Para além da luta de classes: notas sobre a circulação de ideias marxistas entre autores caribenhos do século XX

May 31, 2017 | Autor: V. Castillo de Ma... | Categoria: Social Theory, Caribbean Studies, Eric Williams
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Grupo de Trabalho: 8

Para além da luta de classes: notas sobre a circulação de ideias marxistas entre autores caribenhos do século XX

Victor Miguel Castillo de Macedo – UFRJ

Para além da luta de classes: notas sobre a circulação de ideias marxistas entre autores caribenhos do século XX Victor Miguel Castillo de Macedo1 O presente artigo propõe um breve exame das instrumentalidades analíticas decorrentes da obra de Karl Marx em Eric Williams, intelectual de Trinidad e Tobago. Não obstante as comparações desenvolvidas a respeito da contemporaneidade das ideias de Williams com as de intelectuais brasileiros do mesmo período, a preocupação do artigo é evidenciar a trajetória biográfica-intelectual do autor, com vista a lançar luz sobre seus questionamentos. O modo como o binômio opressor/oprimido é expandido para dar conta de outras questões como a identidade nacional e as relações raciais, opera em uma particular consonância com outros autores caribenhos que não serão abordados com maior rigidez. Esse, portanto, é o primeiro movimento no sentido de compreender não somente o marxismo no Caribe, mas a centralidade de questões que ainda são caras ao pensamento social da região. Palavras-Chave: Caribe, Teoria Social, Karl Marx.

“Se hacen eternas cuando las quieren Y siempre viven y nunca mueren Cuando se duermen son indefensas Y se despiertan cuando las piensas Y las atacan y las defienden Las más valiosas nunca se venden Alcanzan todo lo que desean Asi de grandes son las ideas...” Calle 13 – Asi de grandes son las ideas

Este artigo é um pequeno passo, diante de uma preocupação com enormes proporções – qual seja – entender a produção em pesquisa social caribenha, em meio aos seus meandros, divisões linguísticas, temáticas, nacionais e diferentes escalas. O passo a ser dado nesse texto é desenvolver uma breve análise da trajetória intelectual de Eric Williams, e compreender de                                                                                                                         1

Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – Museu Nacional/ UFRJ.

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De forma que a proposta inicial do texto, envolvia um exercício de comparação entre Eric Williams, Franz Fanon e Juan Bosch – o qual no momento de aquisição de materiais para o texto foi se mostrando mais e mais complexo, de forma a demandar (em nome do bom senso), uma pesquisa própria, anterior, para cada um desses autores. É sobretudo, a diversidade interna a produção de cada um desses autores – também atores políticos - que exigiria um cuidado maior com as trajetórias e as preocupações que marcam suas leituras. Autores igualmente complexos e de origem caribenha que poderiam compor essa reunião são Aimée Césaire e Stuart Hall. 3

 Samora Machel ficou muito conhecido como o responsável pela libertação de seu país, Moçambique. Ao longo

