Para Dar Calor à Nova Povoação: estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir dos registros batismais da Vila do Rio Grande (1738-1763)

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Programa de Pós-graduação em História Social

PARA DAR CALOR À NOVA POVOAÇÃO: ESTUDO SOBRE ESTRATÉGIAS SOCIAIS E FAMILIARES A PARTIR DOS REGISTROS BATISMAIS DA VILA DO RIO GRANDE (1738-1763)

Martha Daisson Hameister

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro – curso de Doutorado em História Social Orientador: Prof. Dr. João Luís Ribeiro Fragoso

Rio de Janeiro 2006

PARA DAR CALOR À NOVA POVOAÇÃO: ESTUDO SOBRE ESTRATÉGIAS SOCIAIS E FAMILIARES A PARTIR DOS REGISTROS BATISMAIS DA VILA DO RIO GRANDE(1738-1763)

Tese submetida ao corpo docente do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação em História Social, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor.

Banca Examinadora

_____________________________________________ Prof. Dr. João Luís Ribeiro Fragoso (UFRJ - orientador)

_____________________________________________ Profª Drª Maria de Fátima Gouvêa (UFF)

_____________________________________________ Prof. Dr. Antônio Carlos Jucá de Sampaio (UFRJ)

_____________________________________________ Profª Drª Carla Maria Carvalho de Almeida (UFJF)

_____________________________________________ Profª Drª Mônica Ribeiro (UFJF) Suplentes:

_____________________________________________ Prof. Dr. Manolo Garcia Florentino (UFRJ)

_____________________________________________ Profª Drª Maria Fernanda Bicalho (UFF)

Rio de Janeiro 2006

Agradecimentos

Esta, sem dúvidas, é uma das partes mais difíceis de redigir quando da conclusão de um trabalho. São tantas as pessoas e instituições que contribuíram de modo direto ou indireto para a sua elaboração que o temor de alguma omissão é constante e fundado. Começando por onde tudo começou: agradeço à minha mãe! Dona Anita Daisson Hameister (ou Ribeiro Daisson como voltou a chamar-se) em nenhum momento deixou faltar o apoio e o afeto. Dona Anita fez papel de órgão de financiamento à pesquisa quando nos meses iniciais quedei-me sem bolsa. Dona Anita preocupou-se com a dengue que se alastrava no Rio de Janeiro enquanto eu cursava as disciplinas, enviou-me pelo correio frascos e frascos de repelente para insetos que já faltavam no comércio carioca e muitas cartelas de paracetamol. Essa é uma síntese do pragmatismo que lhe é peculiar: faz-se tudo para prevenir, mas se a prevenção não foi suficiente, o remédio está incluído no pacote. Ameixas vermelhas para fazer doce no verão, pinhão novinho no inverno, feijão da safra e até uma peça de copa também me chegaram pelo correio. Dona Anita continuou a mãe que sempre conheci mesmo com mais de mil quilômetros de distância. Obrigada, véia! Continuando no âmbito da família, meus irmãos, minha irmã, cunhadas e agregados também merecem agradecimento. Como somos seis irmãos e alguns casaram mais de uma vez e vieram mais agregados: é muita gente – e gente do bem! Os sobrinhos entretanto, precisam ser agradecidos nominalmente. João e Pipo que me ensinaram a jogar Diablo II e Duds que aprimorou um tanto da técnica, Tiago, sobrinho agregado também deu algumas dicas. Paula, Júlia, Vitória: risadas a não mais poder. Agora vem vindo mais o Victor, para eu ensinar certas coisinhas! Na “Angolinha do Estácio” – que não deixa de ser um pouco de família – Tiago Gil e Elisabete Leal e, telefonicamente, Meuamor: parceria, discussões dos nossos trabalhos, café da tarde com pão doce, sugestões e mais risadas. O Homem-sem-camisa virá para nos defender, ficando tudo no barato: “só cinco reau pra cervejinha”! Ao orientador, não podem e nem devem faltar agradecimentos. O “profe João”. Deu asas aos meus devaneios, tornando-os investigação séria. Melhor que isso, soube podar asas no momento certo. Sua orientação atenta, clara, precisa e sempre atenciosa para que eu prestasse cuidado a certos aspectos, procedesse determinadas leituras, tivesse

