Palavras que dançam à beira de um abismo: mulher na dramaturgia de Hilda Hilst.

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Vincenzo, E.C. de. "Um teatro da mulher: dramaturgia feminina no palco brasileiro contemporâneo" São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1992. P-86/87.
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Cadernos de Literatura Brasileira, n. 8, São Paulo, outubro de 1999, entrevista concedida ao Instituto Moreira Salles. P-26/41
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Reportagem de Regina Helena para o Correio da Manhã (sucursal de São Paulo), 27/12/1969.
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"Sob luz de ouro você flui. Densidade firme, tão leve. Antes da separação entre terra e céu, mar e continentes, luz e escuridão. Uma mistura de pedra, fogo, água, éter. Onde a violência ainda possa desposar a docilidade. O corpo heroico a transbordar de ternura. Suas armas preservam uma inocência nativa. Que borram todas as distinções definidas e restituem todas as divisões às suas núpcias originiais. Uma aliança na qual os lados opostos se unificam em uma mistura intensa." Tradução livre. IRIGARAY, L. "Elemental Passions". Tradução francês-inglês: Joanne Collie e Judith Still. Nova Yorl, Routledge, 1992. P-102.
"Soy loco por America". Composição: Capinam, Gilberto Gil. Cantado por Caetano Veloso. Letra disponível no sítio eletrônico: http://letras.terra.com.br/caetano-veloso/76612/
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AKHMÁTOVA, A. "Antologia Poética". Tradução: Lauro Machado Coelho. Porto Alegre:: LP&M, 2009. P-105.
"Foi a sua língua na minha boca que me forçou à fala? Foi aquela lâmina entre meus lábios que desatou jorros de palavras além daquelas já pronunciadas, palavras nunca imaginadas, únicas na sua língua, para nomear a você, e só a você, você insistiu em me invadir, me manter aberta, mais e mais aberta. Afia seu instrumento, até que se torne quase imperceptível, perfurando cada vez mais a fundo em meu silêncio. Mais fundo na minha carne, você não estava a descobrir o caminho de seu ser?" Tradução livre. IRIGARAY, L. "Elemental Passions". Tradução francês-inglês: Joanne Collie e Judith Still. Nova Yorl, Routledge, 1992. P-09.
MAIAKÓVSKI, V. "Maiakóvski – Poemas". Tradução: Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 1982.
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NIETZSCHE, F. "Genealogia da Moral: Uma Polêmica". Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. P-131. Colchetes meus.
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KERÉNYI, K. "Os Heróis gregos". São Paulo: Editora Cultrix, 1996. P-25.

CAMBELL, J. "O Poder do Mito". Com Bill Moyers. Tradução: Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena, 1990. P-145.
CAMBELL, J. "O Poder do Mito". Com Bill Moyers. Tradução: Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena, 1990. P-131.
TODOROV, Tzvetan. "Em face do extremo", Tradução: Egon de Oliveira Rangel e Enid Abreu Dobránzsky. Campinas: Editora Papirus, 1995. p-139-141.

"Cowboy fora da lei" – Composição de Raul Seixas e Cláudio Roberto. Letra disponível no sítio eletrônico: http://letras.terra.com.br/raul-seixas/48307/
DEJOURS, Christophe (2000). "A banalização da injustiça social". Tradução: Luiz Alberto Monjardim. 3ª Edição, Editora Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro-RJ. p-129.
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DEJOURS, Christophe (2000). "A banalização da injustiça social". Tradução: Luiz Alberto Monjardim. 3ª Edição, Editora Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro-RJ. p-132.
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LORCA, F. G. "Bodas de Sangue". Tradução: Rubia Prates Goldoni. São Paulo: Peixoto Neto, 2004. Pp- 19 / 20.
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"Eu, eu serei um rei / E você, você será uma rainha. / Embora nada os afaste / Nós podemos ser heróis, só por um dia / Nós podemos ser nós mesmos, só por um dia." Tradução livre. "Heroes". Composição de David Bowie e Brian Eno. Letra disponível no sítio eletrônico: http://letras.terra.com.br/david-bowie/5354/.
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HILLMAN, J. "Psicologia alquímica". Tradução Gustavo Barcellos. Petrópolis – RJ: Vozes, Coleção Reflexões Junguianas, 2011. P- 46
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FOUCAULT, M. "História da sexualidade I: A vontade de saber". Tradução: Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque, Rio de Janeiro: Edições Graal, 2010. P-25
FOUCAULT, M. "História da sexualidade I: A vontade de saber". Tradução: Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque, Rio de Janeiro: Edições Graal, 2010. P-94.
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"Uma relação de exclusão recíproca divide, para concluir, modos de ser que na infância praticamos sem separações, e que agora só conseguimos significar mediante paradoxos, como a necessidade do gratuito, a espera do imprevisível... A lógica é uma disciplina admirável do pensamento, que, para funcionar perfeitamente, decompõe a ordem segundo a qual a vida se inaugura, e nós, bem ou mal, seguimos a vida quase fazendo parecer uma desordem. Indo, portanto, contra o sentir humano, o gratuito é considerado menos valioso que o obrigatório, à força da lei se atribui mais eficácia que ao amor, e a regularidade mecânica ocupa o lugar da ocasião imprevista." Tradução livre. MURARO, L. "El Dios de las Mujeres". Tradução italiano-espanhol: María-Milagros Rivera Garretas. Madrí: horas & HORAS, la editorial, 2006. P-179.
HILST, H. "A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção" (1967). In: Hilda Hilst - Teatro Completo". São Paulo: Globo, 2008.
HILST, H. "Prelúdios intensos para os desmemoriados do amor". In: "Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão". São Paulo: Globo, 2001.
CRUZ e SOUSA, J. da. "Litania dos Pobres". In: "Obras Completas". Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1961.
HILST, H. "O Verdugo" (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo". São Paulo: Globo, 2008. P-367.
SAFO DE LESBOS "Poemas e Fragmentos da Lírica" Tradução: Joaquim Brasil Fontes. São Paulo: Iluminuras, 2003. P-21.
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BEAUVOIR, S. "O Segundo Sexo – Volume 2: A Experiência Vivida". Tradução: Sérgio Milliet São Paulo: DIFEL, 3ª Edição, 1975. P-165/ 170.
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HILST, H. "O Verdugo" (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo". São Paulo: Globo, 2008. P-372/ 373
"Mulher é o nome de uma condição muito comum (não menos que homem), (...) intercede o domínio patriarcal, sim, mas quem sabe intercede mais algo que afeta a condição em si, independente do homem (mas dependente das outras mulheres, da mãe em primeiro lugar). Pelo que eu sei, mulher quer dizer poder se converter em mãe e estar nessa situação a partir de uma exigência de reconhecimento da vidarecebida e da precariedade da vida a transmitir, habitada em alma e corpo e corpo por três gerações..." – Tradução livre. MURARO, L. "El Dios de las Mujeres". Tradução para o espanhol: María-Milagros Rivera Garretas. Madrí: horas y HORAS, la editorial, 2006. P-115
TIBURI, M. "Branca de neve ou corpo, lar e campo de concentração – As mulheres e a questão biopolítica". In: Marcia Tiburi e Bárbara Valle (Org.). "Mulheres, filosofia ou coisas do gênero" Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2008. P-56.
De acordo com Muraro, muitos estudiosos sustentam que Diótima sequer existira: tratar-se-ia de uma personagem imaginada por Platão para servir de base à sua filosofia. Diótima interessa a Muraro por situar-se entre uma história documentada e a inexistência, ou o anonimato que recai sobre as mulheres que ocupam lugares marginais. Em última instância, pouco importa à autora se Diótima tenha de fato existido.
"O campo do saber não se divide todo entre ciência e ignorância, disse a tutora estrangeira a seu aluno ateniense, há outra maneira de estar com ele, a de quem sabe algo apesar de ter que prescindir das certezas absolutas, a de quem conhece a verdade sem ter condições de demonstrá-la como tal" – Tradução livre. MURARO, L. "El Dios de las Mujeres". Tradução para o espanhol: María-Milagros Rivera Garretas. Madrí: horas y HORAS, la editorial, 2006. P-148
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SALOMÉ, L. A. "Minha vida" Tradução: Nicolino Simone Neto e Valter Fernandes. São Paulo: Brasiliense, 1985. P-11.
OVÍDIO. "Metamorfoses". Tradução: Paulo Farmhouse Alberto. Lisboa: Livros Cotovia, 2007. Pp-42/ 44
"Profundo, mais profundo que a maior das profundezas imaginada à luz do dia (...) Luz luminosa, impelida por uma aceleração cuja densidade não aparece à luz do dia. (...) Não se fixa em permanência. (...) Nada sólido sobrevive, ainda que aquela espessura que responde a seus próprios ritmos não possa ser reduzida a nada. Aceleração em movimento ambos esperado e inesperado. Seu espaço, seu tempo não podem apreender sua estabilidade ou conter seus dobramentos e desdobramentos. A força desatada tem uma intensidade que não pode ser medida ou barrada. Nunca pode ser dissipada a menos que seja derramada em êxtase mortal. (...) Ela flui entre. (...) Flui por toda parte sem fronteiras – fronteiras mortíferas." Tradução livre. IRIGARAY, L. "Elemental Passions". Tradução franco-anglófona: Joanne Collie e Judith Still. Nova York: Routledge, 1992. P- 13/ 18.
FOUCAULT, M. "História da Sexualidade 2 – O Uso dos Prazeres". Tradução Maria Thereza da Costa Albuquerque. São Paulo: GRAAL,13ª edição, 1ª reimpressão, 2010. P-104.
Composição: Geraldo Vandré / Theo de Barros. "Disparada". Letra extraída do sítio eletrônico: http://letras.terra.com.br/geraldo-vandre/46166/
"O Outro pode ser de tal natureza que, sem significá-lo com outra coisa, poderia tropeçar no esforço humano de explicar tudo, a ponto de extinguir-se na banalidade de nossas representações. Assim se sucedeu com o amor. Com Deus. Com a Natureza. Com a psicologia humana, que os antigos estudavam alegoricamente". (tradução livre) MURARO, L. "El Dios de las Mujeres". Tradução para o espanhol: María-Milagros Rivera Garretas. Madrí: horas y HORAS, la editorial, 2006. P-84.
HILST, H. "O Verdugo" (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo". São Paulo: Globo, 2008. P-374 / 378.
ELLIOT, T.S. "Poesia". Tradução: Ivan Junqueira. São Paulo: Arx, 2004. P-55.
HILST, H. "O Verdugo" (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo". São Paulo: Globo, 2008. P-374 / 378 / 379.
HILST, H. "O Verdugo" (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo". São Paulo: Globo, 2008. P-374 / 379 / 380.
Em 1968, menos de um ano antes de a peça ser escita, o governo Costa e Silva decreta o Ato Institucional número 5 (AI-5), que pressupõe o fechamento do Congresso e das assembléias estaduais e câmaras municiais; a caçação de mandatos, a suspensão de direitos políticos, a demissão massiva de funcionários públicos civis e militares, bem como juízes; está decretado o estado de sítio.
"Divino Maravilhoso"Composição de Caetano Veloso e Gilberto Gil, cantada por Gal Costa. Letra disponível no sítio eletrônico: http://letras.terra.com.br/gal-costa/248671/
FOUCAULT, M. "Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão". Tradução: Raquel Ramalhete. 37ª Edição. Petrópolis-RJ: Vozes, 2009.
HILST, H. "O Verdugo" (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo". São Paulo: Globo, 2008. P-374 / 380 / 381.
FOUCAULT, M. "Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão". Tradução: Raquel Ramalhete. 37ª Edição. Petrópolis-RJ: Vozes, 2009. P-95
FOUCAULT, M. "Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão". Tradução: Raquel Ramalhete. 37ª Edição. Petrópolis-RJ: Vozes, 2009. P-90.
FERNANDES, F. "Circuito Fechado – Quatro ensaios sobre o "Poder Istitucional", São Paulo: HUCITEC, 2ª Edição, 1977. p-105.
MILLER, Arthur ."The Crucible – Penguin Plays (As Bruxas de Salem)" Nova York: Penguin, 6ª Edição, 1982.
WILDE, O. "De Profundis e Outros Escritos do Cárcere". Tradução: Júlia Tettamanzy e Maria Angela Saldanha Vieira de Aguiar. Porto Alegre: LP&M, 1998. P-168.
HILST, H. "O Verdugo" (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo". São Paulo: Globo, 2008. Pp- 385/ 386.
Id. Ibidem. Pg 481.
TREVISAN, J. S. "Devassos no Paraíso". Rio de Janeiro: Record, 2000.
HILST, H. "O Verdugo" (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo". São Paulo: Globo, 2008. Pp- 388/ 389.
LORCA, F. G. "Obra Poética Completa". Tradução: William nAgel de Melo. São Paulo: Imprensa Oficial, 5ª Edição, 2004. P-185.
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AKHMÁTOVA, A. "Antologia Poética". Tradução: Lauro Machado Coelho. Porto Alegre: LP&M, 2009. P-54.
HILST, H. "O Verdugo" (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo". São Paulo: Globo, 2008. Pp- 390/ 391.
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Id. Ibidem. p-129.
WILDE, O. "De Profundis e outros escritos do cárcere". Tradução: Júlia Tettamanzy e Maria Ângela Saldanha Vieira de Aguiar. Porto Alegre: LP&M, 1998. Pp-174 / 176.
FOUCAULT, M. "Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão". Tradução: Ligia M. Podé Vassalo. Petrópolis: Vozes, 2ª Edição, 1983. Pp- 25 / 26.
FOUCAULT, M. "Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão". Tradução: Ligia M. Podé Vassalo. Petrópolis: Vozes, 2ª Edição, 1983. P-15.
HILST, H. "O Verdugo" (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo". São Paulo: Globo, 2008. Pp- 393/ 394.
HILST, H. "O Verdugo" (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo". São Paulo: Globo, 2008. Pp- 394/ 395.
OVÍDIO. "Metamorfoses". Tradução: Paulo Farmhouse Alberto. Lisboa: Livros Cotovia, 2007. P-217.
ALBERTO, P.F. Prefácio de: OVÍDIO. "Metamorfoses". Tradução: Paulo Farmhouse Alberto. Lisboa: Livros Cotovia, 2007. P-18.
OVÍDIO. "Metamorfoses". Tradução: Paulo Farmhouse Alberto. Lisboa: Livros Cotovia, 2007. P-369.
TOELKEN, B. "Life and Death in Navajo Tales". In: SWANN, B e KRUPAT, A. "Recovering the word: essays on native American literature". University of California Press, 1987.
Através da névoa do novo dia eu corro / Saindo da névoa do novo dia eu vim / Eu caço, então existo / Ceifo a terra, tomando a ovelha caída /Através da névoa do novo dia eu corro / Saindo da névoa do novo dia eu vim / Nós metamorfoseamos, pulsando com a terra / Companhia nós mantemos, vagando pela terra enquanto você dorme / (...) Eu sinto a mudança de volta a um tempo melhor / Pêlos se arrepiam em minha nuca / Na selvageria está a preservação do mundo / Então procure o lobo em si mesmo/ Metamorfoseamos, nariz ao vento / Metamorfoseamos, me alimentado eu tenho / Movimento veloz, todos os sentidos claros / Presente da terra, de volta ao sentido de lobo e homem. METALLICA. Composição: James Hetfield, Kirk Hammett, Lars Ulrich. Letra disponível no sítio eletrônico: http://letras.terra.com.br/metallica/25959/traducao.html


OVÍDIO. "Metamorfoses". Tradução: Paulo Farmhouse Alberto. Lisboa: Livros Cotovia, 2007. P-169.
HILST, H. "O Verdugo" (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo". São Paulo: Globo, 2008. Pp- 395/ 399.
KAFKA, F. "Na Colônia Penal". Tradução: Modesto Carone. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. P-5.
FOUCAULT, M. "Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão". Tradução: Ligia M. Podé Vassalo. Petrópolis: Vozes, 2ª Edição, 1983. P-21
HILST, H. "O Verdugo" (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo". São Paulo: Globo, 2008. Pp- 406/ 407.
Ele só pode se tocar a partir do lado de fora. Para retomar a sensação do corpo em sua plenitude, ele inventa um mundo. Mas o horizonte circular do mundo esconde o movimento interno do útero. A imposição de dissociações é o luto que recobre os corpos. Um + um + um... separados um do outro E a reunião de todos em Um nunca corresponde à qualidade vital de um local aconchegante que se derrama líquido, borrando fronteiras. IRIGARAY, L. "Elemental Passions". Tradução franco-anglófona: Joanne Collie e Judith Still. Nova York: Routledge, 1992. P-15.


HILST, H. "O Verdugo" (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo". São Paulo: Globo, 2008. Pp- 408.
FOUCAULT,M. "Microfísica do Poder". Tradução: Roberto Machado. Rio de Janeiro, Graal, 1979. P-29.
HILST, H. "O Verdugo" (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo". São Paulo: Globo, 2008. Pp- 409/ 410.
HILST, H. "O Verdugo" (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo". São Paulo: Globo, 2008. Pp- 411/ 413.
BATAILLE, G. "História do olho". Tradução: Eliane Robert Moraes. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
ELIOT, T. S. "Poesia". Tradução: Ivan Junqueira. São Paulo: Arx, 2004. Pp-125 / 127.
HILST, H. "O Verdugo" (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo". São Paulo: Globo, 2008. Pp- 414/ 416.
GARCIA, C. C. "Hambre del Alma – Escritoras e o banquete das palavras". São Paulo: Limiar, 2007. Pp-64 e 74.
HILST, H. "O Verdugo" (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo". São Paulo: Globo, 2008. P-419.
HILST, H. "O Verdugo" (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo". São Paulo: Globo, 2008. Pp- 419/ 421.
BENJAMIN, Walter. "Paris: a capital do século XIX – Exposé de 1935". In: "Passagens" Belo Horizonte: Editora da UFMG, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. Organização: Willi Bolle e Olgária C. F. Matos. P-41.

HILST, H. "O Verdugo" (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo". São Paulo: Globo, 2008. P- 424.
ELIOT, T.S. "Poesia". Tradução: Ivan Junqueira.São Paulo: Arx, 2004. P-225.
HILST, H. "O Verdugo" (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo". São Paulo: Globo, 2008. Pp- 426/ 427.
ARTAUD, A. "Está na Mesa". In: "Linguagem e Vida". Tradução: Jacó Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2008. P-254.
BACHELARD, G. "O Ar e os Sonhos – Ensaios sobre a imaginação do movimento". Tradução: Antônio de Pádua Danesi. 2ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2001. P-86
BACHELARD, G. "O Ar e os Sonhos – Ensaios sobre a imaginação do movimento". Tradução: Antônio de Pádua Danesi. 2ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2001. P-69.
FIAMINGHI, L. "O encontro entre animus e anima". In: Grupo Anima. "Donzela Guerreira". São Paulo: SESC, 2010. P-16.
"Acima de tudo, não engula o sol. Não digira o sol. Não se esqueça que , mesmo dentro de você, ele também está fora. E que a impossibilidade da nossa relação se remete ao aprisionamento do sol dentro de um mundo. Ele não pode mais fluir por toda a parte. Irradiar tudo com luz e calor. Comer o sol significa refletir seus benefícios nele mesmo. No limite, é como se eles jamais retornassem a ele." Tradução livre. IRIGARAY, L. "Elemental Passions". Tradução franco-anglófona: Joanne Collie e Judith Still. Nova York: Routledge, 1992. P-43
"Esta é a empresa própria do amor, sua acrobacia, porque assim há lugar para o outro passa a ter lugar, não de intruso nem de complemento, não parte nem extra, não amo nem servo, não absoluto nem relativo, não objeto de fé nem objeto de vontade. Ocorre, simplesmente, que há algo outro e o reconheça, ainda que dele não saiba nada mais, porque em ti se revela como ação de um centro de gravidade transposto para fora de ti: é como perder o equilíbrio e descobrir outro, vertiginoso modo de se apoiar. " MURARO, L. "El Dios de las Mujeres". Tradução italiano-espanhol: María-Milagros Rivera Garretas. Madrí: horas y HORAS, 2006. P-170.
MURARO, L. "El Dios de las Mujeres". Tradução italiano-espanhol: María-Milagros Rivera Garretas. Madrí: horas y HORAS, 2006. P-
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP






Marina Costin Fuser







Palavras que dançam à beira de um abismo
Mulher na Dramaturgia de Hilda Hilst







MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS




Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em CIÊNCIAS SOCIAIS, sob a orientação da Profa Doutora Carla Cristina Garcia







SÃO PAULO
2012


Dissertação intitulada "Palavras que dançam à beira do abismo – Mulher na dramaturgia de Hilda Hilst", de autoria da mestranda Marina Costin Fuser, apresentada à banca examinadora constituída pelos seguintes professores:












Banca Examinadora
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À minha avó Marlene




AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha orientadora por ter me acolhido com muita dedicação e ternura, e esteve comigo desde o início, ajudando a cortar minhas asinhas, para voar mais alto com maior precisão, nesse processo de metamorfose, que teve início com o projeto sobre a militância de mulheres nos anos de chumbo e se encerrou em leveza, com o voo poético de Hilda Hilst. Ainda assim, em nenhum momento perdemos de vista a mulher que atravessou a ditadura militar brasileira. O que mudou foi a militância, que percorreu outro caminho. Agradeço à Carla pelas referências bibliográficas, por acompanhar as minhas ideias mirabolantes, por passar horas a fio relendo linha por linha desta dissertação em pleno sábado de carnaval. Vai ser difícil encontrar outra orientadora como você.
Agradeço ao meu pai e à minha mãe, por apostarem em minha carreira acadêmica e por me estarem ao meu lado quando precisei. Agradeço à minha avó Marlene por me ajudar na revisão do português e por ter sido um exemplo de uma artista que conseguiu traduzir sua experiência nos porões do DOI-CODI em lindas gravuras. Uma pessoa muito especial. Agradeço aos meus avós Maurice e Lídia por todo o carinho e a ternura sem os quais seria impensável chegar até aqui. Agradeço ao meu avô Fausto, aos meus irmãos Rafael, Maurício e Vivian, aos meus tios Ricardo, Bruno, Carlos, Gil, Ana e Neide, aos meus primos Guilherme, Cecília, Charline, Luca, Laura, Daniel, Bia, Francisco, João por fazerem parte da minha vida. Agradeço minha prima Cynthia por ter tido a paciência de me ouvir ler em voz alta alguns capítulos dessa dissertação. Agradeço à Valéria Fuser e ao pessoal do Grupo Anima pelas maravilhosas donzelas guerreiras, que inspiraram a conclusão deste trabalho.
Agradeço à Helena Corvini, por viver esse processo junto comigo, na alegria e no sofrimento. Agradeço a alguns amigos que contribuem com ideias que de algum modo repercutiram aqui: Renata Lofrano, Juliana Hereda, Vivianne Cantarelli, Débora Lessa, José Luis Goldfarb, Ana Carolina Gebrim, Mayra Castro, Klaus Heimz, Rafael Leão, Fábio Ralston, Renato Intakli, Maria Fernanda Borio, Célio Ishikawa, Adriana Soares, Rodrigo Ramos Lavich, Martha Lemos de Moraes, Ian Lemos, Beto Pi, Marcos Carrijo, Inaê Sampaio, Josie Berezin, Rachel D´Amico, Ana Kelson, Marcelo Doca, Camila Ribeiro, Camila Sant´Anna, Isabelle Pignot, Maitê Fanchini, Marcelo Rocco, Alexandre Plessman, Mariana Moura, Janaína Mello, Marcos Vinícius Maia, Natasha Bachini, Michelle Watkins, Tati Gonçalves, Clarissa Menezes, Alina da Silva, Mariana Cristtal, Marina Rodrigues, Leda Vasconcellos, Ale Ezabella, Amanda Bacaleinick, Lilian Breschigliaro, Vilma Bokany, Zeca Vidal, João Paulo Pinheiro Paiva, Marina Trivelli Tambelli e Rose Katsanos.
Agradeço ao CNPq e ao programa de Pós Graduação em Ciências Sociais por viabilizarem minha bolsa, e por zelar por um ensino crítico e de qualidade. Agradeço à Carmen Junqueira pela aula maravilhosa de métodos de pesquisa, a Caterina Koltai, a Sívia Borelli, o Miguel Chaia o Edson Nunes, por fazerem da sala-de-aula um ambiente inspirador. Agradeço ao professor Ferdinando Martins por me aceitar como aluna especial na ECA-USP e me guiar nesse ambiente cheio de sonho, paetês e purpurina, que é a história do teatro brasileiro. Agradeço à professora Mariza Werneck pelo círculo literário. Agradeço ao grupo Inanna pelas construções coletivas em torno de uma questão invizibilizada pela academia: o gênero.
Agradeço à Hilda Hilst por sua escrita maravilhosa. Agradeço ao Caio Fernando Abreu, à Virgínia Woolf, ao James Joyce, ao Oscar Wilde, ao Marcel Proust, ao James Douglas Morrison, ao Sid Vicious, à Patty Smith, à P.J Harvey e ao TS. Elliot. Tudo que toca meu coração.
Agradeço aquela força estranha que alguns chamam de Deus, pois sou uma pessoa de muita sorte.







SUMÁRIO


Apresentação …………………………………………………….. 02


Capítulo I: Fale baixo, senão elas gritam...................................... 07


Capítulo II: A casa que habito, o corpo que habito, o rio que me atravessa............................................................................................ 24

Capítulo III: A lírica de Hilst invade o palco ................................. 42


Capítulo IV: A Epopeia de América
e a Beatitude da Verdade ................................................................... 50


Capítulo V: O Maravilhoso Disforme
e as Intermitências do Carrasco ......................................................... 91


Capítulo VI : Donzelas Guerreiras .................................................... 167

Bibliografia .......................................................................................... 176



APRESENTAÇÃO

Acabo de te olhar nos olhos, vida; vi reluzir ouro nos teus olhos noturnos, e essa voluptuosidade paralisou-me o coração: vi brilhar uma barca dourada que se submergia em águas noturnas, uma barca dourada que se submergia e reaparecia fazendo sinais!
Tu dirigias um olhar aos meus pés, doidos por dançar, um olhar acariciador, terno, risonho e interrogador,
Duas vezes apenas agitaste com as mãos as tuas castanholas e já os pés me pulavam, ébrios.
Os calcanhares erguiam-se; os dedos escutavam para te compreender; não tens os dançarinos os ouvidos nos dedos dos pés?

(Friedrich Nietzsche)

Hilda Hilst escreve palavras de leveza num momento em que uma cortina de chumbo recobria o solo brasileiro. Em seu recolhimento na Casa do Sol, Hilda Hilst não é alheia aos acontecimentos atrozes que silenciam gritos de liberdade, e levam ao confinamento cavernoso as chamas de luz que brilham em direção contrária ao estado de exceção. É pelo teatro que Hilst faz o seu protesto contra as arbitrariedades de um regime onde a exceção vira regra.
São palavras que comunicam o indizível, que suscitam uma miríade de imagens, que não se definem nem fixam num único ponto, mas dançam com seus leves calcanhares à beira do abismo, e pairam sobre as cinzas da barbárie sem encostar os pés no chão. O abismo é a situação-limite, onde os nervos afloram a um ponto insuportável. O abismo é a crise levada a seu ápice, é o fim da linha, o prenúncio de uma catástrofe, a iminência da morte, em ambos os sentidos, figurativo ou literal. O abismo é mistério, é a vertigem da queda, ou a possibilidade de se metamorfosear em pássaro e alçar voo.
Nietzsche dizia que é preciso ter coragem para ver o abismo com olhos de águia. De peito aberto, Hilda Hilst cria coragem de alçar voo sobre um universo cênico, deixa de lado sua poesia para escrever seu teatro. Como dizia o filósofo Gaston Bachelard, o voo é uma metáfora da imaginação.

O movimento de voo dá imediatamente, numa abstração fulminante, uma imagem dinâmica perfeita, acabada, total. (...) Se os pássaros constituem o ensejo de um grande voo de nossa imaginaç o, não é por causa de suas cores brilhantes. O que é belo no pássaro, primitivamente, é o voo. (...) As cores múltiplas pestanejam, são as colorações de movimentos que pestanejam. (...) Quando um sentimento se eleva no coração humano, a imaginação evoca o céu e o pássaro.

A imaginação da autora não desenha, mas vive os valores abstratos que ela ilustra em seu movimento ascensional. Seus personagens se metamorfoseiam em pássaros, coiotes e outras criaturas selvagens. Um sopro de Morfeu dá substância às suas parábolas polimorfas, que ganham corpo e invertem as premissas em uma sucessão de movimentos intermitentes. Nesse universo fantástico habita a mulher e seus silêncios, que ensaiam um grito em surdina frente ao insuportável. A mulher cujo brilho é ofuscado pelas sombras da austeridade, pelos dualismos que dilaceram o universo, pelas hierarquias que esmagam as pequenas partículas de vida. Seja América, a mulher colonizada; seja a mulher que precisa se vestir de verdugo para afirmar sua existência. Dos rastros das grandes fogueiras que lançaram chamas sobre saberes desprezados pela soberba da Ciência, resplandece a mulher. A donzela guerreira, que veio para vingar a morte de Joana D'Arc, queimada como bruxa por sua ousadia, pelo travestimento em soldado, suas visões, a força ardente de suas palavras. Como descreve Walnice Nogueira Galvão: "Figura meio histórica, meio mítica, a Donzela Guerreira transgride simultaneamente duas fronteiras. A primeira delas entre os gêneros, ao colocar-se a cavaleiro do masculino e do feminino; a segunda entre os estatutos do real e do imaginário."
O primeiro capítulo leva o título "Fale baixo senão elas gritam", em alusão à peça de Leilah Assumpção (Fale baixo senão eu grito). Trata de apontamentos históricos acerca das dramaturgas que fizeram parte de uma geração de dramaturgos politicamente engajados em diferentes níveis, mas que modificou o teatro brasileiro em forma e conteúdo. Procuro contextualizar historicamente o período em que Hilda Hilst resolve escrever peças de teatro. Quem eram as dramaturgas nesse período? Sobre o que elas escreviam? Qual era a relação dessas dramaturgas com a censura? Procuro responder a essas perguntas, no intuito de ressaltar delineamentos e nuances que interpelam as trajetórias de suas correligionárias, as quais, assim como ela, tratam das questões de seu tempo. Viviam, em um tempo bastante peculiar; sob a égide da ditadura.
O segundo capítulo, "A casa que habito, o corpo que habito, o rio que me atravessa", trata da vida e da obra da autora. Quem foi Hilda Hilst? Destaco alguns momentos angulares que marcaram sua trajetória, como a sua relação com seu pai, a quem ela declara ter dedicado a totalidade de sua obra. Depois procuro pinçar alguns elementos que atravessam sua trajetória. Ela flui tal como o curso de um rio, que atravessa seu corpo e deságua em desfiladeiros. Interessa aquilo que adensa essas águas escaldantes, seus declives, suas encostas, o que inspira seu movimento intermitente. Falo de sentimentos, de metáforas e alegorias, de metamorfoses; das fantasias, do grotesco, e dos silêncios que habitam seu corpo e sua escrita.
No terceiro capítulo, "A lírica de Hilst invade o palco", faço uma breve introdução ao teatro de Hilda Hilst. Lanço luz sobre sua lírica, essa voz que coloca para fora o seu íntimo, algo que ela importa de sua poesia para o texto cênico. Vem à baila o Absurdo, e sua referência no dramaturgo irlandês Samuel Beckett (1906 – 1989). Busco uma compreensão sobre o porquê de a autora ter recorrido ao teatro, e não a outra forma de expressão, no período mais sombrio da ditadura militar brasileira – entre 1967 e 1969, quando o "regime de exceção" assume uma política de linha dura. Esboço em linhas gerais como as chagas do seu tempo encontram ressonância em seu teatro. Coloco em relevo o que críticos teatrais, como Anatol Rosenfeld e Sábato Magaldi, tinham a dizer sobre sua dramaturgia. Falo um pouco de seus símbolos, suas linguagens. Por último, justifico a escolha das peças a serem analisadas nos capítulos seguintes.
O quarto capítulo consiste na análise de A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção, sua primeira peça, escrita em 1967. Leva o título de "A Epopeia de América e a Beatitude da Verdade", sendo América a protagonista, uma mulher com o nome de um continente que atravessa tempos de crise. A peça trata das esperanças depositadas em um herói, capaz de mudar o curso dos acontecimentos. Esse herói se personifica na Verdade da Ciência, que se choca contra uma Verdade religiosa. Tudo se inverte, mas a inversão apresenta também a sua arbitrariedade. A tirania persiste. Nessa peça, a autora trata de uma dimensão dúplice, que se presta a uma armadilha epistemológica. A figura do herói se projeta na própria América, cuja epopeia culmina em um silêncio avassalador. Seu martírio serve à reflexão e não à tão esperada ascese.
No quinto capítulo analiso O Verdugo, sua penúltima peça, escrita em 1969, premiada por sua qualidade cênica e a afinidade temática com o tempo em que foi escrita. Chamo o capítulo de "O Maravilhoso Disforme e as Intermitências do Carrasco", pelas sucessivas metamorfoses com que a autora descreve o caminho da liberdade e sua luta. A peça trata de um verdugo que se recusa a matar um homem, indo contra os anseios de sua esposa, que vê nesse ato inglório a possibilidade de mudar de vida. O lugar do carrasco se inverte, ela veste o seu capuz e encontra um sentido para sua vida. A peça trata suscita deslocamentos, viradas do jogo, uma frágil convicção, tão fugaz como todas as certezas que morrem junto a um paradigma.
No sexto e último capítulo eu esboço algumas conclusões, aproximando as duas peças, analisadas sob o crivo das questões previamente destacadas: os silêncios e os gritos do corpo, as situações-limite e a transitoriedade dos personagens e suas parábolas mirabolantes e aproximo a trajetória das protagonistas à das donzelas guerreiras, cujo combate persiste até se alcance a morte sublime. Finalmente, abordo a transformação em amor, proposta audaciosa de Hilst, presente nas duas peças. Relaciono seu caminho de liberdade com as concepções das filósofas Luisa Muraro e Luce Irigaray, que lançam luz sobre a mulher liberta das sombras que a relegam à condição de alteridade.








Capítulo I
FALE BAIXO, SENÃO ELAS GRITAM


Se o signo da época é a confusão, vejo na base dessa confusão uma ruptura entre as coisas e as palavras, as idéias, os signos que são as representação dessas coisas. (...) Se o teatro é feito para permitir que nossos recalques adquiram vida, uma espécie de poesia atroz expressa-se através dos atos estranhos em que as alterações do fato de viver demonstram que a intensidade da vida está intacta e que bastaria dirigi-la melhor. (...) Toda verdadeira efígie tem sua sombra que a duplica e a arte sucumbe a partir do momento em que o escultor que modela acredita liberar uma espécie de sombra cuja existência dilacerará seu repouso. Para o teatro assim como para a cultura, a questão continua sendo nomear e dirigir as sombras; e o teatro, que não se fixa na linguagem e nas formas, com isso destrói as falsas sombras, mas prepara o caminho para um outro nascimento de sombras a cuja volta agrega-se o verdadeiro espetáculo da vida.


 A relação entre o teatro e tempos de barbárie relatada por Antonin Artaud encontra ressonância no compasso da ditadura militar brasileira, quando se tentava amordaçar as bocas daqueles que clamavam por uma cultura de resistência e confinar as manifestações espontâneas de arte que podiam ser sentidas como ameaça à moral conservadora. Encontramos em Hilda Hilst um ímpeto que articula gesto, palavra, grito, som e fogo, indo além da linguagem para tocar a vida, cujo sentido renasce pelo teatro, assim como pretendia Artaud.
A poeta resolve trazer ao palco o ato de "ensolarar", de dar leveza, trilhando pelo caminho inverso ao escuro e pesado cárcere dos porões do DOPS e do DOI-CODI. Sua poiésis se confunde com o espírito de um tempo que se movimenta e se comunica pelas entrelinhas: liberdade é um grito que se faz quase em uníssono, aproximando essas muitas vozes atormentadas pela inquietude de um país silenciado pelo medo.
A influência do teatro épico de Bertolt Brecht adquiriu proporções consideráveis nos palcos brasileiros desde a Escola de Artes Dramáticas até o Teatro de Arena. Neste último, o teatro passa a ser um propulsor de um projeto de transformação do mundo. Sua trajetória apresenta alguns ícones consagrados do teatro brasileiro, como Eles não usam Black-tie de Gianfrancesco Guarnieri, A revolução na América do Sul de Augusto Boal, e Arena Conta Tirandentes de Boal e Guarnieri. Ambos trazem ao palco o musical Arena Conta Zumbi em 1965, fazendo uma analogia entre a histórica revolta no quilombo de Palmares e a luta contra a ditadura. No segundo ato, a adaptação de um poema de Brecht explicita o convite à ação direta:
Eu vivi na cidade nos tempos da desordem. Eu vivi no meio da minha gente no tempo da revolta. Assim passei o tempo que me deram pra viver. Eu me levantei com a minha gente, comi minha comida no meio da batalha. Amei, sem ter cuidado... Olhei tudo o que via sem tempo de bem ver... Assim passei o tempo que me deram pra viver. A voz da minha gente se levantou e minha voz junto com a dela. Minha voz não pôde muito, mas gritar eu bem gritei. Tenho certeza que os donos dessa terra e Sesmaria ficariam mais contentes se não ouvissem a minha voz... Assim passei o tempo que me deram pra viver.

O Opinião, filho carioca do Teatro de Arena dá o tom de um teatro que mistura tendências em sua musicalidade, trazendo ao palco a voz de Maria Bethânia, que canta Carcará com a força magistral de uma ave de rapina dos confins do sertão nordestino, cuja fúria impele o espectador a uma reviravolta: "Carcará, pega, mata e come!" Figuram entre os musicais do Opinião Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, de Vianinha e Ferreira Gullar e o clássico "Liberdade, liberdade", de Millôr Fernandes e Flávio Rangel.
A ideia de um teatro que dá voz ao povo norteia em grande medida os palcos nas grandes cidades, sobretudo São Paulo e Rio de Janeiro. De acordo com Décio de Almeida Prado, o personagem "povo" figurava dentre os diversos palcos da época, em múltiplas abordagens, desempenhando distintos papéis, mas cuja presença não se pode deixar de notar. "Buscava-se tanto articular a voz do povo, quase inaudível em meio à cacofonia moderna, quanto adivinhar-lhe as obscuras intenções. Obedecia-se ou supunha-se obedecer ao povo, mas também ordenava-se ao povo, em tom exortativo ou imperativo." Para alguns, se tratava de buscar o povo na arte popular, voltando-se aos romances de cordel, ao teatro dos autos pastoris, aos espetáculos de mamulengo, no esforço por um retorno às origens autênticas e primitivas. O operário urbano também desempenha um papel central, ensaiando no teatro o que seria o êxito de um despertar da classe trabalhadora, que cumpriria em cena o seu papel histórico, em sua acepção marxista: a revolução social, o grande acerto de contas entre os oprimidos e seus opressores.
O afronte aparecia de maneira menos explícita no Teatro Oficina, mediado por recursos cênicos que recriavam um universo sombrio, explorando o jogo e a provocação para colocar em xeque os tabus das classes médias. Nas palavras de Roberto Schwartz: "Imitação e indignação, levadas ao extremo, transformam-se uma na outra, uma guinada de grande efeito teatral, em que se encerra e expõe com força artística uma posição política". O Oficina chega ao ápice de sua radicalidade em 1967 com a encenação de O Rei da Vela. Dirigido por José Celso Martinez Corrêa, que introduz o personagem Mister Jones como semblante do imperialismo estadunidense. Esbanjando toda a sua crueza, o Oficina lança luz sobre a sexualidade sem cerimônias, em uma combinação entre cinismo e deboche, que ridiculariza todo o moralismo. O texto corrosivo posto em cena produz um efeito inestimável em seus espectadores. Revolucionário, tanto em forma quanto em conteúdo, o Oficina propõe um antiteatro. O texto é de Oswald de Andrade:

 ABELARDO I
- Com muita honra! O Rei da Vela miserável dos agonizantes. O Rei da Vela de sebo. E da vela feudal que nos fez adormecer em criança pensando nas histórias das negras velhas... Da vela pequeno-burguesa dos oratórios e das escritas em casa... As empresas elétricas fecharam com a crise... Ninguém mais pôde pagar o preço da luz... A vela voltou ao mercado pela minha mão previdente. Veja como eu produzo de todos os tamanhos e cores. (Indica o mostruário) Para o Mês de Maria das cidades caipiras, para os armazéns do interior onde se vende e se joga à noite, para a hora de estudos das crianças, para os contrabandistas no mar, mas a grande vela é a vela da agonia, aquela pequena velinha de sebo que espalhei pelo Brasil inteiro... Num país medieval como o nosso, quem se atreve a passar os umbrais da eternidade sem uma vela na mão? Herdo um tostão de cada morto nacional!

