Os sentidos da revolta - Entrevista da Sinal de Menos, com Roger Behrens

July 21, 2017 | Autor: Daniel Cunha | Categoria: Marxismo, Junho 2013, Jornadas de Junho de 2013
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[-] Sumário # Edição Especial

EDITORIAL

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ENTREVISTA OS SENTIDOS DA REVOLTA Com Sinal de Menos, por Roger Behrens

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ARTIGOS RESISTÊNCIA E DIREITO À CIDADE Esboço de uma gênese do movimento em Porto Alegre Daniel Cunha

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O COLAPSO DO ARRANJO BRASILEIRO Joelton Nascimento

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O GIGANTE QUE ACORDOU – OU O QUE RESTA DA DITADURA? Protofascismo, a doença senil do conservadorismo Cláudio R. Duarte

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A REVOLTA E SEU DUPLO Entre a revolta e o espetáculo Paulo Marques

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VISÕES DO MOVIMENTO – PSOL E FRENTE AUTÔNOMA Impressões de Porto Alegre Suelem Freitas

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A COMÉDIA DA MORAL PACÍFICA André Guerra

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DECIFRA-ME OU DEVORO-TE As jornadas de junho/julho e a luta de classes no Brasil contemporâneo Diego Grossi

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A MOBILIDADE DO INFERNO PROLETÁRIO A vida nos trens da hiperperiferia de São Paulo Cláudio R. Duarte

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EXPEDIENTE

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Os sentidos da revolta Entrevista com os editores da Sinal de Menos

A entrevista a seguir foi concedida ao crítico cultural alemão Roger Behrens1 e parcialmente publicada pelo alemão Jungle World2 e pela dinamarquesa Autonom Infoservice3. Para esta edição, a entrevista foi atualizada.

RB: O aumento das tarifas dos transportes urbanos levou dezenas de milhares de manifestantes às ruas das grandes cidades brasileiras. Entrementes, os protestos se dirigiram contra a política do governo do PT, e a corrupção se tornou um dos focos principais. Os diálogos com o governo, com a presidente Dilma Rousseff, falharam. De acordo com as pesquisas, dois terços da população apoiam os manifestantes. Um movimento estaria em vias de se formar? É um protesto organizado? O que está exatamente acontecendo aí? [-] A primeira onda do movimento se deu em Porto Alegre (sul do Brasil) capitaneada por um bloco heterogêneo de partidos de esquerda, organizações estudantis e outras, de fevereiro a abril, que se articulou para o cancelamento do aumento da tarifa de ônibus. Esta onda se intensificou em 6, 7 e 11 de junho, em São Paulo, com as manifestações do MPL (Movimento Passe Livre), que demandavam a revogação do aumento de R$ 0,20 na tarifa do transporte público. Os primeiros protestos foram reprimidos pela Polícia Militar e moralmente condenados pela mídia burguesa, que chamou os manifestantes de “vândalos”. No dia 13 junho, a repressão foi muito violenta, a ponto de ferir com severidade até mesmo jornalistas da grande mídia. De repente, a opinião da mídia mudou. Alguns dias depois (no dia 17) centenas de milhares de pessoas da classe média – individualista, socialmente

http://www.rogerbehrens.net/ http://jungle-world.com/artikel/2013/27/48008.html 3 http://www.autonominfoservice.net/2013/07/17/en-nationalistisk-feber-raser-i-brasilien/ 1

