Os Movimentos Independentistas, O Islão e o Poder Português. Guiné-Bissau (1963-1974)

September 21, 2017 | Autor: Francisco Garcia | Categoria: African Studies, Portuguese History, War Studies, Insurgency/Counterinsurgency(COIN)
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Índice Abreviaturas. Introdução CAPÍTULO I OS GRANDES PODERES MUNDIAIS E A ÁFRICA NEGRA SUBSEQUENTE À CONFERÊNCIA DE BERLIM. 1. Os grandes poderes mundiais e a África Negra.................................................. 1.1. A questão de Bolama.................................................................................... 1.2. As viagens dos exploradores / Tratado do Zaire de 1884............................ 1.3. A partilha de África e o Acto Geral da Conferência de Berlim.................. 1.4. Os Acordos luso-franceses de limites e a questão do Casamansa................ 1.5. A Convenção luso-alemã de 1886 e o Ultimatum......................................... 2. A Guerra de 1914 - 1918 e o Pacto da Sociedade das Nações........................... 3. A Sociedade das Nações e a realidade internacional.......................................... 3.1. A Sociedade das Nações e a realidade colonial............................................ 4. A Carta da Organização das Nações Unidas e os territórios não autónomos.... 5. O Terceiro Mundo, Bandung e as Conferências Pan-Africanas....................... 6. O período anti-colonial na Organização das Nações Unidas............................. 7. Estratégia global de penetração no Terceiro Mundo......................................... CAPÍTULO II OS MOVIMENTOS INDEPENDENTISTAS NA ÁFRICA NEGRA E EM ESPECIAL NA GUINÉ PORTUGUESA 1. Conceitos............................................................................................................ 2. O desenvolvimento da subversão........................................................................ 2.1. A conquista das populações.......................................................................... 3. A génese do independentismo na Guiné.Portuguesa O espírito de Bandung... 3.1. Movimentos independentistas na Guiné..................................................... 3.1.1. O Movimento de Libertação da Guiné.............................................. 3.1.2. A Frente de Libertação e Independência Nacional da Guiné.......... 3.1.3. O Partido Africano da Independência da Guiné e de Cabo Verde... 4. Apoios externos à subversão............................................................................... 4.1. Apoio de organizações internacionais.......................................................... 4.2. Apoio bilateral.............................................................................................. 4.3. Apoio de organizações não governamentais................................................ CAPÍTULO III O ARTIFICIALISMO DAS FRONTEIRAS DA GUINÉ PORTUGUESA E OS ESPAÇOS SÓCIO-RELIGIOSOS SOBREPONÍVEIS: SOCIEDADES DE RELIGIÃO TRADICIONAL E COMUNIDADES MUÇULMANAS; A SUA ATITUDE PERANTE A SUBVERSÃO 1. Sociedades onde preponderava a religião tradicional africana......................... 2. Geopolítica do Islão. A escola dominante na África do N. e do N.W. .............. 3. Os grande impérios islamizados sub-saharianos. O aparecimento do Islão e o “tecido” islâmico na Guiné. Fenómenos de aculturação sócio-religiosa........... 4. O relacionamento das comunidades muçulmanas da Guiné Portuguesa com o Poder Português e com a subversão. Ligações das comunidades ao exterior, na generalidade, e das confrarias locais, na especificidade............................... CAPÍTULO IV O INDEPENDENTISMO E O PODER PORTUGUÊS EM CONFRONTO 1. A política interna portuguesa no período em análise e a sua inflexão ultramarina......................................................................................................... 2. No desenvolvimento da contra-subversão.......................................................... 2.1. A “resposta possível” e/ou iniciativas portuguesas face à subversão. A Acção Psicológica................................................................................................

2.2. A acção dos movimentos independentistas............................................... 2.3. A acção desenvolvida pelas autoridades portuguesas................................. 3. A importância das Informações no conflito da Guiné....................................... 4. Negociações para a paz........................................................................................ 5. Das áreas libertadas até à proclamação da independência................................ Conclusão............................................................................................................... ANEXOS................................................................................................................. Bibliografia e Fontes...............................................................................................

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Abreviaturas AFL-CIO Apsic ARA Art.º BCGP CAOP cap. cf. CIDAC doc. ed. EUA FA FARP FLING FRELIMO INEP MDFC MLG MPLA nº. N NATO/OTAN NU NW OUA ONU ob. cit. pág.(s) PAIGC PERINTREP PIDE (DGS) RDA RepACAP SCCI SDN SGDN SUPINTREP SW vol. UPA URSS

American Federation of Labour - Congress of Industrial Organizations Acção Psicológica Acção Revolucionária Armada Artigo Boletim Cultural da Guiné Portuguesa Comando Adjunto Operacional capítulo confronte, compare Centro de Informação e Documentação Amílcar Cabral documento edição Estados Unidos da América Forças Armadas Forças Armadas Revolucionárias do Povo Frente de Libertação e Independência Nacional da Guiné Frente de Libertação de Moçambique Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa Mouvement des Forces Democratiques du Casamance Movimento de Libertação da Guiné Movimento Popular de Libertação de Angola número Norte Organização do Tratado do Atlântico Norte Nações Unidas Noroeste Organização da Unidade Africana Organização das Nações Unidas obra (já) citada página(s) Partido Africano da Independência da Guiné e de Cabo Verde Relatório Periódico de Informações Polícia Internacional e de Defesa do Estado Direcção Geral de Segurança Rassemblement Démocratique Africain Repartição de Assuntos Civis e Acção Psicológica Serviços de Centralização e Coordenação de Informações Sociedade das Nações Secretaria Geral de Defesa Nacional Relatório Suplementar de Informações Sudoeste volume União dos Povos de Angola União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

Introdução

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A presente dissertação que tem por tema “Guiné 1963-1974: Os Movimentos Independentistas, o Islão e o Poder Português”, partiu do interesse pelo estudo dos comportamentos de mecanismos políticos e sócio-religiosos que ultrapassavam as fronteiras das colonizações europeias, no contexto integrador da Guiné, num dos períodos mais conturbados da História Contemporânea, ligado ao processo internacional de descolonização. Semelhante objectivo insere-se no vasto âmbito das Relações Internacionais: transcendendo um espaço político formal, ele compreende relações entre forças políticas, agindo aos níveis interno/externo e entidades de que as mesmas estão, ou não, formalmente dependentes no exterior do território, bem como relações entre forças sócio-religiosas distribuídas por soberanias diferentes, sobre o conjunto se exercendo pressões ideológicas concorrentes ou antagónicas no panorama internacional1. Esta escolha justifica-se, em nosso entender, por quatro razões cuja explicitação permite definir os propósitos que presidiram a este trabalho. Em primeiro lugar, procurou-se perspectivar o enquadramento histórico da guerra nas antigas Províncias Ultramarinas Portuguesas, tendo em conta a evolução da sociedade internacional, desde o encetar, na questão de Bolama, das disputas internacionais pelas soberanias nesses territórios, até à afirmação do Terceiro Mundo, após a Conferência de Bandung. Assim, interessou-nos analisar o desenvolvimento da acção das Nações Unidas e o papel das grandes potências no processo internacional de descolonização. Em segundo lugar, entendeu-se analisar o que é, como surge e como se desenvolve o processo subversivo a nível global, para, posteriormente, passarmos a uma abordagem dos movimentos independentistas que se constituíram na Guiné Portuguesa. No quadro conflitual hodierno, o independentismo e a autodeterminação dos povos, bem como os factores cultural e religioso, continuam a exercer função de primordial importância ou de alegada motivação. Mesmo antes do desencadear da subversão armada, afigurava-se de grande importância o papel desempenhado pelas diversas realidades sócio-religiosas do território. Em terceiro lugar, pretendeu-se assim, tratar as comunidades muçulmanas e as sociedades de religião tradicional, no contexto do desenvolvimento da guerra. Tais realidades, apesar da colonização europeia ter dividido a África em fronteiras artificiais, caucionadas pelo Direito Internacional, preservaram poderosos mecanismos “laterais” de comunicação, exponenciados naquele território pela impressiva massa muçulmana. Numa deslocação muito recente aos principais centros de polarização islâmica da República da Guiné-Bissau

(Bissau-Bafatá-Bijine-Cambor-Farim-Jabicunda-Quebo-Sinchã

Santa

Mansata),

tentámos inteirar-nos, na medida do possível, da actual realidade muçulmana guineense e actualizar as

1 O Prof. Doutor Adriano Moreira define Relações Internacionais, como: “(...) o conjunto de relações entre entidades que não reconhecem poder político superior, ainda que não sejam estaduais, somando-se as relações directas entre entidades formalmente dependentes de poderes políticos autónomos (...)”. Em “Teoria das Relações Internacionais”, pág. 18, Ed. Almedina, Coimbra, 1996. O mesmo autor em 1987 definiu Relações Internacionais como: “(...) relações entre entidades políticas que não reconhecem poder superior (não são necessariamente Estados) e as relações directas entre as entidades privadas (de fins políticos e não políticos), submetidas a soberanias diferentes, assim como as relações entre entidades privadas e entidades políticas de que não estão dependentes (...)”. Em Enciclopédia Polis, vol. 5, págs. 315 e 316, Ed. Verbo, Lisboa, 1987.

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linhas de articulação das respectivas confrarias ao exterior. Esta tarefa aliciante revelou-se altamente proveitosa, até pelo privilégio do contacto com as suas gentes. Em quarto lugar, pretendeu-se analisar o desafio lançado pelo PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e de Cabo Verde) ao Poder Português, no que concerne ao controlo das populações, e como este desenvolveu a sua acção em termos de resposta global à guerra revolucionária, no território. Os limites cronológicos em que se insere o nosso estudo, situados entre 1963-1974, justificam-se pelo facto de este ser o período de desenvolvimento da luta armada, conduzida pelo PAIGC contra a soberania portuguesa. Na elaboração deste trabalho privilegiámos o método comparativo, procurando colocar em confronto versões diferenciadas dos acontecimentos e, por razões ressaltantes da própria temática, entendemos também ser necessário aquilatar a situação semelhante ocorrida em Moçambique. Após uma dilatada pesquisa, e porque já decorreram duas décadas sobre a independência, pretendemos (recorrendo ao material disponível, em muitos casos documentação classificada, nunca antes explorada no âmbito universitário e pela recolha de depoimentos de algumas personalidades), dar uma visão original da génese, desenvolvimento e condução da “guerra na Guiné”, nisso incluindo o estudo do comportamento das comunidades muçulmanas, cuja densidade demográfica e política tão importante foi no processo. Para a concretização do objectivo proposto, tivemos presente que a ciência das Relações Internacionais, pela pluralidade de perspectivas que podem ser chamadas a integrar temática que dela se reclame, determina a abordagem de outras áreas das Ciências Sociais como, por exemplo, a Antropologia Cultural, a Sociologia, a Estratégia, a História e o Direito. Esta confluência possibilitou, julgamos, uma maior precisão do campo de trabalho e maior nitidez quanto ao desenvolvimento dos quatro capítulos do nosso plano. Capítulo I OS GRANDES PODERES MUNDIAIS E A ÁFRICA NEGRA SUBSEQUENTE À CONFERÊNCIA DE BERLIM

1 - Os grandes poderes mundiais e a África Negra Podemos considerar que a formação de Portugal se fundamenta num conceito de defesa e alargamento, ou melhor, no de “defender a terra e acrescentá-la”, conforme o título LXIII do livro I das Ordenações Afonsinas2. D. Afonso III e D. Dinis, jogando com a fronteira marítima e as novas potencialidades que ela apresentava e sugeria, “(...) consolidaram a existência do único país inteiramente atlântico da Península

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“Ordenações Afonsinas” - Livro I, Título LXIII, pág. 360, Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa,

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Ibérica, começando, a partir dessa altura, a explorar essa característica distintiva (...)”3. Com a crise de 1383-1385, a absorção do reino por via dinástica foi tentada por D. João I de Castela. A Nação Portuguesa reage, emergindo o Mestre de Avis que, com a batalha de Aljubarrota, em 1385, “(...) consolidou a independência do País e permitiu concretizar a sua vocação para o mar (...)”4. Assim, pela análise dos comportamentos da época, podemos acrescentar àquele conceito inicial o “da consolidação”, face a outros reinos peninsulares (nomeadamente em relação a Castela), e que se estende de 1297 a 1385, tendo como adversário o “infiel”. A partir do ano 1385, que marca a consolidação, entra-se numa fase de reflexão que culmina com a decisão de passar a Ceuta (1410) cuja conquista foi considerada serviço de Deus; inicia-se a “expansão” terrestre e marítima, ao longo da costa africana para o sul, rumo à Índia, para a qual se impunha uma protecção terrestre na área do “infiel”. O “gentio” não constituía ameaça, nem se projectava em termos marítimos. O Atlântico era uma “zona de comunicações”. Pela Bula “Romanus Pontifex”, de 8 de Janeiro de 1454, o Papa Nicolau V conferiu a D. Afonso V o exclusivo das terras e mares conquistados ou a conquistar, para permitir e cobrir a acção de cruzada contra o “infiel” e a catequização do “gentio”. D. Afonso V, em 1466, concedeu o “Trato das partes da Guiné” aos habitantes de Cabo Verde e reservou para a Coroa o “Trato de Arguim”. Portugal assinou o Tratado de Tordesilhas em 1494. Quatro anos mais tarde, descobriu-se o caminho marítimo para a Índia e, em 1500, foi oficializada a descoberta do Brasil, ficando aberta uma via marítima para todo o hemisfério das Terras de Santa Cruz até às Molucas. Graças aos novos descobrimentos e às novas navegações, “(...) o mundo conhecido ampliara-se espantosamente (...)”5. A acção de corso e a actuação dos calvinistas, no Brasil, forçam D. João III a reflectir e a assumir um conceito estratégico, que se traduziu na intenção de abandonar o Norte de África, de manter o possível no Oriente e exercer o esforço no Brasil (1548-1822)6. Em 1776, os Estados Unidos da América tornam-se independentes e, em 1789, dá-se a Revolução Francesa; factos importantes que justificam as profundas alterações da área estratégica portuguesa de então (o triângulo Portugal-Brasil-Angola). Com as campanhas napoleónicas, na Península, a Corte desloca-se, em 1807, para o Rio de Janeiro, no Brasil. D. João VI regressa a Portugal, em Agosto de 1821, e o Brasil torna-se independente a 7 de Setembro de 1822. Uma vez apaziguados os conflitos internos entre liberais e miguelistas, Bernardo de Sá Nogueira, Marquês de Sá da Bandeira, apercebendo-se do papel que a África iria desempenhar, no futuro jogo político dos principais Estados europeus7, decidiu exercer o esforço nesse continente. Assim, o Governo Setembrista criou, em 7 de Dezembro de 1836, três Governos Gerais para o Ultramar8 e

3 Jorge Borges de Macedo, “Constantes e Linhas de Força da História Diplomática Portuguesa - Estudo de Geopolítica”, em “Nação e Defesa” nº. 2, págs. 110 e 111, Estado-Maior do Exército, 1976. 4 Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (19611974), 1º volume, Enquadramento Geral”, pág. 24, Estado-Maior do Exército, Lisboa, 1988. 5 Marcello Caetano, “Portugal e a Internacionalização dos Problemas Africanos - História duma Batalha: da Liberdade dos Mares às Nações Unidas”, pág. 17, 4ª edição, Ed. Ática, Lisboa, 1971. 6 Pedro Cardoso, “Cronologia Vocacionada para: A Evolução do Conceito Estratégico Nacional - A Evolução das Informações na Actividade do Estado - A Evolução das Crises Nacionais”, pág. 272, em “Estratégia” vol. VII, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas e Academia Internacional da Cultura Portuguesa, Lisboa, 1995. 7 Joaquim Veríssimo Serrão, “História de Portugal”, vol. VIII, 2ª Ed., pág. 124, Lisboa, 1978. 8 O Governo de Cabo Verde, englobando o arquipélago e a parte continental ( a Guiné ); o Reino de Angola e de Benguela com os demais pontos da África Ocidental e a sul do Equador; o de Moçambique e as possessões da África Oriental; e um Governo particular abrangendo S. Tomé e Príncipe e o Forte de S. João Baptista de Ajudá.

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procurou transferir o fluxo da emigração orientado para o Brasil, para Angola, e encorajar os emigrantes descontentes, no Brasil, a passarem a Angola. As conquistas da Guiné de Cabo Verde, nos anos 30, estendiam-se desde os 10 aos 13 graus Norte, ao longo da costa, divididas em dois distritos (ver mapa anexo I): - Bissau, que compreendia as Praças de S. José de Bissau com as dependências do presídio de Geba, da Feitoria de Fá, das ilhas de Bolama e das Galinhas; - Cacheu, que compreendia Ziguinchor, Cacheu, Bolor e Farim. Supomos ser do maior interesse referir o preâmbulo do Decreto de 10 de Dezembro de 1836, elaborado pelo Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, Marquês de Sá da Bandeira, o qual abolia o tráfico da escravatura. Podemos também considerar, neste Decreto, uma orientação estratégica nacional que definia a forma portuguesa de estar, até à delimitação das fronteiras definitivas dos domínios ultramarinos em África.

“Senhora A civilização de África tem sido nestes últimos tempos o pensamento querido dos Sábios e Filantropos, (...) que no antigo e novo Continente, marcham à testa do progresso, e promovem o melhoramento da espécie humana; em quanto Portugal que durante séculos havia trabalhado nesta grande obra, hoje em vez de a promover, lhe põe obstáculos (...). (... ) E todavia, não há um só documento em toda a primeira época dos nossos descobrimentos, que não prove que o principal, e quasi único intuito do Governo Portuguez era a civilização dos Povos pelo meio do Evangelho (...). (...) Promovâmos na África a Colonisação dos Europeos, o desenvolvimento da sua industria, o emprego dos seus capitaes; e n´uma curta série de annos tiraremos os grandes resultados que outr´ora obtivemos nas nossas colónias (...). (...) Mas para isto é necessário que reformemos inteiramente as nossas leis coloniaes. (...). (...) como possível aos Soberanos de Portugal abrir estradas para a civilisação que nehum outro pr´ncipe ousou fazer commeter. (...)Os Seus Secretários d´ Estado tem hoje a honra de propôr no seguinte Projecto de Decreto, a inteira e completa abolição do Tráfico da Escravatura nos Domínios Portuguezes (...)”9. Repare-se no etnocentrismo cultural patente no documento, onde se realça a missão civilizadora da expansão portuguesa, projectando juízos de valor inerentes à cultura que se tinha por padrão. Esta situação vai repetir-se no Acto Geral da Conferência de Berlim em 1885 e, mais tarde, já no nosso século, no Pacto da Sociedade das Nações (SDN) e na Carta da Organização das Nações Unidas (ONU). O esforço em África - consolidação, pacificação, submissão e alargamento dos territórios - na Guiné, em Angola e Moçambique10, estende-se até ao ano de 1974, findando com a apresentação do 9 Pedro Cardoso, “O Triângulo Estratégico Português (Prospectiva)”, págs. 177 a 179, em “Estudos em Homenagem ao Professor Adriano Moreira”, vol. I, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Lisboa, 1995. 10 Idem, “Cronologia Vocacionada para: A Evolução do Conceito Estratégico Nacional - A Evolução das Informações na Actividade do Estado - A Evolução das Crises Nacionais”, pág. 313.

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programa do MFA (Movimento das Forças Armadas). Neste período e no contexto do estudo, distinguiremos diversas situações com repercussão na soberania portuguesa. A soberania sobre os territórios portugueses de além mar foi diversas vezes posta em causa e um dos motivos prende-se com a escravatura e o respectivo tráfico. A Inglaterra, que desde 1807 abolira o tráfico de escravos, sob o pretexto de o reprimir, e face às “(...) limitações postas pela Administração Portuguesa ao comércio regular (...)”11, contestava para si o domínio de diversos territórios portugueses. Para se resolverem estas situações recorria-se ao uso da diplomacia e, por vezes, à ameaça ou mesmo ao uso da força. A questão de Bolama é exemplo de uma dessas soluções. Na segunda metade do século XIX, sob pressão da opinião pública, motivada pelas explorações dos viajantes que mostraram aspectos do interior do continente, até aí geralmente ignorados, e sob o estímulo do desenvolvimento económico e das definições subsequentes ao triunfo do Liberalismo e à Revolução Industrial, o continente africano passa a representar um cenário de rivalidades e interesses das grandes potências que, “(...) exigindo espaços periféricos de recurso e de alastramento (...)”12, formularam a expansão ultramarina como uma missão civilizadora. A partilha do território e a consequente definição das fronteiras pelos diversos acordos e tratados foi arbitrária, de concepção europeia, sem significado para os indígenas e com “(...) consequências (positivas e negativas) inesquecíveis, em especial para as populações do continente africano. Alguns resultados ainda perduram actualmente (...)”13. A Portugal couberam apenas os “(...) territórios e os direitos permitidos pela ambição e o equilíbrio existente nos poderes políticos europeus (...)”14. O termo do primeiro conflito mundial, com a derrota alemã e o diluir da respectiva expressão colonial, altera a forma da presença europeia em África. A Sociedade das Nações estabeleceu três tipos de mandatos e, no pós segunda guerra mundial, a Carta das Nações Unidas cria dois sistemas para regulamentar a situação dos territórios não autónomos. A Conferência de Bandung, o sequente e lógico emergir do terceiro mundo, do neutralismo e do não alinhamento, aliados ao forjar progressivo de um sentimento anti-colonialista nas Nações Unidas, aceleraram as independências. Portugal dispunha de um bem ambicionado, as suas colónias africanas: “(...) aqueles que cobiçavam esse bem não se podiam verdadeiramente entender sobre a maneira de o pilhar, e por isso, cada um deles tentava sobretudo garantir que não seriam os outros a aproveitar-se dele (...)”15.

1.1. A questão de Bolama

11 Manuel Gonçalves Martins, “ A Ambição das Potências Europeias pelo Continente Africano e o Esquartejamento do Império Português (1870-1914)”, em “Africana” nº. 10, págs. 183 e 184, Centro de Estudos Africanos, Universidade Portucalense, Porto, Março de 1992. 12 Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 211, Universidade Portucalense, Porto, 1993. 13 Manuel Gonçalves Martins, “A Expansão da Europa e a Partilha de África (1870 - 1914)”, em “Africana” nº. 13, pág. 53, Centro de Estudos Africanos, Universidade Portucalense, Porto, Março de 1994. 14 Idem, “ A Ambição das Potências Europeias pelo Continente Africano e o Esquartejamento do Império Português (1870-1914)”, pág. 187. 15 José Mattoso, “História de Portugal”, pág. 144, vol. VI, Círculo de Leitores, Lisboa, 1994.

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O capitão da marinha inglesa Philip Beaver, seduzido pela descrição de Bolama, constitui uma sociedade para estabelecer em África uma colónia de gente livre “(...) como meio de civilizar os negros (...)”16; para atingir o seu objectivo desembarcou 275 colonos britânicos em Bolama, no ano de 1792, vindo a abandoná-la dezasseis meses mais tarde. Posteriormente, a Inglaterra, prevendo a incapacidade de Portugal dominar o território (apesar de saber que o Régulo de Serra Leoa lha tinha dado em 1753), não hesitou em tomar posse da Ilha, tanto em 1814 como em 1827. É neste contexto que, em 1827, Sir Neil Campbell, Governador das possessões inglesas na África Ocidental, impõe aos régulos de Bolola e Guinala dois tratados para a cedência: um de Guinala e outro da ilha de Bolama e respectivas ilhas adjacentes. A Inglaterra surge assim com pretensões à posse de Bolama, fundamentadas em acordos e aquisições feitas por Beaver (1792). O 1º Tenente Francisco Muacho, Governador de Bissau em 1828, conhecedor das intenções inglesas, conseguiu negociar com os reis de Canhabaque e com os Beafadas, a cessão da Ilha à Coroa de Portugal e no ano seguinte, o Coronel de milícias Joaquim de Matos obtinha, por sua vez, do régulo dos Bijagós a cedência da ilha das Galinhas. No ano de 1835, com a criação do cargo de Governador Geral, com todos os poderes civis e militares, a Guiné passou a constituir um distrito destacado da Província de Cabo Verde. Em 5 de Novembro de 1836, o Governador da Província, Coronel Joaquim Marinho, num relatório, referia igualmente as intenções dos países vizinhos, face ao território: “ Na Guiné nem a nossa bandeira nem as nossas fortalezas eram respeitadas pelos estrangeiros (...), a ocupação de Casamansa, de Bissau e de Bolama eram sonho dourado dos nossos ambiciosos vizinhos (...) a permanência constante de vazos de guerra ingleses (e franceses) na Guiné, espreitando o momento próprio para dar o assalto (...) onde era efectiva já a nossa ocupação, demonstra a evidência que estes dois países França e Inglaterra estavam combinados a repartirem entre si aquele rico torrão”17. Várias foram as tentativas estrangeiras, nomeadamente britânicas, de intervir a cada passo na Guiné, fazendo, entre 1838 a 1869, larga ostentação de poderio naval nas respectivas águas. De todas essas tentativas consideramos que as mais graves ocorreram em 1859 e em 1861, quando o Governador da Serra Leoa mandou arvorar a sua bandeira em Bolama e quando os Ingleses consideraram a Ilha parte integrante da colónia de Serra Leoa, respectivamente. Portugal reagiu, apresentando uma proposta para que a Inglaterra desistisse das suas pretensões ou, então, poder-se-ia recorrer a arbitragem. A Inglaterra, como já se tinha estabelecido na Ilha, não só recusou a proposta, como ainda, desencadeou violentas pressões e ataques armados à colónia do Rio Grande. Como resposta, o Governo de Cabo Verde decidiu libertar do domínio inglês a ilha de Bolama; fê-lo pela força e sem esperar ordens do Governo Central. Perante este acontecimento, a Inglaterra não protestou e resolveu aceitar a proposta anterior, tendo sido designado para árbitro o Presidente dos Estados Unidos da América, Ulisses Grant, que, no dia 21 16 António dos Mártires Lopes, “A Questão de Bolama - Pendência entre Portugal e Inglaterra”, pág. 13, Figuras e Factos de Além-Mar, nº. 11, Agência Geral do Ultramar, Lisboa, 1979. 17 José de Senna Barcelos Cristiano, “Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné”, Lisboa, 1899 a 1913 (vol. VI), Publicação da Academia das Ciências parte IV, págs. 123 e seguintes.

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de Abril de 1870, proferiu a Sentença, atribuindo a Portugal plena razão, tendo por fundamento a descoberta da Ilha e do “(...) território fronteiriço na terra firme (...) por um navegador português em 1446 (...)”, pela ocupação de “(...) toda a costa na terra firme defronte da Ilha (...)”18 e pela da própria Ilha. As intenções inglesas não se reduziam a Bolama. Sá da Bandeira, no seu livro “O tráfico da escravatura e o Bill de Palmerston”, escreve que Lord Palmerston recebera um relatório, em 1836, onde era apresentada uma proposta útil para reduzir o tráfico da escravatura e promover o comércio britânico, baseada na ocupação imediata das colónias portuguesas ao norte do Equador, entre as quais Bissau e Cacheu19. A França, por seu lado, celebrou com a Inglaterra, em 1845, uma Convenção para assegurar a completa supressão do tráfico da escravatura, na qual se previa a fiscalização das águas das costas orientais e ocidentais da África, desde Cabo Verde até 16 graus e 30 minutos de latitude meridional, tendo o Governo Português aceite a referida Convenção, a coberto da qual era inegável a ocupação pela força de toda a Guiné, sem que Portugal tivesse direito a reclamar. Com a sentença arbitral, referente à ilha de Bolama, a “(...) fronteira sudoeste estava, pois, demarcada; as restantes acabaram por ser delimitadas com a França (...)”20. A 18 de Março de 1879, o território é proclamado “Província da Guiné”, passando a sua administração a ser independente de Cabo Verde, e sendo a capital da nova Província estabelecida em Bolama. 1.2. As viagens dos exploradores / Tratado do Zaire de 1884 A África despertara o interesse popular com as explorações levadas a cabo por homens como Stanley e Livingstone, mas já as potências, cada vez mais industrializadas, se interessavam pelo controlo das riquezas e de um mercado em território africano. Leopoldo II da Bélgica, com a finalidade de travar o plano de expansão inglês, “(...) embora sob o explícito pretexto de promover a civilização na África Austral (...)”21, convocou para Bruxelas, em 1876, uma conferência geográfica para a qual Portugal não foi convidado. Assim, no dia 12 de Setembro de 1876, com o aparente objectivo de penetrar em África com fins científicos e humanitários22, funda, em Bruxelas, a Associação Internacional Africana. Todavia, esta acabou por servir o desejo belga de alcançar a posse do Congo. Os Franceses, por intermédio do explorador Brazza, também disputavam a exploração do Congo. Brazza atingiu a margem direita do Zaire, no Stanley Pool, em 1 de Outubro de 1880, fundando um 18 Silva Cunha e A. Gonçalves Pereira, “Sentença Arbitral proferida pelo Presidente dos Estados Unidos da América, na questão com a Grã -Bretanha por causa da ilha de Bolama e mais territórios na costa ocidental de África em 21 de Abril de 1870”, em “Textos de Direito Internacional Público”, págs. 145 a 147, 2ª Ed., Universidade Portucalense. 19 Marcello Caetano, “Portugal e a Internacionalização dos Problemas Africanos - História duma Batalha: da Liberdade dos Mares às Nações Unidas”, págs. 76 e 77. 20 Luís de Matos, “A Delimitação das Fronteiras da Guiné”, pág. 14, Separata de Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, curso de extensão universitária, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Ultramarinas, ano lectivo de 1965/1966. 21 Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (19611974), 1º volume, Enquadramento Geral”, pág. 32.

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posto no local onde hoje existe Brazzaville. A Bélgica, através de Stanley, só aí chegou em 27 de Julho de 1881, ficando, assim, limitada à margem esquerda do rio. A Alemanha, em 1883, sob pressão da opinião pública, entra na corrida para África e são os “(...) particulares quem, ao menos aparentemente, tomam a iniciativa de conquistar posições que o Governo Imperial acederá depois a proteger e a aceitar (...)”23. Em pouco mais de um ano, adquiriu o Sudoeste Africano Alemão (actual Namíbia), estabeleceu protectorados no Togo e Camarões e, numa rápida expedição de cinco semanas, estabeleceu a colónia da África Oriental Alemã (integrante da actual Tanzânia). Os exploradores portugueses só em Julho de 1877 partem de Benguela. Separaram-se no Bié em duas missões que vão atravessar o continente. Serpa Pinto vai até Durban e Roberto Ivens e Hermenegildo Capelo seguem até Iaca, ao norte. Destas explorações não resultou nenhuma ocupação efectiva. No Congo, considerado local chave para colonizar Angola, estava concentrado todo o comércio da região. Portugal, com base num direito histórico, reivindica a sua posse, colocando-se em situação embaraçosa, face às iniciativas belgas. Faltava a Portugal o apoio diplomático capaz de fazer face aos ataques belgas, “(...) depois era necessário acção militar nas colónias, onde não havia forças próprias (...)”24; as ordens religiosas haviam desaparecido e a “(...) Propaganda Fidei dirigindo com carácter internacional as Missões, já de si contrariava a acção portuguesa de carácter nacionalista, procurando não só reduzir a acção de Portugal, no Oriente, como introduzir estrangeiros nas restantes colónias (...)”25. A preocupação inglesa, perante as atitudes desenvolvidas pela França, Bélgica, Holanda e Alemanha, é notória. Londres adopta uma táctica de antecipação, prontificando-se a negociar com Portugal um tratado em que se encontrasse uma solução quanto à região contestada, estabelecendo-se na zona uma defesa para evitar a penetração de outras potências e, ao mesmo tempo, desta forma, retaliar a Alemanha e a França. O Governo Britânico, que propôs negociações, acabou por recuar, face a pressões de outras potências. Portugal, através do Governador de Angola (Ferreira do Amaral), ocupou militarmente Ponta Negra. Esta situação levou a Inglaterra a abandonar algumas das anteriores objecções e a aceitar a autoridade portuguesa nas regiões contestadas, assinando com Portugal, em 26 de Fevereiro de 1884, o Tratado do Zaire. A assinatura deste Tratado foi de imediato contestada pela opinião pública inglesa, francesa, alemã, holandesa, espanhola e, inclusivamente, até pela norte-americana, alegando “(...) serem desprezíveis os direitos históricos e antiquíssimos de Portugal naquela área (...)”26; o que conduziu à não ratificação do Tratado, por parte da Inglaterra, até que as objecções desses países fossem ultrapassadas. Com o intuito de resolver a situação, Barbosa du Bocage, então Ministro dos Negócios Estrangeiros, lança a ideia da realização de uma conferência internacional entre as principais potências europeias (Maio de 1884). 22 Marcello Caetano, “Portugal e a Internacionalização dos Problemas Africanos - História duma Batalha: da Liberdade dos Mares às Nações Unidas”, pág. 82. 23 Idem, pág. 87. 24 Gaspar Villas, “História Colonial”, pág. 344, Estado-Maior do Exército, Lisboa, 1938. 25 Idem, pág. 345. 26 Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (19611974), 1º volume, Enquadramento Geral”, pág. 33.

