Os rostos da emigração: aproximação à violência na análise cinésica de alguns gestos de migrantes galegos

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CAPÍTULO 5 Os rostos da emigração: aproximação à violência na análise cinésica de alguns gestos de migrantes galegos Aitor Rivas A motivação deste artigo surgiu da constatação de que um quinto da população galega vive fora das nossas fronteiras, sendo que a maior parte dessas pessoas não emigrou por vontade própria. Além disso, as pessoas migrantes sofreram violência antes, durante e depois da viagem que lhes mudou a vida. (PUGA, 1988) Nesse estudo, pretendemos analisar quais foram os principais motivos e consequências da emigração galega desde o século XIX por meio de dados quantitativos sobre o número de pessoas forçadas a emigrar. Estes dados são bem determinantes, porém, achamos que a análise não seria completa se não tentássemos conhecer como eram as sensações dos emigrantes, quais os seus medos e o que sentiam ao se mudarem para outros países. Mas, onde é possível observar isso? Com esse intuito analisaremos os rostos de algumas pessoas migrantes por intermédio do testemunho de três fotografias (que formaram parte de muitas exposições em museus do mundo inteiro) 1, sob uma perspectiva completa da comunicação não verbal proposta por Birdwhistell (1970) e da tripla estrutura básica da comunicação apresentada por Poyatos (1994a; 1994b), a qual já aplicamos na análise do relato de um narrador oral (RIVAS, 2015). Em primeiro lugar, iremos esclarecer o que entendemos por migração, emigração e imigração. A migração é o movimento de entrada ou saída de indivíduos em países diferentes ou dentro de um mesmo país. Normalmente, fala-se de imigração para denominar a entrada de estrangeiros em um país, seja temporariamente ou permanentemente. Já a emigração, para a saída espontânea de um território (provisória ou definitivamente). Lembramos que as causas da emigração são sempre plurais e múltiplas, mas achamos que existem três mais importantes e presentes em todos os fenômenos migratórios: 1. A pobreza: o desemprego e a falta de perspectiva de crescimento em certa região sempre foi uma das principais causas da migração dos povos. Isso aconteceu, por exemplo, com a migração nordestina no Brasil; com os imigrantes mexicanos nos Estados Unidos; com a migração galega dos últimos duzentos anos. 1

Para maiores informações vide o Catálogo da Exposição “Os Adeuses / fotografías de Alberto Martí”, (disponível em ) e o de “Memoria gráfica de la emigración española” de Manuel Ferrol ().

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2. A violência: o grau de violência sofrida por uma pessoa ou por uma comunidade. A violência é uma das causas (e também uma consequência) mais comuns que “obrigam” a migrar. Seja por motivos étnicos, religiosos ou políticos, seja por outros motivos, a violência esteve sempre presente nas grandes migrações históricas: os judeus fugindo da Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial; os conflitos no Oriente Médio; os homens que emigravam para não irem à guerra na Galícia. A violência das guerras e conflitos bélicos e, além disso, a violência cometida contra as mulheres. 3. O baixo nível de estudos das pessoas migrantes. Não é exclusivo das pessoas migrantes, mas é muito comum que os homens e mulheres que emigravam tivessem um nível de estudos baixo ou nenhuma formação cultural. Milhares de pessoas saem de suas regiões para procurarem uma melhor situação econômica, sacrificando-se e permitindo que seus filhos possam estudar no futuro. No século XIX a população europeia quase duplicou, o que provocou o desemprego e deterioração das condições de vida, fazendo com que aumentasse a emigração. Na Galícia essas condições foram acentuadas pelos restos do sistema feudal e por uma modernização serôdia (VILLARES, 2004). Logo, podemos questionar: por que decidiram emigrar? Algumas características próprias da migração galega são: elevado crescimento da população nas décadas anteriores; agricultura atrasada; predominância de pequenos agricultores; sistema de herança desigual, que provoca a migração das pessoas mais desfavorecidas; baixos níveis salariais e uma taxa de desemprego muito alta; o pobre desenvolvimento urbano e industrial da Galícia; o peso da existência de uma tradição migratória anterior. Muitos desses galegos e galegas foram obrigados a emigrarem por estas causas e também devido a outras motivações políticas, sociais, ideológicas e econômicas. A saída natural (e provavelmente a única saída) para milhões de pessoas foi a emigração, como disse Castelao, o pai do nacionalismo galego, no Sempre en Galiza: Os galegos sabemos arranxar os papeis e pedir un pasaxe de terceira; sabemos agacharnos nas bodegas dun trasatlántico cando non temos diñeiro; sabemos pillar estradas cun fatelo ao lombo ou empurrando a roda de amolar; sabemos abrir fronteiras pechadas e pedir traballo en tódalas língoas; sabemos, en fin, canto debe saber un bo camiñante, aínda que o viaxe sexa o primeiro da nosa vida. (CASTELAO, 1944, p. 450-451)2

