Os Movimentos Sociais Enquanto Espaços Educativos: Revelações e revoluções de uma história de vida feminista
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Cultura Escolar Migrações e Cidadania Actas do VII Congresso LUSOBRASILEIRO de História da Educação 20 23 Junho 2008, Porto: Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação (Universidade do Porto) ISBN 9789728614133
OS MOVIMENTOS SOCIAIS ENQUANTO ESPAÇOS EDUCATIVOS: revelações e revoluções da história de uma vida feminista Maria José Magalhães, Salomé Coelho, Deidré Matthee, Vânia Martins
EIXO 4 – Inclusão, género e etnia
Introdução Este artigo inserese numa pesquisa mais alargada sobre histórias devida de mulheres 1
vítimas de violência de género e doméstica , cujo objecto de estudo foca nos percursos de vida como formas de aprendizagem e de emancipação através da participação em movimentos sociais. Os principais objectivos consistem na produção de conhecimento sobre os estudos históricos de género, nomeadamente no que concerna a educação e os atravessamentos das biografias e vidas pessoais com as trajectórias dos movimentos sociais, assim como dar voz às mulheres e empoderar mulheres e raparigas no sentido de agarrarem em mãos o seu próprio destino. No campo dos estudos de género históricos, esta investigação inserese também nos três processos que Maynard e Purvis (1996) têm vindo a realçar: os da recuperação, reconstrução e reflexividade (ver também Maynard e Purvis1994), por um lado, levantando questões sobre o porquê e como é que as mulheres ‘desapareceram’ das preocupações académicas, por outro, estimulando iniciativas criativas para desenhar conceitos e teorias, projectos de prática de pesquisa e quadros teóricos explicativos e, por outro ainda, incluindo a reavaliação e o re desenhar dos termos e dos tópicos que estruturaram as práticas das disciplinas académicas existentes.
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O projecto consiste numa parceria entre a Faculdade de Psicologia e de Ciências das Educação da Universidade do Porto e foi entretanto financiado pela Fundação Ciência e Tecnologia, designandose “Love, Fear and Power: Pathways to a NonViolent Life”.
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Este artigo centrase na história de vida de uma activista de diferentes movimentos sociais – sindical, de moradores, feminista — cuja trajectória de vida atravessou o período do Estado Novo com um regime fascista (salazarismo), viveu a sua maturidade no pós25 de Abril, embrenhada nos movimentos revolucionários de então, e dobra os anos 1990 para o séc. XXI numa participação muito implicada nas lutes dos bairros sociais num contexto politico de neoliberalismo, em que o Estado social mingua progressivamente. Inciase o artigo com um debate epistemológico sobre as histórias de vida como metodologia fundamental para, de seguida, se passar ao percurso de vida de Maria, nome que ficticiamente demos à nossa protagonista. Assim, no âmbito desta pesquisa, estamos interessadas/os em ouvir experiências diversamente coloridas e compreender alguns ecos e ressonâncias paarticulares e específicos de cada uma e/ou de cada grupo social, focando na complexidade para uma melhor compreensão da estrutura social.
