Os pronomes \"você\" e \"dumneata\" no discurso parlamentar português e romeno

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Os pronomes você e dumneata no discurso parlamentar português e romeno Veronica Manole* Camões I. P. (na Univ. Babeș-Bolyai) / Univ. Paris 8 [email protected] Introdução O presente estudo constitui uma análise dos usos dos pronomes você e dumneata no discurso parlamentar português e romeno. Nas nossas investigações sobre este tipo de discurso político, notámos que para além de iniciativas legislativas e outras questões do Estado, a cortesia e as formas de tratamento (doravante FT) são também objetos de debate e de negociações (Manole 2011). Passando em revista estudos anteriores sobre o discurso político, observámos que o funcionamento da (des)cortesia em debates parlamentares foi analisado por linguistas, que se debruçaram sobre os seguintes assuntos: o uso estratégico da cortesia negativa e positiva (Martín Rojo, 2000), os insultos como formas de confronto (Ilie 2001), a dinâmica das FT em sincronia (Ilie 2005; Săftoiu 2013) ou em diacronia (IonescuRuxăndoiu, 2011), as manifestações agressivas da cortesia (Marques, 2008a), a arrogância e o ethos (Marques, 2008b), a agressividade verbal (Roibu & Constantinescu, 2010), a descortesia in absentia (Ionescu-Ruxăndoiu, 2010), o humor como estratégia de (des)cortesia (Constantinescu, 2011), entre outros. Como se pode notar, a maneira (des)cortês de usar a linguagem para fazer política nos parlamentos tem múltiplas facetas e merece estudos amplos. Por esta razão, tomando em consideração as limitações de espaço deste trabalho, decidimos concentrar a nossa análise na dinâmica das FT, restringindo ainda mais o nosso foco a duas formas pronominais: você em português europeu e dumneata em romeno. Assim, o nosso trabalho será dividido em quatro secções: apresentação das FT pronominais em português e romeno, com maior destaque dos pronomes você e dumneata, apresentação do corpus, análise de exemplos representativos e conclusões. 1. O tratamento pronominal em português europeu e em romeno A variedade europeia do português1 e o romeno mantêm sistemas ternários de FT pronominais alocutivas2, tu, você, o senhor, respetivamente tu, dumneata, dumneavoastră. Docente de língua portuguesa ao abrigo do protocolo de cooperação entre o Camões I. P. e a Universidade Babeș-Bolyai (Cluj-Napoca, Roménia); doutoranda em Estudos Portugueses, Brasileiros e da África lusófona na Universidade Paris 8, preparando uma tese sobre o discurso parlamentar brasileiro, português e romeno. *

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Acrescentando também as numerosas locuções pronominais3, que são privilegiadas na comunicação cerimoniosa, configuramos uma gradação quádrupla do tratamento pronominal4 (Tabela 1), que serve para codificar na língua relações interpessoais variadas. Através das FT pronominais alocutivas, os falantes portugueses e romenos podem expressar uma gama abrangente de relações interlocutivas5, definidas segundo os eixos de

FAMILIARIDADE

(entre

os membros de uma família, amigos, etc.), de DISTANCIAMENTO (desconhecidos que falam na rua, relação com clientes, etc.), de

HIERARQUIA SOCIAL

instituições como a igreja, justiça, etc.), de

(segundo idade, sexo, profissão,

IGUALDADE SOCIAL

(entre pares da mesma

profissão, pessoas com a mesma idade, etc.).

