Para a história da lógica no século XVI: Pedro Margalho e António de Gouveia

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Pedro CALAFATE (Dir.), História do Pensamento Filosófico Português, Vol.II: Renascimento e Contra-Reforma, Lisboa, Editorial Caminho, 2001, pp.399-428.

PARA A HISTÓRIA DA LÓGICA DO SÉC. XVI PEDRO MARGALHO e ANTÓNIO DE GOUVEIA Maria Leonor Xavier No contexto da cultura europeia do séc. XVI, em especial, na história da lógica, deve sublinhar-se o mérito de dois portugueses, Pedro Margalho e António de Gouveia. De gerações diferentes e com distintos percursos universitários na Europa, ambos deixaram obras de lógica publicadas, ainda que nem um nem outro tivessem confinado a sua actividade ao domínio da lógica, de acordo, aliás, com o carácter de abrangência da cultura dos humanistas do Renascimento. 1. Pedro Margalho e António de Gouveia: os universitários e o respectivo legado escrito Pedro Margalho recebeu formação universitária, filosófica e teológica, em Paris, vindo depois a leccionar filosofia na Universidade de Salamanca, onde também disputou uma cátedra de teologia com Francisco de Vitória. Não obstante ter saído vencido de tal disputa, esta foi o episódio biográfico que maior renome lhe grangeou. De acordo com o seu itinerário escolástico e com o seu legado escrito, Amândio Coxito apresenta-o como filósofo, teólogo e canonista1. Uma das três obras, que compõem o legado escrito de Pedro Margalho, faz jus a estes dois últimos epítetos: Collectorium omnibus scholasticis utilissimum de horis canonicis, censuris ecclesiasticis et indulgenciis, cum expositione tituli de celebratione missarum, Salamanca, 15282. No entanto, as suas outras duas obras conhecidas inserem-se em domínios tradicionalmente integrados na filosofia: no domínio da filosofia natural, inscreve-se a obra Phisices compendium, Salamanca (?), 1520; no domínio da lógica, a obra Margallea logices utriusque scholia in diui Thomae subtilisque Duns doctrina ac nominalium, Salamanca, 1520. O texto desta edição vem reproduzido na edição de Lisboa, 1965, a mais recente de que dispomos, a única edição bilingue, com tradução portuguesa de Miguel Pinto de Meneses e introdução de Wilhelm Risse. É esta última edição que se toma por base do presente estudo sobre a obra lógica de Pedro Margalho. Este estudo visa contribuir quer para o conhecimento do conjunto pluridisciplinar das obras de um autor, que resiste a alguma interpretação unitária, sem abordagens parcelares por via de distintas especialidades; quer para o não esquecimento ou para o reconhecimento da visibilidade de Margalho na história da lógica do séc. XVI. A carreira universitária de António de Gouveia, por seu turno, é marcada pela itinerância: após frequentar o Colégio de Santa Bárbara de 1527 a 1534, onde obtém o grau de Mestre em Artes, desloca-se para Bordéus, onde ensina gramática e línguas clássicas de 1535 a 1537, depois passa brevemente por Toulouse e Avignon, e fixa-se, 1

Cf. Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, Lisboa/ São Paulo, Verbo, 1991, vol.3, col.641. Cf. HISLAMPA. Autores Latinos Peninsulares da Época dos Descobrimentos (1350-1560), Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1993, p.450. 2

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Pedro CALAFATE (Dir.), História do Pensamento Filosófico Português, Vol.II: Renascimento e Contra-Reforma, Lisboa, Editorial Caminho, 2001, pp.399-428. de 1539 a 1541, em Lyon, foco da cultura humanista de então, como revisor de provas da impressora de Sebastião Gryphe, donde regressa de novo a Paris, ao Colégio de Santa Bárbara, para aí obter a licença de leccionar filosofia. Em Paris, lecciona filosofia e assume a disputa com Pedro Ramo, em defesa de Aristóteles, por ordem de Francisco I, rei de França. Desta disputa, o evento universitário que o afamou, sai vitorioso por proclamação régia, em 1544, ano em que torna a sair de Paris, para não mais aí retornar. Como esta saída seria insuspeitável à luz de tal vitória, Artur Moreira de Sá interroga-se sobre as razões desse abandono e da própria itinerância de António de Gouveia por cidades culturais de França, do que faz um motivo condutor da sua «Introdução» à mais recente edição (Lisboa, 1966) das obras da controvérsia com Pedro Ramo3. Segundo Artur Moreira de Sá, a itinerância de António de Gouveia e a inconsequência da sua vitória em Paris devem-se à suspeição de simpatia com as ideias da Reforma4. Todavia, António de Gouveia não deixou obras de teologia nem é dado como teólogo. Amândio Coxito apresenta-o como filósofo, humanista e jurista5. Faz jus a estes epítetos, o conjunto de cerca de trinta títulos, registado no Índice de Autores Latinos Peninsulares da Época dos Descobrimentos (1350-1560)6. De acordo com este registo, António de Gouveia é predominantemente um jurista, visto que a maior parte desses títulos é de obras jurídicas, incluindo múltiplos comentários a obras de Cícero; é também um humanista, dado o seu conhecimento das línguas e dos autores clássicos, dentro e fora do domínio do direito, como ilustra o facto de ter sido responsável pela publicação de um alfabeto grego, bem como de obras de Terêncio e de Vergílio; é também um filósofo, sobretudo, como comentador e defensor da lógica de Aristóteles. No que concerne, em especial, ao estudo da lógica, António de Gouveia foi responsável pela publicação de Porphyrii Isagoge, Lyon, 1541, e foi autor de três obras reiteradamente publicadas: Critica Logices pars, Paris, 1543 e 1545; De conclusionibus commentarius, Paris, 1543, 1545, 1550; Pro Aristotele responsio adversus Petri Rami calumnias, Paris, 1543. Perdida a primeira, as duas restantes, envolvidas na controvérsia contra Pedro Ramo, encontram-se conjuntamente reeditadas na edição de Lisboa, 1966, com estabelecimento do texto e tradução de Miguel Pinto de Meneses, e introdução de Artur Moreira de Sá. É esta última edição que se toma por base do presente estudo sobre as obras lógicas de António de Gouveia. Este estudo visa contribuir para o reconhecimento quer de um autor ferido de suspeição no seu tempo e de posterior esquecimento, quer de dois textos sobre lógica aristotélica, cujo interesse não se esgota na controvérsia circunstancial com Pedro Ramo. Pedro Margalho e António de Gouveia: dois portugueses do renascimento quinhentista, que não se deixam aproximar um do outro senão por afinidades acidentais, como a passagem pela Universidade de Paris em momentos diferentes e a participação em disputas universitárias que ecoaram no tempo. 2. Os lógicos: Pedro Margalho e António de Gouveia 3

Cf. A. Moreira de Sá, «Introdução», in Comentário sobre as Conclusões e Em defesa de Aristóteles contra as calúnias de Pedro Ramo, de António de Gouveia, Lisboa, Instituto de Alta Cultura e Centro de Estudos de Psicologia e de História da Filosofia anexo à FLUL, 1966, p.VII. 4 Cf. Idem, «Introdução», pp.XXII-XXXVIII. 5 Cf. Logos. Enciclopécia Luso-Brasileira de Filosofia, Lisboa/ São Paulo, Verbo, 1990, vol.2, col.904. 6 Cf. HISLAMPA, pp.185-190. 2

Pedro CALAFATE (Dir.), História do Pensamento Filosófico Português, Vol.II: Renascimento e Contra-Reforma, Lisboa, Editorial Caminho, 2001, pp.399-428. A lógica é, no entanto, aquilo que permite associar Pedro Margalho e António de Gouveia num artigo comum, como o presente estudo. Cabe, decerto, perguntar se os dois lógicos, Pedro Margalho e António de Gouveia tratam da mesma lógica ou de duas lógicas dissociáveis entre si. Na realidade, as respectivas abordagens da lógica são tão diferentes entre si que dificilmente fariam supor, por si só, a pertença a uma mesma disciplina, não fosse a diversidade de tradições e de orientações que caracterizam a herança e o estado da lógica no séc. XVI. Na sua «Introdução» à mais recente edição dos Escólios em ambas as lógicas à doutrina de S. Tomás, do subtil Duns Escoto e dos nominalistas, de Pedro Margalho, Wilhelm Risse distingue sete principais orientações na lógica quinhentista7, das quais destacamos duas que em que é possível filiar, respectivamente, os dois lógicos que nos ocupam: a orientação aristotélica de tendência ciceroniana, em que se inscreve António de Gouveia; e a tradição escolástica de tendências várias, em que se insere Pedro Margalho. Risse discute a pertinência ou a impertinência de classificar Pedro Margalho como um escolástico decadente, defendendo uma e outra por razões diferentes: a pertinência, pelo carácter fragmentário, fracamente organizado, dos seus Escólios; a impertinência, pela profundidade da análise margaliana dos problemas particulares, que são objecto de comentário8. Ainda que reconhecida essa impertinência, Pedro Margalho não se liberta do preconceito decadentista explícita ou implicitamente associado ao epíteto «escolástico», que mais serve para desclassificar do que para classificar um autor do Renascimento, no parecer de Risse inclusive. Este especialista pretende até evidenciar como Pedro Margalho se afasta da escolástica medieval e acompanha as tendências do seu tempo, acusando certo descentramento da questão dos universais nos seus Escólios, de acordo com uma nova tendência da lógica terminista no séc. XVI, sobretudo em Paris e Salamanca, meios universitários frequentados pelo lógico português9. Segundo Risse, não interessa tanto a Margalho o estatuto metafísico dos universais quanto a construção de uma teoria do conceito, como fundamento geral da lógica10. Diversamente de Risse, que procura vincular a lógica de Pedro Margalho às novas tendências da escolástica sua contemporânea, e desvinculá-la da alta escolástica, o presente estudo visa os comentários lógicos de Margalho na continuidade da escolástica medieval, acentuando a positiva contribuição desta para a história da lógica. Na verdade, a lógica terminista, que Pedro Margalho retoma nos seus Escólios, é uma aquisição da Idade Média e constitui mesmo a parte que os lógicos medievais acrescentaram à logica antiqua (logica vetus e logica nova). Como eles não se consideravam medievais, mas modernos, a lógica terminista por eles elaborada recebeu a designação de logica modernorum11. Esta lógica moderna dos medievais versava sobre as propriedades dos termos, pelo que recebeu também a designação de logica terminorum. Esta lógica terminista define propriedades dos termos comuns, quer em conformidade com diversos modos de compreensão da sua extensão, dentro e fora de contexto discursivo, quer em função da sua aplicação a 7

Cf. W. Risse, «Introdução», in Escólios em ambas as lógicas à doutrina de S. Tomás, do subtil Duns Escoto e dos nominalistas, de Pedro Margalho, Lisboa, Instituto de Alta Cultura e Centro de Estudos de Psicologia e de História da Filosofia anexo à FLUL, 1965, p.XXVII. 8 Cf. Idem, «Introdução», p.XXXI. 9 Cf. Idem, «Introdução», p.XXVIII. 10 Cf. Idem, «Introdução», pp.XXXII-XXXVIII. 11 Daí o título de um dos mais importantes estudos de referência sobre a génese da lógica terminista na Idade Média: L. M. de Rijk, Logica Modernorum. A Contribution to the History of Early Terminist Logic, Assen, Van Gorcum, vol.I – 1962, vol.II (Partes 1 e 2) – 1967. 3