A vaga avassaladora que faz fervilhar o teatro das principais cidades do país ganha a atenção da mídia e do grande público. A censura, que já existia desde a Coroa Portuguesa, não deixa passar em branco a ousadia do teatro brasileiro, tanto do ponto de vista da sexualidade como do que é considerado subversivo na política. Nos anos que se seguiram ao golpe, ainda havia um respiro considerável frente aos agentes da censura, que só assumiram posturas mais contundentes quando o Estado tomou medidas mais radicais, no período que se inaugura com o Ato Institucional número 5 e a declaração de estado de sítio. Em 1968 em São Paulo, uma apresentação do musical "Roda Viva" no Teatro Escobar foi invadida pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC por sua sigla), o elenco foi espancado e o cenário, destruído. Em Porto Alegre, no mesmo ano, alguns atores que participavam do musical foram sequestrados. Após esses acontecimentos, a peça é finalmente proibida. Augusto Boal é preso em 1971 e em seguida mandado ao exílio. No ano seguinte, a repressão ordena o fechamento do Teatro de Arena. Em 1974 o Teatro Oficina se dissolveu. José Celso Martinez Corrêa é preso e torturado. Até a música e a poesia tornam-se perigosas para o regime, que, ao ver-se impotente frente ao florescer das artes, responde com cadeia e exílio para os artistas.

Estamos vivendo em S. Paulo o ano maior do teatro brasileiro. A temporada de 1969 se vem caracterizando por uma sucessão de textos importantes, desde os clássicos até os modernos: mas o que marca este ano como o mais expressivo de nossa história teatral, não é somente o privilégio de podermos ver, antes de dezembro, três Shakespeares (...) um Ibsen (...) um Brecht (...) um Schiller (...) um Molière (...) e um Genet (...). 1969 é o ano do autor brasileiro. E especialmente o ano do jovem autor brasileiro, que está enriquecendo a nossa dramaturgia com um vigor e uma linguagem novas. Há pelo menos 4 lançamentos muito significativos: Fala Baixo Senão Eu Grito, de Leilah Assumpção e O Assalto de José Vicente, já estreados; À Flor da Pele de Consuelo de Castro e As Moças de Isabel Câmara que ainda começarão carreira. Nunca se registrou aqui ou no Rio, um movimento tão rico, atestando, sem discussão, a maturidade do nosso palco. (...) Todos se confessam no palco, exprimem, sem rodeios, a sua experiência, vomitam com sinceridade o mundo que reprimiram nos poucos anos de vida. (...) Eles põe a nu, com uma liberdade de linguagem que poderia assustar certos pudores e os ouvidos tímidos. Como o teatro funciona pela autenticidade, as peças novas representam a iluminação de um mundo interior que a platéia tem o prazer em devassar.

As palavras de Sábado Magaldi inspiram a constatação de Elza Cunha de Vincenzo de que "dos quatro lançamentos significativos, como se vê, três trazem a assinatura de mulheres". Esta onda criativa que incorpora o feminino modifica as bases de um teatro de autoria nacional, quando a prática mais corriqueira consistia em importar textos de grandes autores já consagrados no estrangeiro. O TBC era famoso pela importação de grandes talentos. Estava na hora de nadar na contracorrente do mainstream e inaugurar novos espaços capazes de acomodar essa camada mais jovem, composta também por mulheres, que sorvia o espírito contestador de seu tempo, e colocava em xeque os anacronismos de um teatro que havia envelhecido rapidamente, e não era capaz de propor novas saídas ao mal-estar produzido pelo golpe de 1964 e seus desdobramentos mais contundentes. Após a proclamação do AI-5, os palcos se tornaram perigosos para o status quo. A repressão roubou a cena. O ano de 1969 corresponde ao período imediatamente posterior ao "golpe dentro do golpe" e não por acaso o teatro viu-se obrigado a rejuvenescer: a dinâmica social mudara bruscamente, e se o golpe de 1964 parecia invisível para algumas camadas sociais, inclusive no campo das artes, nesse momento rasga-se o invólucro da invisibilidade para uma repressão mais aberta e contundente.
Sob a égide do poderio militar, os agentes censores, que até então se empenhavam em zelar pela moralidade e pelos bons costumes, passaram a ter um relativo cuidado com a infiltração ideológica nos palcos brasileiros. O teatro politizado coloca em xeque não só os algozes de um regime de exce ão, mas as mazelas sociais que configuram o cotidiano do "cidadão de bem". A escrita de mulheres dramaturgas lançava novos olhares sobre a sociedade.
Por "escrita de mulher", entendo que haja certo deslocamento de perspectiva; olhares a partir de finas angulares cujo prisma perpassa por diferentes maneiras de se apreender o mundo. Simone de Beauvoir já dizia: "Não se nasce mulher, torna-se mulher". O ato de tornar-se mulher pressupõe uma construção histórica do Ser mulher. O que se entende por mulher vai além de um fator fisiológico, mas como a sociedade interpreta a mulher, isto é, de acordo com os valores e premissas de seu tempo. Tais valores são históricos e engendram em seu cerne as relações humanas e as concepções de mundo que norteiam a sociedade no decorrer do processo de construção de uma cultura tal como ela se apresenta no presente. A mulher é designada como Outro, aquele que só se faz existir através de seu duplo transcendente ao qual lhe é subordinada: ao homem. De acordo com Beauvoir, à mulher não se atribui um projeto; seu destino é pautado na repetição cíclica da vida e da atividade humana em sua contingência e facticidade. A partir do lugar de suposta inação imposta de fora, ela age. A partir desse lugar de suposta inércia, ela se movimenta. A partir desse lugar de suposto obscurantismo, ela cria. A partir desse lugar de suposta opacidade, ela brilha. Escrever no feminino implica em driblar as barreiras socialmente construídas, o que exige o dispêndio de esforço criativo e intelectual e a iminência de subjetividades nômades, capazes de contornar, movimentar ou enfraquecer essa barreira. Essa barreira passou por sensíveis modificações no decorrer do período entre a publicação de "O Segundo Sexo" (1949) de Beauvoir e a dramaturgia de Hilda Hilst (entre 1967 e 1969). Não obstante, os deslocamentos subjetivos femininos podem se desdobrar em um imenso leque de possibilidades a partir de diversas abordagens e pontos de vista. Ainda assim, a barreira permanece, acentuando deslocamentos na escrita feminina.

É uma estranha experiência, para o indivíduo que se sente como um sujeito, autonomia, transcendência, como um absoluto, descobrir em si, a título de essência dada, a inferioridade: é uma estranha experiência para quem, para si, se arvora em Um, ser revelado a si mesmo como alteridade. É o que acontece à menina quando, fazendo o aprendizado do mundo, nele se percebe mulher. A esfera a que pertence é por todos os lados cercada, limitada, dominada pelo universo masculino; por mais alto que se eleve, por mais longe que se aventure, haverá sempre um teto acima de sua cabeça, muros que lhe barrarão o caminho.
(Simone de Beauvoir)

No teatro, esses deslocamentos adquirem relevo com a iminência do "teatro intimista". Elza Cunha de Vincenzo observa uma fusão entre o caráter coletivo de um teatro que reflete as questões da sociedade e um teatro individual, que trata da vida doméstica e cotidiana. Uma análise da dramaturgia feminina desse período nos possibilita a chegar a um entendimento de como o coletivo e o individual se davam enquanto relação, e como a sociedade é vivenciada no interior do lar, nas relações entre pais e filhos, marido e mulher, etc. O lar torna-se um espelho difuso do que acontece no mundo do trabalho, nas relações de comunidade e vizinhança. No lar é difícil fugir do campo das contradições, pois no espaço da intimidade os pequenos defeitos adquirem proporções mais agudas, as mentiras não se sustentam por muito tempo e os conflitos são menos velados. A tendência ao "teatro intimista" traz ao palco as nuances do espaço doméstico, observadas por olhos de mulher, que amarram o individual e o coletivo com sensibilidade e humor, incitando a platéia a rir de seus próprios ridículos. O potencial crítico e autocrítico é avassalador, e o riso é explorado por sua função reflexiva, ora como identificação, ora como estranhamento.
Porém a nova dramaturgia não se encerra no espaço doméstico, como constata Vincenzo, e mesmo quando retrata a vida no núcleo familiar, a autora coloca a desnudo o conflito entre o papel da mulher no cotidiano e suas possibilidades. O pêndulo se inclina para a temática da modernização, que assume um viés cultural profundo e avassalador. Segundo a autora:

A dramaturgia feminina que começa a tomar vulto precisamente num dos momentos altos da modernização e da repressão política pós-68 e que representa mesmo, em termos históricos brasileiros, um desdobramento dessa modernização, revela claramente, a partir de seu interior, a presença dos elementos contraditórios que a constituem e definem: por um lado, a liberalização dos costumes, a ampliação e diversificação de oportunidades de trabalho – inclusive para a mulher – , certa mobilidade social que por vezes permite o trânsito de indivíduos de uma classe para a outra; mas, por outro, também os mecanismos do processo que mantém alienados, ao envolve-los em sua trama, os indivíduos em geral, que se utiliza deles para depois descartá-los, que os prepara tecnicamente para determinadas funções, mas os leva em seguida a se desviarem dos objetivos que essa preparação supunha.

Contudo, as autoras que compunham essa nova dramaturgia entre as décadas de 1960 e 1970 encontravam linguagens distintas, evocando imagens que provém de universos particulares e diversificados. Quando está em voga a temática do cotidiano doméstico, cada núcleo familiar adquire as suas peculiaridades de acordo com a visão da autora, e cada história se desenrola dentro de um tempo específico, que dá o ritmo e molda a linguagem, tanto corporal, como textual. As narrativas também ocupam cenários diversos, como o ambiente de estudo e de trabalho, a praça pública, os lugares onde se dá o choque entre o individual e o universal.

A Luz completa-se a si própria
Se Outros quiserem vê-la
Ela se mostra em certas horas
Nos Vidros da Janela.

(Emily Dickinson)

Renata Pallotini figura entre as dramaturgas que precederam a vaga criativa de 1969. Formada em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e em direito pela Universidade de São Paulo, Pallotini foi a primeira mulher a ingressar no curso de dramaturgia na Escola de Arte Dramática em 1961. Sua primeira peça, A Lâmpada, foi redigida em 1958 e levada ao palco em 1960 no Teatro do Estudante de Campinas sob a direção de Teresa Aguiar. A temática já se antecipa ao movimento inovador que dará o tom da nova dramaturgia, enfatizando algo até hoje bastante marginal: a homossexualidade. Em seguida, escreve Sarapalha, adaptação de um conto homônimo de Guimarães Rosa elaborada em função de um concurso de dramaturgia promovido pelo Teatro de Arena. Sua sensibilidade e firmeza em trabalhar a dramaticidade da narrativa de Guimarães Rosa foi muito bem recebida, e levada ao palco por Alberto D'Aversa em 1961. No ano seguinte, escreve e dirige O Exercício da Justiça na EAD, onde ela volta os holofotes para uma imagem de justiça cega, incapaz de ver os estratos marginalizados da sociedade. Vincenzo atenta para os aspectos que conformam e definem uma personalidade própria, inerente à obra da autora:

A manipulação do tempo e do espaço, bem como a intersecção dos vários níveis de realidade, característica da estruturação épica do teatro, será uma das possibilidades técnicas desta autora, e vai revelar-se completamente nas peças dos anos 70 e 80. Mas esta linha épica, desde a primeira peça em que aparece (que é justamente o Exercício da Justiça) assumirá um caráter especial: o da elaboração poemática. Daí podermos considerar o teatro de Renata Pallotini, em sua maior parte, um teatro poético, do qual não está contudo ausente um correto sentido da linguagem coloquial, do dia a dia, e, em alguns casos mesmo, um torneio particularmente popular e brasileiro.

Segundo Vincenzo, esse teatro poemático deu o tom de sua primeira fase, em peças como O Escorpião de Numância (1967), Pedro Pedreiro (1964) e o Crime de Cabra (1961). Este último foi redigido em 1961 e levado ao palco em 1965, brindando à autora os prêmios Molière e Governador do Estado. Foi sua primeira montagem profissional e o que ela traz de peculiar é sedimentar os contornos de um teatro genuinamente popular. Pedro Pedreiro, levado ao palco em 1968, também traz para o centro da cena o protagonismo do homem simples, migrante nordestino que pretende se ajustar ao meio urbano. Em 1973, a autora se depara mais uma vez com a barreira do Estado. Nas palavras de Pallotini:

Terminei de escrever Enquanto se vai morrer... em 1973 e, em julho do mesmo ano, a Escola de Comunicação de Artes da USP, primeira interessada na montagem da peça, através de Moroel Silveira, então diretor do que seria o TECA [Teatro da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo], enviou o texto à Censura. Começamos a esperar pela resposta que não vinha. Depois soube que a censura age também assim: não se proíbe, mas também não se libera. Simplesmente se deixa que o decurso do tempo desgaste e envelheça intenções e projetos.

No fim daquele ano, ela recebe uma resposta negativa, por supostamente contrariar a "legislação em vigor", o que deu vazão ao veto, que impediu sua peça de ser encenada. Vincenzo descreve a peça, buscando dar algumas pistas do que pode ter chamado a atenção dos censores:

Discutia a natureza da liberdade e da punição, tanto quanto a legitimidade dos métodos empregados para obter confissões, a prisão arbitrária, a tortura. E se voltava também para um problema característico do período: o problema do exílio, que além de envolver aspectos humanos evidentes, apresentava traços de um fenômeno político de natureza muito especial: a eliminação violenta e repentina de elementos significativos na vida do país. A eliminação desses elementos abria claros no quadro da vida política e cultural difíceis de preencher, e podia provocar desacertos cujas conseqüências se sentiriam ainda muito tempo depois.

Inaugura-se uma segunda fase do legado dramatúrgico da autora, em um sopro nostálgico que se remete ao passado e à memória de tempos longínquos. Conformado por pequenos fragmentos articulados que compõem um todo coerente, a dramaturgia poética aberta da autora coloca à baila uma multiplicidade de personagens, cenas e grandes painéis. Peças acadêmicas – Enquanto se vai morrer (1972/1973) e Serenata Cantada aos Companheiros (1974) e sua fase ítalo-brasileira – O País do Sol (1982), Colônia Cecília (1985) e Tarantella (1986) caracterizam essa segunda fase, onde se brinda a maturidade de sua obra, que a consagra como uma das mais notáveis dramaturgas brasileiras.
Leilah Assumpção inaugura o ano em que despontam as peças de autoria feminina com Fala baixo senão eu grito em 1969, que recebeu os prêmios Molière e da Associação Paulista dos Críticos Teatrais atribuídos ao melhor autor do ano. Sua encenação contou com a direção de Clóvis Bueno, e com os intérpretes Marília Pêra e Paulo Villaça e se estendeu por longas temporadas em São Paulo, Rio de Janeiro, depois Curitiba, Belo Horizonte e Salvador. Esteve em cartaz por bastante tempo em Bruxelas, além de Paris e Buenos Aires. O reconhecimento imediato brinda a autora com o cânone e suas possibilidades se multiplicam em uma trajetória de sucesso. A peça trata de uma solteirona estereotipada, que se envolve com um soturno ladrão, confundido com suas mais íntimas fantasias. Leilah trata de quebrar o universo feminino, enquanto o ladrão permanece indefinido – uma força viril, alguém real ou um devaneio criado pela mente inventiva da solitária protagonista. Vincenzo o descreve como "algo vindo de fora e que se opõe a princípio a atinge violentamente; e por algum tempo o seu mundo, o mundo ilusório em que se abrigava para defender-se, é abalado."
Para Sábado Magaldi, trata-se do encontro de duas solidões, que pretendem romper com o tédio do cotidiano para propor novos desenlaces. O ladrão apresenta um convite ao erotismo, à fantasia lírica e a uma liberdade caótica que revela que a vida pode ir além daquela vidinha remota e desprovida de sentido. O desfecho, porém, se dá como no despertar de um sonho: sete horas da manhã, hora da labuta, se não se apressar, ela perde o ponto. A trama se encerra com um final realista: triunfa o compromisso. "O Homem quis roubar-lhe a paz artificial dos mortos em vida" – conclui Magaldi. O crítico observa como a autora explora o ludismo, recriando textualmente o jogo teatral, estraçalhando valores cristalizados em pequenos bibelôs, presentes no nosso cotidiano, ao passo que se projetam imagens à revelia da vulnerabilidade humana e suas flutuações. O diálogo físico e corporal exige uma coreografia, que coloca em ação elementos dramáticos, risíveis, grotescos e poéticos, configurando um universo cênico em sua plenitude.

Com Fala Baixo, senão Eu grito, Leilah Assumpção conquista sua cidadania teatral num território fronteiro ao dos novos colegas, em vários aspectos com características iguais às deles, mas acrescentando –lhes uma inconfundível sensibilidade feminina, além de um conceito próprio de espetáculo. A peça inscreve-se no que se poderia chamar de "teatro novo", e ao mesmo tempo o enriquece com uma personalidade estranha, cheia de vida interior e um susto imenso diante do mundo. (...) A encenação encontra matéria-prima, também, para enfeixar o particular e o geral, a experiência precisa e a universalidade, um caso recortado no cotidiano e o diagnóstico amplo de um mundo. Tudo isso faz da estréia de Fala Baixo, senão Eu Grito mais do que uma promessa: a peça é já a afirmação de um talento.

A semelhança temática que lança luz sobre os temas do cotidiano no ambiente familiar leva Vincenzo a caracterizar Fala Baixo, senão Eu Grito como parte constitutiva de um bloco, que denomina "Trilogia da Família", junto a Jorginho o Machão (1970) e Roda Cor-de-Roda (1975). Leilah declara na Folha de S. Paulo de 15.07.1979 que o único fio condutor entre as três peças é o fato de terem sido suas três primeiras levadas para o palco, mas alguns elementos cênicos e temáticos fazem com que Vincenzo insista na idéia de uma trilogia, que se situa no questionamento e na quebra de valores enraizados na família burguesa. A sátira, o estranhamento risível e a ênfase ao papel da mulher, que se vê imersa em novas questões, tais como sua inserção no mundo do trabalho, liberação sexual e excesso de eletrodomésticos e bens de consumo pertinentes ao universo das classes médias, no compasso de uma modernização fascinante e incompreensível.
Isabel Câmara está entre os jovens dramaturgos que estreiam sua carreira profissional em 1969. Seu repertório literário traz à baila referências sofisticadas e uma escrita delicada, pertinente a um universo ficcional onde o escritor, mais que o dramaturgo, dá a última palavra. Sábato Magaldi a considera antes uma escritora, que dramaturga, mas não deixa de enxergar seu potencial: "Pode-se ter a certeza (...) que Isabel Câmara, ao afeiçoar-se mais à linguagem própria do palco, acabará realizando um grande teatro." O rigor da escrita, cujo vocabulário goza de certo requinte, recria um universo enigmático, onde o espectador vagueia por um labirinto de possibilidades que permanecem abertas no decorrer da trama. Sua estreia se dá com a encenação de As Moças, onde a dramaturga retrata as solidões de duas mulheres, a velha tia e sua sobrinha, cuja relação intercala afeto e desafeto, amor e ódio, em um diálogo oscilante, que revela algo além do que a fala pretende. A troca de insultos entre as personagens cria uma aproximação de duas angústias, que encontram subterfúgios diferentes para lidar com o assombro de uma falta de sentido para a existência humana. A paralisia do medo e a entrega aos prazeres frívolos e mundanos entram em choque com violência, mas o estranhamento promove uma identificação entre as possibilidades da mulher se ajustar psicologicamente a uma vida fragmentada propiciada pela ruptura da estrutura familiar tradicional. A problemática da existência desempenha um papel central e tempera a peça com um ar melancólico. São ultrapassadas as barreiras convencionais, por via de um mergulho no universo interior das personagens, em uma perspectiva que combina elementos da psicanálise com a filosofia existencialista. Nas palavras de Sábato Magaldi:

Não se destina a peça ao êxito fácil nem os que gostam de situações claras terão satisfeito o seu desejo. Quando a psicanálise ao alcance de todos se veiculou principalmente num certo teatro e cinema de digestão imediata, As Moças repele as exegeses simplificadas e não esgota, até o fim, a sondagem proposta, porque sugere que há sempre novas zonas a explorar.


Consuelo de Castro inaugura sua carreira como dramaturga com uma voracidade implacável e um engajamento político contundente contra o poderio do Estado ditatorial. "Minha única arma contra a violência é o teatro, que é minha própria violência respondendo à violência deles", diz em um depoimento para Samuel Weirner e Joana Fomm da Revista Aqui, São Paulo em 1976. O conteúdo político de suas primeiras peças entrava em confronto direto com a censura, com a qual teve que bater de frente, em um jogo que intercala proibições e premiações. Ao receber um prêmio pelo Serviço Nacional de Teatro (SNT) em 1976, a dramaturga Consuelo de Castro se manifesta:

Declaro aqui, com toda a raiva do mundo que sinto, que recusarei terminantemente qualquer prêmio do SNT ou de qualquer outro órgão deste governo. Se alguém quiser me premiar, libere minhas peças. Libere Papa Highirt de Vianinha, também premiado pelo SNT em 1968. Libere Plínio Marcos... Deixem a gente ir para o palco, que não é de prêmios que precisamos todos, público e escritores: é de liberdade.
No teatro infantil, a escrita de Maria Clara Machado e Tatiana Belinky é recebida com bastante apreço. A primeira, autora do consagrado "Pluft, O Fantasminha" e fundadora do Teatro Tablado, escreveu incessantemente, do início da década de 1950 até o fim da vida, em 2000, quando lançou sua última peça "Jonas e a Baleia". Sua obra rendeu-lhe prêmios e homenagens carnavalescas, em enredos de escolas de samba como Porto da Pedra, União da Ilha e Unidos do Jacarezinho. Belinky escreveu uma adaptação de "Sítio do Pica-pau Amarelo" de Monteiro Lobato, e o roteiro de "Três Ursos" e "Fábulas Animadas" para a TV Tupi, entre 1952 e 1966. Desde 1948 ela já escrevia peças para o público infantil juntamente com seu marido, o médico e educador Júlio de Gouveia, encenados nos teatros da Prefeitura de São Paulo. Sua trajetória também obtém reconhecimento, rendendo-lhe o Prêmio Mérito Educacional em 1979 e o Prêmio Jabuti de Personalidade Literária do ano em 1989. Ambas conseguem ocupar lugar de destaque e renome, antes mesmo da iminência do teatro politizado sessentista, quiçá por escreverem para crianças, um público bastante particular.
De acordo com Elza Cunha de Vincenzo, podemos entender a inclinação política da dramaturgia feminina sessentista em sua dupla acepção: seja pela política anti-sistêmica que ganha espaço nos palcos brasileiros, seja pelos ecos dos movimentos feministas que eclodem na Europa e nos Estados Unidos. São postos em questão o lugar da mulher na sociedade, o tédio da vida conjugal, os valores cristãos, a sexualidade feminina e homoafetiva. A complexidade dá o tom de uma política que encontra seus opressores não apenas no Estado, mas também dentro de casa. A mulher se recria e se ressignifica no palco, ao sopro dos ventos que aspiram mudanças radicais.

Dalva de Oliveira, Maria Callas, Coco Chanel, Carmen Miranda... Na minha carreira teatral vivo envolvida com mulheres que existiram de verdade. Mulheres fortes e importantes, que me obrigam a um estudo maior da história da época, além da voz e do gestual. Lendo a história delas e o entorno, procuro tirar as minhas próprias conclusões. (...) Não me comparo a elas, porque foram internacionalmente revolucionárias. Mas, se me perguntarem, acho que tenho um pouco da perseverança da Chanel e da alegria e do humor da Carmen. 
(Ítala Nandi)
Inspirada por esse turbilhão criativo, Hilda Hilst não resiste à tentação de mergulhar pelo universo cênico. De acordo com Vincenzo, Hilst não é aplaudida no teatro com os mesmos louvores que a sua recepção poética, permanecendo relativamente marginal. A dificuldade em se destacar como uma mulher dramaturga soma-se aos desafios decorrentes de uma linguagem poética, recheada de recursos líricos e metáforas de difícil compreensão. Mas isso não a impede de ser homenageada em 1969 com o Prêmio Anchieta da Comissão Estadual de Teatro, pela peça O Verdugo. O lugar marginal ao qual a autora foi relegada está em aberto, e suas peças ainda podem ser descobertas por novos e audazes encenadores. Afinal, essas peças falam de descobertas, articulando vozes que sugerem a impotência humana em diferentes cenários. Este trabalho pretende mergulhar nesse universo de descobertas, esboçado e recriado múltiplas vezes pela autora. Ela conversa com os paradigmas do seu tempo numa linguagem misteriosa, que precisa ser analisada detidamente, com cuidado e imaginação.

Ah, essa voz cega, e esses instantes de respiração suspensa em que todo o mundo escuta perdidamente, e a voz que recomeça a tatear, sem saber o que procura, e denovo o ínfimo silêncio, à espreita de não se sabe o quê, (...) um alfinete que cai, uma folha que se agita, ou um gritinho que soltam as rãs quando a foice as cortam em duas (...) Talvez fosse preciso ser cego, cego ouve-se melhor, não são informações que faltam, temos em nossa bagagem afinadores de piano, dão o lá e ouvem o sol, dois minutos depois, não se vê nada de qualquer modo, esse olho é uma miragem.
(Samuel Beckett)



Capítulo II
A CASA QUE HABITO, O CORPO QUE HABITO, O RIO QUE ME ATRAVESSA
Dever cumprido. Eu fiz o que pude. Meu pai não pode fazer isso, ficou louco. Eu pude. Minha mãe me contou que, quando eu nasci, ao saber que era uma menina, ele disse: "Que azar!" Eles, na verdade, se separaram porque minha mãe estava grávida. Ele não queria isso. Queria uma amante. Aí, minha mãe engravidou. Quando ele soube que era uma menina, falou daquele jeito. Uma palavra que me impressionou demais: azar. Aí eu quis mostrar que eu era deslumbrante.

Hilda de Almeida Prado Hilst nasceu no dia 21 de abril de 1930 na cidade de Jaú, no interior paulista. Apolônio de Almeida Prado Hilst, seu pai, era também um poeta e ensaísta, além de jornalista e fazendeiro. Sua mãe, Bedecilda Vaz Cardoso era quem arcava com o sustento da família, já que seu pai fora diagnosticado como esquizofrênico paranóico, e internado aos 35 anos em um sanatório em Campinas. Após a separação dos pais, ela se muda para Santos com sua mãe. Em 1937, é encaminhada para o internato do Colégio Santa Marcelina em São Paulo, onde estuda por cerca de oito anos em um ambiente rígido e religioso. A relação com o pai é regida por fantasias e memórias que marcaram. Ela visita o pai apenas duas vezes. Sua infância é impregnada pelo sentimento de rejeição paterna, mas ela trata isso como uma fonte de inspiração em sua escrita.

Quase todo meu trabalho está ligado a ele [o pai] porque eu quis. Eu pude fazer toda a minha obra através dele. Meu pai ficou louco, a obra dele acabou. E eu tentei fazer uma obra muito boa para que ele pudesse ter orgulho de mim [a voz embarga nas últimas palavras]. (...) Então eu me esforcei muito, trabalhei muito porque eu escrevia basicamente para ele.

Seu primeiro livro de poesias fora publicado em 1950, quando ainda cursava Direito na Universidade de São Paulo em 1948. Poucos anos depois decide dedicar-se integralmente à poesia. Sua produção é vasta, atravessa e dá sentido ao curso de sua vida, perpassando por diversos desdobramentos: poesia, ficção literária, crônicas e teatro.

George Eliot e Charlotte Brontë devem dividir entre elas a paternidade de muitos romances (...), pois revelam o segredo de que o precioso recheio de que os livros são feitos está em derredor, nas salas de visitas e cozinhas onde as mulheres vivem, e se acumula ao tique-taque do relógio. Miss Willatt (...) era capaz de escrever páginas sobre "montanhas que se assemelhavam a muralhas de nuvem, a não ser pelas ravinas fundas e azuis que lhes rasgavam os flancos, e as cascatas diamantinas que caíam brilhando, ora em dourado, ora em púrpura, quando entravam na sombra dos pinheirais, passando depois ao sol para perder-se na miríade de arroios pelo pasto matizado de flores em sua base". Porém, quando ela tinha que encarar seus amantes e a conversa das mulheres nas tendas, ao crepúsculo (...), ela então gaguejava e corava perceptivelmente. (...) A mesma autoconsciência (...) a voz portentosa que unia os diálogos e explicava como as mesmas tentações nos assaltam, seja sob estrelas tropicais, seja embaixo dos umbrosos olmos da Inglaterra.
(Virgínia Woolf )

O corpo na obra de Hilda Hilst lança luz sobre uma multiplicidade de vozes e vontades, que flui como a correnteza de um rio atravessado por ares que sopram de vértices opostos da rosa dos ventos, provocando efeitos bastante avassaladores, descontínuos, e cuja inventividade escorrega na cadência de seus sonhos e desejos mais recônditos.
 
As barcas afundadas. Cintilantes
Sob o Rio. E é assim o poema. Cintilante
E obscura barca ardendo sob as águas.
Palavras eu as fiz nascer
Dentro da tua garganta.
Úmidas algumas, de transparente raiz:
Um molhado de línguas e de dentes.
Outras de geometria. Finas, angulosas
Como são as tuas
Quando falam de poetas, de poesia
 
As barcas afundadas. Minhas palavras...

Esse corpo híbrido que atravessa a poética de Hilst se assemelha a uma concepção de corpo formulada por Friedrich Nietzsche: um corpo habitado por diversos fluxos de força de vontade em permanente dissonância. A força que se projeta com maior intensidade corresponde à vontade de potência (ou vontade de poder). É a vontade que grita mais alto em um dado momento. Nesse jogo de forças não há um vencedor invicto, pois tão logo uma força se sobrepõe às demais, outras vozes se reanimam e preparam terreno para uma retomada. Em Nietzsche, o corpo passa a ser pensado como um campo de batalhas, tendo sua própria história inculcada da medula à epiderme, história que por sua vez coexiste em um cenário mais amplo, atravessado por uma multiplicidade de fluxos de vontade no compasso da sociedade.

Como uma tempestade, percorrem os sóis, velozmente, suas órbitas: é esse o seu curso. Seguem, inexoráveis, a sua vontade: é essa a sua frieza.
Ó seres escuros, noturnos, somente vós criais o calor, haurindo-o dos corpos luminosos! Somente vós bebeis o leite e o bálsamo dos ubres da luz!
Ah, há gelo em volta de mim; queima-se minha mão tocando em gelo! Ah, há uma sede, em mim, que almeja pela vossa sede!
É noite; ai de mim, que tenho de ser luz! E sede que é noturno. E solidão!
É noite: como uma nascente, rompe de mim, agora, o meu desejo – e pede-me que fale.
É noite: falam mais alto, agora, todas as fontes borbulhantes. E também a minha alma é uma fonte borbulhante.
É noite: somente agora despertam todos os cantos dos que amam. E também a minha alma é o canto de alguém que ama.
Assim falou Zaratustra.
(Friedrich Nietzsche)
A história de Hilda Hilst precisa atravessar seu corpo; corpo este que se faz presente a cada momento de sua obra. Corpo híbrido, poesia corpórea e visceral. O teatro de Hilst é um teatro encarnado, ou seja, que atravessa o corpo passando por todos os pontos nevrálgicos e sensitivos, aquilo que Artaud chama de "sensibilidade fisiológica", por onde vibram as cores e suas intensidades, a trepidação, o envolvimento comunicativo, e as paixões, que pululam de um sentido para outro, da palavra para um feixe de luz, do gesto para um grito. Hilst vai além das imagens que a retina capta com retidão, e explora a linguagem para além da palavra literal. A linguagem se corporifica e seus sentidos se expandem abrangendo gesto, voz, tom, respiração, olhar, grito, silêncio, noite. O texto produz imagens que se multiplicam e criam novas possibilidades. Assim como em Artaud:
O encavalamento das imagens e dos movimentos levará, através de conluios de objetos, silêncios, gritos e ritmos, à criação de uma verdadeira linguagem física com base em signos e não mais em palavras. (...) Nessa quantidade de movimentos e de imagens tomados num tempo determinado, introduzimos tanto o silêncio e o ritmo como uma certa vibração e uma certa agitação material, composta por objetos e gestos (...) Pode-se dizer que o espírito dos mais antigos hieróglifos presidirá a criação dessa linguagem teatral pura.
Os sentimentos movimentam o corpo. A separação entre corpo e mente, espírito e matéria não encontra ressonância em Hilst. Seu desejo atravessa o corpo, mas vai além de sua acepção material. Hilst imerge naquela materialidade fluídica da alma, aquilo que Artaud considera indispensável ao universo cênico. Tornar cônscios os pontos onde timbram os afetos, algo que corre no sangue palpitante, em jorros que seguem os movimentos que inspiram e expiram o ar. Com a respiração, circulam os afetos introjetados pelo corpo. Os músculos se contraem em um trabalho extenuante, mas a tensão se alterna com jatos de vazio. A afetividade toca os músculos, e se desdobra de um jogo de respirações por onde penetra a poesia, e irrompe com uma força incomensurável, como sugere o atletismo da alma de Antonin Artaud. Afetos que em Hilst se localizam no frágil limite entre a pele e o desejo.

Empoçada de instantes, cresce a noite
Descosendo as falas. Um poema entre-muros
Quer nascer, de carne jubilosa
E longo corpo escuro. Pergunto-me
Se a perfeição não seria o não dizer
E deixar aquietadas as palavras
Nos noturnos desvãos. Um poema pulsante
Ainda que imperfeito, quer nascer.
Estendo sobre a mesa o grande corpo
Envolto na sua bruma. Expiro amor e ar
Sobre as suas ventas. Nasce intensa
E luzente a minha cria
No azulecer da tinta e à luz do dia.
 
O corpo de Hilst ocupa o espaço do entre-muros, de uma noite adentro que se encontra no limiar do crepúsculo. Algo está para nascer. Seu poema pulsante passa pela respiração, junto com amor e ar, como elementos indissociáveis, alimento indispensável para a alma. O crepúsculo assinala o nascer de um novo dia, de um poema ensolarado que se desdobra em diferentes intensidades de azul. O corpo se estende, se envolve na bruma, é um elemento participante do espetáculo que dá luz a um novo dia.

Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir – nos interstícios de matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.

(Clarice Lispector)
 
Michel Foucault define o corpo como "superfície de inscrição dos acontecimentos (...), lugar de dissociação do Eu que supõe a quimera de uma unidade substancial, volume em perpétua pulverização." A história molda o corpo e o corpo interfere na história, como dois elementos imbricados que se confundem em suas trajetórias. Como em Nietzsche e depois em Foucault, o corpo em Hilst passa pelo poderio do Estado. A violência se faz presente nesse corpo, ele é amestrado por forças que vêm de fora em forma de imperativos e imposições. O corpo resiste: encontra maneiras de burlar aquilo que o impele a um estado de passividade, ele escorrega para depois se expandir pelas brechas onde a ordem de dominação não penetra. Alteram-se os fluxos que atravessam o corpo, altera-se a ordem discursiva; metáforas e alegorias burlam a censura, a expressividade cênica encontra outros meios de dizer o indizível. O corpo assume outras formas para escapar à passividade que lhe é esperada, as antigas palavras se desfazem para dar luz a outras linguagens, a mente encontra subterfúgios para exteriorizar o que foi proibido pelos novos censores.
No contexto do estado de exceção, novos movimentos entram em voga, imprimindo novos ritmos à história, que agora dança "na corda-bamba de sombrinha", sabendo que em cada passo em falso pode se machucar. A analogia expressa na música de João Bosco e de Aldir Branc é apenas uma possibilidade de traduzir em imagens os "malabares" que o artista tinha que aprender em um breve perímetro de tempo para comunicar sua mensagem a um mundo recortado e segmentado por novas fronteiras.
Hilda Hilst traduz os grandes temas de seu tempo em alegorias, cuja assimilação requer um mínimo de criatividade. Metáforas que são mais que metáforas. De acordo com o filósofo John Dewey, as palavras passam por um processo de transmutação: os afetos recriam-se em um casulo até que a palavra alce voo no papel e no imaginário do leitor que imergir nesse universo enigmático. A metamorfose envolve essa conversão, que vai além de criar metáforas, pois não isenta de sentido suas ilustrações, suas evocações táteis, seus perfumes, seus gritos e seus silêncios. Há uma verdadeira fusão desses elementos, que opera para além do que impele diretamente o poeta. Nas palavras de Dewey:

Ao consultarmos os poetas, constatamos que o amor encontra expressão em torrentes impetuosas, em lagos serenos, no suspense que antecede a tempestade, no pássaro equilibrado em seu vôo, na estrela longínqua ou na lua inconstante. E esse material tampouco tem caráter metafórico, se por "metáfora" entendermos o resultado de qualquer ato de comparação consciente. A metáfora proposital na poesia é o recurso da mente quando a emoção não satura o material. A expressão verbal pode assumir a forma da metáfora, mas há por trás das palavras um ato de identificação afetiva, não uma comparação intelectual.

Ampliemos, pois, o conceito de "metáfora", deixemos que ela se dissocie de uma função consciente para alcançar amplitudes mais vastas. Um ato de transportar-se, como um devaneio da imaginação, algo incomensurável, que transpõe os limites das palavras e seus significados. Gaston Bachelard vê na poesia uma espécie de "convite à viagem", algo que vai além de uma imaginação evasiva. O convite do poeta nos propõe um doce impulso, que quando posto em voga é capaz de provocar abalos sísmicos. Desperta um "devaneio salutar", que se desdobra em uma sucessão de imagens, flutuando na imaginação. Nas palavras de Bachelard:

Esse movimento não será uma simples metáfora. Nós o experimentamos efetivamente em nós mesmos, quase sempre como um alívio, como uma facilidade para imaginar imagens anexas, como um ardor em perseguir o sonho encantador. (...) Uma realidade iluminada por um poeta tem pelo menos a novidade de uma nova iluminação. Já que o poeta descobre um matiz fugidio, aprendamos a imaginar todo matiz como uma mudança. Só a imaginação pode ver os matizes; ela os apreende na passagem do uma cor para outra. Há neste velho mundo, portanto, flores que tínhamos visto mal! Tínhamo-las visto mal porque não as tínhamos visto mudar de matizes. Florescer é deslocar matizes, é sempre um movimento matizado. Quem segue em seu jardim todas as flores que se abrem e se colorem já tem mil modelos para a dinâmica das imagens.

As imagens que a poesia evoca estão em constante movimento, e só podem ser traduzidas quando sorvidas pelo imaginário, por pequenos córregos que ora seguem solitários em seus capilares fios, ora se encontram em magníficas cataratas. Deslocamentos, gotejos e relampejos moldam a poesia e a prosa de Hilda Hilst, como uma caverna repleta de estalactites móveis, que se enche de luz em certo momento do dia, para depois se esvair na escuridão profunda. Essas estruturas enigmáticas de Hilst não são apresentadas de forma pronta, pois sua linguagem aberta permite sempre novos deslocamentos.
No posfácio da compilação do Teatro Completo de Hilda, publicada em 2008, Renata Pallotini procura revelar em termos gerais o que está em jogo em cada peça, ou seja, uma entre as muitas leituras possíveis. Meu intuito é manter uma linguagem polifônica, onde há margem para diferentes leituras possíveis. Interessa a complexidade, os fios que se entrelaçam e irrompem num emaranhado aparentemente incompreensível, mas que, se vistos de perto em relação com os outros, podem esboçar uma imagem mais densa e em finos traços da artista.

É bom que seja assim, Dionísio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora. (...)
Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá. (...)
Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado, te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.
E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu
Ainda que tu me vejas extrema e suplicante
Quando amanhece e me dizes adeus.