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Mas é Bismarck quem, recusando-se a reconhecer o tratado do Zaire, apenas bilateral, vai tomar a iniciativa e, com o apoio da França, convoca uma conferência internacional para Berlim, nesse mesmo ano. 1.3. A partilha de África e o Acto Geral da Conferência de Berlim O continente africano era visto por muitos como uma fonte de matérias primas e de escravos, que proporcionava mão de obra barata. Segundo Marcello Caetano, as chancelarias voltaram-se para o continente negro em busca de zonas onde se alicerçasse novo prestígio político dos Estados e que pudessem oferecer mercados mais amplos para o comércio europeu27. A sua partilha foi feita com base na cultura e mentalidade ocidentais. Face à produção resultante da Revolução Industrial, a conquista económica não era suficiente. Surgia um “(...) espírito imperialista (...), querendo também o domínio territorial, não só da numerosa costa aberta toda ela à ocupação com expansão para o interior, mas também a terra já ocupada (...)”28. Este interesse súbito deve-se sobretudo a factores como a pressão da opinião pública sobre os políticos, ou ainda para responder a movimentos idênticos dos adversários europeus, que poderiam ocupar em primeiro lugar o vazio existente. A partilha efectuou-se num contexto em que o sistema internacional se encontrava em mutação. Acabara a hegemonia inglesa. Com o fim da guerra franco-prussiana (1870), surgiu o Império Alemão. Nos Estados Unidos da América, afirmou-se a doutrina de Monroe e, após o término da guerra civil, o país desenvolveu-se a um ritmo galopante. As conjunturas especiais, quer do Egipto quer da África do Sul, num processo típico de bola de neve, envolveram todos os poderes europeus, conduzindo à divisão de África. De 15 de Novembro de 1884 a 26 de Fevereiro de 1885, realizou-se a conhecida Conferência de Berlim29 que, entre outros assuntos, introduziu nas relações internacionais regras uniformes relativas às ocupações que poderiam, no futuro, verificar-se nas costas do continente africano30. Durante a Conferência, que serviu para consagrar o início da corrida a África, digladiaram-se uma tese tradicional - a prioridade de descobrimento - e uma tese inovadora - só reconhecia o domínio de quem tivesse ocupação permanente e efectiva. A segunda acabou por vingar, passando a ocupação efectiva a substituir os direitos históricos, definindo-se assim um novo direito público colonial, como podemos confirmar no Cap. VI do Acto Geral de Berlim31. Assim refere o Artº. 34 : “(...) A Potência que de futuro tomar posse de um território nas costas do Continente Africano situado fora das suas habituais possessões (...) e igualmente a Potência que num desses territórios vier a assumir um 27 Marcello Caetano, “Portugal e a Internacionalização dos Problemas Africanos - História duma Batalha: da Liberdade dos Mares às Nações Unidas”, pág. 79. 28 Gaspar Villas, ob. cit., págs. 332 e 333. 29 O programa da conferência abrangia sete questões: a) Declaração relativa à liberdade do comércio na bacia e embocadura do Congo, e países circunvizinhos e disposições conexas; b) Declaração concernante ao tráfico de escravos; c) Declaração relativa à neutralidade dos territórios compreendidos na bacia convencional do Congo; d) Acto de Navegação do Congo; e) Acto de navegação do Níger; f) Declaração relativa às condições essenciais a preencher para que opções novas nas costas do continente africano sejam consideradas como efectivas; g) Disposições gerais. 30 Silva Cunha e A. Gonçalves Pereira, “Acto Geral da Conferência de Berlim Relativo ao Desenvolvimento do Comércio e da Civilização Nalgumas Regiões de África e à Livre Navegação do Congo e do Níger, assinado em 26 de Fevereiro de 1885”, ob. cit., págs.148 a 170.

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protectorado acompanhará o respectivo acto de uma notificação às outras potências (...)”, definindo o Artº. 35º a efectividade da ocupação pela “(...) existência de autoridade suficiente para fazer respeitar os direitos adquiridos e eventualmente a liberdade de comércio e de trânsito nas condições em que for estipulada (...)”. A ocupação exigida da zona costeira subentendia, para a nação ocupante, a reserva do respectivo hinterland, mas não era possível delinear fronteiras de um continente cujo interior era praticamente desconhecido. Nesta ordem de ideias, a Conferência não partilhou o interior da África, mas “(...) tornou irrealizável o tratado do Zaire (...)”32. Portugal viu os seus interesses em África gravemente afectados e perdeu os direitos à margem sul do Congo (ficando só com o enclave de Cabinda). Da Conferência destacamos duas situações: - Em primeiro lugar, a presença de potências não coloniais e não europeias, como os Estados Unidos da América, pelo que “(...) o problema colonial tendia cada vez mais a deixar de ser considerado como assunto restrito aos interesses das potências colonizadoras, para passar a ser tratado como matéria relativa à expansão cultural e comercial das nações civilizadas (...)”33, estando assim patente um etnocentrismo cultural, realçado por Bismarck no discurso de abertura da Conferência, uma vez que este apontava como objectivo “(...) a obrigação de concorrer para a supressão da escravatura e principalmente do tráfico dos negros, de favorecer e ajudar (...) todas as instituições que tenham por objectivo instruir os indígenas e fazer-lhes compreender e apreciar os benefícios da civilização (...)”34, este etnocentrismo cultural que, como referimos anteriormente, verificar-se-á até aos nossos dias; - Em segundo lugar, o expressar do sentimento colonial dos EUA, que pretendiam ver reconhecido o direito dos povos indígenas disporem de si próprios e do seu território, bem como o ser solicitado aos mesmos indígenas o consentimento para ocupação do território35. No presente século, isto reflectiu-se na posição anti-colonialista no seio das Nações Unidas e no apoio directo ou disfarçado a movimentos independentistas. Seguia-se a teoria da continuidade que veio a dar a sua contribuição para o sonho português do Mapa Cor-de-Rosa. 1.4. Os Acordos luso-franceses de limites e a questão do Casamansa Na sequência lógica de Berlim, surge a necessidade de elaborar o traçado das fronteiras da Guiné, iniciado já quando da questão de Bolama, e em que se definiu a fronteira sudoeste. Assim, Portugal, em 1886, assinou uma Convenção com a França para a delimitação das respectivas possessões na África Ocidental com a qual se dá por finda a fase de alargamento, dando-se continuidade à ocupação militar e submissão dos indígenas às autoridades portuguesas. 31 Declaração relativa às condições essenciais a preencher para que as novas ocupações nas costas do continente africano sejam consideradas efectivas. 32 Manuel Gonçalves Martins, “ A Ambição das Potências Europeias pelo Continente Africano e o Esquartejamento do Império Português (1870-1914)”, pág. 184. 33 Marcello Caetano, “Portugal e a Internacionalização dos Problemas Africanos - História duma Batalha: da Liberdade dos Mares às Nações Unidas”, pág. 110. 34 José Gonçalo Santa-Rita, “A África nas Relações Internacionais Depois de 1870”, pág. 47, Estudos de Ciências Políticas e Sociais, Junta de Investigação do Ultramar, Lisboa, 1959. 35 Marcello Caetano, ob. cit., pág. 117.

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Só em 1905 é que a fronteira da Guiné Portuguesa ficou definitivamente marcada, tendo havido necessidade de ratificar o limite oriental, para manter em território francês a povoação e o regulado de Kadé (Fulamori). Assim, para compensar Portugal da área perdida a oriente, a fronteira foi alargada em igual superfície a sul do Rio Cacine. Esta questão revestiu aspectos multifacetados e foi despoletada, se assim o podemos considerar, a partir de 1828, altura em que um comerciante francês se fixa na ilha dos Mosquitos, na embocadura do rio Casamansa. Portugal considerou tal atitude intencional por parte dos franceses, como tentativa para se apoderarem do comércio da zona. Mas só mais tarde, em 1836, é que, com base em informações inglesas, Portugal ficou conhecedor das intenções francesas para abrir feitorias no Casamansa, além Ziguinchor. Inicia-se aqui uma extensa troca de notas diplomáticas entre as duas chancelarias que só termina em 1886, como já foi referido. Os já tradicionais argumentos utilizados por Portugal de prioridade de descobrimento, ocupação anterior e em permanência eram contestados pela França, não reconhecendo esta o direito da exclusiva soberania e navegação, dado que também ela exercia “(...) direitos reais de soberania de posse e de comércio (...)”36, adquiridos por tratados com régulos ou através da conquista. A acção colonial francesa foi iniciada no Senegal, visando os Tocolores (islamizados), a quem o General Faidherbe obrigou a reconhecer o protectorado francês sobre os territórios que marginavam o rio Senegal. Na origem do conflito com Portugal esteve a sua pretensão de atingir as montanhas do Futa-Djalon, uma vez que estas conferiam uma posição invejável para os seus projectos de domínio do hinterland. A França exigia, a Norte, ambas as margens do rio Casamansa; como Portugal não pretendia perder o rio todo, e muito menos a Guiné, chegou a propor aos franceses a internacionalização do mesmo rio, cabendo a estes, entre outros territórios, a margem esquerda. Todavia, situações como o auxílio prestado em Berlim, face às desinteligências com a Associação Internacional do Congo, e o desenvolvimento, havia algum tempo, de grande actividade ao longo do rio, contribuíram para a cedência de Portugal, cuja fronteira meridional foi fixada além do Cacine37. Estes acontecimentos litigiosos com a França ocorriam em simultâneo com o diferendo com a Inglaterra, a propósito da ilha de Bolama. Na questão em apreço, é preciso fazer notar que, nesta época e circunstância, a luta que se travava em África era exclusivamente entendida entre potências coloniais europeias, dado que não eram tidos em linha de conta tanto os interesses como as estruturas africanas. O pensamento português de unir Angola a Moçambique, do Bié ao Zambeze, devia presidir38 às negociações efectuadas por Andrade Corvo, negociações que se iniciaram em 22 de Outubro de 1885 e acabaram com a assinatura de uma Convenção, a 13 de Maio de 1886. Portugal transigiu face ao Casamansa, mas obteve em troca o reconhecimento de “(...) exercer a sua influência soberana e civilizadora nos territórios que separam as possessões portuguesas de Angola e Moçambique, sob

Luís de Matos, ob. cit., pág. 16. Salientamos, no entanto, que Honório Barreto procedeu à compra de vários territórios na margem esquerda do Casamansa e, de imediato, os doou a Portugal (1884/1885). 38 Marcello Caetano, “Portugal e a Internacionalização dos Problemas Africanos - História duma Batalha: da Liberdade dos Mares às Nações Unidas”, pág. 121. 36 37

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reserva dos direitos anteriormente adquiridos por outras potências (...)”, e de que a França se obrigava, note-se, “(...) pela sua parte, a abster-se ali de qualquer ocupação (...)”39. Este foi o preço pelo Casamansa, presídio de Ziguinchor e Rio Nuno. As consequências foram distintas para as partes contratantes. De acordo com a ambição francesa, a sua esfera de influência, no interior, ficou acentuada, levando os Ingleses, com o desejo de pôr travão à situação, a estarem em “alerta permanente”. O território de Portugal ficou ao meio com o papel de manter uma posição de equilíbrio, face à dependência, quase exclusiva, das feitorias francesas da Senegâmbia e das rotas comerciais que partiam da Serra Leoa e Senegal. O traçado das fronteiras foi feito a régua e esquadro: separaram-se povos com cultura e história comuns, entregando-os a países distintos. Vingou a lei do mais forte, provocando problemas que ainda hoje se arrastam e, nos casos dos actuais territórios da Guiné-Bissau, do Senegal e da Guiné-Conacry, foram divididas, por exemplo, as etnias islamizadas dos Fulas e Mandingas. Estas e outras sociedades afectadas reagiram através de “(...) mecanismos de accionamento e comunicação, que, para além dos canais próprios dos Estados, explicam a vida das sociedades (...)”40 e que ou são anteriores às demarcações coloniais ou depois delas subsistem. A Convenção de 1886 provocou o isolamento do Casamansa do resto do País, constituindo a Gâmbia um enclave separador no seio do Senegal, de onde advém uma das causas independentistas, desenvolvida pelo Mouvement des Forces Démocratiques du Casamance (MDFC)41, que pretende hoje, já no pós guerra fria, o separatismo do Casamansa. O MDFC argumenta com problemas sócioeconómicos e com um passado ligado à colónia portuguesa e não ao Senegal. A Convenção transpôs para a actualidade um “(...) contencioso político e territorial com a GuinéBissau (...)”42 pela disputa de jazidas de petróleo na região. 1.5. A Convenção luso-alemã de 1886 e o Ultimatum O resultado final de Berlim, pretendido pela Alemanha, traduziu-se, na prática, pela consolidação da sua presença no Continente, mas sem entrar em conflitos com a Inglaterra. Esta última, para não ficar isolada, procurava evitar a aliança entre a Alemanha, França e Rússia. Neste período de expansionismo, emergiu a necessidade de se definirem as fronteiras das possessões portuguesas e alemãs confinantes, bem como das respectivas esferas de influência. As negociações, que começaram por definir as fronteiras Sul de Angola e que, a partir da instalação de Berlim em Zanzibar, abarcaram também a fronteira Norte de Moçambique, conduziram à Convenção luso-alemã de 30 de Dezembro de 1886. Salientamos que, em anexo ao tratado, vinha publicado um mapa da esfera de influência portuguesa, numa vasta faixa entre Angola e Moçambique - o Mapa Cor-de-Rosa43. A Alemanha,

39 Artigo 4º da “Convenção Relativa à Delimitação das Possessões Portuguesas e Francesas na África Ocidental”, em, Silva Cunha e A. Gonçalves Pereira, ob. cit., págs. 171 a 174. 40 Fernando Amaro Monteiro, “A Guerra em Moçambique e na Guiné - Técnicas de Accionamento de Massas”, Curso de 6 Lições, pág. 21, Universidade Portucalense, Porto, 1989. 41 Herdeiro do MDFC de 1947, apareceu publicamente em 26 de Dezembro de 1982 em Ziguinchor, numa manifestação independentista. 42 Jean Claude Manut, “La Casamance: du Particularisme au Séparatisme”, em “Hérodote”, pág. 208, Revue de Géographie et Géopolitique, nos 65/66, 2e et 3e trimestre de 1992, Ed. La Découverte.

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sabedora de que o texto era dirigido contra Inglaterra, apoia as pretensões portuguesas. Contudo, reduziu o seu impacto com a transformação do Tratado numa mera Declaração, sendo o documento posteriormente assinado. Barros Gomes, Ministro dos Negócios Estrangeiros, apresentou à Câmara dos Deputados a consagração pública e oficial das pretensões portuguesas na África meridional, contrárias aos planos expansionistas ingleses de unir o Cabo ao Cairo. O ministro pretendia realçar o interesse português no país dos Matabeles, por forma a obter contrapartidas, quando cedesse nas negociações. A Inglaterra reage de imediato. Nesta procura de conduzir os Ingleses a negociações, Portugal cometeu o erro de “(...) não negociar simultaneamente (...) a composição do interesse dos dois países (...)”44. A consolidação de Portugal era tentada pela ocupação efectiva e pelo reconhecimento dos régulos. Portugal parecia decidido a ganhar a competição de Rhodes; apoiou-se no reconhecimento francês e alemão e enviou vários exploradores. A determinação portuguesa provocou, por parte dos Ingleses, exigências que Portugal procurou submeter à arbitragem de qualquer das nações signatárias da Conferência de Berlim. A Inglaterra, consciente do real isolamento português, deixou claro que não aceitava. Inúmeros acontecimentos decorreram até que, em 11 de Janeiro de 1890, o Governo Inglês concentra forças navais em pontos estratégicos e formula um Ultimatum a Portugal, exigindo o envio ao Governador de Moçambique de instruções telegráficas imediatas, para que todas as forças actuantes, quer na região do Chire (Malawi), quer nos territórios que hoje integram a Zâmbia e o Zimbabwe (terras dos Macololos e Machonas), se retirassem. Sem estas instruções as seguranças dadas pelo Governo de Lisboa eram ilusórias. O Ultimatum inglês provocou uma forte reacção anti-britânica, por parte do povo português, que mais estimulou o esforço de defesa45. Porém, Portugal acabou por ceder, “(...) por não ter sabido retirar a tempo, devido à leveza de critério dos governantes (...)”46, sendo, assim, forçado a aceitar a “(...) tese de que nos territórios coloniais só a ocupação efectiva serve de título a direitos de soberania (...)”47. Em 20 de Agosto de 1890, é assinado, à pressa, um primeiro tratado com Londres, para resolver o litígio que esteve na origem do Ultimatum. Este foi recusado pelas Cortes Portuguesas, em meados de Setembro. O Governo foi substituído e, em 11 de Junho de 1891, Portugal assina um novo tratado com o Governo Inglês; contudo, este era-lhe mais desfavorável48. Com a sua aceitação, Moçambique adquiriu as fronteiras actuais. 43 O Mapa foi concebido e colorido pela Sociedade de Geografia de Lisboa em 1881, então presidida por Barbosa Du Bocage, e foi publicado pela primeira vez no manifesto intitulado "Ao povo portugez en nome da Honra, do Direito, do Interesse e do futuro da Pátria, a Comissão do Fundo Africano creada pela Sociedade de Geografia de Lisboa para promover uma subscrição nacional permanente, destinada ao estabelecimento de estações civilizadoras nos territórios sujeitos e adjacentes ao domínio Portuguez em África". 44 Marcello Caetano, “Portugal e a Internacionalização dos Problemas Africanos - História duma Batalha: da Liberdade dos Mares às Nações Unidas”, pág. 128. 45 Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (19611974), 1º volume, Enquadramento Geral”, pág. 81. “(...) Lança-se uma subscrição nacional para a compra de navios de guerra, a qual veio a concretizar-se no cruzador Adamastor; lança-se a boicotagem dos produtos ingleses; e os acordes da Portuguesa, que viria a ser o hino republicano, principiam a ouvir-se aqui e ali, galvanizando as almas inquietas (...)”, em “Dicionário de História de Portugal”, vol. VI, pág. 223, Direcção de Joel Serrão, Livraria Figueirinhas, Porto. 46 Villas, Gaspar, ob. cit., pág. 357. 47 Marcello Caetano, “Portugal e a Internacionalização dos Problemas Africanos - História duma Batalha: da Liberdade dos Mares às Nações Unidas”, pág. 140. 48 Pelo Tratado de 1890, Portugal mantinha todos os territórios sobre os quais exercia alguma aparência de ocupação efectiva, assegurando ainda amplas zonas não ocupadas no interior de Angola, no Sudoeste do Niassa e no alto Zambeze, ficando ainda com um corredor de 20 milhas entre Angola e Moçambique, onde podia construir estradas, caminhos de ferro e linhas telegráficas. No Tratado de 1891, Inglaterra reservou para si todo o hinterland

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2. - A guerra de 1914-1918 e o Pacto da Sociedade das Nações Para Marcello Caetano, o período entre 1884 e 1891 foi de definição de princípios, seguido de um período, entre 1891-1914, em que as potências procuravam consolidar e arredondar as ocupações territoriais em África49. Na génese do primeiro conflito mundial encontram-se, entre outros motivos: o acentuar da rivalidade, no pós guerra franco-prussiana, entre a potência continental - a Alemanha - com uma forte impulsão industrial50, e a potência marítima - a Inglaterra - com uma componente comercial elevadíssima; o constante desafio à supremacia inglesa nos transportes, onde se pode incluir o projecto de ligação ferroviária Berlim-Bósforo-Bagdad51; uma rivalidade comercial, quanto à área da Sérvia, Roménia, Grécia e Bulgária, por parte da Rússia e dos Impérios Centrais; nos Balcãs, a rivalidade entre o Pan-Germanismo e o Pan-Eslavismo; a necessidade do Governo Russo recuperar, face ao desprestigiante desaire militar com o Japão e, aproveitando um possível frentismo interno em relação ao conflito externo, tentar ultrapassar a crescente agitação revolucionária. Uma vez que o nosso estudo visa um problema africano, interessa reter a ideia de Marcello Caetano, segundo a qual esta guerra “(...) foi em grande parte originada por causas ligadas à expansão colonial (...)”52 e, rapidamente, se estendeu às possessões alemãs em África. Quanto às parcelas do território português no continente africano, desde 1913 que os Governadores, esclarecidos e informados com regularidade, previam ameaças alemãs e o abandono a que seriam votados pelos seus aliados, em caso de ataque, preparando-se, de acordo com as possibilidades locais, para não deixarem ocupar qualquer parcela do território53. Ultrapassado o conflito pela vitória aliada sobre os Impérios Centrais e a Turquia, o armistício com a Alemanha é assinado a 28 de Junho de 1918, na Paz de Versalhes. O instrumento constitutivo da Sociedade das Nações foi incluído em todos os tratados de paz54. A entrada dos Estados Unidos da América na guerra, a 2 de Abril de 1917, quebra a política de abstenção face às disputas europeias da Doutrina de Monroe. Numa mensagem ao Congresso, em 8 de

produtivo, abandonando Portugal o planalto de Manica, em troca de uma área maior entre o Tete e Zumbo, a Norte do Zambeze; na região do Niassa, ficou para Portugal a margem ocidental que compreendia o Chire, e com a margem oriental, desenhando-se assim as fronteiras interiores de Moçambique e Angola. 49 Marcello Caetano, “Portugal e a Internacionalização dos Problemas Africanos - História duma Batalha: da Liberdade dos Mares às Nações Unidas”, pág. 163. 50 Na Alemanha acentuava-se o desenvolvimento industrial, atingindo esta em 1914 uma produção de ferro que ultrapassava a da França e da Inglaterra juntas. 51 Esta construção iria afectar, no caso inglês, a projectada política para o Próximo e Médio Oriente, e a segurança na Índia. No que diz respeito à Rússia, iria prejudicar o almejado controlo do espaço Otomano. 52 Marcello Caetano, “Portugal e a Internacionalização dos Problemas Africanos - História duma Batalha: da Liberdade dos Mares às Nações Unidas”, pág. 193. 53 O Decreto que mandou organizar as primeiras expedições militares a Moçambique e Angola é de 18 de Agosto de 1914, e o ataque a Mazíua, na fronteira do Rovuma, verifica-se na noite de 24 para 25 de Agosto do mesmo ano. 54 Os Tratados de paz, assinados no termo da guerra 1914/18, incluíam todos o Pacto da SDN: Tratado de Versalhes com a Alemanha (28 de Junho de 1919); Tratado de Saint-Germain-em-Laye com a Áustria (10 de Setembro de 1919), Tratado de Neuilly com a Bulgária (27 de Novembro de 1919), Tratado de Trianon com a Hungria (4 de Junho de 1920); Tratado de Lausanne com a Turquia (24 de Junho de 1923). Este último substituiu o Tratado de Sèvres, assinado em 10 de Agosto de 1920, não ratificado pela Turquia. O Tratado de Versalhes também foi ratificado pelos EUA, em 25 de Agosto de 1921, tendo a paz sido assinada em separado com a Alemanha. Os EUA nunca fizeram parte da SDN, refluindo aqui ao isolacionismo político, definido pelo congresso.

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Janeiro de 1918, Woodrow Wilson formulou os princípios de base da futura paz - Os catorze pontos de Wilson -55, marcando o início da futura e longa ingerência dos EUA na vida internacional, que perdura ainda na nossa década.

3. - A Sociedade das Nações e a realidade internacional Oficialmente surgida em 10 de Janeiro de 1920, a Sociedade das Nações pode ser considerada a primeira experiência de organização da sociedade internacional, como resultante da passagem de uma sociedade europeia para uma sociedade alargada. Já desde a Conferência de Haia, em 1907, que se visiona a preocupação de uma “(...) política de segurança colectiva (...)”56, que teve reflexos no Pacto da Sociedade das Nações, face ao conflito de 1914 - 1918, e, mais tarde, evidentemente, como reflexo do segundo conflito mundial, na Carta da ONU. A Sociedade das Nações que, entre outros objectivos, procurava evitar o recurso à guerra57, promover a justiça e o respeito pelo Direito Internacional, numa dupla missão de, em primeiro lugar, garantir a paz e segurança58 e, em segundo lugar, desenvolver a cooperação entre as Nações, não conseguiu manter a sociedade internacional numa situação de estabilidade. No seu seio, surgiram diversas situações perturbadoras que conduziram ao seu desaire e ao despoletar de um segundo conflito mundial. Este com uma forma ainda mais violenta do que o primeiro. No período entre as duas guerras surge a crise de 1929, com o abaixamento assustador da produção industrial e assiste-se a uma ascensão dos totalitarismos de vários géneros, como resposta aos problemas económicos. Assim, em 1934, Hitler59 torna-se o Fuhrer da Alemanha, rearma-se unilateralmente e, no ano de 1935, dá os primeiros passos na aplicação da doutrina do espaço vital (Lebensraum). A textura mítica do Nacional Socialismo, tendo como base a superioridade da raça, com desenvolvimento paralelo ao anti-semitismo, amplia-se. A Itália, com o Duce (Mussolini) no poder desde 1922, escolhe como terreno de expansão o Império Abissínio e, em 1936, ocupa Adis-Abeba. Em Espanha, a ditadura de Primo de Rivera acabou por desembocar na guerra civil, em 1936. Em Portugal, Salazar encontrava-se no poder; na Polónia, o Marechal Pilsudski; na Áustria, Dollfus; na Grécia, o General Metaxas. Estes sistemas defendiam em comum o “(...) nacionalismo, a hierarquia, o sentido de autoridade, a glorificação da juventude, o repúdio do individualismo burguês e liberal (...)”60.

55 O quinto ponto preconizava “conciliação livre, num espírito amplo e absolutamente imparcial, de todas as reivindicações coloniais, baseada no respeito estrito do princípio que, regulando todas as questões de soberania, as conveniências das populações interessadas deverão pesar com peso igual com as demandas equitativas do Governo cujo título estará por definir-se”. Celso Albuquerque, “Os 14 Pontos de Wilson”, em “Legado Político do Ocidente : O Homem e o Estado”, pág. 212, Instituto Português da Conjuntura Estratégica, Lisboa, 1995. 56 F. G. Dreyfus, Roland Marx, Raimond Poidevin - “História Geral da Europa 3 - A Europa de 1789 aos nossos dias”, pág. 422, Publicações Europa América, Sintra, 1980. 57 Ver artigos nº. 10 e 11 do Pacto da SDN. 58 Ver artigo nº 8 do Pacto da SDN, sobre a limitação da ius belli. 59 Hitler em 1935 cria a Luftwaffe e estabelece o serviço militar obrigatório; em 1938, anexa a Áustria (Anchluss); integra no III Reich a zona dos Sudetas; invade a Polónia (apesar do Pacto de não agressão em 1934) e faz um tratado da sua partilha com a Rússia, em 1939. 60 F. G Dreyfus, Roland Marx, Raimond Poidevin, ob. cit., págs. 399 e 400.

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O problema, neste período da vida mundial, era um problema global que extravasava o continente europeu. No Japão, a Revolução Meiji que eliminou a estrutura feudal, propulsionou a modernidade e o militarismo correlacionado com a tendência expansionista (guerra na Manchúria, iniciada em Janeiro de 1932). No propósito preambular do Pacto da Sociedade das Nações está expresso que, para garantir a paz e segurança, é necessário “(...) aceitar certos compromissos tendentes a evitar a guerra (...)”, situação que é reforçada no Artº. 10º, onde está referido o respeito pela “(...) integridade territorial e a independência política (...)”. Estes artigos, quando invocados por alguns membros da Sociedade das Nações (como a Etiópia), não produziam nenhum resultado. Foi a impotência total do sistema de segurança colectivo, deflagrando-se, assim, “(...) um golpe muito sensível na autoridade da Sociedade das Nações (...)”61. As sanções previstas pelo Artº. 16º nunca foram aplicadas com eficácia, dado que as potências membros do Conselho, como a França e a Inglaterra, com a sua política de desconfiança, o tornaram ineficaz, ficando “(...) demonstrado que a SDN se sentia incapaz de exercer uma acção coercitiva quando defrontava um acto de força cometido por uma grande potência (...)”62. Os conflitos extra-europeus podiam afectar, indirectamente, os interesses franceses e ingleses. Mas um conflito no centro da Europa surgia como uma ameaça directa à paz e provocava uma alteração no equilíbrio existente. Mesmo assim, após um ultimatum para retirar da Polónia, a Inglaterra e a França declararam guerra à Alemanha em 2 de Setembro de 1939. A II Guerra Mundial “(...) deu-se num globo unificado pela ciência, pela técnica e pelas infraestruturas, pela mundialização dos projectos políticos em conflito, as zonas marginais desapareceram, os teatros estratégicos incomunicantes não existiam, e o desafio à estrutura secular foi pela primeira vez global (...)”63. 3.1. - A Sociedade das Nações e a realidade colonial Na época da Paz de Versalhes, era pelo grau de civilização que se aferiam as nações, entendendo-se por civilização a do Ocidente. Por este motivo, só eram admitidas na Sociedade Internacional “(...) e como parte desta, as que as demais julgassem como seus pares (...)”64. No Tratado de Versalhes, a Alemanha renuncia a todos os títulos e direitos sobre as suas possessões além-mar, sendo as colónias alemãs partilhadas pelas principais potências aliadas e associadas. Assim, se Berlim foi a primeira partilha da história colonial, Versalhes terá sido a segunda. Até esse momento, a função dos territórios coloniais era a de equilibrar as forças e os interesses entre as potências do concerto europeu. Com a criação da Sociedade das Nações, surge o sistema de mandatos sobre o território dividido do Império Colonial Alemão, mostrando-se, desta forma, que o “novo organismo” não se desinteressou da política colonial. Na realidade, é a partir do seu Artº.12º que vem a organizar-se a comissão permanente de mandatos, apontando, assim, para uma

Pierre Renouvin, “História de las Relaciones Internacionales, Siglos XIX e XX”, pág. 977, Akal, Madrid, 1982. Idem, pág. 983. 63 Adriano Moreira, em Prefácio de “A Descolonização Portuguesa (as responsabilidades)”, pág. III, de Manuel Gonçalves Martins, Livraria Cruz, Braga, 1986. 64 Franco Nogueira, “O Juízo Final”, pág. 166, Editora Civilização, 2ª edição Porto, 1993. 61 62

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internacionalização da colonização ou, de acordo com Franco Nogueira, “(...) procurou-se desta forma institucionalizar o fenómeno colonial (...)”65. À Sociedade das Nações coube a missão de regular a entrega e fiscalizar a forma como os mandatários cumpriam o seu papel, estabelecendo-se no Artº. 22º do Pacto três tipos de mandatos, designados por A, B e C, cada um para situações diferentes. Definiu-se uma nova era da política colonial, onde se reflectiam não só os impulsos idealistas mas também os interesses materiais, uma vez que se, por um lado, se pretendia o bem estar, a protecção e o estímulo do progresso dos aborígenes (objectivo interpretado como em função do interesse da comunidade internacional), por outro pretendia-se a afirmação dos objectivos políticos nacionais, dado que a dependência cessava logo que as colónias se encontrassem aptas para se regerem por si, “(...) nas condições particularmente difíceis do mundo moderno (...)”66. Com este sistema, iniciou-se a “(...) fiscalização internacional da Gestão Ultramarina (...)”67. Versalhes consolidou a situação colonial vinda de trás, com a correcção devida ao desaparecimento das colónias alemãs distribuídas pelas potências vencedoras, pelo que a Sociedade das Nações estava longe de ser anti-colonialista68. Podemos mesmo dizer que considerava a acção colonial como civilizadora. Em 1935, a imprensa europeia começou a noticiar referências quanto à possível utilização das colónias portuguesas como moeda de troca para a satisfação das necessidades coloniais alemãs e italianas. A 4 de Dezembro de 1937, a imprensa lisboeta fez referência a possíveis negociações entre a Inglaterra e a Alemanha para a entrega de uma parte de Angola à última. A opinião pública portuguesa reagiu de imediato69. Na sua memória ainda permaneciam as negociações secretas para partilha de parte do território colonial entre as potências referidas, quer em 1898 quer em 1912-1913, respectivamente. A potência continental, por necessidades económicas, reclamava a restituição integral das suas antigas colónias de África, não tendo qualquer pretensão sobre outros territórios. Mas logo “(...) houve quem pensasse em aplacá-la pela entrega de possessões de outros países menos carecidos de «espaço vital» (...)”70. A Inglaterra, ao mesmo tempo que negava as negociações sobre territórios portugueses, dialogava com a Alemanha uma redistribuição das colónias no território da Bacia do Congo (à semelhança do Acto Geral de Berlim). Assim, restituir-lhe-ia só algumas ex-colónias, mas compensava-a “(...) pelo livre acesso às matérias primas na bacia convencional do Zaire (...)”71. Sobrevieram os problemas dos Sudetas e da Áustria, caducando desta forma o projecto inglês.

4. - A Carta da Organização das Nações Unidas e os territórios não autónomos

65 Idem, “Portugal Ultramarino Perante a ONU”, pág. 43, em “Conferências Proferidas em 1958/59”, 1º vol., Instituto de Altos Estudos Militares, Lisboa. 66 Nº 1 do Art.º 22º do Pacto SDN. 67 Franco Nogueira, “Portugal Ultramarino Perante a ONU”, pág. 44. 68 Idem, ibidem. 69 Marcello Caetano, “Portugal e a Internacionalização dos Problemas Africanos - História duma Batalha: da Liberdade dos Mares às Nações Unidas”, pág. 228. 70 Idem, pág. 219. 71 Idem, pág. 239.