Pedro CALAFATE (Dir.), História do Pensamento Filosófico Português, Vol.II: Renascimento e Contra-Reforma, Lisboa, Editorial Caminho, 2001, pp.399-428. coisas particulares. Entre as propriedades dos termos, contam-se a suposição (suppositio) e a apelação (appellatio), a ampliação (ampliatio) e a restrição (restrictio), bem como a distribuição (distributio). As definições destas propriedades variam conforme os lógicos. Pedro Hispano foi o lógico que fez doutrina nesta matéria. Depois de Pedro Hispano, todas as teorias sobre as propriedades dos termos são variações relativas à doutrina por ele fixada no Tractatus, mais conhecido sob o título posterior de Summule Logicales12. Assim acontece também com o entendimento das propriedades dos termos nos Escólios de Pedro Margalho. Como não poderia deixar de ser, as teorias medievais sobre as propriedades dos termos comuns constituíam vias de abordagem da questão dos universais. Acepções diversas das propriedades dos termos reflectiam posições diversas acerca da questão dos universais. Ora, as três posições, que balizam todas as variações no âmbito desta questão e que se definiram no contexto da escolástica medieval – o intelectualismo tomista, o realismo escotista e o nominalismo –, continuam a ser consideradas e comentadas por Pedro Margalho. De contrário, não se entenderia o título da obra lógica de Margalho: Escólios em ambas as lógicas à doutrina de S. Tomás, do subtil Duns Escoto e dos nominalistas (Logices utriusque scholia in diui Thomae subtilisque Duns doctrina ac nominalium)13. É certo que o lógico português não centra a sua análise nem define uma posição clara sobre a natureza dos universais, antes comenta com inteira liberdade crítica as abordagens tomista, escotista e nominalista de problemas técnicos da lógica então em debate. De posições paradigmáticas sobre a questão dos universais, tomismo, escotismo e nominalismo passam a constituir orientações gerais ou correntes no domínio da lógica. Dever-se-á então reconhecer um descentramento da questão dos universais? Ou caberá, antes, supor o tratamento desta questão como fundamental para a resolução de todos os problemas decorrentes da lógica? Seja como for, a lógica terminista, tão estreitamente associada à questão dos universais, caíu em desuso e não se mantém hoje em vigor quer como capítulo quer como tipo de lógica. A lógica terminista perdeu, de facto, actualidade, mas perdeu-a, sobretudo, na forma ou como modelo de análise da matéria em causa. Esta, a matéria da lógica terminista, mantém-se na ordem do dia, ainda que sujeita a outros tratamentos de ordem técnica e disseminada por várias disciplinas no âmbito da filosofia da linguagem. Propriedades dos termos, como a ampliação, a restrição e a distribuição, converteram-se em operadores de quantificação da lógica de predicados. Propriedades, como a suposição e a apelação tornaram-se antecedentes incontornáveis de outras classificações que procedem à análise do sentido dos elementos da linguagem natural, a partir das diversas abordagens das actuais disciplinas da linguagem. É, pois, como antecedente comum das hodiernas teorias do sentido, de múltiplas proveniências disciplinares, que a lógica terminista ou moderna dos

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Tractatus, called afterwards Summule Logicales, ed. crítica de L. M. de Rijk, Assen, Van Gorcum, 1972. 13 Doravante, o título desta obra de Pedro Margalho será, recorrentemente, citado em português, sob a forma abreviada de Escólios, a palavra inicial do título da tradução portuguesa de M. Pinto de Meneses. Esta tradução será utilizada para citar o texto em português (pp. ímpares; texto em latim, pp. pares), não obstante algumas deficiências nela reconhecidas: cf. Amândio A. Coxito, Lógica, Semântica e Conhecimento, na Escolástica Peninsular Pré-renascentista. Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade, 1981, p.198 (n.142). 4

Pedro CALAFATE (Dir.), História do Pensamento Filosófico Português, Vol.II: Renascimento e Contra-Reforma, Lisboa, Editorial Caminho, 2001, pp.399-428. medievais mantém um inegável interesse14. É, também, desse modo que importa revisitar obras na tradição da lógica terminista, como a de Pedro Margalho. Em outra tradição, a da lógica aristotélica, inscrevem-se, por seu turno, as obras lógicas de António de Gouveia. A tradição da lógica aristotélica também atravessou a Idade Média e determinou fortemente o teor da lógica medieval, mas não uniformemente ao longo do tempo. Até ao grande renascimento de Aristóteles nos sécs. XII e XIII, a base do estudo da lógica era principalmente aristotélica mas muito limitada, visto que se reduzia aos dois primeiros livros do Organon em versão latina, Categoriae e De Interpretatione, acrescidos da Isagoge ou introdução de Porfírio ao livro das Categorias, e de vários comentários de Boécio, responsável mor pela transmissão da lógica aristotélica à cultura medieval. A partir da redescoberta das demais obras de Aristóteles, dos restantes livros do Organon inclusive, durante os sécs. XII e XIII, aquilo que constituíra anteriormente a base do estudo da lógica converteu-se em velha lógica (logica vetus), confrontada com a novidade da parte recém-redescoberta da lógica de Aristóteles (logica nova), centrada na análise silogística do racionínio. Dividida em velha e nova pelos escolásticos medievais, a lógica aristotélica nunca deixou de integrar, de algum modo, a zona nuclear da disciplina de lógica. Dada a força modelar de Aristóteles na escolástica medieval, não é de estranhar que a cultura renascentista, assumindo-se em descontinuidade com aquela, relativizasse os seus principais paradigmas, mesmo tratando-se de um clássico, como Aristóteles. O Filósofo, por excelência, para os escolásticos da Idade Média, deixou de constituir a referência incontornável, para os escolásticos do Renascimento. Não obstante Aristóteles ter continuado a marcar uma forte presença na cultura europeia do séc. XVI, essa presença não só se desmembrou em múltiplos aristotelismos, como se tornou possível ignorá-la e recusá-la. Tal é o que se reflecte também no domínio da lógica. Com efeito, a tradição da lógica aristotélica, apesar do seu prestígio, não atraíu uniformemente todos os lógicos do séc. XVI: era possível descentrá-la e contorná-la, como fez Pedro Margalho; era possível desprezá-la e combatê-la, como fez Pedro Ramo; era também possível defendê-la e promovê-la, como fez António de Gouveia. Este humanista português afirma-se, de facto, como um aristotélico, no domínio da lógica. O aristotelismo de António de Gouveia exemplifica uma das múltiplas formas de apropriação do legado aristotélico, na sua época, e caracteriza-se por dois aspectos principais: a forte influência mediadora de Cícero; e a aplicação da lógica silogística à argumentação jurídica. Cícero é, de facto, a par de Aristóteles, uma das fontes mais frequentemente citadas por António de Gouveia, o que torna a sua lógica muito próxima da retórica. O interesse de António de Gouveia pela lógica é, aliás, muito instrumental; trata-se do interesse por uma lógica aplicada ao direito, a área dominantemente contemplada na sua produção literária. António de Gouveia não se ocupou da lógica pela lógica, mas sim por outras razões ou para outros fins: pela aplicação ao direito, enquanto jurista; pelo ensino da filosofia, enquanto professor; pela defesa de Aristóteles, enquanto polemista. De acordo com estes propósitos, as suas exposições de lógica são recorrentemente exemplificadas com temas jurídicos, são pedagogicamente claras e precisas, bem como incisivas e concisas na argumentação contra Pedro Ramo. Por estas e outras razões, as obras de António de 14

Diversamente de Peter Thomas Geach, que retoma literalmente teorias medievais de lógica terminista, para as recuperar ou refutar: cf. Reference and Generality. An Examination of Some Medieval and Modern Theories, 3ª ed., Ithaca/ London, Cornell University Press, 1962. 5

Pedro CALAFATE (Dir.), História do Pensamento Filosófico Português, Vol.II: Renascimento e Contra-Reforma, Lisboa, Editorial Caminho, 2001, pp.399-428. Gouveia merecem atenção e estudo, pelo menos tanta quanta já tem merecido Pedro Ramo15. Pedro Margalho e António de Gouveia: dois lógicos portugueses, que que aqui se unem para ilustrar o estado da lógica no séc. XVI, caracterizado não só pela pluralidade de orientações como até pela disparidade de opções na cultura da disciplina. 3. Pedro Margalho e a lógica terminista Considere-se agora a própria obra de Pedro Margalho, Escólios em ambas as lógicas à doutrina de S. Tomás, do subtil Duns Escoto e dos nominalistas. Este título sugere dois aspectos configurantes da obra, a saber: que ela abrange duas lógicas distintas; e que ela constitui um comentário das orientações tomista, escotista e nominalista, em lógica. Todavia, o teor da própria obra põe em causa a prioridade destas duas sugestões do título, como motivos de análise. Por um lado, a lógica de que se ocupa Pedro Margalho é, de facto, a lógica dos termos e não é senão para a introduzir ou para actualizar as suas potencialidades de aplicação que ele sai fora do âmbito estrito da mesma. A outra lógica, que os Escólios abrangem, nunca aparece, na obra, com uma circunscrição definida. Por outro lado, os Escólios não são, na realidade, comentários das correntes tomista, escotista e nominalista, em matéria de lógica. As três correntes são mencionadas com alguma frequência, mas não constituem o objecto dos comentários de Margalho. Este comenta matérias escolarmente estabelecidas e amplamente adoptadas no ensino da lógica do seu tempo, e não é senão pontualmente que ele convoca os pareceres de S. Tomás, Duns Escoto e dos nominalistas. Ademais, o lógico português nem sempre define uma posição clara relativamente a esses pareceres. Em vez, pois, de seguir as duas sugestões do título, este estudo sobre os Escólios de Pedro Margalho parte de duas questões susceptíveis de obter respostas interpretativas, através da análise do texto. A primeira: o texto dos Escólios obedece a algum plano de desenvolvimento? A segunda: como se relaciona o autor com as diversas referências da tradição da lógica, que aparecem aludidas na sua obra? Atenda-se, antes de mais, à questão do plano de desenvolvimento da obra, a fim de se alcançar uma visão panorâmica sobre esta. O texto dos Escólios de Pedro Margalho não é um tratado sistemático de lógica, mas é possível apreender nele certa unidade interna e uma linha compreensível de desenvolvimento. A impressão de fraca organização é, porventura, mais aparente do que real, mais superficial do que profunda. Na realidade, os Escólios podem dividir-se em duas partes principais. A primeira parte constitui uma apresentação metódica de matéria elementar de lógica, constando de: definições e divisões de noções básicas da disciplina; de divisões múltiplas dos termos; e de alguns elementos sobre as propriedades dos termos16. A segunda parte, por seu turno, inclui uma crítica pessoal de algumas das definições e

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Considerando, a título exemplificativo, os seguintes estudos de especialidade: Walter J. Ong, Ramus. Method, and the Decay of Dialogue. From the Art of Discourse to the Art of Reason, Cambridge (Mas.)/ London, Harvard University Press, 1958 (refira-se que este estudo indica a Tunísia, como lugar de origem do português António de Gouveia: cf. p. 215) ; Nelly Bruyère, Méthode et Dialectique dans l’Oeuvre de La Ramée. Renaissance et Age Classique, Paris, Vrin, 1984. 16 Cf. Escólios, «Bases das duas lógicas», pp.87-127 (86-126). 6

