Os sentidos de Bem e Mal, em recortes de discursos de sujeitos cotistas, na UNEMAT

October 3, 2017 | Autor: Adelita Balbinot | Categoria: Direitos Fundamentais e Direitos Humanos
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No estudo do esquecimento, Pêcheux (in: Orlandi, 2000) afirma que se dá em dois aspectos. O número um é o esquecimento ideológico, no qual esquecer está ligado à instância do inconsciente e resulta do modo pelo qual somos afetados pela ideologia. O esquecimento número dois é como se fosse uma paráfrase, na qual o dizer poderia ser de outra forma, porém com significados semelhantes.
Tomamos a paráfrase conforme a define Orlandi (2000, p.36): "[...] o retorno aos mesmos espaços do dizer".
Imagem acessada em 07/10/2011, através do sítio eletrônico:
http://teligabico.blogspot.com/2011/05/propagandas- controversas-shockvertising.html

OS SENTIDOS DE BEM E MAL, EM RECORTES DE DISCURSOS DE SUJEITOS COTISTAS, NA UNEMAT

Adelita Balbinot ¹ - Olimpia Maluf-Souza² - UNEMAT

1. INTRODUÇÃO
Este trabalho é um recorte da nossa pesquisa de Mestrado, na qual visamos compreender como se constitui o sujeito cotista na Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT, através das relações sócio-históricas, que põem em funcionamento a língua, materializada nas discursividades em circulação sobre a discriminação. A fundamentação parte de estudos da teoria formulada por Michel Pêcheux, nos anos 60, na França, e trazida e reinterpretada, no Brasil, por Eni Orlandi: a Análise de Discurso, que toma em conta três regiões do conhecimento – a Psicanálise, a Linguística e o Marxismo.
Nesse trabalho, recortamos especificamente os sentidos de maldade x bondade relacionados à questão da cor da pele (negro x branco). A análise dessa materialidade possibilita compreender os discursos que são postos em circulação, produzindo efeitos de sentido de inferiorização e de discriminação do sujeito negro. Sentidos que foram se constituindo histórico-ideologicamente e que se marcam no/pelo funcionamento da língua, através das posições-sujeito em análise.

2. MATERIAL E MÉTODOS
Neste recorte, mobilizamos, enquanto procedimento de análise, os efeitos de sentido que levam o sujeito a interpretar os discursos sobre si mesmo como discriminação, dando visibilidade às filiações em determinadas formações discursivas, materializadas nas fichas de autodeclaração de cor, preenchidas no ato da inscrição para o vestibular. Nessas declarações, analisamos o funcionamento do discurso da discriminação com o propósito de compreender como o sujeito cotista é afetado por dizeres que se marcam por esse lugar de interpretação.

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO.
Os discursos sobre o sujeito negro são interpelados por uma ideologia, que funciona na memória do dizer e que institui sentidos de que o sujeito branco é bom e o sujeito negro é mau. Ao falar/escrever, o dizer do sujeito cotista é elaborado a partir de relações de exterioridade estabelecidas com outros dizeres, produzidos por outros sujeitos em momentos discursivos anteriores e exteriores, ou seja, em outras condições de produção, pois, conforme Orlandi (2000, p. 32), "[...] as palavras não são só nossas. Elas significam pela história e pela língua. [Assim,] o que é dito em outro lugar também significa nas 'nossas' palavras."
Desse modo, ao formular a questão da cor associada à noção de maldade x bondade o sujeito candidato cotista, ao relatar a discriminação sofrida, coloca em funcionamento sentidos que se repetem e se deslocam na história, em função de uma dada ideologia. São formas de esquecimentos postas em funcionamento no discurso do sujeito que 'esquece' que o seu dizer já foi dito e significado em outros acontecimentos discursivos.
Do ponto de vista de Orlandi (2000), nenhuma atividade linguístico-discursiva é neutra, uma vez que sempre insurge de textos e produz, de forma contínua, outros textos: "[...] quando falamos, o fazemos de uma maneira e não de outra, e, ao longo do nosso dizer, formam-se famílias parafrásticas que indicam que o dizer sempre poderia ser outro" (idem, p. 35). Esse 'esquecimento' é, então, estruturante, e se institui como "[...] parte da constituição dos sujeitos e dos sentidos" (idem, p. 36).
Nesta análise, verificamos o funcionamento tanto do esquecimento número um quanto do número dois, ambos marcados pelas constantes repetições e pelos deslocamentos que contrapõem palavras que se referem à raça. Assim, percebemos que a discriminação é discursivizada pelos sentidos de bem e de mal, marcados por paráfrases:
[...] eu estava brincando com uma colega loirinha, de repente a bola pegou numa mulher e ela virou pra mim e disse que eu fiz de propósito porque eu era uma negrinha [...]. (R1)

[...] Apelidaram-me de Tifu e de Negra do cabelo ruim. (R2)

