OS NOMES DA POESIA (Resenha do livro \'Manual de flutuação para amadores\' de Marcos Siscar_Segundo Caderno_O Globo_21_11_15)

June 14, 2017 | Autor: Laura Erber | Categoria: Poesia, Poesia Brasileira, Poesia brasileira moderna e e contemporânea
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OS NOMES DA POESIA Laura Erber Resenha do livro Manual de flutuação para amadores (Rio de Janeiro, 7Letras) de Marcos Siscar, publicada originalmente no Segundo Caderno (O Globo) em 21 de novembro de 2015.

Quais são os nomes da poesia? Cesura, gravidade relutante, ficção suprema? A pergunta por esse nome é o verso que encerra, abrindo ao infinito, o poema “nome disso”, incluído em Manual de flutuação para amadores, livro de Marcos Siscar recentemente publicado pela editora 7Letras. A dúvida insiste: “poesia é o nome disso? […]/ tem outra graça ou vive de sua fama?/ acende-se ao ser chamada pelo nome?”. As perguntas simples apenas em aparência arrastam consigo uma cisma, feixes de possibilidade e refrações. Em outro contexto, o autor afirmaria que Ana Cristina Cesar é um dos nomes da poesia contemporânea, dizendo com isso que a assinatura Ana C. colocaria em jogo, para nós, o destino e “a capacidade ou a legitimidade de sedução que o gênero [‘ainda’] carrega.” Neste Manual a flutuação é o modo pelo qual se recoloca em risco o destino dos nomes. Se todo nome é impróprio, uma tal suspensão participará também de uma poética da perífrase, procedimento que vem caracterizando a poesia de Siscar. Esse modo de rodear o que se diz, convocando o real da coisa, atraindo-a por tateio e repetição, parece atestar que a nomeação pode ser simultaneamente uma energia, o que resta de um fulgor barroco e um gesto cético, um rigor frio e necessário, sobretudo no presente pubicitário de nossa cultura, em que o nome próprio é consumido como logomarca. O “jardineiro noturno” e o “pensador cortando grama” surgem então como outros nomes do poeta, aquele que, avesso à autoficção, declara preferência pela sinceridade bruta, uma que o coloque diante de si sem a casca, sob o risco de que “durante toda a vida tivesse que pegar meu nome próprio na ponta dos dedos”. Suspender a eficácia da nomeação lança a poesia no torvelinho de outros batismos possíveis. Coloca também em questão a identidade entre o nome (poema) e sua forma tradicionalmente reconhecível (o verso), aqui sujeita à cautelosa ascensão ou queda em prosa. A eficiência dos manuais dá lugar a um modo de investigar a flutuação catastroficamente, são “lições de fragilidade do ar”, difíceis e improváveis como túmulos aéreos onde “sepultamos balões coloridos”. O conjunto acaba por incidir sobre os nomes do solo, para onde se volta, talvez com o vento. O chão surgirá com o barco enferrujado saindo de um charco (“o peso e o chão”); antes dele, outro barco havia sido devolvido pelo rio em outro livro. Assim também o poema “Pietà” é a

retomada de uma figura presente nos dois livros anteriores do autor. Nele, e somente nele, a flutuação deixa de ser hipótese ou imagem para realizar-se no chamado de uma voz exorbitada, que convoca o amor para o dia da morte, como quem convoca um abismo. Seu protagonismo aqui – trata-se do poema de abertura –, pode remeter ao fato de que, na tradição iconográfica, pietàs costumam expor dramaticamente o momento intersticial entre a queda e a ascensão, o corpo morto de Cristo “descido” da cruz antes de sua ressurreição gloriosa. As insistentes retomadas de textos anteriores, e o que aqui ressoa da produção crítica de Siscar (penso em “Tomar pé” de 2010), seriam talvez índices de uma ecologia literária em que a escrita põe em cena as marcas da leitura, as manchas do que não se diz. Em “Revezes”, lemos: “deveria continuar apagando o que escrevo como estou fazendo agora”. Nem teria sido necessário mostrar de fato a rasura (“Instantâneo”), outro poema já havia mostrado que revirar lixo pode conduzir a uma “outra modalidade de começo”, refratária ao desejo de originalidade. Uma leitura cruzada de“gênesis” e “do interesse do lixo”, revelaria que o começo aí buscado não é nostalgia das origens, sendo antes o que fica do jogo infinito de metamorfoses. O gosto pela reescritura e pela homologia é claramente reflexivo, flerta bem de perto com o insolúvel da aporia. Fascinante que produza, ao mesmo tempo, uma espécie rara de lucidez prosaica que emerge no interior do poema para tirar-lhe o chão. LAURA ERBER é professora do departamento de Teoria do Teatro da UNIRIO. Artista visual e escritora, autora de Ghérasim Luca (Eduerj, 2012) e Os corpos e os dias (Editora de Cultura, 2008).



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