TRATAMENTO INFORMAL

TRATAMENTO (IN)FORMAL / POPULAR

TRATAMENTO FORMAL

TRATAMENTO CERIMONIOSO

SG

tu

você

o senhor

sua excelência vossa excelência

PL

vós6

vocês

os senhores

vossas excelências

SG

tu

dumneata

dumneavoastră

domnia voastră

PL

voi

-

dumneavoastră

domniile voastre

PTG

ROM

Tabela 1. Pronomes e locuções pronominais alocutivos. Os dois pronomes que farão o objeto da nossa análise, você e dumneata, resultam de criações internas através de processos de gramaticalização (vossa mercê > você; domnia ta > dumneata) e expressam um grau de cortesia que poderíamos considerar intermédio. Na norma culta brasileira atual a oposição formal / informal realiza-se com as formas você e o senhor, o pronome tu tendo usos regionais. 2 Para delimitar a categoria das formas pronominais alocutivas, utilizámos classificações que descrevem o tratamento do português europeu e adaptamo-las ao sistema da língua romena; Cintra (1986) distingue entre o tratamento pronominal, nominal e verbal e Carreira (1997) entre o tratamento elocutivo (designação de si mesmo), alocutivo (designação do interlocutor) e delocutivo (designação de terceiros), que combina com as classificações de Lindley Cintra. Veja-se também Carreira (2005) sobre as FT e a cortesia linguística em Portugal. 3 Classe variada de termos, que se empregam em função do contexto e dos costumes enraizados na sociedade. Referimo-nos às FT usadas na comunicação escrita ou oral com os membros das famílias reais, da classe clerical, os altos funcionários do Estado ou das instituições jurídicas e políticas, etc. 4 Adaptámos a classificação quádrupla dos pronomes de tratamento alocutivos da língua romena feita por Vasilescu (2011) para descrever o inventário de ambas as línguas. 5 Em Carreira (1997, 28-87) são analisadas as FT do português europeu segundo estes critérios. 6 Em Portugal o pronome vós quase desapareceu da variante padrão atual, sendo usado em certas regiões do Norte do país, ou na linguagem religiosa. Assim, em Portugal o plural de tu é, em geral, vocês (Carreira 2007, 15-19). 1

2

Presentemente não se empregam nas relações que implicam intimidade e não chegam a expressar o distanciamento criado entre falantes pelo uso de pronomes ou locuções pronominais considerados corteses, como o senhor, vossa excelência, dumneavoastră, domnia voastră. Ambos os pronomes tendem a ser menos usados pelos jovens cultos7. Em ambos os países existem diferenças diatópicas importantes no emprego de você e dumneata, considerados ora corteses ora ofensivos em diversas regiões de Portugal ou da Roménia. Embora do ponto de vista morfológico vocês seja o plural de você, os valores semânticopragmáticos dos dois pronomes são diferentes, visto que a forma plural tem um valor informal, neutro, funcionando como plural de tu. Nas secções seguintes do trabalho questionar-nos-emos sobre os valores destes pronomes nos debates parlamentares. Se em ambas as línguas funcionam como FT com interpretações múltiplas, determinadas por fatores diatópicos e diastráticos, como se empregam você e dumneata nos debates parlamentares, um género discursivo que oscila entre os limites impostos pelo cerimonial regimental e o pathos da polémica, ou até do conflito verbal8? 2. Apresentação do corpus Escolhemos para este trabalho debates que ocorreram entre 1996 e 2012 nos parlamentos de Portugal e da Roménia: Assembleia da República, Camera Deputaţilor [Câmara dos Deputados], Senatul României [Senado da Roménia]. Fizemos pesquisas por palavras-chave nas bases de dados com as transcrições de reuniões plenárias, disponíveis nos sites oficiais dos dois parlamentos, constituindo assim um corpus de 259 ocorrências do pronome você e 269 do pronome dumneata. Os pronomes são analisados em contextos que considerámos representativos, sendo os resultados das pesquisas por palavras-chave trechos de debates com cerca de 600 palavras que permitem, na maioria dos casos, entender os mecanismos de utilização dos pronomes. Quando os fragmentos assim apurados não eram esclarecedores, lemos as transcrições integrais das reuniões, publicadas na primeira série do Diário da Assembleia da República ou na segunda parte do Monitorul Oficial al României. 3. Análise do corpus

Slama-Cazacu (2010) faz breves considerações sobre os usos de dumneata no romeno atual. Debates de tipo “Question Time” do Parlamento Britânico, em que os ministros são interpelados pelos membros da oposição, foram considerados um género ameaçador da imagem [face threatening genre] (Pérez de Ayala 2001, apud Ilie 2006). 7 8