A metodologia e as opções epistemológicas A história de vida é aqui tomada como “metodologia fundamental”, isto é, em que o enfoque central se coloca no papel do sujeito e nas subjectividades e experiências pessoais não como ilustração da teoria, nem como exemplo, mas como contributo central para o conhecimento (Ferrarotti 1983; Magalhães 2005). No campo da História, desde muito cedo que o percurso individual constitui objecto de estudo privilegiado, no sentido de nos permitir o acesso ao conhecimento da vida social e humana de determinada época. Ao longo do século XX, as contribuições cruzadas da história social, da antropologia e sociologia críticas, articuladas com a crítica feminista da ciência têm realçado esta metodologia também pelas suas possibilidades heurísticas, quer na dimensão que permite de desafiar as ideas prévias sobre a teoria social ou a vida social de um dado contexto, quer para nos trazer conhecimento sobre as identidades sociais, abrindo possibilidade para a emergência da “subjectividade explosiva”, conceito de que nos fala Ferrarotti (idem). A ideia de que a história e a vida social não se fazem apenas de objectividade, e da importância da subjectividade no conhecimento e na construção da vida social e humana têm vindo a ganhar corpo nas ciências sociais em geral, ao ponto desta metáfora de “explosiva” nos iluminar para a importância das intenções, das interpretações, dos sentimentos dos/as autoras/es envolvidas nas acções e momentos que procuramos descrever, analisar e compreender cientificamente. Mas não é só a subjectividade que emerge explosivamente quando usamos as histórias de vida como metodologia fundamental. Também a relação entre o individual e o social é colocada de forma diferente da sociologia mais positivista ou da História mais descritiva. Em vez de considerar cada ser humano como um átomo social, esta perspectiva crítica e feminista pretende
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considerar cada ser humano como um universo singular (Ferrarotti idem: 59), onde cada pessoa faz uma síntese activa de um sistema social, através de uma “praxis totalizante” (idem). Neste sentido, a compreenão da imbrincada relação entre a pessoa individual e o social é realizada através da utilização da “razão dialéctica” que já Marx sinalizava e outros autores foram desenvolvendo (com particular incidência para Thomas e Znanniecki 1958; Thompson 1963, e outros/as autores/as da Escola de Chicago e, mais recentemente, da Escola de Frankfurt). Existe, aqui, subjacente, uma rutptura da dicotomia entre a intencionalidade nomotética e a intencionalidade idiográfica, que, curiosamente, não apenas dividiu perspectives epistemológicas na mesma disciplina, como dividiu disciplinas, sendo que o mais relevante desta ruptura passa pelo desafio à hierarquização dos saberes científicos que, na ciência dominada por uma perspectiva nomotética tendia a desvalorizar os outros contributos para o conhecimento científico.
A dimensão da textualidade Nesta reflexão cabe também uma parte dedicada à dimensão da textualidade que é apanágio da construção da ciência, mas que aqui se pretende explicitar para não incorrermos no perigo de outros/as ao esquecer que escrever a História é também escrever histórias, de cujo resultado não se pode abstrair o papel de quem e quando e onde escreve, sendo que o acto de escrita é, em si mesmo, um processo de objectivação e de ocultação, de ritual e de iniciação, de desconstrução e reconstrução (Stronach 2002). Nesta investigação que levamos a cabo, que se centra sobretudo nos relatos orais das próprias vítimas de violência doméstica, de mulheres sujeitos e sujeitadas a processos de vitimização, mas simultaneamente autoras de processos de mudança social e de percursos de autonomização, a linguagem tem um papel de relevo, já que é através deste meio de comunicação que os relatos de vida nos são oferecidos na forma de testemunhos, e é também através da liguagem que são transformados em histórias mais ou menos coerentes, em que a relação entre biografia e autobiografia e grafia se misturam produzindo textos partilhados,
autografias e auto/biografias, nas palavras de Lis Stanley (1992; 1993), em que a relação com a vida [bio] é críptica e não linear. Nesta reflexão, não podemos deixar de ter em conta o papel da língua e da linguagem como sistema social (Weedon 1989) e o facto de que este sistema social (a língua), como muitos outros, é classista, sexista, racista. Este aspecto é particularmente relevante quando nos deparasmos com relatos e testemunhos de vida de pessoas de classe trabalhadora, de mulheres, dos “silenciados da história” (Freire 1972; 1978), cujas vidas e trajectórias, sentimentos e subjectividades encontram diversos obstáculos para serem nomeados e descritos. As palavras existentes não são suficientes para expressar o outro lado da vida dos dominados, cuja dominação passa também pelo facto de não disporem de expressões, de termos para dizer das suas experiências,