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A Carta do Atlântico, assinada em 14 de Agosto de 1941 por Roosevelt e Churchill, era o texto base dos ideais comuns de todos aqueles que lutavam contra a Alemanha ou que, pelo menos, não apoiavam a sua ideologia política. Surgiu na sequência do insucesso da Sociedade das Nações e nela se consagrava, entre outros, o direito dos povos escolherem a sua forma de governo e, de extrema importância, a não alteração dos limites territoriais, sem consentimento dos povos interessados. Contudo, não fazia qualquer referência aos territórios não autónomos. Com a criação da ONU, em 26 de Junho de 1945 (sem a participação de Portugal), regulamentou-se a situação dos territórios não autónomos, pois a Carta criou dois sistemas: um, a partir do capítulo XI, “Declaração Relativa a Territórios sem Governo Próprio”; outro, a partir dos capítulos XII e XIII da Carta das Nações Unidas, “Sistema Internacional de Tutela” e “O Conselho de Tutela”, respectivamente. O capítulo XI, composto pelos Artºs. 73º e 74º, refere-se a territórios sem autonomia. Nos termos do Artº. 73º da Carta, os Estados membros das Nações Unidas que “(...) assumiram ou assumam responsabilidades pela administração de territórios cujos povos ainda não tenham atingindo a plena capacidade de se governarem a si mesmos, reconhecem o princípio de que os interesses dos habitantes desses territórios são da mais alta importância (...)” e comprometem-se a um certo número de obrigações no desempenho de uma missão designada na Carta como “sagrada”. Estas obrigações - que são basicamente para os Estados administrantes de territórios não autónomos - são as seguintes (seguindo ainda o Artº. 73º): - Assegurar, com o devido respeito pela cultura dos povos interessados, o seu progresso político, económico, social e educacional; - Desenvolver a capacidade destes para governo próprio, tomando em devida conta as suas aspirações políticas e auxiliando-os no desenvolvimento progressivo de instituições políticas livres; - Estimular o progresso de tais povos, em cooperação com as agências especializadas da ONU; - Transmitir com regularidade ao Secretário Geral, para fins de informação sujeitas às reservas impostas por considerações de segurança ou de ordem constitucional, informações de carácter estatístico e técnico sobre as condições sócio-económicas e educacionais dos territórios abrangidos pelo sistema e que não estejam compreendidos naqueles a que se aplica o estabelecido nos capítulos XII e XIII da Carta. Não é difícil verificar a concepção monocultural de cada território sem governo próprio. No fundo, este capítulo é uma actualização do nº. 1 do Artº. 22º do Pacto da Sociedade das Nações, que se referia a “(...) territórios (...) habitados por povos ainda incapazes de se dirigirem por si próprios nas condições particularmente difíceis do mundo moderno. O bem estar e o desenvolvimento desses povos constituem a missão sagrada de civilização (...)”, e que vem na sequência lógica do Artº. 11º da Convenção de Saint-Germain-en-Laye72. Esta última, como revisão do Acto Geral de Berlim, articula-se logicamente com o espírito do mesmo.

72 Em 1919, em Saint-Germain-en-Laye, são assinadas três convenções sobre a colonização, as quais revogaram as disposições do Acto Geral de Berlim (com excepção das referentes à bacia convencional do Zaire) e definiram diversos regimes a adoptar em África (como o comércio de bebidas alcoólicas e armamento, muito limitado em teoria). Considerou-se desnecessária a manutenção do princípio da ocupação efectiva, como direito de posse; considerou-se já toda a África ocupada. Foi mantido o processo de acção civilizadora dos indígenas. A revisão dos Actos Gerais de Berlim e Bruxelas incita as Nações colonizadoras a uma mais ampla acção civilizadora e protectora dos indígenas.

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No preâmbulo do Acto Geral de Berlim, refere-se a preocupação de aumentar “(...) o bem estar moral e material das populações indígenas (...)” e, no seu Artº. 6º, é mencionado o compromisso de “(...) velar pela conservação das populações indígenas e pelo melhoramento das suas condições morais e materiais (...)”, bem como proteger e favorecer, sem distinções, “(...) todas as instituições e obras religiosas, científicas ou de caridade, criadas e organizadas para estes fins, ou que visem a instruir os indígenas e fazer-lhes compreender e apreciar as vantagens da civilização(...)”; repare-se, a civilização ocidental. Salienta-se, ainda, o Artº. 35º, onde as potências signatárias reconheciam a obrigação de assegurar “(...) uma autoridade suficiente para fazer respeitar os direitos adquiridos e eventualmente a liberdade de comércio e de trânsito (...)”. Constata-se que tanto o articulado do Acto Geral de Berlim, das Convenções de Saint-Germain-enLaye, do Pacto da Sociedade das Nações e da própria Carta das Nações Unidas vêm na sequência lógica e doutrinal (ressalvando, embora, o percurso histórico) do pensamento de Francisco de Vitória (1480-1546). O teólogo pressupunha oito títulos para o direito de conquista e de colonização, ressaltando deles um etnocentrismo cultural, onde se subentendia a imposição do direito do colonizador73. A colonização dos territórios conduziu ao confronto entre os sistemas jurídicos do colonizador e do aborígene. Segundo Narana Coissoró, podemos considerar dois sistemas jurídicos que foram balizar os sistemas locais: o sistema britânico e o sistema latino. O sistema britânico praticou, desde o início, o desenvolvimento de um “(...) sistema jurídico autónomo (...)”74, visando uma autonomização do direito territorial. O latino pendia para um direito integrador, transigente com os consuetudinários africanos, desde que os respectivos normativos não fossem contrários aos conceitos essenciais do sistema jurídico da metrópole. Apenas “(...) parte do direito aborígene que em nada interferia com os fins imediatamente visados (...)”75, ficou sobre a alçada do direito tradicional, como é o caso do Estatuto do Indígena. Amaro Monteiro considera outra ordem jurídica, esta sui generis: O Islão, que “(...) procurou não tanto o exercício de soberania e administração como, sobretudo, a implantação e desenvolvimento de influências politico-culturais e económicas (...)”76. Como veremos, os povos da Guiné Portuguesa ficaram, assim, sujeitos a uma dupla solicitação dos sistemas em presença: o do colonizador europeu e o islâmico, tendo este último, vantagem no terreno cultural. Estas ordens jurídicas exercem-se sobre uma multiplicidade de territórios com as fronteiras decorrentes da Conferência de Berlim, marcadas com o fenómeno colonial e a consequente partilha de zonas de influência. 73 Os oito títulos de Francisco de Vitória, atinentes ao direito de conquista e de colonização da América, são os seguintes: 1 - Derecho de natural sociedad y libre comunicación y consiguientes derechos de sociabilidad natural e primarios derechos de gentes; 2 - Derecho de evangelizacíon y subsiguinte mandato de protección y tutela missional; 3 - Derecho de intevención en defensa de los convertidos, o título a la vez de la religión y sociedad humana; 4 - Poder indirecto del Pontífice de deposición e instauración de gobierno cristiano sobre pueblos convertidos; 5 - Derecho de intervención humanitaria en defensa de los inocentes y para abolir sacrificios humanos, etc; 6- Por libre elección debidamente garantizada; 7 - Derecho de intervención por petición de aliados o confederados; 8 - Titulo Probable. Tutela o mandato colonizador sobre pueblos retrazados. Em “Obras de Francisco de Vitória - Relaciones Teológicas”, Pág. 496, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 1960. 74 Narana Coissoró, “As Instituições de Direito Costumeiro Negro-Africano”, em “Estudos Políticos e Sociais”, vol. II, nº. 1, pág. 81. 75 Idem, ibidem. 76 Fernando Amaro Monteiro, “A Guerra em Moçambique e na Guiné - Técnicas de Accionamento de Massas”, pág. 17.

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Apesar das variadas ideologias de uma pretensa anulação, a demarcação persiste nos nossos dias. Todavia, as elites africanas, que reclamaram a independência para estes territórios com as fronteiras geográficas limitadoras da ordem interna e externa, cuja expressão política obtida, não pela consagração internacional de nações já existentes, mas sim através da soberania do colonizador, determinada pelo Direito Internacional, concluíram que a alteração de fronteiras iria colocar em questão factores já adquiridos de equilíbrio. Situação curiosa não deixa de ser o facto de essas elites reivindicarem a independência “(...) sem terem uma comunidade nacional a servir-lhes de apoio (...)”77. De facto, as independências não correspondem às autenticidades africanas que, por outro lado, face aos constantes movimentos populacionais anteriores ao domínio colonial, são de difícil definição. O segundo sistema da Carta - Sistema Internacional de Tutela - não é mais do que um sucessor do sistema de mandatos da Sociedade das Nações, onde apenas se mudou o nome e se introduziram poucas e não relevantes alterações. É aplicado aos antigos territórios sob mandato da Sociedade das Nações, àqueles que em virtude da II Guerra possam ter sido separados dos países do Eixo e, finalmente, àqueles cuja potência responsável pela sua administração os resolva colocar de uma forma voluntária sob regime de tutela. Na Carta, ficou sublinhado o carácter transitório da tutela, com função educadora e de encaminhamento para a independência, vincando ainda o princípio da não discriminação em função da raça, sexo, religião ou língua dos habitantes. O propósito da Carta, em trazer os benefícios de uma civilização, é atitude nitidamente etnocêntrica, pois considera que o destino ideal das populações a serem afectadas pelo sistema tem de ser realizado de acordo com os modelos culturais, sociais e religiosos de quem redige as formulações. Isto conduz ao Artº. 73º, já referido anteriormente. O sentido protector e promotor já se encontrava no Tratado luso-britânico de 1815, relativo à abolição da escravatura em todos os lugares da costa de África, ao norte do Equador, como no preâmbulo do Decreto elaborado pelo Marquês de Sá da Bandeira em 1836, para abolição do tráfico da escravatura em Portugal. Tal posição repete-se em 1890, no Acto Geral da Conferência Internacional de Bruxelas, para pôr termo ao tráfico de escravos e regular o comércio de armas e bebidas alcoólicas em África. No Artº. 1º ressalta a preocupação de, nos territórios colocados sob soberania ou protectorado das nações civilizadas, criar estações fortemente ocupadas, por forma a que a sua acção protectora ou repressiva se possa sentir com eficácia. Nos nos. 1, 2 e 3 do Artº. 2º, há uma sequência lógica quanto ao controlo das populações; inclusivamente prevê-se a sua colocação em postos e estações, em caso de perigo iminente, disposição que poderemos considerar antepassada da política portuguesa, quanto ao reordenamento das populações e às tabancas em autodefesa na Guiné. O nº. 1 do Artº. 2º demonstra também e novamente uma convicção de superioridade das Partes signatárias, uma vez que alude a “(...) trazê-las à civilização e a extinguir os costumes bárbaros (...)”. A visão persiste na própria Convenção nº 10778 da Organização Internacional de Trabalho, em 1957, portanto já após Bandung. O seu Artº. 2º estabelece: “(...) promover o desenvolvimento social, 77 Adriano Moreira, “Da Relação entre a Nação e o Estado”, pág. 25, em “Nação e Defesa”, nº. 61, Janeiro-Março 1992, Instituto de Defesa Nacional. 78 Relativa à protecção e integração das populações aborígenes e outras populações tribais e semitribais nos países independentes.

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económico e cultural dessas populações assim como elevar o seu nível de vida (...)” e ainda “(...) criar possibilidades de integração nacional com exclusão de qualquer medida destinada a uma assimilação artificial dessas populações (...)”. O Artº. 3º refere a protecção fornecida às populações interessadas, relativamente a instituições, pessoas, propriedade e trabalho, enquanto aquelas não gozarem dos benefícios das leis gerais. A partir da cultura ocidental (Artº. 4º a Artº. 8º), formula-se um modelo de comportamento, de aferimento de padrões; no entanto, “(...) na definição dos direitos e dos deveres das populações interessadas atender-se-á ao seu direito consuetudinário (...)”79 e à conservação das suas instituições, desde que não sejam incompatíveis com os sistemas jurídicos nacionais ou com os objectivos e programas de integração. Contudo, nota-se alguma evolução. Do Artº. 22º podemos extrair um propósito pedagógico da disposição de adoptar programas de educação adequados “(...) ao grau de integração social, económica e cultural destas populações na comunidade nacional (...)”; é o único texto denotando preocupação com o estudo da personalidade cultural das populações. O Estatuto do Indigenato, que serviu de argumento em ataques desferidos contra Portugal na Assembleia Geral das Nações Unidas, foi criado em 20 de Maio de 1954, pelo Decreto-Lei nº 39666, sendo, portanto, anterior à Convenção nº.107 e tinha, no fundo, a mesma finalidade: defender as populações com culturas próprias e diferentes da europeia, na contemplação dos seus usos e costumes80. 5. - O Terceiro Mundo, Bandung e as Conferências Pan-Africanas Bandung foi o motor de arranque para modificações profundas e irreversíveis da própria estrutura da Sociedade Internacional. Esta será o marco do aparecimento formal do Terceiro Mundo com “(...) uma unidade ideológica (...)”81. A transposição desta ideologia para a acção prática originou o neutralismo africano. Esta política, orientadora dos povos afro-asiáticos, recém nascidos para a vida internacional, estabelecia o seu anti-colonialismo. Para Franco Nogueira, o neutralismo era uma atitude “(...) oportunista e pragmática que lhe permitia tomar, em cada momento, a posição que mais conviesse aos seus interesses imediatos, o seu apoio era moeda de troca por concessões a extorquir (...)”82. Porém, Adriano Moreira recorda que o facto destes povos se terem apercebido do seu alto valor pela adição a qualquer um dos blocos ultrapassou a anterior situação de “(...) equilíbrio da impotência (...)”83. A consolidação, em paralelo, do terceiro mundismo, do neutralismo e do não-alinhamento, após a II Guerra Mundial, assenta: “(...) a) sobre uma consciência de subdesenvolvimento, aliada à da potencialidade virtual em matérias primas e/ou em posições geo-estratégicas;

Nº. 1 do Artº. 7º. Silva Cunha, “O Ultramar, a Nação e o 25 de Abril”, pág. 133, Atlântida Editora, Coimbra, 1977. 81 Adriano Moreira, “A África e o Ultramar Português na Conjuntura Internacional”, pág. 6, em “Conferências Proferidas em 1958/59”, 1º vol., Instituto de Altos Estudos Militares, Lisboa. 82 Franco Nogueira, “O Juízo Final”, pág. 180. 83 Adriano Moreira, ob. cit., pág. 6. 79 80

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b) sobre consciências culturais; c) ou sobre a progressiva constatação de b) e os decorrentes esboços de alternativa (...)”84. Os objectivos desta primeira Conferência do Terceiro Mundo, já definidos no ano anterior em Bogor, são conjunturais85. No entanto, havia um objectivo comum: a necessidade de afirmação da independência, dado que esta representava “(...) a tomada de consciência dos povos da Ásia, quanto ao seu valor, como ainda o reconhecimento da necessidade de uma solidariedade activa com os de África (...)”86. No comunicado final da Conferência é consagrado o dever de todos os povos libertados ajudarem os ainda dependentes a alcançar a sua soberania. Foi aí também considerado o colonialismo como um mal ao qual era preciso pôr fim rapidamente, uma vez que a sujeição dos povos à exploração estrangeira constituía uma negação dos direitos humanos elementares e era contrária à Carta das Nações Unidas (a que a Conferência aderia inteira e plenamente), bem como à Declaração Universal dos Direitos do Homem87. Bandung previa, no seu encerramento, a realização de uma Conferência no Cairo. Esta realizou-se entre 26 de Dezembro de 1957 e 1 de Janeiro de 1958 e veio marcar a primeira grande afirmação da presença do neutralismo. A URSS, que fora condenada em Bandung pelo seu colonialismo, vai aparecer na Conferência do Cairo “(...) bem colocada para manobrar todo o mundo emergente (...)”88, alcançando grande prestígio. Como o Egipto, nessa altura, era caucionado por Moscovo, o neutralismo traduzia uma aproximação ao sovietismo. Nkrumah, Chefe do Governo do Ghana, que em 6 de Março de 1957 proclamara a independência do seu país, vendo inicialmente em Nasser um papel útil para o suporte na luta contra o colonialismo, apoia-o, mas, retomando a ideia da Negritude, vai depois procurar distanciar-se e transferir para a África Negra a direcção surgida e tutelada em Bandung. O movimento afro-asiático articula-se com o anti-colonialismo, com base no princípio da autodeterminação, procurando encaminhar para a emancipação imediata todos os povos de cor vinculados, politicamente, à Europa. Ao movimento e ao sentimento com ele articulado podemos ir buscar as origens de vários acontecimentos em África e na Ásia, assim como a sua actuação, em bloco, na ONU. Podemos, então, ligar a este movimento o Pan-Africanismo, iniciado por Henry Silvester Williams, no início do século, e cuja influência se manifestou sobretudo depois da Conferência de Bandung. O Pan-Africanismo, apesar de poder apresentar uma pluralidade de manifestações, não deixa de revestir uma certa unidade, no tocante à sua coerência de pensamento89. A primeira tónica será a do Pan-Africanismo, de cariz racista, com expressão no chamado “sionismo negro”, do qual o demagogo 84 Fernando Amaro Monteiro, “A Guerra em Moçambique e na Guiné - Técnicas de Accionamento de Massas”, pág. 15. 85 Charles Zorgbibe, “L´après Guerre Froide dans le Monde”, pág. 13, Col. Que sais-je?, Presses Universitaires de France, Paris, 1993. 86 Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (19611974), 1º volume, Enquadramento Geral”, pág. 48. 87 Podemos consultar mais detalhadamente o comunicado final da Conferência, Secções de “Direitos do Homem e Autodeterminação” e “Declaração dos Problemas dos Povos Dependentes”. 88 Comissão para o Estudo das Campanhas de África, ob. cit., pág. 49. 89 Sobre este assunto podemos consultar a obra de José Eduardo dos Santos, “O Pan-Africanismo”, págs. 25 a 69, Edição do Autor, Lisboa, 1968. Outra obra também de referência será “Le Panafricanisme”, de Phillippe Decraene, Col. Que sais je? Presses Universitaires de France, Paris, 1959.

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Marcus Garvey foi o expoente máximo. Por seu turno, o Pan-Africanismo, antes de assumir uma forma predominantemente política, passou por uma fase cultural cuja manifestação mais vigorosa se encontra no conceito de “Negritude”, lançado em meados dos anos trinta por Leopold Senghor e Aimé Césaire. O Dr. Du Bois, considerado o pai do Pan-Africanismo político, baseando-se numa teoria segura - a igualdade entre raças - realizou cinco congressos entre 1919 e 1945. No termo da guerra de 1914-1918 fez um apelo aos Aliados, no sentido de não restituírem as colónias conquistadas à Alemanha, para, desta forma, ali se estabelecer “(...) uma nação negra sobre controlo da SDN (...)”90. Após a assinatura do armistício, tendo como base os princípios formulados por Wilson, apresenta uma petição às potências vencedoras para a adopção de uma Carta dos Direitos Humanos destinada aos Africanos. Assim, em 19 de Fevereiro de 1919, organizou o primeiro Congresso Pan-Africano, ao qual se seguiram mais quatro91, tendo os primeiros quatro um impacto limitado, pois deles não resultou nenhuma realização concreta92. Destacamos pois as reivindicações emanadas do quinto Congresso que, contrariamente aos outros, apresentou um recrutamento de bases. Nele surgiram pela primeira vez reivindicações para uma independência imediata, completa e absoluta dos povos de territórios dependentes. Esta diferença de bases sociais deu um novo impulso ao Pan-Africanismo, que deixava para trás a moderação e o idealismo para, finalmente, entrar nos caminhos da acção directa, através de métodos de resistência (ainda) não violenta. Neste Congresso, em Manchester, o quadro da África Negra aparece ultrapassado, uma vez que os congressistas reivindicaram também a independência da Argélia, Tunísia e Marrocos. Quanto ao caso português, emergindo da Junta de Defesa dos Direitos de África (1912), surgiu em Lisboa a “Liga Africana”, no ano de 1919, que originou em 21 de Março de 1921 o “Partido Nacional Africano”. Mas só no ano de 1931 foi possível fundar o “Movimento Nacional Africano”, com o objectivo de unir todos os africanos portugueses. Até aí, “(...) apesar das divergências e do maior radicalismo do Partido Nacional Africano, existiu sempre unanimidade em lutar pela causa africana dentro da Nação Portuguesa e nunca pela separação de qualquer parcela ultramarina (...)”93. Podemos considerar que o “africanismo”, até ao início dos anos sessenta, andou a reboque do “asiatismo”; mas o ímpeto do Pan-Africanismo, apesar de refreado, não desapareceu. Assim, em Abril de 1958, realizaram-se duas conferências, uma em Tânger e outra em Accra. Da primeira destacamos o facto de o princípio da luta subversiva ter sido admitido; “(...) podemos mesmo dizer que foi adoptado, ainda que os comunicados o não digam (...)”94. Da segunda - a 1ª Conferência de Estados Africanos Independentes, que decorreu entre 15 e 22 de Abril de 1958, - destacamos na Declaração Final, a fidelidade à Carta das Nações Unidas, à Declaração Universal dos Direitos do Homem e à Declaração da Conferência de Bandung, denotando, deste modo, um forte sentido de unidade em relação ao

Phillippe Decraene, ob. cit., pág. 17. Os restantes Congressos realizaram-se, respectivamente, em: Londres, 1921; Bruxelas e Paris, 1923; Nova Iorque, 1927; Manchester, 1945. 92 António José Fernandes, “Relações Internacionais - Factos Teorias e Organizações”, pág. 217, Editorial Presença, Lisboa, 1991. 93 Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (19611974), 1º volume, Enquadramento Geral”, pág. 44. 94 Jean La Couture, «Le Monde» - 5 de Maio de 1958, citado por Adriano Moreira, em “A África e o Ultramar Português na Conjuntura Internacional”, pág. 8. 90 91

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Ocidente, unidade esta que assenta na própria unidade do Continente que tinha em comum a sujeição colonial, no passado, e uma “(...) determinação de evitar aderir a qualquer bloco (...)”95. De 25 a 27 de Julho de 1958, realizou-se o Congresso de Cotonou com a intenção de constituir o Partido do Reagrupamento Africano. Mas as palavras de ordem acabaram por ser “independência imediata” e “Estados Unidos de África”. Os delegados do partido reclamavam “(...) a supressão de todas as fronteiras estabelecidas após o Congresso de Berlim de 1885, para que os povos africanos pudessem unir as suas «complementaridades» (...)”96 e manifestaram vontade de concretizar a união do Cairo a Joanesburgo, ideia original de Cecil Rhodes, no século passado, mas com diferentes fundamentos. Neste Congresso, o conceito de Pan-Africanismo não se exprime justaposto ao de “Negritude”97; o que estava em causa eram “(...) eixos estratégicos, interesses multinacionais que flanqueavam os antigos poderes formais e, com isso, projectos de assimilação ou hegemonia política a situar fora dos limites culturais da «Negritude», como ela se definira e na prática recusara, por via de assimilação cultural, ao Ocidente colonizador (...)”98. Na segunda Conferência de Accra, de 6 a 13 de Dezembro de 1958, designada agora por “1ª Conferência dos Povos Africanos”, o Presidente Nkrumah dita quatro fases a serem observadas na luta por uma África unida: “(...) 1) Obter a vossa liberdade e a vossa independência; 2) Consolidá-las; 3) Criar a unidade e a comunidade dos Estados livres de África; 4) Proceder à reconstrução económica e social do continente africano (...)”99. No final da Conferência, foram adoptadas três resoluções que, com base no direito dos povos disporem de si mesmos, visavam encorajar os movimentos independentistas em toda a África. Após estas duas Conferências em Accra, a discussão passa a pôr em causa a própria presença do homem branco no Continente. A segunda Conferência de Estados Africanos Independentes decorreu de 4 a 8 de Agosto de 1959, em Monróvia, tendo sido adoptadas quatro resoluções; a quarta proclamou o direito à autodeterminação dos territórios coloniais. A segunda Conferência dos Povos Africanos, realizada em Tunes, de 25 a 31 de Janeiro de 1960, contou com a presença de representantes de Angola; Holden Roberto, presidente do movimento independentista União dos Povos de Angola (UPA), esteve presente e reivindicou a independência para Angola, num quadro africano, solicitando, ainda, que fosse inscrito na XV sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas o problema do Ultramar Português. Destacamos apenas mais uma Conferência, uma vez que nos parece do maior interesse para o tema em análise: a terceira Conferência dos Povos Africanos, realizada em Março de 1961, no Cairo, onde a

Adriano Moreira, “A África e o Ultramar Português na Conjuntura Internacional”, pág. 9. Phillippe Decraene, ob. cit., pág. 47. 97 Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 222. 98 Idem, pág. 221. 99 António José Fernandes, ob. cit., pág. 219. 95 96

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“(...) independência de todas as possessões portuguesas foi reclamada (...)”100 o que denota uma evolução em relação a Bandung, onde nada de concreto fora deliberado em relação aos territórios portugueses. A aspiração dos povos afro-asiáticos à independência não foi realizada só pelas Conferências Africanas; um “(...) suporte jurídico e um grande apoio político (...)”101 foi conseguido nas Nações Unidas. 6. - O período anti-colonial na Organização das Nações Unidas O princípio da autodeterminação dos povos firmado, durante e no termo da II Guerra, “(...) tem relevância na política internacional desde a proclamação da Independência dos Estados Unidos da América (...)”102, a 4 de Julho de 1776, e vai aparecer explicitado no nº. 2 do Artº. 1º e no Artº. 55º da Carta das Nações Unidas, apesar da missão sagrada de civilizar os povos que ainda não tivessem “(...) atingido a plena capacidade de se governarem a si mesmos (...)”103. É importante salientar, sem embargo, que a Carta faz referência a um princípio e não a um direito. O desejo de libertação dos territórios subjugados pela Alemanha entre 1939-1945 e o “permitirlhes” uma “livre escolha” de instituições e forma de governo deu um novo impulso ao ideário da autodeterminação. Este rapidamente se generalizou e passou a ser reclamado para territórios situados fora da Europa. O Velho Continente estava enfraquecido pela guerra e emergiam para a vida internacional “(...) um conjunto de países e forças que até então sempre tinham sido mudos porque por eles falava a potência colonizadora (...)”104. Situados na África, na Ásia e na América Latina, constituíram um grupo de pressão que, com a sua expressão permanente na ONU, e com uma conduta política internacional submetida a padrões comuns105, se bateu por abolir no mundo aquilo que subsistia de situações coloniais. Após o colapso das potências do Eixo, emergiam também na cena mundial, mas de forma simétrica, duas superpotências: os EUA, a liderar progressivamente todo o Ocidente democrático/parlamentar, e a URSS, marxista-leninista, a controlar, após Yalta, toda a Europa Oriental; criaram-se dois blocos com as respectivas zonas de influência - a anglo-saxónica e a soviética -, que vão disputar o controlo das áreas geopoliticamente importantes, bipolarizando-se o mundo. Ambos eram “anti-colonialistas”: os Phillippe Decraene, ob. cit., pág. 56. António José Fernandes, ob. cit., pág. 158. 102 Adriano Moreira, “A Autodeterminação e a Guerra Fria”, pág. 9, Lição proferida na Universidade do Porto, no Centro de Estudos Universitários, em 16 de Dezembro de 1963. De acordo com este analista, “(...) o problema da autodeterminação e da guerra fria situa-se justamente numa zona em que o conflito pode eventualmente ser substituído pelo entendimento, sempre que os interesses se definam em relação a zonas marginais para onde os poderes em conflito desejam expandir-se (...)”. Em “A Autodeterminação e a Guerra Fria”, pág. 8. Mas para Sir Ralf Dahrendorf, “(...) a autodeterminação, é, na melhor das hipóteses, um direito de segunda classe, muito abaixo dos direitos civis, políticos e sociais da cidadania (...)”, considerando que, provavelmente, não será um direito mas sim uma reivindicação feita “(...) por líderes populistas que talvez levem os seus povos para a sociedade aberta, mas que com igual probabilidade, substituíram a servidão a estrangeiros pela tirania política (...)”, como foi o caso da Guiné-Bissau. Mas este analista considera ainda a autodeterminação nacional como uma das “(...) invenções mais infelizes do Direito Internacional (...)”, uma vez que ela, em vez de atribuir os direitos aos indivíduos, os atribui aos povos, situação que conduz a um convite aos “(...) usurpadores a reivindicarem esse direito para os povos em cujo nome falam, enquanto, ao mesmo tempo, esmagam minorias e às vezes, os direitos civis de todos (...)”. Em “Reflexões Sobre a Revolução na Europa”, pág. 148, Gradiva, Lisboa 1993. 103 Artº 73º da Carta das Nações Unidas. 104 Adriano Moreira, “Teoria das Relações Internacionais”, pág. 425. 105 Idem, ibidem. 100 101

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EUA, “(...) por tradição histórica e por motivos de ordem ideológica (...)”106, de natureza económica e política; e a URSS por questões doutrinárias e de táctica política. No entanto, na Assembleia Geral, existiam mais grupos anti-colonialistas: os Escadinavos por razões económicas; os Afro-Asiáticos, que são, “(...) acima de tudo anti-ocidentais (...)”107 (será um anti-colonialismo sentimental); os LatinoAmericanos, porque ex-colonizados por Espanha e Portugal e pelo facto de a Europa ainda possuir alguns territórios coloniais na América Latina (por exemplo, as ilhas Falkland que, na década de oitenta, conduziram a um conflito armado entre a Argentina e a Inglaterra); outros ainda, como o Líbano e o Irão, por disciplina de blocos. No fundo, o anti-colonialismo surgiu por motivos rácicos, económicos ou ressentimentos com origem em submissões seculares, forjando-se, assim, a política anti-colonial nas Nações Unidas. Chegava-se ao fim do período dos povos colonizados pelos ocidentais que, entretanto, se independentizaram. Mas por que não se levantou nunca a questão da autodeterminação dos povos da Ásia Central, em regime de “telecomando” colonial da URSS, assim como não se levantaram contestações a que o Hawai e o Alasca fossem integrados nos EUA? (Atente-se na importância geoestratégica dos territórios de ambas, nas referidas condições). Por um feixe de razões de ordem histórica, política, ideológica e estratégica, as superpotências foram as grandes vitoriosas de 1945. Todo o movimento das autodeterminações anti-coloniais do século foi função do interesse dominante destas. Convém ainda notar que a política de descolonização inscrita na Carta da ONU teve a definição que foi imposta por essas superpotências, mas não foi aplicada naquela parte do mundo que não pertencesse, “(...) de acordo com as intenções iniciais, à zona de exclusiva influência e expansão de cada uma delas (...)”108. Após Bandung, o apoio das Nações Unidas às independências foi dado expressamente em 14 de Dezembro de 1960, quando a Assembleia Geral, através da Resolução A/1514 (XV), adoptou uma Declaração109 (Declaração anti-colonialista), inicialmente proposta pela Guiné-Conacry, apresentada pela Rússia e exponenciada pelos afro-asiáticos, segundo a qual a independência é um direito que deve ser obtido de imediato. Com esta Resolução, passou-se do princípio ao direito, ligando-se de forma definitiva a ideia de autodeterminação ao processo de descolonização. Para a Organização das Nações Unidas, todos os povos tinham o direito à livre determinação. Contudo, nunca conseguiu definir o que entende por “povo”. Não tendo em linha de conta referenciais objectivos, ignorou a preparação e o grau de maturidade (tendo por padrão a cultura ocidental) das populações abrangidas, nos territórios em causa, para a independência. Não reclamou qualquer consulta democrática às mesmas para ajuizar sobre as suas intenções. Desencadearam-se as independências atendendo apenas à opinião de uma elite ocidentalizada, e praticando-se a transferência do Poder Silva Cunha, “O Ultramar, a Nação e o 25 de Abril”, pág. 11. Franco Nogueira, “Portugal Ultramarino Perante a ONU”, pág. 63. 108 Adriano Moreira, “Da Conferência de Berlim de 1885 ao Moderno Anticolonialismo”, em “Legado Político do Ocidente: O Homem e o Estado”, pág. 155. Instituto Português da Conjuntura Estratégica, Lisboa, 1995. 109 Resolução A/1514 (XV), “Declaração para a Independência aos Povos e Países Coloniais”. A Assembleia Geral da ONU declarou que a “(...) sujeição dos povos ao domínio e à exploração estrangeira, nega os direitos fundamentais do Homem, é contrária à Carta das Nações Unidas e compromete a paz e a cooperação mundiais (...)”, pelo que devem ser tomadas “(...) medidas imediatas nos territórios sob tutela, não autónomos, e em todos os outros que ainda não tenham obtido a independência, para transferir todos os poderes para os povos desses territórios, sem nenhuma condição nem reserva, conforme a sua vontade e os seus votos livremente expressos e sem nenhuma distinção (...)”. Acrescenta ainda “(...) todas as acções armadas como medidas repressivas directamente contra povos dependentes 106 107

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directamente para um dos movimentos independentistas. Assim, é muito difícil sustentar outra conclusão que não seja a de que foram os territórios e não os povos que constituíram a preocupação motora do processo e que o objectivo não foi a livre determinação, mas sim expulsar as soberanias europeias 110. Será que foi no espaço de nove anos, desde a assinatura da Carta das Nações Unidas à Conferência de Bandung, que os povos aprenderam a governar-se por si próprios, ou aprenderam de repente? Ou teria, assim, a colonização de um só país sido substituída por um colonialismo de organização111? A composição da Assembleia Geral foi grandemente alterada com a admissão dos novos Estados. Os seus votos, com igual peso ao das velhas nações, puderam influir, de acordo com os interesses do momento, nas decisões tomadas pela Assembleia Geral, com todas as consequências daí advindas. O emergir do neutralismo africano, que trouxe mais benefícios aos novos Estados do que o alinhamento declarado, proporcionou-lhes, assim, uma importância política, a nível internacional, que passou a ser crescente e decisiva. O ataque a Portugal iniciou-se em 14 de Dezembro de 1955, quando da sua admissão às Nações Unidas, sendo questionado se possuía algum território ao abrigo do Artº. 73º. A resposta negativa do Governo Português levou ao desencadear de Resoluções que, excedendo o espírito e a letra da Carta112, procuraram provar a existência de territórios coloniais e inclusivamente, em 1973, que a situação criada pelas operações militares deveria ser considerada como uma ameaça à paz e à segurança internacionais, bem como um crime contra a Humanidade113. Perante a resistência portuguesa, fundamentada nos textos constitucionais e na Carta, a Assembleia Geral, através da Resolução A/1467 (XIV), de 12 de Dezembro de 1959, decidiu criar uma comissão especial de seis membros114, destinada a estudar os princípios em que se deveriam basear todos os membros para elaborarem os relatórios solicitados no Artº. 73º da Carta. Esta comissão elaborou um relatório - Relatório dos Seis - no qual foi enunciada a obrigatoriedade de prestar informações sobre todos os territórios declarados pela Assembleia como territórios não autónomos (a esta competia essa missão), sendo, a priori, não autónomo todo aquele que estivesse devem cessar (...)”. Esta Resolução foi aprovada por 89 votos a favor, 0 contra e 9 abstenções, entre estas está a abstenção de Portugal. A sua génese encontra-se nas Resoluções da Conferência de Bandung. 110 Adriano Moreira, “Ciência Política”, pág. 356, Livraria Almedina, Coimbra, 1995. 111 Franco Nogueira, “ As Nações Unidas e Portugal”, (Estudo), pág. 61, Ed. Ática, Lisboa, 1961. 112 Manuel Gonçalves Martins, “A Descolonização Portuguesa (as responsabilidades)”, pág. 94. Para Adriano Moreira, “ (...) quer pela prática adoptada de perguntar aos Estados se administram territórios não autónomos, quer pela atitude assumida ao tomarem simplesmente nota dos territórios que os Estados declararam estarem nessas condições, implicitamente se admitiu que só cada Estado é competente para determinar a natureza dos seus territórios e para averiguar se se encontram em condições de prestar as informações previstas no capítulo XII (...)” em “Ensaios”, pág. 90 e 91. Franco Nogueira acrescenta: “(...) A constituição portuguesa não reconhecia a existência de territórios não autónomos, e não era lícito que algumas partes dessa Nação tivessem um determinado estatuto internacional e outras partes um estatuto diferente. Ora apenas os Governos podiam interpretar e aplicar as suas próprias constituições, e o Governo Português negava às Nações Unidas a menor competência na matéria. (...) As Nações Unidas não tinham competência para analisar as constituições nacionais, nem discuti-las (...) O Artº. 73º, ao prever a prestação de informações pelos países que quisessem ou pudessem fazê-lo, fora cauteloso, e dispusera que em todos os casos tal prestação teria de se subordinar às limitações da ordem constitucional (...). Só Portugal, na sua qualidade de Estadomembro, poderia saber quais as limitações que a sua constituição lhe impunha. (...)”. Em “As Nações Unidas e Portugal”, págs. 100 a 105. 113 O nº 4 da Resolução A/ 2270 (XXII), de 17 de Novembro de 1967, da Assembeleia Geral das Nações Unidas refere: “(...) Condena energicamente, a guerra colonial desenvolvida pelo Governo Português, contra os povos pacíficos dos territórios sob seu domínio, guerra que constitui um crime contra a humanidade e uma grave ameaça à paz e à segurança internacional (...)”. 114 A comissão era constituída pelos representantes dos EUA, União Indiana, México, Marrocos, Holanda e Inglaterra.