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O corpus revelou que os dois pronomes aparecem em contextos genéricos, nãoalocutivos (3.1.), ou referem alocutários que integram quadros enunciativos secundários, em discursos relatados (3.2.). Desta maneira, a análise concentrar-se-á em três categorias de usos dos pronomes você e dumneata. A primeira diz respeito aos empregos que chamámos nãoalocutivos e pseudo-alocutivos (3.1.), porque não se referem aos alocutários do quadro enunciativo principal, como os usos genéricos e os empregos em discursos relatados. A segunda parte da análise debruçar-se-á sobre usos alocutivos propriamente ditos de ambos os pronomes (3.2.) e a terceira sobre as negociações de significados em relação a você. 3.1. Usos não-alocutivos e pseudo-alocutivos Embora sejam prototipicamente pronomes de tratamento (veja-se a secção 2.), você e dumneata têm no corpus analisado valores não-alocutivos, genéricos (que não fazem referência a um alocutário), e usos pseudo-alocutivos9 (quando designam um alocutário in praesentia ou in absentia, em discursos relatados). A diferença entre o uso genérico (3.1.1.) e o uso em discursos relatados (3.1.2.) relaciona-se com a propriedade [-deítico] da primeira classe de exemplos e [+deítico] da segunda. O uso genérico opõe-se à interpretação referencial, individual, visto que neste caso o pronome não expressa uma entidade bem delimitada. 3.1.1. Valores genéricos de dumneata e você Do ponto de vista morfológico este uso de dumneata, pouco comum na língua corrente, pode relacionar-se com o facto de o pronome se conjugar com a 2ª pessoa do singular, a mesma do pronome tu, por excelência o pronome genérico em romeno10. Do ponto de vista semântico-pragmático, o uso genérico de dumneata explica-se pela transferência das regras de emprego do tu alocutivo ao tu genérico, ou seja, como o tu alocutivo está ausente neste género discursivo por ser considerado inadequado, os locutores sentiram a necessidade de eliminar também o tu genérico, talvez por receio de serem considerados descorteses. O exemplo (1) mostra um emprego genérico típico do pronome dumneata, em que o locutor não comunica com um destinatário concreto, designando o pronome uma classe geral, abstrata e vaga de indivíduos virtuais e potenciais que fazem uma ação para “pôr em perigo a ordem constitucional”. (2) e (3) são exemplos de usos genéricos de dumneata em fórmulas e Considerámos estes pronomes pseudo-alocutivos em relação ao quadro enunciativo principal, nomeadamente o debate parlamentar, funcionando eles como alocutivos nos quadros secundários, dos discursos relatados. 10 Para uma análise recente do tu genérico em romeno veja-se Zafiu (2003). 9

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expressões com papel de marcadores pragmáticos, que neste contexto têm uma função fática, de chamar a atenção do interlocutor11.

(1)

(2)

(3)

În clipa în care se face această exprimare judicios exprimată, “sub orice formă”, înseamnă că trebuie să fii atent ori de cate ori ai gândul, ai intenția să subminezi ordinea constituțională. […] Din punct de vedere al consecințelor, prin orice formă ai acționa dumneata, chiar daca nu se spune, tot realizezi altura obiectivă a infracțiunii, care este, ce? Punerea în pericol a ordinii constituționale. [No momento em que se usa esta expressão, rigorosamente formulada, “de forma alguma”, isto significa que você deve estar atento cada vez que pensa ou tem a intenção de minar a ordem constitucional. […] Do ponto de vista das consequências, apesar de não ser dito, de qualquer maneira que você agir, apercebe-se da natureza objetiva da sua infração, que é, o quê? Pôr em perigo a ordem constitucional.] Unii demnitari și ziariști invocă legea: că n-are, vezi dumneata, cetățenie; că n-are domiciliu. [Alguns funcionários públicos e jornalistas invocam a lei: não tem, veja lá, cidadania; não tem domicílio.] Un alt ziarist citează la loc de cinste declarația unei dudui care este îngrozită, vezi dumneata, de faptul ca jobul ei nu o să se mai cheme “operatoare ticketing”, ci, vai oroare! “operatoare bilete”. [Outro jornalista cita em lugar de honra a declaração de uma senhora horrorizada, veja lá, que o seu cargo deixará de se chamar “operadora de ticketing”, e será, ah, que horror! “operadora de bilhetes”.] Menos frequentes são as ocorrências do pronome você com valor genérico12,

mostrando que em Portugal ainda não há uma tendência de difusão deste uso. Em (4) e (5) você remete para situações dialogais típicas, que podem acontecer a qualquer cidadão. Consideramos o pronome genérico, com o seu papel de incluir o maior número possível de pessoas que se identifiquem com a situação apresentada, como uma estratégia do orador, representante de uma comunidade. Com efeito o parlamentar deve adaptar o seu discurso para se dirigir a um público abrangente13. (4)

Suponha que não tem carta de condução, pois nesse caso é-lhe logo imputada a responsabilidade. Não tem carta de condução e tem uma viatura. Ora, essa viatura, que é sua propriedade, foi referenciada como tendo participado num acidente de atropelamento e fuga, de que resultou um morto. O carro é identificado e a autoridade exige-lhe que identifique quem conduzia a viatura naquele momento e o senhor recusa-se, ou porque o condutor era o seu filho ou era você e não tinha carta.