atenção e rigor no tratamento dispensado às fontes e à análise dos dados coletados fazem com que sua presença seja evidenciada em cada uma das linhas que aqui foram redigidas, mesmo naquelas em que não intercedeu diretamente. Também não há como deixar agradecer o fato ter “bancado” certas ousadias, das quais surgiram alguns dos testes e experimentações que foram feitos ao longo desses mais de quatro anos, boa parte dos quais dão substância aos capítulos que virão adiante. “Profe João” também é responsável pela aglutinação de meus colegas em torno do grupo de discussão que organizou. Valham-me os céus! Poucas coisas valeram tanto quanto participar desse grupo, cuja opinião e rigor na avaliação dos textos que coloquei para a discussão agiam de duas maneiras: ou faziam com que erros e enganos deixassem de ser cometidos ou instigavam a buscar mais argumentos e fontes para a comprovação do que estava sendo colocado. Agradeço a esses colegas – muitos deles tornados amigos para o resto da vida. Correndo o risco de ter esquecido de alguém, tentarei nominá-los: Alexandre “Alê” Vieira, Cacilda “Cuca” Machado, Carlos Engemann, Carlos Kelmer, a saudosa e inesquecível Célia Muniz – aqui minha homenagem – Fernanda Martins, Grasiela Fragoso, Heitor Moura, Luciana Marinho Batista, “Bugre” Luís Augusto Farinatti, Roberto “Don Guedón” Guedes Ferreira, Rodrigo Amaral, Tiago Luís Gil. Vai também uma pontinha de orgulho fazer parte desse belíssimo e muito crítico grupo de pesquisadores. Às professoras Ana Maria Lugão Rios e Mônica Grin, agradecimentos por dois motivos: me obrigaram a enfrentar a leitura de Gilberto Freyre e me propiciaram um excelente aprendizado. Fui levada a uma série de reflexões a partir das observações de ambas. Agradeço também aos professores Antônio Carlos Jucá de Sampaio e a Manolo Florentino, com quem tive alguns grandes diálogos. Também não posso omitir o agradecimento às professoras Sheila de Castro Faria e Maria Fernanda Bicalho, participantes da banca do meu exame de qualificação. Suas observações acerca do que lhes apresentei fizeram-me baixar a cabeça e trabalhar em dobro! Meus agradecimentos enormes e sinceros aos membros da banca final, às professoras Carla Almeida, Maria de Fátima Gouvêa e Mônica Ribeiro e ao professor Antônio Carlos Jucá de Sampaio que tem a sina de ser meu eterno “bancário”, karma que espero ter resgatado com defesa deste. Apesar do curto espaço de tempo para a leitura e de todos os defeitos que o mesmo possa ter, aceitaram o convite e a incumbência com a gentileza e elegância que lhes é peculiar. O fizeram com maestria e com muita dedicação, com críticas e observações que só podem deixar-me mais agradecida ainda.

Agora saindo do Rio de Janeiro: a pequena Vila de Rio Grande tornou-se uma cidade. Em sua Diocese encontrei a documentação utilizada para a feitura deste e a acolhida generosa de seu Bispo e mais funcionários. Meus profundos agradecimentos a Dom José Mário, Seu Leopoldo, Dulci e Iara, devendo mais ainda pela simpatia e colaboração. Em breve retorno para abusar mais um pouco da boa vontade de vocês! Também em Rio Grande contei com a colaboração direta da acadêmica Tatiana Carrilho Pastorini, a Taty, na seleção do material e na feitura das fotos da mesma. Não posso deixar de agradecer à professora da FURG Marcia Naomi Kuniochi que a indicou para mim. Na Cúria Metropolitana de Porto Alegre, à Vanessa Gomes de Campos muito obrigado é pouco, por mim e por todos os colegas a quem ela sempre ajudou. Outra pessoa a quem devo agradecimentos vários e a obrigação de conhecê-lo pessoalmente, é Jorge “Katz” Pontual Waked. Amigo e parceiro de batalhas e duelos com o Diablo II jogado em rede, tornou-se meu “peão” para o gerenciamento das bases de dados, digitação dos dados coletados e por último – a despeito de ter-se tornado dentista – um bom paleógrafo, capaz de ler registros batismais do século XVIII na letra primorosa do vigário de Rio Grande, Manuel Francisco da Silva. A sua responsabilidade e rigor na execução das tarefas que lhe designei deixaram-me tranqüila para proceder outras atividades além da alimentação das bases de dados. Sem a sua colaboração, provavelmente a abrangência desse trabalho teria sido menor. Junto com Katz, tenho que agradecer outros tantos parceiros de jogo e interlúdios de lazer, responsáveis, em boa parte, pela manutenção da minha parca sanidade mental quando as coisas pareciam sem solução ou os problemas relativos a tese deixavam-me mais maluca do que já estava. Alu, Korvo, Sid, Sir Diablo, Crixo, Digão, Denise, Rômulo, Marco, Bud, Prof, Ane e o excelente Diablo II da Blizzard foram importantes por demais. Houve dois amigos que foram especiais. Um deles já agradecido duas vezes nas linhas postas acima, mas cuja colaboração a este trabalho não podem deixar de constar aqui. Tiago Luís Gil, co-morador na “Angolinha do Estácio”, colega no grupo de discussões, amigo até mesmo quando faltava dinheiro para ambos. Leitor chato e atento de tudo o que lhe passei. Foi irritante em insistir que eu tentasse algumas técnicas e abordagens, às quais normalmente cedi sem que o dissesse claramente, só para não dar o braço a torcer. Mas também chega de agradecê-lo. O Gil pode ficar meio bobo com isso, afinal, “quanto mais eu rezo, mais a sobrancelha aparece”. O outro amigo é Fabrício Pereira Prado. Esse, sem presença física constante, mas através de diálogos virtuais, ouviu minhas observações e comentou. Enviou-me livros que não são obtidos facilmente no

