OS PRINCÍPIOS JURÍDICOS EM HANS KELSEN DIANTE DA REVIRAVOLTA LINGUÍSTICO-PRAGMÁTICA NA FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA: a superação de um paradigma interpretativo no Direito

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OS PRINCÍPIOS JURÍDICOS EM HANS KELSEN DIANTE DA REVIRAVOLTA LINGUÍSTICO-
PRAGMÁTICA NA FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA: a superação de um paradigma
interpretativo no Direito

THE LEGAL PRINCIPLES IN HANS KELSEN TOWARDS THE PRAGMATIC-LINGUISTIC TURN
IN THE CONTEMPORANY PHILOSOPHY: the overcoming of an interpretative
paradigm in the Law





Ricardo Evandro Santos Martins[1]
Paulo Sérgio A. C. Weyl[2]














RESUMO: O juspositivismo de Hans Kelsen tem sido criticado pelo o que se
chamou genericamente de movimento pós-positivismo. Desde a II Guerra
Mundial se anuncia que o normativismo juspositivista de Hans Kelsen teria
sido superado porque não seria compatível com o uso de princípios jurídicos
nas práticas jurídicas, assim como também não seria compatível com os novos
paradigmas neoconstitucionais do Estado Democrático de Direito. O presente
artigo aborda tais críticas e busca reconstruir a doutrina de Kelsen a
partir da Reviravolta linguístico-pragmática operada pela Ontologia
fundamental de Martin Heidegger e pela Filosofia da linguagem do "segundo"
Wittgenstein. Com isto o artigo problematiza o papel dos princípios
jurídicos nas práticas jurídicas para que, então, possa-se realmente saber
se o juspositivismo kelseniano está superado ou não pelo atual contexto
filosófico e jurídico.





PALAVRAS-CHAVE: Positivismo jurídico; Hans Kelsen; Princípios jurídicos;
Pós-positivismo; Reviravolta linguístico-pragmática.




ABSTRACT: The Legal positivism of Hans Kelsen has been criticized for what
is generically called Post-positivism movement. Since World War II
announces that the legal normativism of Hans Kelsen would have been
overcame because it was not compatible with the use of legal principles in
the legal practice and would not be compatible with the new Neo-
constitutionals paradigms of democratic rule of Law. This paper addresses
such criticism and seeks to reconstruct the doctrine of Kelsen from the
pragmatic-linguistic turn operated by Fundamental ontology of Martin
Heidegger and the Philosophy of language of the "second " Wittgenstein. So,
this article discusses the role of legal principles in the legal practices
to, then, know if the legal positivism of Kelsen is really outdated or not
by the current philosophical and legal context.


KEYWORDS: Legal Positivism; Hans Kelsen; Legal principles; Pos-positivism;
Pragmatic-linguistic turn.





INTRODUÇÃO






Kelsen foi o mais importante representante do positivismo jurídico
recente. A sua obra e história de vida envolvem grandes polêmicas, como a
acusação de ter sido um dos doutrinadores que fomentaram o surgimento dos
estados autocráticos modernos. Em grande parte, isso se deve à defesa pelo
Mestre de Viena do formalismo jurídico e do relativismo axiológico na
estruturação da sua visão científica sobre o Direito. Basta que se lembre
do argumento kelseniano presente no prefácio de sua obra magna, a Teoria
pura do direito, quando afirmou que, nos estados totalitários o governo
teria o poder para criar campos de concentração, forçar quaisquer trabalhos
e até matar os indivíduos de opinião, religião ou "raça" indesejáveis,
pois, nada obstante de serem consideradas moralmente reprováveis, tais
medidas não poderiam deixar de estar dentro de sua própria ordem jurídica.
(KELSEN, 2006, p. 44).


Assim, contra essa posição descritiva e relativista de Kelsen quanto
à relação entre Direito e Moral, com o fim da II Guerra e a queda dos
estados fascistas, alega-se que o Direito tem tentado se reaproximar da
"Moral". Surge, então, um novo contexto. Um "pós-positivismo". E, com isso,
anuncia-se que o positivismo jurídico, especialmente o de Hans Kelsen, não
mais poderia acompanhar as razões de um "novo" constitucionalismo que a
partir de então invoca, dentre outras coisas, o protagonismo de princípios
jurídicos de conteúdo moral na aplicação/interpretação das normas.


