Os limites do discurso diplomático da política externa brasileira de direitos humanos sob Lula

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Os limites do discurso diplomático da política externa brasileira de direitos humanos sob Lula1 Rodrigo Cerveira Cittadino

Resumo O artigo foca-se na política externa brasileira de direitos humanos da Era Lula (2003-2010), propondo-se a examinar os confrontos entre a oratória diplomática (discurso oficial) e as declarações da sociedade civil e do Legislativo (discursos críticos) acerca da postura adotada pelo Brasil em questões de direitos humanos na Organização das Nações Unidas (ONU). Para tanto utilizamos uma perspectiva pós-estruturalista e o modelo de análise discursiva de Lene Hansen (2006), que nos permitem ler os textos oficiais e os críticos como interpretações que representam de forma distinta o Estado brasileiro em matéria de direitos humanos, constituindo para ele identidades diferentes e concorrentes. A narrativa do Itamaraty, a agência encarregada das relações exteriores, justificou que o Brasil votasse de modo a obstruir certas resoluções sobre direitos humanos na ONU, o que suscitou controvérsias no âmbito doméstico e legitimou demandas políticas democratizantes em prol da participação da sociedade civil na política externa.

Palavras-chave Política externa brasileira (PEB); direitos humanos; discurso; pós-estruturalismo; democratização; Comitê Brasileiro de Direitos Humanos e Política Externa (CBDHPE).

1. Introdução 1.1. Tema e problema O presente estudo tem por objeto a política externa brasileira (PEB) de direitos humanos durante o Governo Lula (2003-2010). Pretendemos abordar o assunto a partir de um enfoque que privilegia a interação entre a oratória diplomática (discurso oficial) e as declarações da sociedade civil e do Legislativo (discursos críticos) acerca da postura adotada pelo Brasil em questões de direitos humanos na Organização das Nações Unidas (ONU). O balanço da PEB de 2003 a 2010, disponibilizado no site oficial do Ministério das Relações Exteriores (MRE), narra em linhas gerais os contornos das relações internacionais Artigo baseado na monografia apresentada pelo autor ao Curso de Relações Internacionais da PUC-Rio, no segundo semestre de 2011, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Relações Internacionais. Agradeço à Professora Leticia de Abreu Pinheiro, pela orientação impecável, bem como ao Professor Roberto Vilchez Yamato, pelas aulas sempre estimulantes. 1

do Brasil em matéria de direitos humanos (MRE, 2011). Que se frise: em linhas gerais. Afinal, o panorama nele descrito não deve ser encarado como o retrato fiel de uma realidade objetiva. O texto do MRE expõe estritamente a interpretação estatal, oficial, que consagra a visão do Estado brasileiro acerca dos direitos humanos. Sendo inerentemente política e não se prestando, portanto, a explicar a política externa (PINHEIRO & VEDOVELI, 2010), sua parcialidade tem sido confrontada por leituras concorrentes, mas não menos parciais. Daí que ela nos interessa tanto pelo que contém quanto pelo que não contempla. A perspectiva diplomática não menciona, entre outras coisas, as polêmicas vivenciadas pelo Itamaraty durante a Era Lula quando segmentos da sociedade civil e do Legislativo contestaram as decisões do MRE em certos casos atinentes a direitos humanos. Mais precisamente, tratamos aqui das ocasiões em que, nas chamadas resoluções sobre a situação dos direitos humanos em países específicos, propostas na antiga Comissão de Direito Humanos (CDH) e no atual Conselho2-3, o Brasil absteve-se ou manifestou-se em contrário ou postou-se a favor de no-action motions. Uma no-action motion (moção de não-ação) recebe prioridade frente à resolução a que se endereça, e visa a impedir que o mérito desta seja sequer examinado (CONECTAS, 2005, p. 10). Intentamos captar os significados que diferentes discursos imputam ao padrão de votação do país em questões de direitos humanos na ONU. Nosso intuito precípuo é trabalhar os efeitos de tais narrativas conflitantes, no que se incluem não apenas as identidades políticas que elas constituem para o Brasil, mas também o que denominaremos efeitos democratizantes. Aquelas nada mais são do que imagens, uma gama de características que definem o Estado brasileiro, inscritas em textos que analisaremos. Quanto aos efeitos democratizantes, verificaremos como se materializaram no surgimento e funcionamento do Comitê Brasileiro de Direitos Humanos e Política Externa (CBDHPE), vinculado à Câmara dos Deputados. O compromisso de se fundar o CBDHPE foi firmado em 28 de setembro de 2005, em audiência pública convocada pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara. Na reunião, a partir de informe4 elaborado pela ONG Conectas demonstrou-se a necessidade de maior transparência na produção e condução da PEB de direitos humanos pelo MRE. O Comitê foi formalmente estabelecido no ano seguinte, em 31 de maio. Composto por instituições governamentais e entidades da sociedade civil, o CBDHPE busca

Em abril de 2006, pela Resolução 60/251, a CDH foi substituída pelo Conselho de Direitos Humanos. Também se suscitam resoluções dessa espécie na Terceira Comissão da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), mas optamos por fixar nosso foco na CDH e no Conselho de Direitos Humanos da ONU. 4 Parte do Programa de Acompanhamento de Política Externa em Direitos Humanos (PAPEDH). 2 3

“[promover] a prevalência dos direitos humanos na política externa brasileira e fortalecer a participação cidadã e o controle social sobre esta política, por meio de mecanismos de diálogo entre os poderes do Estado brasileiro e a sociedade civil” (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2011).

