OS MOVIMENTOS SOCIAIS E A (LUTA PELA) CONSTITUIÇÃO

July 28, 2017 | Autor: Leandro Teodoro | Categoria: Direito Constitucional, Teoria do Direito, Movimentos sociais
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OS MOVIMENTOS SOCIAIS E A (LUTA PELA) CONSTITUIÇÃO Resumo O artigo dispõe sobre o papel dos movimentos sociais na busca pela efetivação da Constituição Brasileira de 1988 sob a égide do Estado Democrático de Direito. Busca uma análise acerca da função, inclusive ideológica, da própria Constituição e sobre quais perspectivas deve se constituir a uma Jurisdição Constitucional que não comprometa as estruturas basilares à consolidação do Estado Democrático de Direito. Abstract The article displays about the functions of social movements in the quest for making the Brazilian Constitution of 1988 in the aegis of the democratic rule of law. Search an analysis of the role, including ideological, about the Constitution and what perspectives should be a Constitutional Jurisdiction that does not compromise the basic structures of the consolidation of a democratic state. Palavras-Chave Movimentos Sociais. Jurisdição Constitucional. Efetivação dos Direitos Fundamentais. Consolidação do Estado Democrático de Direito. Dirigismo Constitucional. Keywords Social Movements. Constitutional Jurisdiction. Enforcement of Fundamental Rights. Consolidation of the democratic state. Constitutional interventionism.

1. NOTAS INTRODUTÓRIAS A promulgação da Constituição Federal de 1988 trouxe consigo, além de um amplo rol de Direitos e Garantias Fundamentais, uma série de objetivos a serem alcançados pelo Estado Brasileiro1, que, somados a um superlativo mecanismo de acesso à jurisdição constitucional2, consagrou a nova carta política como uma verdadeira fonte de esperança por novos dias de justiça social em terras brasileiras. Entretanto, as esperanças não vingaram. A promulgação da carta de 88 foi o fato político que protagonizou o período da redemocratização3, mas seus anos seguintes foram marcados por políticas econômicas de caráter neoliberal, cujo ponto nuclear era a minimização das áreas de atuação do Estado que cederia espaço à livre circulação do capital privado, minimizando o raio de incidência das ações do próprio Estado4 e que 1

Esses objetivos a caracterizam como uma “Constituição Dirigente” enquanto dispõe sobre

elementos normativos que vinculam o legislador ordinário à efetuação de políticas públicas que caminham na linha da transformação social, indo muito além da mera organização do Estado e da Administração Pública. Diferentemente de uma “Constituição Garantia”, que nas palavras de Gilberto Bercovici “não possui qualquer conteúdo social ou econômico, sob a justificativa de perda de juridicidade do texto. As leis constitucionais só servem, então, para garantir o status quo. A Constituição estabelece competências, preocupando-se com o procedimento, não com o conteúdo, não com o procedimento das decisões, com o objetivo de criar uma ordem estável”. BERCOVICI, Gilberto, A problemática da constituição dirigente: algumas considerações sobre o caso brasileiro. Brasília: Revista do Senado Federal, a. 36 n. 142, 1999. 2

Temos que a constituição federal de 1988 consagrou no Brasil um sistema misto de controle de

constitucionalidade que abrange tanto a tradição estadunidense do judicial review, como a romanogermânica, conhecida em terras brasileiras como “controle concentrado de constitucionalidade”. 3

O economista Plínio de Arruda Sampaio Jr. afirma que o processo de redemocratização

“redundou na institucionalização da contra-revolução permanente instaurada pela ditadura militar. Assim, ainda que potencialmente ameaçada pelas pressões políticas e sociais que brotavam da base da sociedade, a democracia brasileira permaneceu restrita aos donos do poder. Não é de estranhar que a Nova República tenha sido totalmente incapaz para encaminhar as mudanças acalentadas pelas multidões que tomaram as ruas para exigir a volta dos militares aos quartéis. Os avanços sociais inscritos na Constituição de 1988, frutos da forte pressão dos movimentos sociais não contradizem a afirmação anterior, pois, com pouquíssimas exceções, seu proclamado ‘espírito cidadão’ nunca saiu do papel”. SAMPAIO JR. Plinio de Arruda

de.

Brasil:

as

esperanças

não

vingaram.

Disponível

em:

http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/osal/osal18/AC18Sampaio.pdf. Acessado em 08/06/12. 4

Nesse sentido surge como válida a crítica de Plauto Faraco de Azevedo: “No quadro do

neoliberalismo global, em que se busca diminuir e apequenar o Estado, o que dele resta transforma-se em instrumento das empresas transnacionais, na busca de vantagens em seu proveito (...). Por esta forma, a

necessariamente surtiria efeitos no campo do Direito, dormitando assim, qualquer esperança de transformação social pelas vias institucionais até então prometidas via efetivação da Constituição5, levando autores como Alexandre Morais da Rosa, a afirmarem que O Direito foi transformado em instrumento econômico diante da mundialização do neoliberalismo. Logo, submetido a uma racionalidade diversa, manifestamente “pragmática” de “custos e benefícios”, capaz de refundar os alicerces do pensamento jurídico6. Diante disso, é de grande relevância a atuação dos movimentos sociais organizados, que em ações coletivas cotidianas, atuam em um incessante processo de afirmação e reconhecimento de direitos sociais na contramarcha da especulação do capital financeiro. Assim, apesar do esforço por parte do Estamento7 em enfraquecer e desarticular a atuação desses movimentos organizados, o que vimos na primeira década do século livre-empresa deixa, com freqüência, de empregar recursos próprios em seus negócios, fazendo-se substituir pelo Estado, que investe em seu lugar”. AZEVEDO, Plauto Faraco de. Direito, Justiça Social e Neoliberalismo. 1 ed. 2 tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. Assim, ao contrário do que sustenta os partidários do governismo petista, o “fenômeno neoliberal” não foi deixado de lado pelo Estado brasileiro com a troca de governo (de FHC para Lula). Exemplo claro de política neoliberal é o chamado “ProUni” em que o governo federal, por meio de isenção fiscal aos capitalistas da educação, “compra” vagas ociosas das universidades privadas (levando o curso superior a quem não obteve sucesso pelo processo seletivo do Vestibular para as Universidades Públicas) em detrimento de efetivo investimento na educação pública. 5