Partindo de um ponto de vista crítico dos pressupostos neokantianos e
neopositivistas da doutrina de Kelsen, intenta-se problematizar neste
trabalho a questão acerca da guinada dentro do debate jurídico ocidental
contra o jusnormativismo, fortalecida, no mundo, após a II Guerra Mundial,
com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada em 1948 pelos
países-membro da Organização das Nações Unidas, e, no Brasil, com o advento
da Constituição Federal de 1988. Em consequência, surge também o desafio de
se investigar sobre a sustentabilidade deste juspositivismo no atual
contexto pós-positivista. E, para tanto, utilizar-se-á como fio condutor a
tese do uso de princípios na aplicação/interpretação do Direito nos hard
cases e a suposta incompatibilidade do juspositivismo com este novo
paradigma pós-positivista.








1. A PRINCIPIOLOGIA JURÍDICA: DO JUSPOSITIVISMO AO MOVIMENTO PÓS-
POSITIVISTA














Conforme explica Dimoulis, a terminologia "pós-positivismo" não é
exata sob o ponto de vista cronológico, pois as críticas ao juspositivismo
estão sendo repetidas desde o século XIX, além do fato de que muitas das
teorias denominadas como "pós-positivistas" são anteriores à formulação de
análises positivistas feitas nas últimas décadas. A exemplo disto, é
possível citar a abordagem "tópica" de T. Viehweg que é tida como "pós-
positivista" apesar de ter sido publicada uma década antes da obra de Hart,
The concept of Law, de 1961, quando renovara os fundamentos do positivismo
jurídico normativista, originando um amplo debate até os dias de hoje.
(DIMOULIS, 2006, p. 51).


Segundo explica Moreira, em meados dos anos 50, as críticas ao
positivismo jurídico vinham acompanhadas com a tentativa de se fazer uma
"volta aos valores" com fundamento na ética kantiana, momento em que a
Teoria do Direito perdeu espaço para a Filosofia do Direito[3]. Assim, a
Teoria da Argumentação Jurídica, a Tópica Jurídica, a Hermenêutica
Filosófica e Constitucional, a Filosofia Analítica aplicada ao Direito e a
expansão dos direitos fundamentais, formaram respostas à insuficiência do
modelo juspositivista. (MOREIRA, 2008, p. 233-235).


Sobre pós-positivismo, o que mais interessa neste trabalho são as
observações de Calsamiglia quando alega que o movimento "pós-positivista"
mudou a "agenda de problemas" do Direito. O pós-positivismo teria prestado,
portanto, uma especial atenção à "indeterminação do Direito" e reconheceu
que as "fontes do direito" – pelo menos como eram vistas pelo
juspositivismo – já não dariam mais conta dos "casos difíceis".
(CALSAMIGLIA, 1998, p. 212).








1. O PAPEL DOS PRINCÍPIOS NA TRADIÇÃO JURÍDICA RECONSTRUÍDA










Assim, partindo desta nova "agenda de problemas" jurídicos, Rafael
Tomaz de Oliveira, em sua obra, Decisão judicial e o conceito de princípio:
a hermenêutica e a (in)determinação do direito, fruto da sua tese de
mestrado[4], propõe uma perspectiva hermenêutico-fenomenológica sobre os
desafios destes tempos de pós-positivismo que acabaram por trazer os
princípios jurídicos para a centralidade do debate. O autor brasileiro
explica que o conceito de princípio aparece como ponto de convergência
entre as mais diferentes posições teóricas rotuladas como pós-positivistas,
com especial enfoque para a questão da indeterminação do direito e para a
(in)evitabilidade de discricionariedade judicial.


Porém, o conceito de princípio jurídico ainda está longe de possuir
uma determinação rigorosa, mesmo em tempos pós-positivistas. Continua-se
sem saber, por exemplo, em que medida eles são distintos das regras e qual
seria o seu papel na interpretação e/ou aplicação das normas jurídicas.


Dessa forma, Rafael Tomaz de Oliveira prossegue explicando que, no
contexto atual, inclusive no Brasil, as teorias jurídicas de Ronald Dworkin
e Robert Alexy são aquelas em que o movimento pós-positivista se ancora com
mais vigor, apesar dos dois autores possuírem posições bem diferentes em
relação ao papel dos princípios jurídicos. E, contudo, apesar das
diferenças entre essas duas teorias, Rafael Tomaz de Oliveira estabelece os
dois conceitos sobre princípios jurídicos estão sob a mesma classificação,
qual seja, a de "princípios pragmático-problemáticos".