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que maneira elementos biográficos se traduzem em instrumentalidades analíticas, no que concerne, especificamente, em um possível diálogo com o marxismo (ou a produção marxiana). Enquanto um objeto de estudo da pesquisa social, a região que hoje conforma-se como Caribe, sempre se mostrou um desafio à parte. Isso ocorre porque a essa região se delegou uma sanha de não-lugar, nem primitivo o suficiente e nem tampouco civilizado. Não era comparável à Europa pela sua conformação social, nem nivelada à África, uma vez que o seu lugar na história da civilização ocidental (euro-americana, diga-se de passagem), no ‘comércio triangular’ sempre foi o de um patamar distinto. De fato, a colonização no Caribe foi distinta da forma como o mesmo processo ocorreu no continente africano, ou mesmo na América do Sul, e talvez, tenha sido até mais intensa em alguns aspectos. No Brasil, o imaginário popular de Caribe guarda os traços mais pejorativos e rasos da região (talvez da mesma forma como ocorre com África só que com sinais invertidos), limitando-a ao turismo e as praias. Em nosso pensamento social, autores caribenhos, como Eric Williams – objeto da presente reflexão – serviram de base para trabalhos importantes na sociologia, economia e história – como bem evidencia Marquese (2012, p.16). O que nos chama a atenção, porém, é a descontinuidade do movimento de diálogo com a produção social feita a partir do Caribe – ainda mais refratada que o diálogo com os vizinhos da América do Sul – no Brasil. É com essa preocupação maior, com produções ‘menores’ para o pensamento social brasileiro, que nos dispomos a desenvolver essa reflexão inicial. Não se trata de chamar a atenção para a comparabilidade da história de temas como escravidão e capitalismo, entre Brasil e os países do Caribe, e sim, procurar compreender os questionamentos e procedimentos epistemológicos próprios da diversa produção dos autores caribenhos por eles próprios2 . O leitor pode se perguntar ainda: porque fazer essa retomada a partir de uma perspectiva tão revolvida, vasculhada e criticada quanto a marxista? O ponto principal é que o marxismo, nas suas várias versões e recapitulações, se tornou uma linguagem comum aos                                                                                                                         2

De forma que a proposta inicial do texto, envolvia um exercício de comparação entre Eric Williams, Franz Fanon e Juan Bosch – o qual no momento de aquisição de materiais para o texto foi se mostrando mais e mais complexo, de forma a demandar (em nome do bom senso), uma pesquisa própria, anterior, para cada um desses autores. É sobretudo, a diversidade interna a produção de cada um desses autores – também atores políticos - que exigiria um cuidado maior com as trajetórias e as preocupações que marcam suas leituras. Autores igualmente complexos e de origem caribenha que poderiam compor essa reunião são Aimée Césaire e Stuart Hall.

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inconformados, fossem movimentos sociais, militarizados ou não, fossem intelectuais de excolônias caribenhas, que na segunda metade do século XX, ainda mantinham uma relação colonial com suas antigas metrópoles ou sofriam com as investidas imperialistas dos Estados Unidos. Assim o “marxismo aplicado” – muito mais que teórico – nas análises históricas de Eric Williams tem a ver com a sua formação intelectual, por um lado, e com as preocupações com seu país de origem, Trindad e Tobago, por outro. O movimento do autor era o de reformular o passado para pensar novos futuros (conforme David Scott comenta a respeito de C.L.R. James em Jacobinos Negros, inspirado é claro por Reinhardt Koselleck, SCOTT, 2004, p.18), ou no caso dele especificamente, praticar novos futuros para seu país enquanto primeiro-ministro trinidadiano - cargo assumido muitos anos após a publicação de sua obra mais conhecida: Capitalismo e Escravidão (de agora em diante: CE). Dos diversos comentaristas do trabalho de Williams, em especial, aqueles que se focam em CE, a grande maioria reconhece um uso de instrumentalidades próprias de análises marxianas e marxistas. É dessa obra que nós partiremos também, para evidenciar essas proximidades. Cyril Leonel Robert James, também conhecido como C.L.R James, é – conforme demonstrarei mais a frente – o elo de ligação entre o marxismo e as inquietações de Eric Williams. Este literato trinidadiano também pode ser considerado o responsável por Williams não se considerar um marxista. Mais uma vez, pode ser que o objetivo de nossa reflexão se confunda com um mero delírio: porque relacionar o marxismo a um autor que não pretendeu, ao longo de sua obra, fazê-lo? E ainda, de qual marxismo estamos falando? Alinhada a ideia de que o marxismo constitui uma espécie de idioma teórico-social da inconformidade, a razão pela qual parece interessante ressaltar os aspectos que aproximam Eric Williams desse modo de compreensão do mundo está na trajetória do trinidadiano. Ao