Para autores como Lênio Luiz Streck, o dirigismo constitucional ainda existe e é necessário, em

suas palavras “uma teoria da constituição adequada a países de modernidade tardia deve tratar, assim, da construção das condições de possibilidade para o resgate das promessas de modernidade incumpridas, as quais, como se sabe, colocam em xeque os dois pilares que sustentam o próprio Estado democrático de Direito. (...) Mais do que assegurar os procedimentos da democracia - que são absolutamente relevantes , é preciso entender a constituição como algo substantivo, porque contêm valores (direitos sociais, fundamentais, coletivos lato sensu) que o pacto constituinte estabeleceu como passíveis de realização. Por tudo isto, há que deixar assentado que o constitucionalismo dirigente-compromissário não está esgotado. A Constituição ainda deve “constituir-a-ação”, mormente porque, no Brasil, nunca constituiu. No texto constitucional de 1988 há um núcleo essencial, não cumprido, contendo um conjunto de promessas da modernidade, que deve ser resgatado.”. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – uma nova crítica ao Direito. Porto Alegre, Livraria do Advogado. 2002. 6

ROSA, Alexandre Morais da. The New Road of Serfdom: Law and Economics. In.: STRECK,

Lenio Luiz; BARRETO, Vicente de Paulo; CULLETON, Alfredo Santiago. (orgs.) 20 anos de Costituição: Os Direitos Humanos entre a Norma e a Política. São Leopoldo: Oikos, 2009.

XXI foi uma franca expansão das lutas populares coletivamente organizadas, que passaram a não apenas reivindicar melhores condições de vida e trabalho, mas também a lutar pelo reconhecimento e afirmação de suas identidades étnicas, raciais, culturais ou de gênero. Quanto a isso, sabemos que os movimentos sociais carregam um histórico de lutas, quebra de paradigmas, dogmas e tabus, e toda essa bagagem axiológica é refletida nas decisões judiciais quando tais movimentos encontram-se (com seus interesses) em litígio. Porém, essa carga valorativa pode ensejar discricionariedades que muitas vezes deixam as fundamentações das decisões à mercê de convicções pessoais e juízos subjetivos dos magistrados. Surge assim, o risco de decisões subjetivistas, quais sejam “favoráveis” – afirmando a não apenas efetivação, mas a criação de direitos reclamados pelos movimentos sociais – ou “desfavoráveis” passando por cima de direitos sociais já garantidos, muitas vezes em função da especulação do capital. Tudo isso culmina numa confusão sobre a própria função elementar do poder judiciário, que deixa de “aplicar” direito e passa a “legislar” ou até mesmo “renegar” o direito, suprimindo princípios constitucionais indispensáveis à manutenção e à consolidação do Estado Democrático de Direito, como o da legalidade e o da separação de poderes.

7

Quanto “Estamento” brasileiro: FAORO, Raymundo: Os Donos do Poder. Formação do

patronato brasileiuro. 3 ed. Rio de Janeiro: Globo, 2001. Também são válidas as palavras de Rafael Tomaz de Oliveira, que debruçando-se sobre a tese de Faoro afirma que “o poder político no Brasil não era exercido nem para atender aos interesses das classes agrárias ou latifundiárias, nem àqueles das classes burguesas, que mal se haviam constituído como tal. O poder político era exercido em causa própria, por um grupo social cuja característica era, exatamente, a de dominar a máquina política e administrativa do país, através da qual fazia derivar seus benefícios de poder, prestígio e riqueza. Era, em termos de Weber, um “estamento burocrático”, que tinha se originado na formação do Estado português e fora incorporado em terrae brasilis desde que a primeira nau portuguesa aqui se atracou”. TOMAZ DE OLIVEIRA, Rafael. A Constituição e o estamento: contribuições à patogênese do controle difuso de constitucionalidade brasileiro. In.: STRECK, Lenio Luiz; BARRETO, Vicente de Paulo; CULLETON, Alfredo Santiago. (orgs.) 20 anos de Costituição: Os Direitos Humanos entre a Norma e a Política. São Leopoldo: Oikos, 2009.

2.

DA FORÇA E FUNÇÃO DA CONSTITUIÇÃO PARA UMA

COMPREENSÃO DO PAPEL DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO DOS DIAS DE HOJE O senso-comum político-jurídico nos remete à percepção de que estamos em tempos de consolidação do Estado Democrático de Direito, o que se soma à construção de uma sociedade democrática em seu núcleo e plenitude, a partir de “conquistas consolidadas” como o sufrágio universal e a afirmação das liberdades individuais. Não nos questionamos, porém, sobre aquilo que de fato significa o Estado Democrático de Direito, consagrado no texto de nossa Constituição. Nesse diapasão, antes de remetermo-nos a qualquer discussão que envolva as estruturas desse modelo de Estado, faz-se necessário uma breve recordação acerca de como (e por quê) surge o Estado Democrático de Direito e qual é os fatores que fundamentam sua consagração na Constituição Federal brasileira de 1988. 2.1. Uma Breve Releitura Acerca da História do Estado Democrático de Direito como Bases para Compreensão de suas Características e Funções Lembremos que no século XIX a Assembléia Constituinte da França Revolucionária, inspirada nos ideais iluministas, aprovou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, onde – de forma inédita na história – foram enunciados positivamente direitos e liberdades fundamentais do Homem. Naquela época os anseios e os ideais da sociedade buscavam-se a imposição de um Estado cujo ideário teria um viés iluminista e que acabasse, de uma vez por todas, com o Estado Absolutista. Isso, só para enunciar como as transformações institucionais de toda sociedade – tenham essas transformações um viés revolucionário ou não – estão inteiramente ligadas à transformação do próprio Estado e da forma como que esta se dispõe para com os seus agentes. Para tanto, recordemos da revolução industrial e das reivindicações dos direitos dos trabalhadores, que sem nenhuma interferência por parte do Estado eram submetidos ao exercício de condições subumanas de trabalho. Lembremos também da grande depressão de 1929, que culminou na queda do Estado liberal (a partir da política do new deal, de Flanklin Roosevelt) e do estabelecimento do welfare state, ou Estado do BemEstar.

