de São Paulo, 1992, pp. 788-789. 84 Juan BLÁZQUEZ MIGUEL, La Inquisición en Cataluña, cit., 1990, p. 151.



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