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que nos parece, ao escrever CE, Williams estava, como disse Samora Machel, (ex-presidente de Moçambique) a ler Marx pela segunda vez3. Com relação a qual marxismo nos estamos reportando, é necessário começar dizendo que não partiremos de uma reflexão própria sobre as extensas e diversas correntes dessa teoria social. É a partir de um projeto recente, ambicioso (e denso), de retomada do marxismo enquanto ciência social, dos cientistas políticos Adriano Codato e Renato Perissinotto (2011), que pretendemos delinear em quais aspectos a teoria e o autor se encontram. Além dos dados biográficos, as aproximações entre a abordagem marxista nos argumentos que Williams desenvolveu em CE, serão os materiais utilizados. Ditas essas considerações, passemos ao autor, objeto da reflexão. Um retorno biográfico às preocupações de Eric Williams – de Trinidad Tobago aos Estados Unidos da América Parte do material que utilizaremos nessa seção advém do relato autobiográfico de E. Williams (WILLIAMS, 1997) e do ensaio de Richard Sheridan, voltado para a biografia e a historiografia de Williams (SHERIDAN, 1987). Eric Eustace Williams nasceu em Porto de Espanha (capital de Trinidad e Tobago), no dia 25 de setembro de 1911, sendo o filho mais velho de doze irmãos. Seu pai Thomas Henry Williams era funcionário do posto de correios da capital, e a mãe Eliza Williams trabalhava como padeira. Desde cedo se mostrando um rapaz estudioso e aplicado, isso não o isolava de participar também da prática de esportes locais e de ajudar sua mãe no trabalho da padaria.

Ele foi educado na Tranquility

Intermediate School e na Queen’s Royal College (aonde teve uma bolsa do governo), graduado com honras ele ganhou a bolsa para estudos na Inglaterra oferecida pelo governo inglês. Um de seus tutores, C.L.R. James, já era um conhecido dramaturgo, também                                                                                                                         3

 Samora Machel ficou muito conhecido como o responsável pela libertação de seu país, Moçambique. Ao longo da luta de libertação o seu partido, a Frente de Libertação de Moçambique – Frelimo, aderiu oficialmente ao marxismo-leninismo. Objeto de muita polêmica, em uma entrevista para o sociólogo suíço Jean Zigler, Samora deu a seguinte resposta, quando perguntado sobre a primeira vez que leu Marx: “Durante a luta de libertação alguém me deu um livro de Marx. À medida que o lia, apercebi-me que estava ‘a ler’ Marx pela segunda vez (Macagno APUD, Cristie, 1993:187-188). É certo que aqui estamos relembrando essa passagem como uma forma metaforizada de dizer que a obra de Marx tem efeitos de espelhamento para aqueles que sofreram pelo colonialismo – nunca é a primeira vez que se entende a divisão entre opressores e oprimidos.

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trinidadiano – cuja trajetória pessoal foi muito parecida – apresenta-se como a primeira via de contato de Williams com as ideias marxistas. James, filiado a uma visão trotskista e anti-stalinista, em sua estada na Inglaterra participou das atividades políticas do Partido Trabalhista Independente (Independent Labour Party), e certamente foi o primeiro interlocutor intelectual de Williams. Posteriormente o então tutor se envolveria diretamente com os ideais e movimentos do Pan-africanismo (MILES, 1990), e a amizade dos dois sofreria um rompimento permanente. Em 1932 Williams, com a bolsa que ganhou do governo inglês, parte pare continuar seus estudos, agora em História Moderna, na Universidade de Oxford. Depois de graduado ele inicia a pós-graduação em estudos de filosofia, política e economia, mas após um ano ele troca pela pesquisa histórica, neste período foi orientado por Vincent Todd Harlow. Sua pesquisa documental, culminou na tese que serviria de base mais tarde para o que foi CE, intitulada “The Economic Aspects of the Abolition of the West Indian Slave Trade and Slavery” – em 1938, ele recebeu o seu PhD. Devido à falta de dinheiro e de oportunidades como professor na Inglaterra, Eric Williams se voltou para os Estados Unidos. Lá ele foi aceito para o cargo de Professor Assistente de Ciências Sociais e Políticas na Universidade de Howard em Washington D. C. – uma universidade voltada para estudantes negros, e da qual já alguns intelectuais negros importantes como W.E.B. DuBois. Além de dar aulas, Williams passou a fazer parte de um programa de pesquisa que incluía a história das Índias Ocidentais e de questões coloniais atinentes naquele período. Foi em Howard que Williams conheceu Lowell Joseph Ragatz e Frank Wesley Pitman – autoridades na história das Índias Ocidentais Britânicas. Em 1942, ele lança seu primeiro livro, “The Negro in the Caribbean” – que foi resultado de uma viagem financiada pela bolsa Julius Rosenwald (adquirida com a ajuda de Ragatz, a quem Williams depois dedicaria CE), que o permitiu fazer uma pesquisa de campo em Cuba, no Haiti e na República Dominicana. Esse livro, marca o preparação e a elaboração da reflexão que irá compor aquela que para Williams foi a sua maior obra, “Capitalismo e Escravidão”. Conforme evidencia Sheridan (1987, p.319), a primeira metade de CE é decorrente de uma pesquisa inteiramente nova, sobre um período anterior àquele abordado durante o tempo de pesquisas em Oxford. Publicada em 1944, a obra foi traduzida para diversas línguas, além de ter sido comentada e muitíssimos periódicos. Foi no The Times Literary Supplement que a 6    