Pedro CALAFATE (Dir.), História do Pensamento Filosófico Português, Vol.II: Renascimento e Contra-Reforma, Lisboa, Editorial Caminho, 2001, pp.399-428. divisões anteriormente apresentadas17 e um desenvolvimento da teoria da suposição, ao serviço do conhecimento da verdade das proposições18. A primeira parte versa sobre temas basilares de uma introdução à lógica, para se concentrar, logo de seguida, na lógica dos termos, enquanto a segunda, para além de retomar temas de toda a primeira parte, faz uma incursão no domínio da lógica proposicional; a primeira é semelhante a um manual escolar, enquanto a segunda se assume como um comentário de autor. Dado que a exposição da matéria precede por inteiro os comentários críticos, não é de estranhar que o tratamento do mesmo tema se distribua por diversos momentos do texto, dando a impressão de alguma desordem na composição. Associando, no entanto, os diversos momentos de abordagem de um mesmo tema, é possível entrever linhas de continuidade de análise, como se procura tornar explícito de seguida. É abundante a colecção de definições e de divisões que o lógico português agrega na primeira parte da sua obra. Assumindo metodicamente a prioridade da definição sobre a divisão, Margalho começa por apresentar sete definições fundamentais para a lógica: a de sinal (signum), a de termo (terminus), a da própria definição e suas condições (diffinitio), a de definido (diffinitum), a de significar (significare), a de representar (repraesentare), e a de conhecimento (notitia)19. Algumas destas definições iniciais são retomadas e criticadas por imprecisão na referida segunda parte da obra. Nos seus comentários críticos, Pedro Margalho não propõe definições alternativas. É certo que ele toma as definições iniciais como teses contra as quais é possível argumentar. Todavia, a contra-argumentação, a que são sujeitas as definições, visa, não substituí-las, mas sim aperfeiçoá-las, exigindo maior adequação ao definido. Assim as definições de sinal20 e de significar21 são retomadas e argumentadamente criticadas, em momentos posteriores do texto, por não satisfazerem as condições previamente discriminadas de uma boa definição22. As próprias noções de definição23 e definido24 são revistas e complementadas num momento posterior dos Escólios. O prolongamento da análise do definido, dividido em próximo (propinquum) e remoto (remotum), é acrescido do conceito de contido no definido (contentum sub diffinito)25. A análise das condições de uma boa definição é também retomada e complementada, ulteriormente, pelas seguintes divisões da definição: em nominal (diffinitio quid nominis) e real (diffinitio quid rei); da definição real, em quiditativa (quidditatiua) e discretiva (discretiua); da definição

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Cf. Escólios, «[Da definição do sinal]», pp.127-137 (126-136); «[Objecções contra a definição do sinal]», pp.139-169 (138-168); «Termos categoremático e sincategoremático», pp.169-197 (168-196); «[Termos complexo e incomplexo]», pp.197-209 (196-208); «[Termos de primeira e segunda intenção]», pp.209-219 (208-218). 18 Cf. Escólios, «Das suposições», pp.219-271 (218-270). 19 Cf. Escólios, p.87 (86). 20 «Sinal é a coisa significativa de alguma coisa, de algumas coisas, ou de alguma maneira.» Escólios, p.87 (86). 21 «Significar é representar à potência conhecente» Escólios, p.87 (86). 22 Crítica da definição de sinal: cf. Escólios, pp.127-129 (126-128), 139-141 (138-140), 145-147 (144-146). Crítica da definição de significar: cf. Escólios, pp.149-153 (148-152). 23 «Definição é a explicação breve, clara e própria do definido.» Escólios, p.87 (86). 24 «Definido é o que se explica com brevidade, clareza e propriedade.» Escólios, p.87 (86). 25 Cf. Escólios, pp.131-135 (130-134). 7

Pedro CALAFATE (Dir.), História do Pensamento Filosófico Português, Vol.II: Renascimento e Contra-Reforma, Lisboa, Editorial Caminho, 2001, pp.399-428. quiditativa, em metafísica (methaphysica) e natural (naturalis), bem como em formal (formalis) e material (materialis)26. Antes, porém, de tornar explícitas tais divisões da definição, Margalho começa desde logo a aplicar o processo da divisão às noções elementares previamente definidas. São inicialmente sujeitas a divisão, as noções de representar, de significar e de termo. Algumas das divisões formuladas são igualmente sujeitas a revisão crítica, na segunda parte do texto. A noção de representar27 aparece de imediato associada a uma divisão em três modalidades: activamente (actiue), formalmente (formaliter) e instrumentalmente (instrumentaliter)28. Esta divisão não é contiguamente explicada nem ulteriormente revista. O processo de divisão da noção de significar é, inicialmente, mais desenvolvido, visto que a primeira divisão se desdobra em várias subdivisões. Significar divide-se, antes de mais, em duas modalidades principais: significar naturalmente (naturaliter) e significar convencionalmente ou por imposição (ad placitum; ex impositione). Por um lado, a modalidade natural subdivide-se em três: própria (proprie), comum (communiter) e por instinto da natureza (ex instinctu naturae). Por outro lado, a modalidade convencional ou por imposição subdivide-se em duas, própria (proprie) e imprópria (improprie), e esta última subdivide-se ainda em três: respectiva (respective), por concomitância ou analogia e semelhança (per concomitantiam vel analogiam et similitudinem), e pelo uso (ex usu). Alguns dos dados desta análise inicial da função de significar29 voltam a estar em foco a propósito de uma revisão da classe dos termos convencionalmente significativos30. Nesse âmbito, Margalho critica, em especial, a permutabilidade entre significar convencionalmente e significar por imposição, argumentando a favor da distinção entre estas duas modalidades. É, aliás, à noção geral de termo31, que o autor dos Escólios aplica exaustivamente o método da «divisão lógica», assumida como o processo adequado de exposição da noção mais comum de termo, provendo à decomposição dessa noção em noções subordinadas32. Não se trata, porém, de um processo de análise dos termos, constituído por uma divisão principal e uma cadeia de subdivisões subordinadas, como aquele que caracteriza a exposição da noção de significar. Trata-se, agora, de um processo de divisões sucessivas, não subordinadas umas às outras, mas contiguamente expostas, algumas delas desdobradas em subdivisões internas. De facto, Pedro Margalho colecciona cerca de treze divisões dos termos, que expõe sucessivamente, sujeitando algumas delas a crítica ulterior. De acordo com o registo do lógico português, os termos dividem-se: em significativo (significatiuus) e não significativo (non significatiuus); em mental (mentalis), vocal (vocalis) e escrito (scriptus); em categoremático (cathegorematicus) e sincategoremático (syncathegorematicus); em absoluto (absolutus) e conotativo (connotatiuus); em 26

Cf. Escólios, pp.129-137 (128-136). A acepção do género e da diferença na definição: cf. Escólios, pp.141-143 (140-142). 27 «Representar é produzir conhecimento ou ser conhecimento.» Escólios, p.87 (86). 28 Cf. Escólios, pp.87-89 (86-88). Estreitamente articulada com a noção de representar, vem a noção de conhecimento, da qual só posterior e acidentalmente Margalho alude a uma divisão: a divisão do conhecimento em distinto (notitia distincta) e confuso (notitia confusa): cf. Escólios, p. 155 (154). 29 Cf. Escólios, pp.89-91 (88-90). 30 Cf. Escólios, pp.153-159 (152-158). 31 «Termo é o sinal constitutivo da oração, ou então o sinal que significa naturalmente ou convencionalmente.» Escólios, p.87 (86). 32 Cf. Escólios, p.93 (92). 8

Pedro CALAFATE (Dir.), História do Pensamento Filosófico Português, Vol.II: Renascimento e Contra-Reforma, Lisboa, Editorial Caminho, 2001, pp.399-428. complexo (complexus) e incomplexo (incomplexus); em termo de primeira intenção (terminus primae intentionis) e termo de segunda intenção (terminus secundae intentionis); em transcendente (transcendens) e não transcendente (non transcendens); em sinónimos (synonymi) e não sinónimos (non synonymi); em pertinentes (pertinentes) e impertinentes (impertinentes); em absoluto (absolutus) e relativo (relatiuus); em equívoco (aequiuocus) e unívoco (uniuocus); em opostos (oppositi) e não opostos (non oppositi)33; e, por fim, em colectivo (collectiuus), divisível (diuisiuus) e misto (mixtus)34. Ainda que este conjunto de divisões dos termos não constitua um sistema coeso, é possível entrever formas de articulação entre elas e agrupá-las segundo afinidades mais ou menos extrínsecas, a partir da própria exposição margaliana. Entre as afinidades susceptíveis de constituir critérios de agrupamento, podem contar-se as três seguintes: a de ser uma divisão que comporta subdivisões; a de ser uma divisão que classifica, não termos individualmente tomados, mas relações de termos; a de ser uma divisão sujeita a revisão crítica, por parte de Pedro Margalho. Considere-se, antes de mais, o grupo das divisões que comportam subdivisões. São as seguintes, as classes de termos, obtidas através das divisões principais, que se revelam, por sua vez, divisíveis: a dos termos significativos; a dos termos mentais; a dos termos categoremáticos e a dos termos sincategoremáticos; a dos termos conotativos; a dos termos complexos; a dos termos sinónimos; a dos termos pertinentes; a dos termos relativos; a dos termos equívocos e a dos termos unívocos; por fim, a dos termos opostos. Há cruzamentos entre estas classes, dado que algumas delas entram na definição de algumas outras, como, por exemplo, a classe dos termos categoremáticos intervém na definição dos termos opostos, ou na análise dos termos unívocos. No entanto, não há articulação sistemática entre as diversas classes saídas do primeiro nível de divisão dos termos. Cada uma dessas classes reinicia autonomamente um processo de divisões. Os termos significativos dividem-se em significativos naturalmente de modo próprio (naturaliter proprie) e significativos convencionalmente de modo próprio (ad placitum proprie)35, em conformidade, aliás com a divisão principal da noção de significar. Os termos mentais dividem-se em ultimados (ultimati) e não ultimados (non ultimati), respectivamente, não subordinados e subordinados a outro termo na significação36. A divisão dos termos em categoremáticos e sincategoremáticos comporta uma tripla subdivisão para as duas classes, a saber: os termos categoremáticos podem ser tais na significação (significatione), na função (officio), e na significação e na função simultaneamente; de modo semelhante, os termos sincategoremáticos podem ser tais na significação, na função e em ambas ao mesmo tempo37. A classe dos termos categoremáticos, em especial, é ainda passível de mais duas divisões: a divisão em comuns (communes) e singulares (singulares)38; e a divisão em finitos (finiti) e infinitos (infiniti)39. A classe dos termos categoremáticos comuns é particularmente importante para a concepção margaliana de uma das

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Divisões expostas ao longo de Escólios, pp.93-113 (92-112). Divisão acrescentada em Escólios, p. 151 (150). 35 Cf. Escólios, p.93 (92). 36 Cf. Escólios, p.95 (94). 37 Cf. Escólios, p.95 (94). 38 Cf. Escólios, p.95 (94). 39 Cf. Escólios, pp.103-105 (102-104). 34