E cumpre alertar que este singelo trabalho não tem a pretensão de
aprofundar o estudo sobre os "princípios jurídicos pragmático-
problemáticos" ou mesmo explorar as distinções entre os conceitos de
"princípio" em Ronald Dworkin e Robert Alexy. Aqui, pretende-se tratar,
somente, acerca do papel dos princípios na doutrina juspositivista
kelseniana, classificados como "princípios jurídico-epistemológicos".


E para iniciar esta tarefa, se seguirá a abordagem hermenêutico-
fenomenológica, levando em conta as etapas "suspensiva", "destrutiva" e
"construtiva" deste "método". Como ensina Ernildo Stein, Ser e Tempo se
desenvolve em uma nova direção, um novo começo, uma nova questão de método.
Em confronto com Husserl, Heidegger foi um crítico da tradição metafísica e
da subjetividade moderna. Heidegger propôs uma nova metáfora, opondo-se às
metáforas da luz das teorias da consciência e de seus métodos, propondo a
ideia de "círculo hermenêutico" com o objetivo de desaparecer a ideia de re-
flexão, própria da tradição metafísica. Stein explica que, em Heidegger,
ocorre o "encurtamento hermenêutico", ou seja, a rejeição de Deus e de
"verdades eternas", a forclusão do mundo e a rejeição das "leis naturais",
como superação da metafísica e da relação sujeito-objeto. Heidegger,
contudo, continua Stein, não cai em um "metodologismo" neokantiano ou
naquele que se satisfaz pela análise lógica da linguagem, como o da
tradição neopositivista (Carnap). (STEIN, 2008, p. 32-33).


O "método" hermenêutico-fenomenológico, forjado por Martin Heidegger,
em resumidas palavras, consiste em um procedimento regressivo através da
história da filosofia que procura "suspender", isto é, "por em dúvida", as
sedimentações que se formaram na linguagem para, após, "destruí-las". Ou
seja, trata-se de ler a tradição jurídica de modo que seja possível nela
perceber as "possibilidades" que ficaram inexploradas por uma série de
"encobrimentos" na tradição. Assim, passadas essas etapas, pretende-se
deixar um caminho para a última etapa do "método" fenomenológico-
hermenêutico, que é a da "construção". Isto é, a possibilidade de
formulação de novos projetos mediante a apropriação positiva do passado.
Tal apropriação possibilitaria "liberar" a tradição jurídica para outro
ponto de vista filosófico que não o metafísico. (TOMAZ DE OLIVEIRA, 2006,
p. 40).


Desse modo, segundo a classificação dada por Rafael Tomaz de
Oliveira, conforme sua abordagem hermenêutico-fenomenológica sobre o tema,
têm-se três significados distintos para o conceito de "princípio" afirmados
ao longo da história do Direito desde o racionalismo moderno:


a) "princípios gerais do direito", que aparecem como reminiscências
do projeto jusnaturalista em pleno seio da cultura emergente positivista,
tendo como objetivos suprimir as eventuais lacunas existentes no sistema de
normas codificadas, para lhe preservar a completude lógico-sistemática, e
funcionar como "axiomas de justiça", ou seja, como pressupostos para o
procedimento de aplicação da norma que incorporam o sistema, aplicados por
dedução;


b) "princípios jurídico-epistemológicos": estes não são a mesma coisa
que os "princípios gerais de direito", porque não possuem a função de
suprimir as lacunas existentes no sistema, mas sim a função de possibilitar
de forma coerente o conhecimento de uma determinada disciplina jurídica,
como, por exemplo, os princípios do Direito Processual Civil ("princípio da
ação e da demanda", "princípio do contraditório" e da "ampla defesa",
etc.), princípios do Direito Constitucional ("princípio da igualdade",
"princípio da moralidade", "princípio da justiça", etc.) e dentre outros.


b.1) Há, também, dentro desta mesma subclassificação os "princípios
jurídico-epistemológicos", os "princípios jurídico-epistemológicos" de
"segundo tipo" que têm o caráter lógico-estruturante – como será explicado
mais detalhadamente a seguir; os "princípios pragmático-problemáticos": que
referem-se às teorizações de Dworkin e Alexy e que não serão tratados neste
trabalho, como já mencionado. (TOMAZ DE OLIVEIRA, 2006, p. 49-53).