O que o Comitê oferece de inovador é a abertura de um canal de contato permanente entre a sociedade brasileira e o corpo diplomático, pela via do Legislativo. Garante um lócus para onde podem convergir os confrontos entre o discurso oficial e os discursos críticos. 1.2. Hipóteses A dinâmica interdiscursiva – isto é, as tensões e embates entre a narrativa diplomática e as narrativas críticas sobre a política externa de direitos humanos – propiciou e assegurou a democratização da PEB de direitos humanos na medida em que: a) os atos de fala concorrentes problematizaram o modelo discursivo estatal, realizando uma crítica indireta à autoridade do MRE; e b) as narrativas opositoras, numa crítica direta à autoridade do Itamaraty, legitimaram uma política de reforma democratizante. Na Gestão Lula, o perfil identitário e a política de direitos humanos – equivalente a certo padrão de votação nos foros da ONU – que os diplomatas articularam para o Brasil via discurso não foram incontestavelmente aceitos pela audiência brasileira, ou seja, houve oposição. Ora, se fragilizado o modelo discursivo estatal, a instabilidade atinge, por reflexo, a autoridade da instância governamental que nele escora-se, o Itamaraty. Aqui se divisa a crítica indireta, assim nomeada por dirigir-se primariamente ao conteúdo da narrativa diplomática, não à instituição que a proferiu. Já as vozes da sociedade civil e do Legislativo apoiam que a delegação brasileira assuma posicionamentos menos moderados na CDH e no Conselho, colocando-se a favor – não contra nem neutra – em resoluções que condenam patentes violações de direitos fundamentais, não importa em qual país. Entretanto, observe-se que algumas narrativas críticas defendem não só a policy alternativa mencionada, mas também outra, a democratização – e focar-nos-emos nesta, não naquela. Os atos de fala concorrentes questionam que a política externa de direitos humanos seja mantida sob a competência (quase) exclusiva do MRE, visto que por vezes a instituição toma posições muito controversas ao cuidar desse tema. Aqui a crítica à autoridade do Itamaraty é explícita. Para nós, o vocábulo democratização remete a noções de transparência, prestação de contas e responsividade, entre outras que assumirão relevo na análise ao final do artigo.

Democratizar implica, portanto, mais do que mitigar o insulamento burocrático5 que acomete (ou acometia) a principal agência brasileira classicamente habilitada a falar e fazer política externa, o Itamaraty. A autonomia com que o MRE desempenhava suas funções outrora se encontra hoje mais relativizada, pelo que averiguaremos se o CBDHPE consiste num dos mecanismos garantidores de tal permeabilidade. 1.3. Embasamento teórico-metodológico A teoria que informará este artigo consiste no pós-estruturalismo, consoante a versão de Lene Hansen em Security as practice: discourse analysis and the Bosnian war. Frente ao problema e à questão que guiarão nossa pesquisa, tal marco teórico mostra-se adequado, uma vez que atesta a importância da linguagem para a política externa. Discursos produzem sujeitos e objetos, Estados e seus perfis identitários – e, assim fazendo, delineiam arenas de disputa política, em que algumas representações prevalecem sobre outras, que são marginalizadas (HANSEN, 2006, p. 16). A identidade estatal plasmada por um discurso de política externa é, concomitantemente, fundamento de legitimidade para a referida política (ibid., p. 19). Portanto, quanto mais estável o link entre a representação e as diretrizes políticas, mais legítima a política externa e maior a autoridade dos profissionais que a formulam (ibid., p. 7 e 26). Destaque-se que a identidade deve ser pensada como relacional: ela é forjada a partir de referências a algo que não é – quer dizer, algo marcado pela ausência dos atributos de que dispõe (ibid., p. 5). Para construí-la utilizaremos uma metodologia que trabalha com signos linguísticos organizados hierarquicamente (ibid., p. 37), de sorte que uns (“pacífico”, “civilizado”) sejam privilegiados ante seus opostos (“violento”, “primitivo”). Decifrar a representação identitária contida num discurso implica apreender, neste, uma série de justaposições, mediante um duplo processo de ligação e diferenciação (ibid., p. 17). Exemplo: definir o Brasil como não-seletivo na temática dos direitos humanos leva a que, por um lado, sejam discernidos caracteres correlatos, como despolitizado, neutro e favorecedor do diálogo e da cooperação (ligação); por outro lado, o conceito de não-seletivo só possui sentido se confrontado com o de seletivo em direitos humanos (diferenciação). À luz de semelhante arcabouço teórico, acreditamos que será factível investigar como, ao contestarem a narrativa diplomática, as narrativas da sociedade civil e do Legislativo abriram caminho para a democratização da PEB de direitos humanos sob Lula. O insulamento burocrático pode ser descrito como “o processo de proteção do núcleo técnico do Estado contra a interferência oriunda do público ou de outras organizações intermediárias” (NUNES, 1997, apud LOPES et al., 2010, p. 5). 5

2. Era Lula: democratização da PEB de direitos humanos? 2.1. A PEB de direitos humanos sob Lula: uma introdução O pensamento que informou a política externa do Brasil de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) ostentou traços distintivos, embora se debata na literatura o real grau de mudança que essa troca de lentes aportou às diretrizes das relações exteriores (VIGEVANI & CEPALUNI, 2007).