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“Os galegos sabemos conseguir os papéis e pedir uma passagem de terceira; sabemos agachar-nos nas adegas de um transatlântico quando não temos dinheiro; sabemos pegar a estrada com um fardo nas costas ou empurrando a roda de amolar; sabemos abrir fronteiras fechadas e pedir trabalho em todas as línguas; sabemos, enfim, quanto deve saber um bom caminhante, embora a viagem seja a primeira em nossa vida.” (tradução do autor)

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A emigração galega para o exterior conta com um precedente tradicional: as migrações de curta e média distância ou os chamados deslocamentos intrapeninsulares. Antes de cruzarem o Atlântico, a partir da segunda metade do século XIX, os galegos tinham nas cidades portuguesas e castelhanas o seu destino preferencial. Segundo Villares (2004), este tipo de emigração reunia atividades agrícolas e do setor secundário, e servia para as famílias camponesas como forma de complementar a renda da economia familiar de subsistência galega. Muitos galegos experimentaram, anteriormente, alguma modalidade de emigração peninsular, como, por exemplo, o deslocamento dos ceifeiros em Castela e Andaluzia e a emigração estacional de trabalhadores a outros pontos da Península. Essa circulação de homens dentro da Península foi, durante séculos, a possibilidade de equilibrar a economia de muitas famílias camponesas. (VILLARES, 2004) Devido a todos estes fatores, milhares de galegos e galegas se arriscaram a sair das suas casas, atravessando o oceano para enfrentar um mundo desconhecido, no qual depositavam suas esperanças e as de toda a família. Começou assim, com o século XX, o que se conheceu como a emigração maciça. (SÁNCHEZ ALONSO, 2002) Com intuito de melhor apresentar esse contexto, podemos citar que no ano 1912 saíram da Galiza 203.542 emigrantes, seguindo de 1913 com 165.010 e 1920 com 163.465. O fato de que até 1910 não existam estatísticas fiáveis fez com que todas estas cifras tivessem alguma imprecisão, pois nenhum autor conseguiu determinar a quantia das pessoas que emigraram clandestinamente. (SOLLA, 1997). É especialmente notável a quantidade de pessoas que escolheram a América como destino nestes anos. Muitas cidades do novo mundo passaram a formar parte da nossa geografia familiar: Cuba, México, Venezuela, Brasil e Argentina foram os países com mais migração galega. (PARES, 2015) De fato, a segunda cidade galega (atendendo à origem galega da sua população) é Buenos Aires, na Argentina, onde a imigração da Galiza foi tão maciça que todos os espanhóis são agora conhecidos como gallegos (em espanhol, galegos). Como comenta Ruy Farías (2015, p. 37) sobre a emigração galega na Argentina: “a presenza dos fillos de Galicia foi superlativa: en torno a 1,1 millón deles arribaron entre 1857 e 1960. (...) Á altura de 1910, a capital arxentina albergaba uns 150.000 galegos (...) sendo xa entón (...) a maior urbe galaica do planeta” e por isso foi considerada sempre como território galego. Muitos galegos e galegas que levavam mais tempo lá acolheram e ajudaram os outros que acabavam de chegar. Este é um exemplo de como era a percepção de um galego que acabava de chegar na Argentina: Cuando llegamos la colonia de paisanos era muy grande. (...) Y todos resueltamente decididos a quedarse por toda la eternidad. Ninguno de ellos hablaba del retorno. (...) Nosotros (...) también llegamos con el decidido 3

