OS PROCEDIMENTOS FOTOGRÁFICOS E O SURREALISMO. A FOTOMONTAGEM. PORTUGAL ANOS 40

September 27, 2017 | Autor: A. Barrocas | Categoria: Surrealism, Portugal, Fotografia, Fotomontagem
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OS PROCEDIMENTOS FOTOGRÁFICOS E O SURREALISMO. A FOTOMONTAGEM. PORTUGAL ANOS 40

ANTÓNIO BARROCAS

Os procedimentos fotográficos e as vanguardas da 1ª metade do século XX Portugal, anos 40. As estéticas e a fotografia Fotomontagens Surrealistas A Fotomontagem Surrealista. Os anos 40

Os procedimentos fotográficos e as vanguardas da 1ª metade do século XX A análise de algumas obras surrealistas, utilizando a fotomontagem, e realizadas em Portugal nos anos 40, levou-nos a um percurso pelas questões culturais e artísticas do princípio do século XX. Esta análise envolveu as alterações artísticas nas artes figurativas, a questão da fotografia (particularmente a da fotomontagem) e as questões culturais - num sentido alargado - dos anos 40 em Portugal. O contexto cultural do início do século XX desencadeou a desestruturação de discursos artísticos tradicionais, reformulando os conceitos de Espaço e Tempo euclidianos e renascentistas, assim como propondo e explorando um novo quadro de referência do mundo a nível da representação visual. As correntes de vanguarda que surgem: o futurismo, o cubismo, o expressionismo, o dadaísmo, o abstraccionismo, o suprematismo, o purismo, o construtivismo, o surrealismo, o produtivismo e o neo-plasticismo, procurando soluções radicais, utilizarão os procedimentos fotográficos. Estes procedimentos ofereciam um domínio de experimentação ‘quase’ científico que permitiu a produção de novas imagens utilizando o rayograma, a solarização, a sobrexposição e a fotomontagem. O discurso fotográfico acompanhará as alterações artísticas, deixando – para determinados grupos - uma representação de cariz naturalista e pictorialista ( no que tinha de colagem às práticas da pintura ) e trilhará caminhos diversos: por um lado, aqueles que investem na especificidade do próprio meio fotográfico e que podemos designar de modernismo fotográfico e, por outro, aqueles que investem numa vertente poética da imagem ( como refere Sérgio Mah ) e, que através das experiências de vanguarda, utilizarão os procedimentos fotográficos no contexto do dadaísmo, do surrealismo, do construtivismo e do futurismo. Será esta segunda corrente que mais nos interessa aqui: a dos procedimentos fotográficos utilizados no contexto dos movimentos de vanguarda do início do século XX. Os procedimentos fotográficos serão explorados num percurso que acompanha as restantes artes figurativas. As

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pesquisas na reformulação do tempo e de espaço - enquanto elementos de uma representação visual -

que se podem observar no cubismo, a simultaneidade de pontos de vista, o

abstraccionismo, estão também presentes na pesquisa das schadografias, do vorticismo e nas experiências futuristas. Não consideramos aqui, porque realizadas num contexto histórico diverso daquele que nos interessa, as experiências de manipulação da imagem fotográfica ocorridas no século XIX ( por exemplo, as realizadas no contexto do pictorialismo). Analisamos sim, os procedimentos de fotomontagem que surgem nos primeiros anos do século XX. A fotomontagem é considerada como “(...) assemblage et combinaison d’élements expressifs extraits de photographies(...)” (AAVV,1989: 108). Utilizam-se fragmentos fotográficos de jornais ou revistas que eram separados do seu contexto original e remontados segundo uma lógica nova, ignorando as unidades de espaço, texturas, estilos ou origens (Frizot: 431). Esta técnica é, de alguma forma, a continuação das colagens cubistas e dos textos fragmentados dos futuristas, sendo a fotografia apenas mais uma das técnicas e materiais que podem participar na construção de uma imagem, unindo-se ao desenho a elementos tipográficos ou mesmo a objectos. É de salientar que a fotomontagem se move tanto no terreno puramente pictural, como no da mensagem verbal, constituindo-se como slogan, como grito ou poesia. Frizot refere mesmo a sua vocação de comunicar por processos ‘multimediáticos’ (AAVV, 1989 :108). Consideraremos, neste texto, a fotomontagem enquanto clara ‘montagem’ de elementos distintos, deixando de parte as sobreposições, ou exposições múltiplas, realizadas no mesmo negativo que poderiam também ser analisadas nessa perspectiva. Como processo inicial a colagem nas artes plásticas surge por volta de 1911, como refere Aaron Scharf : “...às deliberadas ambiguidades visuais do cubismo juntaram-se a partir de 1909 um novo e importante elemento: fragmentos de objectos reais que se incorporavam nos quadros ou se usavam para criar obras escultóricas. Picasso utiliza pela primeira vez a técnica da colagem numa natureza morta executada em 1911.” (Scharf: 292). Em 1915, Carlo Carrá foi o primeiro futurista que introduziu um fragmento de reprodução fotográfica através de uma imagem de cabeça que fazia parte de uma pintura representando uma