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desorganizada e não muito politizada – articularam, por intermédio das redes sociais (Facebook, Twitter, etc.), a tomada das ruas das maiores capitais do Brasil Entretanto, enquanto isso, a mídia burguesa deu uma verdadeira guinada direitista: ela inverteu as demandas das esquerdas e interpretou-as como um protesto genérico “contra a corrupção”. O foco foi então completamente torcido: o PT era agora o alvo maior, e tudo foi rapidamente associado com as políticas e os movimentos de esquerda, assim como as bandeiras vermelhas e negras em geral. Enquanto que a questão original que deflagrou os protestos, primeiro em Porto Alegre, depois em São Paulo e em seguida para todo o país, isto é, o aumento das tarifas de transporte público, foi uma luta democrática contra o lucro e, em última análise, contra o sistema capitalista. Ela trouxe consigo a questão do “direito à cidade” e a crítica totalizante das condições precárias de vida da classe trabalhadora nas cidades grandes na era financeira do capital. Em 11 de julho uma greve geral foi organizada. Foi articulada para paralisar a maioria das atividades econômicas do país. Entretanto, sindicatos atados ao PT foram muito tímidos ao criticar o governo e os sindicatos de oposição são muito pequenos. Às vésperas da greve, a Câmara de Vereadores de Porto Alegre foi ocupada. A ocupação durou oito dias e representou uma verdadeira experiência de autogestão. Os ocupantes promoveram um seminário popular no qual duas leis foram escritas, uma que busca a transparência nas contas do transporte público e outra que estabelece passe livre para estudantes, trabalhadores desempregados e povos indígenas. Estas leis ainda têm que ser votadas pela Câmara de Vereadores. O resultado destas lutas ainda não está claro. A mídia reacionária esteve (e ainda está) tentando dar e manter um golpe similar àquele que se deu na Venezuela de Chávez ou, ao menos, sustentar uma campanha de difamação contra a esquerda em geral. De várias maneiras, não totalmente unificadas, uma boa porção da esquerda radical está tentando se organizar (em aliança com comunidades e movimentos populares) para atacar as políticas do PT no poder, a direita como um todo, o Estado em geral e todo o sistema capitalista. O verdadeiro ponto para nós, da Sinal de Menos, é aprofundar e radicalizar a crítica do capital assim como aprofundar e radicalizar as demandas dos movimentos e assim construir uma bestimmt Negation [negação determinada]. O grande risco para nós, nesse momento, é engrossar a fração reacionária do movimento impulsionado pela 8

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mídia dominante contra o PT e a esquerda vermelha e negra (socialista e libertária) em geral.

RB: Imagens semelhantes nos vêm da Turquia, da Grécia, da Espanha, da Primavera Árabe. Existem paralelos com estes protestos? Ou talvez com os acontecimentos na Argentina há dez anos? Ou seriam os protestos no Brasil distintos dos demais? [-] O movimento global do capital, e, por conseguinte, sua presente crise, exerce obviamente um papel aqui. Mas os protestos no Brasil tiveram pouco a ver com a Primavera Árabe, nem possuíam similaridades significativas com os protestos gregos. Em contraste com os países árabes (e com a Turquia recentemente), não se trata de uma luta contra um regime autoritário, mas contra um governo de esquerda que perdeu completamente o contato com a sua base social. E diferentemente do movimento dos Indignados na Espanha, os protestos brasileiros não surgiram em um contexto de crise econômica, mas (semelhante ao Maio de 68) ocorreram em um contexto de crescimento econômico e taxa de desemprego relativamente baixo (diferente do Maio de 68, entretanto, a superação do capitalismo é um horizonte muito distante). Entretanto, uma similaridade com o movimento espanhol é a crise de representação devido à adesão da esquerda às políticas liberais, assim surge o sentimento de que “tudo é a mesma coisa”. Uma importante parte de nossa luta é contra a classe média reacionária brasileira e, obviamente, a direita reacionária (apoiada pela mídia dominante) que defende o poder capitalista. Finalmente, o movimento aqui, como nós podemos ver, é mais radical que o Occupy Wall Street, dado que articula elementos de classe e, mais precisamente, de luta de classes, com partidos comunistas e esquerdistas e movimentos (urbanos e rurais) em geral.

RB: É possível falar em “resistência” a respeito dos protestos como um todo? Noutros termos: até que ponto são os protestos, de modo geral, radicais (num sentido marxista)? Haveria neles uma perspectiva de superação do sistema? [-] Sim, o movimento, em seu momento atual, ainda tem reais possibilidades de radicalização, partindo de questões democráticas básicas até chegar à “crítica marxista” 9

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do sistema capitalista como um todo. A luta “contra a corrupção”, tal como foi levada adiante pela mídia é um modo de moralizar e, por conseguinte, esvaziar e despolitizar totalmente o debate. É, por assim dizer, uma cortina de fumaça. Claro que o processo de radicalização pode ser difícil, lento, contraditório. Na ocupação da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, por exemplo, dois projetos de lei foram elaborados pelos manifestantes. Seu resultado foi mais um ato de cidadania e “cogestão” com o capital do que uma autogestão da coisa pública. Isto não é desimportante, pensamos, em um país em que as esferas pública e privada são entrelaçadas, servindo ao interesse das elites. Dito isto, a transcendência aparecerá apenas com a negação determinada, não com falsas idealizações, visões absolutas, ou críticas totalmente destrutivas.