Zafiu (2003) considera que o valor genérico das construções semelhantes com o pronome tu ou com a 2ª pessoa do singular (ce să vezi?; ce te faci?) provêm de usos deíticos ou fáticos, que remetem para o locutor numa situação dialogal típica. 12 Você genérico é comum no português brasileiro, na variedade europeia sendo preferido o reflexivo. 13 O discurso parlamentar chega aos cidadãos através da comunicação social; as transcrições das reuniões estão disponíveis nos sites oficiais dos parlamentos. 11

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(5)

Mas, Sr. as Deputadas, neste momento, estamos em perigo de vida; há doenças que sabemos até que ponto são contagiosas e o certo é que os resíduos não só dos hospitais mas também dos consultórios médicos podem estar nos contentores da sua casa a contaminar o sítio por onde passam os seus filhos, sem você se aperceber.

3.1.2. Dumneata e você no discurso relatado Os pronomes você e dumneata são empregados também em discursos relatados, referindo alocutários in praesentia ou in absentia14. Vejamos exemplos destas subcategorias:

(6)

(7)

(8)

(9)

Am fost ca persoană privată, pe linie profesională, la simpozioane în străinătate, mi s-a cerut pașaportul, dar nu am fost întrebat câte zile stai dumneata și de ce ai venit. [Enquanto pessoa privada, por motivos profissionais, fui a simpósios no estrangeiro, pediram-me o passaporte, mas não me perguntaram você quantos dias fica e por que veio.] Colegul Radu F. Alexandru şi domnul Zanc sunt de faţă. Radu, l-a oprit cineva să vorbească? Au fost lăsaţi să vorbească de 5-6 ori. Este adevărat că la un moment dat domnul Ungheanu i-a zis: “Domnule, dumneata vorbeşti prea mult”, dar asta era o părere a domnului Ungheanu, pe care am amendat-o spunând: “Domnule Ungheanu, să-l lăsăm să vorbească, fiindcă despre asta va vorbi când va pleca”. A vorbit. [O colega Radu F. Alexandru e o senhor Zanc estão presentes. Radu, alguém os mandou calar? Deixaram-nos falar 5-6 vezes. É verdade que a uma certa altura o senhor Ungheanu lhe disse: “Senhor, você fala de mais”, mas essa era uma opinião do senhor Ungheanu, que eu corrigi dizendo: “O senhor Ungheanu, deixemo-lo falar, porque ele vai falar sobre isto quando partir”. Falou.] Conta-se que um dia ele [Acácio Barreiros] terá perguntado ao Dr. Mário Soares, numa conversa, como é que ele podia defender, sendo de esquerda, as posições que tomava como primeiro-ministro, principalmente, julgo, por causa da aliança com o CDS. O Dr. Mário Soares ter-lhe-á respondido: "Meu querido Acácio, você é um Deputado minoritário. Ouço-o com admiração e atenção. Mas se fosse o contrário, se você fosse o primeiro-ministro e eu fosse o Deputado isolado a atacá-lo, teria eu a mesma sorte?" E essa sua busca de uma sociedade perfeita faz-me lembrar uma história, entre a Isadora Duncan e o Bernard Shaw: eles queriam ter filhos e a Isadora Duncan dizia “imagine, Bernard Shaw, se nos casássemos e tivéssemos um filho e ele fosse tão bonito como eu e tão inteligente como você, Bernard Shaw”; ao que ele respondeu de uma maneira muito curiosa: “imagine, se esse filho fosse tão inteligente como você, Isadora Duncan, e tão bonito quanto eu, Bernard Shaw”.