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separado geograficamente e possuísse uma distinção étnica e cultural da do país administrante. Atentese que a diferenciação étnica e cultural existe, ainda hoje, em muitos outros Estados Independentes, como admite a OIT, na sua Convenção nº 107, já referida anteriormente (parece-nos que assim se reconhece a situação colonial em Estados Independentes). No dia 15 de Dezembro de 1960, foram aprovadas, na Assembleia, as Resoluções115 A/1541 (XV) e A/1542 (XV), onde foi clarificada a classificação de colonialismo, aplicável aos territórios portugueses em África. A Assembleia, com o objectivo de administrar e de vigiar a execução rápida da Resolução A/1514 (XV), criou a Comissão dos Dezassete116 que insistia na necessidade de se entender o direito à autodeterminação no contexto colonial, podendo, assim, impôr às potências colonialistas as medidas que estas não tomassem por sua própria iniciativa. Consideramos que a Organização, “(...) avançando nos seus intentos e principalmente através do comité dos 17 e da IV Comissão, controlou a actividade colonizadora dos governos (...)”117, e que o instrumento principal da linha efectivamente seguida foi a IV Comissão que, de acordo com Adriano Moreira, ocupando-se da descolonização, “(...) sustentou que lhe pertencia identificar e extinguir todas as relações de dependência colonial (...)”118. Quando do despoletar da subversão activa, na baixa do Cassange e no Catete, em Angola, as Forças Armadas já tinham iniciado a alteração do dispositivo militar119. Informações veiculadas pela CIA (classificadas de muito seguras), de que a UPA (União dos Povos de Angola), com o objectivo de chamar a atenção para a questão de Angola, nas Nações Unidas, decidira provocar incidentes no distrito do Congo, na noite de 15 de Março, foram passadas ao gabinete do Ministro da Defesa Nacional. O Quartel General da Região Militar de Angola terá sido, imediatamente, avisado. O texto é arquivado com a justificação de que o assunto já era do conhecimento do comando. Segundo Pedro Cardoso, então Director do Centro de Informação e Turismo de Angola, a PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado) “(...) estava com as atenções voltadas sobretudo para o

115 Resolução da Assembleia A/1541 (XV), aprovada por 69 votos a favor, 2 votos contra e 21 abstenções. Reafirma a obrigatoriedade de fornecer informações de acordo com o Artº. 73º, a aceitação dos princípios do relatório dos seis para determinar a aplicabilidade do Artº. 73º. Estabelece obrigação de informar, quando o território é geograficamente separado e distinto, étnica e culturalmente, da potência administrante. Se este estiver em posição de subordinação, também é obrigatória a transmissão de informações. Admite a integração como resultante da vontade expressa, com o completo conhecimento e por vontade democrática, conduzido imparcialmente e por sufrágio universal. Resolução da Assembleia A/1542 (XV), aprovado por 68 votos a favor, 17 abstenções e 6 votos contra. Nesta Resolução os territórios sob Administração Portuguesa, Cabo-Verde, Guiné, Angola, Moçambique, S. João Baptista de Ajudá, Goa, Macau, Timor e dependências, foram considerados como não autónomos. 116 Criado no dia 27 de Novembro de 1961, alargado para 24 membros em 1962, o comité dos 24, como era conhecido, no desempenho das suas funções examinava os obstáculos, que, em determinado território, se opunham à descolonização e recebia e analisava as petições que lhe eram enviadas. 117 Manuel Gonçalves Martins, “A Descolonização Portuguesa (as responsabilidades)”, pág. 91. 118 Adriano Moreira, “ A Comunidade Internacional em Mudança”, pág. 51, Resenha Universitária, São Paulo 1972. 119 O Ministério do Exército em directiva 22 de Abril de 1959 diz: “(...) as condições particulares que presentemente envolvem os vários territórios da Nação Portuguesa, quer metropolitanos, quer sobretudo ultramarinos, aconselham (...) unidades (...) possam ser empregadas (...) operações de segurança interna, de contra-subversão e de contra-guerrilha (...)”. Em 1959/1960, para fazer face às possíveis ameaças vindas de países recém independentes, transfere-se o esforço militar da Europa para África e aí remodela-se o dispositivo. Pelo Decreto-Lei 43351, de 24 de Setembro de 1960, é dada nova organização territorial às Forças Terrestres: cinco Regiões Militares (Norte, Centro, Sul, Angola e Moçambique) e sete Comandos Territoriais Independentes (Açores, Madeira, Cabo-Verde, Guiné, Estado da Índia, Macau e Timor). Por seu lado, o Conselho Superior de Defesa Nacional deliberou: “(...) evitar novos compromissos com a OTAN, que envolvam mais encargos financeiros; manter ligações militares com a Espanha, com vista à defesa Pirenaica; aumentar o esforço de defesa no Ultramar e rever o plano de Defesa Interna do conjunto do Território Nacional (...)”.

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MPLA, subestimando a UPA (...)”, e acrescenta que a situação era, “(...) globalmente, calma (...)”120. As informações iam funcionando. Faltava, porém, um órgão centralizador para que estas fossem estudadas, interpretadas e, oportunamente, difundidas para uma conveniente aplicação no terreno. 7. - Estratégia gobal de penetração no Terceiro Mundo Durante a “Guerra Fria”, eclodiram, ou desenvolveram-se, numerosos conflitos regionais onde os adversários se defrontavam por nações interpostas, as “(...) chamadas guerras por procuração (...)”121, que se desenvolveram em regiões de vital importância para a economia europeia. Essas guerras só começaram a desaparecer, ou a serem esvaziadas, através de uma acção concertada das superpotências, após a “Perestroika” e as consequentes mutações surgidas a Leste. As potências europeias, receosas das intenções soviéticas, solicitaram ao Governo Norte-Americano assistência em caso de crise grave, estabelecendo uma aliança defensiva. Através da Resolução Vandenberg que autorizava o presidente dos EUA a concluir compromissos externos em tempo de Paz, a criação da NATO/OTAN é impulsionada, acabando, desta forma, os Estados Unidos da América, com a política consagrada por Monroe. A própria Carta das Nações Unidas, no seu Artº. 52º, prevê a existência de “(...) acordos ou organizações regionais, destinados a tratar de assuntos relativos à manutenção da paz e da segurança internacional (...)”, que, de acordo com o Artº. 53º, o Conselho de Segurança pode utilizar “(...) para uma acção coercitiva sob a sua própria autoridade (...)”, legitimando-se, assim, internacionalmente, a criação e emprego da NATO. A NATO, criada a 4 de Abril de 1949, teve como reacção da URSS, juntamente com os seus Estados satélites, a formação de uma organização semelhante, que foi instituída pela assinatura em 14 de Maio de 1955 do Pacto de Varsóvia, institucionalizando-se, deste modo, uma política de equilíbrio de forças entre os dois blocos. Quando das negociações para a assinatura do Tratado do Atlântico Norte, coexistiam várias correntes de opinião e esperanças de incluir território africano na sua zona de defesa. No entanto, o representante do Canadá opôs-se à inclusão de qualquer território que pudesse dar origem a possíveis dificuldades coloniais122. As potências europeias não insistiram nestas intenções, pois sabiam que também o Senado norte-americano não seria favorável, ficando, assim, a amplitude do acordo limitada ao Artº. 4º do Tratado, onde é prevista a consulta entre as partes sempre que, “(...) na opinião de qualquer delas, estiver ameaçada a sua integridade territorial, a sua independência política ou a sua segurança (...)”; ficou, assim,“(...) generalizadamente entendido que o Artigo não dizia respeito a interesses fora da Europa (...)”123. Porém, no Artº. 6º, estão incluídos os Departamentos franceses da Argélia, apesar da zona defensiva da organização ser exclusivamente a norte do Trópico de Câncer.

120 Entrevista do autor com o General Pedro Cardoso em 27 de Maio de 1994. O General Pedro Cardoso desempenhou, entre outros cargos, os de: 1961-1962, Director do Centro de Informação e Turismo de Angola; entre 1968 a 1972, o de Secretário-Geral da Província da Guiné, de 1978 a 1981, o de Chefe do Estado-Maior do Exército, e, actualmente, desempenha as funções de Secretário Geral do Conselho Superior de Informações. 121 Silva Cunha, “A Formação e a Evolução do Direito Internacional”, em “Nação e Defesa” nº. 53, pág. 80, Instituto de Defesa Nacional. 122 Cristopher Coker, “NATO the Warsaw Pact and Africa”, pág. 4, MacMillan, London, 1988. 123 Idem, pág. 6.

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Nos primeiros anos de existência surgiram repetidos apelos para se incluir a África nos planos de contingência ou no perímetro de defesa da Aliança, batendo-se Portugal também pela integração dos seus territórios africanos no respectivo quadro de responsabilidade geo-estratégica. Na reunião da NATO, em Oslo, a 7 de Maio de 1961, Dean Rusk insistiu na necessidade de Portugal “(...) realizar reformas urgentes em África (...)”124 e na necessidade de se fazer uma campanha de propaganda, nos EUA, para esclarecer a opinião pública sobre a política portuguesa em África. Para cumprir esse objectivo, o Governo Português firmou um contrato de um milhão de dólares com a Selvage & Lee, cuja campanha promocional provocou grande polémica nos Estados Unidos da América125. As reformas chegaram, processando-se num âmbito que era pomo de discórdia e fonte de ataques a Portugal no seio da ONU. Foi no Porto, a 28 de Agosto de 1961, que o Ministro do Ultramar, Doutor Adriano Moreira, levou ao conhecimento público o programa de reformas governamentais. Destas, a principal era a abolição do Estatuto do Indigenato126. A este propósito, o Doutor Silva Cunha refere que Adriano Moreira “(...) para aliviar a pressão internacional, à luz das circunstâncias conjunturais, acabou e bem com ele (...)”127. Contudo, dado que os indígenas das Províncias Portuguesas não conseguiam viver sob a alçada da legislação nacional (salvo alguns que já haviam assimilado a cultura europeia), continuavam na observância dos seus usos e costumes. No quadro da Aliança, África era apenas considerada uma área útil para manobras. Porém, o Governo Português acreditava que esta era um complemento da Europa e que a Europa podia ser batida em África128. A manutenção de facilidades aos americanos nos Açores, sem a renovação formal do acordo das Lages, permitiu a Salazar, por relações bilaterais com os EUA, que estes, secretamente, se comprometessem “(...) a que o equipamento militar da NATO pudesse ser utilizado em África (...)”129, e empurrou-os para uma política de moderação em relação a Angola, conseguindo, assim, substituir, nas moções afro-asiáticas, “independência” por “autodeterminação”. Mas, já em finais de 1956, quando o Governo Português pôs à disposição da Aliança as bases de Beja e do Montijo, tinha ficado demonstrado que o interesse português pela Aliança revestia duas formas: a primeira, consistia na procura de apoio para negar o acesso soviético a toda a costa Ocidental de África, onde se incluía o importante aeroporto da ilha do Sal; a segunda, a já referida cedência de bases para tornar, assim, indispensável o seu contributo para a Aliança130. A ascensão de Kennedy veio romper “(...) 15 anos de benevolência protectora dos Estados Unidos e Portugal ia debater-se com as pressões desestabilizadoras da superpotência aliada (...)”131, como a atitude de financiar directamente a UPA e, por outro lado, o retirar de auxílio à divisão portuguesa da Franco Nogueira, “Salazar - A Resistência (1958/1964)”, pág. 262, Ed. Civilização, Lisboa, 1984. José Antunes, “ Os Americanos e Portugal (1961). Kennedy e Salazar: o Leão e a Raposa”, pág. 242, Difusão Cultural, Lisboa, 1992. 126 Decreto-Lei nº. 43893, de 6 de Setembro de 1961, que revogou o anterior Decreto-Lei nº. 39666, de 20 de Maio de 1954; estabelecia a cidadania de todos os portugueses e igualdade entre os portugueses da Metrópole e do Ultramar. 127 Entrevista do autor com o Prof. Doutor Joaquim da Silva Cunha, 14 de Outubro de 1994. Foi Ministro do Ultramar (1963-1973) e da Defesa Nacional (7/11/73 a 25/4/74). Era Professor de Direito Internacional Público e Director do Mestrado em Relações Internacionais na Universidade Portucalense, quando o entrevistei. 128 Franco Nogueira, “Salazar - A Resistência”, pág. 80. 129 José Freire Antunes, “ Os Americanos e Portugal (1961). Kennedy e Salazar: o Leão e a Raposa”, pág. 32. 130 Cristopher Coker, ob. cit., pág. 51. 131 José Freire Antunes, ob. cit., pág. 68. 124 125

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NATO. Além do mais, Kennedy, a 20 de Outubro de 1961, em audiência ao Ministro dos Negócios Estrangeiros Português, declarou considerar o problema de África como fundamental e que os EUA apoiariam a autodeterminação, por forma a impedir que o continente africano caísse em domínio soviético. No entanto Portugal, no decurso do conflito ultramarino, contou sempre com o apoio de elementos da Aliança Atlântica132, como a França e a Alemanha, e mesmo fora desta, a República da África do Sul, assumindo estes o desgaste político internacional pelo apoio prestado. Todavia, mesmo que o auxílio não fosse directo, Portugal procurava persuadir os seus aliados a, pelo menos, “(...) fazerem-se de cegos quanto ao uso de armamento da NATO na área, apesar do explícito assegurar de que apenas seria utilizado na Europa (...)”133. Este apoio por vezes traduzia-se na venda de armamento e equipamento, efectuada apesar do embargo norte-americano134. Se os europeus encaravam o continente africano como um complemento económico da Europa e a salvaguarda militar de todo o seu flanco meridional, os norte-americanos encaravam-no como possível mercado para colocação dos seus produtos e fornecedor de matérias primas; persistia a ideia de que, onde fosse eliminada a influência europeia, ganhar-se-ia um novo campo de influência norteamericana135. Para a URSS, a África apareceu como indispensável na corrida para o domínio do mundo136, pelo envolvimento da Europa. No Congresso dos Povos Oprimidos, realizado em Baku, no ano de 1920, a URSS começou a manifestar preocupação pela África e pela Ásia, marcando assim aquilo que podemos considerar “(...) o ponto de partida para um programa de infiltração e de penetração (...)”137, para manipulação daquilo que, no tabuleiro de jogo mundial dos grandes blocos, viriam a ser periferias de desempate138, retomando assim a URSS a velha ambição czarista de conquista dos mares quentes.

132 O General António de Spínola, no seu livro “Portugal e o Futuro”, distingue quanto às posições tomadas relativamente à política portuguesa, em África, três grupos de países da NATO “(...) a) os que discordam da política portuguesa e a contrariam (...) b) os indiferentes; c) os que sem apoio expresso em público ou apenas com apoio muito discreto, concedem no entanto, no plano bilateral, substancial auxílio (...)”, pág. 342, Livraria Arcádia, Lisboa, 3ª ed., 1974. 133 Cristopher Coker, ob. cit., pág. 53. O General Silvério Marques diz a este respeito: “(...) Embora publicamente não fosse ostensivo, era decidido, no plano bilateral, o apoio que nos era dado pela França e pela Alemanha Federal: fornecimento de armamento, sem querer saber do seu destino e uso; facilidades de crédito; apoio político e diplomático junto de outros países (Designadamente os próprios Estados Unidos) (...)”. Em “África - Vitória Traída”, pág. 95, Ed. Intervenção, Braga, Lisboa, 1977. Assim, a Alemanha, impedida de cumprir o contrato escrito celebrado com Portugal para fornecimento de aviões F-86, pelo embargo dos EUA, adquiriu em Itália uma partida de aviões de combate equivalentes, completamente novos, e forneceu-os a preço inferior ao ajustado para os primeiros, os quais seriam fornecidos em segunda mão. Forneceu ainda, a troco do uso da base de Beja e de um campo de treino em Santa Margarida, três milhões de dólares em assistência militar, com a reserva de que o material não seria utilizado em África (mas os Fiat G-91 sempre foram utilizados), em Cristopher Coker, ob. cit., pág. 61. A Alemanha fornecia ainda tecnologia diversificada. A França forneceu sempre os helicópteros Allouette, e conjuntamente com a Inglaterra vendia os helicópteros Puma. A Bélgica e a Itália vendiam sobressalentes e a Espanha fornecia os aviões Aviocar. Adquiria ainda cobre que, posteriormente, vendia a Portugal transformado em copelas para as munições. 134 No dia 21 de Agosto de 1961, Kennedy, em memorandum, aprova a política de proibição de venda de material a Portugal. A 9 de Julho, os EUA, a URSS e mais sete membros do Conselho de Segurança votam a Resolução sobre o caso de Angola. Em 19 de Junho, a Noruega anuncia recusa de licença de venda de armas a Portugal. Em 30 de Janeiro de 1962, o Conselho de Segurança, pela Resolução 1742, recomendou que os Estados Membros da ONU se abstivessem de conceder a Portugal qualquer meio utilizável para repressão do povo angolano e, pela Resolução 1807 de 4 de Dezembro de 1962, não lhe fornecessem armas e equipamento militar. 135 Silva Cunha, “O Ultramar, a Nação e o 25 de Abril”, pág. 11. 136 Parece-nos importante salientar que o valor dado pela URSS a África era já conhecido pelos Portugueses do tempo de Albuquerque, uma vez que já sabiam que quem dominasse Marrocos, a Guiné e Adém, dominava a África. 137 Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (19611974), 1º volume, Enquadramento Geral”, pág. 39. 138 Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 213.

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O comunismo de controlo soviético procurou então introduzir em África toda a sua influência, aliando-se aos movimentos separatistas das colónias, em nome do movimento proletário internacional, passando, após Bandung, a dispor de um instrumento eficaz. Neste contexto, Bulganine e Kruchtchev deslocaram-se, de 18 de Novembro a 21 de Dezembro de 1955, aos países do Sudoeste asiático, por forma a consagrarem a sua adesão aos princípios da Conferência de Bandung. A questão do Suez, em 1956, o apoio dado à Revolução Argelina e a realização da 1ª. Conferência de Solidariedade Afro-Asiática, no Cairo, em Dezembro de 1957, podem ser considerados como os primeiros marcos da caminhada russa para o Sul, num movimento envolvente por Oriente e Ocidente do continente africano, tendo como principais pontos de apoio o Ghana e a República da Guiné, na costa ocidental, e a Somália, na costa oriental. Este movimento processou-se ao ritmo do despertar dos nacionalismos africanos e foi condicionado pelos interesses das outras potências. A estratégia maximalista da URSS para a «laqueação» dos domínios vitais da Europa Ocidental consistia em: - Obter o controlo das zonas de passagem entre as áreas N e S do Atlântico, visando, em última análise, atingir os EUA, a partir de Cuba, ou fixar os EUA, a partir da América Central, e, desta forma, desviar as atenções norte-americanas da Europa e da África; - Garantir a presença directa (ou interposta), no Próximo, Médio e Extremo Oriente e o controlo da Rota do Petróleo, bem como todo o restante movimento comercial marítimo com passagem pelo Cabo da Boa Esperança; - Obter o já referido acesso e respectivo controlo de matérias-primas das quais relevavam as afins da alta tecnologia bélica; - O accionamento dos aparelhos quinta-colunistas formais, ou inocentemente utilizados, exercendo prática constante da manipulação dos instrumentos de luta pela aquisição e domínio do poder político139. No que diz respeito a África, visava dividi-la em África do Norte e África Negra, para as poder conquistar em separado. Para o conseguir, penetrava em direcção ao Golfo da Guiné, conjugando esta com duas outras penetrações: uma em direcção ao Atlântico pelo eixo Cairo-Tripoli-Tunis-ArgelRabat, e uma segunda, a Leste, em direcção a Moçambique, pelo eixo Cartun-Adis Abeba-NairobiBeira140. A União Soviética, com a sua estratégia maximalista e indirecta para domínio do Terceiro Mundo, procurou suplantar não só a influência ocidental, mas também conter a influência chinesa. O seu processo de penetração em todo o Terceiro Mundo é reflexo dos seus interesses gerais sobre o plano ideológico, económico e de estratégia militar, adoptando características, consoante o lugar geográfico a que se dedica. A sua influência estendeu-se, de forma activa, à maioria dos territórios compreendidos entre a Argélia e a Índia, exercendo alguma influência em territórios da África Negra e da América Latina. No Sudeste-Asiático a sua actuação ficou reduzida ao Vietname do Norte, dado que, nesta região, prevaleceu a influência da sua rival, a China Popular.

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Idem, pág. 219. Hermes de Araújo Oliveira, “A Guerra Revolucionária”, pág. 43, Ministério do Exército, Lisboa, 1961.

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O primeiro processo de penetração será o ideológico, visto que os seus dirigentes preferiam sustentar os nacionalismos progressistas à acção violenta preconizada por Pequim141. A propaganda soviética, de acordo com as circunstâncias, adaptava a forma de uma ajuda cultural, oficial ou clandestina142, visava uma penetração a longo prazo, doutrinando os futuros líderes nas suas Universidades. O segundo processo utilizado consistia na ajuda económica e técnica: procurava colocar nestes mercados os seus produtos (pouco competitivos, no mercado ocidental). Encoberta pela assistência técnica, tentava substituir as companhias ocidentais e, assim, alcançar o controlo sobre a produção e comercialização dos recursos naturais, nomeadamente, dos hidrocarbonetos143. A terceira forma de penetração baseava-se na ajuda militar, feita normalmente através de acordos bilaterais e secretos que podiam ir desde a venda de material à formação de pessoal. Desde 1955 até ao final de 1970, “(...) aproximadamente 7000 milhões de dólares foram dispensados pela URSS a favor de países do Terceiro Mundo (...)”144. Podemos considerar, quanto à África Negra, que a política soviética foi lenta, cautelosa e oportunista, uma vez que a URSS “(...) não concebia a África a máxima prioridade, era menos importante para ela do que outras áreas do Terceiro Mundo, como o Médio-Oriente e o sub-continente Indiano (...)”145. No entanto, os soviéticos aproveitaram todas as oportunidades surgidas para obter influência e demonstrar a sua posição de superpotência. A URSS, apoiada pelos seus satélites, aos quais cedeu muitas vezes primazia neste movimento de penetração, viu abrir-se uma nova frente de competição política, económica e diplomática, quer com as potências ocidentais quer com a China Popular. Com esta última, a rivalidade agravava-se à medida que o diferendo sino-soviético se ia intensificando. Estes condicionalismos levaram a URSS a comprometer cada vez mais os seus Estados satélites numa penetração ao sul do Equador, numa tentativa de contrariar a penetração chinesa; daí, o incremento da ajuda política, económica, militar e cultural feita pelos seus satélites aos países de África, começando pela Argélia, Egipto, atingindo a Zâmbia e a República Malgaxe, e o desejo de

“La Pénétration Soviétique dans le Tiers Monde”, Secretariat Général de la Défense Nationale, Centre d´Explotation du Renseignement, Paris le 24 de Mai 1971, Diffusion Restreinte. 142 Segundo o documento, “La Pénétration Soviétique dans le Tiers Monde”, do Sécrétariat Général de la Défense Nationale, a propaganda soviética assentava, essencialmente sobre três temas: O socialismo era a única via face ao subdesenvolvimento; a ajuda soviética aos países em vias de desenvolvimento reforçava a sua independência económica e política, ao passo que a ajuda Ocidental/Capitalista aumentava a sua dependência; a URSS era pacifista e condenava o racismo. Esta propaganda apoiava-se em institutos especializados da Universidade de Moscovo, centros de amizade e culturais espalhados pelo mundo. As representações diplomáticas distribuíam gratuitamente livros, jornais, revistas. As estações emissoras de Moscovo e Baku, Erevan, Tachkent e Douchanbe difundiam programas para os países em vias de desenvolvimento. Como visava sobretudo atingir a juventude, possuía ainda centros de acolhimento de estudantes, como a Universidade Patrice Lumunba em Moscovo. 143 A ajuda técnica e económica da URSS aos países do Terceiro Mundo dependia de três factores: 1º . A assinatura de acordos de comércio e cooperação; 2º. A oferta de créditos; 3º. A realização de projectos técnicos. De acordo com o documento “La Pénétration Soviétique dans le Tiers Monde”, Sécrétariat Général de la Défense Nationale, Centre d´Exploitation du Renseignement, Paris le 24 de Mai 1971, Diffusion Restreinte, entre 1954-1969, a URSS concedeu a 38 países um crédito de “(...) 6800 milhões de dólares dos quais só 40% a 50% foram utilizados (...)”. No entanto, este crédito servia somente para financiar a compra de mercadorias russas ou para programas determinados de equipamento em comum; o crédito era concedido a longo prazo e com baixa taxa de juro. Em 1970 o número de técnicos Russos em todo o Terceiro Mundo rondava os 18000. O apoio a projectos visava sobretudo obras grandiosas, como o projecto de irrigação do Egipto ou a barragem de Assouan, no Alto Nilo. 144 “La Pénétration Soviétique dans le Tiers Monde”, Secretariat Général de la Défense Nationale, Centre d´Explotation du Renseignement, Paris, le 24 de Mai 1971, Diffusion Restreinte. 145 “The Soviet Penetration in Africa South of the Sahara”, Background Brief, 13 November 1973, Secret. 141

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antecipação, no reconhecimento oficial dos novos Estados Africanos, com a consequente penetração diplomática. Quanto ao caso português, não podemos esquecer que Kruchtchev declarou que apoiava a rebelião anti-portuguesa, considerando-a mesmo como uma guerra sagrada146. Foi no contexto do despique para a dominação mundial entre as superpotências, baseadas no anticolonialismo, com a pretensão de alargar as respectivas zonas de influência pelo esboroar do Euromundo que, de acordo com Gonçalves Martins, “(...) a totalidade dos restos do Império Português foi vítima da transformação do mundo numa única zona de confluência dos poderes políticos das superpotências e, em particular, da competição e da luta que, entre si, travavam para o seu domínio exclusivo (...)”147. Na acção contra a presença europeia em África, em breve se veio juntar à URSS e aos EUA, a nova China de Mao Tsé Tung. Para esta potência em franca ascensão, que ambicionava influência internacional, a África surgiu como zona de expansão e como um futuro terreno para a colocação dos seus excedentes demográficos. Mas a China apresentava algumas vantagens relativamente às outras potências: o povo de cor amarela era considerado vítima do colonialismo, pertencente como os africanos ao Terceiro Mundo, oprimido e explorado pela raça branca148. A Conferência de Bandung marca o regresso da China Popular ao primeiro plano da cena Asiática. Chou En-Lai, então Ministro dos Negócios Estrangeiros, aproveitando-se da ausência da URSS, apresentou-se como o expoente máximo dos povos oprimidos, disponibilizando-se para apoiar os povos africanos no combate ao imperialismo e ao capitalismo149. Chou En-Lai marcou a entrada oficial da China Popular na cena africana, num discurso proferido em 1964, em Mogadíscio, tendo então afirmado: “(...) existe hoje em África uma excelente situação revolucionária (...)”150. Dentro do quadro das relações existentes entre a China e a África Negra, podemos destacar acordos comerciais, empréstimos ou a realização de projectos com interesse151. De 1959 a 1964, o montante de empréstimos chineses (estimados, mas não realizados na totalidade) atingiu os 340 milhões de dólares152. Após o golpe de estado em Zanzibar, em 12 de Janeiro de 1964, Pequim passou a desempenhar o papel de líder incontestado dos movimentos de libertação em África, estreitando as relações diplomáticas com todos os Estados que o desejavam, nomeadamente, aos das colónias portuguesas e da África do Sul. José Freire Antunes, “ Os Americanos e Portugal (1961). Kennedy e Salazar: o Leão e a Raposa”, pág. 247. Manuel Gonçalves Martins, “A Descolonização Portuguesa (as responsabilidades)”, pág. 136. 148 Silva Cunha, “O Ultramar, a Nação e o 25 de Abril”, pág. 12. 149 Général Jean Marchand, “La Chine Populaire et l´Afrique Noir”, em “Révue Militaire Générale”, pág. 420, Mars 1973. 150 “Chinese Penetration in Africa South of the Sahara”, Background Brief, 14 December 1973, Secret. 151 Em 21 de Janeiro de 1964, em Bamako, Chou En-Lai, num discurso, definiu os princípios dominantes da cooperação: o auxílio nunca deveria ser sob a forma de esmola, mas sim uma colaboração e um motivo de troca recíproca; seriam prioritários os empreendimentos que necessitassem de um investimento mínimo com resultados de curto prazo. 152 De 1960 a 1969, o auxílio chinês foi apresentado como sendo na ordem dos 900 milhões de dólares. O processo, contudo, era demorado e a ajuda real não ultrapassou os 400 a 500 milhões de dólares. Deste auxílio, 90% eram créditos e 10% dádivas. Os créditos apresentavam-se sob a forma de empréstimos e de assistência em material e pessoal. Os empréstimos são a longo prazo e a 2 ou 3%, reembolsáveis em 10 ou 15 anos, após um período de carência, que pode durar 10 anos. Se houvesse reembolso, estes eram feitos em mercadorias do país; mas, como contrapartida, os empréstimos obrigavam à compra de matérias primas e de mercadorias chinesas. Em, Direcção Geral 146 147

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Capítulo II

OS MOVIMENTOS INDEPENDENTISTAS NA ÁFRICA NEGRA E EM ESPECIAL NA GUINÉ PORTUGUESA 1. - Conceitos Entendemos começar este capítulo por uma explicitação de alguns conceitos (sem pretendermos ser exaustivos) como: subversão, guerra subversiva, guerra de guerrilha, guerra revolucionária, guerra psicológica; conceitos estes que levantam algumas dúvidas no conhecimento geral. A subversão, segundo Jorge de Miranda, é todo o “(...) ataque por forma insidiosa ou violenta, à ordem política e social estabelecida, tendo em vista substituí-la, a médio ou longo prazo, por outra (...)”153. Para o francês Raymond Aron, esta “(...) consiste à susciter ou attisser le mécontentement des peuples, à exciter les masses contre les gouvernements, à provoquer ou à exploiter les émeutes, rébelions ou révoltes afin d´affaiblir les Etats rivaux et de reprendre certaines institutions plus encore que certaines idées (...)”154. Para Roger Muchielli, esta é “(...) une technique d´affaiblissement du pouvoir et de démoralisation des citoyens (...)”155. Todas elas referem uma alteração da ordem e do Poder ou a sua conquista. Contudo, entendemos que nenhum analista consegue ser tão abrangente como Amaro Monteiro ao defini-la como “(...) o exercício de meios psicológicos assentes sobre valores sociomorais perfilhados pelas maiorias, visando, em geral por forma predominante e prolongadamente não-ostensiva, a queda ou controlo global ou parcial do Poder por minorias, num território ou em outro objectivo a atingir, acompanhando sindromatologias pré-revolucionárias (...)”156; sendo, por isso, esta a definição adoptada por nós. Por vezes, confunde-se o conceito de guerra subversiva com o de subversão. Mas nem sempre a subversão, como aqui é definida e adoptada por nós, conduz à guerra subversiva. Esta última, segundo Abel Cabral Couto, é: “(...) a prossecução da política de um grupo político por todos os meios, no interior de um dado território, com a adesão e participação activa de parte da população desse território (...)”157. No entanto, a subversão antecede e acompanha a guerra subversiva; logo, consideramos a guerra subversiva igual a subversão armada.

de Obras Públicas e Comunicações do Ministério do Ultramar, Grupo de Trabalho dos Caminhos de Ferro, 30 de Dezembro de 1970, Secreto. 153 Jorge de Miranda, “Subversão”, em “ Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura”, Ed. Verbo ,vol. 17, pág. 751. 154 Raymond Aron, “Paix et Guerre Entre les Nations”, pág. 517, Calmann-Lévy, Collection “Liberté de L´esprit”, Paris, 1988. 155 Roger Muchielli, “La Subversion”, pág. 9, CLC, Paris, 1976. 156 Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 22. 157 Abel Cabral Couto, “Elementos de Estratégia - Apontamentos para um Curso”, vol. II, pág. 211, Instituto de Altos Estudos Militares, Lisboa, 1989. Os manuais militares entendem-na como a “(...) luta conduzida no interior de um dado território, por uma parte dos seus habitantes, ajudados e reforçados ou não do exterior, contra as autoridades de direito ou de facto estabelecidas, com a finalidade de lhes retirar o controlo desse território ou, pelo menos, de paralisar a sua acção (...)”. Em Regulamento “O Exército na guerra subversiva”, Generalidades, pág. 1, Estado-Maior do Exército, Lisboa, 1966.