1.2 OS PRINCÍPIOS JURÍDICOS EPISTEMOLÓGICOS NA DOUTRINA PURA DO DIREITO DE
HANS KELSEN










Prosseguindo no tema, concorda-se com Rafael Tomaz de Oliveira
quando alerta que uma espécie de princípio não exclui a outra, pois não
estão em um processo evolutivo. E isto pode bem ser provado no que se
refere a Hans Kelsen. Na obra A Jurisdição Constitucional I, de 1928, Hans
Kelsen já falava sobre "princípios gerais do direito" e também sobre os
denominados "princípios epistemológicos". Deste modo, os "princípios
gerais do direito", para Kelsen (2007, p. 166-167), nada mais eram o que
ele chamou de "regras naturais de direito". Estas "regras naturais de
direito" seriam dedutíveis das normas constitucionais por abstração e, como
afirmou o Mestre de Viena, são "inofensíveis" justamente porque também são
frutos de deduções lógicas, apesar de não estarem positivados.


Kelsen também se referiu favoravelmente aos "princípios jurídico-
epistemológicos", tanto os de "primeiro" quanto os de "segundo" tipos,
quando se posicionou a favor de uma Constituição que se servisse de
"princípios norteadores das leis", constituídos como "catálogo de direitos
fundamentais". Para Kelsen, uma Constituição poderia sim conter princípios
jurídicos que representassem a lista de garantias fundamentais de um
Estado, servindo de "fundo orientador" das leis inferiores constantes na
hierarquia piramidal do ordenamento jurídico.


Contudo, apesar de ter reconhecido princípios jurídicos no texto
constitucional, Kelsen ressalvou, somente, que a presença de "princípios
abstratos" na Constituição (que estão positivados, mas com termos "vagos",
como o "princípio constitucional da justiça", por exemplo) poderia gerar
riscos para a "segurança jurídica" no momento do controle de
constitucionalidade pela jurisdição constitucional. Para Kelsen, conforme
explicam Dimoulis e Lunardi (2008, p. 186), a presença de "princípios de
termos vagos" na Constituição de um Estado seria perigosa para a "segurança
jurídica" porque valores como o da "justiça" são extremamente abstratos e
só permitem que sejam feita uma concretização de acordo com o entendimento
subjetivo do magistrado constitucional – conforme a famosa teoria da
interpretação de Kelsen, quando fala sobre a possibilidade do juiz
preencher o espaço semântico da norma (moldura) por um "ato de vontade"
livre.


Assim, o "perigo" residiria na possibilidade do "excesso de poder"
que a jurisdição constitucional incorreria no momento do controle de
constitucionalidade. Pois, ao julgar a validez de uma lei, o magistrado
constitucional poderia alegar, com base na sua opinião íntima sobre o que
seriam estes termos abstratos, que uma lei sob júdice não condiz com os
mesmos termos do princípio interpretativo-base, podendo tornar a jurisdição
constitucional um poderoso "legislador negativo", mas sem legitimidade
política para tanto.


Como se pode observar, ao contrário do que entende o autor brasileiro
Englemann (2001, p.147), que mencionou Kelsen como um exemplo de autor
juspositivista que repudiava os princípios jurídicos, pode-se afirmar que,
na realidade, o Mestre de Viena nunca fora contra a presença de princípios
jurídicos (positivados) no ordenamento jurídico, além de nunca ter
rejeitado o uso dos mesmos pelos magistrados (tanto o ordinário, quanto o
da jurisdição constitucional), tendo inclusive aceitado os "princípios
gerais do direito".


Quanto à ressalva de Kelsen em relação à presença de princípios
abstratos na Constituição, segundo Dimoulis e Lunardi (2008, p. 188-189)
esclarecem, não possuía tal ressalva caráter científico-dogmático, mas sim
político-jurídico (Rechtspolitik), já que, pela Ciência do Direito da
doutrina pura de Kelsen, o preenchimento do espaço semântico de uma norma é
inevitável quando presente. Ou seja, conforme A Jurisdição Constitucional
I, de 1928, a possibilidade de um magistrado constitucional preencher
"espaço semântico" (moldura) de um "princípio de termos vagos" via "ato de
vontade", criativo de "Direito novo", não contradiz com sua tese sobre
interpretação da norma presente na Teoria pura do direito, publicada na
década de 30.