O exemplo (6) ilustra os usos pseudo-alocutivos de dumneata que fazem referência a alocutários in praesentia. Empregando o discurso direto, o locutor relata diálogos anteriores que teve com rececionistas de hotéis sobre o preenchimento dos formulários de check-in, Os locutores dos discursos relatados nos debates parlamentares são múltiplos e merecem estudos mais abrangentes. Por razões de concisão metodológica, os alocutários in absentia são considerados os que não integram o quadro enunciativo do debate (relatos de discursos dos outros) e alocutários in praesentia os que são incluídos no respeito quadro enunciativo (relatos de discursos anteriores do locutor ou de discursos dos outros em que aparecem alocutários presentes na sala de debate). 14

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usando dumneata tanto nas suas respostas, como nas dos funcionários. No exemplo (7) o locutor usa a citação para relatar um episódio anterior que se passou nas audições dos membros da ERC romena. Em (8), o pronome você é usado por Mário Soares, num diálogo com o político Acácio Barreiros, relatado por um deputado e em (9) trata-se de uma piada com personalidades da área da literatura e da dança. Os últimos três exemplos, (7)-(9), ilustram a designação in absentia dos alocutários, uma vez que estes não entram em diálogo com o locutor que relata o discurso e não se encontram na sala para poder eventualmente retorquir. 3.2. Você e dumneata alocutivos Os usos alocutivos propriamente ditos constituem a maioria das ocorrências dos pronomes dumneata e você. Uma das diferenças entre as ocorrências dos dois pronomes é dada pelos contextos, sendo você muito frequente nos apartes e nas intervenções nãocontroladas15, ao passo que dumneata encontra o seu lugar nas tomadas de palavra regimentais. Devido à característica primordial do discurso parlamentar, que pressupõe interações entre opositores políticos16, os dois pronomes servem para designar alocutários cuja imagem se pretende ameaçar. Por conseguinte, é comum encontrar dumneata e você em frases críticas, irónicas, ofensivas ou até em insultos, que constituem parte integrante do contrato de comunicação parlamentar17. A questão que se coloca é até que ponto é permitido ameaçar a imagem do alocutário, usando estes pronomes? A resposta que daremos será sucinta, por causa das limitações de espaço deste trabalho, mas os exemplos escolhidos mostrarão um crescendo, partindo de valores neutrais, chegando até os significados mais ofensivos, relacionados com os diversos níveis da identidade do interlocutor18.

(10)

(11)

a. Este vreun chestor în sală? Domnule Nică, fă dumneata pe chestorul în sală. // b. Stimate coleg, dacă nu mă înșel, dumneata ai luat primul cuvântul. [a. Há algum questor19 na sala? Senhor Nică, faça você o papel de questor na sala. // b. Estimado colega, salvo erro, você foi o primeiro a tomar a palavra.] Você já vai em cinco minutos!

Para uma análise dos apartes no discurso parlamentar português veja-se Marques (2005). Nos termos de Charaudeau (2005, 40-49), podemos definir o discurso parlamentar como a interação entre as instâncias política e adversária, transmitida pela instância mediática, para chegar à instância cidadã. 17 Como nas reuniões parlamentares se expressam maioritariamente posicionamentos discursivos e ideológicos diferentes sobre os temas debatidos, a relação eu-tu tem uma dimensão potencial conflitual intrínseca. 18 Referimo-nos à identidade política, social, pessoal. Para análises mais aprofundadas sobre a identidade parlamentar veja-se Van Dijk (2010) e Vasilescu (2011b). 19 Função de controlo financeiro na Câmara dos Deputados do parlamento romeno. 15 16

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Os exemplos de (10) e (11) ilustram para usos neutros, sem valor pejorativo. Os locutores falam sobre procedimentos regimentais de tomada de palavra.

(12)

Dar cine ești dumneata să îmi dictezi mie? [Mas quem é você para me dar ordens?]

Em (12) através da intervenção do locutor, conseguimos ter informações sobre o ethos do interlocutor; ao perguntar que legitimidade tem o interlocutor para dar ordens, o locutor expressa o seu descontentamento em relação a um comportamento impositivo do outro.

(13)

Domnule deputat Munteanu, dumneata ești simpatic când lipsești. Când ești prezent, e grav! [O senhor deputado Munteanu, você é mais simpático quando falta. Quando está presente, a situação está grave!]

Com o uso irónico de (13) cria-se a imagem de um interlocutor que não cumpre o seu dever, por faltar nas reuniões. No entanto, o tom irónico atenua o ato de ameaça da imagem do interlocutor.