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vontades, desejos, sentimentos. Já para não falar das questões relacionadas com o menor acesso ao acervo linguístico, vocabular, semântico ou gramatical. Resta ainda referir, neste ponto, o carácter performativo da própria linguagem, aspecto realçado por alguns/mas autores/as (entre outros/as, Butler XXXX), que mostram como o dizer da vida, do mundo, é também uma forma de o construir. Não chega, mas é um caminho para a construção do que existe ou do desafio ao sistema vigente. Neste sentido, a educação constitui um campo relevante de estudo das formas e mecanismos de transmissão dos valores e das estruturas sociais, assim como da sua descontrução e reconstrução de novas estruturas sociais. Assim, esta pesquisa seleccionou, para a elaboração de histórias de vida, pessoas comuns, neste caso, mulheres, desafiando também o que tem sido o canone autobiográfico, que tem assentado em figuras masculinas, sobretudo brancas, nos países centrais e de classe média: isto é, os homens da elite do mundo ocidental. Curiosamente, a entrada das classes trabalhadoras tem sido feita através da “descrição dos factos”, muitas vezes assegurada pelas fontes dos intermediários, mediadores do sistema (assistentes sociais e outros profissionais emergentes com a transição para o modo de produção capitalista), construindo, aqui também, um desigual acesso ao direito à subjectividade. Da classe trabalhadora esperamse factos e objectividade, uma verdade escrutinada, para produzir juízos de valor sobre o seu ‘direito’ aos apoios daquilo que era, então, um conjunto reduzido e assistemático de mecanismos de redistribuição 2 . Esta diferença social manifestase igualmente pelo desigual acesso das classes sociais e dos grupos de género e de pessoas de cor ao estatuto de obra literária 3 ou de “verdade” dos factos. Tendo em vista um conhecimento histórico objectivo, temos ainda que ter em conta a reconstituição social dos relatos individuais, reflectindo sobre os audit selves (Stanley 1993), isto é, dos riscos de construção dos relatos em função de audiências, sejam elas o público dos meios do comunicação social, ou o públoico académico dos standards do conhecimento científico. Nesta questão, entra igualmente o problema da dimensão da “composição” da história (Steedman 2000), quer por parte da/o narrador/a em relação aos relatos orais das/os
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A este propósito podemos referir o que Carolyn Steedman (2000) refere para os finais do séc. XIX em Inglaterra com a introdução da “Poor Law” que, em Portugal, apenas poide ser comparável a alguns mecanismos da segurança social nos finais dos anos 1960. 3
Vale a pena referir aqui uma obra autobiográfica de uma mulher negra, escrava xxxxxxxxx, que, tendo sido descoberta em vvvvvvv, por BBBBBBBBB, só é publicada em JJJJJJ, porque a própria investigadora pretendeu verificar os factos ali relatados — também para objectivos de investigação.
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narradoras/es, quer por parte dos/as investigadoras/es que escrevem sobre esses relatos ou lêem e interpretam outras fontes directas ou indirectas. Apesar de apresentarmos aqui apenas uma história de vida, esta investigação procura, como já dissemos, ouvir diversas mulheres vítimas de violência de género e doméstica, de diferentes classes sociais e origens geográficas, no sentido de apreender experiências diversamente coloridas e compreender ecos e ressonâncias dos discursos de género, dominantes ou emancipatórios, reprodutores ou desafiadores do sistema social. O interesse em trabalhar com histórias de vida situase na preocupação de compreender como os movimentos sociais se constituem como espaços e mecanismos de aprendizagem e de formação, permitindo nos focar na complexidade da compreensão da estrutura social. Como afirmam Hatch, J. A., e Wisniewski, R. (1995) “as histórias de vida são fontes particularmente ricas, na medida em que, atentamente inbterpretadas, iluminam quer a lógica dos percursos de acção individual quer os efeitos dos constrangimentos ao nível do sistema que estão implicados nesses percursos”. Mostrando com maior clareza a relação entre o individual e o social, “mostram como as mulheres negoceiam, nas suas vidas quotidianas, o seu ‘excepcional’ estatuto de género”, ao mesmo tempo que “tornam possível examinar as ligações entre a evolução da subjectividade e o desenvolvimento das identidades femininas” (Hatch, J. A., & Wisniewski, R. 1995: 35)