propósito de imitar a los que estaban, quedándonos para siempre. Más cuando nos relacionábamos y descubríamos las ventajas que nos proporcionaba Argentina. Incluso vivir en una ciudad de la jerarquía de Buenos Aires. Nos entusiasmaba el que aquí podíamos disponer de un hogar, educar los hijos sin separarnos de ellos, y disfrutar de muchos otros beneficios, que en la aldea ni soñábamos. (PUGA, 1988, p. 159-160)3 Porém, a partir de 1930 registrou-se uma forte crise migratória que durou até 1946/47, interrompendo este êxodo, e que foi originada por três motivos. Em primeiro lugar, a crise econômica de 1929 que deixou muitos países americanos em uma situação precária. Em segundo lugar, a guerra civil espanhola (1936-1939), com o seu fechamento de fronteiras, e as péssimas consequências que sofreram os sobreviventes. Por último, a Segunda Guerra Mundial, que fazia mais difícil a travessia do Atlântico, porque as principais companhias de navegação pertenciam a países participantes no conflito bélico. Segundo Solla (1997), neste período só se contabilizam 62.036 emigrados galegos, muitos deles por motivos políticos. Depois de 1945, com a fim da Segunda Guerra Mundial e a abertura de fronteiras, começou um novo período migratório maciço, durando até 1970; período durante o qual emigraram 286.437 galegos. (SOLLA, 1997) Durante o governo fascista do General Franco, nomeadamente a partir de 1960, as migrações interiores e transatlânticas foram amplamente superadas pelas facilidades oferecidas por países da Europa ocidental, imersos na industrialização posterior à reconstrução pós-conflito (como a Suíça, a Alemanha, a França ou o Reino Unido) e muitas pessoas optaram por continuar com as suas vidas procurando a sorte na Europa. (VILLARES, 2004) Outro dado interessante é que, desde 1961 até 1980, emigraram mais mulheres do que anteriormente. A Galícia é a comunidade que apresenta uma maior percentagem de mulheres entre as pessoas migrantes. Após as experiências anteriores, esta migração europeia ficou muito mais “familiar”, e é frequente que muitos homens viajem acompanhados pelas mulheres ou que as chamem depois de uns anos para o país onde residem. (SÁNCHEZ ALONSO, 2002) Um dos preconceitos mais comuns sobre a migração é que as pessoas vivem muito bem e acabam esquecendo o seu país. Nada mais longe da realidade aconteceu com os emigrantes galegos: demonstra tal fato os milhares de centros e sociedades galegas que existem ainda hoje ao redor do mundo. 3

“Quando chegamos a colônia de compatriotas era muito grande. (...) E todos resolutamente determinados a ficar para a eternidade. Nenhum deles falava sobre o retorno. (...) A gente (...) também chegou com a firme intenção de imitar aqueles que estavam lá, ficando para sempre. E mais quando nos relacionávamos e descobríamos os benefícios que oferecia a Argentina. Mesmo morando em uma cidade da hierarquia de Buenos Aires. Estávamos muito animados por podermos ter uma casa aqui, educar as crianças sem nos separar delas, e desfrutar de muitos outros benefícios, que no nosso vilarejo nem sonhávamos.” (tradução do autor)

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No começo, tudo era diferente para as pessoas que chegavam a um novo destino. As diferenças a respeito dos seus lugares de origem eram enormes, como se pode ler nos testemunhos daqueles que podiam e sabiam escrever cartas, destacando principalmente as coisas boas do lugar de acolhida. (PUGA, 1988) Por um lado sabemos que alguns emigrantes fizeram sucesso e ganharam dinheiro, mas, contra o que algumas pessoas ainda hoje acreditam, não pensemos que esta foi a situação mais habitual. A vergonha, o medo de serem ridicularizados e o sentimento de fracasso fez com que muitos outros não tivessem coragem de voltar nunca mais à sua terra natal. (CASTRO QUIÁN, 2010) Por outro lado, a emigração modificou também negativamente a vida das pessoas que ficaram: a falta de mão de obra, a falta de recursos, a ruptura social e, especialmente, a falta de homens, veio provocada pela emigração. Muito antes, na metade do século XIX, Rosalía Castro, a maior poetiza galega, criticou nos seus textos a política que forçava a emigração dos seus compatriotas, explicando a quantidade de pessoas que emigraram e como ficou a situação da Galiza na altura: Este vaise y aquel vaise, e todos, todos se van. Galicia, sin homes quedas que te poidan traballar. Tes, en cambio, orfos e orfas e campos de soledad, e nais que non teñen fillos e fillos que non tên pais. E tês corazons que sufren longas ausencias mortás, viudas de vivos e mortos que ninguén consolará. (CASTRO, 1880, p. 214).4 Se fizermos uma aproximação ao número total de emigrantes, podemos comprovar que desde 1810 até 1970 saíram da Galícia 2.146.982 de galegos e galegas, dados que seriam mais precisos se se pudesse quantificar o valor real do fenômeno “clandestino”. (SOLLA, 1997) 4