Hilda Hilst presta suas reverências ao deus Dionísio e evoca seu próprio estado de transe, entre os desafetos e seus mais recônditos ímpetos. Como uma mênade, suas palavras dançam à beira de um abismo, libertam-na de suas angústias, por via de um estado de êxtase que se despe de um fluxo que aproxima música com o corpo, o corpo com outros corpos, o corpo com a natureza, numa espécie de reconciliação que vai para além do corpo mesmo. Assim como em um rito dionisíaco, sua poesia restabelece a ordem cósmica. Em meio a rodopios dançantes, chega ao dispêndio de desaprender a falar. A experiência transcende a fala.
Estou absolutamente cansado de literatura; só a mudez me faz companhia. Se ainda escrevo é porque nada mais tenho a fazer no mundo enquanto espero a morte. A procura da palavra no escuro. O pequeno sucesso me invade e me põe no olho da rua. Eu queria chafurdar no lodo, minha necessidade de baixeza eu mal controlo, a necessidade da orgia e do pior gozo absoluto. O pecado me atrai, o que é proibido me fascina. Quero ser porco e galinha e depois matá-los e beber-lhes o sangue.

(Clarice Lispector)

Entre beleza e verdade, entre medida e desmedida, entre a lucidez e a embriaguez há um universo intermediário que torna possível tal conjugação. O apolíneo e o dionisíaco estabelecem esse frágil laço por um jogo, que consiste em não se deixar levar completamente pela embriaguez. Em seus versos é possível ouvir o doce timbre da flauta em seus delicados arranjos, que se mistura ao ritmo frenético dos tambores de Dionísio, inspirando o corpo a movimentar-se, na espreita de atingir o ápice de um transe inebriante no qual o indivíduo se esquece de si, abdica de sua vida profana para penetrar um universo sagrado. É do sagrado que trata sua poesia. Por esses caminhos labirínticos que Hilst inaugura, corre o vinho, os sonhos, os ímpetos que fazem um movimento de dentro para fora, expelindo algo da ordem do mistério, do íntimo. O inacessível torna-se acessível pela embriaguez e pela eventual perda das estribeiras.
Nietzsche diz em Crepúsculo dos Ídolos:

Para que haja arte, para que haja uma ação ou uma contemplação estética qualquer é indispensável uma condição fisiológica prévia: a embriaguez. É mister que a embriaguez tenha aumentado a embriaguez de toda a máquina; sem isso a arte é impossível. Todos os tipos de embriaguez, ainda que estejam condicionados o mais diretamente possível, têm a potência artística e acima de todos, a embriaguez da excitação sexual, que é a forma de embriaguez mais antiga e primitiva. (...) O essencial na embriaguez é o sentimento de força e de plentitude.

Isso que Nietzsche chama de embriaguez aparece como um estado de consciência difuso, que consiste em deixar-se levar de maneira a ultrapassar os limites que a sociedade edificou em nossos corpos por meio da introjeção de uma auto-censura. Esse estado de embriaguez nos ajuda a driblar com maior facilidade os nossos mecanismos de censura, adquirindo leveza e intensidade, trazendo para fora algo que estava resguardado, aquilo que Hilda Hilst chama de "o de dentro". É um ato de extravasar inerente ao processo criativo.

Conquistando um fulcro potente na garganta
Um látego, uma chama, um canto. Ama-me
Embriagada. Interdita. Ama-me. Sou menos
Quando não sou líquida.

Antonin Artaud certa vez dissera: "Há em todo demente um gênio incompreendido, cuja idéia que luzia na cabeça provocou medo, e que só no delírio pode encontrar uma saída para os estrangulamentos que a vida lhe prepara". No texto ele se referia a como Van Gogh caiu em descrédito frente ao moralismo da sociedade, que, incapaz de compreender a genialidade, não encontrara outra palavra para defini-lo que não a de um louco, e como louco foi condenado a sofrer as mazelas da vida hospitalar, dos manicômios, de um certo tipo de tratamento que a sociedade de seu tempo conferia aos ditos loucos. Mas aquilo que chamam de "loucura", seria exatamente esse lugar inventivo de alguém capaz de criar na tela as cores e as , em que configuram nas pinceladas seus devaneios. Algo que, dadas as devidas proporções, podemos dizer que Hilst faz em sua escrita. Quando faltam palavras, ela cria, ela estilhaça sua própria medida, se reinventando a todo momento em suas descargas de emoções, que vêm como em um turbilhão, todas juntas, sem discernimento.

E você de papisa, você no meio do seu jardim com o seu revólver. Não, não. No seu jardim muito perfumado, cheio de rosas vivas, cheio de gente. Você os matou, você lhes tirou toda a decência. Safada. Pare, pare. Essa lucidez escorrendo sobre as coisas. Eu, o irmão pederasta, sou lúcido, mas os acontecimentos me invadem,...

Os personagens fugidios dos contos de Hilda Hilst revezam-se para expressar essa fluidez na qual correm descargas de lucidez e de loucura, sempre no limiar, como se os estados de consciência estivessem imbricados de tal forma que um não existiria sem o outro. O dia não existe sem a noite. Ela fala no solar, mas a escuridão para ela adquire um sentido mais enigmático que a idéia bíblica das trevas, do perverso e do sombrio. Do mesmo modo, o sagrado aparece em Hilst como algo entrelaçado ao profano. O lugar de ambos é no corpo. O corpo entendido como um corpo genérico, humano, animal ou vegetal, por onde corre sangue ou seiva, dor e prazer. A dimensão sagrada é algo que está no "de dentro", naquilo que não se pode ver a olho nu. Sua curiosidade a leva a dissecar esse corpo em busca de uma essência sagrada, e a esse corpo dirige toda a sua angústia frente às mazelas do mundo.

E só dar dois três passos, ver o olho do cavalo, ver o olho da vaca, ver o homem meu Deus, o homem, esse abismo mais fundo que me come, meu Deus a memória tristíssima de tanta inocência, como eu gostaria de arrancar a minha pele sem medo e mostrar o meu todo para o outro. Ele dizia meu Deus, assim com esse corpo, assim com esse sangue, AHHH, eu existo até onde, eu existo até... até... até que grande muro eu existo?

A autora fala em Deus, acredita e desacredita, pergunta, questiona, duvida, reafirma. Testa os limites desse limiar entre o sagrado e o profano, e traz algo do sagrado para o carnal, para o proibido, para o íntimo. Alcir Pécora aponta "A obscena senhora D" como a obra em que os grandes temas da autora confluem para um maior equilíbrio.

Estão aí (...) os votos amorosos, sinceros, terrenamente sensuais, até os extremos dramáticos de despojamento em favor do outro pelo bem dele mesmo; as inquietações metafísicas mais sanguíneas e arrebatadas, como as dúvidas teológicas mais rigorosamente inteligentes, nascidas muitas vezes como questões do corpo, mas perdidas já de seu caminho, desviadas de todo hábito, pisando num terreno em que o método aporético tanto pode ser loucura, quanto ciência.

O corpo é celebrado em sua obra como algo intimamente conectado com o universo e o meio ambiente. Em algumas obras, o corpo humano metamorfoseia-se no de um animal, como no caso do personagem que se transforma em unicórnio em um dos contos de Fluxo-Floema. Homens-lobo reaparecem em algumas de suas obras. Uma mulher é penetrada pela cauda de uma serpente, homens ganham asas, asas se quebram. Homens confundem-se com porcos. Há em Hilst uma profunda identificação entre o humano e o animal, o animal no humano, o desumano no humano, o humano no animal. O corpo fareja, rumina, grunhe, ruge e devora em seus estados de espírito que titubeiam frente aos acontecimentos. Essa textura líquida não é uma exclusividade do corpo humano, ela é uma força que funde o sangue e a seiva, a pele e as encostas crispadas por onde correm os afetos, as cavidades das vísceras e as cavernas, os vulcões por onde corre o deleite, os pulmões por onde respira o universo. Está tudo misturado, como em um elixir que é ao mesmo tempo veneno, que se desfaz em gotas infinitas, assumindo as mais incríveis formas: é dessa matéria que é feito o mundo. Matéria transcendente. O sagrado se encarna, o profano cria asas, depois tudo se dissolve e o ciclo recomeça.

Todo o seu corpo se tornara neblina. Só seus olhos brilhavam, como se, modificados, vivessem só por si mesmos; olhos sem corpo; olhos cinza-azulados, vendo alguma coisa invisível. Movendo-se no ar nublado e irradiando seu brilho, de modo a serem na atmosfera sepulcral – havia névoas na janela e, nas lâmpadas, halos de bruma – como luzes dançantes, como fogos-fátuos que se movem sobre as campas dos dormintes inquietos, segundo dizem, nos cemitérios. Uma idéia absurda? Mera fantasia. Entretanto, já que nada há que não deixe algum resíduo, e como a memória afinal é uma luz que dança na mente quando a realidade é sepulta, por que não haveriam de ser os olhos, que ali brilhavam tanto ao mover-se, o fantasma de uma família, de uma era, de uma civilização que dança sobre o túmulo?
(Virginia Woolf)

A fantasia desempenha um papel furtivo no imaginário da autora, que se entrega a seus devaneios como quem se atira do cume de um rochedo com a certeza de que pode voar. Ela voa alto, com suas asas de águia. Quando mergulha, cria escamas. Tudo o que faz parte de seu pequeno paraíso recluso, a Casa do Sol, é ingrediente para o seu caldeirão inventivo, onde a magia sorve as pequenas gotas cintilantes, que borbulham em sua mente fértil. O resultado ela joga no papel. A linguagem vem do corpo, corpo habitado pelos gritos e pelos silêncios do mundo, como se pudesse reter o universo dentro de si.
O corpo é levado ao extremo do grotesco, contornado por hipérboles, dotado de orifícios por onde saem excrementos. Esse corpo é capaz de vomitar palavras, sentimentos. Desbocada, Hilst não hesita em falar palavras obscenas, e evocar a sexualidade de maneira explícita, gozando de detalhes escatológicos. Essa fase grotesca encontra sua expressão máxima com a trilogia obscena no início da década de 1990, composta por O caderno rosa de Lori Lamby, Contos d'escárnio e textos grotescos e Cartas de um sedutor. Segundo Mikhail Bakhtin:

...A lógica artística da imagem grotesca ignora a superfície do corpo e ocupa-se apenas das saídas, excrescências, rebentos e orifícios, isto é, unicamente daquilo que faz atravessar os limites do corpo e introduz ao fundo desse corpo. Montanhas e abismos, tal é o relevo do corpo grotesco, ou, para empregar a linguagem arquitetural, torres e subterrâneos. (...) O grotesco ignora a superfície sem falha que fecha e limita o corpo, fazendo dele um fenômeno isolado e acabado. Também, a imagem grotesca mostra a fisionomia não apenas externa, mas ainda interna do corpo: sangue, entranhas, coração e outros órgãos. Muitas vezes, ainda, as fisionomias interna e externa fundem-se numa única imagem.

Natureza e corpo estão imbricados, e o sangue que corre em nossas veias pode se desdobrar no fluxo de um rio nascente. Para Bakhtin a ênfase na excrescência e na cavidade sugere a idéia cíclica de renovação, presente nos tempos da natureza. O mesmo também alude à própria idéia de concepção, tanto no ato consumado, como nos atributos fisiológicos que tornam possível o coito sexual levar a cabo sua função vital. Vitalidade e vida inscrevem-se em uma dimensão cósmica e universal. Segundo o autor, o corpo grotesco engendra elementos cósmicos tais como:

Terra, água, fogo, ar; ele liga-se diretamente ao sol e aos astros, contém os signos do zodíaco, reflete a hierarquia cósmica; esse corpo pode misturar-se a diversos fenômenos da natureza: montanhas, rios mares, ilhas e continentes, e pode também encher todo o universo.

Embora haja uma fase em que os aspectos grotescos adquirem uma dimensão mais enfática na obra de Hilst, traços desse corpo grotesco acompanham a sua escrita, ainda que a linguagem não permaneça a mesma, seguindo o emaranhado complexo de uma escritora que se dedicou à poesia, à prosa, a contos e crônicas sobre diferentes temas. O corpo é mais que um tema, ele é parte constitutiva de sua escrita: tudo em Hilst passa pelo corpo. Ela disseca o corpo, corta a carne e abre para ver como é "o de dentro":

Vestíbulo do nada. Até... onde está a lacuna. Vê, apalpa. A fronte. Chega até o osso. Depois a matéria quente, o vivo. Pega os instrumentos, a faca e abre. Koyo, não entendes, vestíbulo do nada, eu disse, aí não há mais dor, aprende na minha fronte o que desaprendeste. Abre. Primeiro a primeira, incisão mais funda, depois a segunda, pensa: não me importo, estou cortando o que não conheço. Koyo, o que digo é impreciso, não é, não anotes, tudo está para dizer, e se eu digo emudeci, nada do que eu digo estou dizendo.

O corpo também é feito de silêncios. Nem tudo é expresso em palavras, palavras podem ser supérfluas ou imprecisas. Nessa escrita aberta e corporificada, Hilst busca ressaltar o espaço do interstício, dois vazios necessários, onde tudo se cala. Se estamos tão intimamente ligados ao cosmos, precisamos aprender a sentir o universo, expandindo os nossos sentidos para além da fala. Pegar na terra, senti-la entre os dedos, aspirar o perfume que se exala dos crisântemos, saborear as tâmaras, estender o corpo sob o sol, respirar, não pensar em nada.

Por intuições e por sofismas
O coração fica sabendo
Sobre o Nada – "Nada"é a força
Que renova o mundo.

(Emily Dickinson)




Capítulo III
A LÍRICA DE HILST INVADE O PALCO

O lírico, enquanto voz do íntimo, do subjetivo, da emoção e do irracional, enquanto fala do eu do poeta, também toma sua parte nessa penetração, quando o dramático ideal do teatro cede espaço às vozes do não-lógico, da sugestão e do sentimento. (...) O lírico no drama é, muitas vezes, a voz da impotência humana. Outras vezes é a expressão de uma profunda perplexidade diante de um deus absurdo, ou do Absurdo simplesmente como tal, ou de uma das constantes do Absurdo, a incomunicação.

Assim a dramaturga Renata Pallottini trata o teatro de Hilda Hilst como uma abordagem lírica no campo da dramaturgia, escrita por uma poeta por excelência. Quando a poesia lírica invade o palco, as torrentes de significações tramitam de personagem para personagem, colocando para fora algo que vem de dentro: desejos, anseios, angústias, medos, silêncios. O lírico traz para a cena a expressão de uma impossibilidade. A ação encontra uma barreira, um interdito que coíbe sua realização. A palavra entra em descompasso com o corpo de personagens atravessados por certa angústia inerente aos limites do que é humanamente possível. Algo que grita de dentro, um anseio por desafiar as leis da gravidade, algo que almeja transcender o humano e ir além do que se acredita real. Essa vontade de transcendência opera por uma certa metafísica, como uma força que vem de fora e acima do humano, algo que se busca no palco, e que gera um sentimento de paralisia. Seus personagens, como afirma Pallottini, lançam-se "desesperadamente contra o muro da sua própria impotência", assim como os personagens de Samuel Beckett, que passam dias a se torturar numa ansiosa espera pelo Sr. Godot, esse alguém que pode ser que venha, pode ser que não venha nunca. O Absurdo não precisa ser algo de grandioso, mas exige um deslocamento no que ordinariamente se vive no cotidiano, uma ruptura com a normalidade aparente.

ESTRAGON: Enquanto esperamos, vamos tratar de conversar com calma, já que calados não conseguimos ficar.

VLADIMIR: É verdade. Somos inesgotáveis.
ESTRAGON: Para não pensar.

VLADIMIR: Temos nossas desculpas.

ESTRAGON: Para não ouvir.

VLADIMIR: Temos nossas razões.

ESTRAGON: Todas as vozes mortas.

VLADIMIR: Um rumor de asas.

ESTRAGON: De folhas.
(...)

Longo silêncio.

VLADIMIR: (Angustiado) Diga alguma coisa.

ESTRAGON: Estou tentando.

VLADIMIR: (Angustiado) Diga qualquer coisa!

ESTRAGON: O que vamos fazer agora?

VLADIMIR: Estamos esperando Godot.

Os personagens de Hilda Hilst são construídos com cuidado, como expressão de sentimentos, desprovidos de personalidades definidas e estruturadas em um sentido lógico. Os fluxos de vontade criam os personagens, subjetivados pelas vozes que atravessam a poeta. A escrita de Hilst persegue o que é limítrofe, o que está por um triz de explodir em mil pedacinhos, como um momento apocalíptico, mas que não se encontra do lado de fora, e sim no interior de seus personagens. A dramaturgia de Hilda Hilst fala das crises que interpelam as tramas; crises estas que estão inscritas no seio de uma grande crise, que é a crise da poeta. Fala de uma busca por Deus. A escrita de Hilst se embebeda de dor e prazer nessa busca labiríntica, que é capaz de dar mil voltas, mergulhos e sobrevoos. Para ela, Deus não é uma metáfora, é essa força estranha que pertence à ordem do enigmático, de um amor humanamente impossível. Hilst toma todas as liberdades na formulação de seus enredos, levando os recursos líricos ao ápice. Ela mistura poesia e prosa, e tempera suas tramas com elementos épicos, que se dissolvem em uma narrativa mais livre, como no leito de um rio em movimento. John Dewey vê na experiência poética um fluxo singular:

Um rio, como algo distinto de um lago, flui. Mas seu fluxo dá a suas partes sucessivas uma clareza e interesse maiores do que os existentes nas partes homogêneas de um lago. O todo duradouro se diversifica em fases sucessivas, que são ênfases de suas cores variadas. Por causa da fusão contínua, não há buracos, junções mecânicas nem centros mortos quando temos uma experiência singular. Há pausas, lugares de repouso, mas eles pontuam e definem a qualidade do movimento.

Seu movimento pode ser tempestuoso, a depender dos ventos que assopram da nau à proa. A dramaturgia de Hilst surge em meio a um redemoinho avassalador, num período em que o mundo externo era sentido à flor da pele. Foi quando o Estado colocou suas garras para fora, rasgando o invólucro de uma aparente normalidade, que primou nos anos que sucederam ao golpe militar de 1964. O teatro responde a um grito interno que irrompe no intuito de dizer o indizível, para fora e para além do papel. Se o corpo ocupa um lugar central em sua escrita poética, na dramaturgia o corpo encarna os seus anseios, e aciona outras formas de comunicação que literalmente saem do papel, abrangendo gesto, voz, espaço, luz, sombra e silêncio.
"Nós vivemos nu mundo e que as pessoas quere se comunicar de uma forma urgente e terrível. Comigo aconteceu também isso. Só a poesia já não me bastava (...) Então procurei o Teatro." Sua declaração atesta essa necessidade de comunicar isso que o Estado procura silenciar, algo que urge da ordem de seu tempo, algo que quer desesperadamente ser posto para fora. A barbárie humana é um tema bastante tratado e suas peças, mas sempre como um personagem sem corpo, algo que se faz presente mais pela invocação do medo que por seus capatazes. Esse teatro alegórico recria seus mais recônditos desejos personificados, mas cuja ação é irrealizável. Não há panacéias. As asas se quebram, a alma se dilacera, mas há sempre uma força que persiste no limiar. Uma voz que escapa, alguém que indaga, um estranhamento face ao Absurdo. É disso que trata a dramaturgia de Hilda Hilst.
A dificuldade reside em dar corpo a esses personagens alegóricos. As imagens que o texto evoca não são de simples compreensão, e sua abstração característica de uma linguagem mais poética que cênica, apresenta empecilhos para sua realização. O fato é que suas peças foram poucas vezes levadas ao palco. Isso não a impediu de ser elogiada por Anatol Rosenfeld, cujas expectativas foram superadas ao assistir a O Rato no Muro e O Visitante, ambos encenados sob a direção de Teresinha Aguiar, no Teatro da Escola de Artes Dramáticas da Universidade de São Paulo (EAD / USP). De acordo com Elza Cunha de Vincenzo:

Uma dificuldade de interpretação que provém não só da linguagem de teor intensamente poético (a mesma, aliás, de sua prosa), como do tipo de universo ficcional que elabora, da complexidade das ideias e do " sentimento do mundo" que exprime naquela linguagem, enfim, da própria qualidade quase lírica da construção dramática que adota. Na realidade uma construção livre, de onde praticamente desapareceram as balizas do tempo, em que o espaço é no mais das vezes o símbolo de certo universo e o lugar e que se movimentam personagens tipificadas, vivendo intensas experiências de pensamento e de emoção.

A linguagem complexa e sofisticada em sentido poético abre espaço à possibilidade de uma interpretação criativa, cuja imagética pode ser explorada de diversas formas. As temáticas de teatro tratam das questões de seu tempo: a barbárie, a impossibilidade do amor, os muros que nos cerceiam, uma desconfiança frente ao avanço de uma ciência que serve de matriz explicativa para tudo e indagações sobre o que é humanamente possível. A dramaturgia de Hilda Hilst é escrita no terreno das incertezas, onde a dúvida cumpre um papel central. Perguntar é perigoso, perguntar é um elemento desestruturante e está na base do estranhamento das situações absurdas que ela recria em suas peças.
As rubricas que precedem cada peça trazem à baila a relação entre cenário, figurino e a construção afetiva dos personagens, no intuito de conferir maior fluidez à peça, sem preocupação de tecer algum tipo de nexo, mas para que o personagem acompanhe os fluxos e as intensidades que atravessam os enredos. A autora sugere impressões e sentimentos que devem incidir sobre a espacialidade cênica. Além de rubricas, ela inclui desenhos, imagens que situam o palco em relação à plateia. O apelo imagético procura exprimir a espacialidade por onde circulam os afetos e as angústias no centro da trama, estabelecendo linhas fronteiriças, que ora se alargam, ora se estreitam, aproximando ou distanciando os personagens em cena, e sua relação com o público. O palco pode ser o espaço intimista do lar, o encolhimento claustrofóbico de uma cela, o misterioso e inóspito laboratório de experimentos científicos, o arcaico e empoeirado tribunal ou adquire dimensões externas: a praça pública, o átrio do colégio, a sacada papal.
Os ambientes que a poeta recria fazem alusões a um paralelismo entre outros tempos históricos e situações que simbolizam algo vivido de dentro para fora, sentimentos de alhures que se remetem ao momento atual através de uma simbologia inerente à ordem do sensível. Por esse fio condutor corre um grito silenciado, onde a poeta assume sua voz mais política. Para falar da ditadura, ela volta no tempo e cria um paralelismo com o Holocausto, ou pendura cadáveres nos postes. Sons de rajadas de metralhadora irrompem o silêncio em uma longa e extenuante sessão no julgamento do guerrilheiro, provocando um estranhamento reflexivo, pois não fica claro de quem são as armas: da justiça ou dos justiceiros. Estátuas de santos ou caudilhos, algumas brancas, outras desgastadas pelo tempo, um grande tabuleiro de xadrez, um muro gigantesco, entre outros recursos, veiculam suas críticas, que se dirigem ao que vivencia em seu tempo sem a necessidade de palavras. Algumas palavras são supérfluas.
Esse paralelismo temático se dá, em parte pela necessidade de se esquivar da censura vigente para se referir à ditadura e, por outro lado, é expressão da própria linguagem poética da autora, que se desdobra em metáforas para dar forma aos seus anseios. A dimensão política em Hilst se volta para dentro, e busca nos mais íntimos recônditos da alma uma relação com o mundo externo, ou seja, como o de fora é sentido no íntimo. Para tornar possível esse mergulho na intimidade, Hilst recorre a alguns temas autobiográficos, como no caso de A Possessa, onde a trama ocorre em um pensionato de freiras, e a protagonista é uma menina perseguida por perguntar demais. Algo semelhante fora vivenciado em seu passado, nos anos em que a autora cursara o ginasial no internato de freiras da Escola Santa Marcelina. Embora esta seja a forma mais direta de identificação entre a vivência pessoal e a configuração temática, ecos de seus anseios se deslocam para dar vida aos afetos de seus personagens. Pelo deslocamento, a poesia encontra sua dimensão prosaica, poemas se convertem em voz, corpo, palavras e movimento, e adquirem espacialidade. Pelo deslocamento, Hilda traz para o palco aquilo que é de sua vida, e de como ela se relaciona com o cosmo que a transcende. Os personagens transitam de um para o outro, em um campo abstrato, onde desejos e sentimentos ultrapassam as definições que os personificam, apresentando-os, antes, como metáforas desses fluxos. O verbo não é entender, mas sentir.
De acordo com a leitura de Éder Rodrigues, a autora:


Compartilha de uma tessitura de plano simbólico quando recorre não a personagens estruturados, facilmente nomeados e de realística inserção no meio. No teatro hilstiano os personagens muitas vezes nem são nomeados, funcionam no aspecto simbólico situacional de onde se encontram ou da cíclica rede de significados que performam no decorrer da ação. Os aspectos simbólicos operam ainda na estratégia que a autora utiliza para falar de um sistema externo a partir do interno, do micro para alcançar o macro onde se insere e pelo qual responde enquanto artista enunciadora.

Essa ordem do simbólico exige um trabalho mais atento, que se atenha aos fluxos sensitivos que atravessam o pensamento da autora, tramitando de personagem para personagem, no intuito de acompanhar seus movimentos vitais. É preciso percorrer a tessitura dessa rede de significados, desatando os nós que se entrelaçam na complexidade do seu imaginário inventivo. Para entender suas sutilezas, seria interessante aproximar de seu teatro os conteúdos de sua obra poética.
No próximo capítulo pretendo decodificar sua linguagem labiríntica, mas sem a pretensão de desvendar seus mistérios. Limito-me a pontuar lugares-comuns em sua cartografia afetiva. Interessa preservar sua estrutura aberta, ampliando o leque de significados que podem estar implícitos na estrutura narrativa, nos diálogos entre os personagens e nas entrelinhas. Mapear a transitoriedade, a partir de uma análise sensitiva, entre as vozes, os ecos e os silêncios que tramitam em seus personagens pitorescos. Como se distribuem os corpos nos espaços cênicos recriados pela autora? Pretendo lançar um olhar mais atento aos deslocamentos, aos movimentos, e aos afetos que circulam por entre os corpos. De quais corpos estamos falando? Que função eles desempenham? Quais os gritos, os barulhos, os ruídos, os silêncios, quais vozes habitam esses corpos? Cabe localizar os interditos e os estímulos que atravessam os corpos dos personagens. Que política governa esses corpos?
Das oito peças escritas pela autora, selecionei duas: a primeira é a A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção, concluída em 1967. É a primeira peça teatral escrita por Hilst. A segunda é O Verdugo, a penúltima peça teatral de sua carreira, escrita em 1969. Neste mesmo ano, ela é consagrada com Prêmio Anchieta de Dramaturgia. Enquanto a primeira peça inaugura o deslocamento de sua escrita poética para o engajamento político através do teatro, a segunda alcança o clímax de sua carreira como dramaturga, com um texto cenicamente completo. Ambas as peças tramitam em torno da liberdade, temática recorrente em toda a sua obra teatral, e bastante relevante em sua poesia. Em ambas, os caminhos de libertação percorridos pelas protagonistas seguem direções radicalmente destoantes, mas abordam duas facetas de um mesmo problema: a opressão da mulher. Este tema aparece em ambas as peças, e enfatiza corpos dilacerados, seja pelas mazelas cotidianas, seja pela exceção que dita a regra.




Capítulo IV
A EPOPÉIA DE AMÉRICA E A BEATITUDE DA VERDADE

A peça se passa em um internato de freiras. América é a jovem no centro da trama, acusada de formular perguntas petulantes, de compartilhar seus sonhos mirabolantes e inquietar corações. Tudo começa pelas perguntas a que as freiras são incapazes de responder, por partir de outras premissas que não as verdades petrificadas pelo Cristianismo. O lugar de quem pergunta é outro. Pelo amor à ciência, ela questiona os dogmas da Igreja. Pelo amor ao progresso, ela questiona a ordem das coisas. Seria preciso um deslocamento, de um vértice a outro, do essencialismo ao logocentrismo, a fé se orienta para um Outro Deus, capaz de explicar o mundo e dar respostas às perguntas da jovem América.
A primeira cena se inaugura com uma conversa entre América e suas postulantes, em que América, em tom professoral, discorre sobre a saga de um herói, cujo nome não parece ter para Hilst a menor importância. Um herói genérico, que manda matar algumas pessoas, mas frente a um perigo de vida, sempre uma situação limite, questionada por uma de suas postulantes mais astuta. O herói que tinha uma tarefa, uma idéia grandiosa, um amor de herói.

In golden light you flow. Firm density, so light. Before the separation of earth and sky, sea and continents, light and dark. A mixture of rock,, fire, water, ether. Where violence can still espouse gentleness. The heroic body overflowing with tenderness. Its weapons still those of a native innocence. Which blurs all Sharp distinctions and brings all divisions back to the original nuptials. An alliance in which the opposing parties unite in an intense intermingling.
(Luce Irigaray)

Preocupado e ao mesmo tempo interessado em suas histórias, o Monsenhor resolve recebê-la em seu escritório. Diferente das freiras, que reprovam diretamente sua conduta, Monsenhor desempenha um papel mais ambíguo: ele a adverte, recomendando-lhe a ter cautela, mas considera prudente ouvir aquilo que as freiras pareciam incapazes de compreender. Ele quer ouvir suas histórias, e ela as narra de bom grado. Ela fala de máquinas pequeninas e ruidosas, que ficavam dentro de caixinhas de matéria brilhante. Seus nomes eram Eta e Dzeta. Elas se alimentavam de luz e percorriam sempre o mesmo caminho no interior de suas respectivas caixas. Elas viviam sob a tutela de um Vigia, que acompanhava seus movimentos dia e noite. Até que um dia elas oscilaram. Gradativamente, passaram a modificar seus percursos. Seus invólucros acabaram por ludibriar o Vigia, que deixara de enxergar aquilo que as impelia a proceder sempre à mesma maneira, o que está dentro, seu núcleo de ação. Etza e Dzeta eram resultado de pesquisas tecnológicas de ponta, produto de um cálculo racional. Mesmo assim, falharam. O mistério permanece, mas América encontra resposta para todas as perguntas do Monsenhor, que parece fascinado pela narrativa. Ele acredita que América tem potencial para abrir caminho para algo novo, uma reformulação que os lançaria para um futuro promissor. Ela precisa ser provada.

Espero o amanhã que cante
El nombre del hombre muerto
Não sejam palavras tristes
Soy loco por ti de amores
Um poema ainda existe
Com palmeiras, com trincheiras
Canções de guerra
Quem sabe canções do mar
Ay hasta te comover (...)
Soy loco por ti América

(Capinam / Gilberto Gil)

O plano escurece e a comunidade passa por uma súbita transformação: Eta e Dzeta ganham vida e forma e correm no interior de suas caixinhas. A irmã superintendente perde o hábito e veste-se com uma indumentária simples. O sistema criado na parábola de América é posto em prática tal qual ela havia pensado, embora seus efeitos não correspondam às expectativas: uma sociedade que detém minucioso controle sobre os movimentos de cada um. Cooperadores que integram um sistema aparentemente perfeito e altamente disciplinado, sem lugar para o erro ou o mistério. O grito de América substituíra o antigo Verbo divino: estava instaurada a Verdade da ciência, o novo Deus. Para Nietzsche, ao ocupar o lugar até então ocupado pela ascese Cristã, a ciência reproduz seus artífices de fé, que apresentam certezas monolíticas.

O ideal ascético tem uma finalidade, uma meta (– e houve jamais um sistema de interpretação mais elaborado?); ele não se submete a poder algum, acredita, isto sim, na sua primazia perante qualquer poder, na sua incondicional distância hierárquica em relação a qualquer poder – ele acredita que nada existe com poder na Terra que não receba somente dele um sentido, um valor, um direito à existência, como instrumento para a sua obra, como meio e caminho para a sua meta, para uma meta... Esta ciência moderna que (...) crê apenas em si mesma, evidentemente possui a coragem, a vontade de ser ela mesma, e até agora saiu-se bastante bem sem Deus, sem Além e sem virtudes negadoras.

América também mudara: suas paixões se calaram, seu sorriso se desfez, ao passo que fora tomada por certo assombro, ao ver que seu sonho se tornara um pesadelo. A Superintendente quer agradá-la: ela é útil ao novo sistema. América solicita dois livros O primeiro conta a história de um homem que se transforma em inseto (Kafka: "A Metamorfose"), para o espanto de suas postulantes, que assim como a Superintendente, consideram-no inútil. Sob a chave da mais absoluta racionalidade, quem daria crédito (em sua acepção útil) a um autor capaz de escrever um livro assim:

Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa, encontrou-se em uma cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, quando levantou um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido em segmentos arqueados, sobre o qual a coberta, prestes a deslizar de vez, apenas se mantinha com dificuldade. Suas muitas pernas, lamentavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, vibravam desamparadas ante seus olhos. (...) Fechou os olhos afim de não precisar ver mais suas pernas se debatendo, e apenas desistiu quando passou a sentir no lado uma dor leve e sombria, que jamais havia sentido. "Oh Deus", pensou ele, "que profissão extenuante que fui escolher!..."

O segundo livro conta a história do homem que ressuscitou. A superintendente se faz de desentendida, e questiona o absurdo da ressurreição de Cristo, filho de uma Virgem (virgem?). Metamorfoses e ressurreições são consideradas heresias para o novo sistema. Tida como subversiva à luz desse sistema, por invocar transformações e ressurreições que não podem ser explicadas pela ciência, América é punida. Suas próprias postulantes, com o auxílio da Superintendente, vestem-na com um camisolão cuja abertura é demasiado pequena para passar sua cabeça. Sem a cabeça visível, América declara seu luto, uma lamúria que agoniza um mundo apartado de seu sentir, de olhos que não mais veem, de ouvidos que não mais ouvem. Sob a ótica desse novo sistema, o Monsenhor passa a ser o Inquisidor: o mesmo personagem, mas sem as vestes sacerdotais. Ele se assemelha à figura de um psicanalista, que indaga sobre sua relação com a família em um passado remoto, como quem pretende arrancar uma confissão. O corpo de América é fadado à inspeção e atravessado por interditos que têm por meta torná-la dócil, submissa. Michel Foucault lança luz sobre esse processo, cujo fim último é tornar o corpo economicamente útil ao sistema de produção:

O corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. Essa submissão não é obtida só pelos instrumentos da violência ou da ideologia; pode muito bem ser direta, física, usar força contra a força, agir sobre elementos materiais sem no entanto ser violenta; pode ser calculada, organizada, tecnicamente pensada, pode ser sutil, não fazer uso de armas nem do terror, e no entanto continua a ser de ordem física. Quer dizer que pode haver um "saber" do corpo que não é exatamente a ciência de seu funcionamento, e um controle de suas forças que é mais que a capacidade de vencê-las: esse saber e esse controle constituem o que se poderia chamar a tecnologia política do corpo.

América resiste. A nova tecnologia ainda não se apoderara de seu íntimo, cuja opacidade suscita receios. Seria preciso aprimorar os dispositivos de controle sobre a personagem, que ainda não se deixara dobrar. Mas havia esperanças, pois nem todos os recursos tinham sido investidos. América é então levada para o tribunal.

Estes teus olhos de lince
espiaram algo em mim,
de mim algo latente arrancaram,
algo nascido do silêncio,
opressivo e tão difícil de suportar
quanto o calor do meio-dia em Termez.

(Anna Akhmátova)

Em sua cadeira de réu, no centro da cena, América é ridicularizada pelo Bispo e pelo Inquisidor, que incitam a divinização do Novo Deus: o Homem. Estavam interessados em saber por que ela mudara sua conduta. Da primeira tentativa de resposta de América, só se ouviam ruídos. A filósofa Luce Irigaray trata da imposição do silêncio em um texto poético, que leva o título de Elemental Passions (Paixões Elementares). Se lhes roubam as palavras, na expectativa de que sejam conduzidas de acordo com uma determinada diretriz, ou linha de pensamento, a resistência pode se apropriar do silêncio, tal como uma catedral ou um santuário: lugar de recolhimento.

Was it your tongue in my mouth which forced me into speech? Was it that blade between my lips which Drew forth floods of words to speak of you? And, as you wanted words other than those already uttered, words never yet imagined, unique in your tongue, to name you and you alone, you kept on prying me open, further and further open. Honing and sharpening your instrument, till it was almost imperceptible, piercing further into my silence. Further into my flesh were you not thus discovering the path of your being?

O silêncio ou ruído inaudível, dura pouco. Ela finalmente diz que entendera o mistério, o imponderável. Ela teria sido uma reformuladora, um termômetro através do qual eles souberam o momento de agir. Ela volta atrás e se arrepende de seu anseio tolo em procurar desvendar o onisciente, o onipresente. Seus sinais de fé são considerados delirantes. Eles exigem que ela comprove cientificamente a existência da divindade tríplice, com giz e um quadro-negro. América vacila, mas acaba por desenhar um triângulo equilátero dentro de um círculo. A esfera representaria o sol, as laterais do triângulo, asas. A esfera arquetípica de unicidade, e o triângulo em seu interior, tríplice. O desenho de América seria a representação do infinito. Com um tom professoral, o Inquisidor contesta sua teoria, acusando-a de autismo. Ele vale da equação T = C, C = T, ou seja, "trabalhar para comer, comer para trabalhar" no interior da circunferência da técnica: eis o novo essencialismo do novo sistema. O tribunal insinua aspirar à sua salvação sob a magnificência desse novo Deus-Ciência.

Cada um ao nascer
traz sua dose de amor
mas os empregos,
o dinheiro,
tudo isso,
nos resseca o solo do coração.
(...) O amor floresce
floresce,
e depois desfolha.

(Vladímir Maiakóvski)

Sua sentença consiste em desempenhar o papel do vigilante de Eta e Dzeta, que andavam oscilando gradativamente, com menor intensidade. O projeto consistiria em reintegrar América, adaptando-a ao sistema que ela própria criara. América reaparece adocicada, vestida de noiva. Em face à entrada de América, uma das cooperadoras, tomada por um fascínio discursivo, põe-se a discorrer sobre as maravilhas da técnica. Sua colega a escuta com afinco. Nenhuma das cooperadoras percebeu que América agoniza e morre. A morte de América parece o último suspiro de uma súplica por um mundo uno, que reintegre o mistério, o imponderável, o sonho, a fantasia. Logo após sua morte, Eta e Dzeta passaram a funcionar perfeitamente.


A ideia ganha corpo, tudo se inverte
O sonho que América compartilha com suas postulantes traz em seu cerne uma utopia, não quanto à possibilidade de ser posto em prática, mas quanto aos seus desdobramentos. Ela inverte a ordem, mas não a subverte, trocando a ascese religiosa pela verdade da ciência. A utopia de América está em idealizar um mundo perfeito, sem espaço para o erro ou o mistério. O messias é substituído pela figura do revolucionário, do herói. Com ele viria a grande panaceia: "Depois dele tudo mudou. Todos teriam todas as coisas que desejassem. Tudo. Não é bom?" A pausa que vem a seguir desloca o significado da frase. Trata-se de uma pausa reflexiva, que põe em relevo a interrogação. Será que isso é bom?
A dúvida dá o tom da primeira cena. Desconfiada, uma das postulantes pondera: "Porque você disse que ele era bom, muito bom, mas ele mandou matar os outros." O herói é posto à prova, mas os ossos do ofício obrigam-no a matar: em sua saga, os fins justificam os meios. No campo de batalha, tudo vira uma questão de vida ou morte. O tom apocalíptico de América apresenta dois campos diametralmente opostos: o bem e o mal, o sagrado e o profano. Não deixa espaço para a ambiguidade. Se existe o bem, suas ações se justificam, pois ele visa o bem comum. Ela deposita sua fé na verdade, acreditando assim libertar sua mente. Ela propaga sua palavra a fim de libertar as colegas, com base na afirmação da verdade da ciência como um bem supremo. Mas o ideal ascético que ela coloca em xeque é também o seu ideal. Ela inunda a alma desse ideal. Como dizia Nietzsche, faz dele a "sua mais avançada falange de guerreiros e batedores, sua mais insidiosa, delicada e inapreensível forma de sedução" . A ciência, para Nietzsche, não cria valores, tornando-se um valor enclausurado em si mesmo, portanto inerte. Acrescenta:

[A relação da ciência] com o ideal ascético não é absolutamente antagonística em si, ela antes representa, no essencial, a força propulsora na configuração interna deste. Um exame mais atento mostra que ela contradiz e combate não o ideal mesmo, mas o que nele é exterior, revestimento, jogo de máscaras, seu ocasional endurecimento, ressecamento, dogmatização – ela liberta nele a vida, ao negar o que nele é exotérico. Ambos, ciência e ideal ascético, acham-se no mesmo terreno (...) na mesma superstimação da verdade.