Na seara dos direitos humanos, a novidade (se é que se pode chamar assim) decorreu de uma questão de ênfase: no primeiro mandato de Lula, os direitos humanos estiveram fortemente associados à luta contra a fome e a miséria. Tal foi o foco dos discursos do presidente na AGNU em 2003 e também na reunião de líderes mundiais para a Ação contra a fome e a pobreza, em setembro de 2004 em Nova York (CORRÊA, 2007, p. 703 e 727-732). Permeados por elevada carga de moralismo, referidos pronunciamentos escoraram-se na ideia de justiça social e nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, e resgataram temáticas como as disparidades socioeconômicas entre Norte e Sul. Programas como o Bolsa Família e o Fome Zero ganharam relevo, e ao “[transformar-se] a conquista social num atributo da política externa” (HIRST et al., 2010, p. 37), logrou-se moldar para o país uma imagem de “engajado” e “solidário”, num cenário onde, conforme o Brasil, “a miopia e o egoísmo de muitos [os Outros] ainda [persistiam]” (apud CORRÊA, 2007, p. 708). Percebe-se que essa abordagem cooperativa adotada por nosso país em matéria de proteção dos direitos humanos enquadra-se num aspecto identitário de “menos politizado”, contrastante com a hiperpolitização de que se tachava a Comissão de Direitos Humanos da ONU à época. Conforme atestado em discurso de 2005 à AGNU (ibid., p. 752-753), propagase que o Brasil privilegia – ante a denúncia, a condenação e a intervenção – meios alternativos, a saber: o diálogo, a persuasão e a assistência. Leia-se: os Outros que violam os direitos fundamentais de seus cidadãos não figuram no polo de “atrasados” ou “incivilizados”, inaptos a progredir; pelo contrário, podem fazê-lo, sim – só precisam de suporte técnico. É óbvio que se detecta alguma hierarquia na relação, porque o alter é representado como dependente do ego (nosso país); porém o Outro não é de todo inferior, visto que não se admite difamá-lo nem violentá-lo, forçando-o a “evoluir”, “amadurecer”. Proeminente nessa abordagem é o intenso esforço em se evitar alçar o Brasil ao patamar de “superior” frente aos (demais) Estados violadores de direitos humanos, uma par-

ticularidade da diplomacia sob a chefia de Celso Amorim. “No campo dos direitos humanos, não há mestres que não tenham o que aprender nem alunos que não tenham nada a ensinar.” (MRE, 2006b, p. 186) Argumenta-se que todos os países revelam deficiências no que concerne à satisfação da dignidade de seus cidadãos. Por estar ciente disso nosso país conseguiria prevenir-se de assumir atitudes arrogantes, em oposição a Estados que condenam uns aos outros por conveniência. A “humildade” e “senso de autocrítica” de que desfrutaríamos ironicamente serviriam a que lustrássemos nossa autoridade moral, reforçando-se a imagem de “menos politizado”. Essa preferência brasileira por métodos de ação mais neutros e apaziguadores acabaria por desembocar numa postura desabonadora à CDH, quando de sua decadência, e até ao Conselho de Direitos Humanos (AMORIM, 2010b, p. 238-239) – o assunto da próxima seção. 2.2. O Brasil e o fim da Comissão de Direitos Humanos Os anos que precederam a criação do Conselho de Direitos Humanos da ONU foram caracterizados pela drástica crise de legitimidade de sua antecessora, a CDH. Acusada por todos os lados de ter sucumbido à seletividade, aos duplos-padrões e ao “finger-pointing” perpetrados pelos Estados, a convicção na falência do órgão espraiou-se até entre os defensores da organização (GUTTER, 2007, p. 103-104). No bojo de tal processo, posaram de reformistas inclusive aqueles que ambicionavam livrar-se do escrutínio internacional. Integrantes do Grupo Africano, da Organização da Conferência Islâmica e do denominado Like-Minded Group6 imputavam um sentido negativo à racionalização dos mecanismos da CDH, propugnando mudanças solapadoras de sua capacidade de supervisionar a situação dos direitos humanos ao redor do mundo e singularizar os casos de graves lesões (ibid., p. 104). No canto oposto a essa proposta pessimista, dispunham-se os que exigiam um órgão mais confiável e eficaz (HAMPSON, 2007, p. 16), qualificados curiosamente pelo diplomata Benoni Belli como advogados do “status quo, ou seja, [da] reprodução de um sistema de condenação rotineira e arbitrária de países” (2009, p. 5). Não questionamos se essa definição é adequada ou não. Queremos ressaltar, isto sim, que o autor emprega-a com o propósito de localizar o Brasil num lócus intermediário entre “extremos que inviabilizam uma autêntica ‘síntese superadora’ dos trabalhos da CDH” (ibid., p. 5). A identificação de uma dicotomia entre os reformistas não configura especificidade da obra de Belli. A literatura que pesConstituído por Arábia Saudita, Argélia, China, Cuba, Egito, Indonésia, Irã, Líbia, Paquistão, Sudão, entre outros Estados interessados em limitar a eficácia dos procedimentos de fiscalização ostensiva da Comissão de Direitos Humanos (ibid., p. 104). 6

quisamos categoriza de fato as posições antagônicas em “Grupo Ocidental vs. Like-Minded Group”, tendendo a enxergar com bons olhos o primeiro e reprovar o segundo; ademais, há quem reconheça uma terceira categoria, a exemplo de Hampson (2007, p. 16) e Philip Alston (2006, apud BELLI, 2009, p. 149).