A dimensão emancipatória da pesquisa em histórias de vida Uma dimensão importante da pesquisa em histórias de vida, sinalizada por diversas/os autoras/es, consiste nas possibilidades para a emancipação social. Neste sentido, não é de menor importância sinalizar o contributo para a construção de um saber relevante para as (e nas) vidas das pessoas. Também nesta ordem de ideias, se situa o objectivo de derrubar dois mitos do liberalismo educacional, sendo o primeiro a neutralidade da educação e o segundo, decorrente do primeiro, sobre o carácter apolítico da educação. Nada é neutro na história da educação, nem em termos de classe social, nem em termos de género. Neste sentido, as histórias de vida de mulheres, nomeadamente das classes trabalhadores têm igualmente um papel fundamental para des/construir o universo simbólico que nos rodeia, trazendo do passado, mais ou menos recente, algumas lições para o presente e para o futuro. No campo concreto das histórias de vida, é ainda de realçar o lado epistemológico da tranbsformação do que de perigoso e subversivo existe nas nossas memórias em possibilidades de acção para a mudança. A elaboração das histórias de vida nesta epistemologia que já apresentámos, significa uma relação dialógica entre investigador/a e sujeitos da investigação, cuja participação é sentida como coautoria, participação e diminuição da hierarquia entre os mundos académico e “real” da
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vida social. Como afirmam as autoras, “apresentando narrativas de diferença que foram co coligidas, coautoriadas e coanalisadas, podemos esperançadamente apresentar um conjunto de possibilidades para as/os leitores/as. Estas possibilidades podem ser experienciadas como reconhecimento da experiência, celebração das mulehres, mudança pessoal e, em última instância, acção política.” (idem: 54). Parafraseando Liz Stanley, esperamos poder passar do “selfmade man” para “women’s made selves”, modificando não apenas o carácter genderizado do primeiro como o individualismo que lhe está subjacente. Assim, as nossas audiências podem também desenhar paralelos entre as vidas ou perspectivar alternativas. Neste sentido, podemos chegar a audiências que, previamente desapossadas ou deslocadas pela pesquisa tradicional, podem fazer sentido enquanto histórias, enquanto pesquisa (Goodley, D., Lawthom, R., Clough, P., & Moore, M. 2004). Neste sentido, através da história de vida de uma mulher pobre, líder popular e feminista, podemos conhecer as diversas formas pelas quais as mulheres participam na transformação social, “negociando políticas, produzindo identidades femininas” (Alvarez e colegas 2003: 545).
História de uma vida feminista Maria, com 56 anos, é mãe de 3 filhos, tendo nascido na região Norte de Portugal, no seio de uma família numerosa e imersa em violência doméstica, onde um pai alcoólico agredia constantemente a mãe sempre grávida. Da infância, Maria recorda precisamente isso: “a mãe sempre grávida e o pai sempre bêbado”. A mãe esteve grávida 22 vezes, realizando alguns abortos clandestinos para não ter todos os filhos. Com 12 anos, Maria inicia a sua actividade laboral, trabalhando na SICMA e na UNIVERSAL em Matosinhos 4 , como operária conserveira. Casou muito nova, com 16 anos, para fugir da vida familiar e porque estava grávida. Dessa altura, recorda a total ignorância sobre as questões da sexualidade e contracepção. A gravidez ainda mulher/adolescente solteira era um destino certo para o casamento. Apesar das suas esperanças de fugir ao inferno da violência do pai, esta relação revelouse uma perpetuação da violência vivida no seio familiar, uma vez que Maria também era vítima de violência doméstica por parte do marido. Em 1974, com 22 anos, tornase dirigente sindical do Sindicato da Indústria das Conservas do Norte do país. Refere que se tornou activista sindical para melhor suprir as suas necessidades básicas uma vez que passou fome, teve dificuldades na habitação, pois chovia dentro de casa e vivia na miséria. Lado a lado com o pai e outros camaradas operários e sindicalistas, reivindicou melhores salários e melhores condições de trabalho para todos os trabalhadores em geral, e mulheres trabalhadoras em particular.
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Estas eram duas das mais importantes fábricas conserveiras de peixe do país, localizadas em Matosinhos, uma cidade periférica do Porto.