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Pedro CALAFATE (Dir.), História do Pensamento Filosófico Português, Vol.II: Renascimento e Contra-Reforma, Lisboa, Editorial Caminho, 2001, pp.399-428. propriedades dos termos, a apelação, posto que são estes termos comuns, aqueles que se definem por uma qualidade apelativa40. Quanto à classe dos termos conotativos, isto é, dos que têm mais do que um significado, ela é passível da divisão em duas modalidades da conotação, a intrínseca (intrinsice) e a extrínseca (extrinsice)41. Também a classe dos termos complexos é passível de uma divisão em duas modalidades de complexão, a saber, distante (distans) e indistante (indistans), ou seja, com e sem interposta conjunção42. Os termos sinónimos podem sê-lo de modo restrito e de modo lato, dividindo-se em sinónimos apenas na significação essencial (essentiali significatione tantum) e sinónimos em ambas as significações, essencial e acidental (essentiali et accidentali)43. Os termos pertinentes, por seu turno, dividem-se em díspares (disparati) e ilativos (illatui), e estes, em convertíveis (conuertibiles) e não convertíveis (non conuertibiles)44. Os termos relativos dividem-se em relativos de substância (substantiae) e relativos de acidente (accidentis); ambas estas classes subdividem-se em relativos de identidade (identitatis) e de diversidade (diuersitatis); a subclasse dos relativos de substância e identidade subdivide-se ainda em recíprocos (reciproca) e não recíprocos (non reciproca)45. A divisão basilar na tradição da logica vetus, entendida como uma divisão de termos, em equívocos e unívocos, vem associada, na exposição de Margalho, à ordem seguinte de subdivisões: os termos equívocos dividem-se em equívocos por acaso (a casu) e equívocos por intenção (a consilio); os termos unívocos dividem-se em denominativos (denominatiui) e não denominativos (non denominatiui); os denominativos deixam-se sobredeterminar secundum vocem, secundum rem e segundo ambos os critérios, e deixam-se ainda dividir em concretos (concreti) e abstractos (abstracti), pelo menos, no parecer dos lógicos realistas46. Por fim, a classe dos termos opostos divide-se em quatro subclasses: a dos contrários (contrarii), a dos contraditórios (contradictorii), a dos privativamente opostos (priuatiue oppositi) e a dos relativamente opostos (relatiue oppositi)47. É também possível agrupar, entre as divisões iniciais, aquelas que classificam, não termos individualmente tomados, mas relações de termos. Pertencem indubitavelmente a este grupo, as seguintes divisões de termos: em sinónimos e não sinónimos; em pertinentes e não pertinentes; em opostos e não opostos. Qualquer destas determinações classifica uma relação de pelo menos dois termos. Mais significativo acerca da marca pessoal que Pedro Margalho imprime na sua exposição de lógica terminista, é, porventura, o grupo das divisões que são sujeitas a revisão crítica na segunda parte dos Escólios. Pertencem a este grupo, as seguintes divisões de termos: em significativo naturalmente e significativo convencionalmente; em mental, vocal e escrito; em categoremático e sincategoremático; em complexo e incomplexo; por fim, em termo de primeira intenção e termo de segunda intenção. A primeira destas divisões é uma subdivisão dos termos significativos e é sujeita a uma revisão crítica das definições previamente dadas de significar naturalmente e de significar convencionalmente48. Na revisão 40

«Comum é a dicção de qualidade apelativa.» Escólios, p.95 (94). Cf. Escólios, p.97 (96). 42 Cf. Escólios, pp.97-99 (96-98). 43 Cf. Escólios, pp.99-101 (98-100). 44 Cf. Escólios, pp.101-103 (100-102). 45 Cf. Escólios, p.105 (104). 46 Cf. Escólios, pp.105-109 (104-108). 47 Cf. Escólios, pp.111-113 (110-112). 48 Cf. Escólios, pp.153-159 (152-158). 41

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Pedro CALAFATE (Dir.), História do Pensamento Filosófico Português, Vol.II: Renascimento e Contra-Reforma, Lisboa, Editorial Caminho, 2001, pp.399-428. crítica da tripla divisão dos termos em mental, vocal e escrito, está sobretudo em questão a imprecisão da definição de termo escrito e a distinção entre termo vocal e termo escrito49. A crítica da divisão nuclear dos termos em categoremáticos e sincategoremáticos perfaz uma secção autónoma do texto dos Escólios. Através de um denso processo de argumentação técnica e exemplificada, Margalho denuncia insuficiências nessa divisão e inconveniências na sua aplicação50. Igualmente sujeitas a uma cerrada contra-argumentação, são as divisões dos termos, em complexo e incomplexo51, e em termo de primeira intenção e termo de segunda intenção52. Todavia, aquilo que Margalho não faz nos seus Escólios, é tornar explícitas as conquências da sua argumentação crítica. Na verdade, o texto não dá resposta à pergunta: qual o objectivo da argumentação margaliana contra as referidas divisões? Não se percebe se é apenas corrigi-las e redefini-las, ou substituí-las, ou se é eliminá-las pura e simplesmente. Nenhuma alternativa é dada à eliminação pura e simples. No entanto, mesmo depois da crítica, tais divisões não deixam de ser instrumentalmente usadas. A reformulação da lógica terminista, tal como os comentários de Pedro Margalho parecem exigir, não vem expressa nos Escólios. Outra obra seria necessária para o efeito. Antes, porém, de passar à segunda parte dos Escólios, que inclui os comentários críticos às definições e divisões da primeira parte, Pedro Margalho conclui esta com uma exposição sobre as propriedades dos termos, a parte nuclear da lógica terminista. Margalho faz uma breve análise das quatro seguintes propriedades: a suposição (suppositio); a ampliação (ampliatio); a restrição (restrictio); e a apelação (appellatio). Essa análise consta da definição da propriedade, da divisão desta em espécies e da enunciação de regras respectivas53. As três primeiras propriedades agrupam-se em torno do significado material, ou, por outras palavras, da denotação, referência e extensão, enquanto a apelação concerne ao significado formal, isto é, à conotação, ou à compreensão do termo comum54. A ampliação55 e a restrição56 são propriedades relativas à própria suposição dos termos. A ampliação faz-se através dos verbos e advérbios, termos ampliativos, que alargam a suposição dos termos precedentes para tempos diferentes57. A restrição, por seu turno, realiza-se através dos casos oblíquos, dos adjectivos e dos advérbios, que recebem o nome de «determinação» (determinatio), pela função restritiva que exercem sobre a suposição dos termos determináveis58. A suposição é, portanto, uma propriedade central ou principal, sem a qual não há ampliação nem restrição, e é também aquela à qual Pedro Margalho dá mais atenção.

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Cf. Escólios, pp.159-169 (158-168). Cf. Escólios, pp.169-197 (168-196). 51 Cf. Escólios, pp.197-209 (196-208). 52 Cf. Escólios, pp.209-219 (208-218). 53 Cf. Escólios, pp.117-127 (116-126). 54 «Apelação é o termo conotativo que denota que o seu significado formal convém ou não convém a uma coisa segundo a exigência da cópula. Por isso, a apelação convém ao termo em razão do significado formal, assim como a suposição, a ampliação, e a restrição convêm ao termo em razão do significado material.» Escólios, pp.123-125 (122-124). 55 «Ampliação é o termo que supõe em ordem a vários verbos, isto é, a ampliação é o termo que se verifica segundo o termo ampliativo.» Escólios, p. 121 (120). 56 «Restrição é o termo que é coarctado por outro quanto à suposição ou acepção» Escólios, p.123 (122). 57 Cf. Escólios, pp.121-123 (120-122). 58 Cf. Escólios, p.123 (122). 50

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Pedro CALAFATE (Dir.), História do Pensamento Filosófico Português, Vol.II: Renascimento e Contra-Reforma, Lisboa, Editorial Caminho, 2001, pp.399-428. A suposição é a primeira propriedade a ser introduzida, através de uma definição59 e de uma divisão em cinco géneros, a saber: singular (singularis) e comum (communis); material (materialis) e pessoal (personalis); e, ainda, simples (simplex)60. Margalho não se detém na análise de todos estes géneros. Se o texto permite distinguir com clareza entre as suposições singular e comum, bem como entre estas e a suposição simples, o mesmo já não acontece para a distinção entre as suposições material e pessoal. Enquanto a suposição singular se distingue da comum, como a referência singular de um nome próprio, ou expressão equivalente, se distingue da extensão de um nome comum61, a suposição comum distingue-se da simples, como a extensão, da compreensão abstracta de um termo comum62. Em contrapartida, a suposição material parece referir-se à natureza do próprio termo que supõe, e, da suposição pessoal, nenhum esclarecimento especial é dado63. Margalho preocupa-se mais com outra divisão da suposição, em confusa (confusa), distributiva (distributiua), determinada (determinata) e discreta (discreta). Estas são as espécies de suposição, que se aplicam, sob várias combinações, à subdivisão das suposições em comum, material e pessoal, e que se especificam através da enunciação de regras64. Para além destas, cabem ainda no âmbito da exposição elementar sobre a suposição, dois conceitos funcionais da maior importância para o desenvolvimento margaliano do tema da suposição: as noções de descida e de subida, pelas quais se transita, respectivamente, do plural para o singular e do singular para o plural, em conformidade com a suposição do termo em causa65. Com efeito, os processos de subida e de descida são postos ao serviço de um dos dois principais propósitos do segundo e último desenvolvimento sobre a suposição nos Escólios. Trata-se de um desenvolvimento muito mais extenso do que o primeiro, e não meramente introdutório e expositivo, como este, mas problematizador, exemplificativo e argumentativo, no mesmo estilo da crítica às definições e divisões iniciais. Esta crítica e a segunda exposição sobre a suposição constituem, aliás, aquilo que acima este estudo propôs considerar como a segunda parte, e a mais singularmente margaliana, dos Escólios. As últimas análises sobre a suposição, nesta obra, obedecem de facto a dois propósitos fundamentais: o primeiro é o conhecimento da suposição de um termo, através da sua verificação66; o segundo é o conhecimento 59

«Suposição é o termo verificável tomado em vez do seu significado.» Escólios, p.117 (116). Amândio A. Coxito salienta o carácter estritamente semântico desta definição, como uma singularidade de Margalho na tradição dos lógicos terministas: cf. Lógica, Semântica e Conhecimento, p.234. 60 Cf. Escólios, p.117 (116). 61 «A suposição divide-se em comum e singular. Suposição singular é o termo tomado singularmente. Por isso, todo o nome próprio ou comum com um pronome demonstrativo ou adicionado de um nome próprio supondo no caso recto, supõe singularmente. Suposição comum é o nome apelativo que supõe comummente.» Escólios, pp.117 (116). 62 «Um termo supõe simplesmente, quando supõe pelo seu significado adequado, […]. Chamo significado adequado do termo àquilo que é significado em abstracto pelo termo concreto, como, ao dizer “o homem é uma espécie”, o termo “homem” supõe simplesmente, e o termo espécie metafisicamente, porque, logicamente falando, talvez supusesse materialmente.» Escólios, p.117 (116). 63 Cf. Escólios, p.117 (116). 64 Cf. Escólios, pp.117-121 (116-120). 65 «Efectivamente, descida é a consequência que se forma dum termo comum para o mesmo, tomado com um pronome demonstrativo. A subida faz-se pelo modo contrário. Na subida e na descida põe-se sempre a chamada constância com a partícula “e assim sucessivamente” no antecedente.» Escólios, p.121 (120). Segundo Amândio A. Coxito, a preocupação com a definição de subida e descida é uma característica dos escolásticos peninsulares, sendo a definição dada por Margalho uma das mais simples: cf. Lógica, Semântica e Conhecimento, p.223 (n.75). 66 Propósito perseguido ao longo de Escólios, pp.219-233 (218-232). 12