obra de Williams foi vinculada a primeira vez a uma interpretação marxiana, na análise de D. W. Brogan.(1987, p.320). Richard Sheridan prefere, no entanto, explicitar como, em realidade a leitura de Williams esteve vinculada a dois fatores – uma combinação específica de diferentes correntes historiográficas em voga durante a sua estada na Inglaterra; e, o acúmulo de experiências pessoais durante essa mesma estada, que estariam relacionados a um sentimento de vingança, ou a produção de uma resposta à visão depreciativa que os ingleses, muitos deles seus colegas e professores, tinham das Índias Ocidentais. Enquanto estudante de Oxford, Williams se especializou não só na história da colonização britânica, mas também em autores do período, economistas como Edward Gibbon Wakefield e Herman Merivale – dos quais apreendeu as formas de funcionamento da economia colonial e sua base na escravidão e ainda a operação do sistema mercantil nas Índias Ocidentais Britânicas. Wakefield, no livro “A View of the Art of Colonization” (1849), desenvolveu um argumento segundo o qual havia sido a escravidão, a responsável pela combinação de trabalho, divisão de empregos, a produção de excedente e o aumento de capital. Essa é uma das inspirações que se pode tomar como das mais centrais contribuições para o argumento de Williams. Mas como se pode notar no título, o sentido das análises reproduz um olhar positivo sobre a sistemática colonial-escravista. O ponto de Williams era justamente outro. Conforme Sheridan (1987, p.325) relata, as motivações que serviram de base para o trabalho de Williams se encontram na infância em Trinidad. Ele queria confrontar as classes educadas da Grã-Bretanha, e buscar uma justiça social, política e racial. No seu relato autobiográfico – intitulado Inward Hunger – o autor trinidadiano apresenta as condições adversas que seu país enfrentava do ano de seu nascimento, 1911. Essas condições incluíam, a dependência no comércio externo, a promoção direta dos interesses britânicos, a falta de condições educacionais e de saúde, e a pobreza e indigência espalhados pelo país. Em sua família, o seu pai foi impedido de receber promoções pela cor de sua pele e por não ter renda – ou pela ausência de qualificações sociais. Ele próprio não conseguiu angariar fundos em Oxford para completar sua pesquisa – devido a barreiras raciais. O especialista em política internacional James Heartfield (2015), em vídeo a respeito da difícil aceitação das teses de Williams e C.L.R. James na academia britânica, relata que uma das mais impactantes situações no cotidiano da vida na metrópole era ter aulas em salas 7    