Importante também é lembrarmos das duas grandes guerras mundiais. Principalmente a segunda, cujos efeitos – poderes de destruição jamais presenciados e a reificação do Homem e da vida – levaram o mundo do período pós-bélico a repensar profundamente sobre os valores que compunham as relações intersubjetivas. Começaram-se, a partir daí, a construção de princípios com eficácia normativa, como a “dignidade da pessoa humana”, até que em 10 de dezembro de 1948 foi assinada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, vinculando os países que a assinaram, à realização de políticas públicas que sejam capazes de tutelar esses (novos) direitos. Eis aí a primeira manifestação do Estado Democrático de Direito. No Brasil, entretanto, nunca tivemos um Estado Social que fosse preocupado com o bem-estar da coletividade e muito menos com a planificação da economia. Pelo contrário. A história da República Brasileira é marcada pela dominância do poder aristocrático e de rusgas ditatoriais, que visavam a manutenção do status quo repleto de antagonismos sociais, cujas conseqüências são perceptíveis até hoje. Dessa forma, depois de mais de duas décadas de ditadura militar - período de extrama supressão de direitos fundamentais - no Brasil, foi percebida a necessidade da construção de um modelo de Estado que cuidasse do déficit democrático sofrido pela população brasileira. Surge então uma necessidade de se estabelecer um Estado compatível com os novos anseios sociais percebidos desde o fim da segunda guerra mundial, mas renegados por governos ditatoriais8,e a resposta para isso foi o Estado Democrático de Direito – consagrado na cabeça do Artigo 1º de nossa Constituição Federal e que se propõe ao respeito pelos princípios, pela hierarquia das normas, bem como à tutela desses (novos e fundamentais) direitos. Esse novo modelo de Estado deve(ria) ser orientado também por um novo modelo de Constituição, que garantisse o amplo acesso à cidadania e estabelecesse fins e objetivos para serem alcançados pelo próprio Estado, tendo como norte condutor a redução dos antagonismos sociais. 2.2. A Força Normativa da Constituição de 1988 Como Pressuposto para a Consolidação (e Construção) do Estado Democrático de Direito 8

Não podemos ignorar que após o fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo se dividiu em dois

grandes pólos, os Estados Unidos da América – defensores do Estado capitalista, liberal – e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – propagando o ideário da revolução comunista – o que levou àquilo que conhecemos como “Guerra Fria”, período de fortíssima intervenção imperialista desses Estados em outras nações, sobretudo na América Latina.

Quando pensamos na Constituição Federal de 1988, a sua Força Normativa – no próprio sentido formulado por Konrad Hesse em que pese à busca por uma Vontade de Constituição9 - surge como um verdadeiro pressuposto. Pressuposto tal que atribui à Constituição poderes de incidir diretamente na vida política de seus jurisdicionados, ainda quando são constitucionalizados políticas de ordem econômica e social. Entretanto, essas políticas neoliberais do Estado brasileiro nos anos que se sucederam à promulgação da carta de 88, criaram uma atmosfera em que a vontade de constituição foi relegada ao segundo plano10. A minimização do Estado interventor e a (re)adequação do próprio Direito de modo a servir à livre especulação do capital

9

Hesse afirma: “A Constituição jurídica logra conferir forma e modificação à realidade. Ela

logra despertar “a força que reside na natureza das coisas”, tornando-a ativa. Ela própria converte-se em força ativa que influi e determina a realidade política e social. Essa força impõe-se de forma tanto mais efetiva quanto mais ampla for a convicção sobre a inviolabilidade da Constituição, quanto mais forte mostrar-se essa convicção entre os principais responsáveis pela vida constitucional. Portanto, a intensidade da força normativa da Constituição apresenta-se, em primeiro plano, como uma questão de vontade normativa, de vontade de contituição”. E ainda: “Quanto mais intensa for a vontade de Constituição, menos significativas hão de as restrições e os limites impostos à força normativa da constituição”. HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Tradução

de Gilmar Ferreira

Mendes. Porto Alegre: safE, 1991. 10

Assim como bem afirma Lênio Luiz Streck: “a minimização do Estado em

países que passaram pela etapa do Estado Providência ou welfare state tem conseqüências absolutamente diversas da minimização do Estado em países como o Brasil, onde não houve Estado Social. O Estado interventor-desenvolvimentistapromovedor, que deveria fazer esta função social, foi, especialmente no Brasil, pródigo (somente) para as elites, enfim, para as camadas médio-superiores da sociedade, que se apropriaram/aproveitaram de tudo desse Estado, privatizando-o, dividindo/loteando com o capital internacional os monopólios e os oligopólios da economia e, entre outras coisas, construindo empreendimentos imobiliários com o dinheiro do FTGS dos trabalhadores, fundo esse, que, em 1966, custou a estabilidade no emprego para milhões de trabalhadores brasileiros”. STRECK, Lênio Luiz. Constituição ou Barbárie? – a Lei como possibilidade emancipatória a partir do Estado Democrático de Direito. Disponível em: http://www.leniostreck.com.br/site/wp-content/uploads/2011/10/16.pdf. Acesso em: 22/04/12.

privado, por óbvio, não pode vir desacompanhado de uma flexibilização (e por que não fragmentação?) dos direitos sociais. Por outro lado, enquanto assistimos essa minimização das áreas de atuação do Estado, nos deparamos com um paradoxo: a maximização do(s) Poder(es) (do) Judiciário, que tornou-se o verdadeiro oráculo de nossas demandas democráticas levando o Supremo Tribunal Federal – para alguns, a nossa “Corte Constitucional” – ao grande órgão de nossas instituições. Assim, torna-se completamente necessária uma (re)discussão acerca do papel da jurisdição constitucional (e da própria Constituição Federal) nos dias de hoje. 2.3. Uma possibilidade: A força e a função ideológica da Constituição e o estado do Estado Democrático de Direito. A sensação aparente de democracia e a (incessante) demanda pela realização de (novos) direitos Na primeira edição de “Ensino Jurídico e Mudança Social”, o Professor Antônio Alberto Machado chega a afirmar que: A constituição de 1988 reestruturou profundamente o ordenamento jurídico brasileiro, dotando-o de instrumentos efetivos de defesa da ordem jurídica democrática, com a adoção de princípios, normas e instituições adequados à consolidação do Estado Democrático de Direito e de uma democracia nitidamente social, com a previsão de objetivos e meios destinados à construção de uma sociedade efetivamente justa, livre e solidária.”11. Não relegando a assertiva de Antônio Machado, mas analisando-a, lembremos do paradoxo já referido: o direito foi transformado em instrumento do neoliberalismo, que minimiza as áreas de atuação e incidência institucional do Estado, mas – por outro lado – o judiciário vem demonstrando cada vez mais protagonismo político perante os seus jurisdicionados.