Pedro CALAFATE (Dir.), História do Pensamento Filosófico Português, Vol.II: Renascimento e Contra-Reforma, Lisboa, Editorial Caminho, 2001, pp.399-428. da verdade ou da falsidade das proposições, através da suposição dos seus termos67. Se a verificação (verificatio) é a noção funcionalmente necessária à realização do primeiro propósito68, a concretização do segundo obriga a retomar as funções da descida e da subida, com o conceito inerente de constância69. Os propósitos enunciados evidenciam a razão pela qual Pedro Margalho apostou na lógica terminista: esta configura-se como introdução adequada à lógica proposicional e, em geral, à lógica do raciocínio. A lógica terminista afirma-se, assim, segundo Margalho, como parte fundante da lógica. Recorde-se, entretanto, que o título da obra lógica de Pedro Margalho anunciava o comentário às posições de São Tomás, de Duns Escoto e dos nominalistas. Se tais posições não são propriamente comentadas, elas também não são ignoradas. De facto, os realistas, S. Tomás e os nominalistas são citados em diversos passos da obra de Margalho, a respeito de vários temas técnicos em discussão. A contenda entre realistas e nominalistas ressalta em, pelo menos, três momentos: acerca dos denominativos, a distinção entre concreto e abstracto é reconhecida pelos realistas, mas não pelos nominalistas70; acerca do que pode ser objecto de negação nos termos privativos, a distinção entre potência e aptidão é reconhecida pelos realistas, mas não pelos nominalistas71; acerca do definido, a distinção do definido em próximo e remoto é também reconhecida pelos realistas, mas não pelos nominalistas72. De acordo com estes destaques, os realistas preconizam mais distinções do que os nominalistas. Uma só vez, porém, Margalho põe de acordo entre si os realistas, S. Tomás e alguns nominalistas, acerca da atribuição de uma espécie de apelação, a apelação de razão, aos termos absolutos73. Relativamente a realistas e a nominalistas, Pedro Margalho procura manter uma posição equidistante. Se o lógico português parece conceder alguma prioridade aos realistas relativamente aos nominalistas, consultando aqueles antes destes74, a verdade é que, na exposição de um tema determinado, que requeira a consideração dos dois pontos de vista, ora são os realistas ora são os nominalistas que têm prioridade75. O autor dos Escólios evita tomar partido 67

Propósito perseguido ao longo de Escólios, pp.233-271 (232-270). «Verificação é o termo que se predica verdadeira e afirmativamente de alguma coisa. É boa, por isso, esta consequência: um termo verifica-se do pronome que demonstra uma coisa; logo, supõe por essa coisa.» Escólios, p.219 (218); «Se perguntares se todo o termo que se verifica do pronome demonstrativo supõe alguma coisa, responde-se: fora das proposições reflexivas costuma-se geralmente conceder que o verificável e a suposição são termos convertíveis» Escólios, p.223 (222). 69 Rever nota 65; «Porém, achados os extremos pela suposição deles, nas proposições categóricas ver-se-á a verdade ou falsidade da proposição subindo ou descendo. Com efeito, pela subida alcança-se a verdade da proposição, e pela descida a falsidade.» Escólios, p.235 (234). 70 Cf. Escólios, pp.107-109 (106-108). 71 Cf. Escólios, p.113 (112). 72 Cf. Escólios, p.135 (134). 73 «Todavia, segundo a opinião dos realistas, de S. Tomás, e dalguns nominalistas, os termos absolutos também apelam sobretudo com a apelação de razão. Por isso, sempre que aquele que responde acrescenta a um termo in quantum (enquanto), ea ratione (por esta razão), ou secundum quod (no sentido de que) tomando-o especificamente, pretende explicar a apelação de razão.» Escólios, p.125 (124). 74 «[…] embora nós tenhamos colhido os termos, primeiro, dos autores realistas, e, depois, dos autores nominalistas.» Escólios, p.109 (108). 75 Prioridade do ponto de vista realista, acerca da suposição simples: «Chamo significado adequado do termo àquele que é significado em abstracto pelo termo concreto, como, ao dizer “o homem é uma espécie”, o termo “homem” supõe simplesmente, e o termo “espécie” metafisicamente, porque, logicamente falando, talvez supusesse materialmente.» Escólios, p.117 (116). Prioridade do ponto de vista nominalista, acerca do contido no definido: «Na verdade, por contido no definido não entendo outra coisa senão o seu significado ou significados; ou então, se o definido for um nome apelativo, o 68

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Pedro CALAFATE (Dir.), História do Pensamento Filosófico Português, Vol.II: Renascimento e Contra-Reforma, Lisboa, Editorial Caminho, 2001, pp.399-428. por uns ou por outros e não chega a discutir as questões de fundo, que dividem realistas e nominalistas, apenas observa divergências pontuais, segundo as oportunidades criadas pelos seus próprios motivos de exposição. Autoridade não menos incontestada e até, por vezes, expressamente seguida, é a de S. Tomás de Aquino. Realmente, Margalho evoca com alguma frequência, nos seus Escólios, o nome de S. Tomás: ora convocando o parecer tomista ao serviço da sua própria argumentação, como no âmbito da crítica à definição de imposição76; ora tomando o parecer tomista como uma opinião provável, sem a perfilhar obrigatoriamente, como seja a tese da negação de partes a um termo mental77; ora suscitando do parecer tomista a formulação de algum problema, como o problema de saber que cópula usar para verificar os termos de uma proposição necessária, partindo do parecer, comum a S. Tomás e a muitos nominalistas, de que o verbo, nesse género de proposições, está desligado do tempo78; ora preconizando mesmo sem reserva o parecer tomista, como aquele que estende a alguns sincategoremas, de valor universal, a capacidade de fazer com que a suposição do termo mediato seja comum e confusa apenas79. Todavia, S. Tomás de Aquino é uma referência influente, não apenas nem sobretudo na história da lógica, mas, principalmente, na história da filosofia e da teologia, e Pedro Margalho não o ignora como tal. Como teólogo, S. Tomás aparece, nos Escólios, autorizando como verdadeira uma proposição teológica, susceptível de servir de exemplo para a análise da descida dos termos nas proposições copuladas ou disjuntas80. Como filósofo, S. Tomás aparece, sobretudo, associado à teoria da dupla analogia do ente, que assegura a relação quer entre substância e acidente quer entre Criador e criatura. A filosofia tomista da analogia do ente intervém, a título ilustrativo, na argumentação dos Escólios em torno da acepção lógica de analogia81. Desse modo, porém, esta acepção deixa-se determinar mediatamente por aquela filosofia: a noção lógica dos termos análogos deve ser tal que não proíba, antes permita afirmações, como as teses fundamentais daquela teoria filosófica. Os lógicos que, segundo Pedro Margalho, melhor defendem uma acepção de analogia compatível com a analogia tomista do ente não são os realistas, pois Escoto é dado por vencido nesta contenda82; são, antes, dois nomes muito diferidos entre si no tempo, mas duas referências incontornáveis da história da lógica: Aristóteles e Pedro Hispano. É, reiteradamente, em concordância com ambos que Pedro Margalho se coloca na questão da analogia83. Para além desta questão, Pedro Hispano e Aristóteles são também pontualmente mencionados nos Escólios, a vários respeitos. Pedro Hispano faz autoridade em matéria de contrários84 e de suposição85. Contudo, há diferenças apreciáveis entre Pedro Hispano e Pedro Margalho, quanto à divisão e classificação da suposição. Ademais, Pedro Margalho ou não parece dar-se contido no definido são os nomes próprios contidos em tal apelativo; por exemplo, no definido desta definição “animal racional” estão contidos Pedro e Martinho; ou ainda segundo os Realistas, porque o definido é uma natureza específica, o contido no definido são as naturezas singulares.» Escólios, p.129 (128). 76 Cf. Escólios, p.155 (154). 77 Cf. Escólios, p.161 (160) 78 Cf. Escólios, p.223 (222). 79 Cf. Escólios, p.263 (262) 80 Cf. Escólios, p.261 (260). 81 Cf. Escólios, pp.227-233 (226-232). 82 Cf. Escólios, p.227 (226). 83 Cf. Escólios, pp.227-229 (226-228). 84 Cf. Escólios, p.111 (110). 85 Cf. Escólios, p.225 (224). 14

Pedro CALAFATE (Dir.), História do Pensamento Filosófico Português, Vol.II: Renascimento e Contra-Reforma, Lisboa, Editorial Caminho, 2001, pp.399-428. conta ou não quer dar conta de uma significativa divergência com Pedro Hispano, a respeito da apelação, que, segundo o mais célebre lógico português, é uma propriedade do termo que se aplica a algo realmente existente86; esta é uma cláusula obviamente não partilhada por uma noção de apelação, que apenas concerne ao significado formal do termo, como é o caso da noção margaliana87. Há, pois, uma distância entre os dois cultores portugueses da lógica terminista, que não pretende ser ostensiva, mas que merece ser advertida e ponderada. Aristóteles, por seu turno, é quase sempre referido, nos Escólios, em articulação expressa com títulos relativos a partes da sua obra lógica, o Organon. Nas partes inicial e final do livro das Categorias, encontra, Margalho, a fonte primitiva das últimas divisões de termos, apresentadas segundo a ordem da exposição escolar habitual: a divisão dos termos em equívocos e unívocos («Antepredicamentos») e a divisão dos termos em opostos e não opostos («Postpredicamentos»)88. O mesmo é reconhecer na logica vetus, uma das fontes da lógica dos termos. No primeiro livro de Segundos Analíticos, também reconhece, Margalho, a fonte de algumas matérias convocadas no foro da crítica da divisão dos termos em complexos e incomplexos89. Deste modo, a lógica margaliana não se alheia totalmente da lógica aristotélica. Há até um ponto em que Pedro Margalho parece querer permanecer fiel a Aristóteles, a saber, na interpretação da cópula «é» (est) em função, estritamente, da união dos extremos. Margalho vincula-se reiteradamente a esta interpretação, no âmbito da argumentação contra o estatuto categoremático, quanto à significação, da cópula «é»90. De acordo com essa posição lógica, não se adivinha algum desenvolvimento filosófico relevante em torno do verbo «ser», por parte de Pedro Margalho. Resta considerar um curto segmento de texto dos Escólios, dedicado à praxe do respondente e do oponente, que se insere no início da segunda parte da obra, ou seja, mediando entre a primeira parte, essencialmente expositiva, e a segunda parte, de intenção crítica91. Trata-se de um brevíssimo guia prático da disputa, ensinando ao aprendiz desta arte pequenos expedientes ou truques para conseguir a vitória. Este breve guia enquadra-se mal, porém, no todo da obra. Como compreender esse enxerto de lógica da disputa no interior de uma obra sobre a lógica dos termos? Na realidade, o conteúdo dos Escólios torna por demais evidente que os interesses de Pedro Margalho em lógica não se centravam nas técnicas da disputa. Ao centrar-se na lógica dos termos, Margalho ocupa-se da parte da lógica que julga ser a mais fundamental. Será aquela solitária página sobre a disputa, uma concessão de Margalho a uma parte da lógica, que ele considera secundária, senão mesmo redundante? Pouco mais se poderá adiantar sobre o facto, atendendo mesmo ao testemunho da carta a Teodósio, o moço, que precede o texto dos Escólios: nela, Margalho exorta Teodósio a estudar lógica, para refutar os lógicos, a que ele chama «dialécticos», da escola de Paris92. Margalho manifesta-se assim, desde logo, um inimigo da lógica da disputa, à qual não deixa, todavia, de conceder apreciável valor pedagógico, na medida em que exercita 86