“Este vai-se e aquele vai-se / e todos, todos se vão, / Galiza, sem homens fica / que lhe possam trabalhar. / Tem, em câmbio, órfãos e órfãs / e campos de solidão / e mães que não têm filhos / e filhos que não têm pais. / E tem corações que sofrem / longas ausências mortais, / viúvas de vivos e mortos / que ninguém consolará.” (tradução do autor)

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E qual é a situação no século XXI? A Galiza tem hoje uma população total de 2.780.000 pessoas. Na atualidade mais de 480.000 galegos e galegas moram no exterior (IGE, 2015). Isso significa que o 18% está fora da Galícia. Estes são os dados da diáspora galega, mas neste trabalho não pretendemos fazer apenas uma revisão histórica nem teórica da emigração, e sim uma breve aproximação às pessoas reais que emigraram. A seguir passamos à análise de três fotografias de emigrantes no momento imediato anterior à sua partida para a emigração e tentamos comprovar como se manifestam as consequências da violência no rosto do emigrante em nível sinésico (BIRDWHISTELL, 1970). A comunicação não verbal é um fenômeno de muita complexidade, pode nos permitir conhecer melhor a situação de uma pessoa, como o que pensa, devido aos comportamentos e posturas não verbais que observamos no seu corpo, como já tínhamos comentado anteriormente: É dicir, falamos de comunicación non verbal para referírmonos ao conxunto de signos (movementos, cheiros, expresións do rostro, etc.) moito máis complexos ca a linguaxe verbal que serven para comunicar (voluntaria ou involuntariamente). Como se pode observar, a linguaxe do corpo deixa ver moitas cousas de nós e tamén de quen nos rodean. O corpo é, por riba de todo, un centro de informacións e, moitas veces, aquilo que menos coñecemos de nós mesmos é o noso principal vehículo de comunicación. Un observador atento podería ver nunha persoa case todo aquilo que ela está a agochar, conscientemente ou non. Por iso, todo o que non se di con palabras se pode atopar no ton de voz, na expresión do rostro, na forma do xesto ou na actitude de cada individuo. (RIVAS, 2008, p. 147)5

A respeito da metodologia da análise, seguimos os trabalhos de Birdwhistell (1970, 1994) e Poyatos (1994a, 1994b). De Birdwhistell e Poyatos adaptamos os conceitos de comunicação não verbal e cinésica. Assim, extraímos de Poyatos a sua concepção da estrutura tripla básica da comunicação humana e as consequências teóricas e analíticas que se derivam da mesma, concebendo a comunicação humana como um tudo indissolúvel no qual o comportamento não verbal tem muita importância. Finalmente, seguimos o modelo concreto de análise aplicado por 5

“Isto é, falamos em comunicação não-verbal para referir ao conjunto de sinais (movimentos, odores, expressões do rosto, etc.) bem mais complexos do que a linguagem verbal que servem para comunicar (voluntária ou involuntariamente). Como se pode observar, a linguagem do corpo mostra muitas coisas de nós e também daqueles que nos rodeiam. O corpo é, acima de tudo, um centro de informações e, muitas vezes, o que menos conhecemos de nós mesmos é o nosso principal veículo de comunicação. Um observador atento poderia ver uma pessoa quase tudo o que ela está escondendo, conscientemente ou não. Por isso, tudo o que não é dito em palavras pode ser encontrado no tom de voz, na expressão do rosto, na forma do gesto ou na atitude de cada indivíduo.” (tradução do autor)

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Bouvet (2001) no estudo do comportamento não verbal e a proposta descritiva e interpretativa que ela apresenta. A primeira imagem, do fotógrafo galego Manuel Ferrol, foi capturada no Porto da Corunha (Galícia) em 1957 e pertence a uma série de fotografias chamada de “Emigración”.