que tinham a foto de William Wilberforce (referência do movimento abolicionista britânico cercada de controvérsias). É possível dizer que C.L.R. James com Jacobinos Negros, e Eric Williams com CE, compuseram um projeto político-epistemológico comum que atacava dois dos pilares da supremacia branca britânica: a Williams atacava a complacência na compreensão britânica de seu próprio passado escravocrata; e James atentou para uma crítica pungente à passividade dos negros diante da condição de escravizados (leitura desenvolvida por Ivar Oxaal, 1968, também comentada por Marquese 2012, p.13). Apesar da proximidade, ambos possuíam no limite, projeções intelectuais distintas. Após o encontro que James teve com Trotsky no México, ao final da década de 1930, ele inicia um movimento independente das pautas trotskistas e socialistas, cujo foco principal era unir e organizar os Afro-americanos ou African Americans. Daí se inicia a sua virada pan-africanista. Williams, por sua vez, estava preocupado muito mais com questões que concerniam especificamente a situação de Trinidad e Tobago, o nacionalismo (e talvez regionalismo) que marca as obras posteriores à CE, demonstram bem a dissociação de interesses com James. Diante desses fatores é possível afirmar que a potência crítica da tese de Williams estava diretamente ligada a sua experiência enquanto filho de um burocrata de baixo escalão negro, na primeira metade do século XX em Trinidad e Tobago, e de sua breve ligação com autores mais atuantes e envolvidos na causa socialista durante este período, como James. Ao resenhar a coletânea aonde o texto de Sheridan foi publicado, Robert Miles questiona a sugestão de que Williams possa ser inscrito no rol de autores marxistas, ou marxianos . O ponto de Miles é que a extensão da influência de C.L.R. James na discussão desenvolvida por Williams é pouco clara, pouco explorada e pouco afirmada (apesar da notória ligação entre ambos). Miles chama a atenção, no entanto, para um fator que é no mínimo curioso. Apesar de Eric Williams não ter nem referenciado Marx em seu livro, nem se inserido num debate marxista, dois autores que servem como base de seus argumentos para a economia colonial – Merivale e Wakefield – também são utilizados por Karl Marx para a discussão sobre o colonialismo n’O Capital. Esse é um bom motivo para reexaminarmos quais elementos no desenvolvimento de CE contém instrumentalidades analíticas marxianas/marxistas. Feições marxianas/marxistas em ‘Capitalismo e Escravidão 8    

Especialistas nas tradições marxistas e nas análises marxianas, certamente apontariam que o objeto da discussão de Eric Williams, está inserido naquilo que o próprio Marx analisa no vigésimo quarto capítulo d’O Capital, traduzido em português como a Acumulação Primitiva de Capital. A verdade é que apesar de importante para o edifício teórico marxiano, a acumulação primitiva não é central para seus objetivos. Williams tampouco considera estar analisando uma etapa menor. A escravidão, conforme procura demonstrar, foi o processo básico e necessário para a acumulação de capital primeira que fomentou – via plantations (sobretudo, quando se trata da produção de cana-deaçúcar) - não só a expansão de mercados mas também a produção em larga escala. Sem necessariamente desvincular os fatos de uma carga moral, o autor logra explanar de que forma a escravidão se tornou uma opção prática para a administração colonial (como forma de substituição do trabalho engajado ou indentured). O modelo de exploração da mão de obra humana, aliado a uma forma específica de circulação de mercadorias e objetos (não só das commodities da época, mas também de maquinários e instrumentos de trabalho) evidenciados, produziu, conforme Williams habilmente expõe, aquilo que se convencionou como comércio triangular. Adriano Codato, no primeiro capítulo do livro “Marxismo como Ciência Social” (2011), intitulado “Lendo Marx à luz de Marx”, faz uma análise cuidadosa dos falsos descompassos entre dois textos escritos nos anos 50 o século XIX, quais sejam, O 18 brumário de Luís Bonaparte (1852), e o Prefácio da Crítica da Economia Política (1859). O jogo de contraste que o autor produz entre estes dois textos (lembrando que a proposta geral do livro é de ler o marxismo enquanto uma Ciência Social), serve como uma boa base de refinamento a respeito de tropos comuns no que se refere à leituras marxistas. Tomemos a sugestão de Codato quando procura responder à seguinte questão: “qual o peso da concepção materialista da História na análise histórica concreta no marxismo clássico?” (CODATO, 2011, p. 13, grifo do autor). A resposta é observar ou verificar duas proposições fundamentais, que seriam a ‘primazia do econômico’ e ‘a separação entre essência e aparência’. A despeito das diferenças de propósito e forma entre os dois textos analisados, e bem evidenciadas por Codato, observamos na explanação do autor um cuidado para o que se compreende por “primazia do econômico”, não seja uma vulgata para as atividades 9    