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A expressão guerra revolucionária também se confunde com a de guerra subversiva. Todavia, além dos conceitos já inseridos no conteúdo sobre a guerra subversiva, esta integra, para Franco Pinheiro, mais três características: “(...) 1.

É conduzida nos pressupostos do marxismo-leninismo;

2.

Pretende, em última análise, a implantação do comunismo;

3.

Utiliza uma amplitude de meios e processos, que vão da guerra convencional à guerra

subversiva, ou simples aspectos de guerra fria, ou mesmo, o mero esquema de agitação/propaganda (...)”.158 Segundo Amaro Monteiro, a estas podemos acrescentar uma quarta característica: “(...) 4. Pratica o desenvolvimento lento, baseando a sua estratégia na guerra prolongada e no esgotamento da ordem constituída (...)”159. Apesar da destrinça realizada, frisamos que nem todas as guerras subversivas são revolucionárias, mas todas as guerras revolucionárias são subversivas. O domínio das primeiras é mais vasto do que o das segundas, dado que a acção subversiva, no projecto de tomada do Poder, se pode acomodar a qualquer ideologia, logo, também, à ideologia marxista/leninista e colocar-se, desta forma, “(...) ao serviço de qualquer conflito contra o Estado (...)”160. Para autores como Claude Delmas161, que não identificam a guerra revolucionária com a implantação do comunismo, aquela visa, pelo menos, uma nova ordem político-social. O conceito de guerrilha162 corresponde a “(...) uma táctica adaptada às possibilidades psicológicas, geográficas e políticas, a uma relação de forças, (...)”163, que emprega determinado tipo de meios e processos com um carácter restrito, na realização de operações militares. A guerra subversiva trava-se,

158 Joaquim Franco Pinheiro, “Natureza e Fundamentos da Guerra Subversiva”, em “Subversão e ContraSubversão”, pág. 21, Estudos de Ciências Políticas e Sociais, nº. 62, Junta de Investigação do Ultramar, Lisboa, 1963. Outros autores como Abel Cabral Couto, em op. cit., pág. 214, e a Comissão para o Estudo das Campanhas de África, na obra “Subsídios para a Doutrina Aplicada nas Campanhas de África (1961-1974)”, pág. 50, Estado-Maior do Exército, Lisboa, 1990, defendem este pressuposto. 159 Fernando Amaro Monteiro, “A Guerra em Moçambique e na Guiné - Técnicas de Accionamento de Massas”, pág. 34. 160 Roger Muchielli, ob. cit., pág. 56. No entanto, a obra da Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Subsídios para o Estudo da Doutrina Aplicada nas Campanhas de África (1961-1974)”, apresenta um conceito do qual discordamos, e mesmo contrário ao defendido por nós. Entende a guerra revolucionária como mais abrangente do que a guerra subversiva, uma vez que defende que a guerra revolucionária pode “(...) compreender ou utilizar outras formas de guerra, sendo definida com maior precisão, dado estar ligada a uma concepção do Mundo e a técnicas particulares (...)”, pág. 52. A este propósito Sousa Lara refere que a guerra revolucionária se desenvolve a nível internacional e “(...) resulta normalmente da criação de um ou mais grupos, formados dentro das fronteiras de um Estado e à margem da sua lei que, pela via das armas, tenta substituir, através de uma pluralidade de meios de que disponha, o governo e o seu poder na totalidade ou numa parte do respectivo território (...)”. Em “A Subversão do Estado”, pág. 192, Universidade Técnica de Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Lisboa, 1987. 161 Claude Delmas, “A Guerra Revolucionária”, págs. 19 a 21, Publicações Europa-América, Colecção Saber, Lisboa, 1975. 162 Guerrilha, etimologicamente, significa pequena guerra. Considera-se que já César enfrentara a luta de guerrilhas nas Gálias e na Grã-Bretanha. A divulgação do termo ocorre a partir da luta dos guerrilheiros espanhóis contra os exércitos invasores de Napoleão I. Quanto a Portugal, ficaram conhecidas as “guerrilhas” do Remexido do Algarve, dos marçais de Foz Côa, entre outros. Veja-se, sobre o tema: Loureiro dos Santos, “Apontamentos de História para Militares - Evolução dos Sistemas de Coacção - Apontamentos para a História da Subversão em Portugal”, pág. 153 a 175, Instituto de Altos Estudos Militares, Lisboa, 1985. 163 Claude Delmas, ob. cit., págs. 19 a 21.

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em regra, no plano militar, sob a forma de guerrilhas. Porém, podem existir guerras subversivas sem operações de guerrilha164. A guerra psicológica serve-se da arma psicológica, ou seja, utiliza um conjunto de processos ou meios que se destinam a influenciar as crenças, os sentimentos e as opiniões da população, das autoridades e das forças armadas, por forma a condicionar e manipular, assim, o seu comportamento. A sua utilização será, logicamente, complementar a qualquer outro tipo de guerra165. É oportuno esclarecer que, daqui em diante, referiremos, indistintamente, guerra subversiva e guerra revolucionária; para o tema em análise, interessa-nos sobretudo o segundo conceito, pois a guerra travada no antigo Ultramar Português era subversiva e também revolucionária. 2. - O desenvolvimento da subversão Baseada na exploração de problemas ou contradições evidentes de natureza social, ideológica, política e económica, susceptíveis de conquistar a adesão de variados sectores da população, esta técnica de assalto ou de corrosão dos poderes formais, para cercear a capacidade de reacção, diminuir e/ou desgastar e pôr em causa o Poder em exercício, mas nem sempre visando a sua tomada, pode surgir em qualquer tipo de sociedade e apresentar-se como uma proposta e/ou alternativa para a resolução de problemas ou contradições. Partindo do princípio de que as sociedades dos países subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento são aquelas onde surgem as maiores contradições internas, seriam estas que, face a uma primeira observação, se encontrariam particularmente vulneráveis à subversão de qualquer sinal e procedência; porém, são as democracias ocidentais que se encontram mais atreitas ao fenómeno. Porquê a especial vulnerabilidade desses regimes? Se, por um lado, não ignoram “(...) as intenções revolucionárias daqueles agrupamentos para os quais a referência ao ideal e às realidades democráticas mais não é do que um pretexto para a subversão (...)”166, por outro lado, neles, as reacções à violência limitam-se por horizonte ético, cuja violação afectaria um conceito que moldou o próprio Estado. Os tempos de resposta são lentos, na medida em que os aparelhos jurídicos o são, por escrúpulo ou força intrínseca (como se queira ver), “(...) as limitações na montagem e funcionamento de dispositivos preventivos, as restrições à instalação (assumida) dos repressivos, o fosso tradicional entre pensamento político e pensamento estratégico, a ausência de estruturas de propaganda e contra-propaganda, a vincada dualidade civil/militar, não capacitam as democracias ocidentais à contra-subversão, em termos de isolar eventuais grupos, desencadear, se preciso, «operação verdade» (para obtenção de crédito por parte da opinião pública),

164 Abel Cabral Couto, ob. cit., pág. 213. Veja-se sobre as características da guerrilha: Sousa Lara, ob. cit., pág. 192 a 197, e Roger Muchielli, ob. cit., pág. 65. 165 Um dos processos que utiliza será a Acção Psicológica, que o Regulamento “O Exército na Guerra SubversivaIII Acção Psicológica” define como: “(...) Acção que consiste na aplicação de um conjunto de diversas medidas, devidamente coordenadas, destinadas a influenciar as opiniões, os sentimentos, as crenças e, portanto, as atitudes e o comportamento dos meios amigos, neutros e adversos, com a finalidade de : - Fortificar a determinação e o espírito combativo dos meios amigos; - Esclarecer a opinião de uns e outros e contrariar a influência adversa sobre eles; - Modificar a actividade dos meios adversos num sentido favorável aos objectivos a alcançar (...)”, pág. 1, Lisboa, 1966. 166 Claude Delmas, ob. cit., pág. 18.

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evitar a situação de «tribunal popular» (onde o Poder aparece réu face à colectividade) e implementar, com eficácia, vigilâncias (milícias, por exemplo) locais (...)”167. Deste modo, as democracias liberais tornam-se vítimas dos seus próprios conceitos de liberdade sem, contudo, poderem renunciar a eles168, pois, conhecedoras da ameaça subversiva/revolucionária, só se poderiam preparar contra ela, “(...) reorganizando-se segundo princípios totalitários (...)”169, sendo, porém, a sua existência justificada por um ideal contrário, o ideal democrático. O facto de existirem problemas reais e contradições em determinadas sociedades não é sinónimo da existência de subversão, embora aqueles sejam propícios a esta. É no entanto necessário um agente catalisador que desperte as consciências para tais problemas, ampliando-os se preciso, vencendo a tendência das massas para o conformismo e outros factores de inércia. Porém, devemos distinguir entre causas e factores favoráveis170. São bom exemplo de guerra subversiva/revolucionária, entre as múltiplas e encadeadas situações de afrontamento, ocorridas após o final da II Guerra Mundial, os conflitos em África, como os de Angola, Moçambique e da Guiné. Estes conflitos (no conjunto dos muitos anos, que em qualquer dos casos antecedeu as partes envolvidas, e mesmo as ultrapassou)171 são manifestações divergentes da mesma realidade que já apelidámos de regionais ou “por procuração”, apenas porque relativamente circunscritos em termos geográficos, ou porque as grandes potências se defrontam interpostamente. Naqueles territórios verificavam-se grandes diferenças entre as populações de origem ou de educação europeia e a autóctone, com um nível de progresso muito inferior e diminutas perspectivas da sua melhoria172. Diminuta era também a percentagem de indivíduos assimilados. No caso particular da Guiné Portuguesa, o desencadear da insurreição e o posterior desenvolvimento da luta foi facilitado por alguns factores, como, por exemplo: “(...) Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 22. Claude Delmas, ob. cit., pág. 18. 169 Idem, pág. 19. 170 Parece-nos oportuno esquematizar as sindromatologias mais significativas que acompanham e propiciam o exercício da subversão, extraídos da análise de várias situações, que precederam e/ou acompanharam revoluções. Os referidos síndromas são generalizadamente: “(...) 1) O sentimento público de que as estruturas existentes limitam a actividade económica, a circulação social ou um objectivo colectivo; 2) A deserção, o enquistamento, ou a agressividade, face ao Poder dos intelectuais, em manifestações cuja densidade lembra o fenómeno dos «glóbulos brancos» numa situação de infecção; 3) Os surtos invocadamente nacionalistas, traduzidos mormente na identificação do regime a derrubar com um domínio estrangeiro real ou alegado; 4) O crescente complexo de culpa nas classes dirigentes; 5) A anorexia ou o cepticismo delegante das massas, seguidos de afloramentos progressivos de adesão à ideologia em movimento e de consequentes perturbações da ordem pública; 6) Perdendo o Poder, o controlo das Forças Armadas ou Militarizadas, por má gestão ou por aquelas se legitimarem a interpretá-lo, perante os síndromas anteriores, criam-se as condições para uma erupção pretoriana e/ou para uma onda de militância revolucionária que poderá concorrer com a primeira (senão submergi-la por milícias populares); 7) O Poder já na situação de «réu», perante a consciência pública (situação de «tribunal popular»), entra em crise aberta, recorrendo, esporádica ou sistematicamente ao uso da força, com o que agrava o panorama referido em 6); 8) A activação de «grupos chave» pela subversão, normalmente em simultâneo com a actividade de guerrilhas que recorrem a santuários exteriores e/ou entram em combate urbano, ainda mais exaurindo as forças regulares; 9) O estado político-social de «catarsis» colectiva é flagrante, com a legitimação (táctica ou explícita) da ideologia revolucionária e com o eventual acompanhamento de «terror mudo»; 10) A tomada formal do Poder e a manipulação técnica das massas (...)”. Escolhemos os supra referidos síndromas por considerarmos que neles encontramos denominadores generalizáveis mais explícitos e completos do que os referidos por outros autores. Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 25. 171 Carl Von Clausewitz em “Da Guerra” referiu: “(...) A guerra não pertence ao domínio das artes e das ciências, mas sim ao da existência social. Ela constitui um conflito de grandes interesses, solucionada através do sangue (...)” e por isso seria melhor compará-la, “(...) mais do que a qualquer arte, ao comércio, que também é um conflito de interesses e de actividades humanas (...)”, pág. 164, Ed. Perspectivas e Realidades, Lisboa, 1976. 167 168

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- Grande densidade populacional (excepto no sul) e fraca estrutura administrativa enquadrante; - Enorme variedade de grupos étnicos, bem diferenciados e independentes e com dialectos próprios; - Rede de vias de comunicação muito pobre e escassa; - Arborização densa na maior parte do território; - Densa rede de rios e canais, dificultando extraordinariamente a movimentação por terra e tornando as deslocações por via aquática morosas; - Marés, que fazem sentir os seus efeitos não apenas no litoral mas muito para o interior, ao longo dos cursos de água, criando importantes problemas diários para deslocações, quer em terra quer nos rios; - Clima depauperante e com riscos de doenças tropicais; - Recursos locais escassos, sobretudo para alimentação; - Território pequeno (32.000 Km2) e extensa fronteira terrestre, permitindo rápidas incursões e a fuga para os países vizinhos apoiantes (...)”173. Estes e outros factores foram convenientemente explorados pelos movimentos independentistas. A guerra revolucionária, como outra qualquer, visa resolver pela violência um problema político174, neste caso consequente de uma legitimidade posta em causa. No século XIX, Clausewitz definia a guerra como não sendo somente um acto político, “(...) mas um verdadeiro instrumento político, uma continuação das relações políticas, uma realização destas por outros meios (...)”175, e acrescenta que “(...) é apenas uma parte das relações políticas e, por conseguinte, de modo algum qualquer coisa de independente (...)”176. Contudo, a guerra em si “(...) não faz cessar essas relações políticas (...)”177. Nisto, Lenine, Mao, Giap e Debray recortavam Clausewitz, ou seja, a guerra, aqui revolucionária, recorre a outros meios, para além dos políticos, para alcançar o objectivo político pretendido. A guerra, que durante muito tempo foi encarada como actividade do foro exclusivo dos militares, a partir de 1914-18 aponta para um carácter global, abrangendo outros aspectos. A evolução é mais nítida a partir de 1939-45, traduzindo-se na “(...) passagem de uma estratégia exclusivamente militar a uma estratégia global (...)”178, e, ao nível das Informações, por exemplo, passou-se do âmbito estratégicomilitar para o estratégico-global. Nesta ordem de ideias, a estratégia continuaria a ser como Clausewitz a viu: “(...) a teoria relativa à utilização dos recontros ao serviço da guerra (...)”179, regulando quantos haveriam de desenrolar-se em cada campanha. Deveriam apenas alterar-se o sentido e latitude dos conceitos como «recontros» e «campanha». Uma vez feito o ajuste, o esquema de raciocínio mantém-se actualizado, tal como o de Mao: “(...) estudar as leis de condução da guerra como um todo, é tarefa da 172 Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Subsídios para a Doutrina Aplicada nas Campanhas de África (1961-1974)”, pág. 53. 173 Idem, “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), 1º volume, Enquadramento Geral”, pág. 119. 174 Abel Cabral Couto, ob. cit., pág. 214. 175 Carl Von Clausewitz, ob. cit., pág. 87. 176 Idem, pág. 737. 177 Idem, ibidem. 178 Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (19611974), 1º volume, Enquadramento Geral”, pág. 352.

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estratégia (...)”, enquanto: “(...) estudar as leis da condução das acções militares, como parte de uma guerra, é tarefa da ciência das campanhas ou da táctica (...)”180. A guerra subversiva/revolucionária desenvolve-se por fases de limites mal definidos, frequentemente indistinguíveis, e de implantação, que pode não ser simultânea na totalidade do território-alvo, procurando, em todo o caso, respeitar a lógica do esquema e evitar ser detida na transição do estado pré-insurreccional para o insurreccional. Estas fases têm um valor relativo, pelo que os conflitos devem ser estudados casuisticamente. Em princípio distinguem-se 2 períodos e 5 fases181:

Período pré-insurreccional 1- Fase preparatória - É uma fase de estudo, de planificação e organização embrionária em segredo. O movimento subversivo deve compreender um órgão de direcção e alguns elementos para enquadrar a população, outros para ligações e recolha de informações, e outros para acções de agitação/propaganda. 2- Fase de agitação ou criação do ambiente subversivo - Clandestina, mas já não de segredo (uma vez que os resultados se tornam visíveis). Desenvolvem-se intensas acções de propaganda, fomentam-se perturbações da ordem e clima de medo, visando a desmoralização do Poder, o descrédito da autoridade, “(...) a ruptura aberta no tecido social, através da organização de contradições entre as hierarquias estabelecidas e da constituição de forças polarizadoras paralelas; o facto consumado do levantamento, com ou sem o recurso ao confronto armado, mas procurando, na hipótese afirmativa, prolongar as situações de «contacto» das Forças Armadas regulares com a massa popular, para naquelas criar a “má consciência” e, por fim, a desobediência aos altos comandos e seu consequente colapso como aconteceu no Irão imperial (...)”182. A organização é reforçada, os sistemas de infiltração e de informação são consolidados. O “status quo” encontra aqui o seu período crítico: ou responde, eficientemente, ou já não controla a evolução dos acontecimentos na generalidade, apesar de os poder controlar, pontualmente, em determinados aspectos ou situações. Para o caso do mundo muçulmano, lembramos que a agitação e o levantamento popular se encontram virtualmente caucionados, nos meios onde a violência se instala, por passagens concretas do Alcorão183, integradas no sistema cultural geral. Período Insurreccional

Carl Von Clausewitz, ob. cit., pág. 138. Mao Tse Tung, “Seis Artigos Militares do Presidente Mao Tse Tung”, pág. 9, Edições em línguas estrangeiras, Pequim, 1972. 181 Podemos encontrar detalhes sobre o assunto em várias publicações militares e civis; destacamos: “Subsídios para o Estudo da Doutrina Aplicada nas Campanhas de África (1961-1974)”, págs. 76 a 80; “A Guerra em Moçambique e na Guiné - Técnicas de Accionamento de Massas”, pág. 34; “Elementos de Estratégia - Apontamentos Para um Curso”, vol. II, pág. 257 e 258; Hermes de Oliveira Araújo, “Guerra Revolucionária”, pág. 127 a 136. 182 Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 24. 183 Alcorão, s.2, v. 191, v. 193; s.4, v. 89; s.8, v.39, v.45, v.57, v.65, v.66, v.67; s.9, v.5. 179 180

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1- Fase de terrorismo e de guerrilha - A guerrilha, que «Che», tal como Mao e Giap, consideravam como uma simples fase da guerra, que por si só não conduz à vitória184, mas que “(...) aspira à guerra total (...) ao combinar todas as formas de luta em todos os pontos do território (...)”185 é, para o General Giap, “(...) a guerra das massas populares de um país economicamente atrasado que se insurgem contra um exército de agressão fortemente equipado e bem treinado (...)”186. A guerrilha através das suas actuações, que na maioria das vezes são espectaculares, procura criar o clima psicológico, gerar o pânico e o terror mudo, criar a agitação geral e, se possível, a anarquia, provocar a reacção repressiva, preparando-se a subversão para provocar a unidade defensiva dos grupos visados. Tais situações, se retransmitidas ampliadamente pelos mass media numa manipulação da opinião, podem criar a convicção pública de que na generalidade o Poder é impotente, que a guerrilha atingiu a impunidade e que aquele, além de opressivo, é repressivo (nos casos em que não é impotente...). Esta fase é decisiva dado que, de certa forma, coloca já a subversão armada em superioridade sobre as forças da ordem constituída. Consolida-se a organização, intensificam-se e generalizam-se as acções violentas, completa-se o estabelecer de estruturas político-administrativas e procura-se dominar algumas áreas do território; 2- Fase do “Estado Subversivo” - Território e população estão cingidos pela organização políticoadministrativa da subversão. Criam-se bases ou áreas libertadas, surgem forças com características para-regulares, os “exércitos de libertação” e, eventualmente, um governo provisório; 3- Fase final - A máquina subversiva acciona um exército que procurará, a partir de bases, dominar todo o território, recorrendo já a operações convencionais, reclamando frequentemente, durante o desencadear desta fase, o direito ao estatuto de combatente, nos termos previstos nas Convenções de Genebra e Protocolos Adicionais. Da análise das fases da guerra subversiva/revolucionária, depreendemos que os movimentos independentistas do Ultramar Português, na sua “marcha para a libertação”, alcançaram, nos três teatros de operações, a terceira fase da subversão (fase de terrorismo e guerrilha); contudo, são divergentes as opiniões sobre se, na Guiné, foi ou não atingida a quarta fase (fase do Estado Subversivo). Esta é negada pela obra “Subsídios para o Estudo da Doutrina Aplicada nas Campanhas de África (19611974)”187, mas por outro lado, tanto através das posições tomadas pelas Nações Unidas como pelo próprio PAIGC, pode na Guiné invocar-se o atingir de fases posteriores, senão vejamos-se: - O PAIGC foi considerado o único e legítimo representante do povo da Guiné, após visita de uma missão das Nações Unidas às áreas ditas libertadas;

184 Ernesto «Che» Guevara, “La guerre de Guerrilla”, pág. 24, Citado por Silva Cunha, em “O Ultramar, a Nação e o 25 de Abril”, págs. 20 e 21. 185 Régis Debray, “Revolução na Revolução”, pág. 18, Ed. 17 de Outubro Editora, Lisboa, 1975. 186 Vo Nguyen Giap, “Guerra do Povo Exército do Povo”, pág. 57, Colecção Terceiro Mundo e Revolução, nº. 1, Ulmeiro, Lisboa, 1972. 187 Esta obra considera que “(...) embora esta anunciasse a existência de áreas libertadas - nunca verificadas como tal - jamais constituiu um exército regular (...)” que, em qualquer oportunidade, tivesse defrontado as Forças Armadas Portuguesas num combate tipo convencional. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, pág. 80.

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- A Guiné autoproclamou-se independente em 1973, situação reconhecida a nível internacional pelas próprias Nações Unidas e pela OUA; - O PAIGC diz ter realizado eleições nas áreas libertadas, criou as FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo) e Amílcar Cabral, como veremos, reclamava o estatuto de combatente previsto nas Convenções de Genebra, para os elementos das FARP, que se assumiam como combatentes das Nações Unidas188. Situações que, a acreditar nos relatórios das Nações Unidas, se verificaram, sendo que, assim, será possível considerar que ali se atingiu não só a quarta fase, mas também a quinta e última fase da guerra subversiva/revolucionária (fase final). 2.1. - A conquista das populações Se admitirmos que o exercício do poder político depende do acordo tácito ou explícito da população ou, no mínimo, da sua submissão, a população será o objectivo último que a subversão pretende controlar e, em simultâneo, o terreno e o instrumento para o seu desenvolvimento, razão pela qual será necessário executar uma análise de motivações e definir as reacções que estas podem desencadear. Para Amaro Monteiro será necessário: “(...) a) Analisar o contexto de vida e as estruturas das populações; b) Analisar as motivações e importância dos grupos; c) Sintetizar o quadro emergente das análises apontadas em a) e b), definindo coeficientes de reactividade; d) Enunciar as ideias força que os coeficientes de reactividade aconselham; e) Explorar essas ideias força, através de todas as estruturas possíveis e dos diversos tipos de propaganda (...)”189. Consideramos este esquema válido, tanto para a acção subversiva como para a contra-acção, por parte do Poder desafiado. Também na Guiné, a subversão visava, sobretudo, a conquista das populações, seu objectivo, meio e ambiente, procurando actuar no seio do povo como o peixe na água, para usar o princípio de Mao. Já Clausewitz referia a reserva (Landwehr) que possuía sempre o tão necessário apoio popular190; considerava esta como um reservatório de forças muito vasto, longe de ser insignificante, se encarada em função do número total de habitantes e estreitamente relacionada com a defesa. O General prussiano desenvolveu considerações sobre o povo na guerra, neste caso sobre o armar do povo (Landsturm)191, afirmando que armar o povo conduziria à ruína “(...) as bases do exército inimigo tal

188 Amílcar Cabral, “Declaração ao Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas”, 1 de Fevereiro de 1972, CIDAC. 189 Fernando Amaro Monteiro, “A Guerra em Moçambique e na Guiné - Técnicas de Accionamento de Massas”, pág. 37. 190 Carl Von Clausewitz referia: “(...) a noção de uma cooperação muito extensa e mais ou menos voluntária da massa inteira do povo no apoio da guerra (...)”, ob. cit., pág. 445. 191 Idem, e acrescentou: “(...) a nação que faz a utilização judiciosa destes meios alcançará uma superioridade sobre aqueles que não curam de se utilizar dele (...)”, pág. 525.

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como uma combustão lenta e gradual. Como ele exige tempo para produzir efeitos (...)”192. Para Clausewitz, uma tropa popular não podia chegar ao combate decisivo pois, mesmo que em circunstâncias favoráveis, o levantamento popular seria derrotado.193 Ela podia e devia, portanto, atacar as áreas de retaguarda e linhas de comunicações. A importância do povo na guerra, tal como em Clausewitz ou Mao-Tsé Tung, é referida por Debray, para quem “(...) apenas a incorporação progressiva do povo na guerra permite à vanguarda combatente escapar ao esgotamento ou ao aniquilamento, apenas ela permite a extensão do combate em todas as suas modalidades (...)”194. E acrescenta ainda: “(...) ou a guerrilha, na qualidade de organização política, se implanta profundamente entre as massas numa região precisa, ou vê-se condenada, num prazo mais ou menos curto, a desaparecer fisicamente como organização militar (...)”195 pelo que tem de convencer as massas das “(...) suas boas intenções, antes de envolvê-las directamente (...)”196. Este objectivo será conseguido pelo trabalho de agitação e de propaganda, por forma a explicar-se à população a nova organização e fazer passar às mãos de organizações de massas a administração da sua zona197, para que, assim, a rebelião se torne, de facto, em guerra do povo. A conquista das populações foi área a que Giap se dedicou, especialmente no Vietname, procurando doutriná-las para conseguir destas, por um lado uma atitude permanentemente hostil, face aos ocidentais, e, por outro lado protecção e apoio aos guerrilheiros198. A subversão, sejam ou não violentos os processos utilizados, visa sempre: “(...) desmoralizar ou desintegrar; desacreditar o Poder constituído; neutralizar e/ou (em última análise) arrastar as massas (...)”199. Estamos em crer, se fizermos o aferimento entre os conceitos expostos e os pensamentos de Sun Tzu e Clausewitz, ser necessário o Poder preservar, para si, o controlo unificado do binómio Informações/Acção Psicológica. O domínio das Informações implica um Serviço montado para prestar um apoio isento e esclarecido aos órgãos de soberania: aqueles que têm por obrigação manter a integridade do território e das suas fronteiras, portanto sempre carentes de um conhecimento oportuno e o mais completo possível das ameaças ou actividades hostis, para poderem orientar o dispositivo e a prontidão dos meios de defesa. Este não é um ponto de vista inédito. Já Sun Tzu, na Antiguidade, sustentava “(...) se ignorante de ambos, do inimigo e de ti próprio, estarás de certeza em perigo em todas as batalhas (...)”200, e que a chamada «presciência» ou «previsão» é a razão do êxito do príncipe iluminado ou do general vencedor. Ao mesmo tempo explicava e advertia que aquela “(...) não pode ser deduzida dos espíritos, nem dos deuses, nem por analogia com as actividades passadas, nem por cálculos. Elas devem ser obtidas dos homens que conhecem a situação do inimigo (...)”201. Na mesma linha de pensamento de Sun Tzu, no século XVI, Maquiavel refere a necessidade de o príncipe estar sempre informado: “(...) os príncipes sensatos devem fazer, isto é, pensar nas desordens

Idem, pág. 578. Idem, pág. 581. 194 Régis Debray, “A Crítica das Armas”, pág. 129, Seara Nova, Lisboa, 1977. 195 Idem, págs. 149 e 150. 196 Régis Debray, “Revolução na Revolução”, pág. 33. 197 Idem, pág. 41. 198 Vo Nguyen Giap, “Guerra do Povo Exército do Povo”, págs. 52 e 54. 199 Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 23. 200 Sun Tzu, “A Arte da Guerra”, pág. 179, Editorial Futura, Lisboa, 1974. 201 Idem, pág. 293. 192 193

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futuras, e não só nas presentes, e servir-se de toda a habilidade para as evitar, pois certo é que, prevendo-as à distância, mais facilmente as remedeiam (...)”202. E acrescenta: “(...) o mal é fácil de curar e difícil de diagnosticar, mas não sendo diagnosticado nem curado, torna-se com o tempo fácil de diagnosticar e difícil de curar (...)”203. Clausewitz, no século XIX, refere também a importância das Informações ao considerar o termo Informações como o “(...) conjunto de conhecimentos relativos ao inimigo e ao seu país e, por consequência, a base sobre o qual se fundamentam as nossas próprias ideias e os nossos actos (...)”204. No século XX, Mao, por seu turno, acrescenta: “(...) os erros resultam da ignorância sobre o inimigo e sobre nós próprios (...)”205. Os Serviços de Informações eram e são um órgão fundamental para a elaboração, em tempo oportuno, de relatórios, estudos prospectivos e análises sobre os mais diversos assuntos. Em 1950, foi organizada e estabelecida em Portugal a SGDN206 (Secretaria Geral de Defesa Nacional), comportando uma 2ª Repartição com a incumbência, entre outras, de estabelecer e accionar os serviços de informações estratégicos. Em 1954, reorganizou-se a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado). Em Agosto de 1956, foi publicada a “Lei da Organização da Nação para a Guerra” que criou o Conselho Superior Militar. Aquela Lei, na base XXI, atribuía ao Governo competência para “(...) orientar tudo o que respeitasse à segurança interna e às actividades de carácter informativo que interessassem à defesa nacional, designadamente, no que se refere à prevenção dos actos de subversão, à repressão da espionagem e dos actos de entendimento com o inimigo, à manutenção da ordem pública, aos refugiados e à guarda dos elementos e serviços vitais da economia nacional (...)”. Já nos finais dos anos 50 começavam as preocupações dos altos responsáveis portugueses acerca do Ultramar, alterando-se o dispositivo e exercendo-se o esforço militar em África. Quando do despoletar dos acontecimentos em Angola, já existia uma doutrina contra-subversiva, ainda que incipiente. Mas as estruturas consentidas no campo das Informações já estavam criadas, mesmo que aquém das necessidades. Por isso, “(...) não podemos dizer que tivéssemos sido surpreendidos com os acontecimentos em Angola, na SGDN, no na altura já chamado Gabinete dos Negócios Políticos do Ministério do Ultramar, e na Direcção Geral dos Negócios Políticos do Ministério dos Negócios Estrangeiros (...)”207. Clausewitz, a respeito da necessidade de se conhecer antecipadamente o inimigo, através das informações, observou que a guerra não deve ser uma realidade desconhecida para o soldado, sendo “(...) um ponto extremamente importante a primeira ocasião que se entra em contacto com realidades que, à primeira vista, tanta surpresa e embaraço lhe causam. Bastava que as tivesse visto anteriormente uma única vez que fosse e já se sentiria semifamiliarizado com elas (...)”208. Sendo assim, a primeira fase do ciclo de produção de informações, ou seja, a orientação do esforço de pesquisa, exigia para o caso português, no período em análise, ou outro, que as estruturas estivessem sensibilizadas e instruídas para ele; “(...) ora a eficiência haveria de começar (...) por quem, concebendo os planos de pesquisa Nicolau Maquiavel, “O Príncipe”, pág. 21, Ed. Europa América, Lisboa, 1972. Idem, págs. 21 e 22. 204 Carl Von Clausewitz, ob. cit., pág. 127. 205 Mao Tse Tung, ob. cit., pág. 290. 206 Decreto Lei nº. 37955 de 7 de Setembro de 1950. 207 Pedro Cardoso, “As Informações em Portugal”, pág. 103, Edição actualizada, Instituto de Defesa Nacional, Lisboa, 1992. 202 203

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e/ou orientando o respectivo esforço, compreendesse a globalidade do conflito e apercebesse com sensibilidade as suas especificidades no teatro (...)”209. Numa fase posterior, carecem os executores de uma preparação mínima, quanto ao terreno humano no contexto que estamos tratando. Nesta perspectiva, pelo tipo de guerra que se travava, procuraram as Forças Armadas Portuguesas dar aos quadros um mínimo de preparação e desenvolver doutrina adequada. Assim, foi publicado em 1963 o primeiro regulamento intitulado “O Exército na Guerra Subversiva”, repartido por cinco volumes. Ao nível das Forças Armadas foram então encarados alguns preparativos para a contraguerrilha, de forma que, em 1961, quando teve início a luta armada em Angola, “(...) já existia no Exército, ainda que incipiente, uma doutrina táctica da subversão, baseada no estudo e adaptação das doutrinas francesa e britânica (...)”210. Por despacho ministerial de 6 de Novembro de 1959, foi ainda criado o CIOE (Centro de Instrução de Operações Especiais), com a finalidade de preparar tropas para a luta contra-guerrilha, acção psicológica e operações especiais, pelo ministrar de uma formação similar à do “curso de guerra subversiva” e do “estágio de contra-insurreição”211. A preparação e informação dos quadros acerca das estruturas clânicas, tribais e sócio-religiosas das sociedades negras seria necessária, por ser forçoso um conhecimento do terreno, o humano, claro está, e no detalhe (situação que a subversão detinha e utilizou); sem isso não seria possível accionar outros mecanismos de comunicação transnacionais, paralelos ou convergentes, como na Guiné as linhagens cherifinas e as Confrarias Tidjanya e Qadiriya. No antigo Ultramar Português, apesar do conhecimento dos movimentos independentistas e da sua doutrina, a reacção portuguesa, a despeito do grande e dilatado esforço, foi lenta nas aplicações. No entanto, procurou sempre, nesta disputa pela população, preservar a que tinha sob seu controlo, dissociar o binómio população/inimigo e captar população sob duplo controlo, através de uma intensa manobra psicológica212. Na guerra que se viveu na Guiné Portuguesa e na qual, dada a sua característica revolucionária (logo, estratégica a ordem requerida), onde tanta importância detinham as populações, seria fundamental a máquina das informações, quer referindo-se ao nível estratégico quer ao táctico, para “(...) viabilizar operações de Acção Psicológica razoavelmente rendíveis (...)”213.