(14)

a. Dumneata, chiar dacă înțelegi ce spun eu, lingvistic, nu înțelegi economic! // b. Nai talent, domnule Feldman, n-am cum să te ajut. Eu și în somn, când vorbesc, sunt mai talentat ca dumneata la masa de lucru. [a. Você, apesar de perceber o que eu digo do ponto de vista linguístico, não percebe do ponto de vista económico!] // b. Senhor Feldman, você não tem talento, portanto não o posso ajudar. Eu, mesmo falando durante o sono, sou mais talentoso do que você sentado na secretária.]

(15)

a. Você é mesmo de “orelhas duras”! // b. Você é que não percebe nada! // c. Incompetente é você! // d. Você tem de aprender a ler! Tem de ser alfabetizado!

Nas ocorrências (14) e (15), fazem-se ameaças à capacidade intelectual e profissional do interlocutor, que não compreende, é incompetente ou não tem talento. As gradações são variadas, mas a intenção dos locutores é de pôr em causa a imagem profissional do interlocutor, negando-lhe até uma competência fundamental, saber ler (15 d). A ironia de (14 b) tem o papel de salientar a diferença entre as capacidades intelectuais entre o locutor e o interlocutor através de uma comparação absurda.

(16)

a. Você é um cobarde político! // Você é um fascista! Tenha respeito pelos outros!

8

Os ataques de (16) visam a imagem política do interlocutor. Se os políticos criam um ethos que implica poder, coragem de tomar decisões duras, o ato ofensivo de (16 a) afirma o contrário, para descredibilizar o interlocutor. No exemplo (16 b), o ataque tem como alvo a ideologia, sendo o interlocutor identificado como fascista, portanto adepto de uma política totalitária, ditatorial. Em sociedades como a portuguesa, organizadas segundo os valores democráticos, afirmar que um político tem comportamentos ditatoriais significa negar-lhe o lugar no campo político.

(17)

a. Fals ești dumneata! // b. La “Ștefan Gheorghiu20” n-am călcat, numai dumneata! Minți! a. [Falso é você! // b. Eu não pus pé na “Ștefan Gheorghiu”, só você! Está a mentir!]

(18)

a. Você desconhece a palavra honestidade! // b. Mentiras diz você e o seu partido! // c. Você não sabe do que está a falar! É mentiroso! Leia o dossier! // d. Orador: - […] E, nesta situação de tal modo escandalosa, é tal dificuldade em assumir responsabilidades que, quando lá começa a haver um certo pudor. O Sr. Joel Hasse Ferreira (PS): - Coisa que você não tem! // e. Modéstia é uma coisa que você não tem! // f. Você sabe lá o que é coragem! // g. E você é ultra-atrasado e desavergonhado!

Depois dos atos ofensivos que tinham como alvo a imagem, política, profissional e as capacidades cognitivas (14), (15), seguem em (17) e (18) ataques à moralidade do interlocutor. Desta vez constrói-se a imagem de indivíduo mentiroso, que divulga informações falsas, despudorado, sem modéstia e sem vergonha. As acusações estendem-se por vezes ao grupo político que integra o interlocutor (18 b), criando assim uma imagem negativa de uma classe inteira de adversários. O interlocutor é também acusado de cobarde. Observamos que desta vez a cobardia não se limita à atividade política, como em (16 a), mas torna-se uma característica da personalidade, do interlocutor (18 f). Em (17), através da associação do interlocutor com a academia comunista “Ștefan Gheorghiu” fazem-se ameaças à sua ideologia.

(19)

Ai văzut, domnule, cine are minte? Dumneata ai numai osânză! [Sim senhor, já viu quem tem juízo? Você só tem gordura!]