Figura 7 - Despedida de emigrantes (Fonte: FERROL, 1957) No lado esquerdo dessa fotografia, vemos um homem de uma idade mediana, nem jovem nem velho, que está segurando alguma coisa (provavelmente uma peça de roupa) na sua mão direita. Achamos que ele teria entre 30 e 40 anos, uma idade ligeiramente superior à dos homens que saiam na época rumo a esse outro mundo desconhecido. Em segundo plano, aparece um casal dando um emocionante abraço e, mais atrás, um grupo de pessoas falando e se despedindo. Para podermos trabalhar com mais rigor a questão do comportamento não verbal, apresentamos a ficha de análise6 com a simplificação da expressão cinésica do rosto do homem, indicando qual é a posição das sobrancelhas, da olhada, da boca, da cabeça, dos ombros e dos braços:

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O sistema de fichas para a análise cada fotografia funciona como um hexagrama, quer dizer, são seis linhas para representar a localização das partes do corpo em diferentes níveis: sobrancelhas, olhada, boca, cabeça, ombros e braços (vide BOUVET, 2001; RIVAS, 2015).

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Figura 1.1 - Ficha de análise cinésica do homem. Analisemos agora o rosto do homem da Figura 7: ele está olhando para o fundo, pensativo, com o olhar fixo em um ponto longe e com uma expressão em sua face que transmite otimismo, incerteza e medo ao mesmo tempo. Os olhos, meio fundos, têm um brilho especial e, para além do medo, próprio das pessoas que emigravam, comunicam determinação, esperança e ilusão. Ele tem a fronte ampla e o rosto com algumas rugas. Na face, observamos também algumas marcas, provavelmente por não se preocupar muito com sua aparência física e devido ao esforço dos trabalhos que pode ter realizado anteriormente. Como se aprecia na ficha de análise (Figura 1.1), a postura do tronco é firme, mas não fica rígido, e tem um ombro mais afastado e ligeiramente inclinado para atrás. A cabeça está virada para a direita, rotando 45º sobre o tronco, contribuindo para o olhar na diagonal, na direção da câmera. A postura do tronco é firme, mas não tensa, e tem um ombro mais afastado e ligeiramente inclinado para atrás. Junto aos olhos, a posição da testa, firme e levemente erguida, faz com que o imaginemos pensando no futuro. Porém, a boca, semiaberta, parece que vai esboçar um sorriso, deixando a mandíbula descontraída e relaxada. Provavelmente o homem está sozinho, pronto para subir em um barco com destino à emigração para tentar ganhar a vida em Cuba, na Venezuela, na Argentina ou no Brasil. Como a maior parte dos emigrantes, ele veste as melhores roupas que tinha, neste caso, um terno preto e uma camisa branca. Ele parece um tanto nervoso, preocupado e centrado na viagem (lembremos que muitos destes emigrantes nunca tinham saído de suas cidades de origem), mas sua feição transmite, também, um certo otimismo a respeito do futuro, atentando-se nesse ponto ao longe (provavelmente no barco ou na imensidade do oceano), alheio à despedida das outras pessoas que o rodeiam. A fotografia tem muita força e consideramos muito dura, principalmente se imaginarmos a 8

situação pessoal do homem e lembrarmos a dramática situação econômica e social no pós-guerra espanhol e a incerteza perante a vida e o futuro que aguardava por ele em outro país, bem longe de sua terra. Por causa da situação histórica que atravessou a Galícia, nomeadamente nos últimos cem anos, e que apresentamos anteriormente, a fotografia deste homem não é uma imagem isolada: muitos homens e mulheres se viram obrigados a iniciarem essa mesmo jornada. A emigração foi sempre um dos tópicos centrais na literatura do povo galego. Assim, em um dos cantares mais conhecidos de Rosalía Castro, no livro fundacional da literatura galega moderna, aparece refletido este difícil momento da despedida do emigrante das pessoas e da terra: Adios groria! Adios contento! Deixo a casa onde nacín, deixo a aldea que conoso por un mundo que non vin! Deixo amigos por estraños, deixo a veiga polo mar, deixo, en fin, canto ben quero... Que pudera non deixar...! (CASTRO, 2013, p. 186).7 Tanto quanto a despedida dos versos de Rosalía, a do emigrante da foto de Manuel Ferrol é uma amarga por tudo o que tem que deixar para trás, mas também, ao mesmo tempo, deixa entrever ilusão e esperança, como a de muitíssimas pessoas que emigraram nessa época, o que pode ser observado no rosto do homem na imagem retratada. As opções de sucesso para essas pessoas estavam sempre longe, no futuro. Passemos agora para a segunda imagem sobre a qual queremos fazer alguns comentários, é também uma fotografia do porto da Corunha, tirada em 1962, alguns anos depois da anterior, por Alberto Martí Villardefrancos:

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“Adeus glória! Adeus contento! / Deixo a casa onde nasci, / deixo a aldeia que conheço / por um mundo que não vi! / Deixo amigos por estranhos, / deixo a veiga pelo mar, / deixo, enfim, quanto bem eu quero… / Quem pudera não deixar...!” (tradução do autor)

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Figura 8 - Subindo a bordo co seu obxecto máis prezado: un tallo.8 Fonte: Martí Villardefrancos, 1962 Já nesta segunda fotografia, pode-se observar quatro senhoras subindo no passadiço para o barco que as levará para outro mundo, bem diferente do que conhecem. Todas levam roupas de frio (três delas roupas pretas ou de luto), e carregam alguns pertences mais importantes nas mãos. É interessante observarmos que as quatro estão prestes a entrar no barco e mudar o rumo das suas vidas, mas têm expressões faciais e posturais muito diferentes. A primeira de todas elas caminha olhando para o chão, carregando uma sacola na mão direita, onde provavelmente estejam todos os seus pertences e alguns papéis (que poderiam ser a passagem e os documentos pessoais) na mão esquerda. Ela tem a cabeça baixa, com os olhos apontando para o chão, quase fechados, e com um gesto que indica tristeza e concentração ao mesmo tempo. A face está inclinada para abaixo, mostrando preocupação e tristeza, provavelmente refletindo sobre a sua situação pessoal no presente e pensando no futuro. Parece que ela vai sozinha, absolutamente alheia à presença do fotógrafo e do resto das pessoas. Há também outra mulher, semi-oculta atrás das outras três, vestida com roupas claras, e que parece acompanhada de um homem alto, mas que, por estar oculta, não podemos apreciar o seu rosto. Parece mais jovem, pois é a única mulher da Figura 8 que não tem os cabelos brancos nem cinzentos.

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“Subindo a bordo com o seu objeto mais prezado: um tamborete.” (tradução do autor)

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Na frente dela, observamos outra senhora vestida de preto, com cabelos brancos e com um pano na cabeça. Está com a mão direita sobre o corrimão da passarela para se ajudar a subir no barco e tem o olhar fixo na lente da câmera, até parece que mostra um sorriso para o fotógrafo. É um olhar cheio de esperança e, quase, de felicidade. Esse olhar e esse sorriso, como assinalamos em um trabalho sobre o humor (RIVAS, 2006), poderia estar relacionado com o que percebemos como a retranca,9 o recurso humorístico mais tradicional e tão próprio do ser galego. Na década de noventa Os Diplomáticos de Monte Alto cantavam: “Aí vos quedades, aí vos quedades: entre curas, frades e militares”.10 Era este o grito de autoconfiança de alguns que abandonavam a terra, dizendo adeus aos que ficavam do jeito que mais dano podia causar: com o orgulho de emigrar, pois na verdade, todos quereriam ir nesse barco. Esta mulher assimilou perfeitamente a situação de emigrante e parece querer brincar com o destino, deixando esse sorriso de despedida para as gerações do futuro. Porém, a mulher que achamos mais interessante na fotografia é a que fica no centro da imagem, em segundo lugar. Ela tem a mesma postura corporal da que acabamos de descrever, mas com uma expressão no rosto muito diferente: tem as sobrancelhas baixas, os olhos tristes de uma mulher cansada e que sofreu, vai acompanhada com um leve ricto de contrariedade e sofrimento na boca.