Porém de pouco ou a nada serviram as dúvidas das postulantes. A Ciência, com toda a sua soberba, fala em nome de verdades inquestionáveis. Seria o homem um pássaro grande, contente e vivo, como sugere uma das postulantes? Ou forte como uma pedra? As imagens elucidadas pelas postulantes abarcam leituras poéticas do que viria a ser esse homem que habita os sonhos de América. Até que uma das postulantes, em tom quase infantil, traduz a narrativa de América em uma imagem interessante: "Como se a gente descobrisse de repente que existe um outro lá dentro da gente" . A ideia seria como um embrião, que se desenvolve dentro da gente, até ser lançada para o mundo. A metáfora da gestação de uma ideia ressignifica a gestação de Jesus Cristo. O Evangelho segundo São João exorta a criação pela Palavra divina:

No princípio era a Palavra e a palavra estava com Deus, e a palavra era Deus. No princípio ela estava com Deus. Todas as coisas foram feitas por meio dela e sem ela nada se fez do que foi feito. Nela estava a vida, e a vida era a luz dos seres humanos. (...) E a Palavra se fez carne e habitou entre nós; vimos a sua glória, a glória de Filho único do Pai, cheio de graça e verdade. (Jo 1:1-1:4 e 1:12 -1:14)

Se a gestação de espírito pela Palavra divina deu luz ao Messias, como o salvador, a gestação da ideia humana ("nenhuma é tão grande como essa"), dá luz ao herói. Ambos portadores de glória, graça e verdade. A Palavra prevalece como prenúncio do mito das origens. Em sua repetição mimética, o sentido se desloca e celebra-se o rito iniciático, em que se revive a gestação de Cristo, não pelo batismo, mas em sua acepção profana: o nascimento da ideia ascética por uma verdade que se inscreve na ciência. A salvação pelo humano e no humano. Nasce o herói. Mas que herói?
O filólogo clássico de origem húngara, Károly Kerényi situa o herói na elipse do tempo histórico, mas suas trajetórias de vida os impelem para fora da história, aproximando-os do tempo dos deuses. O aspecto mitológico que os vincula aos deuses consiste nas virtudes e ações que faz deles protótipos. O autor constata que "herói" não traduz exatamente o sentido do "heros" grego, mas por falta de palavras, atém-se a esta. Em diversos mitos, há uma partilha entre deuses e heróis de uma notável solidez, que se preserva na representação poética. Há uma parte imutável, um núcleo inabalável inerente ao herói. Ele é dotado de unicidade sólida e de uma irradiação ou esplendor que o autor denomina "glória do divino", por sua proporção sobre-humana.

A glória do divino, que recai sobre a figura do herói, combina-se estranhamente com a sombra da mortalidade do que resulta um caráter mitológico, o de um ser peculiar, a quem pertence, ao menos, uma história em que a narrativa diz respeito exatamente àquele herói e a nenhum outro. Se o caráter mitológico for substituído pelo caráter puramente humano, as lendas dos heróis se tornarão histórias de guerreiros, aos quais o epíteto de "herói" só se aplica no sentido divorciado do culto, em que o usa Homero, mais ou menos o de "nobre cavalheiro"; e assim a mitologia, incluindo a mitologia dos heróis, encontra o seu limite.

Para Kerényi, seu centro imutável engendra a "glória do divino", que por sua vez é ofuscada pelas sombras do destino inexorável. Ao herói são ofertadas libações, cujo sangue escorre em seu fosso sacrificial. Ao palco trágico, elevam-se os heróis solenes, lendários, cujas virtudes provocam comoções na plateia.

O culto e o mito do herói contém o germe da Tragédia, não só no tocante ao material, ao princípio formativo e sua significação, mas também no que concerne ao tempo. A Tragédia Ática apega-se ao culto e à mitologia dos heróis. Aqui não há rompimento, não há abismo entre eles. Há, isso sim, uma continuidade ininterrupta de atividade intelectual que, no que se refere à mitologia dos heróis, ao culto do herói pela narrativa, já se pode denominar um ato de culto. A Tragédia não é menos um ato de culto do que os procedimentos sagrados da adoração dos heróis.

Há, porém, outras interpretações menos rigorosas do herói, deslocando sentidos em uma acepção moderna. Para Joseph Campbell, a tragédia teria o mesmo local de culto que o cinema e seus grandes personagens, que podem ou não ter existido em um sentido histórico real. O cinema fabrica novos mitos, porém bastante diversos dos que habitam as epopeias gregas. O herói é um "mito vivo", que opera como padrão mitológico em diversas camadas temporais, multiplicando-se em diversas réplicas. Segundo Campbell:

Um herói lendário é normalmente o fundador de algo, o fundador de uma nova era, de uma nova religião, uma nova cidade, uma nova modalidade de vida. Para fundar algo novo, ele deve abandonar o velho e partir em busca da ideia-semente, a ideia germinal que tenha a potencialidade de fazer aflorar aquele algo novo.

Na concepção assinalada por Campbell o herói é consagrado por se mostrar disposto a dar sua vida em nome de algo que esteja além de si mesmo. Ele desbrava caminhos nunca dantes percorridos, enfrenta monstros funestos, salva vidas e serve como um exemplo a seguir.

Não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido em toda a sua extensão. Temos apenas de seguir a trilha do herói, e lá, onde temíamos encontrar algo abominável, encontraremos um deus. E lá, onde esperávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe, iremos ter ao centro da nossa própria existência. E lá, onde pensávamos estar sós, estaremos na companhia do mundo todo.

Para o filósofo búlgaro Tvetan Todorov, a figura do herói compreende a vida e a morte. Todorov lança luz sobre o culto ao herói socialmente construído, que reverbera nas escolas, nos locais de trabalho, nas mídias, e em suma, no espaço público. Trata-se do herói viril, o herói que sente coragem e não se dobra pelo medo. O herói que "entra pra história" pela narrativa fantástica do ato heroico. Esse herói está presente entre os algozes e as vítimas. Seu combate e sua ação são orientados em prol de uma ideia que está além dos indivíduos. Ao designar alguém por herói, seus fiéis servidores curvam-se à sua liderança, alimentando uma confiança irrestrita em torno de sua figura.

Eu não sou besta pra tirar onda de herói
Sou vacinado, eu sou cowboy
Cowboy fora da lei
Durango Kid só existe no gibi
E quem quiser que fique aqui
Entrar pra história é com vocês!

(Raul Seixas)

Seguindo o modelo espartano, a coragem é ensinada pela dor. Aprende-se a resistir. De acordo com o psicanalista Christophe Dejours: "O aprendizado da coragem passaria (...) pelo aprendizado da submissão voluntária e da cumplicidade com os que exercem a violência, mesmo sob pretexto 'didático'!" A violência precisa de uma justificativa, calcada na ideia de virtude. Os heróis devem estar aptos a infligir violência quando julgarem necessário, ainda que essa violência seja praticada em nome da paz. Qualquer ímpeto de compaixão frente à dor alheia deve ser afastado. Para Dejours:

Tolerar o próprio sofrimento e não reagir pela violência é antes visto como resignação, derrota, desistência e até covardia ou complacência com a dor, o que certamente não é uma conduta viril. (...) invariavelmente, a virilidade é solicitada quando o medo está no cerne da relação.

A virilidade é essencialmente masculina, e está inscrita em oposição à ideia de fragilidade, atribuída à "natureza feminina". O mito do herói viril, corajoso, que não chora e não sente medo está imbricado no cerne da educação infantil, nas histórias em que o príncipe desembainha sua espada contra monstros tenebrosos para salvar a bela e frágil princesinha no topo de uma torre. A figura fálica do poder masculino está presente nos mais diversos âmbitos. Para Dejours:

Recusar a se exercer a violência, para uma mulher, não é jamais demérito aos olhos das outras mulheres. O fato de uma mulher se recusar a praticar o mal contra outrem só pode ser tido como um defeito pelos homens que associam tal recusa à fragilidade, e essa fragilidade à inferioridade congênita das mulheres, o sexo frágil. A fragilidade do sexo frágil não é poder suportar o sofrimento, mas não poder infringi-lo a outrem.

A aproximação do herói com o Messias na peça de Hilda Hilst é decorrente da aproximação da ascese divina com a ascese científica. Pois como vimos em Kerényi, o herói nasce como descendente direto de um deus. Assim como Cristo, o herói para América era todo amor:

PRIMEIRA POSTULANTE (interrompendo com bastante interesse): E você acha que ele amava os outros como um herói?
AMÉRICA (apaixonada): O amor era para ele como uma bola de fogo que ele podia arrancar de dentro de si mesmo e sustentar nas mãos, e se quisesse também, poderia até mesmo desfazer-se dela, tudo isso sem deixar de possuí-la.

O fogo se remete ao calor do acolhimento e à intensidade de suas chamas. O sol, figura apolínea, é uma gigantesca bola de fogo em torno da qual tramita a terra e os demais planetas. A bola de fogo está no centro: o amor desempenha um papel crucial na saga do herói. Mas ao mesmo tempo, o herói brinca com a bola de fogo e faz o que bem quer dela. Seu poder é tamanho, que ele pode fazê-la ruir se assim o desejar. Mas acima de tudo, ele possui a bola de fogo, como quem se apropria do sol. O amor constitui matéria-prima do herói, e através de sua Palavra, propaga-o por toda a humanidade. Mas o sol, epicentro do amor, permanece em suas mãos, como um joguete. E assim, por malabares, o herói domina a humanidade. Pelo amor.

Pois eu quero entrar num peito
Para poder esquentar-me!
Um coração para mim!
Bem quente! Que se derrame (...)
Meus raios
hão de entrar por toda parte
e haja nos troncos um rumor de claridade (...)
Quem se esconde? Saia já!
De mim não vai escapar!
Farei brilhar o cavalo
numa febre de diamante.

(Federico García Lorca)

América conclui sua narrativa em tom sugestivo, dando a entender que o herói pode estar entre as postulantes: "E um dia essa estória que eu contei, pode ser a sua estória. Você já imaginou? (para todas) Vocês já imaginaram?". Assim, impelida pelo entusiasmo de quem quer reformar o mundo, ela consegue conduzir suas postulantes a um patamar heroico. Todos podem ser heróis: a bola de fogo está em você, basta você a desejar. Um desejo que impele à ação.

I, I will be king
And you, you will be queen
Though nothing will drive them away
We can be heroes, just for one day
We can be us, just for one day

(David Bowie)

Mas a cena é interrompida pela campainha e a decorrente entrada da Irmã Superintendente. Prima a ordem: todas em fila. Menos América, que mede forças com aquelas que encarnam a figura do poder que ela desafia. Um ímpeto rebelde se apropria da protagonista, aquele de quem tem uma causa e não se dobrará com facilidade. Uma rigidez pétrea, que não permitiria qualquer tipo de concessão. Assim, dá-se início as orações, das quais ela permanece alheia. Não se trata de nenhum pai-nosso ou ave-maria, mas um apelo contra presenças indesejáveis no colégio. América. Ela, cujo nome não fora dito, mas insinuado, teria sido enviada pelo divino com o propósito de "acrescentar dificuldades à nossa escalada e com isso tornar mais difícil e meritório nosso lugar no céu". As postulantes respondem com riso, que tentam disfarçar para não serem punidas. A Irmã então apela para um exame de consciência, exaltando o martírio dos santos que cumpriram tarefas que nem todos são capazes de compreender. O santo se revela naquele que se humilha frente a seus semelhantes, em sua beatitude. Por amor a Deus, chega ao descalabro de beijar as feridas dos leprosos. América reage com nojo e fúria: por que será que ela insistia nessa estória macabra?

Crispei minhas unhas na parede: eu sentia agora o nojento na minha boca, e então comecei a cuspir a cuspir furiosamente aquele gosto de coisa alguma, gosto de um nada que no entanto me parecia quase adocicado como o de certas pétalas de flor gosto de mim mesma - eu cuspia a mim mesma, sem chegar jamais ao ponto de sentir que enfim tivesse cuspido minha alma toda. "... porque não és nem frio nem quente, porque és morno, eu te vomitarei da minha boca , era Apocalipse segundo São João, e a frase que devia se referir a outras coisas das quais eu já não me lembrava mais, a frase me veio do fundo da memória, servindo para o insípido do que eu comera - e eu cuspia. (...) Eu que pensara que a maior prova de transmutação de mim em mim mesma seria botar na boca a massa branca de barata. E que assim me aproximaria do... divino? do que é real? O divino para mim é o real.

(Clarice Lispector)

O tom paternal do Monsenhor difere da Irmã Superintendente, sua inimiga declarada. No início ele reprova aquela conduta, enfatizando as verdades imutáveis e a fé divina, mas titubeia, e um fascínio sombrio toma conta de seu corpo. Ele vê em América certo brilhantismo, um potencial para liderança. À medida que América elabora e desenvolve sua narrativa, o Monsenhor muda de expressão: ele resolve embarcar em sua ideia. A estória de América é uma invenção de improviso:

América, ainda com certa precaução, vai inventar uma história porque sabe que a única maneira de dizer o que pensa é inventar uma estória nos moldes tradicionais, inventando pais mais ou menos normais e uma irmão mais velho para que o Monsenhor dê maior importância ao seu relato. Eta e Dzeta são para América apenas símbolos de sua história, mas o Monsenhor vai encarar tais símbolos de maneira diversa, dando-lhes uma nova realidade, realidade essa insuspeitada para América.

A rubrica de Hilst coloca em evidência os sonhos de uma mente inventiva, levados ao pé da letra por aquele que a escuta. A narrativa alegórica é entendida em seu sentido literal. A filósofa Jeanne Marie Gagnebin observa que a função da alegoria é a de uma "desestruturação crítica e redentora", ou seja, é inerente ao processo de segmentação do real. Trata-se, em última análise, de uma imagem que engendra a denúncia à aparência falseada da totalidade. A alegoria tem algo de arbitrário, ela não opera por esquemas fixos, e coloca em relevo o aspecto transitório e efêmero da modernidade.
Enquanto América tenta elaborar seu ideário através de uma narrativa fictícia, inventando personagens de seu convívio familiar, o Monsenhor a interpreta da maneira o mais realista possível. A alegoria ganha corpo e encarna personagens reais. Se eles não existiam até então, eles passam a existir, e adquirem materialidade na passagem da segunda para a quarta cena, sendo a terceira uma cena intermediária, em que a Superintendente, a pedido do Monsenhor, procura testar América. Dessa vez, quem faz as perguntas é a Superintendente, que a despreza, mas ao mesmo tempo diz que quer entender o sentido de sua parábola.
Gagnebin resgata a corporalidade de sentido alegórico inerente aos processos inteligíveis e espirituais, cuja separação é ilusória: estão, pois, imbricados, e só podem ser interpretados em sua totalidade unívoca. Segundo a autora, "essa imbricação é tão profunda que não a percebemos mais, não escutamos mais o sentido 'literal' sob o sentido 'figurado'"
É na quarta cena que os desdobramentos da fantasia de América vêm à tona. O repertório da primeira cena se repete: América conta suas estórias mirabolantes às três postulantes no mesmo pátio escolar. Porém a cena provoca um estranhamento, como se algo estivesse fora do lugar. A começar pela narrativa, que já não vinha carregada de certezas como nas demais, mas pelo contrário: falava de mistério. Quando as pessoas em seu redor insistiam que a estrada terminaria ali onde ele estava, o andarilho segue em frente, certo de que seu caminho teria continuidade rumo ao desconhecido. Aquela trilha na floresta, reservada aos cordeiros dóceis e bem-comportados, dava indícios de que haveria um longo caminho pela frente. Era a recusa do fim da estrada, por aqueles que não aceitaram a condi ão de cordeiro obediente. A estória de América testa os limites que apontam o fim da linha, e a recusa a acreditar naquilo que seus olhos viam. Deve haver algo além. Como quem procura por brechas entre as folhagens ou pontes que atravessem o rio, América diz não.

(Nada sei do que te faz tão poderosa
ao me mover; mas algo em mim compreende apenas
que a voz de teus olhos é mais profunda que todas as rosas
ninguém, nem mesmo a chuva, tem as mãos tão pequenas.)

(E. E. Cummings)

Sua atitude mudara. Suas postulantes observam a transformação de sua líder, que agora é posta à prova por desafiar a ordem racional do mundo. Ela cai em descrédito por contar estórias de um sonhador, e por sofrer ela mesma dessa perigosa patologia: o sonho. A Superintendente entra em cena, a princípio como quem deseja ajudá-la. Ela lhe concede dois livros. Mas quais?

AMÉRICA: O primeiro aquele que conta a estória de um homem que virou bicho.

PRIMEIRA POSTULANTE: Um louco?

SUPERINTENDENTE: Sem nenhum interesse.

SEGUNDA POSTULANTE: Mas como é essa estória, Irmã?

SUPERINTENDENTE: É a estória de um homem que se transformou num inseto, e a família quase enlouqueceu por causa dele.

TERCEIRA POSTULANTE (rindo): Lógico, era pra enlouquecer.

SUPERINTENDENTE: A família sofre humilhações, desprestígio. É horrível. Esse livro não. Peça um razoável.

América escolhe um livro subversivo, pois reintroduz o sonho onde tudo precisaria fazer sentido a olho nu. No campo das verdades absolutas outorgadas pelo primado de um saber científico, só existe lugar para aquilo que é dedutível em termos racionais. A ordem do sensível confunde, escorrega às classificações, e requer o mínimo de criatividade para que se possa deixar tocar nesses termos. Como dizia Artaud, é preciso captar com o olhar, e antes um olhar sensível aos fazeres e refazeres do mundo, acompanhando os movimentos não decodificáveis, sem se deixar permear pelas pressões costumeiras do cotidiano. Para Artaud, antes, importa:

Deixar-se levar pelas coisas em lugar de se fixar sobre certos lados especiosos, de pesquisar sem fim definições que não nos mostram senão os pequenos lados. Mas para isto tem em si a corrente das coisas, estar ao nível de sua corrente, estar enfim ao nível da vida, em lugar de permitir que nossas deploráveis circunstâncias mentais nos deixem perpetuamente no entremeio, estar ao nível dos objetos e das coisas, ter em si sua forma global e sua definição ao mesmo tempo, e que as localizações de tua substância pensante entrem em movimento ao mesmo tempo que seu sentimento e sua visão em ti.

América escolhe a "Metamorfose" de Franz Kafka: A estória do homem que amanheceu metamorfoseado em uma barata. A interpretação da Superintendente e das postulantes é conotativa de uma ciência maior, que despreza aquilo que lhes parece cientificamente inconcebível.

Tinha de fato vontade de mandar que seu quarto, aquele quarto morno, confortavelmente instalado com móveis herdados, fosse transformado em uma toca, na qual ele poderia se arrastar com liberdade em todas as direções, sem ser perturbado, mas pagando o preço de esquecer de modo simultâneo, rápido e completo seu passado humano? De fato agora já estava próximo de esquecer, e apenas a voz de sua mãe, que ele não ouvia há tempo, dera-lhe uma sacudida interna.
(Franz Kafka)

O fato de que Superintendente continue a zelar pelos valores da família deflagra certa ambiguidade. Mudou o paradigma, mas a antiga estrutura permanece em pé sob outras roupagens. O desprestígio da família é um pilar que se mantém, e que recoloca a injúria e a vergonha em seu devido lugar. Desafiar os parâmetros racionais segue como um dogma, mas a vergonha é aquela mesma atribuída àqueles que cometem heresias sob a crista e a cruz. A família permanece um bem supremo. Ainda mais paradoxal é o fato de uma das postulantes chamá-la de "irmã", deixando vestígios do que aquela instituição outrora representara. Até que ponto houve uma ruptura com aquele passado religioso?
O segundo livro "é a estória daquele que ressuscitou" . A alusão a Cristo remete a um antigo imperativo, em nome do qual se falava para reforçar a ordem e o controle. Hilst vira Cristo de cabeça para baixo, e pela inversão paródica, a repetição provoca um estranhamento. Aqui entra a autocrítica: em um primeiro momento o sagrado fora posto em questionamento pelo profano, e agora é a vez de desconstruir o profano. Tomo o profano como a verdade da ciência, aquilo que se pretende como vértice antagônico na oposição binária "evolucionismo-criacionismo". O que está em relevo é a imagem de Cristo, filho de uma Virgem, o Messias. As antigas perguntas de América indagam através de outros locutores. Como pode um homem ser filho de uma virgem? Isso é inconcebível aos olhos da ciência.

"É verdade que Deus está em toda a parte? (...) mas acho isso indecente".

(Friedrich Nietzsche)

A menção aos dois livros remete a um paradoxo discrepante: enquanto o primeiro animaliza, assumindo a forma de um inseto que suscita repulsa e nojo, o segundo espiritualiza, e restitui a humanidade em amor. Após sofrer deboche de suas postulantes com a mesma arrogância e pretensão de verdade com que América questionara os ensinamentos da Igreja, a Superintendente chega ao descalabro de compará-la a uma alquimista.
A figura do alquimista, aquele que transforma metais em ouro, através de procedimentos mágicos e enigmáticos. Em seu duplo e ambíguo sentido, a conversão em ouro pode ser interpretada como uma tomada de consciência. Sem sombra de dúvida, o alquimista é uma figura perigosa, e ao mesmo tempo depreciada pela alta ciência. Enquanto as ciências duras trilhavam as linhas do progresso, lançando-se para o futuro como em um trampolim, os alquimistas se voltavam para trás, debruçando-se nos segredos de um passado mais remoto, com as receitas das poções ditas mágicas e elixires pagãos, desprezados tanto pelos católicos, como pelos cientistas. A alquimia era uma conotação depreciativa atribuída à alteridade, tanto nos focos de resistência do Ocidente, como de maneira mais geral e abstrata no Oriente. Uma coisa é certa: alquimista é um termo cunhado no Ocidente pelo cânone branco, masculino, europeu, católico e dominador, adquirindo verniz científico; ao passo que a verdade da cruz se converte em verdade da ciência, pois o que se entende por revolução científica não elimina a antiga moral católico-cristã. Mas ainda assim pertence à ordem do mito, pois o termo é usado para traduzir o inconcebível, o imponderável, o mistério.
Mircea Eliade entende o alquimista como o "senhor do fogo", uma vez que é a partir do fogo que se dá a transmutação entre metais. Estaria no fogo uma força mágico-religiosa capaz de acelerar a natureza e moldar o mundo de acordo com os desejos do homem. O fogo é poder, é uma força cuja maestria pertence à ordem do sagrado. Há uma série de mitos que remetem à apropriação do fogo pelos homens. Prometeu fora acorrentado por roubar o fogo dos deuses. Pelo domínio do fogo, o xamã ou o iogue atravessariam o campo do humano para ascender a uma espiritualidade elevada. De acordo com James Hillman:

O fogo como uma criança sempre faminta, fogo como uma criança crescendo rápido, jovem e flamejante, fogo como uma virgem sempre renovável. Lareira como útero, berço, abraçando o centro em torno do qual a opus circumambula. (...) Como um dos quatro elementos que dá base ao ser do cosmo, o fogo não pertence nem mesmo aos deuses. O fogo não pode ser roubado e tornado disponível para o uso humano mais que a terra, o ar e a água podem ser usurpados para o benefício de uma espécie apenas.

Para Hillman, caberia ao alquimista ir além de um humanismo prometeico, e pelo fogo animar as substâncias, imergir no mistério não humano das coisas. Quanto mais pura a substância, mais puro o fogo. Tudo o que é supérfluo, é queimado, resta apenas o carvão, de substância leve e preta. O carvão simboliza o ato de nascer duas vezes: primeiro como madeira, depois como sua essência purificada pelo rito sagrado da alquimia. Hillman conclui: "O fogo dá à alquimia suas leituras espirituais".
Acusada de alquimista, América precisaria ser punida. Seu primeiro veredicto foi sentenciado pela Superintendente, que incita as postulantes a cobrirem sua cabeça, já que ela não fazia uso adequado da mesma:

SUPERINTENDENTE (objetiva): Muito bem, minha filha. Na verdade a cabeça de América não existe. E para que essa verdade fique bem clara, é necessário que daqui por diante ninguém mais veja... (com ironia) essa cabeça não existe.
As Postulantes tiram de algum canto um camisolão preto e jogam por cima de América como se fossem vesti-la. Mas fazem-no de forma a não deixar que a cabeça de América passe pela abertura.
(...)
SUPERINTENDENTE (para América): E pode pensar à vontade agora. (sorrindo com desdém) Mas naturalmente sem a cabeça.

As lamúrias de América, despida de sua pretensão de verdade, vestida com seu camisolão como quem traja uma camisa de força denotam um luto, uma indignação por esse mundo entrecortado e apodrecido pelas sombras daquilo que se pretendia luz. O obscurantismo da ciência, que eclipsa o brilho da luz solar.

A fúria do meu tempo separou-nos
E há entre nós uma extensão de pedra.
Orfeu apodrece
Luminoso de asas e de vermes

América fala de Orfeu, o argonauta que acompanha Jasão em sua epopéia em busca do Velocino de Ouro. Orfeu, o pacificador de brigas e o encantador de sereias, graças à lira que recebera de presente de Apolo. Perdeu sua amada Eurídice para uma serpente, que a surpreendeu quando colhia flores em seu jardim. Seu amor é tão grande, que ele vai até os reinos subterrâneos, vence o Cérbero, um cão de três cabeças, guardião dos portões e consegue chegar até Hades. Suas lágrimas de ferro são capazes de comover Perséfone, que entrega de volta sua amada com a condição de que ele não olhe para ela até que atravessem o Rio Estige. Temendo tratar-se de uma trapaça, seus olhos o traem e Eurídice retorna para o mundo das sombras. Triste, ele passa três anos a vagar pelas florestas da Trácia, tocando sua lira. Sua melodia seduz as Mênades, que celebram seus ritos dionisíacos atrás dos arbustos. Orfeu paga caro por desprezá-las. Os gritos furiosos das Mênades abafam a melodia de sua harpa, enquanto seu corpo é atravessado por dardos, e depois esquartejado. Sua cabeça e sua harpa são lançadas ao rio. As noves musas choram por sua morte trágica, juntando os pedaços de seu corpo e transportando-o ao Monte Olimpo. Sua alma encontra Eurídice no mundo das sombras e ambos são acolhidos por Apolo e transportados para os Campos Elíseos, onde vivem o amor eterno. Como castigo dos deuses, as Mênades foram transformadas em carvalho. Diz-se que a doce melodia dos rouxinóis da região tem origem na harpa orfeica.
Joseph Campbell entende a história de Orfeu como um mito do fracasso que nos remete à tragédia da vida:

O mito grego de Orfeu e Eurídice , assim como centenas de contos análogos em todo o mundo, sugerem (...) que existe a possibilidade de o amante retornar com sua amada perdida do terrível limiar, apesar do fracasso registrado. É sempre alguma pequena falha, algum sintoma, leve mas crítico, da fragilidade humana, a causa da impossibilidade de um relacionamento franco entre os dois mundos; dessa maneira, quase somos tentados a acreditar que, se o pequeno acidente perturbador pudesse ter sido evitado, tudo correria bem.

América experimenta um desespero semelhante ao de Orfeu, apartado de sua amada, que paira no reino das sombras. A frieza de seu tempo amplia o abismo que separa os dois mundos por extensões de pedra. Há uma angústia extrema frente ao apartheid, entre as asas dos anjos e os vermes que habitam o mundo das sombras. Não há espaço para uma comunicação que tramita no interstício entre o céu e a terra. Distanciado das estrelas celestes, o mundo fica frio, inóspito, podre e sem vida. As lamúrias de América clamam por algo que não é da ordem do sagrado nem do profano, mas desse espaço do entre, onde a ciência e a espiritualidade coexistem: eis o grande fracasso que dá o tom da tragédia humana.

Ilumina-se (...) o plano B, onde está o Monsenhor sentado na sua cadeira negra, , alta, fazendo agora o papel de Inquisidor. Não deve ter roupas sacerdotais, mas algumas indicações de que ele foi Monsenhor e agora é Inquisidor. Pode haver movimentação do Monsenhor nos dois planos.

As rubricas ilustram o quão sutil é a troca de papéis: é como se o Monsenhor deslizasse para o Inquisidor, deixando evidente que algo do antigo personagem permanece em cena. Eles desempenham o mesmo papel, mas mudam as vestimentas, para sugerir que a situação efetivamente mudou. Ele analisa os papéis como um inquérito. Seu fim é obter uma confissão, dados que justifiquem sua conduta. Sua primeira pergunta poderia ser a de um psicanalista: "Como era sua mãe? (pausa)"
Michel Foucault observa como se amplia a extensão da confissão após a Contra-Reforma. A prática da confissão tornou-se mais meticulosa. É preciso investigar as mais singelas minúcias: "uma sombra num devaneio, uma imagem expulsa com demasiada lentidão, uma cumplicidade mal afastada entre a mecânica do corpo e a complacência do espírito: tudo deve ser dito". Foucault observa como o imperativo "examinai" passa desempenhar um papel crucial nas práticas confessionais, visando acompanhar cada desvio que sobressai à linha que liga o corpo com a alma: "ela revela, sob a superfície dos pecados, a nervura ininterrupta da carne". Os dispositivos discursivos utilizados pelas instituições do Estado nas práticas de perícia e inquérito não só acompanham esse movimento, como aprimoram as técnicas investigativas, para encontrar saídas cada vez mais limpas, insípidas, inodoras e racionais de exercer controle sobre os corpos. Órgãos de controle sanitário determinam o que é adequado para a saúde do organismo social, o panóptico, a torre de vidro no centro das prisões de onde se pode ver tudo, dita a tendência da arquitetura das grandes cidades, a psicologia passa a analisar os lugares mais recônditos da história do sujeito para inserir o sujeito à sociedade e contribuir para ordenar o mundo.
A censura atribuída a América é organizada como um tipo de lógica de cadeia, como diz Foucault:

Liga o inexistente, o ilícito e o informulável de tal maneira que cada um seja, ao mesmo tempo, princípio e efeito do outro: do que é interdito não se deve falar até ser anulado no real, o que é inexistente não tem direito a manifestação nenhuma, mesmo na ordem da palavra que enuncia sua inexistência, e o que deve ser calado encontra-se banido do real como interdito por excelência.

Desse modo, Foucault nos fornece pistas dessa lógica que nega aquilo que escapa ao protocolo: é preciso falar a mesma língua, orientar pelos mesmos paradigmas, seguir ipsis litteris as regras de conduta apropriadas ao que é considerado socialmente admissível. No âmbito da revolução científico-racional, seria inapropriado falar de mistérios, de poesia, de metáforas ou de metafísica. A justificativa que o Inquisidor buscava era da ordem racional: encontrar uma justificativa em seu âmbito familiar. Que tipo de herança teriam seus pais deixado em seu histórico, que pudesse justificar sua conduta? A resposta de América foi insatisfatória, pois não teria como ser devidamente catalogada no campo da objetividade:

Os olhos velhos e a vontade de amar sem saber como. Crescemos tanto as duas, tão inutilmente. Crescemos tanto que nem mais nos abraçávamos, nem sorríamos, como acontece àqueles que se amam. Eu dizia: "Dá-me um pouco de ti, eu tenho sede. Tenho os olhos pisados de sonhar".

A frieza da sua relação com a mãe não parecia comover o Inquisidor, cuja resposta lhe parecia insatisfatória. Não é da carência e do sofrimento humano, pois, que isso se trata. Ao constatar que a estória previamente narrada ao Monsenhor era uma invenção de sua cabeça, o Inquisidor quer saber sobre sua verdadeira relação com o pai. Ela diz que ele não seria capaz de compreender a conversa que teve com seu pai, afinal, não é da ordem racional. A pretensão da ciência de tudo explicar, podendo entender "até o demônio" encontra eco na voz articulada do Inquisidor. Ele exige respostas e tem pressa. Ap s uma longa pausa, ela responde lentamente, como se falasse sozinha:

Pai, uns ventos te guardaram, outros guardam-me a mim. E aparentemente separados, guardamo-nos os dois, enquanto os homens no tempo se devoram. Será lícito guardarmo-nos assim? (...)

Pai, tocaram-te nas tardes brandamente, assim como tocaste, adolescente, a superfície parada de umas águas? Tens ainda nas mãos a pequena raiz, e a fibra delicada que a si se construía em solidão? (...)

Assim somos tocados sempre. Pai, este é um tempo de silêncio. Tocam-te apenas. E no gesto, te empobrecem de afeto. E no gesto te consomem. (...)

Pai, este é um tempo de cegueira. Os homens não se vêem. Sob as vestes, um suor invisível toma corpo e, na morte, nosso corpo de medo é que floresce. Mortos nos vemos. Mortos amamos. E de olhos fechados, uns espaços de luz rompem a treva (abaixa a cabeça como se soubesse a inutilidade de todas as confissões) (...)

(angustiada) Pai, este é um tempo de treva.

América rememora a conversa que teve com o pai, que bem poderia ser uma memória inventada ou reinventada, mas isso não faz a menor importância. O que está em relevo não é a figura real ou fictícia do pai, mas a maneira poética com que ela retrata a angústia de seu tempo. Os ventos guardam, acolhem e levam a filha e o pai para lugares distantes um do outro, mas isso não sela o fim da relação de acolhimento entre pai e filha. Ambos estão à margem da barbárie atroz de seu tempo. Homens se devoram, em um ato que Oswald de Andrade define como "baixa-antropofagia", calcada na mesquinhez, na inveja, na calúnia e no assassinato. Homens se matam por pouca coisa, sangue é derramado por dinheiro e pelo poder mesquinho dos governantes. As águas de superfície nos tocam a retina, mas não recobrem o corpo, não chegam a tocar a raiz, submersa nas profundezas, onde a retina do homem racional não penetra. Uma raiz solitária, mas que difícil de arrancar. Ela pertence à terra e lá permanece, ainda que careça da luz do sol.
O toque brando é um toque não corporificado, é algo que vem de fora, e que provoca certo mal-estar, mas que não atravessa a superfície da pele. América fala em consumir como força de trabalho, a exploração que exige um dispêndio de energia para benefício de um capitalista. Consome-se a força vital, consome-se o tempo, consome-se a mercadoria. Como diz Oswald, até a consciência já vem pronta e enlatada, trazida de fora. Assim também o silêncio é imposto de fora. É o silêncio do ato de silenciar, como quem aplica mordaças aos descontentes. É o tempo em que o desagradável não pode ser dito, e calando-se, a humanidade consente aquilo que vem de fora. É um tempo em que a visão é deformada, recortada e transposta em molduras pré-configuradas que impedem o ser humano de enxergar seu semelhante. Esse corpo recortado, amestrado, e adocicado pelos dispositivos de controle do Estado e dos capitalistas de olho no panóptico, acaba aprendendo a sentir medo. A doçura não vem da candura interna, mas de um procedimento que o obriga a dizer sempre sim e abaixar a cabeça para seu superior. O corpo é dócil, como diz Foucault, pois ele se quebra e se submete ao status quo. O corpo é amestrado, pois as instituições sociais, da escola à prisão, ensinam-lhe como deve se conduzir. A prisão pode ser uma presença subentendida, o medo provém antes da ideia de prisão, que do fato consumado. Basta que alguns sejam presos para que os demais assimilem a punição enquanto potência latente. O medo é o que ordena a sociedade.
Apartados da propriedade de seus corpos e de suas forças vitais, os homens definham por dentro, conduzindo-se tal como mortos-vivos. Perde-se a noção do que é corpóreo, dos desejos que atravessam os corpos. De autônomos, os gestos passam a ser automáticos e repetitivos, tal como ocorre com Carlitos, personagem de Charles Chaplin em Tempos Modernos. A maquinaria se apropria do homem, como se ele fosse peça de uma engrenagem, já não mais capaz de viver, sentir e sonhar. É preciso comer para trabalhar e trabalhar para comer, eis o único sentido atribuído de fora ao que se entende por vida. Em tempos sombrios, para enxergar o mais singelo feixe de luz interno é preciso fechar os olhos e dar asas à imaginação. A luz do fim do túnel está no lado de dentro, em uma introspecção no escuro. Desse pequeno feixe de luz provém o grito, que faz estremecer o corpo silenciado.

O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade de vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores. (...)
Só podemos atender ao mundo orecular.
Tínhamos a justiça categorização da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem.
Contra o mundo reversível e as ideias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores.
Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.(...)
A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modusvivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. (...) A escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento.

(Oswald de Andrade)

A cena do julgamento se inaugura pela fala do Bispo. A poesia que exorta a crença na figura divina do Homem se dá em frases que deslizam de uma boca para outra, alternando-se entre as vozes do Bispo e do Inquisidor. Em uníssono, a sintonia entre as falas dos dois personagens é harmônica, como se não fosse possível haver qualquer diferença entre as duas mentes. A entonação indicada pelas rubricas oscila entre o sarcasmo e a benevolência, em um fluxo contínuo, que faz com que um acompanhe o tom do outro, como em uma orquestra. A combinação entre as falas dos dois personagens conflui para um único poema:

BISPO (para o público): O Deus de que vos falo não é um Deus de afagos.

INQUISIDOR: É mudo.

BISPO: Está só.

INQUISIDOR: E sabe da vileza do homem.

BISPO: E no tempo contempla o ser que assim se fez: O Homem. (pausa)

INQUISIDOR (irônico): É difícil ser Deus.

BISPO (amável): As coisas O comovem.

INQUISIDOR (ameaçador, apontando o público): Mas não da comoção que vos é familiar.

BISPO (sarcástico): Essa que vos inunda os olhos (apontando América com bastante ironia) quando o canto da infância se refaz. (pausa)

INQUISIDOR (suave, íntimo, contínuo): A comoção divina não tem nome.

BISPO (suave, íntimo, contínuo): O Nascimento...

INQUISIDOR (suave, íntimo, contínuo): A Morte...

BISPO (suave, íntimo, contínuo): O martírio do herói...

INQUISIDOR (suave, íntimo, contínuo): Vossas crianças claras sobre a laje.

BISPO (com pretensa piedade): Vossas mães no vazio das horas... (pausa)

INQUISIDOR (imperativo): E deveis amá-Lo se eu vos disser sereno, sem cuidados, que a comoção divina, contemplando se faz.

OS DOIS JUNTOS (apontam-se): O Homem. O Homem diviniza-se.

Esse Homem, com "H" maiúsculo substitui o antigo Deus no cânone que ocupa o centro do universo. Esse Homem já não mais precisa de Deus para explicar o mundo. Ele assume o lugar de Deus através do rito que o sacraliza: pelo martírio do herói. Assim como a crucificação e a ressurreição de Cristo, esse Homem passa por uma morte simbólica – o martírio do revolucionário –, para então renascer como a mão que tateia constrói o mundo. Esse Homem, o herói, também comove e serve de modelo para as futuras gerações. Ele abre caminho para um futuro promissor. As oscilações de entonação obedecem a uma rítmica imprimida por certo deslumbre frente à descoberta do Humano como o centro e a medida de todas as coisas, e certo sarcasmo que menospreza a ré e sua fé em outro Deus, que acreditam ter deixado para trás. Há certa prepotência na postura daqueles que falam em nome da Verdade do conhecimento científico, certa arrogância que despreza todos os outros modos de se apreender o mundo, todos os outros parâmetro que não o do Humano em seu pedestal. Esse Homem não é qualquer Homem, mas uma tipificação do homem racional, heroicizado. Ele segura o martelo que sela o veredicto dos descrentes como quem está prestes a podar as ervas daninhas que empesteiam o mundo. Há um descompasso entre essa pretensão de grandeza do homem diante da infinitude das constelações, das quais temos pouco conhecimento. Já dizia Nietzsche:

Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem-número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da "história universal": mas também foi somente um minuto. Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer. – Assim poderia alguém inventar uma fábula e nem por isso teria ilustrado suficientemente quão lamentável, quão fantasmagórico e fugaz, quão sem finalidade e gratuito fica o intelecto humano dentro da natureza. Houve eternidades, em que ele não estava: quando denovo ele tiver passado, nada terá acontecido. Pois não há para aquele intelecto nenhuma missão mais vasta, que conduzisse além da vida humana. Ao contrário, ele é humano, e somente seu possuidor e genitor o toma tão pateticamente como se os gonzos do mundo girassem nele.