Em (19) o ato ofensivo tem como alvo o aspeto físico, lembrando o locutor a obesidade do interlocutor. No corpus português não encontrámos ataques deste tipo. A Academia “Ștefan Gheorghiu” foi uma universidade de estudos políticos que funcionou em Bucareste durante a época comunista. 20

9

Observámos que os usos alocutivos de dumneata e você são variados e se relacionam com enunciados neutros, mas sobretudo com atos ofensivos de ameaça à imagem política, profissional, moral ou até física dos interlocutores. Estes usos são condicionados tanto pela natureza confrontacional do discurso parlamentar, mas também pelas propriedades semânticopragmáticas dos dois pronomes, que têm usos “em tensão” na língua atual. Se nos debates romenos, os usos do pronome dumneata não determinam reações por parte dos parlamentares, o caso do pronome você é diferente. Torna-se assunto frequente de debate, os locutores lembrando o seu caráter não-regimental, como mostraremos em (3.2) 3.2. Você em negociações de significado e comentários metadiscursivos Retomamos também sinteticamente a questão da negociação de significado em torno do pronome você, que apresentámos em Manole (2011). Como é um pronome com uma grande variação diatópica e diastrática em Portugal, os locutores podem interpretá-lo de maneiras muito diferentes e o seu uso torna-se controverso nos debates parlamentares. Os defensores de você justificam-no (ironicamente ou não) com razões etimológicas (20) ou sociais (16), ao passo que os presidentes da Assembleia da República limitam o seu uso nos debates (22) e não o consideram uma forma de tratamento regimental (23), (24), (25) ou muito comum no parlamento (26).

(20)

(21)

(22) (23)

(24)

Sempre que algum membro do Governo, no calor da argumentação, usa a palavra “você” faz apenas, involuntariamente, uso de um classicismo, referindo-se à expressão nobre, em português antigo, “vossas mercês”. Portanto, peço ao Sr. Presidente e aos Srs. Deputados que entendam que sempre que eu me dirija a alguém por você o faço por reconhecido respeito […]. Mas acreditem que sempre fui ensinado e aprendi que tratar alguém por você é um sinal de respeito e de boa educação. O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, espero que seja moderado o uso da expressão “vocês” no debate parlamentar. O Orador: Sei que você aposta na desconfiança, no desânimo, aposta sempre nas partes mais negativas. Diria mesmo que, se houvesse um “invejómetro” nacional, você era o manipulador desse “invejómetro” nacional. // O Sr. Presidente: Sr. Deputado António Preto, entre Deputados não deve usar-se a expressão “você”, já o disse. Menos do que "Sr. Deputado" ou "V. Ex.ª" não pode ser dito. // O Orador: Sr. Presidente, aqui "você” vale por “V. Ex.ª”, mas eu passo a dizer “V. Ex.ª”. // O Sr. Presidente: - Não vale para todos os devidos efeitos. […] em várias circunstâncias, diversas bancadas, incluindo a do Governo, por vezes deslizam na utilização da palavra vocês. Penso que, entre todos, poderíamos fazer um pacto de contenção em relação à eliminação dessa forma de tratamento que, por vezes, no calor dos debates, exprimindo, porventura, mais franqueza ou mais rudeza, invade 10

(25)

(26)

o vocabulário parlamentar, mas que, todos nós temos consciência disso, não o deve invadir. Sr. Deputado António da Silva Preto, bem sei que a expressão “você” é uma simplificação de “vossemecê” e que a raiz é “vossa mercê”. Porém, nos termos em que a palavra é hoje usada em linguagem coloquial, diria que não é muito parlamentar. O Sr. Deputado Rui Santos tem origem no norte e o “você”, no norte, tem um sentido respeitoso, eu sei, embora não seja o mais comum aqui, no Parlamento.

Conclusões Esta breve análise do funcionamento semântico-pragmático dos pronomes dumneata e você em debates parlamentares da Assembleia da República e das duas câmaras do Parlamentul României [Parlamento da Roménia] mostram a necessidade fundamental de delimitar as particularidades do contrato de comunicação na análise das formas de tratamento. No caso do discurso parlamentar, as descrições das gramáticas não dão conta da diversidade dos valores discursivos, por vezes surpreendentes, que você e dumneata têm. Por exemplo, para além dos previsíveis usos alocutivos do quadro enunciativo principal, os dois pronomes podem ter valores genéricos, não-alocutivos, ou são empregues em cenários enunciativos secundários, em discursos relatados, tendo valores pseudo-alocutivos. Nos usos alocutivos propriamente ditos há um crescendo de ameaças das imagens do locutor: política, ideológica, profissional, social, moral, física. Em relação às diferenças de usos entre dumneata e você, salientamos a frequência do pronome português nos apartes, ao passo que o pronome romeno se usa preponderantemente em tomadas de palavra regimentais. Notámos também a frequência de comentários metadiscursivos sobre você, que mostram a inadequação do pronome neste género discursivo.

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