Brasil, disponibilizou-me fontes que havia coletado, opinou sobre o que eu estava fazendo. Tiago e Bricião são duas pessoas com quem se pode trocar idéias sem medo de prejuízo na troca. Junto com eles, agradeço a presença e apoio de amigos e professores portoalegrenses em trânsito acadêmico pelo Rio: Cláudia Mauch, Eduardo Neumann, Fábio Kühn, Luiz Alberto Grijó, Taís Campelo, Tiago “Gringo” Bernardon. Esses ajudaram a segurar a barra em muitos maus momentos e propiciaram-me outros tantos bons momentos. E muito mais risadas. Por tabela, agradeço à Manoela, esposa do Gringo, e à sua simpática família. Fernandinha Martins, não bastasse a sua amizade, ajudou-me a reduzir os atentados que fiz à língua portuguesa ao longo do texto. Aos que sobraram, reivindico a culpa. Qualquer agradecimento seria pouco. Agradeço também às outras amizades que fiz: Ana e Eduarda – receberam-me em sua casa e fizeram-me sentir como se fosse um pouco minha. Agradeço também à Altacir: me alimentou direitinho! Com a Maria tive boas conversas, e a sumida da Raquel foi boa parceira de papo e copo. Silvana “Santinha” foi parceira e amiga durante todo o tempo. Apresentar-me a ela foi uma boa coisa que o Guedón fez na vida. Puxa! Essa lista não acaba nunca! Sob pena de conter mais páginas que algum capítulo da tese, sinto-me obrigada a encerrar aqui, pedindo desculpas aos que não nominei, mas a quem também sou grata. Tentando encerrar, saio do âmbito pessoal e vou para o institucional, tenho que agradecer à Sandra e à Gleidis: muito me ajudaram na solução de não poucos problemas burocráticos. Passo aos agradecimentos finais: Agradeço à CAPES pela bolsa para o doutorado que me foi concedida e à FAPERJ pela concessão dos dois anos da Bolsa Nota 10. Sem esses financiamentos à pesquisa, bem provável não ter conseguido executar muito do que me propus.