«A apelação é a acepção do termo comum por uma coisa existente.» (Appellatio est acceptio termini communis pro re existente.), Pedro Hispano, Tractatus, X, 1, ed. crít. de L.M. de Rijk, p.197. 87 Rever nota 54. A diferença entre Pedro Hispano e Pedro Margalho, quanto à noção de apelação, é sublinhada por W. Risse, «Introdução», in Escólios, p.XXXV. 88 Cf. Escólios, pp.105-115 (104-114). 89 Cf. Escólios, p.209 (208). 90 Cf. Escólios, pp.171-175 (170-174). 91 Cf. Escólios, pp.137-139 (136-138). 92 «Entretanto apraza-te exercitar as subtilezas e cavilações da lógica, que chamam sofismas, para que possas refutar e frustrar com brilho os pertinazes dialécticos da escola parisiense.» Ao Mui Ilustre Teodósio…, in Escólios, p.81 (80). 15

Pedro CALAFATE (Dir.), História do Pensamento Filosófico Português, Vol.II: Renascimento e Contra-Reforma, Lisboa, Editorial Caminho, 2001, pp.399-428. as faculdades mentais93. O espaço exíguo que Margalho reserva à lógica da disputa, no texto dos Escólios, pode exprimir esta concessão pedagógica. Porventura, há até mais do que uma concessão pedagógica à lógica da disputa na obra de Margalho, dado o estilo das análises críticas, na segunda parte dos Escólios, que parece traduzir por escrito o próprio exercício das técnicas da disputa, previamente invectivadas. 4. António de Gouveia e a lógica aristotélica A lógica da disputa é, entretanto, aquela que mais importa ao humanista português, António de Gouveia, e a Universidade de Paris, a escola que sanciona os seus escritos de lógica. Seria, pois, difícil encontrar um lógico português que melhor servisse de contraponto a Pedro Margalho do que António de Gouveia. Mas, por pertinente que seja, é facultativa a associação por contraste entre estes dois lógicos portugueses. Obrigatório é, em contrapartida, referir a oposição histórica do português António de Gouveia ao francês Pedro Ramo (Pierre de la Ramée). Dado o enorme prestígio que Aristóteles havia acumulado ao longo da tradição escolástica, a posição que Pedro Ramo se propôs defender, em radical desfavor do Estagirita, não podia deixar de soar a petulância e de provocar controvérsia. Num só ano, 1543, foram publicadas em Paris as quatro obras que documentam essa controvérsia: a primeira a ser publicada foi, de António de Gouveia, De conclusionibus commentarius, um opúsculo didáctico, sem intenção polemizadora, embora viesse a ser visado por Pedro Ramo; seguiram-se as duas obras deste autor em defesa da sua posição anti-aristotélica, Dialecticae institutiones e Aristotelicae animadversiones; por fim, surgiu a réplica de António de Gouveia, Pro Aristotele responsio adversus Petri Rami calumnias. O vencedor imediato desta contenda foi António de Gouveia, mas depressa caiu no esquecimento. Pelo contrário, Pedro Ramo foi granjeando adeptos e renome pela audácia da sua posição. Apesar desta adesão, compreensível como reacção à saturação escolástica da autoridade de Aristóteles, Pedro Ramo não conseguiu substituir o legado aristotélico por melhor oferta, nem, por conseguinte, contribuir de forma relevante para a história da lógica94. Todavia, talvez mais pelas atitudes e eventos que marcaram a sua vida do que pelo alcance das suas obras, Pedro Ramo mereceu um reconhecimento próximo e um registo histórico incomparáveis com o desinteresse a que foi votado António de Gouveia. Não será, porventura, justa tal desproporção. Por uma questão de justiça, importa, pois, revisitar as obras lógicas do interlocutor da disputa com Pedro Ramo, e, a partir delas, reapreciar o mérito do seu autor. Considere-se, antes de mais, o Comentário sobre as Conclusões (De conclusionibus commentarius)95. Trata-se de uma breve exposição didáctica de teoria do raciocínio, destinada ao uso de estudantes de jurisprudência, como o Pedro Luís Roberto, a quem é dedicado o opúsculo. A exposição divide-se em duas partes principais: a primeira versa sobre os raciocínios de conclusão necessária; a segunda 93

«Na realidade, a disputa aguça o engenho, aperfeiçoa a língua, revigora a voz e faz a memória indelével. E, disputando muito, não só aprendemos, mas também mais aptamente expomos e mais firmemente recordamos o que aprendemos.» Ao Mui Ilustre Teodósio…, in Escólios, p.83 (82). 94 Segundo o parecer de W. e M. Kneale, O Desenvolvimento da Lógica, 2 ª ed., trad. de M.S. Lourenço, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1980, pp.306-311. 95 Doravante, o título desta obra de António de Gouveia será citado em português, sob a forma abreviada de Conclusões, a palavra terminal do título da tradução portuguesa de M. Pinto de Meneses. Esta tradução será também utilizada para citar o texto em português (pp. ímpares; texto em latim, pp. pares). 16

Pedro CALAFATE (Dir.), História do Pensamento Filosófico Português, Vol.II: Renascimento e Contra-Reforma, Lisboa, Editorial Caminho, 2001, pp.399-428. ocupa-se dos raciocínios de conclusão não necessária. A exposição sobre os raciocínios de conclusão necessária divide-se, por sua vez, em três secções: a primeira, sobre o silogismo; a segunda, sobre o raciocínio que infere ou de uma condição ou de uma disjunção ou de uma conjunção; a terceira, sobre a indução. No que concerne ao silogismo, o raciocínio puro e simples, António de Gouveia procede primeiro a uma análise das partes que o compõem, para depois oferecer uma apresentação exemplificativa das figuras que o diversificam e de todos os modos respectivos, propondo sempre exemplos jurídicos96. Esta é uma secção assumidamente pró-aristotélica e é a mais desenvolvida das três discriminadas. Da secção seguinte, que introduz alguns elementos de lógica proposicional, António de Gouveia reconhece não ser devida a Aristóteles, mas aos estóicos, como fonte remota, embora recorra a uma obra de Cícero, Tópicos, como fonte directa. Aí o autor português reproduz o texto de Cícero quanto à análise dos modos de raciocínio de premissa quer condicional quer disjuntiva quer conjuntiva97. Quanto à breve consideração da indução, as fontes escolhidas são, de Quintiliano, De institutione oratoria, e, de novo, os Tópicos, de Cícero98. A exposição sobre os raciocínios de conclusão não necessária, por seu turno, trata especificamente do entimema e do exemplo, para o que são retomadas, como fontes privilegiadas, as obras referidas de Quintiliano e Cícero99. Dado o plano geral do opúsculo de António de Gouveia, pode sobrar alguma expectativa acerca do comentário do autor, que o próprio título anuncia. Sob este aspecto, o opúsculo é deveras pobre. António de Gouveia não comenta, apenas cita. Diversamente de Pedro Margalho, que comenta de forma crítica e argumentada a matéria escolar que expõe previamente nos Escólios, António de Gouveia faz-se substituir completamente pelas autoridades citadas na exposição didáctica das Conclusões. É, contudo, possível assinalar, neste opúsculo didáctico, dois indícios da orientação que António de Gouveia assume em lógica. Por um lado, os autores mais recorrentemente citados, Cícero e Quintiliano, são referências magnas da retórica, o que acusa uma forte mistura entre lógica e retórica, senão mesmo uma apropriação da lógica pela retórica, na perspectiva de António de Gouveia100. Por outro lado, o papel propedêutico na formação jurídica, que é dado desempenhar ao livro sobre as Conclusões101, torna evidente que o interesse do seu autor pela lógica incide menos sobre a teoria do que sobre a aplicação. A António de Gouveia, jurista, a lógica interessa, sobretudo, como técnica de argumentação102. 96

Cf. Conclusões, pp.25-35 (24-34). Cf. Conclusões, pp.37-39 (36-38). 98 Cf. Conclusões, p.41 (40). 99 Cf. Conclusões, pp.43-45 (42-44). 100 É, segundo Cícero, que António de Gouveia reconhece que Aristóteles é o «príncipe» do método de discorrer: cf. Conclusões, p.23 (22). 101 Atenda-se ao destinatário, ao teor dos exemplos e às seguintes palavras finais do texto: «Eis aqui, Pedro Luís, todos os modos de quase todas as conclusões; eles formam a ciência com que se demonstra o verdadeiro e o falso. Poderás avaliar a sua extraordinária utilidade pelo facto de M. Túlio dizer no Brutus a respeito de Sérvio Sulpício que este fora o príncipe dos juricunsultos passados e presentes, por ter sido o único que aprendera bem esta arte.» Conclusões, p.47 (46). 102 Como denuncia a segunda razão da preferência de António de Gouveia pela primeira figura do silogismo: «Esta figura é, na verdade, a mais digna, quer devido à colocação do [termo] médio, a mais conveniente, como dizíamos, à sua natureza, quer porque não há género algum de questão que nela não se demonstre, pois na segunda não se conclui afirmativamente, e na terceira nada de universal se conclui.» Conclusões, p.29 (28). 97