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figura de pé. Da colagem de objectos “reais” sobre a tela passar-se-à à montagem de fragmentos fotográficos num contexto artístico específico. A fotomontagem surge assim, como um meio muito apropriado para as desconcertantes imagens do dadaísmo, e para a aplicação da ideia dadaísta da posição casual e da justaposição inesperada. Estas ‘images trouvées’, fragmentos de realidade em forma de fotografia e reproduções fotográficas, ofereciam aos artistas dadaístas uma arma muito eficaz para chocar o público. A fotomontagem e a possibilidade de reproduzir imagens irracionais de maneira quase simultânea, eram ‘automatismo pictórico’, a contrapartida visual da ‘escrita automática’ e da literatura subconsciente que tanto apreciavam os dadaístas e posteriormente os surrealistas (Scharf: 296). Era também o perfeito complemento da ‘poesia do acaso’ defendida por Hans Arp, Tristan Tzara e Kurt Schwitters. Cronologicamente a fotomontagem apareceu pela primeira vez nas obras do grupo dadaísta berlinense por volta de 1916 - 1917. Raoul Hausmann e George Grosz atribuem a sua invenção a John Heartfield. Para Frizot, a fotomontagem começa a ser praticada de uma forma mais alargada a partir de 1920. Assume então uma atitude de ataque ás formas burguesas de representação e procura criar um mundo diferente, uma visão nova, como o referia Raoul Hausmann (aqui citado por Frizot): “... a new unity wich can create out of the chaos of war and révolution the reflection of a vision that is optically and conceptually new.” (Frizot: 431). Esta atitude que assumia, por vezes, características de anarquia visual, permitia o tentar dizer coisas que de outro modo seriam censuradas. Os artistas que praticam a fotomontagem assumir-se-ão como ‘engenheiros’ ou ‘operários’ associando-se a uma sociedade industrializada, centrados na máquina que é encarada como um elemento positivo (Hausmann e Gustav Klutsis). Hannah Höch declarou que o principal objectivo da fotomontagem consistia em integrar objectos do mundo das máquinas e da indústria no mundo da arte. Foi este elemento, o seu carácter anti-artístico, assim como o seu evidente valor como instrumento polémico, o que reforçou a relação entre o dadaísmo e o construtivismo russo (Scharf: 298-299). Nos anos de 1929 e 1931, três acontecimentos marcam a importância da fotomontagem: a publicação do livro Fotoauge / Oeil et Photo / Fotomontage ( 1929), e as exposições Film und

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Foto (Stuggard, 1929) e Fotomontage (Berlin, 1931). No catálogo desta última aparecem as referências à ‘photomontage’ ( Schiwters, Heartfield, Herbert Bayer, Hannah Hoch), a ‘photoplastique’ (Moholy-Nagy) e as ‘phototypographies’ ( Schuiteme, Zwart, Tschichold). Os procedimentos da fotomontagem seguirão percursos diferenciados: um mais aplicado nas experiências do construtivismo soviético (El Lissitzky, Rodchenko, Stepanova) sendo utilizado nas artes gráficas, na publicidade; com John Heartfield na luta anti-nazi; no contexto da pesquisa plástica com Moholy-Nagy e com o surrealismo ( Max Ernest, André Breton e Albert Valentin). De entre estas perspectivas debruçamo-nos aqui,

particularmente, sobre a surrealista. O

interesse dos procedimentos fotográficos para os surrealistas é evidenciado por Dali quando refere que a natureza mecânica da câmara é libertadora, o que o leva a firmar ‘photography sets imagination free’ (AAVV, 2000: 275) e, por André Breton, que refere: “The invention of photography has dealt a mortal blow to the old modes of expression, in painting as well as in poetry, where automatic writings, which appeared at the end of the nineteenth century, is a true photography of thought.” (AAVV, 2000: 275). Rosalind Krauss, no seu texto de análise da fotografia surrealista, considera que a fotografia teve um papel central no surrealismo: “(...) the recolocation of photography from its eccentric position relative to surrealism to one that is absolutely central – definitive, one might say.” (Krauss:101). Referindo os procedimentos fotográficos utilizados pelos fotógrafos surrealistas distingue, claramente um, o da fotomontagem, que segundo ela raramente vai ser utilizado pelos fotógrafos surrealistas, sendo no entanto, atractivo para os poetas surrealistas que realizarão fotomontagens. A primeira situação confirma-se no caso português em que Fernando Lemos não utilizou a fotomontagem ( tal como nós a entendemos neste trabalho) e a segunda situação nos exemplos que estamos a analisar em que a fotomontagem é utilizado por artistas plásticos. O caso de Fernando de Azevedo é menos claro, pois podemos considerar a utilização da tinta sobre a fotografia como fotomontagem, como o referia John Heartfield “A photograph can, by the addition of an unimportant spot of color, become a photomontage, a work of a special kind”.