Sumário

Introdução ............................................................................................................................................13 Abreviações, fontes e referências bibliográficas.......................................................................50 1. O que Havia em São Pedro do Rio Grande quando não havia nada: os antecedentes da ocupação lusa ................................................................................................................................................52 I. Quando não havia nada .........................................................................................................52 II. Interesses dos dois lados do Atlântico se encontram onde não havia nada..........................55 III. Onde não havia nada havia, também, os espanhóis ............................................................63 IV. Onde não havia nada, havia índios charrua, minuano e tape ..............................................72 Abreviações, referências documentais e bibliográficas ............................................................75 2. O Segredo do Pajé: o nome como um bem (Continente do Rio Grande de São Pedro, c. 1735c.1777............................................................................................................................................78 I. Eis então um problema ..........................................................................................................78 II. Sobre o estudo da onomástica: o nome em tempos, locais e culturas diferentes..................82 O surgimento do estudo da onomástica na França e seus resultados .....................................84 Para além da França................................................................................................................90 A prenominação ou naming practices em alguns estudos atuais sobre o Brasil ......................91 III. A hora e o lugar ..................................................................................................................96 IV. O nome e as origens............................................................................................................97 VI. De pai para filho .................................................................................................................102 VI. Em nome do pai ..................................................................................................................111 VII. O nome como um bem a ser legado, negado, usado e usufruído.......................................114 VIII. Quando o elo é rompido...................................................................................................119 IX. O nome em uma ocupação territorial recente .....................................................................126 X. O nome, a mobilidade social e a sociedade de Antigo Regime ...........................................132 Abreviações, fontes e referências e bibliográficas....................................................................137 3. A construção de uma “identidade açoriana” na colonização do Sul do Brasil ao Século XVIII ......142 I. Introdução ao tema ................................................................................................................142 II O início da povoação da Vila do Rio Grande e a posse dos territórios de Sua Majestade....147 III. Os povoadores vindos das Ilhas para a América.................................................................151

IV. Os filhos segundos e os novos povoados através do exemplo de um madeirense..............156 V. As boas famílias dos Açores e o povoamento do Rio Grande .............................................162 VI Açoriano: “ser ou não ser, eis a questão” ............................................................................169 VII. Algumas considerações .....................................................................................................179 Abreviações, fontes e referências bibliográficas.......................................................................181 4. O Mundo que os homens criaram e as Leis de Deus; o mundo que Deus criou e a Lei dos Homens .........................................................................................................................................185 I.

Sobre o tema e as fontes ...................................................................................................185

II. O mundo que os homens criaram e as Leis de Deus ............................................................186 II.1. O ato do batismo e as relações a ele subjacentes...............................................................199 II.2. Um pouco sobre os estudos sobre o compadrio no mundo ...............................................210 II.3. Um pouco sobre os estudos acerca de compadrio e batismos no Brasil ...........................215 III. O mundo que Deus criou e a Lei dos Homens....................................................................222 Um documento singular............................................................................................................222 III.1. Do batismo de Felícia ......................................................................................................223 III.2. Sobre o compadrio em geral e o compadrio em Rio Grande em particular .....................231 IV. A Ciranda dos Compadrios.................................................................................................234 V. A família e a economia do lar ..............................................................................................241 VI. Corpo Cativo x Espírito Livre ............................................................................................244 VII. Algumas considerações .....................................................................................................246 Abreviações, fontes e referências bibliográficas.......................................................................251 5. Os meus, os teus e os nossos: a construção de um patrimônio imaterial na Vila do Rio Grande .....255 I. As famílias Souza Fernando ..................................................................................................256 I.1. Antônio Simões e Maria Quitéria .......................................................................................268 I.2. Francisco Pinto Bandeira e Clara Maria de Oliveira ..........................................................300 II. As famílias de Antônio Gonçalves dos Anjos, Antônia de Morais Garcês e Domingos Gomes Ribeiro ..................................................................................................................325 Abreviações, fontes e referências bibliográficas.......................................................................339 6. As Sementes Para o Futuro: os padrinhos infantes, a formação de um pecúlio imaterial e a subversão da lógica do dom na Vila do Rio Grande.....................................................................343 I. Quem se busca para padrinho ................................................................................................345 II. Os padrinhos e as madrinhas dos filhos dos ilhéus ..............................................................348 III. A subversão da lógica do dom ............................................................................................361 IV. Tentando entender os padrinhos infantes ...........................................................................369 V. Os destinos diferentes ..........................................................................................................382 VI. O que ganharam com isso os credores do dom primeiro? Um caso revelador da dádiva e da subversão de sua lógica................................................................................................385

Abreviações, referências documentais e bibliográficas ............................................................395 7. “A mão separada do corpo não será mão senão pelo nome”: experimentando conceitos e métodos ......................................................................................................................................................398 I. Buscando entender os significados........................................................................................400 II. Tentando perceber os conceitos ...........................................................................................403 III. Experimentação de um método...........................................................................................410 IV. De volta ao começo ............................................................................................................442 Abreviações, referências documentais e bibliográficas ............................................................444 Considerações finais..............................................................................................................................446 Fontes e Referências Bibliográficas ......................................................................................................455

Índice de Ilustrações de Quadros e Tabelas:

Ilustração 1 - Mapa dos Confins do Brasil com as terras da Coroa de Espanha na América Meridional........................................................................................................................ 15 Ilustração 2 - Mapa dos Confins do Brasil com as terras da Coroa de Espanha na América Meridional (detalhe)......................................................................................................... 16 Ilustração 3 – Batismos da População Livre em Rio Grande: de 1739 a 1762 (anos completos)........................................................................................................................ 21 Ilustração 4 – Confrontação do número de batismos de filhos de açorianos e o número total de batismos – Rio Grande (1738-1756)................................................................... 22 Ilustração 5 – Ficha nominal de Antônio José de Vargas...................................................... 34 Ilustração 6 – Ficha do registro batismal de Manuel, filho de Antônio José de Vargas........ 35 Ilustração 7 – Ficha nominal de Manuel de Souza Torino, padrinho de Manuel, filho de Antônio José de Vargas ................................................................................................... 36 Quadro I – Compadrio de Francisco Pires Casado e Dona Mariana Eufrásia ....................... 164 Quadro II – Compadrio de Manuel Fernandes Vieira e Dona Ana Inácia da Silveira .......... 236 Quadro III – Compadrio de Mateus Inácio da Silveira e Dona Maria Antônia Silveira....... 236 Quadro IV – Compadrio de Francisco Pires Casado e Dona Mariana Eufrásia .................... 236 Quadro V – Batismo de crianças escravas das Famílias Furtado de Mendonça e correlatas .......................................................................................................................................... 241 Ilustração 8 – Famílias dos Casais Nicolau de Souza Fernando e Antônio de Souza Fernando. ........................................................................................................................ 267 Quadro VI –Filhos de Maria Quitéria Marques de Souza e Antônio Simões........................ 268 Quadro VII – Batismos dos Filhos de Maria Quitéria Marques de Souza e Antônio Simões em Rio Grande ................................................................................................................. 269 Quadro VIII – Compadrios do casal Antônio Simões e Maria Quitéria Marques de Souza e seus filhos...................................................................................................................... 279 Ilustração 9 – Ascendência e Descendência de Francisco Pinto Bandeira (simplificado) .... .......................................................................................................................................... 301 Quadro IX – Filhos de Francisco Pinto Bandeira e Clara Maria de Oliveira ........................ 302 Quadro X – Afilhados da família de Francisco Pinto Bandeira e Clara Maria de Oliveira .......................................................................................................................................... 306 Quadro XI – Batizados de escravos de Francisco Pinto Bandeira......................................... 307 Quadro XII – Afilhados da Família Antônio Gonçalves dos Anjos -Antônia de Morais Garcês .............................................................................................................................. 330 Quadro XIII – Batismos de Escravos Família Antônio Gonçalves dos Anjos -Antônia de Morais Garcês .................................................................................................................. 331 Quadro XIV – Afilhados de Domingos Gomes Ribeiro ........................................................ 332 Quadro XV – Escravos de Domingos Gomes Ribeiro........................................................... 332

Quadro XVI –Afilhados da família Domingos Gomes Ribeiro - Antônia de Morais Garcês .......................................................................................................................................... 333 Quadro XVII – Padrinhos de crianças filhas de ilhéus que batizaram 5 ou mais vezes........ 349 Quadro XVIII – Madrinhas de crianças filhas de ilhéus que batizaram 5 ou mais vezes ..... 350 Quadros de Compadrios com açorianos por membro do núcleo familiar Quadro XIX – Lucas Fernandes da Costa e Joana Maria da Purificação................... 353 Quadro XX – Manuel de Souza Torino e Maria Coelho ............................................ 353 Quadro XXI – Antônio Simões e Maria Quitéria Marques de Souza ........................ 353 Quadro XXII – Manuel da Costa de Carvalho e Inês de Santo Antônio.................... 353 Quadro XXIII – Domingos de Lima Veiga e Gertrudes Pais de Araújo ................... 377 Ilustração 10 – Partícipes dos Compadrios nas famílias dos genros de Antônio Furtado de Mendonça......................................................................................................................... 418 Ilustração 11 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: nodos e direção de relação ............................................................................................................ 419 Ilustração 12 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça:nodos e linhas com sentido e direção de relação ..................................................................................... 420 Ilustração 13 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: nodos, linhas com sentido e direção de relação e rótulo das relações ................................................... 420 Ilustração 14 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: nodos nominados, linhas com sentido e direção de relação e rótulo das relações (representação gráfica completa) ..................................................................................... 421 Ilustração 15 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: representação gráfica simplificada.......................................................................................................... 422 Ilustração 16 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: representação gráfica relação de tipo 1 (marido↔mulher) .................................................................... 423 Ilustração 17 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: representação gráfica relação de tipo 2 (pai→filhos) ............................................................................. 424 Ilustração 18 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: representação gráfica relação de tipo 3 (senhor→escravo) .................................................................... 424 Ilustração 19 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: representação gráfica relação de tipo 4 (pais→padrinhos) ..................................................................... 425 Ilustração 20 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: representação gráfica relação de tipo 5 (padrinhos→afilhado) .............................................................. 425 Ilustração 21 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: partícipes aglutinados por relação de pertença aos casais ................................................................ 427 Ilustração 22 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: excluídos os senhores de escravos pertencentes à família.................................................................... 429 Ilustração 23 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: adultos livres .. .......................................................................................................................................... 436 Ilustração 24 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: adultos livres com atribuição de importância aos nodos........................................................................ 436 Ilustração 25 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: adultos com atribuição de importância aos nodos................................................................................ 439