Não obstante, pode-se discernir um aspecto peculiar na apreciação do diplomata: o meio-termo inserido nas proposições brasileiras consigna a via “ótima” e a “única admissível”, já que se afasta das opções polarizadas acima apontadas, ambas “inaceitáveis” (ibid., p. 18).

Logo, desenha-se um segundo dualismo: este verdadeiro, ao passo que o primeiro

(“ocidentais vs. like-minded”) é rechaçado como falso, tido como incapaz de alcançar uma solução satisfatória. Nessa “nova” hierarquia o Brasil ocupa o centro, lugar da moderação, enquanto os Outros residem nos extremos, ou porque são demasiado seletivos e rigorosos ao se valerem de resoluções condenatórias, ou porque execram completamente o monitoramento da ONU. Pode-se considerar tal perfil identitário um desdobramento do de “menos politizado”: além de preterir a denúncia em sua política externa de direitos humanos, nosso país aspira a impedir que os demais denunciem abusivamente os adversários. Historicamente essa identidade de “moderado” informou as críticas brasileiras à hiperpolitização da Comissão quando sua extinção fazia-se iminente. À época todos indistintamente atacavam as deficiências do órgão, e nosso país igualmente procedeu assim; contudo, conforme Belli (ibid., p. 197), foi um dos poucos que realmente propôs ideias em prol da mitigação da politização, sem deixar de salientar que, para tratar das hipóteses mais gravosas, o regime de direitos humanos das Nações Unidas não podia prescindir de instrumentos de pressão política. O Brasil defendia a implementação de relatório que examinasse a situação dos direitos fundamentais no globo inteiro, de sorte que nenhum Estado ficasse de fora do escrutínio (MRE, 2006b, p. 185-187); eis os alicerces do Universal Periodic Review (UPR). Tencionava-se que essa revisão “servisse de base isenta e objetiva para as decisões propriamente políticas do [Conselho]” a ser instaurado (BELLI, 2009, p. 201). Os registros oficiais e textos escritos por diplomatas relatam que de modo geral a participação do Estado brasileiro na antiga CDH e no atual Conselho foi sempre construtiva (FLORENCIO SOBRINHO, 2009; MRE, 2011). Logo, cabe perguntar o que fomentou, particularmente durante a Era Lula, as críticas à PEB de direitos humanos, dado o quadro aparentemente positivo ostentado por ela. Tentaremos sanar tal dilema abaixo. 2.3. Politização da PEB de direitos humanos? À pergunta acima podemos responder começando pela constatação de que, no lap-

so 2003-2010, o Brasil contribuiu para que não vingassem certas resoluções condenatórias a países violadores de direitos humanos. Porém só isso não basta para formularmos qualquer conclusão, pois em governos anteriores a delegação brasileira não agiu diversamente, sendo notório o exemplo de Cuba, em que desde 1980 (e mesmo depois de nossa redemocratização) vem-se cultivando atitude abstencionista nas votações por medidas fiscalizatórias à ilha (BELLI, 2009, p. 189-190).

Além do mais, relembre-se que as decisões do Estado brasileiro, se não lidas por meio de discursos, pouco significam; destarte, a partir do momento em que nosso país pôsse a reprovar a hiperpolitização da CDH, deu-se azo a que se justificassem as abstenções – e votos contrários (ou favoráveis em no-action motions) – com base no argumento da neutralidade: propalava-se que as resoluções eram seletivas ou duras demais, caracteres que censurávamos, e daí não as acolhíamos (ibid., p. 187). Tais escolhas (policies), embora legitimadas pela faceta identitária do “Brasil-menos-politizado”, podiam receber interpretação distinta. Ora, coube aos agentes da sociedade civil, em especial a ONG Conectas, cujo PAPEDH iniciou-se em 2005, investigar os padrões decisórios do Brasil na CDH e no Conselho, detectar-lhe contradições e avançar leituras alternativas. Eis que ações antes coerentes, pois enquadradas na narrativa oficial do Itamaraty, tornam-se controvertidas. Não pesquisamos a fundo se nas gestões precedentes à de Lula a política externa de direitos humanos foi mais contenciosa ou menos, porque o artigo visa a enfocar as críticas do período 20032010. Não obstante, cremos que a PEB de direitos humanos sob Lula revelou-se singularmente politizada, em razão de outros acontecimentos que a marcaram, para além das votações polêmicas (ou melhor, polemizadas) no âmbito da Comissão e do Conselho. Trata-se aqui de “escândalos midiáticos”, como a aproximação ao Irã de Mahmoud Ahmadinejad ou à Guiné Equatorial do ditador Obiang Nguema, ou a comparação feita por Lula da situação de prisioneiros políticos cubanos à de criminosos comuns brasileiros (SZKLARZ, 2010, p. 1920).