E para que não restem dúvidas em relação ao papel dos princípios em
Hans Kelsen, é necessário que se esclareça no que consiste aqueles
"princípios jurídico-epistemológicos" de "segundo tipo". Rafael Tomaz de
Oliveira (2006, p. 55) explica que são chamados de "mais sofisticados"
porque fazem parte do projeto científico kelseniano. Estes "princípios
jurídico-epistemológicos" de "segundo tipo" se diferenciam dos de "primeiro
tipo" (como o "princípio da justiça", "moralidade", "instrumentalidade do
processo" etc.) porque não são estritamente jurídicos. Eles são "princípios
lógicos" do entendimento científico, à maneira da filosofia neokantiana,
figurando como regras lógicas, que estão a priori no entendimento, a serem
"adjudicadas" ao contato com o objeto de estudo. Eles são, portanto,
condições de possibilidade para que o cientista do Direito possa conhecer o
mundo do dever-ser jurídico. E como exemplo de "princípio jurídico-
epistemológico" de "segundo tipo", pode-se destacar o "princípio da
imputação", que funciona como elemento organizador do "mundo jurídico"
("mundo do dever-ser jurídico").


A rígida e "insuperável" distinção entre "ser" e "dever-ser" dos
neokantianos fundamentou a perspectiva kelseniana de ver a pessoa jurídica
que é o Estado com as lentes da normatividade, isto é, pelo Princípio
próprio do "mundo do dever-ser jurídico": o Princípio da imputação.
Diferentemente do que ocorre no "mundo do ser", em que o Princípio
epistemológico regente é o da Causalidade, é a Imputabilidade o Princípio
pelo qual uma Ciência não-natural opera. As "construções" científicas das
Ciências não-naturais não se dão pela explicação causal entre um fato-causa
e um acontecimento-consequência. A relação é outra porque se parte de um
Princípio distinto do Princípio da Causalidade. Kelsen desenvolveu uma
Teoria do Direito em que o objeto de estudo pertence ao "mundo do dever-
ser" através da descrição científica. (MARTINS, 2014, p. 125). O objeto de
estudo é a norma jurídica "positiva" e a Ciência que a descreve é a Ciência
do Direito, cuja descrição da norma se faz pela construção de uma
proposição que tem o "deve-ser" como verbo de cópula, imputando uma sanção
ao seu primeiro elemento propositivo. Por isto, Paulson chamou de
"Construtivismo Crítico" a Teoria do Direito de Kelsen. (PAULSON, 1998, p.
24).


Kelsen explicou que, diferentemente do "mundo da natureza" (mundo do
ser), onde o "princípio da causalidade" rege as ciências naturais, no
"mundo do dever-ser jurídico", o que rege o conhecimento da norma pelo
cientista jurídico é o "princípio" que pressupõe a liberdade da conduta
humana, a qual possibilita a imputabilidade de determinada sanção. Assim,
conforme um exemplo de Kelsen, um metal quando aquecido certamente se
dilatará, enquanto que uma conduta humana pode ou não ser criminosa e pode
ou não ser punida quando cometida. Não há uma "certeza causal" sobre a
conduta humana – por este motivo, as proposições emitidas pela Ciência do
Direito possuem como "cópula" o "verbo" "dever-ser" (Sollen), que reflete a
relação entre conduta e sanção mediada pela "liberdade".


Outro exemplo de "princípio jurídico-epistemológico" de "segundo
tipo" é o caso do "princípio da hierarquia das normas", que possibilita a
estrutura escalonada do ordenamento jurídico, onde uma norma superior
valida a inferior, tendo como início desta "dinâmica" a Norma Fundamental.
E quanto à Norma Fundamental, também se entende que está inserida na
classificação como "princípio jurídico-epistemológico" do "segundo tipo",
pois é condição lógico-transcendental – ou hipotético-transcendental, como
Kelsen posteriormente dirá – para que as normas jurídicas possam ser
conhecidas cientificamente, isto é, via um método "purificado" de
ideologias ou valores, já que, a Norma Fundamental é o ponto de partida do
processo de validação das normas inferiores, sendo de caráter lógico-
formal.