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Pedro CALAFATE (Dir.), História do Pensamento Filosófico Português, Vol.II: Renascimento e Contra-Reforma, Lisboa, Editorial Caminho, 2001, pp.399-428. Diverso do propósito didáctico e da função propedêutica, foi, entretanto, o efeito historicamente assinalado do livro sobre as Conclusões, porquanto ele foi visado por Pedro Ramo no seu combate contra a autoridade de Aristóteles. Embora trate do silogismo e de outros temas da lógica aristotélica, o opúsculo sobre as Conclusões não versa exclusivamente sobre a lógica de Aristóteles e depende, sobretudo, de fontes da tradição retórica. Já em resposta às críticas ramistas, António de Gouveia produz um comentário do Organon, de Aristóteles. Ora, é mais nesta condição do que na contra-argumentação dirigida a Pedro Ramo que este estudo se propõe considerar agora essa resposta de António de Gouveia, Em defesa de Aristóteles, contra as calúnias de Pedro Ramo (Pro Aristotele responsio aduersus Petri Rami calumnias)103. Na verdade, respondendo a Pedro Ramo, António de Gouveia interpreta Aristóteles. Interpretando Aristóteles, António de Gouveia revela aspectos do seu pensamento pessoal, especialmente, no domínio da epistemologia. A fim de se apurar o alcance filosófico de Em defesa de Aristóteles, considere-se, antes de mais, o teor e a ordem de composição desta obra, que segue a ordem da argumentação anti-aristotélica de Pedro Ramo. Começando por defender Aristóteles da acusação de ter sido o corruptor da dialéctica, António de Gouveia disserta sobre a história e a essência da dialéctica104. No que concerne à história da dialéctica, o autor distingue claramente entre duas acepções de dialéctica, a de Platão e a de Aristóteles, conotando a dialéctica platónica com a sabedoria e a teologia105, e circunscrevendo a dialéctica aristotélica à arte de disputar com probabilidade106. Relativamente à essência da dialéctica, o autor critica o conceito de dialéctica natural em Ramo e sublinha o estatuto da dialéctica, como arte (técnica)107. Apesar desta réplica, que acentua a essência técnica da dialéctica, António de Gouveia vem posteriormente a conceder certa conformidade com a natureza na dialéctica, como ilustra o processo das conversões entre enunciações (proposições)108. À tematização da dialéctica, segue-se uma abordagem em dois tempos do Organon de Aristóteles. Num primeiro tempo, António de Gouveia oferece uma visão sinóptica dos livros do Organon, no que revela talento de síntese109. Num segundo tempo, o mesmo autor procede então a uma análise dos mesmos livros, mas segundo a ordem da crítica ramista110. Entre os dois tempos de abordagem do Organon, há um 103

Doravante, o título desta obra de António de Gouveia será citado em português, sob a forma abreviada de Em defesa de Aristóteles, que corresponde à primeira expressão do título da tradução portuguesa de M. Pinto de Meneses. Esta tradução será utilizada para citar o texto em português (pp. ímpares; texto em latim, pp. pares). 104 Cf. Em defesa de Aristóteles, pp.55-73 (54-72). 105 Cf. Em defesa de Aristóteles, p.59 (58). 106 «Para Aristóteles, dialéctica é aquela parte da arte de discorrer, que nos subministra os argumentos com que podemos disputar, com probabilidade, contra ou a favor, numa dada questão.» Em defesa de Aristóteles, p.65 (64). 107 «Em primeiro lugar, nego que haja alguma dialéctica que se diga natural, visto que a dialéctica é o método de discorrer com exactidão. Ora, ninguém, que apenas siga a natureza sem empregar a arte, pode discorrer com exactidão. Uma coisa é a arte, e outra a natureza, e esta aperfeiçoa-se com a arte. Dialéctica é o nome de uma arte, e não vejo como tal nome se possa aplicar à natureza.» Em defesa de Aristóteles, p.71 (70). 108 «Quem há tão obtuso e estúpido que, tendo admitido que “nenhum direito é injustiça”, não veja que também deve admitir que “nenhuma injustiça é direito”? Estas noções, Ramo, foram extraídas da linguagem usual e da inteligência comum dos homens, e, tendo esta por mãe a natureza, que razão há – pergunto – para negarmos que essas noções são decretos e preceitos da natureza?» Em defesa de Aristóteles, p.135 (134). 109 Cf. Em defesa de Aristóteles, pp.73-83 (72-82). 110 Cf. Em defesa de Aristóteles, pp.91-175 (90-174). 18

Pedro CALAFATE (Dir.), História do Pensamento Filosófico Português, Vol.II: Renascimento e Contra-Reforma, Lisboa, Editorial Caminho, 2001, pp.399-428. momento dedicado ao Isagoge, de Porfírio, o «porteiro de Aristóteles», também visado negativamente por Ramo111. Neste momento em defesa de Porfírio, cabe salientar um indício do pensamento epistemológico de António de Gouveia. Este empenha-se em recuperar as definições porfirianas dos predicáveis, que são objecto da crítica ramista. De acordo com esta crítica, a definição porfiriana de diferença específica convém com mais propriedade à forma da coisa e à causa pela qual esta é o que é. O comentador português, por sua vez, defende que a definição porfiriana de diferença é pertinente em lógica, enquanto que a definição ramista de forma e de causa da determinação do ser das coisas é pertinente em física112. Deste modo, António de Gouveia interpreta a alteração de terminologia, da lógica para a física, como uma diferença de abordagem, não de objecto. Esta aproximação entre a lógica e a física não pode deixar de pôr em questão a própria acepção da lógica, segundo o filósofo de Gouveia, acepção que se tornará explícita a partir de diversos outros pontos do comentário do Organon. Ao longo deste comentário em dois tempos, como foi dito, António de Gouveia adopta várias estratégias em defesa de Aristóteles: ora refuta a crítica ramista mediante uma contra-argumentação técnica, se a matéria em causa o exige; ora procede a uma reexposição das teorias aristotélicas, quando a depreciação ramista as substima; ora contrapõe a sua interpretação de Aristóteles ao ponto de vista interpretativo da crítica de Ramo. Na primeira destas três estratégias, inscreve-se a refutação da multiplicação das enunciações infinitas segundo Pedro Ramo, por ocasião do comentário analítico do livro Da Interpretação: aquela multiplicação visa mostrar o contra-senso da construção de enunciações infinitas por via da infinição dos seus termos; António de Gouveia contra-argumenta, denunciando erros e abusos em tal multiplicação, o que lhe permite reduzir de forma expressiva o número de enunciações legitimamente multiplicáveis pela via em causa113. Na segunda estratégia, insere-se, por sua vez, a reexposição da teoria aristotélica do silogismo, dos Primeiros Analíticos, acusada de redundância e repetição na substimação ramista114. À terceira estratégia, pertence, por exemplo, a interpretação do livro das Categorias segundo António de Gouveia em contraposição à leitura do mesmo livro, segundo Pedro Ramo: este toma as categorias por géneros das coisas, e, por isso, censura Aristóteles de incompletude, ou seja, de não ter dissertado com suficiente abundância acerca da diversidade das coisas que existem na natureza115; em contrapartida, António de Gouveia entende as categorias como géneros de palavras e, enquanto tais, elas constituem uma classificação completa e útil ao dialéctico116. 111

Cf. Em defesa de Aristóteles, pp.83-91 (82-90). «Porfírio definiu-a [a diferença] como a noção que se enuncia de várias coisas de espécie diferente, quando se pergunta quais são, e tu disseste que é a forma da coisa e a causa por que esta é o que é; ora, isto é verdade, mas a tua definição quadra melhor à física, e a de Porfírio à lógica, e não esqueçamos que era desta que ele no proémio disse que ia tratar.» Em defesa de Aristóteles, p.85 (84). 113 Cf. Em defesa de Aristóteles, pp.109-121 (108-120). 114 Cf. Em defesa de Aristóteles, pp.125-159 (124-158). 115 «Parece-te que Aristóteles não escreve com suficiente amplidão e abundância acerca das Categorias, visto que não incluiu neste livrinho todos os géneros, todas as espécies de todas as coisas, todas as diferenças, enfim toda a natureza, dado que o predicamento (para me servir da tua palavra) não é mais do que a ordem das coisas disposta por géneros, espécies e diferenças.» Em defesa de Aristóteles, p.95 (94). 116 «Nego, Ramo, que Aristóteles haja querido ensinar neste livro mais do que o valor e significado das palavras, as quais significam, todas, ou a essência ou a quantidade ou a qualidade ou a relação, como o dobro e o singelo, ou o lugar, [ou o tempo], ou o estado, ou a posse, ou a acção, ou a paixão. Ora, tendo Aristóteles ensinado de modo inteligível estas dez categorias (com efeito, é assim que se chamam, e não, como tu dizes, a ordem das coisas, porque são os dez géneros supremos fora dos quais nada se 112

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Pedro CALAFATE (Dir.), História do Pensamento Filosófico Português, Vol.II: Renascimento e Contra-Reforma, Lisboa, Editorial Caminho, 2001, pp.399-428. Esta interpretação das categorias aristotélicas, por discutível que seja, é significativa acerca da filosofia da lógica, que se configura no livro Em defesa de Aristóteles. São múltiplos, ainda que pontuais, ao longo deste livro, os elementos que permitem definir a concepção da lógica, segundo António de Gouveia. Antes mesmo de iniciar o comentário do livro das Categorias, o autor exclui do seu domínio de interesse, enquanto lógico, as teorias dos termos, ou seja, a lógica terminista que Pedro Margalho elegera como parte fundante da lógica. À atitude de rejeição pura e simples da lógica terminista por parte de Pedro Ramo, António de Gouveia contrapõe o seu desconhecimento e a sua indiferença117, resgatando, contudo, uma noção de termo para a lógica, a noção aristotélica de extremo da enunciação, necessária à teoria do raciocínio118. O papel que a lógica terminista desempenhava, através da divisão dos termos e suas propriedades em conformidade com as respectivas funções semânticas, é basilarmente aquele que o lógico de Gouveia atribui à divisão das categorias de Aristóteles, através das quais este «quis ensinar os géneros, significações e propriedades dos vocábulos simples, porque é inadmissível, especialmente num dialéctico, que se fale sem conhecer o valor das palavras»119. A preocupação com as palavras é, portanto, um zelo próprio do dialéctico, pelo que o livro das Categorias, de Aristóteles, cabe no âmbito da dialéctica, que é uma das duas partes principais da lógica. Esta é tomada, no seu todo, por uma espécie de arte do discurso120 e «uma espécie de criada e fâmula de todas as artes e ciências», portanto, uma arte instrumental do discurso ao serviço de todos os saberes, mesmo se entendida, por via de uma antiga divisão estóica da filosofia, como a terceira parte da filosofia121. No entanto, é dubitável que esta unidade disciplinar, assegurada pela aplicação genérica ao discurso e pela condição instrumental, convenha melhor à dialéctica do que à lógica no seu todo. Com efeito, esta é uma disciplina profundamente dividida, na medida em que se compõe de duas partes de natureza diferente: a demonstração (apodixe), ou o processo de prova evidente, que parte de premissas necessárias e que não é, por conseguinte, de natureza instrumental; e a dialéctica, ou o método de argumentar com probabilidade, que não tem por objecto algo de certo e que pode, por consequência, ser usada como instrumento122. Por um pode conceber), tendo – digo – ensinado assim estas categorias, estes supremos géneros de todas as palavras, cumpriu o seu propósito.» Em defesa de Aristóteles, p.95 (94). Esta mesma tese já antes havia sido defendida, por ocasião da primeira abordagem do livro das Categorias: «Isto visou, isto fez Aristóteles, por forma a apresentar-nos os géneros de todas as palavras como que constituindo capítulos a que se pudessem referir os seus significados e donde se pudesse extrair a matéria de todas as proposições. Com efeito, logo que eu entenda que “homem” significa “essência”, e “linha”, “quantidade”, e “cor”, “qualidade”, imediatamente componho e construo estas enunciações: “o homem é essência”, “a linha é quantidade”, “a cor é qualidade”.» Em defesa de Aristóteles, p.79 (78). 117 «As suposições e ampliações que condenas, não as defendo, porque eu mesmo nunca as aprendi. O curso dos meus estudos não decorreu nesses tempos engenhosos em que se ensinavam à juventude tais coisas.» Em defesa de Aristóteles, p.75 (74). 118 Cf. Em defesa de Aristóteles, pp.75-77 (74-76). 119 Em defesa de Aristóteles, p.79 (78). 120 «Com efeito, sendo a lógica uma espécie de arte do discurso, visa sempre, de modo especial, a razão por que uma coisa se diz de outra, e a este objectivo procura, acima de tudo, ajustar as suas definições.» Em defesa de Aristóteles, p.85 (84). 121 Cf. Em defesa de Aristóteles, p.71 (70) 122 «Efectivamente, ela [a apodixe] é a única prova que gera em nossos espíritos a verdadeira ciência das coisas. Portanto, o primeiro cuidado do lógico deve consistir em ensinar o processo desta prova evidente que disse. Mas, porque a opinião é já um degrau para a ciência, tal como uma probabilidade para a verdade, deve também o lógico explicar o método provável da argumentação que se ajusta aos sentimentos e opiniões dos homens. A esta parte da arte dá Aristóteles, como já dissemos, o nome 20