O mundo é infinitamente mais amplo que a pretensão de se explicá-lo, seja qual for o paradigma. Com tantos vértices e angulares, a simples ideia de encontrar uma única matriz explicativa para o mundo é risível. O Humano é um parâmetro que serve apenas ao humano, e mesmo assim, diferentes sociedades encontram diferentes meios de se apreender o mundo. A preponderância do discurso científico-racional sobre os demais se sustenta pela configuração das relações de poder, por exercer posição hegemônica no cânone Ocidental. Mas enquanto o Homem despende sua energia para explicar o universo, a vida acontece em torno e apesar do Humano.
América não está disposta a dar o braço a torcer, e reafirma sua fé "no Anjo, na Anunciação e na Grande Senhora que foi Virgem antes do parto, no parto e depois do parto, na ressurreição..." Ela diz ter o coração abrasado de amor pelo Divino. A afirmação de sua fé é acusada de heresia pela Irmã Superintendente. O vocabulário eclesiástico que predomina no discurso que se insurge contra a fé Cristã é denotativo do paradoxo que a autora pretende colocar em evidência. Se posto em prática em um contexto realista, esse paralelismo não seria possível. Como o teatro de Hilst não tem essa pretensão, o jogo com os jargões religiosos para referir-se à ciência arrancam riso e provocam estranhamento. O intuito é aproximar ambos os discursos como espelhos um do outro, incitando o espectador a enxergar além deles.

Mas como fazer um cientista entender que há algo de definitivamente desregrado no cálculo diferencial, na teoria dos quanta, ou nos obsenos e tão ingenuamente litúrgicos ordálios da precessão dos equinócios, por causa daquele acolchoado rosa camarão que Van Gogh faz espumar tão suavemente num lugar eleito de seu leito, por causa de uma pequena insurreição verde veronese, azul molhado, barca diante da qual uma lavadeira de Auvers-sur-Oise está se levantando após o trabalho, por causa também daquele sol fixado por trás do ângulo cinzento do campanário da aldeia, pontiagudo, lá embaixo, no fundo; em frente, aquela enorme massa de terra que, no primeiro plano da música, procura a onda antes de se congelar.
(Antonin Artaud)

Mais uma vez, o Bispo e o Inquisidor procuram desmentir as estórias da Bíblia a partir de uma leitura fria e objetiva, que prova através de um cálculo racional que os milagres aos quais se refere América são desprovidos de fundamento científico. Tudo o que ela diz é ridicularizado à luz de um pragmatismo rígido e soberano. É-lhe apresentado um quadro-negro e um pedaço de giz, para que ela demonstre e comprove a sua Verdade. Ela hesita, mas acaba por desenhar um círculo com um triângulo equilátero. Ela entende o círculo como o universo, que a rigor não precisaria de uma linha. É um círculo por compreender o compasso que circunda o globo ocular. Também o sol assume esse formato de esfera. Os vértices do triângulo sugerem as asas de um Anjo, e também o Tríplice sagrado: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Em seguida quem vai ao quadro é o Inquisidor, que escreve T = C, C= T, ou seja, comer para trabalhar, trabalhar para comer, e depois traça um grande círculo em torno da equação, que representaria a técnica.

LUCIANO – Agiota! Lá, quem não é agiota é capacho de agiota! E nós somos capacho de agiota! E a gente leva o dia inteiro falando "sim senhor, sim senhor, sim senhor"! Mal pago, ordenadinho que não dá nem pra atravessar quinze dias! Mal pago, mal tratado, mal reconhecido! Ninguém olha pela gente, ninguém se importa com a gente...
(Renata Pallotini)

Desde a revolução industrial, novas técnicas e novos sistemas trataram de aprimorar a técnica que potencializa um lado da equação trabalhar para comer, comer para trabalhar. Come-se o suficiente para trabalhar, mas do trabalho extrai-se o máximo de mais-valia, ou seja, o valor excedente do trabalho consumado, tal como Karl Marx explica em O Capital. Quanto mais excedente, maior é o lucro do proprietário dos meios de produção. O sistema é bastante simples e eficaz, quando enxergado sob o prisma da engrenagem. A margem de erro está fora, pois o trabalho é exercido por estruturas mais complexas, humanas. A finitude dos recursos naturais fornecedores de matérias-primas também impõe limites. O Homem é capaz de manipular a natureza, mas não a domina. Quanto à força de trabalho, sua manipulação alcançou parâmetros bastante ordenados, maximizando a produção de mercadorias em um tempo mais comprimido. O avanço da técnica permitiu a inserção da esteira de montagem, permitindo a rápida circulação de materiais pela fábrica, exigindo que as mãos desempenhem um trabalho cada vez mais repetitivo, em uma divisão mais setorializada, que aparta do planejamento o processo produtivo. Em termos marxianos, a separação do trabalho manual do trabalho intelectual. O trabalho passa a ser cronometrado e controlado por agentes vigilantes. Introduz-se o ponto, que registra o horário de entrada e saída dos funcionários. O rigor da técnica dá a impressão de que o homem assemelha-se cada vez mais a um robô, que se comporta e se orienta automaticamente, sem pensar, sem sentir, sem sequer exercer o domínio de seu próprio corpo, que se encontra cada vez mais atrofiado pelo movimentos contínuos.
Mas o humano ainda sonha, e os pensamentos acabam por escapar ao que só em aparência é um domínio em sua plenitude. Ainda cabe ao Homem a recusa. Ainda cabe ao Homem uma retomada de sua subjetividade apartada. Por isso o pensamento e o sonho são tão perigosos para o sistema.

BISPO: Nós a recompensaríamos se ela ficasse passeando nos nossos jardins... passeando e pensando, passeando e pensando. Uma natureza imaginosa pode de repente descobrir coisa nova.

A morte também não lhe cairia bem, pois a morte poderia significar o martírio em sua beatitude, e os paladinos da ciência ainda temiam a sua Ascensão. Eles diziam que o tribunal aspirava à sua salvação, mas não pareciam ter clareza sobre o que isso viria a ser em termos concretos. É a própria América quem sem querer fornece pistas do que poderia ser sua "ascese":

AMÉRICA (lentamente): Ofereço-vos minha mão aberta. Queimada de uma luz tão viva como se ardesse viva sob o sol. Olhai se possível a mão que se queimou de coisas limpas. E se souberdes o que em vós é justiça, podereis refazê-la à imagem de vossa mão. E depois igualada, aproveitá-la a cada hora. A cada hora e...

América sequer teve tempo de concluir seu raciocínio, e foi interrompida pelo Inquisidor, que balbuciava a palavra "aproveitá-la"como quem acabava de ter uma boa ideia, ainda sem conseguir formulá-la até o final. Seria um grande desafio aproveitá-la "com as asas que tem". Qualquer pisada em falso, ela corria o risco de voar longe em pensamento. Talvez fosse o caso de deixar que o tempo sossegasse os ânimos e apaziguasse os anseios de um pensamento convulsivo.

INQUISIDOR: Um aproveitamento eficiente e concreto é bem da competência do poder temporal. Eles têm sempre ótimas ideias. E para os casos assim são primorosos.

BISPO: E o poder temporal não é representado pelo colégio?

INQUISIDOR (cansado): Pela empresa, pela empresa, Reverendíssimo.

BISPO: A empresa, o colégio, o instituto, e logo mais haverá uma só palavra para tudo. Será a síntese, meu amigo.

INQUISIDOR: Irmã Superintendente, por favor, queira aproximar-se.
Todos ficam de pé.

INQUISIDOR (continuando solene): Nós entregamos à senhora, neste ato, com especial cuidado, a moça América (luz diminuindo gradativamente). E pedimos clemência.

BISPO: Benignidade.

O colégio indica a passagem de tempo: fora lá que América crescera, e também fora lá onde produzira suas ideias mirabolantes que culminariam na reformulação do mundo. O colégio funciona como um tubo de ensaio para que o experimento de transmutação ou conversão seja aplicado nas demais repartições sistêmicas onde se produz o trabalho intelectual: as empresas, os institutos. A origem e o estopim da reviravolta se deram efetivamente no colégio. Esse ambiente familiar, onde América despertou suas paixões mais irreverentes. Se América tivesse que ser cooptada e aproveitada pelo novo sistema, seria no acolhimento do ambiente escolar, lá onde as paixões pulsam com mais vigor. No lugar da ambiguidade por excelência, onde aprendera os ensinamentos bíblicos que outrora não faziam sentido para ela, onde pela paixão pela ciência provocara essa inversão, que assevera o primado da ciência sobre o primado da cruz.

Una relación de exclusión recíproca divide, para concluir, modos de ser que en la infancia practicamos sin separaciones, y que ahora conseguimos significar solo mediante paradojas, como la necesidad de lo gratuito, la espera de ló imprevisible... La lógica es una admirable disciplina del pensamiento. Pero forma um pensamiento que, para funcionar a la perfección, descompone el orden según el cual la vida da inicio y la gente, bien o mal, seguimos en la vida, casi haciéndolo parecer um desorden. Por lo cual, yendo contra el sentir humano, ló gratuito es considerado menos precioso que lo obligatorio, a la fuerza de la ley se la atribuye más eficácia que al amor, y la regularidad mecânica ocupa el lugar de la ocasión imprevista.
(Luisa Muraro)

América, no ano de 1967, quando Hilda Hilst escreveu essa peça era o lugar da combustão, o lugar das ideias subversivas. Se a revolução socialista fracassara nos países centrais, na América Central e do Sul anseios revolucionários se faziam sentir, em maior ou menor grau, mas pareciam representar uma ameaça latente. Governos de esquerda e ascensos operários eclodiam no Chile, na Argentina, no Brasil... Em 1959, Cuba brindou o triunfo de uma revolução popular, que expropriou terras e propriedades fabris. Em plena Guerra Fria, o temor de que ascensos revolucionários pudessem se espalhar pela América Latina era incomensurável. O apoio político e possivelmente financeiro a golpes militares por grupos de extrema-direita em países latino-americanos foi a maneira que os Estados Unidos e seus aliados europeus encontraram para silenciar os insurgentes. Mas essas mordaças não bastavam: seria preciso cooptar seu núcleo pensante, fazer com que cérebros propagadores de novas ideias trabalhassem para eles. A analogia entre o nome da protagonista e a América, que sempre fora colonizada, desde a vinda dos jesuítas com as primeiras embarcações portuguesas até a inserção do capital estrangeiro. América é a pureza, é a menina sonhadora, é a idealista, aquela que não se satisfaz com a inércia. América é movimento vital, é transmutação, América é fogo que arde com paixão e quer alcançar o infinito.

AMÉRICA (grave e comovida): Sendo quem sou, em nada me pareço. Sendo quem sou, não seria melhor ser diferente, e ter olhos a mais, visíveis, úmidos, ser um pouco de anjo e de duende? (pausa. Escuro total. Voz muito alta e apaixonada) Ah, boca de uma fome antiga, rindo um riso de sangue. Se pudésseis abri-la para cantar meu canto.

Ao olhar em sua volta pouco se identifica com sua figura humana. Ela preferiria ter outras formas, talvez um híbrido que aproximasse o Anjo da fé Cristã com os duendes das mitologias pagãs. Nem uma coisa, nem outra, mas algo que se situa no lugar do interstício, onde essa comunicação seria possível. O silêncio aqui comunica, reforçado pela escuridão, um mergulho introspectivo nas profunduras de sua Alma. Sua voz se ergue e um grito apaixonado exalta sua fome. É certo que há fome na América, uma fome antiga por alimentos, sobretudo em regiões secas e desérticas. Mas a fome de América não é por alimentos: é uma fome de liberdade. Um clamor antigo, que assola o Humano. América nunca fora livre. Sim, o riso é possível. Mas o riso sangra, o riso dói, ele custa a sair frente aos sofrimentos que lhe são incutidos. Mas para cantar seu canto, já não há forças. América, aos poucos, está morrendo.

Tateio. A fronte. O braço. O ombro.
O fundo sortilégio da omoplata.
Matéria-menina a tua fronte e eu
Madurez, ausência nos teus claros
Guardados.
Ai, ai de mim. Enquanto caminhas
Em lúcida altivez, eu já sou o passado.
Esta fronte que é minha, prodigiosa
De núpcias e caminho
É tão diversa da tua fronte descuidada.
Tateio. E a um só tempo vivo
E vou morrendo. Entre terra e água
Meu existir anfíbio. Passeia
Sobre mim, amor, e colhe o que me resta:
Noturno girassol. Rama secreta.

(Hilda Hilst)

Enquanto uma das Cooperadoras discursa sobre a cooptação de América e o papel que esta pode vir a desempenhar para restabelecer o equilíbrio de Eta e Dzeta, evitando que estes oscilem em seus percursos, América agoniza em seu leito de morte. Entretidas e maravilhadas pelos avanços da ciência, a morte de América aconteceu sem que dessem conta. Seu silêncio a recobria como um manto invisível. O discurso rouba a cena e retira o foco do acontecimento real. A atenção para essas criaturas devoradoras de luz ofusca o brilho que ilumina o momento exato da morte. América morre como se fosse o último suspiro de uma Humanidade mais humana. Sua morte sela a salvação de Eta e Dzeta, que voltaram a funcionar a todo vapor. O foco continua no fascínio pelas engenhosas criaturas. Ninguém chorou por América.

São os grandes visionários
Dos abismos tumultuários.
As sombras das sombras mortas,
Cegos a tatear nas portas. (...)
Que essas cabeças errantes
Trazem louros verdejantes.
E a languidez fugitiva
De alguma esperança viva..

(João da Cruz e Sousa)








Capítulo V
O MARAVILHOSO DISFORME E AS INTERMITÊNCIAS DO CARRASCO

"Em algum lugar triste do mundo", em uma pequena vila esquecida pelo tempo, vive um verdugo. Sua casa é protótipo da morada de um homem simples: modesta, porém decente. Pouca mobília, dois pequenos lampiões, paredes brancas, uma mesa ao centro. Assim Hilda Hilst descreve o cenário em que passa sua mais célebre peça. Não há quadros na parede, ou porta-retratos. As rubricas sugerem que não haja quaisquer rastros ou vestígios que caracterizem a família. O cenário deve ser o mais genérico possível, para dar a impressão de que se trata de uma família qualquer. A mesa está posta para o jantar. A primeira cena tem início com a mulher a servir sopa para o marido. Também encontram-se à mesa os dois filhos do casal.

MULHER (ríspida. Para o Verdugo): Come, come, durante a comida pelo menos você deve se esquecer dessas coisas. Que te importa se o homem tem boa cara ou não? É apenas mais um para o repasto da terra. (pausa)
VERDUGO (manso): Você não compreende.

Hilda Hilst apresenta o dilema do personagem em um diálogo bastante indigesto para um jantar de família, sem muitas delongas ou floreios: um homem é condenado à morte e o Verdugo é o único habilitado para levar a cabo o serviço. Por algum motivo, dessa vez ele se mostra relutante em desempenhar sua função de carrasco: o homem lhe parece bom, e falara coisas que aparentemente haviam-no sensibilizado. A crise interna se instaurara, mas sem o apoio de sua esposa, interessada em uma provável recompensa pelo serviço sujo. A filha, que está prestes a se casar com um sujeito desempregado e bastante acomodado em sua condição, vê nessa recompensa uma possibilidade de realizar o sonho de adquirir uma casa própria. O único a solidarizar-se com o pai é o jovem filho, que parece não se dar com a mãe e a irmã. As alianças estão seladas no que seria uma guerra dos sexos, se não fosse pela entrada em cena do noivo, o que ocorre na segunda metade da primeira cena. O clima aparece cindido, entre a rispidez mesquinha das moças, e a crise de identidade que atravessa o Verdugo, talhando uma expressão pacata em sua face. Seu filho está perplexo frente à mesquinhez da mãe e da irmã, ao passo que dá razão ao pai em abrir mão de fazer o serviço sujo: afinal, não se trata de um homem ordinário, mas de alguém particularmente bom. Quem sabe um santo...

Parece-me ser igual dos deuses
aquele homem que, à tua frente
sentado, tua voz deliciosa, de perto,
escuta, inclinando o rosto,
e teu riso luminoso que acorda desejos – ah! eu juro
(...)
um frio suor me recobre, um frêmito do corpo
se apodera, mais verde do que as ervas eu fico;
que estou a um passo da morte
parece

(Safo de Lesbos)

No diálogo, aparece um outro personagem que está ausente: o povo da vila, aquele de quem se fala. O povo supostamente estaria contra a morte do homem. Com base nesse argumento, o filho parte em defesa do pai, enquanto as duas se tornam cada vez mais histéricas e agressivas. Os argumentos do filho são rebatidos com alfinetadas, que variam entre o "cale a boca" e o "que te importa aqueles coitados", ou tentativas toscas de colocar em descrédito suas palavras. Enquanto isso, o Verdugo tenta comer, imerso em pensamentos, como se o bate-boca à mesa fosse música de fundo. De tempos em tempos, o pai vem ao socorro do filho, quando julga que a consorte e a filha passam do limite. Ainda assim, sua entonação explicita uma reação passiva, desprovida de agressividade. Até que explode:

VERDUGO: Ô merda, mulher! A minha cabeça aguenta algum tempo, depois eu me esqueço, ouviu? Esqueço que sou um homem e viro... chega! (pausa. Brando) O homem tem uma cara impressionante. (pausa)

FILHO: Como ele é bem de perto, pai? (pausa) Fala.

VERDUGO: O homem tem um olhar...um olhar... honesto.

MULHER: Honesto, ha?

VERDUGO: Limpo, limpo. Limpo por dentro.

MULHER (com desprezo): Ah, isso!

FILHA: Por dentro ninguém sabe como ele é. Ninguém sabe como ninguém é por dentro.

FILHO: Eu sei como você é por dentro.

FILHA: Ah, sabe? Fala então.

FILHO: Por dentro você não tem nada. É oca.

VERDUGO (manso): Chega.

FILHA (para o irmão): Mas vou deixar de ser. Vou casar vou ter filhos...

A paciência do Verdugo apresenta sinais de esgotamento, porém ele não se volta contra o mal-estar instaurado, explicitando, por sua vez, a angústia que o atormenta, em um movimento de dentro para fora. Ele soçobra e anseia pela compreensão de sua consorte, que permanece alheia ao compadecimento do marido e indiferente à morte do homem. Ela não explicita qualquer indício de compaixão. Ele é o provedor da família e a sorte de sua família depende desse serviço. Ela se alimenta da esperança de que esse encargo viesse a abrir caminho para uma ascensão social. Já o filho é tomado por uma curiosidade que provém de certo encantamento, dirigido ao personagem ausente. O homem misterioso suscita dúvidas dentro e fora do palco, já que sua identidade não nos é revelada. Apenas o Verdugo o conhece de perto. De certa forma o povo, outro personagem ausente, parece ter bastante afinidade com o condenado. A irmã apresenta sinais de sensatez, ao constatar que ninguém conhece alguém por dentro. Tanto o santo quanto o herói são mitificados desde fora com base em supostas virtudes internas não verificáveis a olho nu.

ELA – Sonhadores habituais,
presos eternos às correntes temporais,
cativos das cadeiras de hospitais
em devaneios, ilusões, delírios,
viajamos pelos mares infinitos
descobrimos atlântidas e antilhas,
imergimos em naves submarinas...

(Renata Pallotini)

Em seguida, o irmão resolve provocá-la, chamando-a de oca por dentro. A tentativa de insulto não surte o efeito desejado, uma vez que ela parece não se importar em ser oca por dentro. O vazio, afinal, estaria prestes a ser preenchido por um marido e filhos. A ideia de vacuidade pode ser interpretada em diversos sentidos. Para a filósofa Jeanne Marie Gagnebin, nem todo vazio precisa ser preenchido: "Pensar também é ousar deixar à vida, ao sexo e à morte sua força de interrogação, ousar dar à luz sem presumir da imortalidade, ousar não suturar a cisão, ousar não preencher o vazio." Hilda Hilst brinca com os significados, visto que para o irmão tratar-se-ia de um vazio de pensamento, como se a irmã não tivesse nenhuma ideia substancial, nada além de futilidade e mesquinhez. Já a irmã pensa o vazio como um espaço a ser preenchido por um projeto de vida. Tal projeto confluiria com uma promessa de felicidade bastante trivial, algo incorporado socialmente desde a infância: o matrimônio. Sob a égide patriarcal, à mulher o matrimônio é apresentado como a única chance de felicidade. Uma vez liberta dos ditames do patriarca, ela parece adquirir certa autonomia, até que se desfaça a ilusão de liberdade, ao constatar que a autoridade do pai fora substituída pela de seu consorte. Porém isso pode ocorrer em diferentes níveis: as amarras se afrouxam ou se estreitam de acordo com a configuração subjetiva que se dá no interior do núcleo familiar. São múltiplas e complexas as relações de poder que se estabelecem no espaço de convivência atribuído à família. Não obstante, os papéis podem se inverter, dando vazão a novas possibilidades de convívio. Na família genérica retratada nessa peça, isso é bastante fluido, pois é a esposa quem joga o consorte contra a parede. Por outro lado, a irmã reafirma valores socialmente instituídos, impelida para a realização de um projeto antigo que preencheria pelo matrimônio o vazio de sentidos, no compasso da repetição cíclica da vida. Simone de Beauvoir constatou em "O Segundo Sexo":

O destino que a sociedade propõe tradicionalmente à mulher é o casamento. (...) Para as jovens, o casamento é o único meio de se integrarem na coletividade e, se ficam solteiras, tornam-se socialmente resíduos. Eis por que as mães sempre procuraram encarniçadamente colocá-las. (...) A mulher está voltada à perpetuação da espécie e à manutenção do lar, isto é, à imanência. (...) Ela não tem outra tarefa senão a de manter e sustentar a vida em sua pura e idêntica generalidade; ela perpetua a espécie imutável, assegura o ritmo igual dos dias e a permanência do lar cujas portas conserva fechadas; não lhe dão nenhuma possibilidade de influir no futuro nem no universo; ela só se ultrapassa para a coletividade por intermédio do esposo.

Beauvoir descreve a situação da mulher na Paris do após-guerra. O ano de sua publicação é 1949, ou seja, vinte anos antes da publicação da peça de Hilst. Ainda que nesse ínterim muita coisa tenha mudado, resquícios consideráveis dessa imanência permanecem em vigor. No texto, o casamento se figura para a personagem como algo que a situa em seu lugar de mulher na sociedade. O fato de seu noivo estar desempregado não constitui um impedimento para que o casamento se realize. Mãe e filha estão dispostas a fazer o que estiver a seu alcance para que tudo saia conforme planejado. Por outro lado, a filha não demonstra sinais de afeto para com o futuro consorte. A ideia do casamento parece lhe agradar mais que a presença do noivo.
A esposa do verdugo faz questão de lembrá-lo da função social que desempenhara até o momento, diante da crise instaurada frente à execução do homem misterioso. É, afinal, um verdugo. Aquele que garante o sustento da família pelo derramamento de sangue, com base em uma fé cega na lei dos homens.

MULHER: Trate de ficar sabendo logo. Não é o primeiro nas tuas mãos.

VERDUGO (seco): Ele é diferente.

MULHER: Diferente, limpo, uf! É igual aos outros.

FILHO: Ninguém tem o mesmo rosto.

MULHER: Eu quero dizer que ele é igual a todos os outros filhos-da-puta que morreram porque a lei mandou. (para o Verdugo. Sorrindo com ironia) Você se lembra daquele que parecia um anjinho? Hein? Lembra? Todos diziam...

VERDUGO (interrompe): Eu não.

MULHER: ... mas os outros diziam ele tem cara de anjo. E vocês se lembram do que ele fez? (para o Verdugo e para o Filho) Se lembram? Acho que vocês dois não estão lembrados. (para a Filha) Conta, filha, porque aquele outro anjinho foi condenado.

FILHA (sorrindo): Ele matou aqueles dois menininhos.

MULHER (irônica): Só isso?

FILHA (sorrindo): Não. Primeiro ele queimou as plantas dos pés e as mãozinhas dos menininhos.

MULHER: E depois?

VERDUGO (seco): Já sabemos, chega.

A esposa tenta persuadi-lo, resgatando experiências passadas que se inscrevem em seu histórico como verdugo. Seria preciso depurar as aparências dos fatos. A cara de anjo fora apenas fachada, que servira para encobrir o crime bárbaro que o condenado ocultara: o assassinato a sangue frio de duas crianças. Não satisfeita em lembrá-lo do ocorrido, a mulher faz questão de cutucar a ferida, pedindo à filha que narre os detalhes sórdidos do crime perpetrado por um sujeito que tinha cara de anjo. O povo também tivera compaixão pelo réu, mas a verdade viera à tona. A tentativa de igualar o homem a um assassino impiedoso provoca-lhe calafrios. Essas lembranças despertam fantasmas do passado, produzindo uma tormenta que beira o insuportável. A mulher e a filha se regozijam de prazer ao perceber que sua pressão psicológica surte efeito, mas o impasse permanece.

FILHO: Mas esse é diferente, não é nada disso, mãe. Esse só falou.

MULHER: Deve ter falado besteira.

FILHO: Ele falava de Deus também.

MULHER: Deus, Deus, onde é que está esse Deus? (para o Filho) Não foi você mesmo que andou lendo que naquele lugar, lá longe...

FILHO (interrompe): Na Índia.

MULHER: Sei lá, na Índia, onde for, as criancinhas de seis anos vão para o puteiro? Deus, Deus... e depois não foi você mesmo quem disse que se elas não fossem para os puteiros aos seis anos elas morreriam de qualquer jeito, de fome? Hein?

FILHO: Foi, sim, mãe. Fui eu mesmo.

MULHER: Então deixa o teu pai fazer o serviço. Se Deus não consegue ajudar aquelas criancinhas, você acha que esse homem é que vai nos ajudar? (pausa)


Nesse diálogo a esposa do Verdugo apresenta argumentos fortes, evocando um questionamento quanto aos limites da força Divina. A que serve falar em Deus quando crianças de seis anos são prostituídas e vivem sob a constante ameaça de morte por inanição? Até que ponto poderiam contar com Deus para tirá-la da pobreza, quando injustiças de tamanha magnitude assombram o universo infantil? Pela segunda vez a mulher menciona com certa comoção atrocidades ocorridas com criancinhas. Se por um lado, o intuito é usar os argumentos mais desconcertantes e eficazes para comover o marido, ela mesma é mãe de dois filhos. Injustiças praticadas contra crianças são sentidas de maneira bastante distinta das injustiças praticadas contra adultos. Ao machucar uma criança, machuca-se a mãe. Mais do que isso: machuca-se a mulher. Na sociedade patriarcal, a maternidade desempenha um papel central, em que toda mulher é uma mãe em potencial. De acordo com a filósofa Luisa Muraro, maternidade e mulher são conceitos imbricados, situados em uma margem estreita. Para Muraro:

Mujer es el nombre de uma condición muy común (no menos que hombre), (...) interviene el dominio patriarcal, sí, pero quizá interviene más algo que afecta a la condición em sí, independientemente del hombre (pero dependiente de las demás mujeres, em primer lugar la madre). Por lo que yo sé, mujer quiere decir poder convertirse em madre y encontrarse de este modo reclamada por el reconocimiento de la vida recibida y de la precariedad de la vida a transmitir, habitada em alma y cuerpo por tres generaciones...

O homem supostamente mereceria o seu fardo, mas as crianças seriam criaturas inocentes. Em todo caso, Deus não fora capaz de atender às suas súplicas. Em um primeiro momento, o filho fica sem argumentos, uma vez que fora ele mesmo quem compartilhara essas informações, apreendidas em suas leituras. Sua visão de mundo parece inspirada nos livros. Apesar de seu apreço pela figura do pai, suas convicções se remetem, em grande medida, ao universo literário. Daí provém o conhecimento compartilhado com os demais membros da família, que, se sabem ler, não têm afinidade com o hábito da leitura. Às mulheres, cabe desempenhar a função de dona-de-casa. As oportunidades atribuídas ao universo feminino são demasiado restritas. A casa é o espaço privado, o espaço do confinamento, o espaço que, segundo a ótica patriarcal, é designado para as mulheres. Nas palavras da filósofa Marcia Tiburi:

A mulher não é apenas o lugar onde o útero habita, mas o que habita o útero, metonímia da casa. O espaço público, compartilhado por todos, não llhe é disponível. Ela é um objeto que carrega um espaço que se confina dentro de um espaço. O útero: metonímia da vida privada.

O chefe da família, por sua vez, é verdugo, trabalho que não exige grande esforço intelectual. O filho é o único na família cuja função é voltada para os estudos, quem sabe o único que efetivamente tivera essa possibilidade. A mãe presta atenção, e grava bem os argumentos do filho, a ponto de usá-los a seu proveito quando necessário. Afinal, a função de elaborar os saberes assimilados é de outra natureza. A mãe aprendera com a experiência de vida, algo que os livros não ensinam. Luisa Muraro narra um diálogo entre Platão e Diótima, sua suposta tutora, em que ela ensina coisas que não estavam nos livros, como o amor e a experiência de vida. Platão aprendeu com ela que nem toda verdade pode ser expressada em palavras. Saber está além das palavras. Muraro desenvolve:

El campo del saber no se divide todo entre ciencia e ignorancia, le dijo la maestra extranjera a su alumno ateniense: hay otra manera de estar em él, la de quien sabe algo aunque teniendo que prescindir de las certezas absolutas, la de quien conoce la verdad sin estar em condiciones de demonstrar que lo es.

Mas desta vez quem ficou sem palavras foi o filho. Sem saber como responder à provocação da mãe, ele então se vira para o pai e retoma o assunto:

FILHO (para o pai): O pai não quer fazer, não é?
MULHER: Essa é a profissão de teu pai.
FILHO (olhando para o pai): Verdugo.
MULHER: Verdugo sim. Uma profissão como qualquer outra. (pausa)
VERDUGO: Mas esse homem eu não quero matar, mulher.
MULHER (impaciente): Mas não é você quem vai matar. É a lei que mata. Você é o único aqui na vila que pode fazer o serviço. Ninguém mais. Ora, que besteira.
VERDUGO: Mas a gente da vila não quer que o homem morra. O povo...
MULHER (interrompe): Deixa disso, o povo é filho-da-puta, eles fazem assim só pra não dar gosto para aqueles juízes.

A simples menção ao ofício de seu estimado pai produz certo desconforto, sugerindo que o filho desaprova a profissão de seu progenitor. A mãe está ciente do rancor que isso suscita, e explora essa desavença, ao constatar que se trata de uma profissão como outra qualquer. A pausa indicada pela rubrica é elucidativa de um estranhamento, chamando atenção para o absurdo da frase. Ele presta serviços ao Estado, como qualquer outro cidadão que vende sua força de trabalho, porém esse serviço consiste em matar em nome da lei. Uma linha tênue delimita onde começa a força da lei e onde termina a força da vontade do sujeito, o livre-arbítrio. Quem seria responsável pela morte do condenado: o carrasco ou a lei em nome da qual o sangue seria derramado? O Verdugo não deseja matá-lo, mas a lei firma o veredito, cuja função recai em suas costas, tal como um fardo. Seria possível uma recusa, e a que preço? Não havia na vila outra pessoa habilitada para substituí-lo em sua função.

Acima de tudo, o livre está subordinado ao preso. E eis que o homem de fato está livre, ele poderia ir para onde quiser, apenas a entrada na lei lhe é proibida, e além disso, apenas por uma única pessoa, o porteiro. Se ele se senta sobre o tamborete ao lado da porta e fica por lá durante sua vida inteira, isso acontece voluntariamente, a história não diz nada acerca de uma coação. O porteiro, ao contrário, está preso a seu posto por seu ofício, ele não pode se afastar e, segundo tudo indica, também não poderia ir para o interior, mesmo que quisesse. Além disso, ele está a serviço da lei, mas serve apenas para aquela entrada, portanto apenas àquele homem, para o qual e somente para o qual está destinada aquela entrada.

(Franz Kafka)

O Verdugo então pondera que a morte do homem não condiz com a vontade do povo, mas logo é interrompido pela esposa, que chega ao disparate de chamar o povo de "filho-da-puta". O ultraje que a mulher dirige contra o povo leva até o limite o egoísmo intrínseco que a impele a pensar somente em seus interesses mesquinhos. Ela se imagina fora e acima dos demais habitantes da vila, trata-os com desprezo por se colocarem no caminho de sua recompensa. "Filho-da puta" equivale a uma blasfêmia, que tem por alvo o caráter do indivíduo. Aquele que já nasce fruto da desonra de sua mãe, cuja identidade paterna é ignorada. A historiadora Luzia Margareth Rago situa a prostituição, a partir do período da belle époque paulistana (1900 a 1930), no cerne de uma polarização socialmente construída entre a casta e a devassa, sendo a primeira a mulher honrada, a mãe de família exemplar, e a segunda, ao contrário, é aquela que coloca em xeque a moral e os bons costumes das jovens, educadas para o recolhimento no ninho domiciliar. Urge uma ameaça latente, em que a segunda possa corromper a primeira com sua devassidão. A segunda seria o avesso da primeira. Segundo Rago:

A preocupação em delimitar claramente os lugares permitidos para a circulação das jovens de família, distantes das meretrizes acentuou-se, enquanto diversificavam-se e expandiam-se as novas formas de consumo dos amores ilícitos e da cultura erótica. Pela primeira vez constituíam-se espaços destinados à fruição dos prazeres, como cabarés, cafés-concertos, bordéis de luxo, ao lado dos restaurantes, teatros e music-halls.

Um sujeito criado em um espaço socialmente concebido em um antro de pecado e desonra não poderia ser movido por outra coisa que não a má-fé. O "filho-da-puta" seria o filho renegado, afundado em vergonha desde o seu nascimento. A esposa acusa o povo de "filho-da-puta", pois entende que tenha agido de má-fé, ao criar um alvoroço pelo simples prazer de contrariar os juízes.

FILHO: O homem era bom de perto, pai?

VERDUGO (manso): Não sei, meu filho, não sei. (pausa) É muito difícil para mim. É asssim como se eu tivesse que cortar uma árvore, você entende? Eu nunca derrubei uma árvore, eu não saberia, é difícil, não é o meu ofício.

MULHER: Uma árvore... Você cortou cabeças, enforca gente e fala de uma árvore. Parece que está louco.

VERDUGO: É diferente, mulher. É diferente. Esse homem é como se fosse uma árvore para mim. (pausa)

FILHO: Que cara ele tem bem de perto, pai?
(...)

VERDUGO: De perto, meu filho... ele parece o mar. Você olha, olha e não sabe pra onde olhar. Ele parece que tem vários rostos.

MULHER: Todo mundo só tem um rosto.

VERDUGO (para o Filho): ... de repente, ele olha firme, você sabe? Assim como se eu te atravessasse. É muito difícil olhar para ele quando ele olha assim. E depois... ele também pode olhar de um jeito... Você se lembra daquele cavalo que um dia te seguiu?

FILHA (rindo): Quem é que não se lembra? O cavalo não aguentava subir aquela ladeira. O dono do cavalo dava umas palmadas no focinho do coitado.(ri. Para o irmão) Aí você gritou: "se você é tão macho para bater em mim como bate nesse cavalo, eu corto o meu..." (ri) e pulou em cima do homem como um leão. O coitado fugiu feito doido. E o cavalo só podia te seguir, lógico. (ri) Até o cavalo compreendeu. Foi engraçado aquele dia.

Todos riem. Pausa.

VERDUGO (para o Filho): Mas você se lembra dos olhos do cavalo?

FILHO: Eu me lembro sim, pai, eu me lembro. (pausa)

VERDUGO: Pois o homem tem às vezes aquele olho.

FILHO: Então ele é bom, pai.

MULHER: mas o que adianta vocês ficarem falando que ele é bom, se ele tem os olhos de cavalo ou não? (para o Filho) O homem tem de morrer e é seu pai quem vai fazer o serviço. E vai ganhar bem desta vez. Vamos começar outra vida, tenho certeza.

Sem argumentos para responder à provocação da mãe, o filho logo muda de assunto, ao indagar sobre a bondade do homem misterioso. Para o verdugo, ele é como uma árvore. Uma árvore, por onde corre a seiva vital. Uma árvore que fornece sombra, flor e frutos e se modifica conforme a estação do ano. Para o pesquisador de mitologia Joseph Campbell, a árvore é "o mitológico axis mundi, aquele ponto em que tempo e eternidade, movimento e repouso, são um só, e ao redor do qual revolvem todas as coisas". Uma árvore, em torno da qual as crianças brincam, em cujos galhos é possível pendurar-se. Diferente dos homens, uma árvore não seria capaz de cometer crime algum. Ela simboliza a vida, mas não pode tirá-la. O verdugo não seria capaz de derrubar uma árvore. Uma árvore supera os seres humanos em bondade. A aproximação dos seres humanos com a figura de uma árvore pode ser levada ao limite, com a transmutação de Mirra, filha do rei Cíniras em "Metamorfoses"de Ovídio:

A terra (...) cobre as pernas; unhas dos pés fendem-se e espalham-se em raízes oblíquas, suporte de um longo caule, os ossos fazem-se de madeira, embora reste no interior a medula, o sangue converte-se em seiva, os braços em grandes ramos e os dedos em ramitos, a pele endurece, fazendo-se casca.Agora, a árvore, crescendo, já envolvera o útero grávido e submergira o peito e estava a ponto de cobrir o pescoço. Ela não suportou a demora; e baixando-se ao encontro dfo lenho que crescia, mergulhou o rosto debaixo da casca. E embora tenha com o corpo perdido os sentidos antigos, todavia ela ainda chora, e tépidas gotas jorram da árvore. Até as lágrimas podem receber honras: destilada do tronco, a mirra retém o nome da senhora e fica famosa para sempre.

A mulher mais uma vez esfrega em sua cara os ossos de seu ofício, enfatizando o absurdo de um sujeito que enforca e decapita seres humanos dizer que jamais cortaria uma árvore. A contradição está posta a desnudo como um apêlo à reflexividade, como quem diz: "como assim?" Quando o Verdugo responde que esse não é seu ofício, fica implícito um trabalho irrefletido, executado mecanicamente. Ele é um funcionário que segue ordens, e extermina seres humanos tal como o bom soldado ou o bom operário cumprem sua labuta. Em um ofício não se pensa, ele se faz. Segundo o filósofo búlgaro Tzvetan Todorov: "Matando e torturando, os guardas conformam-se às leis de seu país e às ordens de seus superiores". Mata-se fria e sistematicamente em nome de um "imperativo categórico militar". Ao ser burocratizado e incorporado à rotina do Estado, o mal é exacerbado, sendo operado por funcionários obedientes, homens comuns, que seguem as leis, fazem jus ao "imperativo categórico militar", em operações racionais com o emprego da mais avançada tecnologia, destinada à tortura e à morte dos elementos subversivos.

Uma organização que não apenas emprega vigias(...), inspetores e juízes de instrução atoleimados, que na melhor das hipóteses são simplórios, mas sustenta inclusive uma magistratura de grau elevado e superior, com um séquito inumerável e inevitável de contínuos, escriturários, gendarmes e outros auxiliares, talvez até mesmo de carrascos, não tenho o menor receio de mencionar essa palavra.
Franz Kafka

A segunda pergunta do filho sugere certo distanciamento: "Que cara ele tem de perto, pai?" A imagem do homem que só lhe é apresentada de longe. A distância reforça a mitifição do personagem: aquilo que não se sabe ao certo se inventa. A imaginação fértil daqueles que procuram interpretá-lo de um ponto de vista distanciado fornece materialidade para a projeção de fantasias coletivas. De um homem simples, ele passa a ser imaginado como um santo, ou um herói, no qual são depositadas as esperanças de um corpo social. Como o corpo social é configurado por uma miríade de desejos dissonantes, o homem parece apresentar mil faces, tal como imagens refletidas por um globo de espelhos. Não é de um homem que se trata, mas de um mito cuja história é observada a partir de múltiplos pontos de vista.

Ao mirar-me [nos espelhos] ficava de certa forma estupefata por ver tão claramente que eu era apenas aquilo que via ali: limitada, enjaulada, forçada a deixar de ser no restante, até mesmo no mais próximo. Não me olhando no espelho, isso não me perturbava tanto, mas, de qualquer forma, meu próprio sentir recusava a circunstância de eu não existir em e com qualquer coisa, mas, sim, inaceitada, como que desabrigada. Afigura-se bastante normal, já que me parece ter ficado perturbada com isso outras vezes quando a imagem do espelho há muito expressava apenas uma referência interessada na própria imagem. De qualquer forma, tais representações precoces contribuíam para que eu não achasse chocantes nem a onipresença nem a invisibilidade do Bom Deus.

(Lou Salomé)

O Verdugo então alude a uma segunda alegoria: o homem é como o mar. Na imensidão de um mar é difícil fixar os olhos em um único ponto. As retinas vagueiam pela imensidão azul, borram a nitidez e diluem a perspectiva da imagem. A vista mareia, perde o foco, e produz uma miríade de imagens com a refratação da luz sobre as águas que se movimentam em ângulos contrastantes. O mar é profundo e guarda seus segredos . Um imenso véu azul esverdeado recai sobre um universo fantástico, habitado por cardumes, corais multicoloridos, e espécies marinhas das mais variadas formas. Ao olhar para o mar que se esvai com a linha do horizonte, é possível imaginar as criaturas fantásticas que nele habitam, ou imergir nos pensamentos mais recônditos, inspirados pela imensidão azul, no embalo do barulho das ondas quando atingem a superfície. Olhar para o mar é contemplar um abismo de mistério.