2. DA INSUFIÊNCIA DA CONCEPÇÃO DE PRINCÍPIO JURÍDICO DE KELSEN DIANTE DA
REVIRAVOLTA LINGUÍSTICO-PRAGMÁTICA NA FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA










Mas, apesar de se poder constatar a aceitação relativa de Kelsen
quanto à presença de princípios jurídicos, concorda-se com Rafael Tomaz de
Oliveira (2006, p. 56-57) quando diz que estas concepções de princípio em
Kelsen são "problemáticas" porque permanecem em um paradigma filosófico
ultrapassado. Devido ao "método" hermenêutico-fenomenológico, é possível
encontrar na doutrina juspositivista de Kelsen as sedimentações de uma
filosofia moderna de fundo matemático. Assim, o fundo "matemático"
encontrado em Kelsen quanto à sua posição sobre princípios já pode ser
visto desde a sua concepção de "princípios gerais do direito" até como
"princípios jurídico-epistemológicos" de "primeiro" e "segundo tipo". Esta
visão "matemática" do mundo, inserida nos "princípio gerais do direito" e
nos "princípios jurídico-epistemológicos", deixam raízes no solo da
metafísica moderna que podem ser encontradas tanto na filosofia de
Descartes quanto na de Kant.


Sobre Kant, Rafael Tomaz de Oliveira (2009, p. 96) afirma que,
apesar de se poder encontrar uma "libertação" da ingenuidade do pensamento
metafísico clássico, permanece na filosofia transcendental de Kant a
"matematicidade" [5], ou seja, um pensamento anti-histórico, com pretensão
de universalidade e atemporalidade devido ao seu caráter formal, o que
representa a ideia metafísica de uma vida contemplativa em detrimento de
uma vida prática.[6]


Assim, Rafael Tomaz de Oliveira (2009, p. 126) explica que Martin
Heidegger, no seu Ser e Tempo, pôde oferecer uma alternativa ao "pensamento
matemático" via fenomenologia hermenêutica. Sobre o tema, Ernildo Stein
ensina que todo o Ser e Tempo é desenvolvido na direção de um novo começo,
uma nova questão quanto ao método, aparecendo uma nova metáfora, a do
"círculo hermenêutico". E esta ideia de "círculo" introduz elementos novos:
em lugar da consciência, põe-se uma "hermenêutica do ser-aí"; em lugar da
"teoria pura" da tradição, se coloca a descoberta da ideia de compreensão
do ser-no-mundo, que já sempre está jogado no mundo e já sempre está
historicamente determinado. Assim, no lugar do ideal do "pensamento puro"
da teoria tradicional, Heidegger propõe uma práxis que antecipa toda
divisão entre teoria e práxis, fazendo do conhecimento um modo derivado da
constituição ontológica do Dasein (ser-aí). (STEIN, 2008, p. 32).


Segundo Heidegger (2009, p. 106), o ser-no-mundo é uma constituição
fundamental do Dasein, sobretudo no modo da cotidianidade, então, o próprio
Dasein já deve ter sido sempre experimentado ônticamente. Deste modo, o
Dasein não pode ser um "sujeito" velado, porque o Dasein já dispõe de uma
compreensão ontológica de sim mesmo. "Sujeito e objeto" não coincidem com o
fato do Dasein ser-no-mundo.


O Dasein já está inserido na lida cotidiana com os entes, antes de
qualquer formulação categorial lógico-formal. Com este "novo" pensamento,
percebe-se que Heidegger está muito próximo da analítica pragmática do
"segundo Wittgenstein", isto é, o Wittgenstein do Investigações
Filosóficas. Conforme explica Manfredo A. de Oliveira, o "segundo
Wittgenstein" tinha a pretensão de abandonar o projeto do Tractatus, tendo
acusando a si mesmo de ter feito uma obra ainda presa no paradigma
metafísico tradicional. No Tractatus, Wittgenstein (o "primeiro") defendia
uma ideia de isomorfismo entre as estruturas lógicas do mundo e as
estruturas lógicas de uma linguagem ideal, isenta dos equívocos que a
gramática usual comete[7]. Já o "Wittgenstein segundo" achava ilusório
pensar em uma "linguagem ideal" como pretendido no Tractatus, pois esta
"linguagem ideal" seria artificial, fundada segundo um modelo de cálculo
lógico (matemático), não considerando que toda práxis linguística tem um
sentido em si mesmo e é perfeita em si mesma. (OLIVEIRA, 2006, p. 131-133).