11

2005.

MACHADO, Antônio Alberto. Ensino Jurídico e Mudança Social. Franca: UNESP-FHDSS,

É na esteira dessa “democracia nitidamente social” afirmada acima que podemos inferir o surgimento de uma função ideológica da constituição brasileira12 que vem a assumir alguns desdobramentos. Em primeiro lugar, a constitucionalização de direitos sociais – moradia, saúde, lazer, educação, etc. – o estabelecimento de metas, fins e objetivos a serem alcançados pelo Estado – erradicação da pobreza, minimização das desigualdades regionais - e a consolidação do Estado Democrático de Direito geram à Nação uma sensação de democracia. Uma constituição promulgada e possuidora de tais proposições, mesmo que sua força normativa se esgote, pode ser utilizada, enquanto ela viger, como instrumento de fundamentação de que a ordem estabelecida seja democrática. Em suma, pode-se gerar uma assertiva conveniente aos donos do poder: por mais que se mercantilizem direitos sociais em prol da livre circulação do capital privado, por mais que se flexibilizem direitos trabalhistas em prol do acúmulo da mais-valia e por mais que a remoção de pessoas-humanas se mostre farta à especulação imobiliária, o Estado é Democrático e de Direito13. De certa forma, Marcelo Neves vai ao seguinte sentido:

12

Nesse sentido é válido lembrar o debate que Marcelo Neves enfrenta. O autor abre a

possibilidade de uma “constitucionalização simbólica em sentido positivo: função político-ideológica da atividade constituinte e do texto constitucional”. Assim, “a função simbólica das ‘Constituições normativas’ está vinculada à sua relevância jurídico-instrumental, isto é, a um amplo grau de concretização normativa generalizada das disposições constitucionais. Além de servir de expressão simbólica da ‘consistência’, ‘liberdade’, ‘igualdade’, ‘participação’ etc. como elementos caracterizadores da ordem política fundada na Constituição, é inegável que as ‘constituições normativas’ implicam juridicamente um grau elevado de regulação da conduta e da orientação das expectativas de comportamento”. NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. 3 ed. São Paulo: Wmf Martins Fontes, 2011. 13

Assim, por mais radical que pareça, a afirmativa de João Ricardo Soares torna-se bem-vinda:

“Apesar da Constituição brasileira garantir o direito ao emprego à terra e à moradia, esses ‘direitos’ não podem ser exercidos pela maioria do povo, acima do direito da propriedade privada. Este direito é exercido por uma minoria, mesmo que signifique que a maioria fique desempregada e more na rua”. SORAES, João Ricardo. Quando o Estado de Direito é a Propriedade Privada. In. FELIPPE, William (org.). O Estado Burguês e a Revolução Socialista. 2 ed. São Paulo: Editora Instituto José Luis e Rosa Sundermann, 2008. A despeito de objeções epistemológicas, salvo exceções – como no caso do ACO 132, de autoria da FUNAI, em que o Supremo Tribunal Federal decidiu a favor de indígenas e anula títulos de propriedades em reserva no sul da Bahia – esse é o estado do Estado (democrático de Direito) brasileiro: o Estado voltado para a legitimação da economia de mercado.

Ao discurso do poder pertencem, então, a invocação permanente do documento constitucional como estrutura normativa garantidora dos direitos fundamentais (civis, políticos e sociais), da ‘divisão’ de poderes e da eleição democrática, e o recurso retórico a essas instituições como conquistas do Estado ou do governo e provas da existência da democracia no país.14. Além disso, a função ideológica da constituição aparece mostrando outro sentido. Um texto constitucional rico em direitos sociais e que dirija o Estado à concretização de seus objetivos estabelecidos, levam a sociedade civil a reclamar pela efetivação de seus direitos. A constituição pode (e deve) surgir então como um meio para que se faça justiça social. Nesse sentido, é válido lembrar a atuação de movimentos sociais organizados pela efetivação de direitos já constituídos – como, ad exemplum, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que fundamenta sua luta no direito à terra, à reforma agrária e no princípio da função social da propriedade15. Revela-se então uma força ideológica que pode dar ensejo a reivindicações sociais e lutas populares mesmo fora do poder institucional (aqui, entra o judiciário), quando este não se mostra capaz ou preparado, ou condicionado ao estado viciado do Estado Democrático de Direito. Entretanto, como a própria análise do surgimento do Estado Democrático de Direito e, logo, a própria promulgação da Constituição brasileira de 1988 sugere, a luta (pelo reconhecimento, afirmação e – por fim – efetivação) por direitos é incessante no nosso sistema sócio-político-econômico. O próprio Estado Democrático de Direito foi uma conquista social ao passo que, hoje, a luta seja para os fins a que este se destina(rá). Assim, é possível afirmar que os ideários por (novos) direitos (e afirmação, reconhecimento e efetivação destes) perpassa por uma ruptura com esse sistema sóciopolítico-econômico vigente. 2.4. É preciso ir adiante: A constituição como um meio e não como um fim de obtenção de pleno êxito democrático 14

NEVES, Marcelo. Op. Cit.