Já o mar e a terra não ofereciam qualquer distinção: tudo não era mais que mar, mar a que faltavam costas. Um sobe a um monte, outro senta-se na curva barca e maneja os remos no sítio onde há pouco lavrara. Aquele navega sobre as searas e os telhados da quinta submersa, este pesca um peixe no cimo de um ulmeiro. Segundo a sorte, a âncora fixa-se num verde prado, as encurvadas quilhas raspam os vinhedos de baixo. E onde antes as esbeltas cabrinhas pastavam a erva, agora aí mesmo disformes focas estendem os corpos. Sob as águas, as Nereides vêem pasmadas bosques, cidades, casas; golfinhos ocupam florestas e chocam contra as altas ramagens, embatem e abanam os carvalhos. Nada o lobo entre ovelhas, a onda leva fulvos leões, tigres leva a onda; de nada vale a força das fulminantes presas ao javali, ou velozes pernas ao cervo arrastado. (...) O desatino desmesurado do marsepultara montanhas, e vagas inéditas embatiam nos píncaros das serranias.

(Ovídio)

Para a filósofa Luce Irigaray, para se aproximar do mistério é preciso imergir no silêncio, abdicar de um ímpeto racional que nos leva a traduzi-lo em palavras. Há um imenso abismo que aparta as subjetividades, habitado por vastos espaços de silêncio, e canduras impenetráveis. As linhas que demarcam as palavras podem ser borradas, como as águas do mar, cuja placidez aparente se desfaz à medida que nos aproximamos. As camadas que à distância parecem linhas definidas descortinam um movimento intermitente, ora próximo, ora distante, mas que não pode ser capturado. Contemplar o mar requer um olhar aberto, sem delimitações. Na peça de Hilst, não é o homem que atravessa o mar, mas o mar que atravessa o homem. O mar que deságua nos homens através de um olhar penetrante. Pelo olhar, ele penetra a alma. Como em Irigaray, trata-se de um movimento vital, de algo que flui na superfície e nas funduras do entre. Nas palavras da filósofa:

Deep, deeper than the greatest depths your daylight could imagine (...) Luminous night, touched with a quickening whose denseness never appears in the light. (...) Nothing solid survives, yet that thickness responding to its own rhythms is not nothing. Quickening in movements both expected and unexpected. Your space, your time are unable to grasp their regularity or contain their foldings and unfoldings. The force unleashed has na intensity which cannot anywhere be measured, nor contained. Can never be obliterated unless it is poured out in mortal ecstasy. (...) It flows between. (...) Flowing everywhere without boundaries – deathly boundaries.

A terceira imagem aludida pelo verdugo para referir-se ao misterioso homem é a de um cavalo. Seus olhos são como os de um cavalo. Não se trata de qualquer cavalo, mas de um específico, que atravessou seu caminho. É a filha quem relata a experiência do encontro com o cavalo, que subia a duras penas uma ladeira íngrime, a custa das pauladas de seu dono, ferindo-lhe o focinho. O irmão vem em defesa do animal, desafiando-o para que bata nele no lugar do cavalo. Seria preciso ser "macho" o bastante para aceitar o desafio. Ser "macho" aparece como sinônimo de coragem. Nem todo homem é "macho" o bastante para erguer a mão contra ele.
Michel Foucault assinala que uma moral elaborada pelos homens e para os homens implica em criar para si uma estrutura de virilidade, baseada no domínio de si e de seus subordinados, pela imposição da obediência por meio da força e da exaltação dos princípios da razão frente aos inaptos ao raciocínio e ao governo de si. Nesse sentido, todos aqueles que não correspondem a um certo modelo de virilidade encontram-se do lado oposto da linha que demarca o homem que governa do homem governado, sendo o primeiro portador de uma virtude solidamente ética, e o segundo, tal como a mulher, se desvia desse modelo, e exige, portanto, outro modelo a seguir, um tutor que o situe no eixo. Os segundos se subordinam aos primeiros por encontrarem nele o modelo acabado de perfeição e princípio de funcionamento. Sob a ótica dessa moral, o homem efeminado é aquele que se iguala à mulher, ao demonstrar fraqueza e submissão frente aos prazeres e desejos que o habitam. É o homem passivo, desprovido de coragem. Segundo Foucault: "A temperança e a coragem são no homem virtude plena e completa de comando."
A ameaça do irmão suscita risos incontidos, acentuando e substituindo palavras que ressaltam a obscenidade intrínseca ao ato de cortar a própria genitália. Se o dono se atrevesse a bater nele assim como no cavalo, ele mesmo seria indigno de ser "macho". Para o filho, o ato da castração expressa uma perda da dignidade atribuída ao masculino. Porém é anunciada como uma hipótese remota, quase impossível. O filho considera tão absurdo que o dono do cavalo seja "macho" o bastante para dar-lhe uma surra, que seria capaz de apostar qualquer coisa, até mesmo sua genitália. Aos olhos da irmã, a cena toda parece risível. Ele avança sobre o dono do cavalo, tal como um leão. Ele é corajoso, a ponto de ser comparado ao rei das selvas. O leão também é protótipo de coragem. Assim como o leão afugenta suas presas, o dono do cavalo é tomado por um temor verossímil, e põe-se a correr da fera. O medo é tamanho que ele corre "feito doido", ou seja, aflito, desnorteado. Ao entender o que se passara, o cavalo prefere seguir aquele que o salvara que a seu dono, seu agressor. Os olhos do cavalo expressam uma compreensão quanto às injustiças do mundo. Ele resiste, não quer subir a ladeira. Quando alguém mais forte vem a seu socorro, ele prefere segui-lo a perpetuar seu flagelo. Seus olhos são inundados de esperança.

Mas o mundo foi rodando
Nas patas do meu cavalo
E já que um dia montei
Agora sou cavaleiro
Laço firme e braço forte
Num reino que não tem rei

(Geraldo Vandré / Theo de Barros)

As alegorias evocadas pelo verdugo para designar o homem nos fornecem pistas para ilustrar o invisível. As alegorias são artífices de mistérios, que o preservam, mas suscitam sutileza. Para a filósofa Luisa Muraro, são palavras que sugerem o indizível, o inexplicável. Nem tudo é decifrado, decodificado. Há uma última palavra que se cala. Nas palavras de Muraro:

Lo Otro puede ser de tal naturaleza que, sin significarlo con otra cosa, podría tropezar con el esfuerzo humano de explicarlo todo, y extinguirse entonces en la banalidad de nuestras representaciones. Há pasado con el amor. Con Dios. Con la Naturaleza. Com la psicologia humana, que los antiguos estudiaban alegóricamente.

O fluxo reflexivo ilustrado pelas alegorias esboçadas pelo verdugo é interrompido pela entrada do noivo, com seu sorriso idiota, que traz uma notícia desagradável: os juízes desejam ter com o Verdugo e aguardam do lado de fora. A tensão segue um fluxo ascendente, como se algo estivesse prestes a explodir a qualquer momento. A irrupção dos juízes suscita reações adversas: a esposa se preocupa com a aparência da casa, que não estaria à altura de pessoas tão importantes. O verdugo se recolhe em seus pensamentos e diz poucas palavras. Quem faz sala são as mulheres da casa, que cobrem-nos de lisonjas e cordialidade. Os juízes vão direto ao assunto, sem floreios.

JUIZ VELHO: Fiquem tranquilos. Nós só viemos para combinar.

MULHER (servil): Por favor, sentem Excelências, sentem.

JUÍZES (sentando-se): Obrigado.

(pausa longa)

JUÍZ JOVEM (para a Mulher): A moça vai casar, não é?

MULHER: Esperamos mas (apontando para o Noivo), ele está sem serviço.

(pausa longa)

JUÍZ JOVEM: Tudo se arruma, não é?

MULHER: Seria um presente do céu, Excelência.

JUÍZ JOVEM: Pois é.

(pausa longa)

JUÍZ VELHO: Vão melhorar de vida.

MULHER: Se Deus quiser, Excelência.

JUÍZ VELHO: Parece que Deus quer.
(pausa)

JUÍZ JOVEM (para a Mulher): Mas...

A primeira pergunta do juiz vem seguida de uma longa pausa, na qual ele se prepara para propor o suborno. Já está implícito na pergunta a que vieram os juízes. A filha estaria para casar-se com um desempregado, logo, precisaria de dinheiro. Ao dizer que "tudo se arruma", o jovem juíz sugere que a solução desse problema estaria em suas mãos.
"Seria um presente do céu": Assim a mulher se refere ao auxílio financeiro que talvez viria a ampará-los. A afirmação positiva do jovem juiz dá a entender que ele se vê acima dos demais membros da vila, como se fosse uma divindade celeste. Segue uma longa pausa reflexiva. O velho juiz reforça essa ideia, quando a mulher diz "se Deus quiser"e ele responde como se fosse ele mesmo Deus, ou alguém bem próximo: "Parece que Deus quer". Os dois juizes, cheios de soberba, trajam togas pretas, que distanciam-nos dos demais personagens, como se falassem de um pedestal.

Não! Não sou o príncipe Hamlet, nem pretendi sê-lo.
Sou um lorde assistente, o que tudo fará
Por ver surgir algum processo, iniciar uma ou duas cenas,
Aconselhar o príncipe; enfim, um instrfumento de fácil manuseio,
Respeitoso, contente de ser útil,
Político, prudente e meticuloso;
Cheio de máximas e aforismos, mas algo obtuso;
Às vezes, de fato, quase ridículo
Quase Idiota, às vezes.

(T.S. Elliot)

Por trás da cordialidade exagerada nos pomposos pronomes de tratamento dirigidos aos juizes, estão interesses pessoais, inspirados pela suposta recompensa. Isso exige uma contrapartida: o homem tem que ser morto. Os juízes não estão lá para fazer filantropia. Tão logo o juiz jovem dá a entender que existe um "porém", a mulher resolve ganhar tempo e pergunta se pode oferecer-lhes alguma coisa. A mulher é bastante astuta, e se utiliza de diversas artimanhas para manter os juízes ocupados, na esperança de que seu marido tenha tempo para considerar a oferta. Os juízes têm pressa: sequer tiveram tempo de passar em casa para trocar de roupa. Ligeira, a filha elogia a toga do jovem juiz, com uma voz feminina dissimulada, exageradamente dócil. O juiz responde seco: "É pesada". O peso que recai sobre a toga pode ser interpretado em um duplo sentido: o peso do pano, e um peso ainda maior, que corresponde ao peso do poder judiciário: a responsabilidade de decidir sobre quem é inocente e quem é culpado, quem é livre e quem é prisioneiro, quem vive e quem morre. O velho juiz lembra à moça que ela está prestes a se casar, e interrompe sua tentativa fracassada de seduzir seu companheiro de ofício. Ela olha para o noivo e sorri. Todos sorriem: um riso amarelo, constrangedor, de quem quer mudar de assunto. E assim o fazem. De um assunto desagradável, vão para outro mais desagradável ainda.

JUIZ JOVEM (para o Verdugo): Bem, o senhor sabe como é... o homem... tem de morrer.

MULHER: Sabemos, lógico. Tem de morrer.

JUIZ JOVEM: Não há outro jeito.

JUIZ VELHO (para o Verdugo): Ele falou demais. O senhor compreende? E boca deve ter uma medida.

Ele falou demais, confundiu as pessoas, disse coisas perigosas, passou dos limites. Sua boca extravasou, ultrapassando a medida que o Estado considera plausível. Muitos ali presentes parecem não entender as coisas que ele diz. O fato é que muitas pessoas tramitam em torno do homem, de modo a ser difícil chegar perto. Segundo a mulher, a multidão é movida por curiosidade. Ele seria a novidade da vila, afinal, não havia na vila muito o que fazer. Isso é bastante comum em pequenas cidades e vilarejos pacatos: sempre que algo altera o curso normal dos acontecimentos, assume o semblante de um grande evento: pode ser a chegada de uma pessoa de fora, um pequeno incidente ou algo aparentemente insignificante. Tudo o que é inexplicável se revela como milagre, o homem estranho torna-se um santo. Os juízes são implacáveis, e não parecem se sensibilizar com a vontade do povo da vila.

JUIZ JOVEM (para o Verdugo): O senhor já está preparado, então.

MULHER: Ah, está sim, ele não precisa se preparar muito. (sorri) É o ofício dele, de sempre, (para o marido) não é?

FILHO: O pai não respondeu.

MULHER: Vai saindo, menino. Você não tem a escola?

FILHO: Hoje eu não vou à escola.

MULHER: Imagine, vai de qualquer jeito, vamos.

JUIZ JOVEM: Espera um pouco, senhora. (olha para o rapaz) O moço quer dizer alguma coisa?

MULHER: Ele não quer dizer nada, Excelência. Ele é um menino, só isso. (para o Filho) Vai.

JUIZ JOVEM: Não. Ele quer dizer alguma coisa.

JUIZ VELHO: Pode falar, moço. O que é (pausa) Hein?

(pausa)

FILHO: O homem é bom.

MULHER: Cala a boca.

O silêncio do verdugo provoca aflição no recinto. A mulher fala em seu lugar: sim, ele está preparado, afinal este é seu ofício. O filho chama atenção ao fato de que seu pai não havia respondido coisa alguma, para desconforto da mãe, que trata de mandá-lo à escola o mais rápido possível. Quanta petulância de seu filho se atraver a colocar tudo a perder em um momento tão delicado! Ele tinha que se calar, caso contrário, atrairia suspeitas contra si mesmo. No período em que a peça foi escrita, falar era perigoso. Qualquer suspeito como "inimigo interno" do Estado podia ser preso preventivamente.

Atenção, ao dobrar uma esquina
Uma alegria, atenção menina
Você vem, quantos anos você tem?
Atenção, precisa ter olhos firmes
Pra este sol, pra esta escuridão

Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino maravilhoso
Atenção para o refrão:
É preciso estar atento e forte!
Não temos tempo de temer a morte!

Caetano Veloso / Gilberto Gil


O juiz jovem não é ingênuo, e percebe que o filho tem algo a dizer. Os olhos da justiça se voltam para o filho: consideram-no suspeito em potencial. Colocam-no contra a parede até que ele enfim confessa sua simpatia pelo condenado. As especulações sobre a opinião do jovem se assemelham aos inquéritos policiais analisados por Michel Foucault: "O inquérito, exercício da razão comum, despoja-se do antigo modelo inquisitorial para acolher o outro muito mais flexível (e duplamente reconhecido pela ciência e o senso comum) da pesquisa empírica." Assim como Foucault observa nas investigações criminais em "Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão", os juízes exercem uma pressão psicológica até arrancar uma confissão. Não tanto pela violência, mas pela força ideológica da jurisprudência.

JUIZ VELHO (para o Filho): Você acha que a lei se enganou, meu filho?

MULHER: Por favor, Excelências, o meu menino não sabe nada. Começou a estudar há pouco tempo.

JUIZ VELHO (insistindo): Hein, moço? A lei se enganou?

(pausa)

FILHO: Eu disse que o homem é bom.

JUIZ JOVEM: Você acha que é bondade falar o que ele fala?

NOIVO (o mesmo sorriso): O meu colega do meu emprego antigo morreu naquele dia, quando o homem falou.

JUIZ VELHO (para o Filho): Então, meu filho.

FILHO (para o Noivo): Morreu porque mataram. Não foi o homem quem matou.

JUIZ VELHO: Morreu, meu filho, porque o homem enlouqueceu as gentes. Agitou.

As palavras do rapaz podem ser usadas contra ele: cabe ao jovem cidadão questionar as leis do Estado? O Estado não erra. Se o homem está marcado para morrer, ele não pode ser bom. Isso suscita novas perguntas, cada vez mais capciosas. A pressão sobre o verdugo se desvia, e recai em seu filho. Ao ser questionado, ele se repete, pois sabe que, a qualquer pisada em falso, ele está sujeito a cair na arapuca dos juízes, defensores das leis. As leis estão acima e aquém dos humanos. São como dogmas: sagradas e inquestionáveis. Enquanto o juiz velho se ocupa de colocar o rapaz contra a parede, o jovem juiz prefere dissuadi-lo de seu equívoco. O primeiro exerce sua autoridade pela força, o segundo pela persuasão ideológica. O primeiro se faz valer pelo antigo sistema jurídico, baseado no suplício e na punição espetacular dos corpos, enquanto o segundo tem em vista o que Foucault chama de "economia calculada do poder de punir" . O cálculo não se dá em função do crime, mas tem como meta impedir sua repetição. A discrepância entre as posturas dos dois juízes reflete o conflito entre duas concepções de jurisprudência, em camadas temporais que coexistem: a antiga e a moderna. Nas palavras de Foucault:

É preciso punir exatamente o suficiente para impedir. Deslocamento então namecânica do exemplo: numa penalidade de suplício, o exemplo era a réplica do crime; devia, por uma espécie de manifestação germinada, mostrá-lo e mostrar ao mesmo tempo o poder soberano que o dominava; numa penalidade calculada pelos seus próprios efeitos, o exemplo deve-se referir ao crime, mas da maneira mais discreta possível; indicar a intervenção do poder, mas com a máxima economia, e no caso ideal impedir qualquer reaparecimento posterior de um e outro. O exemplo não é mais um ritual que manifesta, é um sinal que cria obstáculo. Através dessa técnica dos sinais punitivos , que tende a inverter todo o campo temporal da ação penal, os reformadores pensam dar ao poder de punir um instrumento econômico, eficaz, generalizável por todo o corpo social, que possa codificar todos os comportamentos e consequentemente reduzir todo o domínio difuso das ilegalidades.

O noivo, com o mesmo sorriso idiota estampado em seu rosto, fornece um exemplo medíocre, em uma tentativa tosca de provar que o homem não podia ser bom. Quando o homem falou, seu antigo colega de trabalho morreu. O exemplo não apresenta uma relação de causa e efeito, mas insinua que o discurso do homem teria alguma coisa a ver com o falecimento de seu colega. O juiz velho parece satisfeito com a resposta. O filho está por dentro do ocorrido. Segundo ele, o colega foi assassinado. Não foi o homem quem cometeu o crime. A acusação não é direta, mas fica no ar que a responsabilidade do crime recai sobre o Estado, personificado pela figura soberba dos juízes. O velho juiz não confessa de maneira explícita, mas dá a impressão de que está se justificando, ao discorrer sobre os motivos da morte do colega. Sua morte é atribuida ao misterioso homem, pois fora contaminado por suas ideias. O colega teria sido inflamado pela agitação do homem.
Quando Hilst escreveu a peça, a agitação política era considerada um crime inaudito. Se o Estado é sagrado, o ato de incitar contra o governo corresponde a uma heresia imperdoável. Prisão, tortura e assassinato são instrumentos de governo utilizados para coibir a agitação política. A noção de "inimigo interno" serviu de pretexto para o golpe militar de 1964 no Brasil. Florestan Fernandes entende que a ditadura militar foi o recurso utilizado pelas classes dominantes enquanto "mecanismo de autodefesa política" na tentativa de conter o acirramento da luta de classes e dizimar o espectro do comunismo, sentido como uma ameaça no Brasil, tal como em outros países da América Latina. Foram lançadas as bases da caça às bruxas, como ficou conhecido o Macartismo, um plano que durante os anos da Guerra Fria (1945-1991) lançou mão de estratégias de perseguição política aos comunistas dentro e fora do território estadunidense. Preocupado com o avanço do comunismo pelo mundo, o Senador Joseph McCarthy desencadeou uma onda de difamação, perseguição e punição contra os elementos acusados de "subversivos", que assim como "as bruxas de Salem" de Arthur Miller, não precisavam de provas para ser postos fora de circulação (seja pela prisão, pelo sequestro, ou pelo assassinato – operando à margem da legalidade). As bruxas teriam como destino último a fogueira; o resultado é bastante análogo. Ao recusar-se a delatar um suposto círculo literário cujos membros seriam ligados ao Partido Comunista, Arthur Miller escreve essa peça em 1953, em pleno ápice da histeria macarthista nos Estados Unidos. Ele admitia ter assistido a algumas reuniões em 1947 e assinado alguns manifestos, mas alegava a sua inocência frente ao crime de "subversão", obtendo a anulação de sua sentença em 1958. Eis que na peça de Hilst, um colega de trabalho do noivo teria se inspirado nas palavras do misterioso homem, a ponto de apresentar uma ameaça ao Estado. Ameaça entendida em termos vagos, já que a caça aos "inimigos internos" faz com que qualquer um seja considerado suspeito, por motivos aleatórios.
O diálogo termina com um silêncio constrangedor. Todos os olhares voltam-se para o verdugo. Os olhares são como lâminas, que fulminam o protagonista, como se ele fosse culpado de um crime terrível e teria que pagar por isso. Eles já não contam mais com a cooperação do verdugo. Nesse olhar já não há esperanças. O silêncio às vezes diz mais que mil palavras. Todos entendem sua recusa. Quando um dos juizes está prestes a elaborar isso em palavras, o verdugo resolve falar. Seria, pois, arriscado deixar que o juiz rompa o silêncio, podendo complicar ainda mais as coisas para ele. O protagonista é objetivo, e alega não estar preparado. Isso suscita um alarde entre os juízes e sua esposa, que o pressionam para que justifique porque não estaria preparado para cumprir seu dever. O filho intervém, e diz que seu pai não quer matar o homem. O verdugo titubeia, abaixa a cabeça, e diz não se sentir capaz de fazer o serviço. As pressões aumentam, e ele finalmente confessa que considera o homem inocente. Ele não acha que o homem mereça a morte. Enquanto o velho juiz constata que sua morte já está decidida, o jovem juiz mais uma vez tenta convencê-lo de que fizeram o possível para impedir que a situação chegasse a esse ponto. Seus direitos teriam sido devidamente respeitados.

Todos os julgamentos julgam a nossa vida, assim como todas as sentenças são sentenças de morte – e eu já fui julgado três vezes. Na primeira, saí do banco dos réus para a prisão, na segunda para retornar à prisão, na terceira para passar ainda dois anos no cárcere. A sociedade, tal como a fizemos, não tem nenhum espaço para me oferecer, mas a natureza cuja chuva cai tanto sobre o justo quanto sobre o injusto terá covas nos rochedos onde poderei ocultar-me e vales secretos em cujo silêncio poderei chorar sem ser perturbado. Ela encherá a noite de estrelas para que eu possa caminhar na escuridão sem tropeçar e fará com que o vento apague as minhas pegadas para que ninguém possa ferir-me.

(Oscar Wilde)

O Verdugo pondera: "mas ninguém ficou satisfeito", – referindo-se ao povo da vila. Porém, segundo o jovem juiz, não cabe ao povo da vila o papel de julgar o réu. Esta função é atribuída a poucos, ou seja, eles mesmos. Ser juiz não é para qualquer um. Ao perceber que não seria possível convencê-lo por argumentos, os juízes mudam de tática. Os juízes então apelam para o suborno, o que já teria surtido os efeitos desejados com outros membros da família (exceto o filho). Para suavizar seu delito, os juízes preferem se referir ao suborno como um "auxílio". As mulheres querem saber no que consiste esse "auxílio" em cifras. Treze milhões, talvez mais algumas regalias, como um terreno próximo à praça. Ao contrário do pensam as mulheres, o verdugo parece satisfeito com o que ganha. Dinheiro nenhum pode convencê-lo. Ele está decidido. Mais uma vez, o recinto é invadido por um silêncio estarrecedor.

MULHER (para o Verdugo): Você não vai fazer? (pausa) Hein? (pausa) Pois eu faço.

VERDUGO (encarando-a): Faz o quê, mulher?

MULHER (para o Verdugo, encarando-o): Se você não fizer o que eles mandam, eu faço.

FILHO (enojado): A mãe faz o serviço do pai? Vai matar o homem?

MULHER: Matar o homem... Que jeito de falar. Eu quero que as Excelências saibam que eu posso cumprir a lei.

FILHO (enojado): Mãe, você está louca.

MULHER (irada): Eu posso fazer o serviço que o seu pai faz, mas que agora por estupidez não quer fazer. Ninguém vai desconfiar de nada. Eu sou do tamanho dele, (encosta-se ao Verdugo) olhem. E tem o capuz.

Todos estão surpresos.

NOIVO: A senhora não vai saber... vai?

VERDUGO (ainda sem acreditar): Eu que sou o verdugo, mulher.

MULHER: Qualquer um pode ser verdugo.

A proposta inusitada da esposa do Verdugo é recebida com grande alarde. Este momento corresponde a um divisor de águas na peça, em que o papel de protagonista desliza de um personagem para outro. Os holofotes em torno do verdugo lançam luz sobre sua esposa, que assume seu lugar. A princípio, isso evoca um estranhamento que vira a casa às avessas, mas a ideia não é descartada. As mulheres na peça têm um papel bastante fixo e imanente: foram criadas para ser donas de casa. A jovem está com o casamento marcado, não vai à escola ou, tampouco, tem ocupação fora de seu núcleo familiar. Ela se projeta como futura dona de casa. A esposa é efetivamente dona de casa: essa é sua função social. Ainda que movida pela ganância, ela está disposta a transcender ao seu confinamento, tomando o lugar do carrasco. Ela está disposta a matar para saciar seu desejo, que repousa na recompensa. Mais do que isso: ela pretende se travestir de homem, ocultada pela opacidade de um capuz preto. Esse não é um papel desempenhado por mulheres. A fim de ver o caminho livre para assumir o papel de verdugo, a esposa transcende as barreiras sociais pelo travestimento. Transcendência em uma acepção negativa, pois ela se torna sujeito por abdicar de sua condição de mulher. De acordo com a filósofa Simone de Beauvoir:

Para encarar o universo como seu, para se estimar culpada de seus erros e vangloriar-se de seus progressos, é preciso pertencer à casta dos privilegiados (homens); é somente a esses, que lhe detém os comandos, que cabe justificá-lo, modificando-o, pensando-o, desvendando-o; só eles podem reconhecer-se nele e tentar imprimir-lhe sua marca. É no homem e não na mulher que até aqui se pôde encarnar o Homem.

Em um ato de desespero diante da recusa do marido, ela assume o lugar deste, desfazendo tabus em desejo, como quem solta um grito de alforria. Pela violência masculina, ela encontra uma possibilidade de auto realização, motivada pela promessa de uma vida melhor.
O dramaturgo João Silvério Trevisan esboça um histórico do travestimento nos palcos brasileiros desde a época da coroa portuguesa. No reinado de Dona Maria I, em 1780, foi promulgado um decreto proibindo a presença de mulheres no palco ou nos bastidores, camarins etc. Segundo Trevisan, a prática profissional do travestimento constituía um chamariz para o grande público ao longo da história do teatro brasileiro. A personagem "Heloísa de Lesbos"em O rei da Vela de Oswald de Andrade e seu irmão "Totó Fruta-do-Conde" aparecem como personagens travestidos, que usam e abusam dos clichês socialmente edificados em torno das intersecções de gênero. A partir da década de 1970, o desbunde tropicalista e o grupo teatral Dzi Croquetes radicalizam o travestimento e o cross-gender, inaugurando um questionamento acerca da ambiguidade dos papéis sexuais, cuja rigidez se revela uma ficção. Hilda Hilst escreveu "O Verdugo"em 1969, trazendo ao palco uma figura menos comum no teatro de seu tempo: o travestimento feminino.
Retomando o curso da elocução, o marido lembra a sua consorte que é ele o verdugo. A resposta de sua esposa é implacável: "qualquer um pode ser verdugo". Com isso, ela atenta para o fato de que qualquer pessoa pode se prestar ao papel de carrasco. Mais do que isso: há um verdugo dentro de cada um de nós. Um verdugo, que habita os nossos desejos mais recônditos, nossas fantasias, nossos pensamentos, algo que orienta nosso agir, impelindo-nos para o momento preciso da execução de quem estiver em nossos caminhos. Qualquer um pode levantar uma foice para outro ser humano. A barbárie corre pelos fios mais capilares dos nossos corpos, como uma força que ora se recolhe, ora aflora. Qualquer um pode ferir outra pessoa. Esse capuz serve a qualquer um.
Porém isso que a esposa do verdugo propõe é ilegal. Os juízes não respondem aos apelos do verdugo e de seu filho para que as leis sejam respeitadas. Eles não dizem que sim, nem que não. Mais uma vez o silêncio comunica a resposta e o filho braveja contra os juízes: "Canalhas, canalhas!" O juiz velho põe a mão em seu ombro e tenta se explicar, mas o filho o repele, com asco. Suas emoções afloram, para desconsolo da mãe. O verdugo tenta reagir, mas é interrompido pelos juízes. A interrupção opera como uma censura: é preciso fazê-lo calar. Suas palavras podem ser perigosas. Eles temem que o verdugo tente persuadir sua mulher a desistir de seu plano maluco. Ele é, afinal, seu marido.

JUIZ JOVEM (para a Mulher, objetivo): A senhora acha que pode fazer o serviço?

MULHER (olha para o marido, para o filho, hesita um pouco, mas olha em seguida para a filha e resolve): Posso, muito bem até.

VERDUGO (muito emocionado): Mulher, não fala assim. Você não vai fazer nada.

MULHER (exaltada): Não vou fazer? Eu não tenho medo de você. Eu é que sei... Entra ano, sai ano, é sempre esse desassossego de não saber o que vai ser de nós. (olha para os juízes) Deviam pagar melhor os verdugos, sem eles a vida não fica fácil nem para Vossas Excelências. Sem os verdugos não há segurança. (para o marido, sumplicante) Homem, pensa no teu filho também...

FILHO: Não me mete nisso, mãe, eu penso como o pai.

MULHER: Ah, pensa? Não é você, seu desgraçado, que diz todo dia que não quer ser mandado por ninguém? Que quer correr o mundo e falar com as gentes? E você pensa que vai poder fazer o que quer se não estudar? E para estudar precisa dinheiro, desgraçado, dinheiro.

FILHO: Eu não quero mais nada, mãe, eu não quero nada à custa da morte desse homem.

FILHA: Mas esse homem já está morto, imbecil.

JUIZ VELHO: Isso é verdade. Pela lei, ele já está morto.

NOIVO (para o Filho): Olha, meu chapa, a vida é assim mesmo. Todo mundo morre.

Chegou a hora de a mulher selar o seu compromisso com os representantes do Estado. Apesar de se mostrar bastante decidida, por um instante ela vacila, ao olhar para o marido e o filho que a desaprovam com olhares penetrantes. Porém em seguida ela olha para a filha, prestes a se casar e que está contando com recompensa, então vai em frente. Nada pode fazê-la voltar atrás a partir desse momento sublime. O marido fica perplexo com o fato de a sua mulher ir tão longe a ponto de agir contra ele. Ele está profundamente ferido e decepcionado. O verdugo se encontra invadido por uma sensação de impotência: é ela quem tem a palavra final, e não há nada que ele possa fazer para modificar o curso dos acontecimentos. Ou quase nada.
Então ela desabafa: os anos se passam e a vida continua precária. "Deviam pagar melhor os verdugos". Afinal, eles tornam a vida mais fácil para todos, inclusive para os juízes. Ao serem arrancadas as ervas daninhas, a vida se prolifera no jardim: pela morte. Eis o paradoxo: a morte é necessária para a vida. Morrem os elementos indesejáveis, para que a vida dos demais encontre sua plenitude. Se os "inimigos internos" são postos fora de campo, acredita-se viver com mais "segurança". Ambos os conceitos de "inimigo interno" e de "elementos subversivos" foram definidos em termos vagos, de modo que qualquer opositor pode se converter em uma ameaça, e merece arcar com severas consequências. Quando a personagem fala em zelar pela segurança, não se trata de garantir a integridade física dos habitantes da vila, mas antes de assegurar a "segurança" do establishment. É preciso que se pague bem aos verdugos, pois eles são necessários à segurança do Estado. Se eliminassem todos os agitadores, a vila seria um ambiente "seguro".

A elipse de um grito
vai de monte
a monte.
Desde as oliveiras
será um arco-íris negro
sobre a noite azul.
Ai!
Como um barco de viola
o grito fez vibrarem
longas cordas do vento.
Ai!
(As pessoas das covas
Erguem seus candeeiros.)
Ai!

(Federico García Lorca)

Tão logo a mulher alude ao futuro do filho, este, por sua vez, tira seu corpo fora de campo, ao atestar que compartilha a desaprovação proferida pelo pai. O apelo à liberdade inverte a prerrogativa de reprovação, ao passo que a mãe elucida a aversão do filho ao fato de ter que obedecer a ordens. Por que ela teria que obedecer-lhe, quando ele mesmo se recusa a obedecer? Por que só ele poderia realizar seus próprios desejos, e ela não? Para a filósofa Simone de Beauvoir, a relação entre mãe e filho se torna algo complexo à medida que o filho cresce:

Ele é um duplo e por vezes ela é tentada a alienar-se inteiramente nele, mas ele é um sujeito autônomo, logo rebelde; é hoje vivamente real, mas no fundo do futuro um adolescente, um adulto imaginário, uma riqueza, um tesouro; é também um fardo, um tirano.

Em seguida, ela ressalta que seus quereres têm um limite. Se ele não estudar, não vai poder fazer o que quiser, porém os estudos requerem um investimento prévio. Sem o dinheiro de seus pais, ele não teria condições de estudar e se realizar de acordo com sua vontade. O ato de se realizar está intimamente vinculado a uma profissão. Se para a mulher a felicidade, em grande medida, consiste em casar e procriar, para o jovem, ela está calcada na constituição de uma carreira promissora. No pensamento patriarcal, uma mulher bem-sucedida é uma mulher bem casada. Nesse sentido, o espaço reservado à mulher é da ordem do privado. Só em algumas áreas restritas há espaço para a mulher fora do domínio do lar. A historiadora Michelle Perrot lança um olhar atento sobre os deslocamentos desse espaço permitido às mulheres:

[As mulheres] migram quase tanto quanto os homens , atraídas pelo mercado de trabalho das cidades, onde acham emprego principalmente como empregadas domésticas. Essas cidades, que as chamam sem realmente acolhê-las, empenham-se em canalizar a desordem potencial atribuída à coabitação entre homens e mulheres. Daí uma segregação sexual do espaço público. Existem lugares praticamente proibidos às mulheres – políticos, judiciários, intelectuais, e até esportivos... – ,e outros que lhes são quase exclusivamente reservados – lavanderias, grandes magazines, salões de chá... Na cidade, espaço sexuado, vão porém se deslocando, poico a pouco, as fronteiras entre os sexos.

Já um homem bem-sucedido é um homem capaz de alcançar um cargo de prestígio em uma empresa. O homem proveniente de uma família abastada pode ascender em uma empresa com alguma facilidade. Por exemplo, ele pode herdar a empresa da família, ou ser indicado para cargos de prestígio por meio de influências familiares. No caso de uma família humilde, os estudos constituem a principal via de ascensão socioeconômica. Mas para o filho, a ética custa mais do que dinheiro. Uma ética que lança luz sobre valores que estão acima do dinheiro. Ele está disposto a abdicar de tudo em nome daquilo que aquele homem representa.

Em chamas, fuguras de cifras e palavras
saltam do crânio
como crianças duma casa a arder,
com o mesmo terror
com que se ergueram
ao céu
braços acesos no convés do Lusitânia.
Ante a gente tremendo
no silêncio do lar,
um brilho de cem olhos explode do refúgio.
Ó meu último grito, –
pelo menos tu
brada que estou a arder pelos séculos fora.

(Vlamidir Maiakóvski)

A filha é bastante pragmática, e constata que a morte do homem já é um fato consumado, portanto lutar por sua vida seria uma perda de tempo. Segundo a personagem, seu irmão teria que aceitar os fatos e dar prosseguimento aos seus estudos. Caberia a ele se conformar, ater-se a seu lugar. Para ela, questionar a autoridade equivale a um disparate inaudito. Vem-lhe à baila a ideia de um confinamento, no compasso de papéis fixos, onde cada um cuida do que lhe cabe. Se as autoridades determinam que o homem precisa morrer, sua morte deve ser aceita como uma realidade inquestionável. Ele já é tido como morto, mesmo antes de sua execução. É cômodo se conformar, porém isso cobra o seu preço: o engessamento da imanência, a impossibilidade de se constituir como sujeito. Sua ação só pode se desenvolver em um sentido unívoco, restando uma margem estreita para a escolha inerente ao sujeito. Conformar-se pressupõe a manutenção da ordem estabelecida, sem possibilidade de desvio.

O horrível, Madame, está na imobilidade destas paredes, destas coisas, na familiaridade dos móveis que vos rodeiam, dos acessórios de vossa adivinhação, na indiferença tranquila da vida na qual vós participais como eu. E vossas vestes, Madame, essas vestes que tocam uma pessoa que vê. Vossa carne, todas as vossas funções enfim. Não posso me acomodar a essa ideia de que estejais submetida às condições do Espaço, do Tempo, que as necessidades corporais vos pesem. (...) Aos olhos de meu espírito, não tendes limites nem bordas, sois absolutamente, profundamente incompreensível.

(Antonin Artaud)

O noivo compartilha e reforça a postura conformista de sua futura consorte, ao atestar que todos morrerão um dia. A morte é inerente à vida. A finitude da vida é uma das poucas certezas que temos, porém o personagem se utiliza dessa constatação para relativizar seu percurso e duração. Já que todos morrerão um dia, pouco importa se o Estado tratar de interromper um fluxo vital. A ignorância do personagem, que nunca perde aquele sorriso idiota estampado em sua face, funciona como uma sátira da opinião pública propagada pelos meios de comunicação. Ele leva até o limite o conformismo das classes médias, despido de qualquer indício de pensamento autônomo. No decorrer da peça, ele bajula os juízes e faz questão de falar que concorda com cada coisa que eles dizem, ainda que sua opinião jamais seja solicitada. O personagem expressa um deslumbramento com as autoridades, e repete tal como um papagaio aquilo que dizem a partir do cânone, exaltando os ridículos que frequentemente se repete sem pensar, sempre de cima para baixo.

No cemitério, à direita, cobriu-se o túmulo de pó
e, por trás dele, brotou um rio azul.
Tu me disseste: "Então
vai para o convento
ou casa-te com um idiota..."
Só os príncipes falam sempre assim.
Mas eu me lembro dessas palavras:
deixem que elas flutuem por cem séculos
como um manto de arminho jogado sobre os meus
ombros.

(Anna Akhmátova)

As batidas fortes na porta em uma hora bastante avançada provocam suspeitas, acentuando um clima de desconfiança que comumente se dissemina em tempos de incerteza e efervescência. Tem-se a impressão de que algo ou alguém possa conter o plano engenhoso que os juízes e a esposa do verdugo estavam prestes a pôr em prática. Quem seria a uma hora dessas? Seria algum truque? Se o povo da vila está contra a execução do homem, às vésperas da data firmada tudo pode acontecer: alguém pode aparecer para estragar tudo, pode eclodir uma rebelião. O apelo à prudência se origina de um temor calcado na incerteza quanto ao êxito de uma missão. O mistério dura pouco tempo: é o carcereiro. A infatigável persistência na dúvida leva a prudência a uma dimensão hiperbólica, uma paranoia dramatizada. O carcereiro insiste, pois tem algo a comunicar com urgência.

CARCEREIRO (afobado): Boa noite para todos, Excelências, as pessoas estão preparando alguma coisa. Tem uma coisa no ar.

JUIZ VELHO: Que coisa, homem? Você está assustado.

CARCEREIRO: Eu não me assusto com poucacoisa, Excelência.

NOIVO: Ele é um homem muito valente.

FILHO: O que é que você sabe da valentia dele, seu bobo?

FILHA (para o irmão): Cala essa boca.

NOIVO: Ele deu na cara daquele que matou os menininhos.

FILHO: O homem estava com as mãos amarradas. Bela valentia essa.

JUIZ VELHO: Silêncio, por favor.

JUIZ JOVEM (para o Carcereiro): Diz direito o que é que há, homem.

CARCEREIRO (um pouco grotescamente): Eu estou lá em minha mesa. O homem está quieto. Ele fica num canto da cela, de costas para mim. É o jeito dele, já me acostumei. De repente, ouço um grito lá fora: (grita) A vida! A vida!

JUIZ VELHO: Não grite assim.

CARCEREIRO: Desculpe, Excelência.

JUIZ JOVEM: E depois?

CARCEREIRO: Saio depressa. E só aquela escuridão. Nada

(pausa)

JUIZ VELHO: Continuo achando que você está assustado.