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Esta aprendizagem de reivindicação das necessidades básicas e dignidade para todo o ser humano desafiou o poder instalado na época. Foi uma aprendizagem feita lado a lado com o pai, camarada de luta. Maria refere esta contradição entre o pai camarada sindical e o pai alcoólico e agressor da mãe. Além de dirigente sindical, tornase activista politica, num partido de orientação de esquerda. Aqui, recebe o apoio dos camaradas para enfrentar a situação de violência de que é vítima em casa, por parte do marido. Refere que muitas vezes o chamaram à atenção no sentido de o sensibilizarem para a situação vivida em casa. No entanto, os camaradas não interferiam demasiado pois consideravam que era uma questão do foro privado. Membro do Grupo de Mulheres do partido, quando este se separou do mesmo, procurando autonomia e dando origem a uma associação de mulheres feminista – a UMAR, Maria também se fez associada. Decorria o ano de 1977. Tornase membro activo desta associação até ao presente, participando nas mais diversas lutas pelos direitos das mulheres: alfabetização, habitação, creches, direito ao emprego, igualdade salarial, despenalização do aborto, luta contra a discriminação feminina, luta contra a violência e exclusão social. Actualmente, colabora também nos projectos de intervenção na escola e na comunidade desta associação, na freguesia de Aldoar. Com 35 anos, em 1987, tornase Presidente da Associação de Moradores do Bairro de Aldoar, cargo que ainda hoje, passados 21 anos, exerce. Enquanto presidente e activista desta associação de moradores, de um bairro extremamente carenciado, tem desenvolvido esforços no sentido de melhorar as condições de vida e de habitação no interior do bairro. As grandes preocupações centramse na procura de habitação condigna para todos e para todas, na melhoria das habitações existentes, no acompanhamento das crianças para uma melhor intervenção comunitária no sentido de os e as apoiar para virem a ser cidadãos e cidadãs de plenos direitos, no apoio às famílias com doentes e às pessoas portadoras de deficiência, tentando conseguir os apoios necessários a viverem o mais condignamente possível. Sobre os habitantes do bairro, refere que não tem vergonha de pedir para eles e elas. Em 2004, já mulher viúva, tornase vicepresidente da Comissão de Utentes do Centro de Saúde de Aldoar, desenvolvendo esforços, em conjunto com todos os seus membros, no sentido de melhorar os cuidados de saúde à população da freguesia, nomeadamente aos mais carenciados. Desde 2005, é membro da Assembleia de Freguesia de Aldoar, tentando assim interpretar os anseios da população de Aldoar, sobretudo dos mais carenciados e tendo como referência os moradores do bairro de Aldoar. Maria, activista politica, social e feminista, foi recentemente galardoada pela Câmara Municipal do Porto e pelo Presidente da República como forma de tributo ao seu percurso de vida, sempre em prol dos outros e outras.
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Aprendendo com os movimentos sociais O movimento feminista tem constituído exemplos históricos em que está evidenciado o seu papel, enquanto movimento social, na construção de saberes que puseram em causa noções teóricas de diversas áreas científicas (da medicina, da sociologia, da política, da economia, da epistemologia). Enquanto, no movimento da chamada primeira vaga, como refere Margarida Louro Felgueiras (2008), “o debate sobre a coeducação é contemporâneo de outras lutas travadas pelas mulheres para o acesso ao trabalho na esfera pública” e “a procura de reconhecimento” (idem: 184) de certos secotres de mulheres profissionais (enfermeiras, parteiras), no feminismo de segunda vaga, a atençao e acção pretendem safar as fronteiras entre o privado e o público. Como afirma Manuela Tavares (2009), “o discurso dos direitos foi a base fundadora do feminismo de primeira vaga. Perante o «universalismo da diferença» ao considerarse que a biologia determinava as diferenças entre homens e mulheres e a subordinação destas, impunha se o «universalismo dos direitos», esses sim pertencentes aos homens, como herdeiros dos ideais de liberdade, fraternidade e igualdade da revolução francesa” (2009: 70). Mais evidente no movimento de segunda vaga, os grupos de mulheres, através da troca de experiências e do trabalho de conscientização, foram construindo novas visões em torno do corpo, da saúde e da sexualidade, novos conceitos sobre a vida privada e a vida pública e as concepções acerca da participação política, assim como rupturas epistemológicas em relação a formas colonizadoras de construção do saber científico (este último a par de outros movimentos