15

Interessante é a afirmação de Tarso de Melo: “É lícito concluir que se houvesse movimentos

sociais para lutar pela concretização dos programas constitucionais, como o MST luta pelo ‘programa’ da reforma agrária, seriam maiores as chances de o país real se aproximar do país ideal do texto da Constituição Federal”. MELO, Tarso de. Direito e Ideologia: Um estudo a partir da função social da propriedade rural. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

Diante desse diálogo é seguro dizer que a constituição deve ser tratada como um meio ou como um fim em si mesma de se ‘fazer-valer’ justiça social. Mesmo que devemos confiar na força normativa da constituição, seu ideário reclama a seus jurisdicionados uma atuação que transcende o poder judiciário e leva à própria sociedade civil o êxito de sua efetivação16. Assim, não se deve confiar o direito ao próprio direito, mas o direito (principalmente aquele constitucionalmente positivado) deve estabelecer uma série de fatores de ordenação político-social que não terminam em questões isoladas ao próprio Judiciário, mas na esfera pública, na atuação política de agentes coletivos ou individuais, sobretudo, quando em foco deparamos com a atuação organizada de Movimentos Sociais. Estes, os movimentos sociais, ocupam uma posição salutar entre as instituições quanto ao reconhecimento, afirmação e efetivação dos próprios preceitos constitucionais. A constituição, portanto, surge como um meio de atuação dos movimentos sociais. Não um fim em si mesma. Entretanto, são dos movimentos sociais organizados que cuidaremos. 3. À REALIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: O PROTAGONISMO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS À AFIRMAÇÃO, RECONHECIMENTO E EFETIVAÇÃO DE DIREITOS A origem dos movimentos sociais remonta até a revolução industrial, quando no século XVIII, o movimento operário inglês já exercia um certo protagonismo quanto à afirmação, reconhecimento e efetivação de direitos, assim como ensina Luiz Werneck Vianna: Foi a emergência dos novos detentores de direitos, especialmente o movimento operário em meados do século 16

Assentado em Peter Haberle Marcelo Neves afirma: “o direito constitucional ‘material’ surge

de uma multiplicidade de interesses e funções, implicando a diversidade prática de interpretações da constituição. Dessa maneira não se superestima o significado do texto constitucional, como na doutrina tradicional da interpretação. No primeiro plano do processo interpretativo encontra-se a esfera pública pluralística. De acordo com essa abordagem pode-se afirmar: o texto constitucional só obtém a sua normatividade mediante a inclusão do público pluralisticamente organizado no processo interpretativo, ou melhor, no processo de interpretação constitucional”. NEVES, Marcelo. Op. Cit.

passado, que deu fim à rigorosa separação entre Estado e sociedade civil, nos termos da tópica liberal da liberdade negativa. O Direito do Trabalho, nascido dos êxitos daquele movimento, conferiu um caráter público a relações da esfera privada, como o contrato de compra e venda da força de trabalho, consistindo em um coroamento de décadas de luta do sindicalismo, apoiado por amplos setores da sociedade civil de fins do século XIX e começo do XX.”17. Hoje, quando é utilizada a expressão “Movimentos Sociais”, faz-se necessário salientar (pelo prisma da teoria dos novos movimentos sociais) que não estamos referindo apenas àqueles movimentos sociais que se espalharam como sujeitos históricos na sociedade industrial (como o movimento operário, o movimento pela terra e o sindicalismo), mas àquelas segundo a socióloga Maria da Glória Gohn são as três frentes de ação predominantes dos movimentos sociais contemporâneos, que são: Primeira: movimentos identitários que lutam por direitos sociais, econômicos, políticos, e, mais recentemente, culturais. São movimentos de segmentos sociais excluídos, usualmente pertencentes às camadas populares (mas não exclusivamente). Podem-se incluir, nesse formato, as lutas das mulheres, dos afrodescendentes, dos índios, dos grupos geracionais (jovens, idosos), grupos de imigrantes sob a perspectiva de direitos, especialmente dos novos direitos culturais construídos a partir de princípios territoriais (nacionalidade, Estado, local), e de pertencimentos identitários coletivos (um dado grupo social, língua, raça, religião etc.); Segunda: movimentos de luta por melhores condições de vida e de trabalho, no meio urbano e no rural, que demandam acesso e condições para terra, moradia, alimentação, educação, saúde, transportes, lazer, emprego, salário, etc.; Terceira: movimentos globais ou globalizantes, como o Fórum Social Mundial.18.

Embora o simples fato da existência de movimentos sociais de reivindicação denuncie uma falência do modelo de sociedade (de governo, de Estado...) seguido19, a 17

VIANNA, Luiz Verneck; CARVALHO; Maria Alice Rezende de; MELO, Manuel Palácios

Cunha; BURGOS, Marcelo Baumann;. A Judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan. 1999. 18

GOHN, Maria da Glória. Abordagens Teóricas no Estudo dos Movimentos Sociais na América

Latina. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ccrh/v21n54/03.pdf Acesso em 11/02/12. 19

Nesse sentido é importante a ressalva de Jesus Antonio de Torre Rangel quando o jurista

mexicano, ao fazer uma análise da fundamentação da atuação do Exército Zapatista de Libertação Nacional, em seu país, defende que o simples fato de movimentos organizados como este terem uma razão de ser já é sintoma de crise e ineficiência do Estado e do exercício do poder para seus concidadãos e

realização constitucional (a busca pelo fim da dicotomia texto constitucional x realidade constitucional, ou dever ser x ser ou ainda país real x país ideal) reserva a eles um certo protagonismo, para Daniel Sarmento: Trabalhadores, negros, índios, sem-terra, ambientalistas, dentre outros grupos, têm passado a ver a constituição como um importante instrumento nas suas lutas emancipatórias. Na verdade, a conquista de algumas vitórias no cenário judicial, com suporte em argumentos constitucionais, serviu para disseminar no âmbito da sociedade civil organizada a visão da Constituição de 88 como uma ferramenta útil nas incessantes batalhas pela afirmação dos direitos dos grupos desfavorecidos.20. Assim, torna-se crucial uma análise adequada da relação dos movimentos sociais com a jurisdição constitucional, principalmente quando o autor supracitado vem a afirmar sobre “vitórias no cenário judicial”. Importante é lembrar que, quando falamos em jurisdição, vitórias, assim como derrotas, não podem cair no pragmatismo de acabarem em si mesmas. Não podem vir desacompanhadas de uma fundamentação comprometida com os alicerces de um Estado Democrático, portanto com a própria Constituição. O fundamento de uma decisão será sempre frágil se ele for composto por argumentos de moral ou convicção política. Uma vitória judicial de um Movimento Social não será uma vitória para a democracia se for conquistada a partir da convicção pessoal do julgador. Não será uma conquista de direitos, mas apenas uma relativa vitória dentro da subjetividade de uma toga isolada que não tem legitimidade alguma para mudar as estruturas democráticas de uma Nação que possui a sua própria Constituição normativa.