Resumo: A presente pesquisa visa, através da utilização intensiva dos registros batismais da Vila do Rio Grande e mais documentação complementar, apresentar a análise de aspectos que remetem às estratégias sociais e familiares na formação desse povoado, no lapso de tempo compreendido entre 1738 e 1763. Para tanto, esta utilizou-se em muito de experimentações metodológicas em torno da conexão de registros nominais e de análise de redes sociais. Como resultados obtidos têm-se a afirmação da importância dos laços de compadrio entre pessoas de mesmo estatuto e, principalmente, de estatuto social distinto como importante recurso social para angariar prestígio e provavelmente como indicativo da gênese do poder das elites locais bem como do controle social desse poder outorgado pelos setores subalternos. Verificou-se a utilização em larga medida dos preceitos da economia do dom a reger uma sociedade em muito marcada pela concepção corporativa manifesta tanto na família como nas relações entre grupos sociais distintos.

Introdução Este estudo visa abordar aspectos da formação da Vila do Rio Grande através da trajetória de algumas famílias da elite que ali se formou ou que teve Rio Grande como importante passo na consecução de seus projetos como tal. A Vila situava-se entre a Colônia do Sacramento (fundada em 1680) e a Vila da Laguna (fundada em 1684), onde hoje está localizada a cidade portuária de Rio Grande, Estado do Rio Grande do Sul. Surgida a partir de uma fortificação militar mandada erigir pela Coroa Portuguesa em atendimento às recorrentes solicitações de Gomes Freire de Andrade e José da Silva Pais, o local escolhido, à margem do canal que liga a Lagoa dos Patos ao Atlântico, era conhecido caminho dos condutores que levavam animais desde Sacramento até o centro-sul da Colônia. A Vila do Rio Grande foi oficialmente elevada a essa categoria em 1747, constituindo uma Câmara de Vereadores anos mais tarde (Queiroz, 1987: p. 78). Essa foi a única Câmara que existiu nos territórios portugueses ao sul de Laguna durante toda o período abrangido pela pesquisa. A Câmara, após a Vila ter sido tomada pelo exército espanhol foi transferida para Viamão e, depois, para Porto Alegre, ambas distando mais de duzentos e cinqüenta quilômetros ao norte. Viamão foi sede Câmara sem ter estatuto de vila e, quando da devolução aos domínios portugueses, na segunda metade da década de 1770, Rio Grande mantinha o estatuto de Vila sem, no entanto, sediar Câmara. Os que exerceram a Comandância Militar eram referidos pelos moradores e pelas autoridades,