no seio da ciência e da filosofia crítica). No campo da ciência, foi também a perspectiva feminista uma (entre outras como a perspectiva freireana, dos movimentos populares da América Latina) das que desafiou o cânone dominante mostrando que a transformação e emancipação se dá não apenas na esfera pública, através de acções claramente políticas, no sentido tradicional, mas igualmente, na esfera privada, através de “lutas escondidas”, que as histórias de vida tão bem retratam (vejase Araújo 2000; Araújo e Magalhães 2001; Magalhães 2005a). No campo social, as questões do corpo, da sexualidade, da saúde específica das mulheres, do direito à participação política na esfera pública, do direito a uma voz, foram algumas das principais ideias que atravessaram o movimento de segunda vaga (ver Tavares 2000; ver também Tavares e colegas 2004; Tavares e cpolegas 2005). Maria é uma líder local. A experiência da mãe vítima de violência po parte do pai que viveu com muita intensidade, dálhe alento e formação para a luta social. Embora tenha engravidado cedo e, por isso, casado aos 16 anos, numa relação conjugal também atravessada de violência do marido, não deixou de apoiar a mãe e de tentar encontrar estratégias de sobrevivência à violência doméstica. Como uma infância atravessada de pobreza, é operária ainda quando criança, e estas duas dimensões da sua vida, vítima indirecta de violência doméstica por parte do pai, vítima de violência do marido, vitima de violência económica na fábrica pela extrema exploração a que era sujeita, Maria cruza dimensões de vitimização e de exploração que desafiam a nossa compreensão sobre as formas como resistiu.
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Para esta resistência, muito terá contribuído os laços de solidariedade e de afecto tecidos entre irmâs e mulheres dos bairros onde viveu, solidariedade essa que se manifesta também no apoio à mãe e que se desenvolve nas lutas sindicais dos finais dos anos 1960, anos de finados para o regime fascista de Salazar. Esta participação no movimento sindical, que lhe concedeu algumas alegrias de pequenas vitórias que o carácter moribundo do sistema permitia, deulhe força e coragem anímica para resistir e aprender uma forma de estar na vida que faz de Maria uma líder e uma heroína local. A participação numa associação de mulheres que realizava, à epoca, um conjunto de actividades de animação e de consciencialização para a emancipação das mulheres (trabalhadoras) acrescentou uma dimensão de reconhecimento, na sua identidade enquanto lutadora e mulher, que a participação sindical e partidária, segundo o que nos contou, não tinha dado. Sendo também a portavoz (e dirigente) de uma das principais associações de moradores de bairros sociais do Porto – a de Aldoar – Maria acrescenta o activismo no desenvolvimento local ao activismo feminista, de esquerda e sindical que tinha ou ainda vai desenvolvendo. Aprendeu a dignidade da pessoa trabalhadora, assim como o valor da independência económica, com o pai e o sindicato, em conjunto com o valor da solidariedade e da luta social. Mas foi com o movimento feminista que aprendeu a dignidade e importância da integridade física e psicológica como mulher, assim como a forma como encontrar dimensões de autonomia no espaço privado e de lutar pelo direito a participar e a tomar decisões tanto na esfera pública como privada.
Nota final Ainda no seu início, esta pesquisa em histórias de vida permitenos compreender como as mulheres negociaram os seus papéis de géneronos seus quotidianos, nos seus contextos de vida e como a aprticipação em diversos movimentos sociais se constitui, por vezes, como mecanismo de resistência, de aprendizagem, da dignidade da pessoa humana, enquanto trabalhador, mulher e pobre. Podemos desde já apontar como esta história de vida permite dar voz às mulheres, ultrapassar o silêncio a que têm sido votadas (Lewis 1993). Vislumbrase, nesta história de vida, a possibilidade de encontrar uma outra protagonista “com grande sentido estratégico”, que sabe “identificar a sua luta, que era a das mulheres, com os objectivos de classe…” (Felgueiras 2008: 197), faltanos o depuramento histórico que a distância temporal permite para poder “caracterizar uma «mentalidade» como forma social de agir e pensar de uma época.” (Felgueiras 2008: 167). Resta continuar nesta investigação, e tentar compreender formas e mecanismos de
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transmissão de conhecimentos, de saberes, de formas de estar na vida, de desafio ao sistema vigente e, na medida em que falamos de mulheres, de construção de um sujeito colectivo feminino e feminista.
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