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Para Krauss a fotomontagem é entendida como: “(...) a means of infiltrating the mere picture of reality with its meaning. This was achieved through juxtaposition: of image with image, or image with drawing, or image with text.” (Krauss: 103). Defende também uma distinção essencial entre a fotografia surrealista – enquanto apresentação daquilo que a própria realidade configurou, codificou ou escreveu – e a fotomontagem – enquanto descodificação da realidade ou sua interpretação (Krauss:109). Esta opção anti-realista da fotografia surrealista é também realçada por Sérgio Mah quando fala de uma ‘subvalorização da representação realista’ e de um menosprezo pelo valor indexical e icónico da fotografia (Mah :19).

Portugal, anos 40. As estéticas e a fotografia. No Portugal dos anos 40, período em que se situam as imagens que consideramos, verifica-se uma convivência entre por um lado, uma arte oficial que tinha tido o seu momento paradigmático de formulação e conceptualização na Exposição do Mundo Português de 1940 em Lisboa, que mobilizou muitos artistas ligados às artes figurativas, e as três correntes estéticas de “oposição” o Neo-Realismo, o Surrealismo e o Abstraccionismo. A produção de imagens utilizando os procedimentos fotográficos, era nestes tempos do Estado Novo, institucionalmente marcada por uma prática salonista. Em termos estéticos caracterizavase por uma opção clara de referência à realidade naquilo que se designa como um paradigma positivista baseada na apologia da referência pela referência. As experiências ou as novidades dificilmente saíam de um grupo restrito de artistas: “A fotografia e as artes plásticas desempenharam, assim, um papel excepcional na implantação do Regime e na estética dos anos 40, e mantinham-se alheias às ‘provocações’ do neo-realismo ou do surrealismo.” (Sena,:254). Neste contexto estético oficial, serão utilizadas fotomontagens, conforme referência de António Sena, na decoração do pavilhão português da Exposição Internacional de Paris (1937). Essas fotomontagens terão sido realizadas por Domingos Alvão e Mário Novais.

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No caso da I EXPOSIÇÃO GERAL DE ARTES PLÁSTICAS, em 1946, como refere António Sena: “(...) a fotografia tenha uma passagem muito discreta pelo conjunto futuro destas importantes exposições, é de salientar a participação de Mário Novais com 6 fotografias logo na primeira. As pesquisas fotográficas pareciam excluir-se de qualquer hipótese de exposição.(...)” (Sena, 1998:261). De acordo com este autor, as pesquisas fotográficas não são consideradas nos circuitos habituais da fotografia – os salões, as exposições, os concursos – indo surgir, integradas nas pesquisas dos artistas surrealistas portugueses, que arrancam como movimento em 1947. Alguns artistas plásticos tinham, em princípio, conhecimento de fotomontagens realizadas pelos autores de que falamos no ponto inicial, já que em Portugal circulavam revistas e livros de temática surrealista e, alguns deles, deslocaram-se a França contactando directamente com representantes do movimento surrealista francês. Os artistas portugueses conheciam sobretudo exemplos de trabalhos surrealistas franceses, ilustrações de livros surrealistas e revistas, como por exemplo: La Révolution Surréaliste, Documents, Minotaure, L’Amour Fou (Ávila, Cuadrado:141). A fotografia, no contexto do surrealismo português é apresentada, no catálogo da Exposição “Surrealismo em Portugal 1934-1952”, como ‘fragmentação’ explorada principalmente pelos trabalhos de Fernando Lemos, manipulando o negativo e o positivo, o que introduz uma ‘fragmentação da realidade’. A fotografia é associada a um automatismo, a um fazer mecânico que a aproxima de um processo de escrita automática ou de automatismo psíquico: “ A representação visual é alvo, dentro do movimento surrealista, de exacerbadas disputas, denunciada por aqueles que acreditam no automatismo psíquico como única maneira de garantir a imediatez da percepção e principal veículo para fazer presente a interioridade do artista sem a mediação de signos. Nesta luta, a fotografia foi o lugar de consenso, aceite por todos mercê da natureza de índice que a define, e, como tal, foi um dos procedimentos privilegiados no seio do movimento (...)” (Ávila e Cuadrado, 2001:140). É neste momento inicial do movimento surrealista que vão surgir as fotomontagens que seleccionámos.