Assim, para o "segundo Wittgenstein", é justamente essa práxis
linguística cotidiana, inserida em um determinado "jogo de linguagem", que
funcionaria como fonte de significação das expressões, palavras e
proposições. Logo, os problemas de semântica só podem ser resolvidos na
medida em que atingem a pragmática. Isto é, conforme o Parágrafo n. 43: "a
significação de uma palavra é seu uso na linguagem". (WITTGENSTEIN, 1984,
p. 28).


A semântica do "segundo Wittgenstein" se opõe à concepção kelseniana
em achar que termos vagos como o da "justiça" não possuem um conceito
determinado, uma vez que, seu significado pode ser encontrado no uso
cotidiano da palavra "justiça", segundo as regras de um determinado "jogo
de linguagem" no qual ela está inserida. Logo, o significado de uma palavra
está longe de ser "subjetivo" (fruto de uma interpretação solipsista)
dentro de uma perspectiva de prática linguística. A "palavra" e seu
significado, a partir da "reviravolta linguístico-pragmático", não podem
ser considerados mais como se estivessem contidos em uma "caixa subjetiva".
A palavra e seu significado estão no uso público das mesmas.


Streck (2008, p. 289) mostra, então, que o "déficit de realidade"
produzido pelas posturas jusfilosóficas aprisionadas neste esquema sujeito-
objeto, onde normativismo jurídico kelseniano se encontra, deve ser
preenchido por posturas interpretativas hermenêutico-ontológicas na linha
da viragem filosófica ocorrida a partir de Wittgenstein (o "segundo") e
Heidegger, que colocaram a compreensão filosófica no "modo-de-ser" e na
"faticidade" (mundo prático) e não mais nas formalidades lógicas
(contemplativas), para que, deste modo, o Direito realmente possa ser uma
"ciência prática" a fim de resolver os problemas sociais, garantindo o
Estado Democrático de Direito que deve assegurar os direitos fundamentais e
a própria democracia que lhe constitui.


.





CONSIDERAÇÕES FINAIS








Portanto, se está de acordo com Streck (2008, p. 295), pois se
entende que não pode a doutrina normativista de Kelsen ser conciliada com o
modelo pós-positivista de caráter neoconstitucionalista, devendo ser
superada, já que, o juspositivismo é incapaz de impedir o decisionismo
judicial. Assim, um novo modelo teórico deve permanecer não mais fundado no
esquema sujeito-objeto, devendo ser convergente com o modelo político e
ético do Estado Democrático de Direito defensor da dignidade da pessoa
humana.


Contudo, é necessário destacar que a crítica teórica ao
juspositivismo vereda por um terreno delicado, pois as razões do
positivismo não são desprezíveis muito menos ingênuas e, acima de tudo,
afirmam-se sobre a fascinante utopia de um saber total. (WEYL, 2008 p. 86),
Deste modo, entende-se que, com base em Gadamer, a imposição da dogmática
jurídica não deve ser "destruída", "como se nada servisse". (WEYL; LOUREIRO
2011, p. 5684). Pois é necessário que se evolua a maneira de
interpretação/aplicação do Direito, mas sem desconsiderar a dogmática
jurídica, fazendo com que o Direito possa ser aplicado conforme as posições
tradicionais e históricas do jurista/aplicador, de acordo com as nuances do
caso concreto ("mundo prático"), que o envolve na compreensão da "verdade"
e do "justo" pela sua devida complexidade e não mais pela maneira arraigada
à uma concepção "epistemológica" de uma "teoria pura" do Direito, como
Kelsen propôs.


É nessa perspectiva, por fim, que se conclui o presente artigo,
afirmando que a doutrina de Kelsen, apesar de não ser diretamente contrária
ao uso de princípios jurídicos na aplicação/interpretação do Direito, esta
não pode conviver com os novos paradigmas filosóficos e jurídicos, os quais
clamam para adentrarem no debate jurídico atual com a finalidade de
contribuir para a fundamentação da construção de um efetivo Estado
Democrático de Direito no Brasil, que tenha como objetivo primordial a
garantia dos direitos fundamentais, resguardando-os de decisionismos
judiciais injustificáveis.