estritamente econômicas, e sim uma referência ao papel determinante das estruturas econômicas. É em função das “transformações nas relações de produção capitalistas” (CODATO, 2011, p.20, grifo do autor) que a configuração política analisada por Marx n’O 18 Brumário se constitui. Podemos dizer, que a natureza das relações analisadas através de documentos e registros, por Eric Williams não deixa de seguir a mesma lógica – uma vez que o autor olha para a ascensão e queda do sistema escravocrata nas Índias Ocidentais Britânicas. O mais interessante é que o elemento econômico tem sim uma primazia na análise do historiador trinidadiano, mas os domínios que ela percorre são muito mais extensos e complexos que uma restrita análise econômica. O elo entre a atividade política e os interesses econômicos da coroa britânica, com as mais variadas companhia de exportação e importação – que dependendo das situações faziam as vezes de Estado britânico nas Índias Ocidentais não era a mera ocorrência de afinidades eletivas, e sim uma articulação calculada entre parlamentares e os novos interesses comerciais da nação. É justamente esse ponto que nos leva a compreensão de que na obra de Eric Williams há uma intenção de se distinguir essência e aparência. A justificativa para a escravidão ou para o fim da escravidão, do modo como autor as constrói, residem em transformações das condições econômicas, ou das ‘relações de produção’- dizer isso, naquele período, era nada mais que desvelar a ineficácia política e a falsa consideração daqueles representantes da causa abolicionista. Além desse aspecto, está presente na leitura de Williams uma preocupação com a ideologia (aparência) que perdura, mesmo após a abolição da escravidão (que não abole as relações escravagistas). Examinemos, por exemplo, a última, das “ideias e princípios” que segundo o próprio autor, podem ser concluídas após a análise de CE: 5. As ideias construídas sobre esses interesses econômicos perduram por muito tempo após a destruição de tais interesses e continuam a causar seus velhos danos, que são ainda mais danosos porque os interesses a que respondiam não existem mais. (WILLIAMS, 2012, p.286)

É de forma muito séria que que os termos são selecionados por Williams. As “ideias” ou a ideologia racista, proveniente de interesses econômicos, é ainda mais danosa quando descolada de seus interesses originais. Como bem aponta Codato, o par “essência-aparência” não é uma antinomia, no sentido verdadeiro versus falso (CODATO, 2011, p.30), e sim que ambas instâncias constituem parte necessária para o funcionamento da lógica capitalista. 10    