São casos quase que polêmicos por natureza e, assim, sua desdramatização pela diplo-

macia mostra-se de difícil execução. Apesar de dignos de análise os textos que veiculam esses atos de fala críticos, nossa atenção não recairá sobre eles; somente os mencionamos porquanto seria impensável omiti-los, tamanha sua força politizadora. Lidaremos com os discursos que censuraram os posicionamentos da delegação brasileira em resoluções sobre países específicos na Comissão e no Conselho de Direitos Humanos, tomando como divisor de águas o informe da Conectas apresentado em 2005 em audiência pública (AP) na Câmara dos Deputados. Realizamos levantamento de notícias prévias a 2005 nas versões online de jornais de ampla circulação no

país intentando captar o grau de repercussão então detido, na órbita doméstica, pelo histórico de votação do Brasil em questões de direitos humanos na ONU. Datados dessa época, encontramos menos artigos do que esperávamos. Elencamos abaixo os que, pelo conteúdo ou pela linguagem, mais claramente se engajavam em criticar as escolhas da PEB de direitos humanos. Colhemos a série de reportagens acerca dos abusos perpetrados em Cuba, entre as quais se inclui uma que desaprova, na esteira da mídia estrangeira, a abstenção brasileira na CDH em abril de 2003, quando da designação de representante pessoal do Alto Comissário para Direitos Humanos das Nações Unidas para visitar a ilha (“NY TIMES...”, 2003). Talvez porque seja complicado desvincular tal evento de outras polêmicas que o acompanharam 7, bem como da crença nutrida por certos analistas sobre a “partidarização” da política externa, caiba sugerir que parte dessas críticas preocupa-se precipuamente com o fortalecimento dos laços entre Lula e Fidel Castro, e só secundariamente com as escolhas de nossos diplomatas nos órgãos de direitos humanos da ONU. Enfim, há atos de fala em que predomina a primeira ótica (“Cuba-castrista”) e outros em que a segunda é prevalecente (“Cubavioladora”), mas nem sempre se logra discernir com precisão. Independentemente disso, cumpre apontar que, diante da miríade de controvérsias, Celso Amorim seria convocado à Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara para prestar esclarecimentos. Em réplica ao deputado Fernando Gabeira, o ministro aludiria a aspectos da identidade do Brasil de “menos politizado” em direitos humanos: o teor hiperseletivo da resolução sobre Cuba (o que combatíamos na CDH) e a opção brasileira pelo diálogo, em detrimento da denúncia (MRE, 2003, p. 60-61). No debate aí travado já se percebem acusações de que a discrição preferida por nossa diplomacia poderia caracterizar mais “omissão” do que “imparcialidade”: “em grande parte dos momentos em que não se faz nada [se usa] também essa justificativa de que ‘estamos trabalhando secretamente, estamos fazendo tudo no maior silêncio’” (GABEIRA apud ibid., p. 60). Em fevereiro de 2004, a ONG Human Rights Watch (HRW) endereça carta ao presidente Lula elogiando as contribuições do Brasil à promoção internacional dos direitos humanos, porém censurando três posições adotadas por nossa delegação em Genebra quando da aprovação de medidas fiscalizatórias ao Turcomenistão, à Chechênia (Rússia) e a Cuba. Enquanto em Genebra a CDH desempenhava seus trabalhos, o Brasil manteve baixo perfil sobre a decisão de Cuba de prender cerca de 75 dissidentes políticos e fuzilar, pós-julgamento sumário, outros três (ZANINI, 2003). Na ocasião um embaixador brasileiro na ilha fez declarações constrangedoras sobre as violações, parecendo eximir o Brasil de posicionar-se invocando a obsoleta noção de não-intervenção (SUWWAN, 2003). E antes, em julho de 2003, a delegação brasileira endossara uma proposta de Cuba e Líbia demandando a suspensão da ONG Reporters Sans Frontières da CDH, ao que o MRE emitira nota considerada pouco satisfatória, por fundamentar o voto na ONU em critérios meramente técnicos (“RSF...”, 2003). 7

Recomenda-se que nosso país utilize sua credibilidade em prol de uma diplomacia bilateral menos tolerante às violações cometidas por seus parceiros (Vivanco, 2004). Aparentemente o comunicado reverberou pouco na imprensa nacional, e nas escassas referências a respeito não se discriminam as decisões brasileiras na CDH que suscitaram controvérsia, à exceção da nota emitida na versão em português do site da HRW (2004). Comum a todas as notícias, todavia, é a qualificação da conduta do Brasil como “politizada”, já que teríamos atentado para a seletividade dos Estados Unidos, mas silenciávamos diante de graves abusos a direitos fundamentais; aqui se constata choque direto com a identidade de “menos politizado” do discurso oficial. Ainda em 2004, multiplicam-se notícias sobre a viagem de Lula à China e reprovase que o presidente não tenha sido mais enfático ao tocar no tema dos direitos humanos. Em contrapartida, recebe fraco destaque o fato de que no período o Brasil ajudou a obstruir resolução contra o regime chinês na CDH. No Folha de S. Paulo o voto brasileiro é citado como se mero detalhe, entre vários, das relações sino-brasileiras8 (MORAES, 2004; SILVEIRA, 2004; TREVISAN & BARROS, 2004),