Observamos, no par loirinha/negrinha do recorte (R1), o efeito de sentido da contradição entre as raças, fazendo escopo para os sentidos de bem e de mal, de virtuoso e de perverso, de certo e errado. Os sentidos que a repreensão da mulher produziu para o sujeito cotista se fizeram em função da cor, uma vez que a mesma repreendeu apenas a garota negra, distinguindo-a da outra garota, ou seja, fazendo diferença entre as duas em função da cor. Há, neste discurso, uma exterioridade através da qual são colocados em funcionamento sentidos que tomam a fisionomia da criança branca como sendo angelical e a da criança negra como demoníaca, maligna, marcada pela crueldade.
Do mesmo modo, o emprego do diminutivo, em uma e outra palavra, funciona de forma distinta, atribuindo qualidades positivas ou negativas para cada criança. Assim, o sujeito, ao formular, é interpelado por uma memória discursiva que materializa o modo como cada criança é referenciada, em função da cor da pele. Se as palavras – loirinha e negrinha – fossem colocadas na frase em sequência, como se fossem dois adjetivos referindo-se a substantivos de importância semelhantes como, por exemplo, uma criança loirinha e outra negrinha estavam brincando, essas palavras teriam efeitos de sentidos que visariam caracterizar as crianças que brincavam. Entretanto, da forma como o sujeito formula – eu estava brincando com uma colega loirinha – os pares – eu/uma colega loirinha – entram em contradição, ou seja, o pronome eu se inscreve num campo de significados distinto dos de colega loirinha.
Dessa forma, a palavra loirinha coloca em funcionamento a memória de inocência, ingenuidade, bondade, educação e respeito. O emprego da palavra no diminutivo marca uma forma de tratamento carinhosa, geralmente referida à criança, como é o caso. Mas, a contradição marcada pelo par eu/uma colega loirinha coloca em funcionamento a palavra negrinha, que na formulação faz rememorar sentidos de maldade, de deseducação, de desrespeito. Dessa maneira, o emprego no diminutivo já não estabelece apenas um tratamento carinhoso à criança negra, mas produz efeitos pejorativos para a palavra, como em gentinha.
A mesma relação pode ser observada na imagem que compõe o anúncio "Anjo e o Diabo", da Benetton, criado pelo italiano Toscani, em 1991.

Na propaganda observamos a materialização da bondade x maldade associada à imagem da criança branca e da criança negra. Esse gesto de leitura acerca das duas crianças estabelece com o interdiscurso a mesma relação produzida pelos dois recortes (R1 e R2), pois se em R1 a criança branca se opõe à negra em relação ao bom e mal comportamento (a mulher acusa a criança negra de atirar-lhe propositadamente a bola em razão da cor de sua pele), em R2 a negra Tifu, de cabelo ruim, é materializada na imagem como a representação do demônio, do mal, do erro, em oposição à criança branca, de rosto angelical, de cachinhos dourados, de olhos azuis, fazendo funcionar a memória dos anjos barrocos colocados pelas imagens sacras. Assim, as características físicas ressaltadas na imagem – de uma propaganda intitulada "Anjo e o Diabo" – fazem funcionar, conforme o título, uma memória discursiva que se repete historicamente, instituindo o negro como a representação do mal e o branco como a do bem. 

4. CONCLUSÃO
A memória discursiva acerca do sujeito negro toma-o sempre em oposição ao branco, estabelecendo para ambos os termos sentidos também em oposição: o negro é tomado como reapresentação da maldade e o branco da bondade.
Esse funcionamento é uma regularidade frequente nas formulações contidas nas fichas de autodeclaração, instituindo os sentidos de bem e de mal como sinônimos da cor da pele, do bem e mal comportado, do certo e do errado, e, consequentemente, de branco e de negro.
Dessa maneira, os sentidos, que não apresentam como transparentes, são colocados em visibilidade pelos dispositivos teóricos de análise, que os tomam sempre como sentido a..., visto que funcionam em relação a uma exterioridade.
Pela análise, os pares branco/negro, e suas paráfrases – anjo/diabo, bem/mal – colocam em funcionamento efeitos de sentido que se constituíram na memória do dizer o sujeito negro, constituída pela contradição/oposição entre cor/raça.
Desse modo, os discursos dos cotistas são marcados por esse lugar de interpelação ideológica, colocando em funcionamento sentidos que materializam a discriminação/inferiorização historicamente instituída para os sujeitos de cor negra, instalando sentidos ideologicamente instalados de que o negro esteve sempre associado a sentidos negativos.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise de discurso, princípios e procedimentos. Campinas; SP: Pontes, 2000.

PECHÊUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio (1975). Tradução: Eni P. Orlandi et al. 4ª ed. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2009.


1. Mestre em Linguística
2. Doutora – Orientadora do Programa de Pós-graduação do Mestrado em Linguística da UNEMAT




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