RB: Partindo de um velho conceito de Espinoza, tais movimentos costumam ser descritos, depois de Michael Hardt e Toni Negri, como Multidão: uma massa que, em sua pauta, em seus objetivos, em sua crítica, mesmo se numa crítica de difícil acesso, reclama – particularmente em relação ao Estado – uma nova “politicidade”. Seria uma pista capaz de esclarecer por que razão aí se protesta contra um governo realmente bastante popular, além de considerado de esquerda? [-] Em junho, depois das primeiras semanas, enquanto os protestos cresciam em número e intensidade, tornou-se claro que, em um nível social, o que se deu foi algo como o “retorno de um recalcado”. Houve (e ainda há), claro, uma insatisfação difusa, mas que está ligada às alucinadas e insuportáveis condições de trabalho, de transporte e de vida em geral da sociedade atual, que têm a ver com a “alienação intensificada” (Debord) da sociedade do mercado total. Neste particular, esta seria uma luta protosocialista. Ao mesmo tempo, depois de duas décadas de políticas neoliberais, desintegração social e despolitização, a assim chamada “multidão”, facilmente influenciável, provou também ter algumas tendências protofascistas, clamando por um líder autoritário e bradando slogans reacionários.

RB: Poderíamos assim supor que se trata apenas de direitos adquiridos, da defesa de interesses privados? (Lembrando que nos protestos mostrados na televisão [na 10

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Alemanha] os manifestantes invocavam sucessivas vezes o Brasil como Estado e nação, e que as cores predominantes eram as da bandeira nacional brasileira: verde e amarelo. A propósito, na bandeira figura ademais a frase “Ordem e progresso”...) [-] Em São Paulo, a posição apartidária do MPL (o fato de que o movimento, ainda que claramente de esquerda, não tem nenhum tipo de filiação partidária), nas cabeças despolitizadas da juventude de classe média que tomou as ruas, deu lugar a uma febre ultranacionalista – alguns a chamaram de “fascismo verde e amarelo” – e uma aversão a manifestações partidárias de qualquer tipo (mas particularmente de partidos e movimentos de esquerda). Sob a influência da mídia dominante, o hino nacional foi cantado com orgulho pelas massas, autoproclamando-se como um gigante recémacordado, enquanto gangues neofascistas, armadas com facas e paus, foram às ruas, queimaram bandeiras vermelhas, agrediram manifestantes de esquerda e os forçaram a sair das manifestações, tudo sob os olhos de uma “multidão” condescendente e conformista. Por outro lado, em outras partes do país essa virada fascista não foi tão forte, pois o movimento não foi geograficamente uniforme. Em Porto Alegre, por exemplo, onde há um forte núcleo esquerdista organizando os protestos, as manifestações nunca foram tomadas pela direita. No Rio de Janeiro, recentemente (em Julho) parece haver forte atividade de grupos Black Bloc. Uma das lições para nós – e isso deveria ser óbvio – é que um movimento de protesto esquerdista, com pouca ou nenhuma organização, e sem nenhum projeto ou estratégia definida, não vai muito longe, se descaracteriza e acaba ofuscado pela agenda das classes média e alta, agenda veiculada pela todo-poderosa mídia corporativa.

RB: Até que ponto o que está em jogo é a crise do capitalismo? Até que ponto é a política brasileira, o PT? Apenas para a esquerda as medidas do PT não seriam transparentes? [-] A crise global do capitalismo ainda não atingiu o Brasil com toda a sua força. Em parte isso se deve às políticas neodesenvolvimentistas da presidenta Dilma Rousseff, com as suas intervenções urbanas autoritárias relacionadas ao incentivo à produção de automóveis e à Copa do Mundo (que também estiveram nas origens dos protestos em 11

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Porto Alegre), construção de grandes usinas hidrelétricas etc. Portanto, os protestos parecem estar relacionados principalmente com a política interna do Brasil, o fato de que o transporte público é dominado por “máfias” que são suspeitas de maquiar o cálculo das tarifas – que são muito altas comparadas ao salário mínimo – com a complacência do Estado (o que pode estar relacionado com o financiamento de campanhas políticas), incluindo o congestionamento das cidades devido às intervenções urbanas. O fato de que os serviços públicos de educação e saúde são precários, enquanto o governo gasta dinheiro para construir estádios de futebol, também teve um papel depois que os protestos se tornaram massivos. Enquanto os movimentos progressistas lutam pelo “direito à cidade”, a classe média conservadora que se engajou na segunda onda dos protestos, encorajada pela mídia conservadora, é ressentida com a inclusão social dos pobres devido às políticas do PT (como o bolsa família, direitos trabalhistas para empregadas domésticas etc.) – isso é intensificado por toda uma história de ditaduras militares e campanhas anticomunistas nas escolas e na mídia, incluindo o racismo latente e o ódio aos pobres. As pessoas que foram favorecidas pelos programas sociais do PT estão quase ausentes dos protestos. Assim, se “o Gigante acordou”, ele ainda precisa se politizar e se livrar de alguns traços fascistas conhecidos desde os tempos da escravidão.