e ao menos até onde nossa pesquisa permitiu-nos apurar

só da Gazeta Digital (versão online do A Gazeta, do Acre) consta um artigo tardio (2005, um ano após a votação), de Jamil Chade, versando inteiramente sobre a matéria em tela. Nesta última reportagem, Oscar Vilhena Vieira, da Conectas, imputa ao Brasil a imagem do “realista”, o “pragmático que menospreza os valores”9. Do exposto, vale supor que a temática específica de como o Brasil vota em questões de direitos humanos na ONU não usufruía de visibilidade significativa no âmbito interno, apresentando baixo nível de polemização. É o que atesta o diplomata aposentado Rubens Ricupero: “[tem] sido muito menos divulgado, fora de círculos especializados, o comportamento no Conselho dos Direitos Humanos da ONU [...] da delegação brasileira” (2010, p. 55). Cabe sustentar que essa limitada repercussão do assunto pode derivar, em parte, da falta de empenho do Itamaraty em prestar contas das decisões de nossos diplomatas na CDH à sociedade (déficit que viria a ser minimamente sanado futuramente) e, em parte, da simples escassez de interesse midiático. O corpus de notícias que conseguimos encontrar aponta para uma politização moderada. Destarte, o informe do PAPEDH possui o mérito da inovação, atribuindo notoriedade a aspectos da PEB de direitos humanos outrora (quase) ignorados nacionalmente. FezEntre outros pontos, narra-se que na declaração conjunta Brasília-Pequim ambos acatam o princípio da nãoseletividade dos direitos humanos. Além disso, Amorim esclarece que o Brasil não deve reputar-se moralmente superior à China e celebra a inclusão dos direitos fundamentais na nova Constituição chinesa. 9 Afirma ele: “[t]rata-se da submissão da política de direitos humanos à política econômica e mesmo geoestratégica” (apud CHADE, 2005). 8

se crucial a agência, traduzida: a) na iniciativa dos executores do Programa de, mediante cuidadosa pesquisa, transformar em evidências o que, à luz das reportagens acima, consistia em meros indícios e casos esparsos de votos na CDH reputados inadequados; e b) na sagacidade para desenvolver uma crítica diferente das precedentes e, cremos mais sólida até. De certo modo se ergueu o véu que encobria os posicionamentos do Brasil na CDH. Isso posto, doravante procuraremos verificar a correção de nossa hipótese de que a dinâmica interdiscursiva propiciou e assegurou a democratização da PEB de direitos humanos urante Era Lula. Para tanto, analisaremos os atos de fala críticos proferidos na AP de 2005. Indique-se que na audiência seriam debatidos especialmente os votos brasileiros nas resoluções quanto à China e à Chechênia (Rússia), apesar de o informe do PAPEDH listar outros posicionamentos (CONECTAS, 2005). Ao começo da AP a embaixadora Maria Luiza Viotti reproduziu o discurso oficial, descrevendo “o papel mais proativo e construtivo, voltado à formação de consensos”, avançado pelo Brasil eminentemente a partir da redemocratização; ademais, aludiu ao problema da seletividade da CDH e à abertura de nosso país frente ao sistema ONU de direitos humanos. Acrescentou que alguns diplomatas reclamaram de, no estudo do PAPEDH, só se relatar a postura da delegação brasileira em resoluções sobre países, enquanto a PEB de direitos humanos é deveras mais abrangente que isso (CDHM, 2005); eis a falácia que seria indicada pelo embaixador Sérgio Florencio (2011) de se olhar as árvores (voto) sem enxergar a floresta (toda a política externa). Ora, embora Lúcia Nader – expositora do relatório da Conectas na audiência – concorde com a observação de Viotti, o que gostaríamos de ressaltar é que, se o argumento procede, igualmente é válido contra-argumentar – prosseguindo com a analogia – que a floresta por vezes contribui para encobrir clareiras devastadas, que precisam ser denunciadas para ensejar o reflorestamento. Fazer aparecer o invisível – eis a relevância do informe do PAPEDH. Nele e durante a AP, a Conectas, pela voz de Nader, empregou um discurso crítico interessante: apelando à autoridade de outro texto (intertextualidade), a Constituição Federal (CF), invocou-se o princípio da prevalência dos direitos humanos nas relações exteriores (CDHM, 2005). Denota-se um tipo de contestação externa – nas palavras de Hansen (2006, p. 26-29) –, na medida em que se incorpora fato “novo” na discussão10. Deduzem-se daí duas táticas internas de crítica (ibid., p. 26-29) atuando alternativamente: ou se moldou para o Brasil um perfil identitário concorrente ao oficial (“Brasil-que-desrespeita-a-CF”, cujo alter é o almejado “Brasilconstitucional” do dever-ser); ou se abalou a estabilidade do liame identidade-policy, sugeCom efeito, em geral o polo discursivo diplomático promove tímidas referências ao princípio constitucional. Uma das exceções corresponde ao balanço da PEB (MRE, 2011), referência à introdução do artigo. 10