Carl Von Clausewitz, ob. cit., pág. 133. Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 280. 210 Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Subsídios para a Doutrina Aplicada nas Campanhas de África (1961-1974)”, pág. 137. 211 Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (19611974), 1º volume, Enquadramento Geral”, págs. 327 e 345. 212 A Directiva do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, “Operações Psicológicas Alfa” de 24 de Outubro de 1968, referia: “(...) a) O inimigo vem progressivamente consolidando o controlo das populações de certas áreas, procurando desequilibrar outras, actualmente sob duplo controlo, e tentando captar para a sua causa aquelas que ainda se mantêm fiéis às nossas autoridades; b) Nas zonas habitadas por populações controladas pelo inimigo, este dilui-se no meio daquelas, utilizando a sua cobertura para fugir à acção dos bombardeamentos da Força Aérea e da Artilharia e dificultar a intervenção das Forças Terrestres; c) Junto das populações em duplo controlo, o inimigo pratica a intimidação, mantém o aliciamento e demonstra a sua força, com a nítida intenção de provocar um desequilíbrio a seu favor ou, no mínimo, ganhar a cumplicidade do silêncio; d) Visando a conquista das populações fiéis, o inimigo mantém uma intensa campanha de propaganda, através da rádio ou de agentes clandestinos, praticando o aliciamento e a intimidação nas áreas marginais controladas pelas Nossas Tropas (...).” 213 Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 59. 208 209

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A Acção Psicológica, seja desencadeada para reforçar a moral dos nacionais, seja para desmoralizar o alvo a conquistar, tornou-se essencial na arte da guerra conduzida no território. Ponto de vista que também não é novo, visto que Sun Tzu - considerado por Samuel Griffith214 como o primeiro proponente da guerra psicológica - sustentava, de forma constante, a importância da superioridade moral/psicológica de quem ataca sobre quem defende, moral que é definida pelo estratega chinês como “(...) aquela que faz com que o povo esteja de acordo com os seus chefes e, assim, os acompanhe em vida e até à morte, sem medo de perigo mortal (...)”215, e alerta para o “(...) controlo dos factores mentais (...)”216, através da paciência e da calma. Pressupõe a existência de dois tipos de forças217 - as forças Chi e as forças Cheng -, sendo a primeira extraordinária e indirecta, na qual cabem toda a psicologia e toda a arte de ludibriar, e a segunda a força de fixação normal e directa. Sun Tzu recomendava a utilização da primeira de forma extensiva, para enfraquecer o inimigo, até que este atingisse um ponto em que a mínima força Cheng fosse necessária para o derrubar. No fundo, o cúmulo da perícia: “(...) subjugar o inimigo sem o combater (...)”218, minando, quanto antes, a sua estratégia; no caso em apreço, a estratégia do Poder Português219. Os movimentos independentistas, procurando enfraquecer Portugal, a nível internacional, combatiam-no em todos os campos; procuravam dissociar as autoridades da opinião pública e denunciavam actividades destas e dos seus aliados com manobras de propaganda. Também Clausewitz evidenciaria o factor humano e o aspecto moral e psicológico na guerra, afirmando que as forças morais estão, aí, entre os seus mais importantes sujeitos220. Para Giap, já no presente século, o factor fundamental é o “(...) factor político-moral, a moral dos quadros e combatentes, a consciência do exército quanto ao ideal revolucionário, ao objectivo da luta, ao fim político da guerra (...)”221, relembrando que durante a resistência aos Ming, no Vietname (notese, muito antes das guerras sobre as quais Clausewitz reflectira), “(...) Nguyên Trai dava grande importância à ofensiva psicológica, isto é, ao trabalho de agitação junto do inimigo e das tropas fantoches para os convencer a passarem-se para o seu campo. Esta táctica levou à rendição do adversário nas várias cidades (...) num total de 100.000 soldados inimigos (...)”222. “Che” Guevara, tal como Mao, defende a moral como factor praticamente decisivo, distinguindo nela, para o combatente, a intercomplementaridade dos sentidos ético e heróico: “(...) por um lado o sentido da justiça da causa, por outro a impressão de se bater sem saber porquê determinavam as grandes diferenças entre os dois exércitos (...)”223. As concepções de Mao, Giap, Guevara e Debray, citadas, apresentando diferenças quanto ao nível e modo de interpenetração do factor político e do factor armado, encontram coexistência em Lenine, que considera que é imprescindível conhecer os métodos pelos quais as massas podem ser conquistadas e Samuel Griffith, em introdução de “A Arte da Guerra”, de Sun Tzu, pág. 123. Sun Tzu, ob. cit., pág. 141. 216 Idem, pág. 224. 217 Idem, pág. 191. 218 Idem. pág. 165. 219 Sun Tzu disse: “(...) O que é de suprema importância na guerra é atacar a estratégia do inimigo (...)”, ob. cit., pág. 166. 220 Idem, pág. 209. 221 Vo Nguyen Giap, “Armamento de Massas Revolucionárias, Edificação do Exército do Povo”, pág. 176, Colecção Terceiro Mundo e Revolução, nº. 4, Ulmeiro, Lisboa, 1972. 222 Idem, págs. 77 e 78. 214 215

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também imprescindível, na acção, aquela maleabilidade que decorre de, concretamente, as coisas resultarem de forma diferente, por mais originais, mais peculiares, mais variadas do que se poderia ter esperado224. No século XX, os mass media, com o seu carácter universal e instantâneo, participaram na “(...) elaboração de uma mentalidade colectiva (...)”225, atribuindo-se-lhes um grande poder pelo esforço de persuasão. Este poder dos mass media (que sozinhos são capazes de, querendo, manipular/fabricar a opinião pública, criar mesmo uma psicose colectiva) e a transparência das actuais sociedades políticas (no que diz respeito à circulação de pessoas e ideias) favorecem o fenómeno subversivo. A conquista das populações, hoje em dia, envolve pois, necessariamente o uso dos mass media. São utilizáveis de diversas formas, como difusores e amplificadores de ideias força, através de todas as estruturas e tipos possíveis de propaganda, quer apoiem directa ou indirectamente a autoridade ou a subversão. Para desenvolver essas actividades, carecem de matéria explorável como o desencadear de acções violentas, os feitos e atitudes dos sujeitos da acção e aliados, os erros cometidos pelo adversário, entre outros, pretendendo organizar (isto se estiverem contra o Poder) o descrédito da autoridade estabelecida; podem criar a imagem de que o Poder é opressor e não identificado com valores realmente nacionais, portanto, apresentado como estrangeiro ou submetido a este. Situações destas verificam-se no caso particular da Guiné Portuguesa onde o PAIGC soube, habilmente, aproveitar e implantar toda a matéria disponível, por forma a suscitar uma opinião pública internacional desfavorável a Portugal, criando para o Poder Português uma situação de “réu” perante essa opinião pública. Pode-se, assim, concluir que uma subversão metódica, de cunho voluntarista, segue quatro premissas que se encontram nos teóricos da subversão, passando por Mao e indo até Guevara: “(...) 1. Sustentar que o governo é indigno; 2. Sustentar que o governo não está identificado com valores realmente nacionais e, portanto, se apresenta como estrangeiro; 3. Atacá-lo com violência e persistência, para impressionar as massas; 4. Procurar a impunidade dos ataques, para demonstrar que o governo é impotente e, logo, figuração a derrubar (...)”226. O processo é sempre eficiente, desde que estejam reunidas as condições mínimas no terreno sobre que incida. O PAIGC aplicou-as. O sinal da sua concreta procedência ideológica (e, pois, da estratégia em que se integra), muitas vezes só é perceptível, “(...) quando se pode perguntar e apurar a quem aproveita ele no jogo dos grandes poderes mundiais; isto sem embargo de conjunturas nas quais, perdido o controlo por parte do «autor moral» (situação mais frequente nas organizações terroristas), a subversão entra em órbita irregular (aproveitável então por forças diferentes das da partida) ou passa a funcionar como elemento de erosão passiva (...)”227. 223

Ernesto «Che» Guevara, “A Dimensão Internacional da Revolução”, pág. 17, Editora 17 de Outubro, Barreiro,

1976. 224 Vladimir Ilitch Lenine, “Cartas Sobre Táctica”, pág. 66, Biblioteca do Socialismo Científico, Editorial Estampa, Lisboa 1978. 225 Marcel Merle, “Sociologia de las Relaciones Internacionales”, pág. 236, Alianza Universidad, Madrid, 1991. 226 Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 23. 227 Idem, págs. 23 e 24.

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Face ao que no presente capítulo foi exposto, pode inferir-se, quanto à fenomenologia contemporânea228, que o conceito de estratégia atingiu alto nível de globalidade e maximalizaram-se as componentes que correlacionam política e guerra, que o conceito de defesa foi transcendido, a adopção da “segurança alargada” nas sociedades, sejam elas “revolucionárias” ou “conservadoras” na sua feição, converteu-se numa necessidade óbvia, exigindo da parte do Poder Estadual, submetido a desafio, alta capacidade de resposta. Resposta que não se deve encontrar na linha de raciocínio de Maquiavel para quem “(...) existem duas maneiras de combater: pelas leis e pela força. A primeira é própria dos homens; a segunda é própria dos animais. Mas, como muitas vezes aquela não chega, há que recorrer a esta (...)”229. A contra-subversão, pela sua ética baseada em “(...) princípios de autoridade, coesão moral da nação e no potencial militar e não militar existente (...)”230, deve cingir-se às normas éticas da conduta das hostilidades, apesar de se poder desenrolar uma luta desleal, com diferentes regras para os jogadores231; sendo que o Poder Português, a suster uma guerra global durante treze anos e em três Teatros de Operações distintos e distanciados entre si, procurou sempre dominantemente configurar-se com a ética própria de um Estado de direito.

3. - A génese do independentismo na Guiné Portuguesa. O espírito de Bandung A importância geo-estratégica do continente africano, para além da sua orla mediterrânea, foi praticamente posta em relevo, após a II Guerra Mundial e, especialmente, após a constituição da NATO. A África passou, desde então, a ser um teatro de operações ambicionado pelas superpotências, que tinham em vista atingir objectivos decisivos para a dominação mundial. Estas apoiaram as ideologias e os movimentos independentistas que lhes facilitavam a expulsão dos colonizadores europeus. No campo político, pode dizer-se que foi a criação da ONU, em 1945, e a luta pelo voto que ali imperou, sobretudo a partir dos anos 50, que impulsionaram a descolonização de África. As independências do continente africano assegurariam um manancial de votos, na Assembleia Geral das Nações Unidas, àquele dos dois blocos que conseguisse captar a simpatia dos novos Estados. Foi da formação de dois blocos opostos, e em equilíbrio de forças, que surgiu uma nova estratégia, que consagrou formas subtis de acção indirecta e que relegou para segundo plano a estratégia clássica. Esta estratégia trouxe um elemento novo, “(...) a penetração ideológica e a subversão revolucionária (...)”232; com ela, a guerra transbordou do campo das armas para o campo das ideias e da reivindicação social, passando então as guerras a processar-se em âmbitos territoriais nacionais mas com amplitudes internacionais.

Idem, “A Guerra em Moçambique e na Guiné - Técnicas de Accionamento de Massas”, págs. 9 e 10. Maquiavel, Nicolau, ob. cit., pág. 93. 230 Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Subsídios para a Doutrina Aplicada nas Campanhas de África (1961-1974)”, pág. 92. 231 No entanto, podem surgir casos pontuais, que fujam ao controlo superior, em que há um desrespeito pelas normas. Estes casos devem ser condenados rapidamente e alvo de apreciação disciplinar ou criminal. Deve-se ainda evitar, que os casos ocorridos se arrastem para uma generalização que condene a contra-subversão. 232 António de Spínola, “O Problema da Guiné”, pág. 13, Agência Geral do Ultramar, 1970. 228 229

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Assim, foi desenvolvida e apoiada em África a acção subversiva (que tal como um incêndio se propaga lentamente, com um foco aqui, outro além, acabando por “carbonizar” o Poder instituído)233, conduzida por Estados que consideram a “(...) subversão em terra alheia como contributo útil para «a formação de um novo mundo» (...)”234.

3.1. - Movimentos Independentistas na Guiné A evolução política do continente africano suscitou, em múltiplos territórios, a formação de vários grupos com ideologias independentistas, vindo, necessariamente, a afectar determinados sectores da população. Na Guiné Portuguesa, os primeiros indícios de intenções independentistas exprimiram-se na tentativa de fundação de um “clube desportivo”, em 1953, reservado a naturais da Província, tentativa gorada pela interdição do Governador. O seu proponente, o engenheiro agrónomo Amílcar Cabral, acabou por fundar na clandestinidade o MIG (Movimento de Independência da Guiné) que originou, em 1956, o PAIGC. No Senegal, constituíram-se diversos movimentos que visavam obter a independência da Guiné. Salienta-se o MLGC (Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde), a UPG (União de Povos da Guiné) que, apesar da designação, reunia apenas alguns guineenses residentes em Kolda, o RDAG (Reunião Democrática Africana da Guiné), constituído pela colónia Mandinga do Senegal, a UNGP (União dos Naturais da Guiné Portuguesa), a UPLG (União da População Libertada da Guiné), que agrupava a minoria de etnia Fula do Senegal, e o MLG (Movimento de Libertação da Guiné) a que aderiram a maior parte dos Manjacos. Em Agosto de 1962, como resultado da união de vários grupos políticos com sede em Dakar, como o UPG, o RDAG e a UPLG, foi criada a FLING (Frente de Libertação e Independência Nacional da Guiné). O PAIGC recusou o convite para fazer parte deste movimento. Analisemos os principais dos referidos movimentos. 3.1.1. - O Movimento de Libertação da Guiné No ano de 1956, a grande actividade política desenvolvida pelo RDA (Rassemblemant Démocratique Africain), no norte da Guiné-Conacry, teve repercussões nas regiões de Cacine, Bedanda e Catió, sendo, a partir desta data, que um grupo de indivíduos tentou instalar, clandestinamente, na Província Portuguesa, uma associação dita nacionalista a que deu o nome de MLG. Este partido, que entronca a sua origem na efémera Liga Guineense de 1911, terá sido fundado em 1958235. Possuía a sua sede em Dakar e filiais em Conacry e Bissau (clandestina, claro está).

Carl Von Clausewitz, ob. cit., pág. 578. Franco Nogueira, “Salazar - A Resistência (1958/1964)”, pág. 80. 235 Os membros fundadores deste partido eram: Alfa Camara, César Fernandes, José de Barros e Rafael Barbosa. 233 234

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As primeiras actividades deste partido limitaram-se ao aliciamento de elementos da população mais evoluídos, à difusão de panfletos, comunicados e manifestos. Foi a secção de Dakar que desenvolveu mais actividades, insinuando-se que os incidentes ocorridos a 3 de Agosto de 1959, no cais de Pidjiguiti, e reprimidos pelas forças da ordem, foram por si provocados. Estes acontecimentos são carcaterizados como um “massacre” 236, uma vez que a actuação das autoridades provocou a morte de 50 estivadores do porto de Bissau, em greve por constetação dos baixos salários auferidos. Aqui surge a dúvida da nossa parte, dado que também o PAIGC reivindica a responsabilidade deste incidente237. A seu cargo estiveram, em Julho de 1961, os primeiros ataques - actos considerados pelas autoridades como terrorismo - desencadeados em S. Domingos e, uns dias depois, em Susana e Varela, a noroeste do território, junto à fronteira senegalesa. Estes ataques terão sido lançados com alguma precipitação e talvez com o intuito de ganhar algum avanço sobre o PAIGC que, a sul, desenvolvia já uma intensa, eficiente e silenciosa actividade de aliciamento. De início, o MLG, encarava politicamente, a ideia de uma federação, passando a Guiné a constituir um estado federal da República Portuguesa. Esta ideia de federação desfez-se e o MLG passou a exigir a independência total da Guiné238. Era um movimento exclusivamente guineense, constituído, nomeadamente, por elementos de etnia manjaca. Colocava em pé de igualdade tanto os portugueses de raça branca como os cabo-verdeanos, votando a estes últimos um ódio efectivo, tendo por várias vezes atacado Amílcar Cabral e outros elementos do PAIGC. Embora concordasse ser necessária a união entre o MLG e o PAIGC, combatia a ideia de federação entre a Guiné e Cabo Verde. A nível internacional, desenvolveu uma actividade de relevo, como o enviar de uma exposição à IV comissão da ONU, efectuando o seguinte pedido: “(...) 1. Que a Portugal fosse aplicada a resolução 1514 da Assembleia Geral das Nações Unidas; 2. Que Portugal fosse obrigado a conceder a autonomia ao território africano da Guiné, no mais curto espaço de tempo, com o fim de o seu povo se preparar para a autodeterminação; 3. Que fossem soltos todos os presos políticos guineenses, detidos na Guiné, e repatriados todos os que tivessem sido levados para fora da Província; 4. Que as forças de ocupação retirassem, imediatamente, para a Metrópole (...)”239. Apesar de em toda a primeira metade do ano de 1963, o MLG de Dakar, chefiado por François Mendy, ter efectuado algumas incursões na antiga Província Portuguesa, os seus dirigentes, em finais de Outubro de 1964, reunidos em Ziguinchor, concordaram em dissolver o movimento, uma vez que não tinham apoio, nem interno, nem externo. A Administração Portuguesa reagia pela repressão e o PAIGC aliciava os seus militantes. 3.1.2. - A Frente de Libertação e Independência Nacional da Guiné 236 Parece-nos oportuna a interrogação: se este estivadores são considerados os primeiros "mártires da Pátria", como se devem designar hoje as mortes de antigos cidadãos portugueses que acreditaram, quer nas autoridades portuguesas quer nas novas autoridades guineenses, e após a independência optaram por ficar no seu “chão” de origem, acabando contudo, perante um pelotão de fuzilamento no Forte da Amura em Bissau? 237 Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (19611974), 1º volume, Enquadramento Geral”, pág. 117. 238 Hélio Felgas, “A Guerra na Guiné”, pág. 42, SPEME, Lisboa, 1967.

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Em Dezembro de 1963, os elementos da UNGP, após Salazar ter confirmado e esclarecido a política ultramarina, resolveram, em assembleia, dissolver o movimento, tendo os seus adeptos ingressado na FLING e ficando o dirigente da UNGP, Benjamim Pinto Bull, como secretário de informação daquela Frente. O movimento vai, assim, agrupar como dirigentes a maior parte dos chefes dos partidos dissolvidos. Esta união de chefias, em regra empregados e pequenos funcionários fugidos da Guiné, considerados por Hélio Felgas como “(...) destituídos de competência e maturidade política (...)”240, com formação muito diferente, com ambições pessoais, desmedidas e antagónicas e, na maior parte das vezes, imaturas, não conseguiu transmitir ao agrupamento a coesão indispensável à consecução dos objectivos pretendidos, originando, no mínimo, duas facções, a designada FLING ortodoxa e a FLING combatente241, defendendo a primeira a evolução pacífica do estatuto da Província e a segunda o recurso à acção armada. A FLING parecia condenada, pois restringia cada vez mais a sua acção, perdia terreno e, inclusivamente, o apoio dos governos vizinhos. Este partido parece só ter despertado em 1965, face aos progressos do PAIGC, que estendia já a sua influência política da República da Guiné ao Senegal, ao mesmo tempo que procurava captar a simpatia de adeptos de outros movimentos. Após a segunda conferência da OUA, realizada no Cairo, começou a incrementar as suas actividades, nunca concretizadas em acções combatentes, pois de acordo com as informações disponíveis, nunca foi visto, na Guiné Portuguesa, nenhum grupo armado da FLING. A sua acção limitou-se à publicação de alguns comunicados, à organização de reuniões e participação em algumas conferências internacionais. Através de um comunicado transmitido pela Rádio Dakar, em 11 de Julho de 1963, a FLING convidou o PAIGC para uma conferência de unidade, ao mesmo tempo que sugeria a criação de um comando militar unificado, com Quartel General em Bamako (Mali) ou noutro país africano242. Os esforços de unificação feitos pela OUA, pelos presidentes Senghor e Sékou Touré e mesmo por outros dirigentes foram falhando, até que, em Março de 1965, o Conselho de Ministros da OUA reconhece o PAIGC como o movimento mais apetrechado e melhor estruturado para o desenvolvimento da luta, canalizando para ele toda a ajuda material. 3.1.3. - O Partido Africano da Independência da Guiné e de Cabo Verde. Carlos Lopes243 considera que Portugal no período colonial era uma nação relativamente pobre, e que, fruto da sua própria dependência, se encontrava numa situação económica estagnada, logo,

Idem, pág. 46. Idem, pág. 44. 241 A FLING ortodoxa surge em Novembro de 1963 por cisão da FLING. O seu presidente era Formoso Gomes, o Secretário-Geral Jonas Mário Fernandes, Benjamim Pinto Bull, era secretário de informação e imprensa, tendo-se afastado em Julho de 1964. A FLING combatente data da mesma época, presidida por François Mendy, Balbino da Costa e Paulo N´Daye. Em 28 de Dezembro de 1965, Mendy é afastado e substituído por B. Bull, que saíra da facção ortodoxa. Uma outra facção pode ser considerada, e que se juntou à vertente ortodoxa em Julho de 1964. Esta era constituída por Henry Labery, Manuel Lopes da Silva, Doudou Seidi e Mamadu Seidi. Em, “Exposição Sobre a Situação de Informações na Província da Guiné”, Secretaria Geral da Defesa Nacional, 2ª Repartição, Reservado, 1970. 242 Hélio Felgas, ob. cit., pág. 47. 243 Carlos Lopes, “Etnia, Estado e Relações de Poder na Guiné-Bissau”, pág. 22, Edições 70, Lisboa, 1982. 239 240

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incapaz de manter colónias em África. A debilidade portuguesa, aliada ao processo político do anticolonialismo e ao florescer de movimentos independentistas, esteve na génese do PAIGC. O PAI (Partido Africano de Independência) foi criado em Bissau, a 19 de Setembro de 1956, por Amílcar Cabral, conjuntamente com Aristides Pereira, Luís Cabral, Júlio de Almeida, Fernando Fortes, Elisée Turpin e Abílio Duarte. A sigla PAIGC só será adoptada em 1960. A direcção do Partido244 era coadjuvada por um comité central de seis membros. Para a sua estruturação dentro do território, dividiu-se em três inter-regiões: a inter-região norte, a do sul e a do leste245, subdivididas em regiões; a organização política, administrativa e militar era igual em todas as regiões divididas em zonas, subdivididas em secções. De uma maneira geral, a parte da população que colaborava com o PAIGC e que não pertencia ao “Exército Popular” e à “guerrilha”, estava organizada em “milícias populares”, constituída por grupos de rapazes e raparigas, principalmente com a função de controlo e enquadramento das populações e a obtenção de reabastecimentos. Estes três grupos constituíam as FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo)246, criadas em 1965. Nelas destacamos a existência, em todos os escalões, de um comissário político. As suas unidades eram designadas por bigrupo com um efectivo de cerca de meia centena de elementos armados. A par da organização militar, existia uma organização político-administrativa, encabeçada, dentro de cada zona, por um responsável político, coadjuvado por um secretário de propaganda247. O Partido tinha como objectivo : “(...) - A liquidação da dominação colonial portuguesa; - A criação de bases indispensáveis para a construção de uma vida nova para os povos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde; - A construção da paz, do bem estar e do progresso contínuo do povo da Guiné--Bissau e de Cabo Verde (...)”248. Este partido, que se sobrepôs a todos os outros, era de orientação ideológica marxista-leninista, mas desde a sua criação intitulou-se de democrático, anti-colonialista, anti-imperialista e actuante no quadro da democracia revolucionária249. Os pontos de desacordo entre o PAIGC e os outros grupos políticos eram de carácter ideológico e mesmo estratégico, tendo o seu programa duas fases: a libertação e, posteriormente, a reconstrução de uma nova sociedade; considerava a luta como realizável com todos os meios e em todas as frentes 244 Constituída pelo Presidente Rafael Barbosa, Secretário-Geral Amílcar Cabral e Secretário-Adjunto Aristides Pereira. 245 Secretaria Geral da Defesa Nacional, “Exposição da Situação da Guiné em 6 de Novembro de 1964”, Secreto. 246 Idem; segundo este documento, as FARP estavam estruturadas em três organizações específicas: Exército Popular - utilizável em qualquer zona da província; Guerrilha Popular - utilizável dentro de cada zona, Milícia Popular - missão de organizar a “defesa civil” e a vigilância do Partido nas zonas consideradas libertadas. 247 Secretaria Geral da Defesa Nacional, “Exposição da Situação da Guiné”, Reservado, 1970. 248 PAIGC, “História da Guiné e das Ilhas de Cabo Verde”, pág. 141, Ed. Afrontamento, Porto, 1974. Mas na perspectiva portuguesa, os objectivos do PAIGC eram: 1) Conquista das populações quer pelo aliciamento, quer pelo terrorismo, e a sua separação das autoridades portuguesas; 2) O desmantelamento económico da província; 3) O desenvolvimento da guerrilha e das acções psicológicas contra as nossas tropas. Ou seja, não são coincidentes, notando-se, assim, as diferentes perspectivas em que o problema era abordado, necessitando o PAIGC, no terreno, de desenvolver a luta armada para alcançar os objectivos a que se propôs. Em “O Caso da Guiné”, pág. 6.

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contra o racismo, o imperialismo, todas as formas de colonialismo e de exploração do Homem entenda-se o sentido marxista da frase - mas conservando sempre a independência do pensamento e da acção em relação a qualquer força política e económica externa; postura que, como verificaremos, não conseguiu manter. Além disso, pretendia a libertação total, não só para a Guiné, mas também para Cabo Verde. Amílcar Cabral considerava que a luta armada se integrou mais na população do que esta na luta armada250 Todavia, nas “(...) regiões libertadas do sul, alguns chefes da guerrilha tornaram-se demasiado autónomos (...)”251 em relação a certos chefes que se poderiam encontrar na região, actuando mesmo sem qualquer “(...) coerência com os princípios do partido (...)”252, actuação que Carlos Lopes caracteriza de tirana, pois obrigava a população explorada a sujeitar-se à tutela da guerrilha, sendo utilizada a força contra, e não a favor do povo253. A direcção do partido convocou um congresso para Cassacá, em 1964, onde foi decidida uma punição severa dos responsáveis. Aqui também se decidiu criar as FARP e traçou-se a construção de um Estado, a partir da base. Entenda-se base de democracia revolucionária, que desembocaria em totalitarismo254. Para a construção de um Estado, a partir da base, era necessário o aliciamento e o controlo das populações. Na Guiné Portuguesa, o PAIGC conhecia, no detalhe, as populações que o poderiam auxiliar nessa tarefa. Amílcar Cabral considerava impossível, no contexto colonial, que uma só camada social pudesse levar a cabo a luta contra o colonialismo255. Após a criação do Partido, numa primeira fase, a sua actividade limitou-se a mobilizar as camadas urbanas da pequena burguesia, dos funcionários da administração pública e do sector comercial, dos assalariados da capital, dos trabalhadores do porto e dos jovens vindos do campo para a cidade (a principal força revolucionária)256. E, só mais tarde, abrangeu as massas rurais (a principal força física). Estas últimas, para o líder africano, não representavam a principal força vital e custaram mesmo a incentivar à luta, sendo necessário, por vezes, “(...) de os conquistar à força (...)”257 ou, segundo Carlos Lopes, conseguindo-se a sua mobilização, “(...) através de uma consciencialização dos problemas políticos ligados às suas necessidades políticas e interesses sociais (...)”258, vindo assim a desempenhar um importante papel como “massa combatente”. O Partido procurou, deste modo, responder às reivindicações destes estratos, que pretendiam ascender a um patamar superior na hierarquia social. Porém, Cabral apercebia-se que não era toda a pequena burguesia que aceitava a luta contra a dominação estrangeira, mas apenas uma parte, que já se encontrava cansada dos abusos do colonialismo e que se encontrava disposta a renunciar aos seus

PAIGC, ob. cit. pág. 141. Amílcar Cabral, “Guiné-Bissau - Nação Africana Forjada na Luta”, pág. 94, Ed. Nova Aurora, Lisboa, 1974. 251 Idem, Ibidem. 252 Carlos Lopes, ob. cit., pág. 25. 253 Idem, ibidem. 254 Situação típica desenvolvida pelos movimentos independentistas. Estes, à partida, encontram-se em situação favorável para reclamarem a identidade própria de territórios cujas fronteiras foram determinadas por um Direito Internacional estranho às sociedades africanas. Esta situação propicia a instauração de uma ideologia totalitária e de partido único, como forma para se alcançar uma disciplina colectiva que viabilize a ideia de Nação. 255 PAIGC, ob. cit., pág. 31. 256 Amílcar Cabral, “Guiné-Bissau - Nação Africana Forjada na Luta”, pág. 26 e 90. 257 Idem, pág. 28. 258 Carlos Lopes, ob. cit., pág. 24. 249 250

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privilégios sociais e a defender os interesses do povo. Assim, dividiu a população em três categorias distintas, tendo em conta o seu comportamento durante a luta armada259: - O primeiro grupo, constituído pelos indivíduos que se encontravam comprometidos com o colonialismo português e que englobava a maioria dos funcionários e as profissões liberais; - O segundo grupo era constituído pela pequena burguesia revolucionária, pois passara do ideal de nacionalismo para o de libertação nacional; - O grupo intermédio era constituído por elementos que hesitavam entre a libertação nacional e os Portugueses. A mobilização dos camponeses iniciou-se após os acontecimentos de Pidjiguiti, altura em que foi decidida a preparação para a luta armada. A passagem à acção directa no território, a 3 de Agosto de 1961 (considerado o dia nacional da revolução), veio reforçar o recrutamento e a mobilização clandestina. O líder do movimento independentista acusava Portugal de opressão política e administrativa, de opressão e exploração económica, de opressão social e cultural e de praticar um desumano regime colonial260. Como resposta aos vários tipos de opressão, Amílcar Cabral preconizava um tipo de resistência: “(...) opressão política, resposta: resistência política; opressão económica, resposta: resistência económica; opressão cultural, resposta: resistência cultural (...), resistência armada (...) é a resposta à opressão armada, à agressão colonialista (...)”261, sendo que o primeiro ataque armado eclodiu a 23 de Janeiro de 1963, contra as instalações de um aquartelamento das Forças Armadas Portuguesas, em Tite. Até 1963, reinava, no partido, a convicção de que as Nações Unidas estavam em condições de obter de Portugal o respeito pelas obrigações internacionais e de assegurarem, pacificamente, aos povos da Guiné Portuguesa e das ilhas de Cabo Verde o respeito pelo direito à autodeterminação. Todavia, segundo este partido, “(...) todas as tentativas para um diálogo construtivo com o Governo Português fracassaram (...)”262, considerando-se, desta forma, a luta armada como uma imposição, não só pela obstinação com que Portugal recusou a emancipação pacífica dos seus povos ultramarinos, mas também pela repressão de qualquer reivindicação nacionalista - atitude contrária às suas obrigações de Estado membro das Nações Unidas - e pela incapacidade destas obterem de Portugal o respeito das suas obrigações internacionais. Para cumprir os objectivos definidos pelo partido e julgando a sua luta conforme o direito internacional, reflectido nomeadamente nas numerosas resoluções das Nações Unidas que reconheciam o direito a todos os povos de decidirem do seu próprio destino, o recurso às armas é justificado pelo Secretário-Geral do PAIGC, como: “(...) não há, nem pode haver, libertação nacional sem a utilização da violência libertadora por parte das forças nacionalistas, para responder à violência criminosa dos agentes do imperialismo (...)”. Acrescentava: “(...) a via única e eficaz para a realização definitiva das aspirações dos povos, quer dizer, para a obtenção da liberdade nacional é a luta armada (...)”263. E continuava: “(...) conscientes (...) de que lutando por todos os meios pela libertação do nosso país, nós Amílcar Cabral; “Guiné-Bissau - Nação Africana Forjada na Luta”, pág. 29. PAIGC, ob. cit. págs. 117 a 120. 261 Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, “Seminário de quadros do PAIGC, realizado em Conacry de 19 a 24 de Novembro de 1969”, Supintrep nº. 36, Secreto, Maio de 1971. 262 PAIGC, ob. cit., pág. 149. 259 260

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lutamos pela defesa da legalidade internacional, pela paz ao serviço do progresso e da humanidade (...)”, invocando um direito, “(...) o direito e o dever de ajudar a ONU, para que ela nos ajude a conquistar a nossa liberdade e a nossa independência nacional (...)”264. Ainda afirmava: “(...) nós lutamos e lutaremos até à vitória, para que as resoluções da Carta das Nações Unidas sejam respeitadas (...)”265. Amílcar Cabral entendia que o povo, ao pegar em armas, estava em primeiro lugar a manifestar a sua recusa de uma cultura estrangeira266, ou seja, na Guiné, a guerra era entendida sobretudo como um confronto de culturas. A cultura era a base do próprio movimento de libertação e só as “(...) sociedades que conseguem preservar a sua cultura se podem mobilizar, organizar, e lutar contra a dominação estrangeira (...)”267. A luta de libertação era um acto de cultura e um factor de cultura268 e não devia ser encarada apenas como uma arma ou um método de mobilização, pois, se a luta de libertação era também um acto, essencialmente, político, só se deviam utilizar métodos políticos, ao longo do seu desenvolvimento, mas tendo sempre, por base, um concreto conhecimento da realidade local, nomeadamente, da realidade cultural269. O Secretário-Geral do PAIGC entendia a cultura como factor de resistência ao etnocentrismo cultural e à dominação estrangeira, dominação facilmente conseguida em determinadas circunstâncias, mas que só podia ser mantida por uma organizada e permanente repressão da vida cultural de um povo, “(...) não podendo garantir definitivamente a sua implantação a não ser pela liquidação física de parte significativa da população dominada (...)”270. A libertação nacional seria então, necessariamente, um acto de cultura e o movimento de libertação a “(...) expressão política organizada da cultura do povo em luta (...)”271 e deveria basear a sua actuação no conhecimento profundo da cultura do povo. No Seminário de quadros do PAIGC, realizado em Conacry, de 19 a 24 de Novembro de 1969272, Amílcar Cabral, ao falar de resistência cultural, referia: “(...) devemos limpar da nossa terra toda a influência nociva da cultura colonial, camaradas (...)”. Contudo, defendia o preservar do bem que a cultura ocidental tinha, pois acrescentou: “(...) queiramos ou não, na cidade ou no mato, o colonialismo meteu-nos muita coisa na cabeça. E o nosso trabalho deve ser tirar aquilo que não presta e deixar aquilo que é bom (...)”. A luta do povo pelo povo e para o povo era instrumento de unificação e progresso social, pois o partido, que devia ser dirigido pelos melhores filhos do povo, ao desencadear a luta provocava uma aproximação das camadas sociais distintas, libertando-as de complexos273, pelo que a luta armada implicava uma verdadeira marcha no caminho do progresso cultural.