Figura 2.1 - Ficha de análise cinésica da mulher do tamborete. Como vemos na Figura 2.1, os olhos, a boca e os ombros da mulher do tamborete estão inclinados para abaixo em um claro exemplo de expressividade cinésica. Ela tem a face alongada, melancólica, com esse tipo de sentimento que só as pessoas mais idosas conseguem transmitir. A olhada e o rosto enrugado demonstram o cansaço da vida e parecem estar se despedindo. Mas, 9

A retranca é um tipo de ironia verbal utilizado na Galícia. “Lá ficam vocês, lá ficam vocês: entre padres, monges e soldados.” (tradução do autor)

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observemos brevemente as mãos desta idosa: a esquerda segura um envelope com alguns papéis e, seguramente, um pouco dinheiro que poupou para os primeiros dias, e com o mesmo braço sujeita um curioso tamborete de madeira. Á direita se apoia com força no corrimão e parece se resistir à viagem, mas o tamborete arrasta com ele todas as lembranças do passado e irá com ela a qualquer lugar. Possivelmente esse tamborete seja um tesouro para ela, a sua maior pertença e tenha um valor sentimental incalculável. O corpo desta mulher, exausto e maltratado pela passagem do tempo e do trabalho, pode representar o de muitas pessoas que se viram obrigadas a mudar de país, sem outra alternativa além da emigração. Finalmente, nas pessoas que ficam no fundo desta fotografia de 1962 podemos intuir o tratamento que sofriam os emigrantes em muitos casos, antes e também ao longo da viagem, amontoados e desumanizados, sendo tratados como animais. Por último, escolhemos outra fotografia (Figura 9), também de Alberto Martí Villardefrancos, que forma parte da mesma série que a anterior. Neste caso, vemos três das senhoras que apareciam na foto anterior, já a bordo, sendo retratadas em um plano frontal com o capitão do barco. Também se vê, em segundo plano, outra mulher mais jovem, um homem ao fundo da imagem e uma criança que está olhando para outro homem que aparece na lateral direita. Representam a variedade de idades (famílias inteiras, homens, mulheres, crianças) que existia no barco entre as pessoas emigradas. Neste caso, as expressões dos rostos das três mulheres idosas mudaram a respeito da Figura 8. Entre as três mulheres, a que está à direita da fotografia (que era quem subia em primeiro lugar na Figura 8) está segurando uma sacola com um vulto que deve conter alguma coisa muito importante para ela. Tem a cabeça descoberta e o rosto muito sério e triste. O olhar, cruzado e perdido em um ponto ao longe, foge da lente da câmera, pendente de outras coisas ou quiçá se despedindo da terra na qual viveu a vida inteira. Pela expressão do rosto, a posição da cabeça e os olhos caídos, parece desesperançada e sem muita vontade de iniciar uma viagem que a leve para um país desconhecido do outro lado do Atlântico.

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Figura 9 - O capitán quixo facer unha foto coas avoas.11 Fonte: Martí Villardefrancos, 1962. A mulher que fica no centro da imagem, protagonista também da Figura 8, tem o corpo firme, com os papéis na mão esquerda e continua apertando contra o peito o tamborete de madeira. Chama a atenção como o capitão coloca as mãos nos ombros dela, mas ela, sem se importar com isso, tem o olhar afastado e alheio ao fotógrafo e a qualquer coisa que esteja acontecendo. Os olhos e a boca são o espelho da tristeza e o desânimo que leva dentro de si. Já a mulher à esquerda, está carregando um cajado ou um guarda-chuva de madeira na mão esquerda, enquanto, na direita, tem o passaporte e alguns documentos. Está vestida de preto e leva um pano ao redor da cabeça, mas deixando à mostra parte dos seus cinzentos cabelos. Graças à seguinte ficha (Figura 3.1) podemos analisar de forma fidedigna a expressão cinésica desta mulher:

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“O capitão queria tirar uma foto com as avós.” (tradução do autor)

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Figura 3.1 - Ficha de análise cinésica da mulher da esquerda. Ela é a única que tem o olhar fincado na câmera (ou no fotógrafo) e é a única pessoa na imagem que parece contente, confiante e esperançada, oferecendo um sorriso, transmitindo a ilusão de uma próspera vida além-mar. Já os olhos, pequenos e bem abertos, contribuem a exprimir o sentimento otimista da mulher. O tronco está ligeiramente inclinado para a frente e os ombros, mesmo que estejam um bocado abaixados, parecem firmes. Esta posição do corpo, acompanhada do sorriso e das outras características cinésicas descritas, demonstra uma atitude positiva e proativa. Perante um mesmo acontecimento, cada pessoa pode experimentar sentimentos diferentes, mas acreditamos que nestas três fotografias se podem ver representadas muitas pessoas que passaram a dura experiência migratória. Para fechar este texto sobre a emigração, são muito adequados estes versos do poema “A ilusão do migrante” de Carlos Drummond de Andrade. Neles, pode se observar qual era a percepção do mundo para muitos migrantes, essa sensação de derrota que algumas pessoas têm em relação ao mundo onde vivem: Quando vim, se é que vim de algum para outro lugar, o mundo girava, alheio à minha baça pessoa, e no seu giro entrevi que não se vai nem se volta de sítio algum a nenhum. (ANDRADE, 1997, p. 20) Este capítulo tem como finalidade fazer uma aproximação à história da emigração galega, 14