rindo-se que, conquanto nosso país se diga constitucional, não o foram as escolhas efetuadas nas votações apreciadas. A embaixadora rebateu afirmando que não há valores absolutos, pois a própria Constituição também resguarda o princípio da não-intervenção. O que em seguida se enfatizou na tréplica foi justamente o vocábulo “prevalência” no Artigo 4º, II, que elevaria os direitos humanos a patamar indisputável (CDHM, 2005); a propósito, o princípio constituirá a razão de ser do CBDHPE (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2011). Reportando-se às posições do Brasil diante das situações de China e Chechênia, Viotti salientou, quanto à primeira, os progressos em matéria de direitos humanos (e.g., as alterações da Constituição chinesa) e, quanto à segunda, a benéfica abordagem de diálogo bilateral que o Estado brasileiro empreendeu. Adicionou ainda que cada opção brasileira na CDH é complexa, porque considera inúmeras variáveis. Não obstante seja mesmo essa a realidade das coisas, o deputado Orlando Fantazzini emendou que, no que concernia à China, diante do silêncio do Itamaraty sobre o assunto, para os parlamentares e a sociedade civil ficava a interpretação de que nosso país trocara seu voto pelo apoio de Pequim à reforma do Conselho de Segurança da ONU11, pleito brasileiro de longa data – isto é, a imagem que vigorava sobre o Brasil era a do “pragmático que menospreza os valores”. Essas críticas não se remeteram diretamente ao MRE, mas, antes, à maneira como a PEB de direitos humanos estava a ser conduzida. São as críticas indiretas, que respaldaram críticas mais diretas, em particular sobre o sigilo do Itamaraty quanto às votações de nossos diplomatas na CDH e, por extensão, censurando que as decisões tenham sido tomadas à margem do controle social e do Legislativo, e à revelia da participação dos atores nãogovernamentais interessados. Em função disso se justificaram as propostas em prol de políticas (policies) para acompanhar e monitorar a política externa de direitos humanos. Não é desarrazoado imaginar que, não existissem tais atos de fala opositores, a oratória oficial terse-ia firmado como absoluta, dotando-se de incomparável poder persuasivo; ao contrário, ocorrendo contestação, ela não convenceu de todo – foi limitada, destarte. A dinâmica interdiscursiva – em que o polo discursivo crítico desafia o do MRE – criou, pois, condições para uma transformação política, a fundação do CBDHPE. Entretanto, reconhecemos que, se o Itamaraty deslegitimou-se por não estar executando a PEB em consonância com os anseios dos presentes na AP, sua legitimidade foi ressarcida na medida em que ele se mostrou aberto a aprimorar os mecanismos de diálogo. Logo, o decréscimo de uma espécie de Aliás, a ideia fora aventada na mídia à época (TREVISAN & BARROS, 2004). Igualmente, mais em favor da opinião de Fantazzini do que da explicação de Viotti, cumpre apontar que o diplomata Benoni Belli (2009, p. 192-193), após haver conversado com integrantes da delegação brasileira em Genebra a respeito da votação em tela, conclui que sem dúvida motivos pragmáticos – tais como “o peso político e econômico da China e a coincidência de visitas de alto nível àquele país” – influenciaram a decisão do Brasil. 11

legitimidade (competência para lidar com direitos humanos) foi compensado pelo acréscimo de outra (democrático). Em contrapartida, a retórica da chamada “Diplomacia Pública”, proferida pela embaixadora Viotti, não foi desdramatizante o bastante para desacreditar a necessidade do CBDHPE, em virtude, e.g., da intervenção do deputado Fantazzini12. 2.4. Democratização da PEB de direitos humanos? Para nossa hipótese completar-se, requer-se avaliar se o Comitê propiciou e assegurou avanços rumo à democratização da PEB de direitos humanos. O exame pautar-se-á nas atas de APs e seminários por ele realizados a partir de 2006 na CDHM, e nos anuários publicados pela Conectas com o apoio institucional do Comitê. No quesito da transparência e prestação de contas, complicações podem ser apuradas. Nas reuniões, se sobre certas questões os diplomatas proveem bastante informação, em outras a retórica diplomática é vaga às vezes. Em parte isso se explica pela interdisciplinaridade inerente aos direitos humanos: não raro os assuntos levantados perpassam as esferas de várias subdivisões do Itamaraty, enquanto geralmente presenciam as discussões apenas autoridades do Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais. Belli (2009, p. 248) lembra ainda que nem tudo pode ser dito “de maneira totalmente franca e desimpedida em seminários ou apresentações”, no tocante às resoluções sobre países. É verdade que o CBDHPE emprega outros meios de contato além das audiências para obter dados importantes, como solicitações por carta; entretanto se ressalta que nem sempre o MRE responde-as prontamente13. Um segundo aspecto a ser investigado refere-se à capacidade do Comitê de garantir a responsividade14 do Itamaraty. À primeira vista se poderia dizer que, no que tange à votação do Brasil em resoluções sobre países, a PEB mudou pouco no sentido de aproximar-se das expectativas enunciadas pelas vozes críticas. Afinal, se na audiência de 2007, a MinistraChefe do Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais do MRE, Ana Lucy Petersen, comentou que de então em diante não mais se seguiria política de “abstenção geral”, e sim casuística (CDHM, 2007, p. 3), a partir de 2008 proliferaram notícias a respeito de posicionamentos obstrucionistas adotados pelo Estado brasileiro quanto à condenação de, e.g., Irã, Coreia do Norte e Sri Lanka.

“Ouvi V.Sa. dizer que as entidades da sociedade civil [participam], colaboram. O Parlamento, que deve ratificar, tem sido excluído desse processo. Se houvesse esse espaço permanente, poderíamos colaborar com a política externa brasileira.” (CDHM, 2005; grifos nossos). 13 No período 2006-2007 o Itamaraty não acusou o recebimento de dois documentos (Conectas, 2007, p. 63). 14 A “disposição dos representantes para respeitar as preferências dos constituintes” denomina-se responsividade (MIGUEL, 2005, p. 168). 12

Na mídia reproduziram-se discursos que, contrapondo-se ao oficial, imputavam ao Brasil identidades de: “seletivo” (em contraste com a de “menos politizado”); “ultrapassado” (por julgar, em determinadas ocasiões, o princípio da não-intervenção como superior aos direitos humanos); e até “conivente” ou “cúmplice” para com violadores (aí quase se eliminando a fronteira entre o “Brasil-cooperativo” com o sistema ONU e os “Outros-nãocooperativos”) – vide Adghirni (2009), “Sob...” (2009), “Apoio...” (2009), Chade (2010), Vieira (2010),