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inclusive pelo Conselho Ultramarino, como Governadores, sem que fosse esse o cargo para o qual foram nomeados. Tinham responsabilidades de governadores, tinham funções de comandantes militares. Passados mais de dez anos da fundação do povoado, não havia um Provedor para a sua fazenda nomeado, mas havia um Comissário de Mostras, cargo inicialmente criado para o responsável pelo fisco e administração das atividades de produzir couros e outras correlatas à produção de gados, que agia como um. As pessoas, as coisas, os cargos, os agentes da Coroa estavam fora de seus lugares esperados, mas a formação do povoado dava mostras de funcionar muito bem assim. Essas variações no que seriam certos cânones administrativos – por exemplo, onde há Vila há uma Câmara e onde há Câmara há uma Vila – não são válidas para o contexto dessa fronteira. Como muito mais coisas nessa fronteira, nem tudo o que estava no papel era o que valia para a vida e nem tudo o que a vida demandava estava conforme o papel. Esse espaço para as manobras, flexibilizações e estratégias dos que viveram o processo de conquista, espaço entre o que era normatizado e o que era possível, foi muito importante para o estabelecimento das hierarquias, das relações pessoais e das relações entre os vários setores que compuseram essa sociedade. A fundação do Forte de Jesus Maria e José, em torno do qual a localidade de Rio Grande se desenvolveria, data de 1737. A chegada do primeiro pároco deu-se no ano de seguinte. Como recorte temporal inicial para esta pesquisa, marcaram-se, portanto os anos que cercam 1737. Entretanto, como algumas das famílias eleitas como janela para se olhar esse passado eram fruto do desdobramento de migrações anteriores, quando foi possível, regrediu-se nesse marco cronológico inicial tentando trazer elementos para a compreensão dos fatores que contribuíram para que, de fato, se tornassem parte do setor social que deteve bens, prestígio, poder e mando no nascente povoado.

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Ilustração 1 - Mapa dos Confins do Brasil com as terras da Coroa de Espanha na América Meridional

Fonte: Anais da Biblioteca Nacional, v. 50 – encartado.

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Ilustração 2 - Mapa dos Confins do Brasil com as terras da Coroa de Espanha na América Meridional (detalhe)

Fonte: Anais da Biblioteca Nacional, v. 50 – encartado.

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No ano de 1763, a Vila do Rio Grande foi atacada pelas tropas espanholas vindas do Prata. Isso ocorreu numa sucessão de trágicos eventos, classificados pelas autoridades da época como algo entre imprevidência e covardia e, por alguns, como ambas as coisas. Para outros foi ato de traição. Parte dos moradores de Rio Grande foram obrigados a fugir fazendo vau ao canal que separava a Vila propriamente dita do lugarejo chamado Estreito, na margem norte. Boa parte dos que não foram felizes na fuga, foram aprisionados pelos espanhóis e, posteriormente, enviados à localidade de San Carlos de Maldonado (Monteiro, 1979; Domingues, 1994), onde já viviam colonos espanhóis em sua maioria oriundos das Ilhas Canárias, migrados em casais (Apolant, 1966). Nesse ponto, a política de ocupação das fronteiras da Coroa espanhola pouco diferia do que foi levado a cabo nos territórios meridionais lusos, aos expedientes usados pela Coroa de Portugal, no que foi chamado por Jaime Cortesão de “A Política dos Casais” (Cortesão, 1951) . Entre a sua fundação e o esvaziamento devido aos ataques e posterior tomada pelos castelhanos, na Vila houve o tempo de nascer e crescer uma geração de riograndinos. Houve tempo para que algumas das crianças lá nascidas e jovens que migraram com suas famílias para a localidade, casassem e tivessem seus filhos. Houve tempo para que os soldados que faziam a fortificação da fronteira escolhessem uma moças para seus casamentos. Houve tempo para que muita gente morresse de doenças. Índios deram seus filhos a batizar pelos cristãos que ali foram viver, recebendo essas crianças nome cristão e padrinhos responsáveis por suas almas, como qualquer criança que nascera na Vila. Alguns índios podiam padecer de males repassados nesse contato, não sendo poucos os adultos que foram batizados às pressas pouco antes de seu passamento. Crianças nasciam escravas e algumas delas podiam ter a sorte de serem alforriadas ainda em seu estado de inocência. Houve toda essa explosão de nascimentos e mortes que foram registradas, frutos do ciclo natural da vida. Ainda assim, houve quem pôde “morrer de Repente de uma facada”

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(ADPRG-1LObt-RG, 1738-1763, Registro de óbito de Francisco Dutra, 28/02/1758), demonstrando a quem lê tais registros que nem só de amizades e colaborações se fazia a vida da Vila. Houve também gente que chegou e partiu sem que restassem registros documentais de suas presenças na localidade. No ano de 1738, quando tiveram início os registros paroquiais dessa localidade, já estavam presentes algumas famílias que, em sua maioria tendo vindo de Trás-os-Montes para fazer o povoamento da Colônia do Sacramento no ano de 1718, tiveram que abandonar seus pertences devido aos ataques espanhóis àquela praça. Mas não somente eles. Como urgiam medidas que contribuíssem na manutenção dos territórios sulinos à Coroa portuguesa, soldados e populações civis, homens de ofício e suas famílias e casais de índios foram transferidos para a barra do Rio Grande para proceder povoamento a todo o tempo e, com mais intensidade, após 1740, chegando à localidade para fazê-la crescer e produzir, como relatou o Mestre-de-Campo André Ribeiro Coutinho em uma correspondência sua: Vem mais guarnição, chegaram 200 e tantos índios e índias, chegaram casais e na terra não há mais que o que fica dito e para Vossa Mercê veja a sua fertilidade sendo tudo areia, medi uma cana de milho e achei 22 palmos, pesou-se um linguado e tinha 19 libras, não vi princípios tão avultados em terra alguma nem a há mais salutífera, fecunda e forte (Carta de André Ribeiro Coutinho, 1742, apud Fortes, 1980: 74, grifo meu)

