Os limites da terceirização

June 23, 2017 | Autor: Eliza Lemos | Categoria: Labour Law, Direito do Trabalho, Terceirização
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Universidade de Brasília Faculdade de Direito

Filosofia do Direito Ensaio

Questão 1

Eliza Victória S. Lemos 11/0115635

AGOSTO 2015

Os limites da terceirização Eliza Victória Silva Lemos Este ensaio deve ser percebido como um diálogo direto com o capítulo “Estado e regulação” do livro Estado e forma política, sob autoria de Alysson Leandro Mascaro. Em diversos momentos da análise aqui apresentada, pode-se perceber o uso recorrente de expressões, estruturas e ideias que encontram correspondência nas proposições do referido autor. Este texto diferencia-se, pois as abordagens gerais e conceituais de Mascaro são preteridas diante de uma perspectiva concreta, o fenômeno da terceirização, e de uma situação atual, o projeto de lei em debate na Câmara. Deste modo, este trabalho busca abordar o papel do direito do trabalho no capitalismo contemporâneo, especialmente em face das modificações no momento pós-fordista. Além disso, discorre sobre o impacto da flexibilização das relações de trabalho sobre as subjetividades de mulheres e pessoas negras, ao mesmo tempo em que faz referência ao papel cumprido pelo argumento que fundamenta a terceirização em uma necessária dinamização das relações de produção no interior de uma pretensa ordem biopolítica. Assim, o foco central das observações será como a regulação funciona como um arranjo de estabilidade para uma estrutura inerentemente contraditória e em crise, ou seja, a relação da regulação – normatividade - e do capitalismo. Por fim, a tese central é baseada num conceito de Mascaro: o neoliberalismo não é uma retirada do Estado da economia, mas um específico modo de presença do Estado na economia. Para começar, é preciso entender o tema central. A terceirização é um instituto trabalhista caracterizado como a relação triangular entre trabalhador, empresa prestadora de serviços e empresa tomadora de serviços. O empregado está vinculado à empresa prestadora de serviços, através da relação de emprego formal, a qual fornece, por contrato civil, a atividade meio para o tomador. Devem estar ausentes os caracteres da pessoalidade e da subordinação na relação trabalhador e tomador. Em regra, a contratação por empresa interposta é ilegal, ou seja, o sistema trabalhista prescreve a admissão direta. Assim, para ser concretizada, a terceirização sofre restrições da doutrina e da jurisprudência, tendo em vista a excepcionalidade da modalidade. A principal referência legal é a Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho (S. 331/TST)1. Sob a perspectiva do empregador, a opção por esse sistema de contratação justifica-se pela diminuição dos custos para manutenção do trabalhador, aumentando a competitividade das empresas que podem centralizar os esforços na atividade fim. Estima-se que 25% dos empregados estejam sob esta categorização2, sendo clara a importância da terceirização para a realidade social brasileira. Assim, diante de um cenário de

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SÚMULA Nº 331 DO TST CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE. I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974). II - A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988). III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.

omissão legislativa, não há lei que regulamente o fenômeno, o projeto de lei 4.330, em discussão no Congresso Nacional, surge como possível normatização. O desenho do PL, no entanto, vem causando diversas discussões, principalmente, quanto à liberalização dessa modalidade de contratação para as atividades fim da empresa, hoje essa prática é vedada. Os argumentos dos defensores dessa extensão para todos os serviços - meio e fim – giram em torno da rigidez do atual sistema trabalhista. O Direito do Trabalho brasileiro, majoritariamente de base heteronormativa, baseia-se no princípio do tuitivo ou da proteção do empregado, de modo que a estrutura jurídica é composta por dispositivos de caráter público e imperativo. Não há espaço para renúncia ou transação, ao mesmo tempo que as hipóteses de flexibilização estão sujeitas à negociação coletiva. Este sistema consolidou-se no período pós-fordista diante da convergência de fatores sociais, econômicos e políticos. No fordismo, a grande indústria se traduzia num modelo de organização produtiva, baseada na intensa utilização de máquinas e profunda especialização de tarefas. Os trabalhadores não tinham articulação ou poder de pressão. As relações de trabalham eram formalizadas através do contrato civil de prestação de serviços, que por sua vez pressupunham a igualdade entre os pactuantes. De outro lado, o momento pós-fordista entende a hipossuficiência do trabalhador. Na realidade brasileira, o Estado, por meio da normatização heterônoma, é o principal responsável pela regulação do equilíbrio entre capital e trabalho. É importante entender que o sistema trabalhista não se limita à proteção do empregado. Após a segunda guerra mundial, o direito do trabalho assumiu o papel de perpetuador do modelo capitalista de acumulação, que visa o lucro através da extração da mais-valia. O capitalismo estrutura-se em relações de exploração, dominação, concorrência, antagonismo de indivíduos, grupos, classes e Estados. Isso significa que não é possível a manutenção dessa superestrutura sem um mecanismo de estabilização. A forma política estatal e seu complexo institucional possibilitam a reprodução social da economia capitalista. Não é em vão a referência de Marx ao fim do Estado num cenário de comunismo pleno. Retomando, quando direitos sociais foram instruídos, eles cumpriram a missão de naturalizar a dominação capitalista e construir novas bases diante da falência do modelo IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial. V - Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada. VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral.