3.1. O Direito aos Movimentos Sociais

jurisdicionados. (v. TORRE RANGEL, Jesus Antonio de La. Pluralismo Jurídico Enquanto Fundamentação Para a Autonomia Indígena. In: WOLKMER, Antonio Carlos. Direitos Humanos e Filosofia Jurídica na América Latina. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. 20

SARMENTO, Daniel. Ubiquidade Constitucional: os dois lados da moeda. (In) Livres e

Iguais: estudos de direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

Para uma análise da relação dos movimentos sociais com o direito torna-se emblemática a proposta de Celso Campilongo, para quem: A aposta dos movimentos sociais no direito – e, portanto, confiança na força do direito – pode aflorar de três modos: “contra”, “pelo” e “após” o direito. “Contra o direito” significa, na essência, luta pela sua revogação, substituição ou por nova interpretação do direito vigente. No fundo, identifica-se um obstáculo construído pelo e procura-se removê-lo também através do direito. Não se trata, na verdade, de transgressão ou afronta ao direito, mas de modificação do direito. “Pelo direito” representa a luta pelo reconhecimento e afirmação de direitos ainda não estabelecidos: conquista de novos direitos na lei ou na Justiça. “Após o direito” consiste na busca por eficácia: adoção de políticas, reorientação da jurisprudência em conformidade com os avanços legislativos, mudança de comportamento. 21 Assim, cumpre-nos explorar em tópicos melhor esses três modos descritos por Campilongo. 3.1.1. Movimentos Sociais CONTRA o Direito A luta pela revogação, substituição ou nova interpretação do Direito vigente se remete naqueles movimentos que encontram no Direito um obstáculo à transformação social. Nesse sentido, podemos citar os movimentos anti-proibicionistas que lutam pela descriminalização das drogas, bem como os movimentos feministas que lutam pela descriminalização do aborto. Esses movimentos inferem uma delicada relação com o Direito. Muitas vezes criminalizados tanto por agentes estatais como por instituições fundamentalistas ortodoxas, não encontram (ou, ao menos não deveriam encontrar) amparo na jurisdição constitucional, a menos que a luta seja pela declaração de inconstitucionalidade ou não receptividade de norma infra-constitucional. A atuação de movimentos sociais contra o direito pode ensejar discricionariedades por parte do poder judiciário quando vêem seus interesses em juízo.

21

CAMPILONGO, Celso Fernandes. Interpretação do Direito e Movimentos Sociais. Rio de

Janeiro: Elsevier, 2012.

3.1.2. Movimentos Sociais PELO Direito São em grande parte os movimentos identitários – que buscam no Direito a afirmação de sua identidade. Como grandes exemplos, podemos citar o Movimento Negro e a luta por cotas raciais nas universidades públicas, bem como o Movimento LGBTT e a luta pelo reconhecimento do casamento homossexual. Esses movimentos não vêem o direito como um obstáculo à emancipação social, mas sim, como uma fonte de esperanças. O direito tem, para eles, a função de afirmar, resguardar e proteger aquilo que os são inerentes como pessoa-humana. Em geral, tais movimentos não são criminalizados – embora sejam alvo de preconceito por parte do Estamento. Exemplo: o tratamento dado à Parada Gay pela grande mídia televisa e às lutas por cotas raciais por parte de parte da mídia impressa. Entretanto, assim como aqueles movimentos que ao contrário, são CONTRA o Direito, a relação desses – quando vêem seus interesses em juízo - também pode vir a ser perigosa. Parte daí a confusão semântica que há sobre as próprias atribuições do Poder Judiciário. O poder do judiciário dá a ele poderes para fazer justiça? Ou o poder do poder judiciário dá a ele poderes apenas para aplicar a justiça? Assim, não é lúcido afirmar que tais movimentos devam encontrar um total amparo na jurisdição constitucional. 3.1.3. Os movimentos sociais APÓS o Direito Podemos afirmar que os movimentos sociais APÓS o Direito são aqueles cujo objeto central de sua luta já tem status de ‘Direito’ e assim, a batalha passa a ser pela sua efetivação. O caso mais emblemático desses é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, ou MST, que encontra na constituição um verdadeiro respaldo de suas reivindicações, a partir do momento em que o texto constitucional expressamente se refere a questões como reforma agrária e função social da propriedade. Além do MST, também podemos citar movimentos sociais difusos, com outros níveis e outras formas de organização, tais como o Movimento Estudantil e a luta pela educação. Esses movimentos, alvo de constante criminalização por baterem de frente contra a economia de mercado, a livre circulação do capital privado, a especulação imobiliária e a redenção ao neoliberalismo, mas, pelo fato de, por vezes, terem na

própria constituição o fundamento de suas lutas, devem ser respaldados pela jurisdição constitucional. 4.