Nessa questão encontramos também o que nos parece ser o limite da aproximação entre as análises marxianas/marxistas e o trabalho de Williams. Apesar da abordagem do autor ter evidentes traços materialistas, apesar de nela estar contida uma crítica a lógica capitalista de produção e apesar da escravidão aparecer nessa obra de forma quase que dialética (primeiro como farsa da solução, segundo enquanto tragédia humana e em terceiro, como ideologia racista, desprendida de relações materiais), o problema do lugar do homem negro dentro do capitalismo britânico não é um problema de interesse marxiano. Ademais, Williams está escancarando o desigual jogo de relações e trocas comerciais entre países europeus e suas ex-colônias. Não há motivos para designá-lo como marxista, ou mesmo marxiano, se ele próprio não o fez. Se ele, com sua leitura cuidadosa e precisa de eventos em tão largo período, deixou claro, que ao fim e ao cabo, suas preocupações provinham no limite da discriminação que ele sofreu, ou da necessidade tantas vezes repetidas em sua vida escolar de “Ser Inglês” (“Be English”, WILLIAMS, 1997). Considerações Finais? Pode parecer que nossa empreitada fracassou ao escolhermos justamente Eric Williams, talvez o menos marxista dos autores de nossa proposta inicial. Da maneira como vemos, é justamente o contrário. O arcabouço analítico fornecido por Williams evidentemente guarda algum diálogo com os mais diversos movimentos que decorreram da obra de Karl Marx. Mas, mais importante que esse entendimento, é o tipo de linguagem, os elementos necessários para a análise e o cuidado na abordagem histórica legados especialmente pela obra ‘Capitalismo e Escravidão’. Nela, observamos relações decorrentes de trocas comerciais intercontinentais, o advento do capitalismo (seu modus operandi tomando forma), e os modos como a exploração do trabalho humano pôde ocorrer anteriormente ao domínio do proletariado. São encontradas nessa obra portanto, as questões, os temas, que vão orientar uma série de trabalhos posteriores – principalmente aqueles voltados para a relação entre escravidão e Caribe, relações raciais, e aqueles preocupados com as desiguais condições da geopolítica econômica do Capitalismo. A proximidade com teses e desenvolvimentos da teoria marxista acabou não sendo um problema em si para Eric Williams, as apropriações da obra por outras correntes de pensamento (às vezes em diálogo com o marxismo), sempre reacendiam a chama das questões 11    

iniciais. A não adesão do autor aos primados marxistas, nos fala também sobre a importância da questão racial para o pensamento social produzido no Caribe – e como ela pode estar operando enquanto um limite epistemológico para a disseminação das ideias marxistas na região. Nos faz questionar também, sobre o que significaria um historiador negro, trinidadiano, assumir-se enquanto marxista nos anos 40 do século XX? Será que o peso era o mesmo para intelectuais brancos? Autores como Franz Fanon e Juan Bosch, reorganizam os mesmos problemas que encontramos em Eric Williams – a questão racial, o modo de análise histórica, as desigualdades econômicas entre metrópole e colônia em funcionamento, e as experiências pessoais que mobilizaram essas reflexões –, sob outros arranjos tão complexos quanto este. Por fim, nos resta reconhecer, que essa breve planada sobre a trajetória de Eric Williams e os rasgos da obra Capitalismo e Escravidão, que o aproximam do pensamento marxista/marxiano, é um passo pequeno em direção a uma compreensão mais aprofundada das dinâmicas e dos percursos que compuseram o pensamento social caribenho.

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REFERÊNCIAS CARRINGTON, Selwyn. Capitalism & Slavery and Caribbean Historiography: An Evaluation. In.: The Journal of African American History. Vol.88, No.3 (Summer) 2003, pp. 304-312. CODATO, Adriano & PERISSINOTTO, Renato. Marxismo como ciência social. Curitiba: Ed. UFPR, 2011. HEARTFIELD, James. The Slavery Debate: Why C.L.R. James and Eric Williams were right. 2015. Acesso em:  . MACAGNO, Lorenzo. Lendo Marx “pela segunda vez”: experiência colonial e a contrução da nação em Moçambique. IV Colóquio Marx e Engels. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas: Unicamp, 2005. MILES, Robert. Review - British Capitalism and Caribbean Slavery: The legacy of Eric Williams. In.: Social History.Vol 15, No. 2 (May) 1990, pp.253-256. SCOTT, David. Conscripts of Modernity. The Tragedy of Colonial Enlightment. Durham & London: Duke University Press, 2004. SOLOW, Barbara & ENGERMAN, Stanley. British Capitalism and Caribbean Slavery: The legacy of Eric Williams. Cambridge: Cambridge University Press, 1987. WILLIAMS, Eric. Capitalismo e Escravidão. Tradução Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. ______. Eric. From the Inward Hunger: The Education of a Prime Minister. In.: Callallo. Vol.20 No.4 Eric Williams and the Postcolonial Caribbean: A Special Issue (Autumn), 1997, pp.702-723.

 

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