Reale Júnior (2010). No entanto é difícil constatar se houve ou não retrocesso, porque

desde 2007, com o UPR, modificou-se a dinâmica de resoluções a países, o que complexifica comparações temporais. Mais seguro é sustentar que, no âmbito doméstico, as escolhas brasileiras no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas ganharam maior visibilidade, em virtude do ativismo da Conectas e seus relatórios, e dos trabalhos do CBDHPE. Esse incremento de notoriedade não deve ser desprezado, pois contribui para a transparência de uma matéria fracamente divulgada até 2005. É oportuno aqui ressalvar que, apesar de comumente a mídia operar como veículo para o criticismo de ONGs e do Comitê, também ela formula e difunde criticismo próprio. Contudo, faz-se premente destacar que as críticas midiáticas distinguem-se qualitativamente das outras mencionadas. Afinal, é de supor-se que ONGs, tal qual a Conectas, e o CBDHPE critiquem com o fito de exigir a prevalência dos direitos humanos nas relações exteriores, enquanto a conduta da mídia talvez se funde em propósitos diversos. Logo, não desassiste razão a Belli (2009, p. 250) ao salientar que o discurso midiático tende a ser simplificador, “‘pré-digerido’”, “[apegando-se] às fórmulas sintéticas, mais facilmente vendáveis”. O que não se deve fazer é indiscriminadamente generalizar semelhante observação, porquanto ocasionalmente a mídia é mera plataforma para a transmissão de textos críticos não desprovidos de substância, elaborados por outros atores15. Na linha do exposto, registre-se que, endereçando-se exatamente às críticas, Celso Amorim escreveu artigo no Folha de S. Paulo a 15 de agosto de 201016 (AMORIM, 2010a), o que indica que aquelas foram contundentes o suficiente para que o Itamaraty no mínimo se visse compelido a justificar-se, conquanto reafirmando o discurso oficial. E o debate não se encerraria, ao passo que os atos de fala opositores experimentariam refinamentos. Em 2009 Asano et al. (p. 4-7), da Conectas, dedicariam contestações específicas a diversos traços pontuais da política externa de direitos humanos conduzida pelo MRE. Uma delas é particularmente pertinente ao artigo, visto que se amolda a uma tática de crítica mencionada por Hansen (2006, p. 28): a que põe em xeque a adequação da policy empreendida. Com proprie15 16

Nesse sentido, cf. especialmente o artigo de Vieira (2010). Constante do site do MRE como se norteador da política externa de direitos humanos.

dade, os membros da ONG argumentam que a preferência pelo diálogo preconizada pelo Itamaraty só se revela cabível caso o Estado violador esteja disposto a cooperar. Diante de governos recalcitrantes em mitigar os abusos, a possibilidade de se recorrer aos procedimentos ostensivos do Conselho de Direitos Humanos para exercer constrangimento moral não se invalida. Com efeito, há fatos que contrariam a tese dos diplomatas brasileiros de que a persuasão tende a ser mais eficaz do que resoluções condenatórias (ASANO & NADER, 2011, p. 123 e 127),

como a rejeição da Coreia do Norte em acatar todas as recomendações da

ONU depois de submeter-se ao UPR, para o que contribuíra a abstenção do Brasil. Exemplo paradigmático foi o de Darfur, quando em novembro de 2006 o Brasil absteve-se em emenda que, recrudescendo as disposições de resolução anterior, previa que fossem levados à justiça os responsáveis pelo massacre então em curso (NAÇÕES UNIDAS, 2006).

O CBDHPE enviou documentos ao MRE requisitando que justificasse a decisão da

delegação brasileira (CONECTAS, 2007, p. 63) e, subsequentemente, no intuito de pressioná-lo a revisar sua postura, veiculou críticas na imprensa nacional17. Embora seja arriscado afirmar que a influência deu resultado, nosso país efetivamente desempenhou papel algo mais positivo na 4ª Sessão Especial do Conselho de Direitos Humanos, sobre Darfur, além do que o Itamaraty emitiu nota a respeito (MRE, 2006a). Logo, pode-se dizer que, por meio da dinâmica interdiscursiva, o Comitê assegurou alguma prestação de contas por parte do Itamaraty.

3. Conclusão Concluímos que talvez tenhamos nos precipitado em nossas hipóteses. Não cabe alegar que se consumou uma democratização nas relações exteriores do Brasil em direitos humanos. (Se bem que, de todo modo, seja vão tentar precisar o ponto exato em que ela se conclui, já que, antes de uma meta, a democratização deve ser encarada como um processo; e, enquanto processo, sem dúvida o CBDHPE favoreceu-a.) Assim, tampouco seria aceitável ignorar que algo mudou favoravelmente à democratização. Na dinâmica interdiscursiva, o polo crítico restringiu o alcance do oficial, dando azo à criação do Comitê, e a ele o MRE agora deve prestar contas. Outrora quase que nula, a consulta à sociedade civil sobre a PEB de direitos humanos hoje se dá com regularidade. O acesso à informação foi facilitado – e O CBDHPE publicaria três artigos, de cuja repercussão proviriam outros (CDHM, 2007, p. 6). Ver, e.g.: “Brasil se abstém na ONU para não contrariar Sudão”, n’O Estado de S. Paulo, e “Em péssima companhia”, no editorial do Folha de S. Paulo (apud BELLI, 2009, p. 194-195). 17

mesmo garantido, como no caso de Darfur. Facetas anteriormente invisíveis de nossa política externa ganharam maior notoriedade, acirrando a politização. O Comitê sedimentou alicerces para um processo que pode vir a aprofundar-se.

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