MOVIMENTOS SOCIAIS, CONSTITUIÇÃO E POLÍTICA: A ATUAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS E A NECESSIDADE DE UMA (RE)DISCUSSÃO SOBRE OS ALICERCES DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

Essas manifestações da incidência dos movimentos sociais ao direito vêm a se manifestar de várias formas na jurisdição constitucional. Assim, é elementar uma discussão acerca do significado político da própria constituição. A relação Movimentos Sociais e Jurisdição Constitucional não é de fácil interpretação. Vários equívocos interpretativos podem sair a partir disso. Entretanto, de nada adianta a atuação de movimentos sociais perante uma jurisdição constitucional que pouco reflita em seus jurisdicionados, ou uma jurisdição constitucional que produza efeitos meramente inter-partes, não alterando em nada a organização (inter)institucional da Nação22. Portanto, é de fundamental importância a construção de uma jurisdição constitucional se adéqüe aos conflitos e às questões ora elencadas, que não leva a constituição como um fim em si mesma, mas como um diretivo político para todas as nossas instituições democráticas. Nesse sentido, surge também uma evidente necessidade por uma teoria da decisão judicial que ofereça subsídios para uma Jurisdição Constitucional que não extrapole seus limites nem seja apática à nossa realidade. Assim, é salutar que se faça minimamente uma análise sobre pelo menos duas teorias que vem tomando corpo no Direito brasileiro, quais sejam: a ponderação alexyana e o ativismo judicial. 4.1. A Ponderação Alexyana quanto aos Movimentos Sociais 22

Quanto a essas questões há uma assertiva emblemática de Ricardo Maurício Soares: “A

realização da eficácia das normas constitucionais exige o fortalecimento de uma jurisdição constitucional emancipatória e progressista”. SOARES, Ricardo Maurício Freire. A Releitura de uma Teoria Normativa Jusfundamental: um caminho para o direito justo”.In Revista Bonijuris, ano XXIII, n. 577, v. 23, n. 12.Curitiba: Instituto de Pesquisas Jurídicas Bonijuris, 2011. Ora, diante disso podemos apurar que alicar a constituição é, então, ser progressista? E o comum então é ignorar a força normativa de nossa Lei Maior sob pena da eficácia limitada e/ou contida de suas proposições?

Não com o devido cuidado, a tese de Robert Alexy23 sobre a ‘Ponderação de Princípios’ é usada diuturnamente nas Decisões de Tribunais brasileiros. Embora a Ponderação jamais seja mencionada no texto constitucional, ela vem sendo elevada a nível de Princípio24. Sem sombra de dúvidas, o ‘Princípio da Ponderação’ tem se tornado quase que uma panacéia para todos os males daqueles julgadores que acreditam ter poderes discricionários. É simples: se, no caso concreto temos o choque entre dois princípios constitucionais, basta eleger um como ‘mais importante’ para proferir a decisão de mérito. Talvez melhor ainda quando não há esse choque e a decisão pode ser proferida mediante mera subsunção ou silogismos. Ora, aqui cabe a crítica de Lênio Streck, que apesar de não ser adepto das teorias argumentativas, desmitifica com maestria a forma como

a

ponderação

vem

sendo

reproduzida

pelos

tribunais

brasileiros:

Na maior parte das vezes, os adeptos da ponderação não levam em conta a relevante circunstância de que é impossível fazer uma ponderação que resolva diretamente o caso. A ponderação – nos termos propalados por seu criador, Robert Alexy – não é uma operação em que se colocam dois princípios em uma balança e se aponta para aquele que ‘pesa mais’ (sic), algo do tipo ‘entre dois princípios que colidem, o intérprete escolhe um’ (sic). Nesse sentido, é preciso fazer justiça à Alexy: sua tese da ponderação não envolve essa escolha direta. 25. Por tudo, não temos que a ponderação deva ser levada como uma prática interessante aos movimentos sociais.

Não em casos isolados, menos não para a

construção de uma jurisdição constitucional democrática. Pois, como já referido acima no presente trabalho, vitórias no campo judicial não podem cair no pragmatismo de centrarem em si mesmas. Há uma ordem democrática a ser obedecida e mesmo que por vezes se invoque, por exemplo, o ‘princípio da função social da propriedade’ em uma 23

V. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Luis Virgilio Afonso da Silva.

São Paulo: Malheiros, 2008. 24

Veja-se, por exemplo, na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o ‘Princípio’ da

Ponderação escancaradamente presente no julgamento do ADPF 130/DF. 25

STRECK, Lênio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4

ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

decisão acerca de uma ação de usucapião especial coletivo urbano em prol de ocupação de prédio realizada por um movimento social organizado a favor do direito constitucional à moradia - como é o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), a Frente de Luta por Moradia (FLM) e outros – se fundamentada a partir do “Princípio da Ponderação” (muito) provavelmente (pelo que temos visto) virá acompanhada de alto grau de discricionariedade por parte do julgador, o que cria lesões na ‘Vontade Constitucional’ de nossas constituições. Que esteja claro: a partir do exemplo acima citado o que se defende não é que a força normativa da constituição venha a servir de entrave a reformas sociais via poder judiciário. Pelo contrário, entendemos e defendemos que a Constituição deve servir como agente diretivo às transformações do Estado, entretanto a discricionariedade dada ao poder judiciário é uma via de mão dupla. Às vezes pode pelo “bem”, às vezes pelo “mal”. E a discricionariedade, vinda pelo lado do (que nós, defensores da atuação dos movimentos sociais entendemos por) “mal” pode nos gerar estragos irreparáveis. Lembremos que fim levou a ocupação urbana do Pinheirinho, em São José dos Campos, no início de 2012. A “discricionariedade” judicial atuou do lado mais forte da balança, renegando a dignidade da pessoa humana e direito à moradia de 7 mil pessoas em função da especulação imobiliária. Assim, entre o “bem” e o “mal” ficamos com a Democracia! 4.2. O Ativismo Judicial aos Movimentos Sociais: paralelos de uma prática tentadora Sem a pretensão de aprofundar em debates de concepções, temos por Ativismo Judicial a prática de o Judiciário realizar decisões de caráter político que vão além de sua competência. A partir do Ativismo Judicial, o Poder Judiciário, na inércia do Poder Legislativo diante de determinadas matérias, boa parte delas fruto de grandes controversa, vêm de fato a “legislar” a partir de seus julgamentos, que não mais fundamentados em argumentos de Direito, passam a ter como base argumentos políticos e convicções pessoais, subjetivas, daquilo que o julgador entenderá por “justo”. Em linhas gerais, observamos uma confusão não apenas semântica, mas paradigmática: o Judiciário, diante do Ativismo Judicial, não apenas aplica, mas “faz” o direito. Inegável é que o Ativismo Judicial fez do Poder Judiciário uma nova arena de lutas para os Movimentos Sociais, que, sem dúvida alguma, há muito deixaram de