CARCEREIRO: Eu sei o que digo, Excelência. É preciso apressar a morte do homem. Se demorar muito, acontece desgraça.

O carcereiro anuncia que algo está no ar, como partículas de gasolina que se alastram rapidamente, capazes de atear fogo em toda a vila com um simples riscar de fósforos. Um espectro paira no ar, uma pressão silenciosa, insuportável. Uma voz contida cuja mordaça estaria prestes a ceder. Seu grito celebra a vida onde a morte se avizinha. O homem permanece em seu recolhimento, de costas, sem dizer uma palavra. Um grito no escuro, vindo de fora, de qualquer parte não identificada. Uma voz anônima, cujo apelo à vida provoca calafrios. Nesse grito está implícita uma ameaça latente caso a ação planejada não siga seu curso antes do amanhecer. Se o homem amanhecer vivo, essa voz pode se multiplicar, a ponto de fazer o establishment ruir. O momento pedia pressa e cautela, pois caminhavam em gelo fino.

Cisne redondo no rio,
olho de altas catedrais,
alva fingida nas folhas
sou; de mim não há quem escape!
(...) A lua já mostra o fio
Do seu punhal pelos ares
que, sendo espreita de chumbo,
quer mesmo é ser dor de sangue.
Deixai-me entrar!

(Federico García Lorca)

A princípio, o velho juiz dá pouca importância ao que diz o carcereiro, e questiona sua valentia. Um carcereiro precisa ser corajoso e viril, não pode sentir medo, ou demonstrar qualquer sinal de vulnerabilidade. O psicanalista Christophe Dejours constata que: "ao medo a filosofia moral opõe à razão, em nome da qual o sujeito virtuoso deve vencer seu medo, inclusive o medo de morrer das conseqüências da violência. Essa atitude é a coragem". Seguindo o modelo espartano, a coragem é ensinada pela dor. Aprende-se a resistir. Para Desjours: "o aprendizado da coragem passaria (...) pelo aprendizado da submissão voluntária e da cumplicidade com os que exercem a violência, mesmo sob pretexto 'didático'!"
A incredulidade do velho juiz enfatiza alguns julgamentos prévios e preconceitos que atravessam à pequenez humana. É a voz de uma ignorância apegada ao poder e ao prestígio, mas que perde de vista os seus propósitos.

A crueldade ordinária é mera estupidez. É uma total falta de imaginação. É o resultado, hoje em dia, de sistemas estereotipados de regras rígidas e imutáveis, e de imbecilidade. Onde há centralização há imbecilidade. O que é desumano na vida moderna é o oficialismo. A autoridade é destrutiva tanto par os que a exercem como para os que a sofrem. A Direção da Prisão, e o sistema que ela põe em prática, é a fonte básica da crueldade. (...) As pessoas que apoiam o sistema têm excelentes intenções. Aqueles que o executam são, também, humanos em suas intenções. A responsabilidade é transferida para as regras disciplinares. Acredita-se que quando uma coisa é regra, ela é certa. (...) Os Juízes [são] uma classe via de regra totalmente ignorante.

(Oscar Wilde)

O funcionário incompetente se ocupa em se fazer grande reduzindo a valentia do colega de trabalho, mais do que investir na qualidade e eficiência de seu próprio ofício. O jovem juiz, pelo contrário, faz questão de ouvir o que o carcereiro tem a dizer, pois toda informação sobre o caso em princípio lhe parece útil. Michel Foucault descreve a passagem do antigo sistema penal francês para um mais moderno, que abre mão do suplício, das masmorras e das grandes fogueiras para se adentrar na consciência do cidadão.

Sob a suavidade ampliada dos castigos, podemos então verificar um deslocamento de seu ponto de aplicação; e através desse deslocamento, todo um campo de objetos recentes todo um novo regime da verdade e uma quantidade de papéis até então inéditos no exercício da justiça criminal. Um saber, técnicas, discursos "científicos" se formam e entrelaçam com a prática do poder de punir.

Se o velho juiz se compraz em usar as mãos de ferro do Estado, o jovem juíz é mais discreto, porém sistemático, frio e eficaz. O juiz novo parece mais bem preparado, mais apto a escutar e persuadir. Para ele, a punição corresponde a um cálculo racional. Nenhuma variável pode estar de fora. Tudo precisa ser milimetricamente calculado. Quando a mulher tenta seduzi-lo, ele é frio e se atém ao profissionalismo. O personagem é expressão modular do funcionário eficiente, cujo olhar vigilante não falha. Sua eficácia consiste numa vigilância permanente e minuciosa e no comprometimento com um sistema integrado de punir. Nas palavras de Foucault:

A punição vai-se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal, provocando várias consequências: deixa o campo da percepção quase diária e entra no da consciência abstrata; sua eficácia é atribuída à sua fatalidade não à sua intensidade visível; a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime, e não mais o abominável teatro; a mecânica exemplar da punição muda as engrenagens.

Os juízes da peça de Hilst expressam o conflito entre o velho e o novo sistemas penais, em um ambiente em que as camadas temporais coexistem e se chocam. Ao ser mais uma vez pressionado pelos juízes, o Verdugo tenta se explicar:

VERDUGO (tentando convencer os juízes): Excelências... é muito difícil para mim... eu não sei explicar... alguma coisa está me impedindo de fazer isso. O homem entrou no meu peito, os senhores entendem? Ele falava que era preciso... amor... ele falava...

MULHER (com desprezo): Amor! Amor! E o que tem isso

JUIZ VELHO: Em nome do amor acontecem baixezas.

FILHO: Que baixezas?

JUIZ JOVEM: As palavras do homem eram palavras de fogo.

FILHA: Foi o que eu disse. Ele pôs fogo nas gentes. (pausa

JUIZ JOVEM: Amor... é comedimento.

JUIZ VELHO: Mansidão.

Os personagens atribuem significados diferentes à palavra amor. O amor ao qual o verdugo se refere é um amor vasto e profundo, que tocou seu coração e modificou sua relação com o mundo em um sentido radical. Um amor capaz de amolecer o coração do carrasco. Um amor que produz encantamento, que se funde com sua alma. Um amor que cria asas coloridas, em uma metamorfose irreversível. Sua esposa parece alheia ao significado de amor. O amor para ela é-lhe indiferente, desprezível. Talvez jamais o tenha sentido. Se em algum momento existisse amor em seu coração, ela abdicara dele ao tomar o lugar do carrasco. O jovem juiz vê o amor como comedimento, afinal ele recolhia seus sentimentos e emoções sob a égide fria de sua racionalidade. Para ele, tudo tinha que estar em uma medida passível de controle. Já o seu colega de trabalho via o amor como mansidão: algo que já fora calejado, passificado, pela força ou pelo hábito. O velho juiz fala das baixezas que se fazem em nome do amor. Quantos crimes passionais devem ter passado por seu banco de réus! Pois para ele, o amor tinha que ser domado, amestrado. O jovem juiz associa as palavras do homem ao fogo: elas inflamavam os corações dos habitantes da vila. Para a filha do verdugo, o ato de atear fogo nas pessoas é mais do que uma metáfora.

JUIZ VELHO: Amor... é respeitar o povo. Ele não respeitava vocês. Ele insultava vocês.

VERDUGO: Insultava? Não sei disso.

JUIZ JOVEM: Ele chamava vocês de coiotes.

Verdugo e filho entreolham-se.

NOIVO: O que é isso?

FILHA: O que é um coiote?

JUIZ JOVEM: Um animal. Um lobo.

MULHER (para o Filho): E você defende um homem assim?

FILHO (para a mulher, exaltado): Não é isso, mãe. Ele dizia que os coiotes não costumam viver eternamente amoitados. Que é preciso sair da moita.

MULHER: E o que é que nós temos com os coiotes?

JUIZ VELHO (para o Filho): Sair da moita para caçar?

FILHO (exaltado): Para que vejam ao menos as nossas caras de coiotes e respeitem a gente. E se nos respeitarem, nós poderemos um dia... (lentamente) achar o nosso corpo de pássaro e levantar voo. (objetivo) Mas primeiro mostrar a cara de coiote.

MULHER (com desprezo): Pássaro... coiote... o homem é louco.

JUIZ JOVEM (aproximando-se do Filho): E como é a cara de um coiote?

FILHO (encarando fixamente o Juiz jovem com uma expressão de dureza e ameaça): Uma cara... assim.

Tão logo o juiz velho faz menção à palavra coiote como um insulto proferido contra o povo, pai e filho se entreolham. Eles sabem alguma coisa que os juízes ignoram. Não se trata de um insulto, mas parte de um vocabulário interno, que tem um significado compartilhado por um determinado grupo. Ninguém mais no recinto sabe o que o misterioso homem queria dizer com coiote. O filho explica que os coiotes não se escondem para sempre atrás das moitas. O coiote, antes de sair da moita, passa por estratégias de empoderamento, que se assemelham ao confinamento da lagarta em seu casulo, antes de virar borboleta. O ato de sair da moita é como transcender a uma opressão, deixar um espaço de confinamento e mostrar a cara. Sair da moita é um ato libertador por excelência. A expressão na cara de um coiote coloca à revelia a coragem do bravo guerreiro, disposto a lutar até o fim pelo respeito que lhe fora negado. Uma vez alcançado seu objetivo, a cara de coiote se desfaz, perde sua razão de ser. Os coiotes de ontem são os pássaros de amanhã, pois, uma vez libertos, eles criam asas, e voam para onde lhes convenha.
Não é a primeira vez que a Hilda Hilst fala das asas de um pássaro para aludir à liberdade. As alegorias de Hilda Hilst são como estados da alma, que passam por processos metamórficos. São alegorias transitórias, que se liquefazem e depois assumem novas formas de acordo com o roteiro. Como uma poeta lírica, ela traduz em imagens os sentimentos que atravessam os personagens, dá vida às vozes que produzem gritos e silêncios nas funduras do íntimo. A complexidade reside na leveza polimorfa, que não se fixa em uma única figura alegórica, mas dança conforme a música, cujo ritmo se dá tal como as batidas de um coração, ora sereno, ora acelerado, ora que se expande, ora se recolhe, e se espraia por todo o corpo, levando as sensações até o limite. Como dizia Ovídio:

Há (...) seres a quem é permitido assumir muitas formas., como é teu caso, Proteu, que vives no mar que rodeia a terra. Pois, de fato, hora te viram de jovem mancebo, ora de leão; ora foste um javali feroz, ora uma serpente que todos recearam tocar; por vezes, cornos fizeram-te um touro; tantas vezes podias parecer rocha, tantas vezes também árvore, e muitas vezes, imitando o aspecto das límpidas águas, foste um rio, outras vezes foste fogo, o opsto da água.

Metamorfoses figuram nas tradições hesiódica e alexandrina, nos poemas homéricos, e de autores helenísticos. Ovídio escreveu um longo poema, distribuído em quinze livros, que trata do tema das metamorfoses na mitologia greco-romana, desde o caos até a apoteose que sacraliza Júlio César. O Professor Paulo Farmhouse Alberto escreve no prefácio do livro que leva o título de "Metamorfoses" que "a 'transfiguração' é algo que pertence ao mundo do sonho e do imaginário, (...) tratada com ênfase mais na forma do que no corpo transformado ou a transformar, ou no próprio processo de mutação: (...) 'formas mudadas em corpos'". No poema de Ovídio, o caos seria um estado da natureza em um só orbe, sem delimitação alguma entre as formas do universo. Tudo se reduzia a uma massa amorfa, que pairava no ar, em um equilíbrio instável entre terra, céu e mar. Até que um deus estabeleceu a harmonia entre as formas, separando cada coisa, cada elemento do cosmos: fogo, água, terra e ar. Nasce então o homem, moldado à imagem dos deuses, das sementes do céu misturadas com a água da chuva. Assim tudo começou. Ovídio elabora a história dos homens e dos deuses através de uma sucessão de processos metamórficos.

Tudo se transforma, nada morre. O espírito vagueia e anda daqui para ali, dali para aqui, e invade um corpo, qualquer que ele seja, , e dos animais passa para o corpo humano, e de nós passa para os animais e em instante algum perece. Tal como a dúctil cera se molda sempre em novas figuras, e não permanece como era, nem conserva as mesmas formas, e, no entanto, é sempre a mesma, assim a alma é a mesma, mas transmigra para uma variedade de formas. (...) Tudo flui, e uma imagem que se forma é passageira. Até o próprio tempo escorre, num movimento incessante, , tal como um rio.

As alegorias de Hilst habitam o corpo dos personagens, e podem ser assimiladas de maneira visceral. Qualquer um pode ter uma cara de coiote, mas antes é uma cara que vem de dentro para fora, como se o coiote tivesse estado sempre estado ali, mas sem que tivéssemos consciência de sua existência. De acordo com Barre Toelken, em Life and Death of Navajo Coyote Tales ("Vida e Morte dos Contos de Coiote dos Navajos"), o coiote é uma figura mágica para diversas nações indígenas norte-americanas. É um pequeno lobo, que vive nas colinas espraiadas pelo continente. Para os Navajos, sua figura engendra uma intersecção entre o lobo e o cachorro, o selvagem e o dócil, o lobo e o humano. Sua figura está no centro de diversos ritos de cura, e em alguns contos, simboliza um poder inestimável ligado aos ciclos elípticos da natureza. Para Toelken, os coiotes recebem uma dupla acepção: entre aquele que restaura a vida, e aquele que tem o poder de tirá-la. Os Navajos às vezes se vestem com peles de coiotes em seus rituais de caça, pois esses são animais predadores. Ainda que não exista nenhuma referência explícita ou implícita aos mitos do coiote dos indígenas norte-americanos, na peça de Hilda Hilst uma cara de coiote é uma cara de predador, com seus dentes rangendo, prestes a atacar sua presa.

Off through the new day's mist I run
Off from the new day's mist I have come
I hunt. therefore I am
Harvest the land, taking of the fallen lamb
Off thruogh the new day's mist I run
Off from the new day's mist I have come
We shift, pulsing with the earth
Company we keep, roaming the land while you sleep
(…) I feel a change back to a better day
Hair stands on the back of my neck
"In wildness is the preservation of the world"
So seek the wolf in thyself
Shape shift, nose to the wind
Shape shift, feeding I have been
Move swift, all senses clean
Earth's gift, back to the meaning of wolf and man

(Metallica)

Em Hilst, as asas do pássaro permanecem ocultas em nossas entranhas, mas um dia serão visíveis e poderão voar. Como se verifica em Ovídio, a metamorfose em ave apresenta o prenúncio de uma vingança, a libertação de uma alma atormentada pela culpa, a certeza de uma vitória, uma fuga, um castigo divino. Ao abandonar o poder régio, Cicno metamorfoseia-se em ave nova e habita as encostas dos rios. A princesa de Lesbos em fuga é lançada às alturas com a ajuda de Minerva após ter sido violada pelo rei dos mares. As finas asas translúcidas das filhas de Mínias fogem das chamas de um clarão avassalador. As Ismênides figuram em voos rasantes como castigo por ter censurado Juno por sua crueldade. As nove irmãs de Lucina, punidas por sua tagarelice, tornam-se pássaros roucos empoleirados em ramos, tomados por uma obsessão em falar. Sorte semelhante teve o delator Aceáfalo, transformado pela rainha de Érebo em coruja, presságio dos infortúnios vindouros. Os corpos das Cecrópides, filhas de Pandíon, pairam no ar com as penas manchadas com o sangue de Tereu. Este, por anseio de vingança, também se transforma em pássaro, com uma crista na cabeça e um imenso bico em lugar de sua lança. Também a Vitória é um pássaro de asas hesitantes, que voa de um lado a outro para anunciar ao rei Minos o fortúnio na guerra de Alcatoo. Círis abandona a popa do navio do rei de Cnossos num ruflar de asas. Dédalo, que construíra para si próprio e seu filho Ícaro próteses de asas engenhosas, assiste ao triste fim de Ícaro, que despenca nos profundos mares após se deixar levar pelo fascínio solar, cujo calor derretera a cera que lhe prendia as penas. Ao destruir a casa de Portáon, a filha de Latona eleva-se pelos ares com suas longas asas. O cruel Dedálion, ao lançar-se ao abismo, é salvo por Apolo, que o transforma em gavião, com bico recurvo semelhante a um gancho, que subjuga as outras aves tal como outrora subjugara reis e povos em guerras sanguinárias. Alcíone rasava pelas cristas das ondas com bico delgado e trepidante, ao lado de seu estimado Céix, também transformado em pássaro, conservando juntos a perenidade do amor. Eis que uma ave de asas fulvas anuncia o fim da guerra entre Lápitas e Centauros. Como vimos, a metamorfose em pássaros apresenta uma miríade de possibilidades: aves de rapina, corujas soturnas, próteses engenhosas humanamente edificadas, com seus voos rasos ou elevados, sempre remetem a um afastamento da figura humana de seu peso e seus grilhões. Por trás dessas asas permeia uma força incomensurável: nem absolutamente boa, nem absolutamente má. Nas palavras de Ovídio:

Bóreas sacudiu as asas, que, com os batimentos, lançou o sopro sobre a terra toda e fez o imenso mar estremecer. Arrastando o manto de pó sobre os altos cumes dos montes, varre a terra e, coberto pela obscuridade, apaixonado, abraçaria Oritia, tomada de pavor, com as suas asas fulvas. Enquanto voa, as chamas atiçadas ardem com mais força, e o raptor não travou com as rédias a corrida pelos ares, antes de chegar ao território e às muralhas dos Cícones. Ali a rapariga da região de Acte tornou-se esposa do gélido tirano, e também mãe; e deu à luz a gêmeos, que tinham as asas do pai e o resto do corpo da mãe. Diz-se, porém, que as asas não nasceram com o corpo. Enquanto a barba lhes não despontava sob os cabelos ruivos, os meninos Cálias e Zetes estiveram implumes. Em breve, duas asas começam a cingir ambos os flancos à maneira dos pássaros, e ambos os queixos a aloirar-se. E quando o tempo da meninice deu lugar ao da juventude, partiram por um mar desconhecido na primeira das naus, com o Mínias, em busca do velo radioso de pêlo fulgente.

Proferido o discurso do filho sobre as metamorfoses dos homens que viram coiotes, que viram pássaros, soam batidas afobadas na porta. É o carcereiro, repetindo a cena, só que dessa vez mais aflito. Um dos juízes abre rapidamente a porta da casa e lhe pede para entrar.

CARCEREIRO (entra afoito): Não é possível esperar mais. Agora atiraram uma pedra na janela. Saio para pegar o desgraçado e nada. A escuridão outra vez. (todos entreolharam-se) Mandem fazer o serviço depressa, Excelências, acreditem em mim, eu já estou ficando doente.

MULHER (para a Filha): Traz o capuz.

(...)

A mulher do Verdugo volta do quarto. Veste calças compridas, sapatos masculinos e capuz preto.

JUIZ JOVEM (para a Mulher): Deixa ver (examina-a)

JUIZ VELHO: Parece que está bem.

CARCEREIRO (para a Mulher): Esconda um pouco as mãos, dona. São menores que as dele.

NOIVO: A senhora ficou bem mesmo.

Isso não ocorre sem resistência. Ambos, o Verdugo e seu filho são imobilizados e amarrados para impedir que interfiram na execução do homem. O prelúdio da execução se dá entre gritos desesperados, soluços de corações feridos e palavras de indignação. Sua mulher e sua filha não faze nada para protegê-los: o que está feito, está feito, como algo necessário em prol de um bem maior: a recompensa. Sempre a recompensa. As luzes se apagam e ambos são abandonados ao relento. Enfim sós, eles conseguem desatar os nós e se preparam para sair da moita. Não estão dispostos a aceitar a execução do rapaz. Se a mulher pretende se fazer passar por verdugo, só o verdadeiro verdugo pode desmascarar a farsa que os juízes confabularam com sua mulher. O primeiro ato se encerra com um anseio de vingança, compartilhado entre pai e filho, que se precipitam para a praça onde se daria a execução do homem.

– É um aparelho singular – disse o oficial ao explorador, percorrendo com um olhar até certo ponto de admiração, o aparelho que ele no entanto conhecia bem. O explorador parecia ter aceito só por polidez o convite do comandante, que o havia exortado a assistir à execução de um soldado por desobediência e insulto ao superior. Pelo menos aqui no pequeno vale, profundo e arenoso, cercado de encostas nuas por todos os lados, estavam presentes, além do oficial maior e do explorador, apenas o condenado, uma pessoa de ar estúpido, boca larga, cabelo e rosto em desalinho, e um soldado que segurava a pesada corrente de onde partiam as correntes menores, com as quais o condenado estava agrilhoado pelos pulsos e cotovelos bem como pelo pescoço e que também se uniam umas às outras por cadeias de ligação.

(Franz Kafka)

O segundo ato se inaugura no patíbulo de uma pequena praça. Uma semiobscuridade pulveriza o lusco-fusco de um dia que ainda não amanhecera. As dramaticidade das sombras acentua o ar sombrio que prenuncia a chegada hora da execução. No fundo, sussurros, burburinhos, frases inaudíveis quebram o silêncio mortífero que se instaura no centro da cena. Os juízes têm pressa e entram tempestivos, seguidos da mulher-verdugo, devidamente encapuçada. A filha e o noivo entram na sequência. Só então sobem ao palco o carcereiro e o misterioso homem, com um capuz branco.
A luz do novo sistema penal, a execução em praça pública é descrita por Michel Foucault como "a fornalha em que se acende a violência". A praça pública na peça é o lugar da execução. Por outro lado, o réu está encapuzado, enfatizando uma justiça cega, que não vê o rosto do autor do crime, mas executa sua função de acordo com as leis. Segundo Foucault:

O corpo e o sangue, velhos partidários do fausto punitivo, são substituídos. Novo personagem entre em cena, mascarado. Terminada uma tragédia, começa a comédia, com sombrias silhuetas, vozes sem rosto, entidades impalpáveis. O aparato da justiça punitiva tem que ater-se, agora, a esta nova realidade, realidade incorpórea.

Como vimos, a cena apresenta características ambíguas, transicionais entre um velho sistema decadente centrado na violência explícita, e um novo sistema, que tem sua mira no conceito do indivíduo abstrato, cuja identidade pouco importa: podia ser qualquer um.
Seis cidadãos se aproximam do patíbulo, mas mantém certa distância dos demais, ocupando a região fronteiriça entre o palco e a plateia.

CIDADÃOS (superpondo frases):

Mas o que é isso?

Ainda é noite.

Nem tocaram os sinos.

Isso é proibido.

Safadeza.

É só depois de amanhã.

Ainda tinha tempo.

Cht! Cht!

Mas é noite.

JUIZ VELHO: Tenham calma.

Rumores continuam.

JUIZ JOVEM: Calma, meus amigos. Nós vamos explicar.

VOZ DE UM CIDADÃO: Mas é noite ainda.

CIDADÃO 1 PARA O 4: Manda tocar o sino.

CIDADÃO 2 PARA O 4: E chama o padre. Ele dá um jeito nisso.

CIDADÃO 3 PARA O 4: Avisa a minha gente.

CIDADÃO 4 (impaciente): Ah, eu não saio daqui. Eu quero ver.

FRASES DE SUPERPONDO:

Mas assim ninguém fica sabendo.

Quem não tá aqui é porque não quer ver.

Com esse barulho, todo mundo já sabe, mas ninguém quer vir.

Deu cagaço na turma.

FRASE BEM AUDÍVEL: E o padre?

FRASE BEM AUDÍVEL: Acho que ele foi até o vale. No asilo.

JUIZ JOVEM: Escutem, só um instante, só um instante.

CIDADÃO 5: Deixem a Excelência falar.

JUIZ VELHO: Silêncio, por favor.

Vão silenciando aos poucos.

As vozes se complementam, desempenhando uma função verossímil à dos antigos coros do teatro clássico. Elas inauguram a cena com ruídos inaudíveis, mas vão ganhando maior nitidez no decorrer da cena. São vozes que gritam e ecoam sua indignação frente à traição do Estado, que se presta a executar o homem na calada da noite, antes do raiar do dia, antecipando a data do suplício. O alarde dura pouco, pois ninguém quer deixar a praça para despertar os demais membros da vila. Eles são atravessados por um magnetismo que os mantém paralisados no mesmo lugar, envoltos por curiosidade e preguiça. São vozes fluidas, transitórias, que se dobram tal como o fluxo de um rio que se espraia nas encostas rochosas.

He can only touch himself from the outside. In order to recapture the whole sensation of the inside of a body, he will invent a world. But a world's circular horizon always conceals the inner movement of the womb. The imposiction of disctinctions is the mourning which their bodies always wear. One + one + one... separated out. And the gathering of all into One will never amount to the living quality of a resting place which always pouring out liquid, blurs boundaries.

(Luce Irigaray)

Se em um primeiro momento, as vozes se voltam contra os juízes, logo mudam o alvo: a culpa passa a ser atribuída aos ausentes. Encarregam o cidadão 4 da incumbência de convocar os demais cidadãos da vila, chamar o padre e tocar o sino, para que eles mesmos se eximam de todas e quaisquer responsabilidades. O cidadão 4 tampouco deseja deixar a praça; afinal, ele não quer perder sequer um instante do espetáculo que estaria prestes a ter início. Vem à baila uma sensação de impotência compartilhada, que reduz os cidadãos a espectadores. A morte do homem assume a aparência de um evento colossal, um espetáculo circense. Sua dimensão política se dilui em entretenimento, como o dos gladiadores da Roma antiga no centro do Coliseu. Porém ao homem não é fornecida a menor possibilidade de defesa. Suas mãos estão atadas, seu rosto é coberto. O cidadão 4 responsabiliza os ausentes por não terem despertado com o barulho na praça. Seus companheiros concordam e reforçam os brados contra a negligência daqueles que supostamente preferiram dormir. No corredor semântico, os ausentes deslizam rapidamente do lugar de vítimas frente à traição dos juízes para a cadeira de réu dos apáticos. Mais do que isso: não passariam de covardes, por não enfrentarem os próprios medos frente à execução do homem uma vez idolatrado.
Uma rubrica indica o tom enfático com que um dos cidadãos pergunta pelo padre. Seria mera coincidência o fato de o padre ter se ausentado precisamente no momento da execução do homem? Aqui subjaz uma crítica bastante contundente contra a postura da Igreja em momentos em que esta poderia cumprir um papel progressista. Onde estaria a Igreja quando o Estado cometeu atrocidades inauditas ao longo da história, tais como as grandes guerras do século XX, os golpes militares dentro e fora da América Latina e outros fatos tratados pela autora em outras obras. Não é a primeira vez que a Igreja não se faz presente nos momentos em que o povo mais precisa dela. Teria o padre se ausentado por ignorar que a execução seria adiantada? Ou será que ele se distanciara precisamente para se eximir da responsabilidade perante o povo? O texto insinua, mas não afirma com todas as letras que se trata de um ato de negligência. Isso fica a critério da plateia, mas a crítica desliza nas entrelinhas.
Finalmente, um dos cidadãos atende aos apelos dos juizes, que pedem silêncio. Ao contrário das demais vozes até o presente momento, o cidadão 5 reconhece a autoridade dos magistrados, tal como indica o protocolo: trata-os por "Excelências". Pouco a pouco, cessam os ruídos e o silêncio toma conta do ambiente sombrio. Mas não por muito tempo.

JUIZ JOVEM: Senhores... a lei precisa ser cumprida.

Frases dos cidadãos: "Mas o homem não fez nada" – "Ele só falava" – "Você entendia?" – "Era só depois de amanhã".

JUIZ VELHO: Esperem um pouco. Nós vamos explicar (rumores. Silenciam) O verdugo não pode mais esperar té amanhã. Tem outros serviços longe daqui. E tão importantes quanto este.

Frases dos cidadãos: "O outro que espere" – "A morte vem quando tem de vir".

JUIZ JOVEM: Mas a lei precisa ser cumprida.

CIDADÃO 1: Mas o que o homem fez?

CIDADÃO 5: Falem o que ele fez.

CIDADÃO 6: É, ninguém explica.

JUIZ VELHO: Ele já foi julgado.

CIDADÃO 5: Mas ninguém entendeu o que as Excelências disseram. Foi uma fala enrolada.

Frases: "Nós queremos saber direito" – "Claro". Rumores.

JUIZ JOVEM: O homem enganou vocês. Colocou vocês contra a lei. Agitou.

CIDADÃO 5: É bom a gente se agitar um pouco. Desempena.

Risos.

A primeira tentativa de explicação do jovem juiz denuncia a primeira hipocrisia relacionada à execução do homem, uma vez que sua realização se daria pelas mãos de uma falsária, que se passa por verdugo, sorrateiramente na calada da noite, dois dias antes, sem avisar a população da vila. As vozes aleatórias questionam e apregoam a inocência do homem. Um deles quer saber se os outros entendiam o que ele falava. As vozes não falam em uníssono, podendo divergir entre si. A atenção desliza de um ponto para o outro, apresentando diferentes abordagens, sintetizadas em frases curtas, embora expressivas, às vezes acompanhadas de pontos de interrogação.
A suposta mentira do velho juiz sobre as outras tarefas do verdugo apresenta uma meia-verdade, que só será revelada com o desfecho da história. De fato, o verdugo não teria como esperar até o dia seguinte, pois sequer o veria raiar. Sua execução já está prevista, logo após o último suspiro do homem misterioso. Ele teria outros serviços longe da vila. A palavra "longe" pressupõe uma distância que vai além do espaço, uma distância metafísica. Ele seria levado a uma outra dimensão, para onde são levados os mortos, no mesmo patamar de importância do homem cuja sentença fora pronunciada. Porém os cidadãos interpretam a explicação do velho juiz em seu sentido literal.

Mas o verdadeiro sentido histórico reconhece que nós vivemos sem referências ou sem coordenadas originárias, em miríades de acontecimentos perdidos. Ele tem também o poder de interverter a relação entre o próximo e o longínquo tal como fora estabelecido pela história tradicional em sua fidelidade à obediência metafísica. Esta de fato se compraz em lançar um olhar para o longínquo, para as alturas: as épocas mais nobres, as formas mais elevadas, , as ideias mais abstratas, as individualidades mais puras.

(Michel Foucault)

A exigência de explicações por parte dos cidadãos da vila a princípio não encontra resposta plausível. O velho juiz se atém a dizer que o homem já fora julgado. O fato está consumado, portanto não se pode questioná-lo. A justiça tratara de resolver o assunto. O assunto passara pela instância máxima deliberativa. Pouco importa se o povo não entendeu o que os juízes disseram no julgamento. Tanto melhor, já que o intuito era confundir, e falar em termos técnicos para que o povo não tivesse condições de assimilar ou interferir no processo. O outro juiz, mais perspicaz, responde mais objetivamente à pergunta dos cidadãos, alegando que o homem teria enganado o povo ao persuadi-lo a infringir à lei. Seus argumentos se assemelham aos editoriais da imprensa oficial, que legitima arbitrariedades com argumentos racionalmente verificáveis. Bastaria um olhar atento para indagar sobre o corredor semântico que atribui uma conotação negativa ao ato de convencer o povo a infringir às leis. O povo não estaria ciente dessa manobra, portanto não seria vontade do povo ir contra às leis. Aí cabe perguntar se o povo teria consciência da ilegalidade de seus atos. Será que o povo deseja mudar as leis? Caberia ao povo questionar as leis? Caberia ao povo mudar as leis? O jovem juiz justifica a condenação do réu devido ao fato de ele ter "agitado", ou seja, insuflado a população contra o establishment. Pelo humor, a autora evoca um questionamento reflexivo, brincando com a palavra "agitar". O cidadão 5 a emprega com mais leveza: "agitar" teria um sentido de dar movimento, entreter, mudar o sentido ou a direção de uma força. O deboche é explícito, todos riem.

O número 5 sobe no patíbulo. Entra o Verdugo, correndo.

VERDUGO (gritando): Parem! Parem!

A família e os juízes entreolham-se.

CIDADÃO 5: O verdugo.

Olham para o Verdugo e a mulher-verdugo.

CIDADÃO 1 (apontando a mulher-verdugo): Mas o verdugo está aí.

CIDADÃO 3 (apontando o Verdugo): Mas esse é que é o verdugo.

VERDUGO (para os cidadãos, apontando os juízes): Eles enganaram vocês. É a minha mulher que está aí.

Silêncio.

CIDADÃO 6 (para a Mulher): Tira o capuz! Tira o capuz!

A Mulher tira o capuz.

CIDADÃOS: A mulher! É mesmo a Mulher! Sai daí de cima! Sai!

Os juízes fazem com que a Mulher fique. Rumores.

JUIZ JOVEM: Esperem, nós podemos explicar.

O verdugo fica no meio dos cidadãos, tentando convencer uns e outros.

CIDADÃO 5: Mulher não pode ser verdugo.

O Verdugo chega correndo com o intuito de revelar ao povo uma verdade. Como era de se esperar, a verdade vem à tona: está rasgado o invólucro. Uma vez retirado o capuz, atendendo aos clamores dos cidadãos da vila, o escândalo se desvela. Porém o povo não me parece tão injuriado pela traição quanto ao fato de o lugar de verdugo ser ocupado por uma mulher. Que atrevimento colocar uma mulher para exercer uma tarefa atribuída à virilidade e ao poder masculino! A ira do povo não se volta contra os juízes traidores, mas contra o atrevimento da mulher-verdugo. Quando os cidadãos gritam em uníssono para que a mulher saia do patíbulo, reivindicam que ela se coloque em seu devido lugar. Pelo travestimento, ela atravessa uma região fronteiriça, exacerba sua própria medida: se ela não podia exercer o papel de verdugo enquanto mulher, ela ainda poderia fazê-lo como homem. Porém no momento em que sua identidade é desvelada, tudo muda de figura: sua conduta seria ignominiosa frente aos cidadãos em torno da praça, ou seja, todos homens.

JUIZ VELHO: Esperem, nós queremos ser honestos com vocês. (risos mais audíveis) Escutem, se nós não cumprirmos a lei agora, amanhã vocês é que serão mortos.

Frases: "Nós?" – "Mortos?" – "Por quê?"

(...)

CIDADÃO 5: Ninguém vai matar ninguém aqui. (frases dos cidadãos: "Soltem o homem". Aproximam-se mais do patíbulo. Para os juízes) Soltem o homem!

JUIZ JOVEM (dando alguns passos à frente): Vocês serão todos mortos. Mortos. (os cidadãos estaqueiam. Para outro juiz) Mostra o papel.

Alguns cidadãos recuam.

CIDADÃO 5: Que papel?

JUIZ JOVEM: Mostra.

JUIZ VELHO (tirando um papel do bolso da toga): Nós vamos ler o que só teria de ser lido em caso de extrema necessidade. (desdobra o papel) Senhores, este é um documento dirigido a nós, os juízes. (começa a ler) As autoridades esperam que o lúcido critério de Vossas Excelências torne possível a execução do homem, dentro de um prazo mínimo. Como é nosso dever proteger o povo, zelar por suas vidas...

CIDADÃO 5: Olha aí, eles não querem a nossa morte.

JUIZ JOVEM: Esperem, vamos continuar.

JUIZ VELHO: Como é nosso dever proteger o povo, zelar por suas vidas, estender-lhe a mão...

CIDADÃO 1 (interrompe, apontando o próprio traseiro): Nessa direção?

Risos prolongados.

JUIZ VELHO: Silêncio... (continua a ler) lutar contra toda a espécie de ameaças, sejam elas sutis ou definidas...

CIDADÃO 1 (interrompe): Já começou a fala enrolada, o que quer dizer... como é? Como é?

CIDADÃO 5: Sutil.

CIDADÃO 3: O que é isso?

JUIZ VELHO: Ameaça é perigo.

CIDADÃO 4: E sutil?

JUIZ JOVEM: Um perigo que é difícil explicar de onde vem.

JUIZ VELHO (aponta o homem): Esse homem é um perigo sutil.

CIDADÃO 4: Porque ninguém sabe de onde ele vem?

CIDADÃO 5: Ele vem de algum lugar e isso basta. De longe.

CIDADÃO 2: Longe é lugar nenhum.

CIDADÃO 5: Deixa pra lá, Excelência, continua.

JUIZ VELHO (continua a ler): ...aguardamos o cumprimento da nossa vontade o mais breve possível. Não queremos ódios, nem inquietações, queremos apenas, ajudados pelas mãos de Deus, transformar a confusão dos homens em amor, em justiça. Se não derem cumprimento à nossa vontade, a vila terá merecido castigo. (levanta a cabeça) E o merecido castigo é a morte.

CIDADÃO 5: Isso não está escrito aí.

JUIZ VELHO: Mas eu sei o que eu digo.

Quando caem as máscaras, e a farsa confabulada entre os juízes e a mulher-verdugo é exposta em praça pública, o juiz velho se atreve a falar em "honestidade", o que suscita risos entre os cidadãos. Em seguida, uma ameaça: caso a lei não fosse cumprida, seriam todos mortos. A princípio, um dos cidadãos insiste para que soltassem o homem, com o respaldo de seus companheiros. Mas a ameaça surte efeito, ainda que em diferentes níveis e tempos difusos: uma onda de medo se alastra entre os cidadãos, que pouco a pouco recuam e querem saber mais. O jovem juiz, que até o presente momento se mantivera em pleno controle de si, se exalta, dá alguns passos para frente e repete a ameaça, como quem pronuncia um veredicto. Então ele pede para que seu companheiro leia o documento onde consta a ameaça.
O papel registra e legitima a ameaça dos juízes, com base em um estatuto oficial. A população leva mais a sério o documento que as palavras dos juízes, caídas em descrédito pela opinião pública. A carta que legitima a ameaça de morte começa por afirmar o compromisso de proteção e zelo pelas vidas dos cidadãos. Um dos cidadãos constata que é contraditório uma ameaça de morte, envolvendo todos os cidadãos da vila, se basear na proteção e no zelo por suas vidas. O velho juiz repete a frase, enfatizando a hipocrisia intrínseca, e a complementa, alegando que é dever das autoridades estender as mãos aos cidadãos. Um dos cidadãos mais afoitos o interrompe com ar de deboche: "nessa direção?" – e aponta para seu traseiro, aludindo ao esfíncter. Este lugar por onde saem os excrementos, por onde tudo o que entra é interpretado como sujo e pecaminoso, um lugar proibido para onde se mandam aqueles cuja tez se mancha de pecados vis, recobertos de nojo e vergonha. Com isso, o cidadão pretendia insultar os juízes, pois sujas e pecaminosas são as mãos da justiça, que introduzem nas cavidades do povo sua ignominiosa sentença.

Eu ainda não tinha conseguido vê-la até o cu (esse nome, que eu sempre empregava com Simone era para mim o mais belo entre os nomes do sexo). (...) O horror e o desespero que exalavam aquelas carnes, em parte repugnantes, em parte delicadas, recordam os sentimentos..."

(Geoges Bataille)

O velho juiz continua a ler a carta, que assinala como objetivo o combate a toda sorte de ameaças, tanto as sutis, como as definidas. Os cidadãos ignoram o que significa "sutil". Só o jovem juiz parece conhecer o seu significado: um perigo vago, indeterminado, cuja origem não se conhece. O velho juiz, que se desviara da pergunta endereçada a ele sobre o significado da palavra, então exemplifica, apontando o misterioso homem como um "perigo sutil". Se seguíssemos à risca a definição do jovem juiz, haveríamos de concluir que seu perigo é indeterminado, vago, cuja origem não se sabe ao certo. O grau de abstração com que o texto fora escrito deixa margem para que qualquer um possa ser identificado como um "perigo sutil". De onde vem o perigo é algo difícil de explicar, pois está para além do homem. É a força vital que o impele, uma força que atravessa subjetividades, recoberta de uma aura sagrada, uma esperança que inspira a transformação e a reafirmação da vida. Não é algo palpável, com a origem em um ponto determinado. É como um espectro que paira no ar, e se instaura no coração do homem. Indeterminável.

Bulbos de narciso em vez de globos
Rompiam das órbitas dos olhos! Sabia
Que o pensamento adere aos membros mortos,
Estreitando-lhe os luxos e luxúrias.
(...)
Conhecia toda a angústia da medula,
O surdo calafrio do esqueleto;
Nenhum toque carnal era capaz
De apaziguar-lhe a febre dos ossos.
(...)
E até mesmo as Entidades Abstratas
Cortejam seus encantos, mas o nosso
Destino rasteja entre costelas secas
Para manter acesa a nossa metafísica.