Amílcar Cabral, “Guiné-Bissau - Nação Africana Forjada na Luta”, pág. 52. Idem, pág. 148. 265 Idem, 152. 266 Idem, pág. 115. 267 Idem, pág. 137. 268 Idem, pág. 135. 269 Idem, ibidem. 270 Amílcar Cabral, “A Cultura Nacional-Libertação Nacional e Cultura”, pág. 5, Colecção Cabral Ka Muri, Ed. do Departamento de Informação, Propaganda e Cultura do PAIGC: 271 Idem, pág. 10. 272 Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, Supintrep nº 36. 273 Amílcar Cabral, “A Cultura Nacional-Libertação Nacional e Cultura”, pág. 22. 263 264

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Para a materialização da gestão do Poder pelas massas, era necessária a existência de duas realidades de base que devem coexistir e interagir: o povo e o partido. O primeiro é o conjunto de todos aqueles que não aceitam, ou querem acabar, com o domínio colonial; o segundo é a chave de toda a actividade autolibertadora do povo. O líder guineense, afirmava que a sua maior preocupação era fazer do partido um instrumento de progresso na mão do povo, mas a melhor coisa que o partido fez foi “(...) estabelecer como base fundamental o princípio da «unidade e luta» (...)”274. Para Amílcar Cabral, a expressão máxima da cultura e da africanidade devia traduzir-se, “(...) no momento da vitória, por um salto em frente, significativo da cultura do povo que se liberta. Se tal não se verificar, então os esforços e sacrifícios, realizados no decurso da luta, terão sido vãos; esta terá falhado os seus objectivos e o povo terá perdido uma oportunidade geral de progresso, no âmbito geral da história (...)”275. Contudo, Cabral não foi cumprido, foi sim ultrapassado. Ao Governo Português, após a independência, seguiu-se um Governo de ideologia totalitária e de partido único que, aos poucos, se instalou nas estruturas estatais, ficando a gestão do Poder, que a luta pretendia para o povo, em suas mãos. A este propósito, Carlos Lopes refere: “(...) é espantoso constatar até que ponto o vírus do Estado colonial, os seus fermentos alienantes e a sua elite de quadros pequeno-burgueses conseguiram contaminar uma experiência notável, sob todos os pontos de vista e existindo já há alguns anos (...)”276. Amílcar Cabral considerava absurda a situação do seu povo, tal como a dos outros povos dominados por Portugal: “(...) os direitos fundamentais do Homem, as liberdades essenciais, o respeito em relação à dignidade Humana, tudo isto é coisa que nos nossos países é desconhecida (...)”277. O líder não considerava absurda esta situação, face a um “Governo Fascista” contra quem travava um “combate de vida ou de morte”, ressalvando sempre que a luta era somente contra o Governo Português e nunca contra o povo de Portugal; a sua luta contribuía para a queda do fascismo, provando, desta forma, ao povo português a melhor solidariedade278. A propósito de Direitos do Homem, é importante referir que o Artº. 2º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que prescreve a aplicação universal das suas disposições a todos os países, a todos os territórios quaisquer que sejam os seus estatutos político, jurídico ou internacional, foi reclamado pelo PAIGC, como não sendo aplicado por Portugal. Ontem como hoje, este mesmo partido parece não cumprir, a rigor, aquilo que, no passado, acusava os adversários de não respeitarem; a invocada situação permanece actual, independentemente da mudança do poder administrante do território; a pena de morte foi introduzida, durante a luta pela independência contra Portugal279. Porém, este último país, contrariamente ao PAIGC, só previa a sua aplicação contra certos crimes militares. 274 Idem, “A Arma da Teoria-Unidade e Luta”, pág. 129, Colecção Cabral Ka Muri, Edição do Departamento de Informação, Propaganda e Cultura do C. C. do PAIGC. 275 Idem, “A Cultura Nacional-Libertação Nacional e Cultura”, págs. 23. 276 Carlos Lopes, ob. cit. pág. 84. 277 Amílcar Cabral, “Guiné-Bissau - Nação Africana Forjada na Luta”, pág. 9. 278 Idem, págs. 10, 15, 16 e 17. 279 De acordo com a Informação nº 709 - CI (2) da DGS da Guiné, de 29 de Maio de 1970, o PAIGC teria efectuado várias prisões, sob a orientação de Osvaldo Máximo Vieira. Estas terão sido efectuadas por os presos se terem relacionado com o chefe da delegação da DGS da Guiné, a quem davam informações. De entre os presos destaca-se Lai Sec, responsável pelo policiamento de segurança em Ziguinchor, atribuição que lhe fora incumbida por Amílcar Cabral, que neles depositava confiança. Este, ao ter conhecimento do ocorrido, determinou que o mesmo fosse fuzilado, acção que se efectivou na base de Quitafine.

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De acordo com dados da Amnistia Internacional, de 17 de Novembro de 1993, após a independência, entre 1974 e 1980, aquando da presidência de Luís Cabral280, 40 pessoas terão sido sentenciadas à morte e, neste mesmo período, muitos outros terão sido mortos sem julgamento; já para não falarmos do fuzilamento de inúmeros Comandos Africanos do Exército Português281. Outras violações ocorreram desde os Acordos de Argel, em 24 de Agosto de 1974: numerosas prisões arbitrárias, a negação aos prisioneiros de serem tratados de acordo com as determinações da Lei. Contudo, parece que depois da implantação do multipartidarismo, “(...) os governantes estão mais acessíveis em matéria de Direitos Humanos, mas, tal como quando da Administração Portuguesa, a maioria da população desconhece os seus direitos (...)”282. Amílcar Cabral justificava a luta como projectada no plano internacional: “(...) a nossa luta perdeu o seu carácter estritamente nacional para se projectar no plano internacional (...)”283. Quando um elemento do movimento independentista sucumbia em campanha, alegava-se que a sua vida era dada pela causa da ONU; o PAIGC não deixou de uniformizar os seus guerrilheiros na luta contra a Administração Portuguesa e de tentar que lhe fosse aplicado o conteúdo do Artº. 4º da Convenção de Genebra relativa ao tratamento de prisioneiros de guerra, sem embargo de, por outro lado, retirar populações civis, pela força, para áreas sob o seu controlo, indo desta forma contrariar o disposto na alínea b) de 1) do Artº. 3º da Convenção de Genebra, da mesma data, relativa à protecção dos civis em tempo de guerra. O PAIGC procurava, desde o início do conflito, ser reconhecido a nível internacional, nomeadamente pela ONU e pela OUA, na qualidade de único e legítimo representante do povo da Guiné e de Cabo Verde, em luta pela sua libertação. Foi na reunião da OUA, em 1965, que ficou decidido conceder apoio apenas aos movimentos nacionalistas que se batessem, efectivamente, no interior das colónias portuguesas e, após uma comissão do Comité de Libertação da Organização se ter deslocado à Guiné, decidiu reconhecer o PAIGC como a organização nacionalista que conduzia, efectivamente, a luta no território. A luta pelo reconhecimento internacional, como veremos no capítulo IV deste estudo, não parou. Com efeito, as NU, a partir dos finais de 1965, reconheceram e legitimaram as lutas de libertação das colónias portuguesas, através de inúmeras Resoluções da Assembleia Geral, pronunciando-se o Conselho de Segurança só no ano de 1972284. O Direito Internacional clássico considerava as lutas nacionalistas como conflitos internos, pelo que o caso da guerra no antigo Ultramar Português estava submetido apenas à lei interna de Portugal.

280 O movimento pró-abolição da pena capital surgiu só em Julho de 1986, quando seis personalidades, incluindo o vice-Presidente Paulo Correia, enfrentaram o pelotão de fuzilamento. Estes elementos foram acusados de conspiração e foi-lhes negado o direito de apelar das sentenças. A abolição da pena de morte data de 16 de Fevereiro de 1993 e pode-se considerar que, em grande parte, se deve ao esforço da Liga dos Direitos do Homem da Guiné-Bissau. 281 Sobre este assunto, podemos obter mais detalhes, no depoimento do Capitão Marcelino da Mata, em “A Guerra de África 1961-1974”, vol. I, págs. 547 a 554, da autoria de Freire Antunes, editado pelo Círculo de Leitores, Lisboa, 1995. 282 Elsa Camacho (activista e vice presidente da Liga dos Direitos do Homem da Guiné-Bissau), “Direitos do Homem na Guiné-Bissau”, Jornal “O Público”, 29 de Janeiro de 1995. 283 Amílcar Cabral, “Guiné-Bissau - Nação Africana Forjada na Luta”, pág. 150. 284 Assembleia Geral da ONU: Resoluções A/2105(XX) e A/2107(XX) de 21 de Dezembro de 1965. Conselho de Segurança da ONU: Resoluções S/312 (1972) de 4 de Fevereiro de 1972 e S/322 (1972) de 22 de Novembro de 1972.

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Para Paullette Mathy285, a grande vantagem do reconhecimento universal do carácter internacional dos conflitos reside na obrigação dos antagonistas aplicarem as leis e os costumes da guerra, particularmente as Convenções de Genebra, de 12 de Agosto de 1949286. O reconhecimento do carácter internacional do conflito provocava, como efeito, a aplicação das prescrições do Direito Internacional, para interdizer diversos métodos utilizados na repressão dos movimentos independentistas em África, sobretudo no que concerne à Guiné Portuguesa: o ataque a objectivos civis, quer no território sob administração portuguesa, quer nos países vizinhos, o emprego nesses ataques e bombardeamentos de armas proibidas (napalm) e ainda o reagrupamento forçado da população, entre outros287. A Assembleia Geral das Nações Unidas, no dia 29 de Novembro de 1967, pela resolução 2395 (XXIII), parágrafo 12, fez uma petição a Portugal no sentido de que “(...) étant donné le conflit armé qui règne dans les territoires et le traitement inhumain qui est infligé aux personnes, d´assurer l´application à cette situation la Convention de Genève rélative au traitement des prisonniers de guerre (...)”. Mas este acto não foi isolado, pois a Conferência Internacional dos Direitos do Homem, realizada em Teerão no ano de 1968, reconheceu também “(...) le droit des combattants de la liberté, s´ils sont capturés, comme des prisonniers de guerre, en vertu des conventions de Genève de 1949 (...)”288. Podemos, em síntese, considerar, quanto aos modelos estratégicos, que Amílcar Cabral foi influenciado, teoricamente, por Lenine, que tinha por base o partido, na prática, por Mao e Giap, cuja base era o povo, e por «Che» Guevara, que tinha como base a luta armada. Porém, Cabral estava em oposição à teoria foquista, aplicada por «Che» Guevara, e que consistia em desencadear a insurreição armada, mesmo sem preparação política, esperando envolver as massas camponesas na luta pelo exemplo da atracção289. 4. - Apoios externos à subversão A luta pelas periferias de desempate neste Continente, situado na confluência dos interesses das superpotências, foi descrito pela célebre frase do Dr. Salazar: A África “(...) arde porque lhe deitam o fogo de fora (...)”290. Após a independência, os países, cujos movimentos independentistas receberam apoio externo independentemente do sinal da concreta procedência ideológica -, sofreram as consequências já 285 Paullette Pierson Mathy, “La Naîssance de L´État par la Guerre de Libération Nationale: Le Cas de GuinéeBissau”, págs. 52 e 53, UNESCO ,1980. 286 “Conveção de Genébra para melhorar a sorte dos feridos e dos doentes das Forças Armadas em campanha de 12 Agosto de 1949”. Uma outra da mesma data, relativamente ao “tratamento dos prisioneiros de Guerra”. E outra ainda, relativa à “protecção de pessoas civis em tempo de Guerra”. Ver sobre o assunto em “Manuel de la Croix-Rouge Internationale”, Douziéme Édition - Comité International de la Croix Rouge, Ligues des Sociétés de la Croix Rouge, Genève, Juliet 1983. 287 Ver mais detalhadamente a Resolução A/2795 (XXVI), adoptada pela Assembleia Geral da ONU em 10 de Dezembro de 1971. 288 Resolução nº. 8, parágrafo 9. Em Paullette Pierson Mathy, ob. cit., pág. 53. 289 O caso cubano difere de todos os outros, pois, aqui, a “praxis” precedeu a doutrina, ou seja, nasceram primeiro os processos revolucionários e, só mais tarde, se procura a sua sistematização e o tratamento teórico da doutrina de justificação, união e desenvolvimento. É o próprio Guevara que define a revolução cubana como havendo tido o respectivo início como um movimento de massas, sustentando uma luta insurreccional sem a formação de um partido orgânico do proletariado. O papel da guerrilha foi, assim, o de elemento catalisador, “foco indutor”. Em Ernesto «Che» Guevara, “A Dimensão Internacional da Revolução”, pág. 178. 290 Citado por Franco Nogueira, “Salazar - A Resistência (1958/1964)”, pág. 80.

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referidas por Maquiavel291: saírem de uma dependência e caírem numa nova forma de dependência. Neste caso, o neocolonialismo. Em “Da Guerra”, Clausewitz considerava que os aliados, aqueles “(...) que estão, por essência, interessados na integridade de um país (...)”292 são o último apoio de quem se defende. Para o caso português, os aliados assumiram o desgaste internacional provocado pelo apoio prestado; mas não esqueçamos que, dentro do contexto da época, a situação que se vivia era a do equilíbrio pelo conflito mútuo assegurado e que os territórios ultramarinos portugueses se situavam na zona de confluência dos poderes políticos das superpotências em competição. Aquelas vieram, assim, a apoiar os movimentos independentistas que se mostraram dispostos, mal a vitória fosse alcançada, a incluírem-se na zona de influência da superpotência apoiante. Verificámos que a preocupação da URSS pela África se revelou desde muito cedo procurando alcançar, no Continente, uma plataforma indirecta para poder atacar os povos “capitalistas ocidentais”. Os EUA, que já desde Berlim surgiram como defensores da doutrina da autodeterminação, apoiam os movimentos independentistas através de organizações internacionais como a ONU, nomeadamente no período compreendido entre 1957 e 1961, e, quanto ao caso português, Kennedy dera luz verde à moção da Libéria, colocando-se, em 15 de Março de 1961, ao lado da URSS, RAU e do Ceilão, no Conselho de Segurança293. As superpotências não foram as únicas apoiantes de todos os movimentos independentistas; estes contavam, no seio da ONU, com o apoio conjunto dos povos africanos e dos países socialistas e receberam auxílio de diversos governos ocidentais, organizações internacionais e organizações não governamentais. O primeiro propósito dessas organizações era o de apoiar os movimentos independentistas do Ultramar Português, na sua luta contra a soberania portuguesa, fornecendo-lhes auxílio político e material, promovendo reuniões, conferências, encontros, patrocinando a impressão de artigos, publicações periódicas, etc; que, considerado nos mais diferentes aspectos, lhes era indispensável para a manutenção do seu esforço de guerra. Esta é a questão que pretendemos explorar com algum detalhe, pois permite-nos perceber como se internacionalizou a luta no antigo Ultramar Português, de quem dependia e a quem interessava. Para o caso específico da Guiné Portuguesa, procurámos provar, com base em alguma documentação classificada, quais os apoios concretos que o PAIGC tinha. 4.1. - Apoio de organizações internacionais. Em 12 de Dezembro de 1965, pela Resolução A/2105(XX) da Assembleia Geral, no quadro de acção que visava a aplicação da Resolução A/1514(XV), foi proclamada a legitimidade da luta dos povos sob dominação colonial, e a Resolução 2107(XX) da mesma Assembleia foi específica para os povos de territórios sob Administração Portuguesa; nesta Resolução, é feito ainda um apelo para que

291 Maquiavel é esclarecedor na seguinte passagem: “Júlio (...) contra Ferrara, recorreu às armas auxiliares (...): este género de armas pode muito bem ser bom e proveitoso em si-mesmo, mas é quase sempre prejudicial àqueles que a ela recorrem; se se perde fica-se vencido, se se ganha fica-se prisioneiro delas (...)”. Em ob. cit., págs. 73 e 74. 292 Carl Von Clausewitz, ob. cit., pág. 447. 293 Comissão para o Estudo das Campanhas de África, “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (19611974), 1º volume, Enquadramento Geral”, págs. 39, 54 a 57.

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todos os Estados, através da OUA, prestem auxílio político, moral e material aos povos em luta nesses territórios. A esta Resolução da Assembleia Geral várias outras com a mesma orientação, se lhe seguiram294. As Nações Unidas, ao reconhecerem a legitimidade da luta armada e ao legalizarem a ajuda, contribuíram de uma forma significativa para a causa dos movimentos em questão. Paullette Mathy, a este propósito, refere: “(...) L´importance des résolutions de l´Assemblée Générale réside dans le fait qu´elles ont conféré à la reconnaissance de cette légitimité et au droit des peuples en lutte à recevoir toutes formes d´aide et d´appui une porté universelle (...)”295. Dentro deste contexto, vejamos o apoio prestado pela OUA. A Carta da ONU escolhe os acordos regionais como forma de solução pacífica de conflitos296 ou como forma de organização do Mundo. A Carta da OUA, assinada em 25 de Maio de 1963, em Addis-Abeba, segue o enfiamento lógico e doutrinal da Carta da ONU; segue, também, logicamente, o seu conceito de estratégia, hoje maximalista. Esta Carta mostra uma especial preocupação face ao conceito de Paz, mas também perante os de Defesa e de Segurança. A problemática moderna alargou muito o conceito de Defesa, pois o conceito de Guerra também foi ampliado. Podemos dizer que se inverteu a máxima clausewitziana e que a política passou a ser a continuação da guerra por outros meios. Nesta ordem de ideias, modificaram-se os conceitos de Defesa e Segurança. Hoje em dia, Defesa significa Segurança alargada, e alargada a todos os domínios. Assim, a guerra trava-se na política, na economia, na diplomacia, nos transportes e comunicações, na educação e na cultura, na saúde, no ambiente, na ciência e na técnica. Esta preocupação sente-se na Carta da OUA, nomeadamente desde o seu Preâmbulo ao seu Artº. 3º. No Preâmbulo da Carta, decorrendo da noção que as potências participantes têm sobre as vulnerabilidades nacionais, provocadas pelas suas fronteiras, traçadas a régua e esquadro, portanto, artificiais, encontra-se expressa uma vincada preocupação: “(...) reforçar a compreensão entre os nossos povos e a cooperação entre os nossos Estados, a fim de corresponder às aspirações das nossas populações (...)”297. Note-se que não é, por acaso, a distinção entre povos, Estados e populações. A este propósito questionamo-nos se com povos, ali, se quererá dizer nações! porque nem sempre, na maioria dos casos de África, há uma justaposição entre povo/nação, muito embora os governos e regimes saídos dos movimentos independentistas pugnem pelas suas identidades nacionais. No Preâmbulo avulta ainda a preocupação de unidade que transcenda “(...) divergências étnicas e nacionais (...)”. Pensamos ser possível chegar a uma conclusão, a propósito de divergências étnicas e nacionais: a guerra revolucionária lançou “a posteriori” o anátema sobre aquilo que ela manipulou com perícia: os

Podemos consultar para mais detalhes as Resoluções da Assembleia Geral da ONU: A/2107(XX), A/2184(XXI), A/2270(XXII), A/2395(XXIII), A/2507(XXV), A/2795(XXVI), A/2918(XXVII). 295 Paullette Pierson Mathy, ob. cit., pág. 51. 296 Artigo 52º da Carta da ONU. 297 O sublinhado é nosso. 294

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mecanismos de comunicação já referidos por nós, que fogem ao controlo rigoroso do Estado, pois anteriores à formulação das fronteiras e subsistentes posteriormente, o sócio-religioso e o étnico. Esses mecanismos foram manipulados com toda a subtileza pela subversão em marcha e pela guerra revolucionária. Manipulados e simultaneamente anatematizados, em relação ao futuro, dada a preocupação preambular da Carta da OUA, em “(...) salvaguardar e consolidar a independência e a soberania duramente conquistadas, bem como a integridade territorial (...)”. Assim, de acordo com o Artº. 2º, “(...) os Estados Membros coordenarão e harmonizarão as suas políticas gerais (...)”, onde se inclui a Defesa e Segurança. O nº. 5 do Artº. 3º da Carta da OUA diz: “(...) condenação sem reserva do assassinato político, bem como das actividades subversivas (...)” (Em nenhuma outra Carta se diz isto), “(...) exercidas por um Estado vizinho ou quaisquer outros Estados (...)”. A Carta, datada de 1963, mostra que há consciência da parte dos Estados Africanos e que o processo de combate, em que eles próprios são parte interveniente, carece de “saber como” e de especificidades que podem, no amanhã, voltar-se contra quem as acciona. Não esqueçamos que a guerra revolucionária é uma operação técnica que envolve X componentes, Y linhas de actuação, mas que visa uma globalidade, a globalidade revolucionária. A Carta traduz o receio do uso de santuários e das cadeias informais de comunicação, já referidos, uma vez que esses são vulnerabilidades a eventuais manipulações. Quando apoiam movimentos independentistas, os Estados Membros da OUA têm consciência que accionam, directa ou indirectamente, ingredientes melindrosos. Por isso, a preocupação de uma Defesa/Segurança tão alargada que os conduziu a, por escrito, contemplarem o fenómeno subversivo, reconhecendo, assim, também a especificidade e a densidade dos terrenos humanos sobre que assentam. As preocupações espelham ainda, para os Poderes Estatais, o desiderato de um dinamismo que antecipe as situações. Se nos reportarmos ao que foi referido no início deste capítulo, percebemos o porquê do apelo ditatorial, numa urgência de tentar encontrar e mesmo promover as quatro acções oportunas na resposta à guerra subversiva e, sobretudo, à guerra revolucionária, quando declarada (como veremos, no capítulo IV, mais detalhadamente): a resposta social, poltico-administrativa, militar e a psicológica. Estas respostas têm de ter uma coordenação muito estreita de tal forma que, como referimos anteriormente, só o Poder totalitário pode dá-la e, mesmo assim, com dificuldade o consegue fazer. As disposições cautelares da Carta da OUA procuram fazer a profilaxia da corrosão dos próprios poderes formais. O nº. 6 do Artº. 3º refere a “(...) dedicação sem reserva à causa da emancipação total dos territórios africanos ainda não independentes (...)”, sendo, nesse espírito, que, em Rabat, no decorrer da Nona Conferência da OUA, de 12 a 15 de Junho de 1972, foi decidido que os participantes aumentariam em 50% o fundo especial de apoio ao Comité de Libertação298. Em 19 de Maio de 1973, o Conselho de Nesta reunião foram adoptadas diversas resoluções, sendo de salientar: • O pedido a todos os países africanos para cortarem relações com Portugal; • O pedido a todos os países, em especial aos da NATO, para que suspendam o fornecimento de material de guerra ao Governo Português por o mesmo facilitar o regime colonial em África; • A rejeição da reforma constitucional, através da qual Portugal promete conceder maior autonomia aos territórios africanos; • O pedido à CEE para que não estabeleça qualquer acordo com Portugal, enquanto este mantiver as suas colónias; 298

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Ministros da Organização aprovou a “nova estratégia para a libertação de África”, preparada em Janeiro de 1973, em Accra, pelo Comité de Libertação. O documento elaborado em Accra, baseado na declaração de Mogadiscio, em 1971, que referia ser a luta armada o único meio para libertar a África Austral, acrescenta que essa mesma luta armada devia ser considerada como um “todo indivisível” e que convinha coordenar as actividades dos diversos “movimentos de libertação”, propondo mesmo a criação de frentes unidas e a repartição do seu auxílio aos movimentos de libertação, sendo que ao PAIGC competiam 25% do total dos fundos disponíveis299; mesmo depois do PAIGC ter autoproclamado a independência e a Guiné (agora Bissau) ter sido admitida na OUA, os apoios desta organização não cessaram. Assim, na 22ª Sessão do Conselho de Ministros, de 1 a 5 de Abril de 1974, foi adoptada uma Resolução em que foi estabelecida a quantia de 450 mil dólares destinados ao “Fundo para a Consolidação da Independência da GuinéBissau”300. O maior auxílio que os movimentos subversivos africanos receberam não foi o da ONU nem o da OUA; estas organizações tiveram uma inegável importância, pois concederam aos movimentos a necessária internacionalização política, sem a qual dificilmente sobreviveriam. No entanto, no campo prático, ou seja, no que se refere ao treino militar, fornecimento de armas, equipamentos, medicamentos, etc., o auxílio bilateral é que permitiu a manutenção dos movimentos.

4.2. - Apoio bilateral Na Guiné, a selecção dos quadros do partido para a frequência de cursos, no estrangeiro, foi feita nomeadamente entre cabo verdianos e as etnias Mancanha e Papel, consideradas como as que possuíam o maior grau de evolução. A sua formação política foi feita, normalmente, na URSS e na China Popular. Posteriormente, quando do seu regresso, eram destinados a exercer funções de maior • A condenação da construção da barragem de Cabora-Bassa e Cunene e o pedido a todos os países para retirarem rapidamente a sua comparticipação na realização desses projectos. O orçamento da Comissão de Libertação passou assim de 72.500 contos para 132.000 contos. Em ComandoChefe das Forças Armadas de Angola, “Perintrep nº 825”, Reservado. Das intervenções realizadas destacam-se a do representante do Congo, que preconizou a criação de “Brigadas Internacionais” para apoiar a acção dos movimentos de libertação africanos, a de Amílcar Cabral que referiu a organização de eleições nas áreas libertadas. O Rei Hassam II de Marrocos, em 16 de Junho, na qualidade de Presidente em exercício da OUA, deu uma conferência de Imprensa em que: • Pediu aos países africanos limítrofes dos territórios a libertar que aceitassem servir de bases para as operações dos movimentos de libertação, aceitando os inconvenientes dessa situação: direito de perseguição e de represálias; Afirmou que, se um movimento de libertação quer ser verdadeiramente formado e organizado, tem de constituir um Governo, no exílio, com os seus Ministros e Primeiro Ministros, pedindo o reconhecimento “de jure” ou “de facto”, não somente dos países africanos, mas também do´s países amigos. Em “Relatório de Situação 514”, Serviços de Coordenação e Centralização de Informações de Angola, Secreto, Julho de 1972. 299 O designado Comité dos 17 sugeria ainda que: a OUA prestasse assistência aos “movimentos de libertação”, reconhecidos por aquela organização, por um período indeterminado. A cessação de assistência quando: • Um movimento se revelasse mais potente do que outros que actuam no mesmo território. Neste caso, apenas aquele será reconhecido pela OUA, não recebendo os outros qualquer auxílio da organização; • Não haja sido criada qualquer “frente unida” e nenhum movimento que actue nesse território prove a sua supremacia sobre os outros. A repartição do auxílio pelos movimentos de libertação seria: 25% FRELIMO, 30% comando unificado MPLA/FNLA, 10% SWAPO, 5% ANC e PAC, 5% outros movimentos. Em “Actividades da OUA”, Direcção Geral de Segurança-Guiné, Informação nº 568 - 2ª DI, Reservado, 26 de Maio de 1973. 300 Serviços de Coordenação e Centralização de Informações de Angola, “Relatório de Situação 625”, Secreto, Abril de 1974.

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responsabilidade, no âmbito da organização do Partido. Contudo, a sua formação prosseguia continuamente, pois os elementos do Partido eram submetidos a um aperfeiçoamento nos denominados “Seminários de Quadros”. Quanto ao ensino, no estrangeiro, foi referenciada a ida de bolseiros do PAIGC para frequentarem cursos e especializações de carácter militar301 e civil302. A actividade de angariação e distribuição das bolsas era feita pela Secção de Estudos no Exterior, directamente dependente da Direcção dos Serviços de Cultura a quem competia a ligação dos estudantes ao Partido. Durante a realização do “Seminário de Quadros”, em Novembro de 1969303, numa intervenção de Amílcar Cabral intitulada “Elevar a Consciência Política e a Militância dos Estudantes do Partido”, o Secretário-Geral refere-se aos estudantes, no estrangeiro, em termos de notória preocupação, relativamente a atitudes tomadas por estes, como a fuga para países aliados de Portugal, e mesmo para este último país. Os quadros inferiores do Partido e os combatentes eram treinados em campos de instrução dos países limítrofes, como o de Kambera, na República da Guiné. Estes elementos recebiam formação política304 e militar305. Algumas instruções de especialidade foram ministradas em outros países como Argélia, Cuba, China Popular e URSS306.