RB: O Brasil é ainda o que se pode chamar uma “jovem democracia”. Uma discussão pública sobre o período do regime militar só terá lugar por alguns anos [referência à Comissão da Verdade], mas não se pode realmente falar de um trabalho de memória sobre o passado [“Aufarbeitung der Vergangenheit” – título de uma famosa palestra do Adorno, de 1959] digno do nome. Além disso, ao que parece, os militares gozam de uma boa reputação entre parte dos manifestantes. Qual é a opinião de vocês a respeito? [-] A democracia no Brasil é muito jovem e frágil. A transição da ditadura para a democracia foi “pacífica” também no sentido de que ela preservou os privilégios das elites e não houve punição dos ditadores, nem mesmo dos torturadores (“anistia”). A classe dominante seguiu sendo a mesma, assim como as injustiças sociais. Essa situação reemerge agora, com a tentativa de criminalizar o movimento pelo passe livre (MPL), 12

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que revelaram a verdadeira face ditatorial da mídia burguesa, que é controlada por poucas famílias com fortes ligações com a ditadura e com a força policial (que ainda é militar, contra recomendações da ONU), que reprimiu brutalmente em São Paulo. O que tornou possível o descongelamento da história reificada foi a ocupação do espaço público, que ganhou a grande força após a repressão da polícia e da mídia.

RB: Que influência teve a mídia sobre os protestos? [-] A mídia corporativa teve forte atuação desde o princípio. No começo, ela tentou deslegitimar o protesto. Em Porto Alegre eles foram tratados como “problemas de trânsito” ou “vandalismo”. À medida que os protestos tomaram São Paulo em junho, Arnaldo Jabor, comentarista da Globo, chamou os manifestantes de “rebeldes sem causa”. Porém, quando os protestos cresceram, na sequência da repressão policial em São Paulo, e a mídia corporativa percebeu que não poderia controlá-los, houve uma mudança de estratégia, e ela passou a impor a sua própria pauta aos protestos – uma pauta conservadora, moralista e antiesquerdista. Essa operação foi muito bem-sucedida em São Paulo, mas não tanto em Porto Alegre. Durante a greve geral, a mídia corporativa destacou apenas o colapso dos transportes e outros serviços públicos, e pouco mostrou as manifestações dos trabalhadores. É importante mencionar que a mídia no Brasil não é nada democratizada, não está submetida a nenhum controle social efetivo. Por outro lado, as redes sociais e coletivos de mídia alternativa foram importantes para impulsionar um discurso contrahegemônico.

RB: Existe ainda esperança? Ou para vocês, enquanto teóricos críticos, como já para Adorno há cinquenta anos, a práxis deve permanecer “adiada por tempo indeterminado”? [-] Enquanto a práxis não conseguir se organizar contra a sociedade dominante ela terá de adiar a resolução das questões radicais que foram construídas. Neste momento, o sentido do movimento está em disputa. Na primeira onda de protestos, começando por Porto Alegre e seguida por São Paulo, ele foi progressista, um 13

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movimento pelo “direito à cidade”, uma resistência às políticas dilmistas de intervenções urbanas autoritárias e centradas no automóvel, conduzida principalmente por estudantes e pela classe média progressista. Mas a segunda onda de protestos, insuflada pela mídia, trouxe elementos muito conservadores portados pela classe média ressentida. Há, de fato, esperança – se a esquerda for capaz de organizar e politizar a luta, e se as camadas sociais que foram favorecidas pelas políticas sociais do PT entrarem em cena. Uma das razões pelas quais a mídia corporativa pode tão facilmente impor a sua agenda conservadora é a despolitização geral, uma consequência do fato de que o PT mantém aliança com a direita. Os partidos de oposição de esquerda são muito pequenos, os sindicatos são instrumentalizados pelo governo, os movimentos não possuem muita penetração social, então a maior parte das pessoas vê todos os partidos e organizações sociais como o mesmo – “sem partido!” é um mote repetido, claramente encorajado pela direita. O que pode emergir com força é um conjunto de reformas econômicas e políticas – incluindo a distribuição de renda e o imposto sobre grandes fortunas – que acabe com algumas das injustiças sociais históricas no Brasil, assim como movimentos sociais autônomos mais fortes. Porém, há também o risco de uma virada conservadora, que imporia a normalização autoritária e a repressão policial de movimentos sociais. Esta é a luta que está sendo travada agora.

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