REFERÊNCIAS










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e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006








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In: ______; DUARTE, Écio Oto. (coord.). Teoria do direito
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humana: estudo sobre os fundamentos filosóficos e jurídicos do processo de
autonomização epistemológica da Ciência do Direito de Hans Kelsen.
(Dissertação) Mestrado em Direito, Universidade federal do Pará – UFPA,
Belém.







MOREIRA, Eduardo Ribeiro. O momento do positivismo. In: DIMOULIS, Dimitri;
DUARTE, Écio Oto. (coord.). Teoria do direito neoconstitucional: Superação
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OLIVEIRA, Manfredo A. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia
contemporânea. São Paulo: Loyola, 2006.








TOMAZ DE OLIVEIRA, Rafael. Decisão judicial e o conceito de princípio: a
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STRECK, Lênio. A resposta hermenêutica à discricionariedade positivista em
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WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus-Logico-Philosophicus. 3.ed. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2010.








______. Investigações filosóficas. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
(Os Pensadores).







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[1] Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará –
UFPA. Professor de História do Direito do Centro Universitário do Pará
– CESUPA. Membro do Grupo de Pesquisa (CNPq) Direitos Humanos, Ética e
Hermenêutica.
[2] Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro – PUC-RJ. Professor Adjunto da Universidade Federal do Pará –
UFPA. Coordenador do Grupo de Pesquisa (CNPq) Direitos Humanos, Ética e
Hermenêutica.
[3] Segundo ensina Moreira, em relação ao positivismo jurídico
normativista de Kelsen, devido ao seu caráter excludente - pois excluía da
Ciência do Direito elementos como a Moral -, não foi difícil para que seus
críticos "culpassem" estas ideias pelo surgimento do nazismo, como, por
exemplo, a acusação mais famosa feita pelo jurista Radbruch, em seu 5
minutos de filosofia do direito, quando atribuiu parcela de culpa ao
positivismo jurídico de Kelsen pelo sucesso do totalitarismo na Alemanha,
apesar de que, o Mestre de Viena, contudo, fora um grande defensor de uma
jurisdição constitucional independente, que faria o controle das garantias
constitucionais, ao contrário do que defendia Carl Schmitt, que queria
atribuir ao chefe do Poder Executivo o papel de "Guardião da
Constituição", já que, Schmitt, na época, apoiava o regime nacional
socialista alemão. (MOREIRA, 2008, p. 235).
[4] Sua tese de mestrado fora defendida no ano de 2007, na cidade de São
Leopoldo-RS, tendo como título: O conceito de princípio entre a otimização
e a resposta correta: aproximações sobre o problema da fundamentação e da
discricionariedade das decisões judiciais a partir da fenomenologia
hermenêutica.
[5] Sobre esta terminologia "matemático", Heidegger explica que o traço
fundamental do saber moderno é a matemática em sentido rigoroso, assim,
como base no "matemático", a ciência moderna tornou-se saber experimental
devido à necessidade de se impulsionar em direção aos fatos para que se
pudesse ultrapassar o raciocínio matemático antecipado de todos os fatos.
Com isso, Heidegger revela que tanto a moderna ciência da natureza como a
matemática e a metafísica modernas saíram da mesma raiz "matemática".
(HEIDEGGER, 1992, p. 81;101).
[6] Casanova explica que o primado da vida contemplativa em relação à vida
prática está relacionado com o pensamento platônico-aristotélico
(metafísico), em achar que este modo de ser do Homem, vida contemplativa,
estaria mais próximo da "substância primeira" que é divina (Téion), porque
a sabedoria teórica, que é um modo de viver do homem, não se altera com a
corrupção e geração que ocorre no tempo. Logo, a vida teórica está mais
ligada ao conceito de "ser" grego, como "permanência no tempo". (CASANOVA,
2009, p. 70).

[7] Wittgenstein, em seu Tractatus-logico-philosophicus, de 1921, na
proposição 3.323, afirmou que uma mesma palavra pode designar, no seu uso
correte da linguagem, de vários modos diferentes nas proposições, assim
como duas palavras que designam de modos diferente podem ser usadas como se
tivessem o mesmo sentido em uma proposição. Logo, o filósofo, em sua
proposição 3.325, defendia que, para que se evite estes "erros" na
linguagem, se deve usar uma "linguagem simbólica" que os excluem via uma
"gramática lógica". (WITTGENSTEIN, 2010, p. 157-159).
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