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Fotomontagens Surrealistas Procedemos a uma leitura breve, salientando os aspectos que, na nossa opinião, estas obras manifestam de um modo mais pertinente e que interessam à sua contextualização numa determinada forma discursiva ( a dos procedimentos fotográficos ) num determinado contexto cultural. A obra de Mário Cesariny, realizada em 1947, assume aspectos insólitos. É, na nossa opinião, construída numa predominância do discurso político, mais não fosse porque trabalha claramente com referências / ícones políticos na sua construção. A cabeça do General de Gaulle, ao colo ( como um sexo emergente ? ) de uma figura fardada com uma referência nazi (a suástica no braço) e com elementos femininos ( os sapatos, as mãos ), tendo na zona da cabeça uma bandeira branca ( a rendição ). Este grupo é observado por alguém que de um plano externo (um observador celeste ?) ostenta também a suástica. Ficamos com uma interrogação sobre o sentido, mas com uma certeza, a da incomodidade da imagem para vencidos e vencedores e para uma leitura da figura de De Gaulle no pós-guerra. Fernando de Azevedo, com uma imagem datada de 1948, constrói uma combinação de dois planos, colocando um corpo de mulher, deitado, parcialmente coberto por lençóis, na zona de um altar ( por natureza reservada ao lugar da hóstia, ou da custódia ). Separado desse corpo pelo altar encontra-se a figura de um sacerdote, a realizar o culto, sendo como que afastado por uma mão. Mais uma vez uma obra provocatória. No sentido político, a simples justaposição numa imagem do corpo despido (feminino), do altar e do sacerdote é reveladora. A sacralização da mulher ( pensamento querido aos surrealistas ) seria também uma leitura possível. De Mário Henrique Leiria, temos três imagens. A primeira de 1948, tem como título “A cidade paranóica”. Alguém sentado, com um blusão de aviador, num misto de atento / desatento ( o ar adormecido / o olho ), contrapõe-se a um homem fardado ( polícia / militar ) que, de olhos esbugalhados, equilibra um objecto na ponta do dedo. Três homens, numa escala reduzida, atravessam a imagem numa diagonal (os cidadãos / polícias à paisana ?). Uma imagem que nos remete para a desmesurada observação / vigilância policial.

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Uma outra imagem, de 1949, sem título, remete-nos para a memória da guerra. Dois personagens elevam-se, numa referência apocalíptica, nas colunas de fumo de uma cidade em chamas. Um de bigodes e olhos invertidos, com algo de monstruoso e boina militar, o outro de chapéu feminino com a cara desenhada por um mostrador de relógio, os olhos nos orifícios da corda. Uma terceira imagem tem como título “A origem dos sonhos esquecidos” e não tem data. Nesta imagem temos dois planos, o do monumento greco-romano e o corpo da mulher. O corpo da mulher no mesmo plano que a arte greco-romana deixando uma situação ambígua sobre a origem dos sonhos. De Jorge Vieira, temos sete imagens de 1947, sem título. As suas imagens são construídas tendo como base a oposição de dois planos. O de fundo ( multidão, natureza, palco ) sobre o qual acontece qualquer coisa. Temos assim sete situações : 1. num fundo de neve / montanha um insecto gigante cruza-se com uma figura feminina que esbraceja na ambiguidade do susto / alegria; 2. num fundo de neve / pedra / gelo um bispo renascentista cruza-se com um guru de referências africanas ; 3. num fundo negro um microfone de rádio cruza-se com duas figuras que seguram um cartaz. As figuras remetem para a aviação / pilotos pois possuem assentos ejectáveis ; 4. numa vista aérea duas figuras cruzam-se no rasto de um avião. Uma delas, não humana, ter-se ejectado do avião; 5. um coração mecânico sobrevoa uma multidão concentrada numa praça; 6. uma mão, como que saída de um écran, paira sobre um casal ( lembrando-nos o “Avejão Lírico” de António Pedro); 7. um feto apoiado num guarda-chuva sobrepõe-se a duas mulheres ( mãe e filha ?) de braços abertos enquanto no fundo se projecta a sombra / espectro de um bébé facilmente assimilável a uma aranha na sua teia. Um conjunto de imagens, que pelas suas opções iconográficas permitem questionar visualmente valores relacionados com a Família, a Religião, a Guerra e o Estado.