Pedro CALAFATE (Dir.), História do Pensamento Filosófico Português, Vol.II: Renascimento e Contra-Reforma, Lisboa, Editorial Caminho, 2001, pp.399-428. lado, a demonstração é a parte da lógica, que tem por base os Segundos Analíticos, de Aristóteles, e que confina com a física e a matemática, as ciências que têm por objecto as formas necessárias, que são matéria demonstrável. Devido a esta confinidade entre a demonstração e as ciências de formas necessárias, compreende-se agora melhor aquela aproximação, acima assinalada, entre lógica e física, de modo que, entre ambas, se fazia notar uma variação terminológica, que não exprimia uma diferença de fundo, como a de objecto. Por outro lado, a dialéctica é a parte da lógica, que tem por base os Primeiros Analíticos e os Tópicos, de Aristóteles, e que perfaz o Triuium, juntamente com a gramática e a retórica. Deste modo, a lógica não pertence totalmente ao Triuium, mas só a dialéctica, visto que a demonstração confina mais com as ciências do necessário do que com qualquer arte do discurso123. A dialéctica é, em contrapartida, a parte da lógica privilegiada pela tradição da retórica, e, com esta, pelo próprio autor de Em defesa de Aristóteles. Na verdade, se António de Gouveia merece ser reconhecido como lógico, é como dialéctico que ele cultiva a lógica. São aliás dois autores de referência da tradição da retórica, Cícero e Quintiliano, que António de Gouveia convoca em seu auxílio para a defesa de Aristóteles124. A par do estagirita e de Porfírio, Cícero chega também a ser defendido pelo dialéctico português. Após o comentário dos livros do Organon, o texto de Em defesa de Aristóteles prossegue em defesa de Cícero, como fonte transmissora da teoria estóica sobre os modos de conclusão, ou de raciocínio, que partem de premissas condicionais, disjuntas e conjuntas. Como dois desses modos de raciocínio haviam sido alvo particular da crítica de Ramo, António de Gouveia procede a uma reexposição explicativa dos mesmos, comentando desta vez, e não apenas citando os Tópicos, de Cícero125, como era o caso no livro sobre as Conclusões. Após a defesa de Cícero, António de Gouveia regressa a Aristóteles para o defender da omissão do método no Organon, segundo a acusação ramista. O método dizia respeito à didáctica do saber. Ora, como a dialéctica não se confunde com a didáctica, esta não pode ser apontada como uma falha dos livros fundadores da dialéctica, tal como a assume António de Gouveia. Este propõe-se, então, colmatar a legitimada lacuna de Aristóteles, com teoria da Ars parua, de Galeno126. Por fim, António de Gouveia conclui a sua defesa de Aristóteles, com uma abordagem dos livros da Metafísica, também eles visados na crítica de Pedro Ramo. Depois de citar a própria censura de Ramo, o autor de Em defesa de Aristóteles comenta abreviada mas desigualmente os livros da Metafísica: concedendo maior atenção aos quatro primeiros livros, António de Gouveia destaca os respectivos temas essenciais, justificando a sua pertinência e, com esta, o próprio tratamento aristotélico127; os restantes oito livros são aflorados num brevíssimo resumo final128. O livro nuclear, na interpretação do comentador português, é o quarto livro da Metafísica, no qual se destacam as noções de ente e de uno, como objecto da filosofia primeira: em resposta à crítica de Ramo à metafísica, como ciência do ente em geral, especial de dialéctica, como quem diz em latim disputatrix (disputadora)» Em defesa de Aristóteles, p.73 (72); vd. também pp. 81 (80), 161 (160). 123 «Portanto, a mãe e criadora da ciência será a demonstração, a qual conclui coisas verdadeiras de coisas verdadeiras, necessárias de necessárias, e eternas de eternas, como as não há na gramática, que apenas trata das normas da linguagem usual, nem na retórica, que versa as regras de estilo, nem na dialéctica, que não tem por objecto nenhuma coisa certa.» Em defesa de Aristóteles, p.161 (160). 124 Em especial, para os livros dos Tópicos: cf. Em defesa de Aristóteles, p.101 (100). 125 Cf. Em defesa de Aristóteles, pp.175-183 (174-182). 126 Cf. Em defesa de Aristóteles, pp.185-187 (184-186). 127 Cf. Em defesa de Aristóteles, pp.189-201 (188-200). 128 Cf. Em defesa de Aristóteles, pp.203-205 (202-204). 21

Pedro CALAFATE (Dir.), História do Pensamento Filosófico Português, Vol.II: Renascimento e Contra-Reforma, Lisboa, Editorial Caminho, 2001, pp.399-428. dissociada da diversidade do real129, António de Gouveia defende a proeminência da ciência do ente, à luz do princípio de superioridade das ciências dos géneros relativamente às ciências das espécies130, e acaba por aproximar Aristóteles de Platão, fazendo corresponder a metafísica do primeiro à dialéctica do segundo131. António de Gouveia é assim um defensor da metafísica de Aristóteles, como ciência do ente em geral. Só que a afirmação desta ciência não é tanto uma tese quanto um problema para Aristóteles, dado que o ente não é um género supremo. Ora, o defensor português de Aristóteles não parece ter-se envolvido nas próprias dificuldades aristotélicas da constituição da ciência do ente enquanto tal. Já com respeito às categorias, sobressaía a relatividade do ponto de vista interpretativo de António de Gouveia em confronto com o de Pedro Ramo; agora, a propósito da metafísica, a interpretação do português denuncia os seus próprios limites na apreensão do carácter problemático da generalidade do ente, em Aristóteles. A defesa expedita da ciência do ente, no contexto da escolástica do séc. XVI, supõe a mediação da filosofia medieval dos transcendentais na relação de interpretação com a metafísica de Aristóteles. Na sua obra Em defesa de Aristóteles, António de Gouveia ilustra algo de recorrente nas relações que se tecem na história do pensamento, a saber, que o defensor mais incondicional de um grande pensador não é forçosamente o seu mais fidedigno relator.

Bibliografia 1- Textos dos Autores PEDRO MARGALHO, Escólios em ambas as lógicas à doutrina de S. Tomás, do subtil Duns Escoto e dos nominalistas (Logices utriusque scholia in diui Thomae subtilisque Duns doctrina ac nominalium), reprod. facs. da ed. de Salamanca, 1520, trad. de Miguel Pinto de Meneses, introd. de Wilhem Risse, Lisboa, Instituto de Alta Cultura e Centro de Estudos de Psicologia e de História da Filosofia anexo à FLUL, 1965. ANTÓNIO DE GOUVEIA, Comentário sobre as Conclusões e Em defesa de Aristóteles contra as calúnias de Pedro Ramo (De conclusionibus commentarius; Pro Aristotele responsio aduersus Petri Rami calumnias ad Iacobum Spifamium 129

«Dir-me-ás que o ponto não está em empregares estas ou aquelas palavras, mas sim em olhar à realidade; que com aquela expressão [“fantásticas distorções do delírio metafísico”] apenas queres significar que não pode haver ciência nenhuma dum género em que não se considerem as espécies e se não analisem as partes; e que, por isso, não te parece ciência a metafísica que contempla o ente em geral sem descer às partes.» Em defesa de Aristóteles, p.199 (198). 130 «Mas eu, Ramo, estou tão longe de julgar que não há ciência nenhuma do género, que até a creio a mais verdadeira das ciências. De facto, quanto mais universal é a natureza do género e, portanto, mais una que a das espécies, tanto mais verdadeira se deve julgar a ciência dos géneros que a das espécies. […]. Havendo, portanto, ciência do género, sendo ela até mais útil que a das partes, podendo aquela obter-se bem sem esta, e dependendo esta daquela, por que motivo não me será lícito tratar do género sem tratar das partes? Ou não poderá considerar-se uma coisa independentemente daquilo sem o qual ela pode existir? […]. Por que é que, podendo haver ciência da essência, do corpo, do vivente, do animal, e por fim do homem, não a pode haver igualmente do ente? Não há porventura certas causas primeiras, comuns a todas as coisas, que não se podem dizer próprias nem do filósofo natural nem do matemático, visto serem comuns a um e a outro?» Em defesa de Aristóteles, pp.199-201 (198-200). 131 Cf. Em defesa de Aristóteles, pp.201-203 (200-202). 22

Pedro CALAFATE (Dir.), História do Pensamento Filosófico Português, Vol.II: Renascimento e Contra-Reforma, Lisboa, Editorial Caminho, 2001, pp.399-428. Gymnasii Parisiensis Cancellarium), texto estab. e trad. por Miguel Pinto de Meneses, introd. de A. Moreira de Sá, Lisboa, Instituto de Alta Cultura e Centro de Estudos de Psicologia e de História da Filosofia anexo à FLUL, 1966. 2- Estudos BRUYÈRE, N., Méthode et Dialectique dans l’Oeuvre de La Ramée. Renaissance et Age Classique, Paris, Vrin, 1984 COXITO, A., Lógica, Semântica e Conhecimento, na Escolástica Peninsular Pré-renascentista. Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade, 1981. IDEM, «MARGALHO (Pedro)», in Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, Lisboa/ São Paulo, Verbo, 1991, vol.3, cols.641-643. IDEM, «GOUVEIA (António de)», in Logos. Enciclopécia Luso-Brasileira de Filosofia, Lisboa/ São Paulo, Verbo, 1990, vol.2, cols.904-908. DÍAZ Y DÍAZ (M.C.), AIRES A. NASCIMENTO, J.M. DÍAZ DE BUSTAMANTE, M.I. REBELO GONÇALVES, J.E. LÓPEZ PEREIRA, A. ESPÍRITO SANTO, HISLAMPA. Autores Latinos Peninsulares da Época dos Descobrimentos (1350-1560), Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1993. GEACH, P.TH., Reference and Generality. An Examination of Some Medieval and Modern Theories, 3ª ed., Ithaca/ London, Cornell University Press, 1962. KNEALE, W. e M., O Desenvolvimento da Lógica, 2 ª ed., trad. de M.S. Lourenço, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1980. ONG, W.J., Ramus. Method, and the Decay of Dialogue. From the Art of Discourse to the Art of Reason, Cambridge (Mas.)/ London, Harvard University Press, 1958. RIJK, L. M. de, Logica Modernorum. A Contribution to the History of Early Terminist Logic, Assen, Van Gorcum, vol.I – 1962, vol.II (Partes 1 e 2) – 1967.

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