301 De acordo com o Supintrep 32, “Ordem de Batalha do PAIGC - Instrução, Táctica e Logística”. ComandoChefe das Forças Armadas da Guiné, Secreto, Junho de 1971: Rússia - cursos e especializações de aeronáutica, marinhagem e fuzileiro, especializações políticas, bem como a preparação militar dos futuros quadros do Exército Popular; China - especializações de política e guerra subversiva, obtidos no Instituto Popular de Política Estrangeira, em Pequim, e na Universidade Política Militar, em Nanquim; 301 De acordo com o Supintrep 32, “Ordem de Batalha do PAIGC - Instrução, Táctica e Logística”. ComandoChefe das Forças Armadas da Guiné, Secreto, Junho de 1971: Rússia - cursos e especializações de aeronáutica, marinhagem e fuzileiro, especializações políticas, bem como a preparação militar dos futuros quadros do Exército Popular; China - especializações de política e guerra subversiva, obtidos no Instituto Popular de Política Estrangeira, em Pequim, e na Universidade Política Militar, em Nanquim; A preparação dos quadros do Exército Popular na China, Cuba, Argélia e Marrocos. 302 De acordo com o Supintrep 32: a) Rússia: são ministrados cursos de medicina e agronomia (Universidade Patrice Lumumba em Moscovo), enfermagem, geologia, pedagogia, sindicalismo, cursos comerciais e mecânicos (Kiev); b) Checoslováquia: os alunos do PAIGC frequentaram cursos de engenharia de minas, máquinas e civil, medicina e sindicalismo, espionagem, higiene e profilaxia social; c) Alemanha Democrática: electricidade e máquinas; d) China Popular: espionagem e sindicalismo; e) Bulgária: medicina, medicina veterinária, enfermagem, agronomia, pesca e indústria conserveira; f) Hungria: economia e engenharia de minas; g) Cuba: transmissões e enfermagem. 303 Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, Supintrep nº 36. 304 Esta formação consistia em conhecimentos elementares sobre a História da Guiné, sobre os dirigentes do Partido, o Partido e os seus Programas, a situação política e económica de Portugal e da Guiné. Era ensinada ainda a forma de desenvolver acções de propaganda da “luta de libertação nacional” entre as populações. 305 Com o avanço da luta, o PAIGC necessitou de suprir às necessidades de recompletamento e aumentos FARP. Assim, nas zonas sob seu controlo, nomeadamente as áreas de Biambe/Queré, Tiligi e Sara/Enxalé na Inter-Região Norte e nos sectores Gã Formoso, Injassane, Como, Tombali, Cubucaré, Quitafine e a Oeste da estrada BambadincaXitole na Inter-Região Sul, desencadeou operações de recrutamento, extensivo às populações refugiadas na República da Guiné e Senegal. A estes elementos, com idades compreendidas entre os 18 e os 25 anos, era ministrada instrução político-militar e cultural intensiva, num total de 180 horas de preparação militar e 100 de preparação cultural. Em, Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, “Supintrep nº 32”. 306 Em conformidade com o Supintrep nº. 32,: • China Popular- campos adstritos às Academias Militares de Nanquim e Wuhaw e campo de instrução em Pequim; • Cuba- Campo de instrução Sierra Maestra em Mina del Rio; • URSS- Centro de instrução da marinha de guerra de Hersen, e campo de instrução de Sumperopol. Segundo um documento dos Estados-Maiores Peninsulares, “Informação Sobre o Apoio de Diversos Países a Movimentos de Libertação”, Secreto, de 20 de Março de 1973, na Argélia foram localizados campos de instrução de guerrilheiros em Ain El Turk, Ain Sefra, El Aricha, Sebou, Sidi Bel Abbes e Kenadza, sendo que os elementos do

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Os países nórdicos sempre se distinguiram pelo seu apoio financeiro declarado aos movimentos independentistas. A Dinamarca, país aliado de Portugal na NATO, associado na EFTA e também uma nação pluricontinental, teve um comportamento em relação à política ultramarina portuguesa classificado pelas autoridades de “(...) incoerente, insólito e dos mais ofensivos (...)”307. O auxílio deste país, segundo uma conferência de imprensa, dada em 10 de Março de 1972, em Dar-Es-Salem, por Knud Andersen, Ministro dos Negócios Estrangeiros Dinamarquês, seria prestado pelo seu governo em material e, especificamente, destinado aos campos da saúde e educação; o montante a conceder aos movimentos independentistas africanos seria de 6.500.000 coroas dinamarquesas308. A Noruega, apesar de ser parceiro de Portugal na NATO, também apoiava os movimentos independentistas de diversas formas. Andreas Cappelen, Ministro dos Negócios Estrangeiros, esclareceu numa comunicação ao Storting (Parlamento Norueguês) que o seu Governo tencionava dar auxílio humanitário e assistência económica aos povos das “colónias”, ainda existentes em África, para que estes pudessem continuar a sua luta pela libertação309. Assim, em resultado da visita de uma delegação do PAIGC a Oslo, o Governo norueguês propôs a concessão de um milhão de coroas norueguesas a este Partido310, mas o auxílio seria sob a forma de bens de equipamento. Neste país, o apoio aos movimentos independentistas africanos atingiu o auge, quando da realização, de 9 a 14 de Abril de 1973, em Oslo, da “Conferência Internacional de Peritos em Apoio às Vítimas do Colonialismo e do Apartheid, na África Austral”. Nesta conferência, com antecedentes remotos em Cartum e, posteriormente, em Roma311, estiveram representados 53 países dos 65 convidados e 7 movimentos independentistas, sendo a delegação do PAIGC representada por Vasco Cabral. Este delegado anunciou que a Assembleia Nacional Popular, criada em 1972, proclamaria a existência “de jure” da Guiné-Bissau, em 1973. O Governo Sueco, considerado responsável pela expulsão de Portugal da UNESCO, apoiava os movimentos independentistas através da “SIDA” (Swedish International Development Agency). Nos anos de 1969 e de 1970, a ajuda financeira cedida pela Suécia ao PAIGC foi de 2.750.000 milhões de coroas suecas, e de 4,5 milhões em 1971312, tendo sido elevada, posteriormente, para 10 milhões313. A ajuda humanitária sueca tinha uma particularidade que a distinguia das outras: a possibilidade dada ao

PAIGC eram treinados em Colbert. No Supintrep nº. 32 é referido que também a população era educada politicamente pelos comissários políticos dos diferentes escalões; neste documento está bem explicita a forma como era feita a doutrinação. 307 Estado-Maior do Exército, Relatório Mensal de Notícias, Reservado, Março de 1972. 308 Idem. 309 Estado-Maior do Exército, Relatório Mensal de Notícias, Reservado, Janeiro de 1972. 310 Ministério dos Negócios Estrangeiros, Direcção Geral dos Negócios Políticos, ofício nº 152 de 8 de Junho de 1972. 311 Em 1968, realizou-se em Cartum uma conferência de solidariedade para com os movimentos políticosubversivos das antigas Províncias Ultramarinas Portuguesas e da África Austral. Nesta conferência procurou mobilizar-se a opinião pública internacional em favor dos movimentos independentistas. Na Conferência de Roma, “Conferência Internacional de Apoio aos Povos das Colónias Portuguesas”, realizada de 27 a 29 de Junho de 1970, participaram 177 organizações, representando 64 países. 312 Direcção Geral de Segurança-Angola, Informação Nº287-2ª DI, “Apoio aos Movimentos Subversivos”, 2 de Março de 1972. 313 Ministério do Ultramar, Gabinete dos Negócios Políticos, Resenha nº 51 de 1972.

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PAIGC na escolha antecipada para o emprego do montante o que, segundo Luís Cabral, permitiu “(...) um gigantesco passo na construção de uma vida melhor para o povo das áreas libertadas (...)”314. Olof Palme, Primeiro Ministro sueco, dizia após o assassinato de Amílcar Cabral, a 20 de Janeiro de 1973, em carta enviada à viúva do líder africano, que as iniciativas do marido e dos seus companheiros deviam resultar na derrota da potência colonial, na Guiné-Bissau, prometendo ainda aumentar o apoio do seu Governo facto que se viria a concretizar com um aumento que se supõe ter sido para metade do auxílio sueco a movimentos independentistas, orçamentado em 30 milhões de coroas315. Amílcar Cabral considerava que “(...) a luta na nossa terra, tem que ser feita pelo nosso povo. Não podíamos de maneira nenhuma pensar em libertar a nossa terra, chamando gente de fora (estrangeiros) para virem lutar por nós (...)”316. O certo é que o PAIGC não só recebeu apoio externo de instrutores militares como também de alguns mercenários317. De todo o auxílio externo, o mais importante, no terreno, foi o prestado pelos países limítrofes, a partir dos quais eram efectuadas operações militares318. Para Debray, “ (...) o estudo de todas as guerras populares contemporâneas (...) põe em relevo por todo o lado, e sempre, o papel decisivo exercido pelo «santuário» de um país amigo ou neutro, limítrofe (...) Encontrar-se-á, dificilmente, hoje, uma guerrilha de envergadura, em qualquer parte que seja do mundo, mesmo se possui bases raciais, étnicas ou nacionais maciças, como nos países africanos ainda submetidos à colonização portuguesa, que tenha podido ou possa escapar ao esgotamento físico, sem poder contar com uma possibilidade de recesso em lugar seguro (...)”319. Porém, admitimos que não existem santuários invioláveis. Na guerra da Guiné Portuguesa, esse papel era desempenhado pelo Senegal e pela Guiné-Conacry, e as Forças Armadas Portuguesas executaram operações diversas vezes em território senegalês e da República da Guiné, e por isso Portugal foi condenado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, como foi o caso da Resolução nº 273 de 9 de Dezembro de 1969, em que se adverte Portugal por ter atingido com tiros de

Luís Cabral, “Crónica da Libertação”, pág. 334, O Jornal, Lisboa, 1984. Secretaria Geral da Defesa Nacional, 2ª Repartição, Recortes de Notícias, Extraída de Reuter, 13 de Fevereiro de 1973. 316 Amílcar Cabral, “Guiné-Bissau - Nação Africana Forjada na Luta”, pág. 156. 317 Na obra do General Spínola, “País sem Rumo”, págs. 43 e 44, é referida a deslocação de Amílcar Cabral à Argélia com o fim de recrutar mercenários, Ed. SCIRE, Lisboa 1978. Em documento da Direcção Geral de SegurançaGuiné, “Actividades do PAIGC”, Informação Nº 1428-CI (2), Confidencial de 6 de Novembro de 1970, é referida a presença de estrangeiros instrutores e de comandantes de alguns grupos da guerrilha. Sabe-se também, por documento classificado de Secreto, de 23 de Setembro de 1971, que desde Maio de 1971 participaram mais de 250 Cubanos nas operações do PAIGC, na Guiné, efectuadas a partir de território senegalês e guineense. Estes elementos seriam pagos, em parte, pelo Comité de Libertação da OUA. Segundo um documento dos Estados-Maiores Peninsulares, “Informação Sobre o Apoio de Diversos Países a Movimentos de Libertação”, Secreto, de 20 de Março de 1973, Cuba apoiava o PAIGC a nível de quadros, técnicos e combatentes. Um outro documento, do Estado-Maior da Armada, II Divisão, “Influência Líbia no PAIGC”, Confidencial, 3 de Fevereiro de 1972, refere que após a Conferência da “Comissão de Coordenação para a libertação de África”, a Líbia prometeu apoio a pedido de Amílcar Cabral, no sentido de ser aumentado o auxílio material e militar ao seu partido; além do mais o Governo Líbio mostrou disponibilidade para participar em operações militares contra o inimigo português, na área. 318 Secretaria Geral da Defesa Nacional, 2ª Repartição, “Exposição Sobre a Situação de Informações na Província da Guiné”, Secreto, 31 de Julho de 1964. De acordo com este documento, a infiltração de armamento na antiga Província da Guiné era feita a partir dos dois países limítrofes. Algum armamento era proveniente da Argélia, mas também de Cuba (material pesado) e da URSS e Jugoslávia (300 toneladas de armamento não especificado). Faz referência também a material importado pela Gâmbia e o seu posterior envio para o Casamansa. 319 Régis Debray, “A Crítica das Armas”, pág. 145 e seguintes. 314 315

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obus a aldeia senegalesa de Samine, e a Resolução nº 275 do mesmo ano que advertia, solenemente, o Governo de Lisboa, em relação a incursões ou ataques contra o território da Guiné-Conacry. Do Governo de Sékou Touré, o PAIGC recebia todo o auxílio possível, desde totais facilidades de trânsito, de instrução militar das FARP, de educação dos futuros quadros, de assistência sanitária, de propaganda, e até, inclusivamente, pelo internamento em estabelecimentos prisionais guineenses de militares portugueses feitos prisioneiros. Podia-se mesmo considerar como um “(...) paraíso (...)”320 para o PAIGC. Por parte do Governo Senegalês nem sempre assim foi. Senghor, que de início prestava auxílio à FLING, talvez por receio do fomento de perturbações desenvolvidas pelo PAI (Partido Africano da Independência), partido de oposição com forte influência no Casamansa e que mantinha com o PAIGC estreitas relações, decidiu conceder apoio e celebrou mesmo um protocolo com o PAIGC, que estabelecia as modalidades de cooperação entre as autoridades senegalesas e os responsáveis do PAIGC321. O trânsito de elementos e material para apoio era controlado através de escoltas, quer da Guarda Republicana, quer do Exército, por forma a evitar o seu desvio para as populações do Casamansa. 4.3. - Apoio das organizações não governamentais Foram inúmeras as ONG que apoiavam os movimentos independentistas, no antigo Ultramar Português. Sem pretender fazer uma discriminação exaustiva dessas organizações, vamos referir apenas algumas com mais implantação no terreno. A subversão “larvar” era há muito auxiliada pelas missões protestantes de comandamento norteamericano, pelas seitas cristãs nativas, pela «Ford Foundation», pela AFL-CIO (American Federation of Labor - Congress of Industrial Organizations) e outras instituições de tutela norte-americana. Na sequência do Concílio Vaticano II, parte do clero católico (em que, anteriormente, se notava a preocupação de desvanecer a associação Igreja/Administração) enveredou, na linha do aggiornamento, pela contestação da posição portuguesa em África. No caso de Moçambique, essa posição assumiu mesmo um carácter de apoio logístico e em informações à acção armada da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), nomeadamente por parte de sacerdotes isolados e congregações religiosas, estrangeiras. O Conselho Mundial das Igrejas, que teve a sua origem em Agosto de 1948, no “National Council of Churches of Christ” dos EUA, possuía uma forte influência comunista322. Desde Setembro de 1970 que anunciou, publicamente, a sua intenção de auxiliar financeiramente, mas com fins humanitários, os movimentos independentistas de África; entre 1970-71 financiou o PAIGC em 45.000 dólares323. Em Novembro de 1971, dirigiu um apelo aos seus membros, no sentido de angariar 340 mil dólares, 320 Nuno dos Santos, “O Problema da África Actual”, pág. 17, Estado-Maior do Exército, Cadernos Militares - 4, Lisboa, 1969. 321 Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, Supintrep nº. 32, “Ordem de Batalha do PAIGC - Instrução, Táctica e Logística”, Secreto, Junho de 1971. 322 “A Brief Review of Comunist Manipulation of the World Council of Churches”, Background Brief, 29 de Setembro de 1972, Secret. O documento esclarece com precisão como elementos da “Communist Youth League” eram treinados e, posteriormente, infiltrados em organizações como o Conselho Mundial das Igrejas.

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destinados ao MPLA, FRELIMO e PAIGC324 e, em carta datada de 3 de Janeiro de 1973, dirigida ao Presidente da Comissão Especial da ONU para o “Apartheid”, informou que pela terceira vez concedera donativos a movimentos representativos dos povos oprimidos das diferentes partes do Mundo, dos quais 25.000 dólares para o PAIGC325. Em Inglaterra, o Partido Trabalhista enviou, em Dezembro de 1971, cerca de 1300 libras aos movimentos independentistas que actuavam no antigo Ultramar Português326, sendo esta actuação criticada pelos conservadores e comparada a um hipotético apoio ao IRA. Neste país, actuavam várias organizações anti-portuguesas que, directa ou interpostamente, apoiavam os movimentos independentistas, como a “Movement For Colonial Freedom”, a “International Defense and Air Fund” e o “Comité de Moçambique, Angola e Guiné-Bissau”. No dia 1 de Maio de 1972 foi realizada, na Holanda, pela “Fundação Evert Vemer”327, uma campanha para a recolha de fundos destinados aos movimentos independentistas africanos. Mas, neste país, aliado de Portugal na NATO, existiam também outras organizações apoiantes dos referidos movimentos, como: Fundação Eduardo Mondlane, Grupo de Acção para a África Austral e o Comité de Angola. Este último desenvolveu acções para boicotar a importação de café proveniente de Angola. Vimos já que se realizou em Roma, no ano de 1970, a Conferência Internacional de Apoio aos Povos das Colónias Portuguesas, mas o “Movimento Liberazione e Sviluppo” organizou também um convénio em Milão, de 8 a 9 de Abril de 1972. Nele participaram representantes dos diversos movimentos independentistas, tendo sido decidido coordenar os movimentos de guerrilha, a nível internacional, e também o reconhecimento oficial dos representantes daqueles movimentos. Mas ainda outras ONG, como o “Movimento per il Terzo Mondo”, apoiavam os movimentos independentistas das antigas Províncias Ultramarinas Portuguesas328. Em síntese: as guerrilhas, invocando os nacionalismos, são, na grande maioria dos casos, um fenómeno internacionalista. Assim, “A crítica das Armas” considera a guerrilha como sendo: “(...) importada de fora para as massas (da cidade, na região montanhosa escolhida), como a consciência de classe é importada de fora pelos intelectuais burgueses, portadores da doutrina científica do socialismo, no seio do movimento operário (...)”329.

323

Ministério dos Negócios Estrangeiros, Direcção Geral dos Negócios Políticos, Proc. 905, 22 de Novembro de

1972. 324 Serviços de Coordenação e Centralização de Informações de Angola, Relatório de Situação 541, Secreto, Agosto de 1972. 325 Ministério do Ultramar, Gabinete dos Negócios Políticos, Resenha nº. 30 de 1973. 326 Secretaria Geral da Defesa Nacional, 2ª Repartição, Recortes de Notícias, Extraída de Reuter, 21 de Dezembro de 1971. Sobre este acontecimento, Judith Hart, presidente do Fundo de Solidariedade com o Sul da África do Partido Trabalhista, afirmou que o dinheiro se destinava a medicamentos, educação e cultura, mas que os beneficiários teriam toda a liberdade de o utilizarem para comprar armas, se assim o desejassem. 327 Secretaria Geral da Defesa Nacional, 2ª Repartição, Recortes de Notícias, Extraída de Reuter, 24 de Março de 1972. O presidente da Fundação, o Deputado Trabalhista Holandês K. Wierenga, afirmou em conferência de imprensa que em certos casos o dinheiro poderá ser utilizado para comprar armas, embora isso não fosse do agrado da Fundação. 328 Ministério dos Negócios Estrangeiros, Direcção Geral dos Negócios Políticos, Proc. 908, 11 de Maio de 1972. 329 Régis Debray, “A Crítica das Armas”, pág. 211. De igual forma, no antigo Ultramar Português, a doutrina foi importada por alguns líderes, que fomentaram nos territórios a guerra revolucionária, pois, também aqui, os camponeses eram incapazes, sozinhos, sem orientação, de “passar da rebelião larvar ou do descontentamento latente à utilização consciente e dirigida da violência revolucionária”.

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Capítulo III O ARTIFICIALISMO DAS FRONTEIRAS DA GUINÉ PORTUGUESA E OS ESPAÇOS SÓCIO-RELIGIOSOS SOBREPONÍVEIS: SOCIEDADES DE RELIGIÃO TRADICIONAL E COMUNIDADES MUÇULMANAS; A SUA ATITUDE PERANTE A SUBVERSÃO

1. - Sociedades onde preponderava a religião tradicional Gomes Eanes de Zurara relata, na sua Crónica dos Feitos da Guiné, os cinco motivos que impulsionaram o Infante D. Henrique à expansão. O mais importante, segundo ele, era a missionação330. Nos séculos XV e XVI, os portugueses consideravam-se “(...) mandatários da cristandade para levar o Evangelho aos povos mergulhados nas trevas do paganismo (...)”331. Assim, podemos considerar que a missão de colonização foi a de “(...) evangelizar, cristianizar, ou seja, civilizar, dado que, na época, não se concebia civilização fora do Cristianismo (...)”332. No empreendimento da colonização portuguesa, face à resistência de alguns povos nativos, os portugueses tiveram de desenvolver acções de submissão e pacificação, procedimento também aplicado em relação aos povos nativos da Guiné-Bissau. Esta, apesar do seu exíguo território, possui uma estrutura étnica extremamente variada. Segundo dados reportados ao censo geral da população de 1950, a mesma cifrava-se em 507152 habitantes, distribuídos por 18 grupos étnicos, sendo cinco as etnias dominantes: 30,4% Balantas, 21,46% Fulas, 14,69% Manjacos, 12,59% Mandingas e 7,7% de Papéis333. Os povos da Guiné-Bissau, segundo a tradição, podem dividir-se em povos do interior e povos do litoral. Estes últimos, antes do século XV, teriam ocupado regiões situadas mais no interior. Posteriormente, em consequência de “(...) guerras internas para a conquista de terras, capturas de escravos, imposição de credos religiosos, ou até, para o predomínio de famílias ou castas (...)”334, teriam sido «empurrados» para o litoral.

330 Gomes Eanes de Zurara, “Crónica dos Feitos da Guiné”, cap. VII, págs. 42 a 46, Agência Geral do Ultramar, Lisboa, 1949. vol. 2. 331 Marcello Caetano, “Tradições, Princípios e Métodos da Colonização Portuguesa”, pág. 32, Agência Geral do Ultramar, Lisboa, 1951 332 Silva Cunha, “ O Sistema Português de Política Indígena. Princípios Gerais”, pág. 12, Agência Geral do Ultramar, Lisboa, 1951. 333 Rogado Quintino, “Os Povos da Guiné”, pág. 33, em BCGP, nº 96, 1969. Segundo dados reportados ao recenseamento geral da população, de Abril de 1979, num total de 780985 habitantes, distribuídos por 36 grupos étnicos, são cinco as etnias dominantes: 24,81% Balantas, 22,91% Fulas, 12,21% Mandingas e, aproximadamente, 10% de Manjacos e Papéis. Recenseamento realizado pelo departamento central de Recenseamento do Ministério da Coordenação Economia e Plano, 16 de Abril de 1979. Dados reportados a Maio de 1988, do Fundo das NU para a população, consideram que os grupos étnicos são mais de 28, sendo 27,1% Balantas, 23,1% Fulas, 13,3% Mandingas e, aproximadamente, 7% de Manjacos e Papéis, num total de 767739 habitantes. Em Fonds des Nations Unies pour la population, Republique de Guinée-Bissau, “Rapport de mission sur l´évolution des besoins d´aide en matière de population”, Maio de 1988. Em Novembro de 1995, a população da Guiné-Bissau rondava 1 milhão de habitantes. 334 António Carreira e Martins Meireles, “Movimentos Migratórios da População da Guiné”, pág. 8, em BCGP, nº 53, Bissau, 1958. Opinião idêntica têm: Teixeira da Mota em “Guiné Portuguesa”, págs. 141 e 142, Agência Geral do Ultramar, Lisboa, 1954; o PAIGC na sua “História da Guiné e das Ilhas de Cabo Verde”, pág. 58, e Carlos Lopes, “Etnia, Estado e Relações de Poder na Guiné-Bissau”, pág. 19.

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Segundo Teixeira da Mota335, os territórios que os povos da Guiné Portuguesa habitavam em 1954, exceptuando os Fulas e os Beafadas, são os mesmos desde o século XV. Ao analisarmos o mapa anexo IV, verificamos que as comunidades muçulmanas predominam no interior (para além da influência das marés) e as sociedades de religião tradicional predominam no litoral. Unidade fundamental das sociedades da Guiné-Bissau e da África, em geral, a família extensa funciona como elemento mítico-espiritual, social e até juridicamente solidário. No caso da GuinéBissau, em todas as etnias de religião tradicional africana, as linhagens matrilineares congregam todos quantos identifiquem e integrem a cadeia unilinear de parentesco. As estruturas políticas e sociais das sociedades africanas típicas possuem um carácter intensamente comunitário, desempenhando o indivíduo funções com importância colectiva, sendo o seu interesse subordinado ao geral. O comunitarismo faz ainda parte da religião, das formas de vida económica e da existência de inúmeras sociedades especiais, no espaço entre família e tribo336. Silva Cunha considera que “(...) nenhum aspecto da vida do africano é estranho à religião, esta impregna todas as suas actividades, qualquer alteração nos sistemas tradicionais da vida repercute-se nas crenças, assim como o enfraquecimento destas se reflecte imediatamente na disciplina social (...)”337. As religiões tradicionais na Guiné-Bissau, embora com diferenças consoante os grupos étnicos e lugares, apresentam um certo número de características comuns. A noção de um Deus único, supremo e criador, quase generalizada, entre os Balantas, Manjacos e Papéis; geralmente, consideram-no demasiado distante dos homens, quase inacessível e, por isso, o culto é orientado para divindades secundárias: na Guiné-Bissau, o “Irã”, “espírito dinâmico”338, intermediário entre os homens e Deus. Este “espírito dinâmico” liberta-se do indivíduo através da morte, mantendo a sua personalidade, as suas paixões e os seus gostos, continuando, no entanto, a fazer parte da família e sendo “(...) necessário prestar-lhe um culto, se não se quer que ele se vingue cruelmente (...)”339. Varia de tribo para tribo: “(...) orienta, dirige, regula e pune os actos de cada um dos seus descendentes (...)”340, intervém no nascimento, no fanado, na justiça, no casamento, na sementeira, etc. A força vital é o valor supremo da vida, e os espíritos dos mortos ocupam lugar de relevo nas divindades secundárias341. Os antepassados são hierarquicamente concebidos, tendo por centro a linhagem unilinear que regula as relações entre os membros do grupo, também escalonados. O nativo guineense, para se proteger da perda ou diminuição da força vital, recorre ao culto do “Irã” dos antepassados, culto que “(...) faz da sociedade indígena uma comunidade de vivos e de mortos (...)”342.

Teixeira da Mota, ob. cit., pág. 142. Silva Cunha, “Questões Ultramarinas e Internacionais (Sociologia e Política: Ensaio de Análise das Situações Coloniais Africanas) - II”, pág. 67, Col. Jurídica Portuguesa - Ed. Ática, 1961. 337 Idem, pág. 156. 338 Teixeira da Mota, ob. cit., págs. 244 e 245. 339 Idem, pág. 245. 340 Fernando Rogado Quintino, “Entre Gente Temente ao Deus-Irã”, pág. 105, em “Revista Ultramar” nº 32, 2º Trimestre, ano VIII, vol. III nº 4, Lisboa, 1968. 341 Silva Cunha, “Questões Ultramarinas e Internacionais (Sociologia e Política: Ensaio de Análise das Situações Coloniais Africanas) - II”, pág. 71. 335 336

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Era neste mesmo terreno de religião tradicional que a missionação cristã, se realizada de forma superficial e apenas em extensão, não conseguia conduzir à conversão real dos nativos; fazia-os, sim, perder ou enfraquecer as crenças tradicionais, apressando a desagregação da tribo343. Perante este substracto religioso e os concursos do Islão, competia ao missionário, por exemplo, “(...) erradicar a poligamia, expurgar do direito gentílico quanto se pudesse opor à “Regra Evangélica”; ampliar até aos ditames daquela Regra os conceitos de fraternidade restritos; bater a magia; anular os poderes secundários e colocar em evidência Deus Uno e Único (e simultaneamente Trino) (...)”344. Durante a organização e administração do território, procurou integrar-se as autoridades nativas tradicionais na organização política e administrativa geral345. De início, a instituição dos regulados (anterior à chegada dos portugueses) era reconhecida pela Administração Portuguesa como uma organização tradicional africana, mas cedo passou a ser um meio de que esta Administração dispunha para orientar todas as relações com as populações autóctones, processadas através dos respectivos chefes. Nem sempre este sistema se revelou eficaz, pois eram postos em confronto dois poderes políticos, com interesses divergentes, radicados na diferenciação cultural das suas sociedades. A Administração Portuguesa, sempre que pretendia um equilíbrio das forças em presença, seguindo a doutrina “dividir para reinar”, mostrava-se impassível nas lutas entre os régulos, ou apoiava um em desfavor de outros346. A soberania portuguesa só se radicou incontestavelmente no século XX com as campanhas de pacificação de Teixeira Pinto, com isso a consequente perda de prestígio e mesmo o desmembrar e/ou a extinção de alguns regulados. Todavia, Portugal pretendia a influência dos régulos como autoridades tradicionais. Assim, criou novos régulos, mas por vezes sem prestígio entre as populações, dado que aqueles deixaram de exercer o poder de acordo com os costumes tribais, fazendo-o, sim, como poder, “(...) conferido pelos colonizadores e que se mantém apenas enquanto os chefes nativos merecem a sua confiança (...)”347, pelo que o facto de determinado régulo mostrar uma atitude favorável à Administração não significava que a população dele dependente o fizesse. Ao colocar elementos Fulas em regulados Mandingas ou em regiões habitadas por sociedades de estrutura horizontal, como a Balanta, sem de tal se aperceber, o Poder Português actuava em favor da subversão, pois as rivalidades étnicas e históricas eram, logicamente, aproveitadas pelo PAIGC que lançava ataques sobre as povoações que apoiavam a situação, integrando nas suas fileiras os descontentes e os vencidos348. Com a colonização e respectiva missionação, as sociedades nativas primitivas, que se encontravam em regime tribal, sofreram uma influência cultural intensa, que determinou, em parte, a sua desagregação sem, contudo, se assistir a uma correlativa assimilação da cultura do colonizador. Estes 342 De acordo com Teixeira da Mota, na Guiné Portuguesa, além do culto ao “Irã” dos antepassados, professa-se o culto ao “Irã” das “(...) «forças físicas e génios», pois todos os fenómenos da natureza contêm em si «o espírito dinâmico» (...)”. Em ob. cit., pág. 247. 343 Silva Cunha, “Questões Ultramarinas e Internacionais (Sociologia e Política: Ensaio de Análise das Situações Coloniais Africanas) - II”, pág. 156. 344 Fernando Amaro Monteiro, “A Guerra em Moçambique e na Guiné - Técnicas de Accionamento de Massas”, pág. 18. 345 Silva Cunha, “Aspectos dos Movimentos Associativos na África Negra”, pág. 47, Estudos de Ciências Políticas e Sociais, 8, 1º vol., Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de Investigação do Ultramar, Ministério do Ultramar, Lisboa, 1958. 346 Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, Supintrep nº. 10, “Populações da Guiné”, Reservado, Junho de 1971. 347 Silva Cunha, “Aspectos dos Movimentos Associativos na África Negra”, pág. 47. 348 Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, Supintrep nº. 10.

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fluxos e refluxos culturais provocam, dependendo das circunstâncias, a destribalização ou então a coexistência forçosa do destribalizado com a sociedade tradicional. A posição do destribalizado origina um sentimento de vácuo pela falta das estruturas tradicionais, que o explicam perante si mesmo. Nascem, então, as “(...) hierarquias de compensação (...)”349, por forma a preencher o vazio e insegurança resultantes da desagregação das instituições tribais. A insegurança resultante da destribalização, acrescida de um sentimento de frustração face a uma cultura manifestamente diferente, que dificulta “(...) a sua integração e, consequentemente, o seu progresso social (...)”350 conduz ao reagrupamento feito sob novas formas, para readquirir a segurança perdida. Acrescido a este fenómeno, emerge uma outra tendência, a de lutar contra a situação de inferioridade social, então surgindo “(...) as mais diversas formas associativas, religiosas ou não, sempre de cariz reivindicativo (...)”351. Tais associações, que tendem a organizar-se com base étnica, comportam nomeadamente jovens e “(...) representam assim um esforço dos marginais, ou dos que estão prestes a ingressar nessa categoria para se adaptarem aos novos tipos de condicionalismos sociais em que têm de viver (...)”352. Estas massas de nativos, tal como hoje os proletariados suburbanos, viviam à margem da disciplina dos respectivos grupos étnicos e das sociedades dos colonos/assimilados, transformando-se num perigo para a paz social353. Nos indivíduos destribalizados encontra a subversão campo fértil para proliferar, aliciando-os e recrutando-os para a sua causa. A subversão técnica aproveitaria a geografia política guineense, recortada pelo artificialismo das respectivas fronteiras, como aliás sucedia em quase todo o Continente. As deslocações maciças de populações foram frequentes na África Negra, quer os movimentos migratórios estivessem ligados a actividades de subsistência, quer a afinidades étnicas ou religiosas, quer durante as guerras tribais ou no seu rescaldo. Porém, este fenómeno, na Guiné, apesar de restringido pela Administração Portuguesa, após a pacificação, não cessou por completo. As populações não absorveram (salvo raras excepções) a noção de espaço definida pelas fronteiras traçadas pelos portugueses. Estas separariam, no futuro, nomeadamente entre 1963-74: - A Norte - Felupes, Balantas-Mané, Fulas e Mandingas, se exceptuarmos alguns núcleos de outras etnias como Manjacos, Brames e Banhus; - A Leste - Fulas e Pajadincas; - A Sul - Fulas e Nalús, exceptuando alguns núcleos de outras etnias como os Sossos, Tandas e Beafadas. Mais de meio século passado sobre a delimitação das fronteiras, a emigração clandestina, nos grupos atrás apontados, era assegurada pelas ligações étnicas, aquém e além-fronteiras, que garantiam, no período de 1963-74, o escoamento de centenas de indivíduos ou para o Senegal, por razões

Fernando Amaro Monteiro, “O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974)”, pág. 104. Silva Cunha, “Aspectos dos Movimentos Associativos na África Negra”, pág. 48. 351 Fernando Amaro Monteiro, “A Guerra em Moçambique e na Guiné - Técnicas de Accionamento de Massas”, pág. 21. 352 Silva Cunha, “Missão de Estudo dos Movimentos Associativos em África - Relatório da Campanha de 1958 (Guiné)”, pág. 42, Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de Investigação do Ultramar, Confidencial, Lisboa 1959. Prospecção realizada às povoações de Bissau, Bafatá, Farim, S. Domingos, Teixeira Pinto, Fulacunda, Bolama, Nova Lamego. 353 Silva Cunha, “Questões Ultramarinas e Internacionais (Direito e Política)”, pág. 125, vol. I, Col. Jurídica Portuguesa - Ed. Ática, 1961. 349 350

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económicas ou religiosas, ou para os centros de recrutamento e preparação subversiva, na República da Guiné. Os povos de religião tradicional migram, quase sempre, em grande número. Os Balantas, que constituem o grupo étnico mais numeroso, possuem uma estrutura social horizontal, “(...) basicamente igualitária, visto que as distinções sócio-políticas não eram hereditárias, mas conferidas em virtude da idade (...)”354. Esta etnia migra, maioritariamente, a nível interno355. Como agricultores e grandes produtores de arroz que são procuram zonas desocupadas e alagadas, para aí organizarem as suas bolanhas. Este grupo possui ainda afinidades étnicas na região de Sédhiou, no Casamansa, onde em 1972 foram referenciados 20 mil indivíduos356. A sociedade Manjaca, estratificada em quatro classes sociais (nobres, guerreiros, agricultores/mestres e funcionários), possui um sistema de governo baseado na autoridade do régulo, eleito pelos sacerdotes ou pelos nobres. São um povo que, por tradição, emigra periodicamente para o Senegal, de onde importaram ideias emancipalistas, vindo a fundar o MLG. Quando da sua extinção, isso perturbou toda a massa Manjaca, a qual se subdividiu em quatro grupos, repartidos pelo PAIGC; pela FLING; os fiéis às autoridades portuguesas e os elementos não activos, mas fortemente influenciados pela subversão que esperava o “renascer” eventual do MLG. Por estas razões a Administração Portuguesa considerava o seu comportamento, face à subversão, como perigosamente instável, sendo no respectivo “chão” difícil manter a ordem357. Os Papéis, cujo “chão” tradicional é o da ilha de Bissau, encontravam-se divididos em 7 clãs distintos. Constituíram sempre uma sociedade altamente hierarquizada (estando no vértice da pirâmide os régulos, os nobres e os “jambacosses”358), com uma organização política devidamente estruturada, tendo por base uma divisão territorial em regulados, com o poder do régulo, apenas executivo, limitado pelo conselho de anciãos e pelos “jambacosses”, que exerciam poder consultivo, legislativo e judicial. Os Papéis limitavam as suas migrações ao interior do território. Era mister, tanto para a Administração Portuguesa como para a subversão, o conhecimento das estruturas clânicas, tribais e sócio-religiosas das sociedades negras, be
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