concretamente dos últimos duzentos anos, e refletir sobre a violência que esses movimentos migratórios representaram para os emigrantes e para a terra que deixaram. Nos rostos dessas pessoas, e graças à utilização das teorias da comunicação não verbal, pudemos ver o sofrimento, o medo e a tristeza, mas também a ilusão, a luta e a capacidade de superação, essa contradição de querer fugir da violência, mas fazê-lo com uma mudança que implica em violência, se distanciar do sofrimento, porém, com um movimento igualmente doloroso. Com o trabalho, quisemos pôr rosto aos números e estatísticas de emigrantes, pois cada uma dessas pessoas tem uma história, uma família, amigos dos quais foram separadas. Esperamos que reparar e dar atenção aos rostos e à gestualidade dessas pessoas sirva para entender e se solidarizar com a violência dos movimentos migratórios e que sirvam também de homenagem a todas as pessoas que se viram obrigadas a sacrificar suas vidas e suas famílias emigrando, para construírem um mundo melhor. Referências ANDRADE, Carlos Drummond de. Farewell. Rio de Janeiro: Record, 1997. BIRDWHISTELL, Ray L. Kinesics and Context. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1970. BOUVET, Danielle. La dimension corporelle de la parole. Les marques posturo-mimogestuelles de la parole, leurs aspects métonumiques et métaphoriques, et leur rôle au cours d‘un récit. Paris: Peeters, 2001. CASTELAO, Afonso Daniel Rodríguez. Sempre en Galiza. Wolfwood: iBooks. [1.ª ed. Buenos Aires: Galaxia, 1944]. Disponível em: . Acesso em: 1 maio 2015. CASTRO, Rosalía. Cantares gallegos. Estudo, edición, notas e comentarios de Anxo Angueira. Vigo: Xerais, 2013. [1.ª ed. Vigo: Juan Compañel, 1863]. CASTRO, Rosalía. Follas novas. Santiago de Compostela: Consello da Cultura Galega. (Ed. facsímile) [1.ª ed. La propaganda literaria: La Habana, 1880]. Disponível em: . Acesso em: 1 maio 2015. CASTRO QUIÁN, José. A cultura na emigración e no exilio. A nosa cultura. 19 abr. 2010. Disponível em: . Acesso em: 1 maio 2015. FARÍAS, Ruy. Aspectos de la identidad gallega en Buenos Aires (1900-1960). Madrygal, Madrid, v. 14. p. 59-69, 2011. FARÍAS, Ruy. A segunda vida de Galicia. Luzes, A Coruña, n. 16, p. 37, mar. 2015. 15

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Compostela: Consello da Cultura Galega; A Corunha: Centro Galego de Artes da Imaxe, 2010. p. 44. Disponível em: . Acesso em: 1 maio 2015. MARTÍ VILLARDEFRANCOS, Alberto. O capitán quixo facer unha foto coas avoas. 1962. Catálogo da Exposición “Os Adeuses / fotografías de Alberto Martí”. Santiago de Compostela: Consello da Cultura Galega; A Corunha: Centro Galego de Artes da Imaxe, 2010. p. 45. Disponível em: . Acesso em: 1 maio 2015. ANEXO I Seguem algumas convenções de representações cinésicas que já apresentamos em outros trabalhos (RIVAS, 2015), para a compreensão das fichas de análise. SOBRANCELHAS Em posição normal Com a sobrancelha esquerda erguida

OLHADA Acima Olhos muito abertos Olhos entreabertos

BOCA Sorriso suave Boca para abaixo

CABEÇA Posição base

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Inclinada para abaixo Movimento à esquerda

OMBROS Ombros caídos Ombro direito retrasado Tronco para adiante

BRAÇOS Braço esquerdo estendido e braço direito dobrado Braço direito estendido e braço esquerdo dobrado

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