acreditar na força de representação dos partidos políticos e na legitimidade de nossos parlamentares em representá-los. Também pudera: enquanto no congresso a bancada ruralista e a bancada evangélica lideram as votação em Brasília, o Supremo Tribunal Federal concede a União Estável a pessoas do mesmo sexo, causa que durante tempo tem sido objeto de lutas dos Movimentos de afirmação, reconhecimento e efetivação dos Direitos LGBTT. Assim, como a Ponderação Alexyana, o Ativismo Judicial também vem a ser tratado propriamente como um princípio no sistema jurídico brasileiro. Há até uma tentativa de positivação do “Princípio do Ativismo Judicial” no anteprojeto do Código de Processo Coletivo mas, também como a Ponderação Alexyana, a crítica ao Ativismo Judicial também tem seu ponto nuclear no excesso de discricionariedade conferida ao Poder Judiciário. Notável é a citação na obra organizada por Vanice Regina Lírio do Valle sobre a experiência do ativismo judicial, que a partir da análise de casos julgados pelo Supremo Tribunal Federal chega a afirmar que: A argumentação dos ministros do Supremo Tribunal Federal em seus votos, ao trabalhar com categorias jurídicas como ‘força normativa dos fatos’, ‘situação excepcional’, ‘contexto’ e ‘realidade constitucional’, têm se aproximado mais de um ativismo judicial proporcional pelo pensamento pragmatista do que pela perspectiva teórica, mais valorativa e própria do neoconstitucionalismo. 26. Esse pragmatismo acima referido alude que o Ativismo Judicial também é fruto de uma crise de processos epistemológicos nas decisões judiciais. É sabido que a origem do Ativismo Judicial remonta à experiência constitucional estadunidense que acumula mais dois séculos de discussão sobre a temática. Aqui importou-se a prática, mas a discussão ficou. De todo modo, não é no pragmatismo que os Movimentos Sociais devem pautar e nem nos juízes que eles devem acreditar. Se quisermos construir uma ordem democrática, devemos ter por consenso que nesse caso os fins não justificam os meios sob pena de que os mesmos meios sejam utilizados para fins heterogêneos.

26

VALLE, Vanice Regina Lírio do. Ativismo Jurisprudencial e o Supremo Tribunal Federal:

laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009.

Em terras brasileiras tanto a ponderação alexyana quanto ativismo judicial vem sendo talhadas a partir de um debate raso e de uma prática inconseqüente e pragmática sem pesar até o que deve levar tamanha discricionariedade dada aos nossos julgadores. Se a convicção de juízes valerem mais que as nossas leis, entre elas, a nossa Lei Maior, a Constituição, estaremos suprimindo a nossa ordem jurídica, diluindo o (ainda não consolidado) Estado Democrático de Direito em função de um Estado de Exceção governado por senhores togados. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A CONSTITUIÇÃO É IMPORTANTE! Diante de tantos impasses acerca da experiência constitucional estadunidense, Laurence Tribe e Michael Dorf talharam uma pequena obra que foi entitulada originalmente por “On Reading The Constitucion” mas que no Brasil foi indevidamente traduzida para “Hermenêutica Constitucional27”. Nela os autores discutem algumas questões que permeavam o direito constitucional estadunidense da época que vão desde problemas de interpretação constitucional que vão desde questões envolvendo a integração das normas até questões de relação com o direito precedente sob a égide do Common Law. Agora, como fizeram Tribe e Dorf, proponho tanto aos militantes dos movimentos sociais quanto aos juízes: vamos ler a constituição! Nenhum tribunal ou juiz tem o direito de arbitrariamente passar por cima da força normativa da Constituição Federal de 1998 em prol de convicções pessoais criadas na subjetividade do julgador. E, diante disso, é imprescindível que se reconheça o importante papel que os movimentos sociais vem desempenhando para dar efetividade ao texto constitucional, propondo radicais alterações no status quo vigente e, assim como era propósito da Carta de 88, recuperar o déficit de democracia sofrido pela população brasileira ao longo dos anos, sobremaneira, a partir de uma redução dos antagonismos sociais que contemple o artigo 3º da própria Constituição Federal. Assim, concordamos com Gilberto Bercovici quando afirma que O acerto ou não da jurisdição constitucional está na manutenção da coerência de sua interpretação com os princípios fundamentais da Constituição, atualizando-os 27

TRIBE, Laurence; DORF, Michael. Hermenêutica Constitucional. Tradução de Amarílis de

Souza Birchal. Coordenação e Supervisão de Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

conjunturalmente, mas sem manipular o texto contrariamente a seus fins.28. Pois bem, mais que assegurar vitórias judiciais em casos isolados, constitui objeto de luta dos Movimentos Sociais uma sociedade mais justa, igualitária e sem opressões. Uma sociedade mais democrática. Democracia esta que só será conquistada em sua plenitude a partir de muitas ações fora e dentro dos aparelhos institucionais, mas que perpassa a afirmação e efetivação de um texto constitucional que prevê o respeito aos Direitos Fundamentais e a redução dos antagonismos sociais. A democracia plena, real, não nos será dada por senhores togados que fazem de suas convicções pessoais a lei maior de suas decisões. Concluindo: não é renegando a Constituição que efetivaremos o seu texto. Não é conferindo poderes soberanos ao Judiciário, criando uma atmosfera de Exceção em nosso Estado que as lutas por reforma agrária, reforma urbana, reforma penitenciária, respeito aos direitos identitários, dentre tantas outras, serão finalmente contempladas.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Luis Virgilio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. AZEVEDO, Plauto Faraco de. Direito, Justiça Social e Neoliberalismo. 1 ed. 2 tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000 BERCOVICI, Gilberto, A problemática da constituição dirigente: algumas considerações sobre o caso brasileiro. Brasília: Revista do Senado Federal, a. 36 n. 142, 1999. ______. Desigualdades Regionais, Estado e Constituição. São Paulo: Max Limonad, 2003.

28

BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades Regionais, Estado e Constituição. São Paulo: Max

Limonad, 2003.

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