(T. S. Eliot)

O discurso se segue em chave abstrata, falando em nome de valores nobres. Conta com a ajuda de Deus e se volta contra a inquietação e o ódio, no intuito de ordenar a sociedade com base em amor e justiça. Caso a vontade das autoridades não fosse atendida, a vila contaria com "merecido castigo". O velho juiz aproveita a indeterminação da sentença e acrescenta, de cabeça erguida, que o "merecido castigo"seria a morte. Os cidadãos atentos percebem que isso foi uma livre interpretação do juiz, que ainda de cabeça erguida, responde que sabe o que está falando. Afinal, ele e seu companheiro de toga são os legítimos intérpretes das leis. Os demais teriam que se calar, pois ainda que discordassem do veredicto, não se atreveriam a contrariar valores tão estimados em nome dos quais a carta fora redigida. São inúmeras as injustiças praticadas em nome da justiça, e dos valores mais caros à humanidade. Em um jogo dos contrários, a ordem do discurso inverte os sentidos, embaralha os significados, e transforma a mais cruel das sentenças em uma prédica sedutora.
Um dos cidadãos coloca em relevo a palavra "amor", presente na carta que documenta a ameaça dirigida aos habitantes da vila. O misterioso homem também falava em "amor". Outro cidadão pondera: "Todo mundo fala em amor, mas ninguém resolve o problema da gente". Quem estaria mentindo em nome do amor: o homem ou as autoridades? Estariam todos mentindo em nome do amor? Por meio desse diálogo, Hilst retoma a pergunta: "mas afinal, o que é o amor?" A filha do casal de verdugos toma a palavra:

FILHA (aflita): Mas amor é... (não sabe o que dizer mas lembra-se da fala do juiz. Olha para o Juiz jovem) ... comedimento.

CIDADÃO 6: E o que é isso?

JUIZ JOVEM (adiantando-se): É não fazer coisas violentas.

CIDADÃO 5: E matar o homem não é uma coisa violenta?

FILHA: Mas o amor... tem dois jeitos de ser.

CIDADÃO 3: Qual é o teu jeito, hein?

Risos.

FILHA (com raiva): A gente deve matar aqueles que nos confundem.

CIDADÃO 2: Todo mundo é confuso.

FILHA: Vocês entendiam o que ele falava?

CIDADÃO 5: Entendia, sim. Ele falava da alma.

FILHA: Mas o corpo é que interessa.

VERDUGO: O que ele falava... era verdade. Ainda que fosse para daqui a muito tempo.

FILHA (para os cidadãos): E a barriga de vocês aguenta muito tempo? (rumores. Olha para os juízes e, de repente, enquanto os rumores continuam, ela parece descobrir a fórmula para vencer os cidadãos) Olhem, (refere-se ao homem) ele queria é que a gente não prestasse atenção no problema de agora. Falando pra daqui a muito tempo, a gente pensa nesse tempo que importa.

Silêncio. Um certo rumor.

CIDADÃO 1: Como é? Como é que você disse?

Frases: "Você entendeu?" – "Deve ser assim". Cochicham. Os juízes se entreolham. A mulher do Verdugo está rígida, de olhar altivo durante quase todo o tempo.

CIDADÃO 2: O homem era contra nós, então?

CIDADÃO 4: Falava do jeito que falava pra gente não pensar na barriga de hoje?

(...)

FILHA (aponta para os cidadãos): Se a gente está morrendo, cheio de dor mesmo, e vem o padre... isso (para o 5) te alivia?

CIDADÃO 5: O quê?

FILHA: O padre te alivia a dor?

Rumores.

CIDADÃO 5: Não... O padre não alivia a dor.

Rumores.

FILHA: E você não deixa de morrer porque o padre veio, deixa?

CIDADÃO 1: Se chegou a hora da gente, não.

Rumores.

FILHA: Mas enquanto o padre está por perto você pensa que está aliviado, não é?

CIDADÃO 5: E daí?

FILHA (apontando o homem. Voz muito alta): Esse homem é como um padre na hora da morte. Só isso.. Mais nada.

Silêncio completo.

A filha começa seu discurso insegura, sem saber ao certo o que dizer, mas pouco a pouco, encontra a brecha por onde incidir na opinião pública, e vai ganhando confiança para virar a mesa. O amor tem dois jeitos de ser: existe o amor em verdade e aquele que confunde. Se amor é comedimento, no sentido da não violência, matar um homem seria uma contradição – observa o cidadão 5. Para a filha, seria preciso eliminar aqueles que nos confundem. O cidadão 2 faz uma observação interessante, ao constatar que todos são confusos. A confusão não é característica de um ou de outro, é um estado subjetivo que pode ser abordado a partir de diferentes pontos de vista. Enquanto o misterioso homem fala da alma, a filha parte da premissa do corpo. Assim Hilst ilustra a duplicidade de um amor cindido, entre corpo e alma.
A verdade da alma é uma verdade perene, que não pode ser traduzida em números ou prazos específicos sob a ótica da duração terrena. A filha desloca a questão para a dimensão da materialidade, e toca em um ponto delicado, mas crucial, que necessita de alimentos no tempo dos homens. Não é na cabeça ou no coração, mas na barriga que se encontra a fórmula para virar contra o homem a opinião pública. Quando desviamos nossa fome para a alma, as necessidades do corpo não cessam de existir. As necessidades fisiológicas requerem respostas terrenas, situadas no corpo. A fome do corpo está na ordem do dia, e não pode ser saciada em um tempo distante. O homem confunde, pois desvia a atenção dos problemas de hoje, e deposita todas as esperanças em um porvir longínquo. Em nome desse porvir longínquo, abandona-se a dimensão corpórea.
Em Hambre del Alma, a antropóloga Carla Cristina Garcia lança luz sobre a literatura de mulheres, como Emily Dickinson, Noira Ephron, Karen Blixen, e Clarice Lispector, entre outras. Há escritoras cuja criação ativa apetites que anseiam por alimentos para a alma: "o alimento se metamorfoseia no próprio corpo, a palavra assume o poder do pão". Hilda Hilst poderia facilmente se encaixar nessa categoria. Em alusão à "Festa de Babette", de Karen Blixen, sob o pseudônimo de Isak Dinesen, Garcia constata que há uma "incompatibilidade entre os prazeres corporais que descuidavam de alimentar a alma e almas devotas que precisam mortificar o corpo. Esferas incompatíveis quando vistas apenas no plano da oposição..."
É em nome de um porvir longínquo em um tempo perene que falam as religiões. A crítica materialista tem em mira o augúrio de uma ascese divina. No catolicismo, a carne é revestida de pecado: é preciso abdicar dessa carcaça suja para chegar ao miolo sagrado por onde penetra o espírito. É uma outra fome aquela que se inunda de esperanças sob o brio de uma promessa de salvação. O ato de salvar a alma implica na redenção da carne. Mas a barriga continua vazia. Chegada a hora da morte, a carne padece e se deteriora até perecer por completo. O padre não pode saciar a fome dos corpos ou adiar o momento da morte. Ao aproximar o delito perpetrado pelo homem misterioso do papel desempenhado pelo padre, a morte os torna cúmplices de um crime inaudito. O crime de ludibriar o povo, confundir as fomes, deixando a barriga vazia.
Os rumores dos cidadãos, indicados pelas rubricas, se assemelham a burburinhos resultantes de um processo em curso. Pensamentos dissonantes ativados pelas provocações da filha, compartilhados no seio do coletivo. Eles não falam em uníssono, mas em polifonia. Algo que fervilha, borbulha, evapora, modifica seu estado físico. Uma transformação está em curso, à medida que a filha fora capaz de tocá-los com seus argumentos. A racionalidade materialista da filha faz sentido para eles. Há uma identificação entre a verdade da filha e a verdade dos cidadãos, que não desejam encontrar suas panelas vazias. Ela aponta os limites ao que o homem representa e propõe uma inversão diametralmente oposta: se ele não pode salvá-los terrenamente, ele passa a ocupar o lugar do inimigo. Quando caem as asas de um anjo, ele é relegado a queimar nas chamas do inferno, pois ele mesmo torna-se o capeta. Se cai a aura sagrada do Messias, ele se converte em perdição. Sob a ótica dualista, não existe meio-termo. Por outro lado, as duas premissas se imiscuem, pois se a verdade do espírito não enche a barriga, tão pouco a comida no prato é capaz de saciar a fome da alma. Através do exercício de uma retórica construída com base em uma lógica formal, a filha alcança o êxito desejado pelos juízes, que consiste em tirar o homem de seu pedestal e jogá-lo às chamas inflamadas da opinião pública. De sagrado, ele se torna profano. Sua condenação se dá na mesma proporção de sua devoção.

CIDADÃO 5: Nós podemos deixar o homem fugir.

VERDUGO: Isso não tem sentido.

CIDADÃO 3: Não adianta... Ele foge... e nós ficamos?

JUIZ JOVEM: Vocês no lugar dele.

Silêncio prolongado.

VERDUGO (com determinação): Eu fico no lugar dele. Eu não me importo.

CIDADÃO 5: O teu negócio é matar, não é morrer.

Os porta-vozes do Estado são enfáticos e reiteram que não hesitariam em matar todos os habitantes da vila no lugar do homem. Seu intuito é vencê-los pelo medo. A eficácia da força das armas que engatilham em nome do Estado consiste em que sua simples menção pode surtir os efeitos desejados. Pelo medo da coerção, a ordem é mantida. Seria preciso matar apenas um, para dar o exemplo aos demais, e mostrar que se for preciso, haverá derramamento de sangue no futuro. Sacrificam o líder para que os outros se desarticulem, e recuem, temendo futuras represálias.
O verdugo é inexorável, oferecendo sua própria cabeça no lugar do tão estimado homem. Ele está disposto ao martírio, a morte digna do herói, para salvar a vida de seu líder. Seu grau de abnegação é tão profundo, que nada mais importa. Ele está entregue de corpo e alma a uma causa, que adquire materialidade na carne desse homem. O homem representa a transformação em amor, a salvação da humanidade metamorfoseada em coiote. No limite, ele encarna uma promessa de liberdade. Com humor, o cidadão faz questão de lembrá-lo que sua função social consiste em matar, e não morrer. O estranhamento reflexivo imbricado nessa frase satírica retoma algo sobre o personagem que não condiz com sua postura imaculada: afinal, é um verdugo, não um santo. O sacrifício, portanto, não lhe convém. Ambas, filha e esposa, também reprovam sua oferta, só que por outro motivo.

MULHER (seca): Pensa em mim, homem.

VERDUGO (para a Mulher): Você está pensando no dinheiro. Não em mim.
(pausa)

Frases se superpondo: "Qual dinheiro?" – "Ah, tem dinheiro no negócio" – "Eu sabia, tava tudo muito complicado" – "Assim não".

(...)

VERDUGO (olhando para a Filha): As Excelências me ofereceram dinheiro se eu matasse o homem.

Todos olham para os juízes.

MULHER (seca, voz alta): Não foi assim.

CIDADÃO 3 (referindo-se à Mulher): Por isso ela resolveu fazer o serviço.

Rumores.

JUIZ JOVEM: Silêncio, por favor. (pausa) Oferecemos sim. Oferecemos dinheiro para salvar vocês.

CIDADÃO 3: E dar dinheiro para o verdugo nos salva?

CIDADÃO 5: Salva ele.

(...)

CIDADÃO 3: É muito dinheiro? Desembucha logo.

MULHER (olhando o Verdugo, que está desesperado): Doze... treze milhões.

(...)

CIDADÃO 5: E vocês sabem se eles (aponta os juízes) vão dar o dinheiro para nós?

Silêncio. Expectativa tensa.

JUIZ JOVEM: Damos o que for preciso.

JUIZ VELHO: Talvez um pouco mais... se é para tantos.

Cidadãos entreolham-se. Silenciam.

A revelação sobre a oferta dos juízes surtiu os efeitos contrários aos anseios do verdugo. Pouco a pouco, a indignação dá lugar à ganância. Se o dinheiro oferecido pelo serviço seria capaz de salvar o verdugo caso ele aceitasse a proposta dos juízes, estaria no dinheiro a salvação da vila. As expectativas da população se voltam para questões materiais; afinal, é preciso encher a barriga. Nem todos dedicam ao homem a mesma abnegação, a ponto de abrir mão da própria vida para salvá-lo. A eficácia da persuasão por meio de uma oferta em dinheiro é tentadora, em um mundo voltado para o consumo, em que o poder aquisitivo assume uma importância cabalística. O dinheiro é capaz de resolver muitos problemas, suprir necessidades, dar luz a novas necessidades, recriar a vida em um amplo leque de opções. A esperança que o homem oferece é abstrata e a longo prazo, já o dinheiro abre portas, desbrava caminhos imediatos, pode mudar materialmente a vida das pessoas. A ascensão social não é um desejo exclusivo da mesquinhez da mulher-verdugo e sua filha, mas de toda a vila, ainda que em diferentes níveis. O ato de subornar é uma saída fácil para resolver determinados impasses, e já havia funcionado com as duas personagens nessa peça; funciona como freio de muitas greves e mobilizações ao longo da história do Ocidente. O dinheiro se apresenta como panaceia para todos os males, nele se inscreve uma promessa de salvação cujos efeitos são imediatos. A cabeça do homem é trocada por uma nova ascese.
Como dizia Walter Benjamin, prestamos um culto ao Capitalismo e as suas mercadorias, que reluzem junto ao vidro e o mármore das grandes galerias. Expostas nos mostruários, as mercadorias seduzem, despertam desejos. Acredita-se que, com a aquisição de um dado produto, é possível superar as adversidades do cotidiano. Para Benjamin, a maquinaria, imbricada numa engrenagem de paixões mecanicistas e cabalistas, fabrica um país das maravilhas, aniquilando toda a ética e sensibilidade para com o outro. O fetiche da mercadoria inaugura os seus templos, locais de peregrinação, como as exposições universais da Paris do século XIX. O mundo é permeado por alegrias descartáveis, com prazo de validade, que pede sempre mais e mais. A ascese do dinheiro desencadeia um turbilhão de desejos infindáveis, e desperta os interesses mais mesquinhos.
A população negocia, e finalmente aceita a proposta dos juízes. Eles haviam tentado de tudo: a substituição dos carrascos; a persuasão pelas ideias racionalmente verificáveis, invertendo as variáveis; a ameaça pela força de um decreto e das armas; e finalmente o suborno coletivo, que sela o corolário do impasse em torno do qual circula a trama, que remete à morte do homem e o que ele representa para os personagens, em diferentes níveis. O dinheiro sela o desfecho, como a cereja do bolo. Se até então, algum cidadão mantinha firmes suas convicções, todos acabam por se deixar seduzir pela ascese monetária. O único que não aceita se vender é o Verdugo.

O Verdugo protege o corpo do homem com seu próprio corpo. O Carcereiro tenta empurrá-lo, mas é violentamente empurrado pelo Verdugo.

CIDADÃO 3: Mas afinal esse homem é teu parente ou o que é? Você prefere ele a nós. (rumores) Olha, nós vamos fazer uma comunidade onde todo mundo vai entrar e melhorar de vida. Com esse dinheiro que ofereceram, todos vão trabalhar e encher a barriga. Você também não tem filhos? A moça (aponta a Filha) não vai casar com aquele ali? (aponta o Noivo)

NOIVO: E eu estou sem emprego. Ajudava muito.

VERDUGO (voltando para o homem, emocionado): Fala, homem de Deus, explica pra todos quem você é.

JUIZ VELHO: Ele não tem mais o direito de falar.

JUIZ JOVEM: Pela lei, ele já está morto.

CIDADÃO 3: E de qualquer jeito, ninguém vai entender o que ele fala. (para o Verdugo) Anda logo com isso.

Expectativa. Silêncio.

HOMEM (lentamente): Eu não soube dizer. Eu não soube dizer como devia. Eu não me fiz entender. Eu não me fiz entender. (para o Verdugo) Faz o teu serviço.

Silêncio completo.

VERDUGO (para o homem): Eu não posso. Eu não posso.

CIDADÃO 5: Então sai daí.

No ápice de seu desespero, o verdugo usa seu próprio corpo como escudo para blindar o homem de seu destino infeliz, que nessa altura do campeonato, parece inevitável. Todos estão pela morte do homem. Até que o próprio homem resolve se pronunciar, contrariando os juízes que não lhe outorgaram o direito à palavra. Em poucas palavras proferidas lentamente, o homem reconhece que fracassara. O espetáculo que se desenrolara frente a seus olhos de cavalo demonstra que ele não fora capaz de se fazer entender. Suas palavras não haviam entrado no coração das pessoas, senão superficialmente. Se seus ideais estavam perdidos, não fazia mais sentido relutar em viver. Sua vida não faria diferença a partir daquele momento. Estava selado o veredicto. O Verdugo não precisa dar sua vida por uma causa perdida. O homem exorta o verdugo a levar a cabo seu serviço, mas o verdugo mantém firme sua recusa. Ele não quer aceitar que tudo termine assim. O cidadão 5, que outrora defendera o homem com muito afinco, é o primeiro a rechaçá-lo, exigindo que saia da frente. O poeta estadunidense T. S. Eliot, já dizia:

E o fiz inconsciente, semiconsciente, ignoto, meu.
O verdugo da carcaça faz água, as fendas reclamam o calafate.
Esta forma, este rosto, esta vida
Vivendo por viver numa esfera de tempo que me excede. Que eu possa
Renunciar à minha vida por esta vida, à minha fala pelo inexpresso,
O desperto, lábios abertos, a esperança, os novos barcos.

O filho entra em cena, correndo, e tenta se aproximar de seu pai. Os cidadãos da vila procuram impedi-lo, afinal, ele poderia colocar tudo a perder. Os cidadãos têm pressa. Seguram-no com força. O Verdugo ensaia uma última tentativa de convencer o povo da vila de que o homem é bom, e tem os olhos de cavalo. Antes mesmo que ele conclua sua frase, os cidadãos interrompem-no e põem-se a rir. Sua nobreza de espírito é interpretada como devaneio: só mesmo um louco seria capaz de falar assim. Repetem-se os mesmos argumentos da cena do diálogo entre o verdugo, a mulher e os filhos na mesa de jantar. Porém altera-se a correlação de forças, e o impasse é levado até as últimas consequências. Nesse momento, mãe e filha parecem voltar atrás. O estranhamento provocado pela repetição da cena leva-as a uma compreensão mais profunda do papel ao qual haviam se prestado, e seus desdobramentos. Tentam se aproximar do verdugo em um ato de súbito desespero, mas são empurradas pelos cidadãos.

Os cidadãos aproximam-se perigosamente do patíbulo. Os juízes descem. Nesse instante entram na praça os dois homens coiotes. Estão vestidos da seguinte maneira: calça e camisa comuns, cabeça e rosto de lobos, mãos para trás. Ficam de frente para o público, examinam o público fixamente e depois voltam as cabeças em direção ao patíbulo. Tem-se a impressão de que não foram vistos por nenhum dos cidadãos, nem pelo juízes etc. Apenas o filho do Verdugo dá a impressão não só de que os conhece, mas de que os esperava.


VERDUGO (protegendo o homem com seu próprio corpo. Com determinação): Ninguém chega perto

CIDADÃO 5: O homem tem de morrer. Vamos, vai andando. (entra em luta com o Verdugo)

Os cidadãos atacam em conjunto, o Filho tenta escapar das mãos do Carcereiro, mas não consegue. Frases: "Mata logo o homem" – "Mata do nosso jeito".

VOZ DO VERDUGO (com intensa comoção): Não. Não. Eu morro mas...

Frase: "Então morre". Começam a dar pauladas no homem e no Verdugo. Cena de intensa violência. Frases soltas: "Dá uma no olho de cavalo" – "Toma você também, seu porco". Terminam a chacina. Recuam vagarosamente. Silêncio esticado. Descem do patíbulo. Vê-se o homem e o Verdugo lado a lado, mortos.

Ninguém é capaz de conter o furor inexorável com que os cidadãos se dirigem contra o verdugo e seu protegido misterioso. Ambos são mortos pelas mãos impiedosas dos cidadãos. Os seguidores do misterioso homem haviam se convertido em seus assassinos. Sua vida é sacrificada por um bem comum, o mais caro dos bens no sistema capitalista: o dinheiro. Não é preciso um tribunal para que o verdugo tenha a mesma sorte que o réu condenado. A sentença já fora pronunciada. Pelas leis, o homem já era considerado morto. Qualquer um que se atrevesse a tentar impedir o seu remate, seria eliminado do mesmo modo, ainda que se tratasse de toda a população da vila. Os juízes já haviam-no anunciado, está tudo registrado em decreto. A morte do verdugo é legítima perante as leis e seus intérpretes e se dá com o auxílio ativo dos cidadãos da vila. As lamúrias da mulher e da filha do verdugo são tardias. O silêncio se instaura sobre as cinzas da barbárie humana.

Como dizia Antonin Artaud, não somos senão sombras de nós mesmos, que deixamos para um tempo fictício nosssas carcaças e cavernas do ser, para buscarmos o maravilhoso que finca raízes no espírito. Precisamos despertar esse espírito atordoado por um "Todo-Pensamento" imposto por decreto, que fixa a vida tal como ela se apresenta, porém apartada, alheia à realidade de um íntimo abandonado a valores frívolos, determinados de fora. Em vão cultuamos o Dinheiro, a Verdade, a Ordem, a Racionalidade, traçando um desvio com relação a nós mesmos. Nos tornamos fantoches inanimados, manipulados por joguetes sistêmicos que se comunicam por meio de signos inculcados no pensamento. Segundo o autor:

Quem nos julga, não nasceu no espírito, neste espírito que nós queremos viver e que existe para nós fora daquilo que chamais de espírito. Não se deve atrair demais nossa atenção para as cadeias que nos prendem à petrificante imbelicilidade do espírito. Nós pusemos a mão sobre um animal novo. Os céus respondem à nossa atitude de absurdo insensato. Estes hábitos que tendes de voltar as costas às questões não impedirão, no dito dia, os céus de se abrirem, e uma nova língua de se instalar em meio a vossos tratados imbecis, queremos dizer, dos tratados imbecis do vosso pensamento.

Solto das garras do Carcereiro, o filho observa atentamente o corpo do pai antes de juntar-se aos homens-coiotes. A aparição dos homens-coiotes em cena é algo curioso, a última alegoria absurda à qual Hilda Hilst recorrera para que o texto se encerrasse em chave de esperança. Ela deu vida à alegoria da resistência, por meio de homens com cara de coiote, que mantém firmemente a promessa de um novo porvir. Ninguém mais é capaz de vê-los, como se fossem a materialidade de uma ideia, um espectro de esperança que só é visível aos olhos dos sonhadores. O destino do filho é incorporar-se à resistência e trabalhar atrás das moitas até poder enfim mostrar sua cara de coiote, em seu para-si triunfal. Eles perderam uma batalha, mas a luta continua. Antes que o palco se dissipe na escuridão, uma luz violenta destaca as patas de lobo dos homens-coiotes, com suas garras afiadas, sedentas de vingança. Seria o fim, ou o princípio de um novo começo?

El salto de ser que se realiza con el nuevo inicio no substituye el antes com el después; em um nuevo incio, lo que ya estaba se afina del todo y del todo se salva.

(Luisa Muraro)



Capítulo VI
DONZELAS GUERREIRAS

A saga do herói de "A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção" se inscreve na afirmação de uma Verdade, que se revela frágil e relutante no decorrer na peça, enquanto em "O Verdugo", a figura do herói é substituída pelo protagonismo do carrasco, mas é também em função de uma Verdade que o homem morre, em vão. Ninguém entendera a mensagem do misterioso homem. Sua beatitude se dissipa com o fracasso de sua palavra. O tiro sai pela culatra, e a tão esperada salvação se perde em um universo sombrio, que cultua o dinheiro e não a liberdade. O dinheiro mesmo engendra uma promessa de liberdade: a liberdade do consumo, que realiza e recria desejos. Também com América a Verdade se ressignifica à luz de asceses que se invertem: a salvação pelo amor em Cristo é substituída pelos dogmas da Ciência, um novo Deus.
Carne e espírito, profano e sagrado, materialidade e abstração, a vigília e a fantasia. Os dualismos atravessam as duas peças, entre a fome do corpo e a fome do espírito, aquilo que se pode comprovar cientificamente e aquilo que é da ordem do sensível. Por exemplo, as figuras alegóricas com que o Verdugo tenta descrever o misterioso homem – a árvore, o mar, os olhos de cavalo – são risíveis aos olhos pragmáticos de sua esposa, sua filha e os juízes. Do mesmo modo, o homem metamorfoseado em barata de Kafka e a ressurreição de Cristo são ridicularizados pela Superintendente e suas postulantes por apresentarem situações absurdas sob as lentes da ciência. As duas peças colocam em marcha um questionamento em torno do logocentrismo e da soberba da Ciência, que despreza todas as variáveis que não se encaixam na equação racional. O que é passível de erro se descarta. Assim como no internato de freiras, onde América é recriminada por questionar a Bíblia e os dogmas do Cristianismo. Os antagonismos de Ciência versus Religião dão a tônica dos dualismos em América, e se reforçam quando os vértices se invertem, mantendo intacto o pilar sobre o qual se sustenta a estrutura hierárquica e excludente da sociedade. Mudam as premissas, mudam as pessoas, mas o jogo de contrários continua em pleno vigor. Pois na base desse grande pilar está a ideia de Verdade. Verdade entendida em sua acepção absoluta, uma pretensão de explicar o mundo em sua totalidade por um único viés. Em "O Verdugo", é em nome de uma Verdade que a beatitude do homem é levada até as últimas consequências: o martírio. A que servira o martírio do herói? Seria em nome de uma Verdade que ele sacrificara a vida? Mas fora outra Verdade a responsável pela sua morte. Uma Verdade que adquire força de lei, imprime sua efígie no dinheiro e se arvora na retidão do cálculo racional. Tanto em "O Verdugo", quanto em "A Empresa", Hilda Hilst faz questão de suscitar a ambiguidade intrínseca à ideia de Verdade. Isso se ilustra bem com as perguntas das postulantes, quando América narra as aventuras do revolucionário, que exterminara seus oponentes. Também quando o coro muda de posição tão logo a filha do verdugo revela a quantia em dinheiro que ofereceram pela morte do misterioso homem. Que Verdade é esta que se coloca à venda? Que Verdade é esta que parece se adequar tão perfeitamente ao novo paradigma, conservando suas hierarquias, suas linguagens, suas estruturas de pensamento?
A Verdade da ciência cai por terra quando Eta e Dzeta, estruturas imaginárias criadas na parábola de América, começam a falhar. Mesmo a ciência é fadada ao erro. Eliminado o erro, com a morte da protagonista, a máquina retoma o seu curso de normalidade. O triunfo da ciência só é consagrado com a morte do espírito, após seu último suspiro. Diferente do misterioso homem que se arrepende no final, o verdugo leva para a cova sua verdade, consagrando uma Verdade tacanha, acolhida pelo povo. O julgamento do homem, antes rechaçado pela população, é finalmente legitimado. Mas não por todos. A peça termina com a fuga do filho do verdugo, que se refugia no vale junto aos homens-coiotes. A luz sinistra sobre a pata do coiote suscita esperanças que se projetam para o futuro. Qual esperança se inscreve na pata desse homem metamorfoseado em animal? Seria uma nova inversão de paradigmas ou a subversão de uma ordem de dominação?
A metamorfose aparece em Hilda Hilst como uma transição entre o homem e o animal que habita o homem. A alegoria que corrompe a ordem normal das coisas para ressaltar sentidos que estão além do humano. É algo que de fora que está dentro, que é do homem, mas também é do lobo, uma dimensão selvagem que nos empenhamos em adestrar, do espírito convulsivo que grita dentro de nós, e que de fora, é silenciado. O homem transformado em pássaro que personaliza o ar livre, como a cotovia de Bachelard, de cores discretas e tamanho ínfimo, que se mistura com a paisagem, de maneira quase imperceptível. Sua aparente invisibilidade camufla um canto que é também um voo. "Como uma nuvem de fogo, ela dá asas à profundidade azul. Para a cotovia (...) a canção é voo e o voo é canção, ela é uma flecha aguda que corre na esfera de prata". Com suas cores e formas indefinidas, ela encarna a metáfora literária, que desafia todas as metáforas de cores e formas. Ela é uma "poesia pura", indescritível, que transcende a representação, sorvendo – ambos sujeito e objeto – em sua totalidade. A promessa de salvação do misterioso homem ganha asas e alça voo, em uma abstração radical, que remete a anseios imaginários, atravessa regiões fronteiriças e percorre espaços infinitos, em divina leveza. Para Bachelard, "no reino de uma imaginação criadora aérea, o corpo do pássaro é feito do ar que o cerca, e sua vida do movimento que o arrebata." Ele não foge à realidade, mas a transcende, fazendo das coisas que o cercam matéria-prima de criação. A libertação que o misterioso homem propõe e ninguém entendeu é a possibilidade de abrir mão dos fardos pesados que se abatem sobre o ser humano, e ganhar asas, como metáfora de uma leveza, de uma transitoriedade que está além da gravidade, e de todas as fronteiras que apartam e cindem a mente humana. O voo, real ou imaginário na dimensão dúplice inerente à alegoria remete a uma possibilidade de criar em movimento intermitente.
Hilda Hilst traz da poesia uma miríade de imagens, que se personificam ou são aludidas em palavras, dotando-as de prodigalidade e de um teor explosivo, que atravessa seu lirismo poético. As imagens dão vigor aos silêncios e gritos que habitam os personagens, para além do curso ordinário de vidas que há muito perderam seus sentidos. O Verdugo ressignifica sua vida, sensibilizado por palavras novas, que só podem ser descritas através de imagens. A inversão entre o paradigma da Verdade da ciência e a Verdade religiosa opera em América por meio de imagens, como a parábola de Eta e Dzeta. É pelas imagens cambiantes que Hilst realiza sua alquimia, transformando poesia em teatro.
Os cenários, não só nessas duas peças, como por toda a extensão de sua obra, remetem a situações-limite. Tanto o corpo quanto o espírito são levados ao insuportável, à beira de abismos fulminantes. Não há saída pela tangente, é preciso rasgar todas as roupagens e encarar de peito aberto o dilema que se coloca entre os protagonistas e o mundo. A tônica apocalíptica acompanha todo o curso de seu teatro, levando seus questionamentos até o limite. Nessas duas peças, a saída é a morte, que sela o fim, ou o adormecimento, de um paradigma. Mas antes da morte, vem o suplício. O árduo fardo que recai sobre o Verdugo em sua recusa de matar o misterioso homem, as lamúrias de América, confinada em um quarto escuro ao se deparar com o assombro da materialização de sua ideia. A política de Hilst passa pelas entranhas de corpos colonizados, habitados por silêncios que abafam um grito de desespero.
Os silêncios e os gritos que habitam o corpo dos personagens de Hilst são os silêncios de seu tempo. Homens e mulheres silenciados, confinados nos porões do DOI-CODI, dilacerados pela tortura, física e psicológica. Os silêncios impostos pelos verdugos de seu tempo. A dor e o suplício dos que aspiram por liberdade. Os silêncios de América, um continente sob estado de exceção, ditaduras que calam o povo e perseguem as ervas as daninhas questionadoras para fazer passar a sua Verdade. América é a mulher, colonizada pelos interditos que impedem seu livre-pensamento e calam a sua voz. América sofre, tanto sob o peso da cruz, como sob a soberba da ciência. Ela busca uma espiritualidade em leveza, uma liberdade de invenção que comporta, mas vai além da ciência. Algo que se assemelha às asas do pássaro, que alçam voo na amplidão.
América e a mulher-verdugo são sombras dissonantes da donzela guerreira, que opera uma fusão entre animus e anima. Essa alquimia é descrita pelo músico Luiz Fiaminghi, e levada ao palco pelo Grupo Anima.

Sendo a guerra um emblema do animus, do espírito masculino, no qual a força e o ímpeto se sobrepõem à lógica e ao verbo – outros atributos do animus – e, por outro lado, tendo as donzelas guerreiras adotado Palas Atena como protótipo – cujo mito representa o tecer de estratégias, o combate por justiça e o convencimento pela sabedoria, que são, juntamente com o dom da predição, a intuição e o espírito criativo, atributos também associados ao anima – as donzelas guerreiras transitam obrigatoriamente entre esses dois polos. As narrativas das donzelas guerreiras, que se metamorfosearam ao longo do tempo e das culturas, transmitem, portanto, a essência desse encontro.

Assim como a donzela guerreira, América e a mulher-verdugo problematizam os polos apresentados como opostos e inconciliáveis. Ambas são dotadas de uma dimensão heroica, bastante masculina, que nutre esse ímpeto de transgredir os limites e o confinamento que lhe interpuseram. América bate de frente com as irmãs como se estivesse em combate, defende com um escudo de aço a Verdade da ciência: sua postura é, pois, dotada de um animus, algo que é levado ao limite com o travestimento da mulher-verdugo. Para elas é preciso recriar estratégias de empoderamento por um viés masculino. O poder é uma palavra masculina por excelência. Mas por trás dessa couraça subsiste uma mulher, que se realiza em sua anima. Essa luta consiste em libertar a mulher que fora colonizada, enclausurada, relegada à esfera da privação.
Ao contrário da beatitude de América, que resiste pelo silêncio, a mulher-verdugo encontra transcendência pela ação. Vestir o capuz do carrasco para ela é um ato criador, mas seu livre voo é como o de uma ave de rapina, que persegue sua presa em nome de seus desejos. Com suas pequenas mãos de carrasco, ela encontra um sentido para sua vida, e abandona o seu silêncio. Na primeira cena, ela está a servir seu marido e o filho com um prato de sopa, em um lar ordinário, situado em um lugar qualquer, reproduzindo tristemente a repetição cíclica da vida. Seu filho a considera ignorante, mas ela encontra no capuz do verdugo o espaço para dar o seu grito. Pois ela é o "homem" com uma tarefa, tal como o herói, disposta a sacrificar o amor de seu marido, que, por sinal, parecia-lhe indiferente, e sua vidinha sem sentido, para realizar sua obra. O dinheiro, em nome do qual ela arquiteta seu plano engenhoso, parece menor que a paixão que a move, uma avidez por sair do lugar que lhe fora relegado. O dinheiro tem relevância à medida que ele abre caminho para mudar sua vida.
Mudança, transitoriedade, metamorfose, hibridez e movimento são palavras que dançam à beira dos abismos, e precisam ganhar asas para vencer as vertigens que nos habitam. Com sua escrita, Hilda Hilst realiza um deslocamento de perspectivas, problematiza as premissas existentes para criar algo novo. O movimento que faz transbordar a medida imposta de fora, desafia a métrica que comumente aceitamos sem pensar, a qual sacia a fome, mas evoca novos apetites. É um movimento de amor, o amor que figura nos livros de América como uma bola de fogo, e reaparece em "O Verdugo" como elemento transformador. O fogo mesmo é transformador. É por ele que opera a alquimia. É o fogo que mantém a vida acesa, pois a gigantesca bola de fogo à qual se refere América é o sol. É preciso ter cuidado, ele dá, mas também pode tirar a vida, ao derreter a cera que prende asas ao corpo de Ícaro. Mas também é o sol que o fascina. Fascinante, mas inapreensível. Como dizia Luce Irigaray:

Above all, do not swallow the Sun. Do not digest the sun. Do not forget that, if it is inside you, it is also outside you. And that the impossibility of our relationship arises from the imprisoning of the sun inside a world. It can no longer flow everywhere. Irradiate everything with light and heat. Eating the sun means reflecting its benefaction back to it. In the end it will go out if it is never returned to itself.

O sol precisa brilhar na amplidão. É impossível retê-lo. Porém se algum dia alguém conseguisse o engolir, seu brilho seria ofuscado, e jamais completaria sua elipse. Assim como o sol, o amor só existe quando compartilhado. Por que retê-lo? Aprisionar o amor é tão estúpido quanto o ato de engolir o sol. Não se pode apreender o inapreensível. É preciso abrir mão, e aceitar de bom grado o seu brilho, e se deixar irradiar por seus raios. O mesmo raio que em todos brilha. Nem mais, nem menos. O amor ao qual Hilda Hilst se refere, seja pelas reflexões de América, seja pelo amor que maravilhara o verdugo, tem a ver com uma concepção de amor descrita por Luisa Muraro: "una concepción del amor livre y nómada, una concepción del ser que desconoce su contingéncia, em uma práctica de lectura de los textos que se opone a su porosidad..." Ele não se fixa em algum ponto, mas se movimenta pelos mapas afetivos e cognitivos. O amor se desdobra em diversos sentidos, permeáveis e móveis tal como ele mesmo, feito de sentidos antigos, que se metamorfoseiam e inspiram novas criações.
Muraro narra o episódio mítico do nascimento de Eros (amor). Estavam os deuses a celebrar com um farto banquete o nascimento de Afrodite, que nascera em meio às espumas do mar. Eis que chega uma intrusa, uma mortal que atende pelo nome de Carestia ou Miséria (do grego penia), e pede aos deuses algo para comer. Fitou de soslaio a Poros, que se encontrava estirado no jardim, embriagado de néctar divino, e resolve se aproveitar de seu estado para fazer um filho dele. Muraro conclui que o amor, nascido da privação e da carência, desloca o centro da gravidade para o outro, que está fora de si. É um equilíbrio difícil, que requer malabarismos mirabolantes para que aceitemos a impossibilidade de a pessoa realizar plenamente em um fora de si também dotado de desejos e anseios, que não se encaixam milimetricamente. Nas palavras de Muraro:
Esta es la empresa propia del amor, su acrobacia, porque entonces hay sitio para lo otro y lo otro tiene lugar, no de intruso ni de complemento, no parte ni extra, no amo ni siervo, no absoluto ni relativo, no objeto de fe ni objeto de voluntad. Sucede, simplemente, que hay algo outro y lo sabes, aunque no sepas nada más, porque em ti se muestra como acción de um centro de gravedad que se ha puesto fuera de ti: es como perder al equilibrio y descobrir otro, vestiginoso modo de sostenerse.

Em um equilíbrio instável, a mulher tece suas próprias parábolas, inverte o jogo, muda de perspectiva, se desloca, grita, se cala. O teatro de Hilda Hilst não absolutiza a mulher, mas antes enfatiza as vozes que a atravessam, desvela seu íntimo, cria imagens para comunicar o incomunicável. Pois toda a palavra é imprecisa quando se quer colocar em termos aquilo que é inerente ao sensitivo. São palavras que dançam à beira do abismo e só podem se comunicar pela ativação dos sentidos pelos quais apreendemos o mundo. A força da imagem, a vacuidade trepidante do silêncio, o timbre agudo do grito e o sabor do néctar, que escorre pelas entranhas e exala almíscar em tudo o que Hilda Hilst escreve.

Ao desafiar as leis da gravidade
Uma força me impele para longe do teu olhar réptil
Um grito de liberdade acalenta meu coração,
quando seus rastros se desmancham na distância
Longe do teu frio, num flanar de asas sobre o oceano
Um crepúsculo de mar e de nuvens movimenta
lentamente o respiro do universo
Uma coisa só, uma força incomensurável
Olho pela janela da minha liberdade-passarinho
Afrouxam-se os laços que me aprisionam, cala-se o interdito
Não poder amar de novo, não poder me lançar por inteiro
num precipício de sonho e de nuvens
Mal posso ouvir o pesar dos seus passos
Perdem-se no tempo e no espaço, labirinto soturno
Um raio se apaga, fraqueja a lembrança
No calcanhar uma leveza
Coração aberto em meu voar-borboleta
Você fica pequeno, a ideia de você:
Um pontinho incandescente no escuro,
prestes a se apagar nos primeiros raios de sol

(Marina Costin Fuser)


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BARROS, Theo de; e VANDRÉ, Geraldo (composição). "Disparada". Letra extraída do sítio eletrônico: http://letras.terra.com.br/geraldo-vandre/46166/

BOWIE, David; e ENO, Brian (composição). Letra disponível no sítio eletrônico: http://letras.terra.com.br/david-bowie/5354/

CAPINAM e GIL, Gilberto (composição). "Soy loco por ti América". Cantado por Caetano Veloso. Letra disponível no sítio eletrônico: http://letras.terra.com.br/caetano-veloso/76612/

GIL, Gilberto; e VELOSO, Caetano (composição). "Divino Maravilhoso", cantada por Gal Costa. Letra disponível no sítio eletrônico: http://letras.terra.com.br/gal-costa/248671/


HAMMETT, Kirk; HETFIELD, James, e ULRICH, Lars (composição). "Of Wolf and Men", interpretada pela banda Metallica. Letra disponível no sítio eletrônico: http://letras.terra.com.br/metallica/25959/traducao.html

ROBERTO, Cláudio; e SEIXAS, Raul (composição) "Cowboy fora da lei". Letra disponível no sítio eletrônico: http://letras.terra.com.br/raul-seixas/48307/



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