2 Disponível em: < http://www.cartacapital.com.br/economia/a-terceirizacao-do-trabalho-sera-liberada-no-brasil-3999.html> Acesso em: 07 julho 2015.

liberal anterior. O processo não é controlado, passa longe de uma teoria da conspiração, uma vez que a sociedade é dinâmica e, portanto, capaz de extrapolar limites de uma configuração pré-determinada. No entanto, é inegável que o processo de socialização do trabalho passa por um crivo de vontade política, seguindo uma ordem voluntarista de concretização. Nesse mesmo contexto de análise, emerge o conceito de ordem biopolítica, responsável pelo controle das massas, de modo que o Estado e suas instituições cercam e formatam o indivíduo e a população. É a naturalização das relações de poder de dominação, regulada pela racionalidade normativa. Estes aspectos são evidenciados na crise do Estado Intervencionista, ou seja, na transição para o Neoliberalismo. Neste período, dificuldades econômicas e recessão generalizada impõem um ambiente de mudança, no qual a vontade política desloca a atenção. O cenário urge pela substituição da rigidez pós-fordista pela dinamização neoliberal e graças ao modo de organização da sociedade, já se dispõe dos instrumentos da transformação: o Estado e as leis. Vale ressaltar que essas transformações assumiram mais um caráter de reforma que de reengenharia. A idéia central era a flexibilização de direitos e instituições trabalhistas, ou seja, manutenção da estrutura principal com a realização de ajustes necessários para continuidade do modelo de acumulação. Interessante notar que a crise apresentada anteriormente data meados dos anos 1970, mas produz reflexos até hoje. As relações entre Estado, capital, trabalho e sociedade, nunca foram tão complexas. Como afirma Mascaro, se o Estado não pode ser compreendido como um elemento salvador, de contraponto à lógica econômica capitalista – como ainda persistem em ver muitas teorias econômicas e políticas progressistas de esquerda -, no entanto, tampouco pode ser entendido como deletério a um pretenso equilíbrio natural perfeito dos mercados – como visões de direita, miseravelmente, insistem em propalar. Pelo exposto, fica esclarecido porque o Neoliberalismo não é uma retirada do Estado da economia, mas um específico modo de presença do Estado na economia. Esse novel modo de atuação pode ser exemplificado pelo instituto da terceirização. Esse modelo de contratação demonstrou que não está acompanhado de limites, requisitos e proteções jurídicas celetistas, ou seja, a alegada rigidez, otimizando a relação de emprego da mesma forma que provoca manifesta precarização do trabalho. Contraditório, não? Claro! Mas é basicamente sobre esses fatos que se estrutura o projeto de lei 4.330. A terceirização desorganiza os sindicatos e suprime qualquer possibilidade eficaz de ação, atuação e representação coletivas dos trabalhadores terceirizados. A noção de ser coletivo obreiro é inviável no contexto de pulverização de força de trabalho. Nesse sentindo, se aprovada, a “Lei das terceirizações” irá afetar de forma particularmente cruel a vida de negros e negras, mulheres e LGBT’s que, hoje, já compõem uma significativa maioria dos trabalhadores terceirizados. No Brasil, para que se tenha uma ideia de como a terceirização, a precarização e todo e qualquer tipo de trabalho vulnerável afetam diferenciadamente brancos e negros, homens e

mulheres, vale citar uma pesquisa do Dieese realizada em 2010 nas regiões metropolitanas do país3. No Recife, por exemplo, naquele ano, 35,9% dos trabalhadores estavam em situação vulnerável. Dentre os homens negros, a porcentagem era de 30,4%; dentre os não negros, o índice era de 28,4%. Já entre as mulheres, o abismo era ainda maior: 47,6% das negras estavam em situação vulnerável, contra 35,4% das brancas. A maioria negra e feminina nos serviços terceirizados também pode ser exemplificada pelos dados revelados por uma pesquisa do Sindicato das Empresas de Asseio e Conservação do Estado do Rio de Janeiro: 92% dos trabalhadores nos serviços de limpeza terceirizados são mulheres, enquanto 62% são negros. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômicas Aplicadas, em 2009 existiam 7,2 milhões de brasileiros trabalhando na limpeza, cozinha e manutenção de casas e escritórios. Destes, as mulheres eram 93% do total (cerca de 6 milhões) e negros e negras representavam 61.6% do total (4 milhões). Assim, os números acima apresentados indicam com clareza que as subjetividades negras e as mulheres estão em condições de risco em proporção maior que outros grupos sociais. A terceirização ampla e irrestrita, nos moldes do PL 4.330, agrava essa situação. Os desenhos da regulamentação proposta pela referida proposta de lei indicam a precarização das relações de trabalho na terceirização. É imperativa a mudança de direção da atuação legislativa, pois, em geral, a proposição representa uma regressão cultural incompatível com o Estado Democrático de Direito, bem como com o sistema tuitivo que a Constituição determinou firme implantação no país. Nessa moldura lógica da Constituição, não cabem fórmulas de utilização do trabalho que diminuam o patamar civilizatório mínimo instituído pela ordem jurídica do país, reduzindo a valorização do trabalho e do emprego. Caso contrário, o único resultado possível será o aumento desigualdade social entre os trabalhadores, instituindo formas novas e incontroláveis de discriminação, frustrando o objetivo central de busca do bem-estar e justiça sociais. Em consequência, a terceirização sem limites, não é compatível com a ordem legal brasileira. Esse fenômeno só é possível quando há compatibilização com os princípios e regras essenciais que regem a utilização da força do trabalho no mundo civilizado e no próprio Brasil.

3 Conforme disponível em < http://www.pstu.org.br/node/21386>, acesso em 07 de Julho de 2015.

Referências Bibliográficas

FOUCAULT, Michel. “Direito de morte e poder sobre a vida”. In: História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1998, p. 127-136 LEVINAS, Emmanuel. “Direitos do homem e boa vontade”. In: Entre nós – ensaios sobre a alteridade. São Paulo: Vozes, 2004, p. 263-267. MASCARO, Alysson Leandro. “Estado e regulação”. In: Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 111-128.

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