A fotomontagem surrealista. Os anos 40. Considerando uma história da fotografia portuguesa, particularmente na de uma fotografia surrealista, podemos destacar os seguintes aspetos.

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Em primeiro lugar, a aceitação de uma técnica, a dos procedimentos fotográficos e a da fotomontagem, pelos artistas portugueses nos anos 40, num momento em que a própria pesquisa artística se cruza com um confronto / esperança na alteração da própria sociedade – estava-se no final da guerra com o que isso representou de esperanças ( logo goradas ) no caso português – tentando claramente interferir nesse percurso. Embora se distanciassem dos neo-realistas, os surrealistas tinham uma posição interventiva forte e consciente ( ver, por exemplo, a obra A Aventura Surrealista). Neste contexto, destacamos duas referências retiradas do interessante livro de Adelaide Ginga Tchen, são citações de posições de alguns dos surrealistas portugueses ( Mário Henrique Leiria e outros) num manifesto de 1950: “Quando num país a igreja católica transforma os homens em seres sem sexo e a ditadura do Papa obriga os poetas a serem padres ou castrados, o nosso furor sexual obriga-nos ao grande acto mágico de subversão de valores e à afirmação total do nosso direito de foder livremente, de sermos os verdadeiros poetas do amor, da destruição, da surrealidade.”, ou então, “Para a pátria, a igreja e o estado a nossa última palavra será sempre : MERDA.” ( Tchen: 126-127). É neste momento, que estas imagens adquirem esse aspecto crítico, irónico e confrontador nalguns aspectos, com a cultura visual vigente e mais particularmente com os valores oficiais do Estado Novo. Lembremo-nos da importância, neste período, das questões do Ver e Representar, áreas que caíam directamente na alçada da Censura e da punição legal. As fotomontagens assumiam logo à partida um aspecto ‘subversivo’ ao ‘cortarem’ a realidade, ao destruírem um modo de ver naturalmente imposto, e em seguida, pela colocação no mesmo plano (o da imagem ) de figuras, por natureza moral, ética e política, inconciliáveis. Este confronto radica na especificidade do trabalho artístico e fotográfico, pois trabalhava com elementos reconhecíveis da realidade (o carácter indexal) descontextualizando-os. Esta tensão resulta, na nossa opinião, daquilo a que Rosalind Krauss chama os ‘efeitos metafóricos’: “(...) we see with a shock of recognition the simultaneous effect of displacement and condensation, the very operations of symbol formation, hard at work on the flesh of the real (…) the shock emanates from the refusal of the transcriptive realism expected of photography.” (AAVV, 2000: 276).

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Esta vertente, irá desaparecer gradualmente, para nos anos 50 termos uma fotografia surrealista mais suave, no fazer e no dizer, a de Fernando Lemos e Fernando de Azevedo que explorando a pesquisa plástica na fotografia ( a exposição múltipla, a inversão do positivo / negativo ), ou a “ocultação” no caso de Fernando de Azevedo, se vão centrar em temas mais pessoais e intimistas. Desta leitura breve ficam questões a seguir: - caracterizar a fotomontagem realizada no contexto oficial (os cartazes, os murais ); - caracterizar a fotomontagem enquanto ilustração ( as capas de livros ); - estabelecer uma relação com a fotografia realista (neo-realista) de Victor Palla / Costa Martins, de Carlos Calvet ou de António Sena; - aprofundar o conhecimento das condições de realização destas obras. Os procedimentos fotográficos revelavam-se elementos pertinentes no entrelaçar de inquietações e pesquisas sociais, culturais e estéticas.

As imagens que utilizámos foram retiradas do catálogo Surrealismo em Portugal 1934-1952 : 1. Mário Cesariny, General de Gaulle, 1946, p.176. 2. Fernando Azevedo, Sem título, 1948, p.175. 3. Mário Henrique Leiria, A cidade paranóica, 1948, p.177. 4. Mário Henrique Leiria, Sem título, 1949, p.178. 5. Mário Henrique Leiria, Origem dos sonhos esquecidos, 1949, p.178. 6. Jorge Vieira, Sem título, 1947, p.179. 7. Jorge Vieira, Sem título, 1947, p.180. 8. Jorge Vieira, Sem título, 1947, p.181. 9. Jorge Vieira, Sem título, 1947, p.182. 10. Jorge Vieira, Sem título, 1947, p.182. 11. Jorge Veira, Sem título, 1947, p.183. 12. Jorge Vieira, Sem título, 1947, p.185.

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