Vieram povoadores da Bahia, de Pernambuco, das Minas, de São Paulo. Os migrantes eram atraídos por promessas de terras e insumos, além de outros auxílios, muitas vezes em espécie. Nem sempre essas promessas foram cumpridas e, quando foram, quase nunca de imediato. Também chegaram indígenas da própria região, trazidos à força ou convencidos da necessidade do convívio com os lusos: índios ditos das “Missões dos Padres”, índios ditos “tape”, “charrua” ou “minuano” se aproximaram de Rio Grande. Muitos partiram, mas houve quem ficasse por lá espontaneamente ou sob coerção.

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Casaram, tiveram filhos, plantaram, colheram, trabalhando nas obras, cuidaram de gados e cavalos de particulares e das duas Estâncias de Sua Majestade, Bojuru e Torotama. Estabeleceram relações por lá. Fizeram comércio, fizeram amizades, fizeram inimizades com os portugueses que, talvez nem soubessem nesse primeiro momento, mas haviam chegado para ficar. Ao final do ano de 1749 e, com muito mais ímpeto, em toda a primeira metade da década de 1750, começaram a chegar as grandes levas de casais vindos dos Açores e, em menor número, do arquipélago da Madeira. Esses migrantes que se dirigiram primeiro para Santa Catarina, foram seduzidos nas ilhas onde viviam com promessas das terras e de vantagens outras que receberiam ao atravessar o Atlântico no bom serviço de Sua Majestade. O projeto inicial para seu assentamento previa um deslocamento das famílias chegadas ao local para a região anteriormente ocupada pelos Padres Jesuítas em suas estâncias e Missões, em cumprimento aos acordos diplomáticos do Tratado de Madri. Com o que não contavam, nem as autoridades nem os casais, e que, com toda a certeza, não estava nos seus planos, foi o levante dos indígenas missioneiros com o intuito de manterem-se lá. Uma situação nunca vista anteriormente nas planícies sulinas. Os espanhóis e os portugueses, aliados como já mais haviam sido nesses anos todos de disputas territoriais, tiveram de enfrentar índios tape, aos quais se aliaram uma boa parcela dos minuano e dos charrua. Também estes jamais haviam estado em aliança desde a chegada dos europeus, sendo sua proverbial inimizade muito explorada anteriormente. Quase sempre os tape eram aliados aos espanhóis e os minuano eram aliados aos portugueses. Essa interessante configuração de forças e o receio que inspirou aos lusos e espanhóis ficou registrada no diário do Oficial de Dragões de Espanha, Francisco Graell (1998). Esse episódio, conhecido como as Guerras Guaraníticas, teve como conseqüência

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imediata para os casais dos Açores a sua retenção na jurisdição da Vila e a adequação de suas vidas ao imprevisto. Boa parte deles foram assentados no entorno das outras fortificações menores erigidas para fazer a defesa da fronteira: Chuí, São Miguel, Santa Teresa. Outros se deslocaram para o Estreito e houve também quem ficasse mais próximo do centro da Freguesia, a sede da Vila. Distribuídos em terras que não eram as que lhes cabiam, não obtiveram de imediato a posse delas. Tiveram, em sua maioria, que aguardar por vinte anos ou mais, até que as autoridades fizessem a tão prometida distribuição de terras constante do Edital de 1747 que os convocou nos Açores (Fortes, 1999: pp. 26-27). No tempo em que viveram na jurisdição de Rio Grande tiveram de arranjar formas de sobrevivência, de sociabilização, de formação de um grupo de pertencimento e de relacionamento com os “outros” da localidade. A chegada dos imigrantes açorianos na Vila do Rio Grande mudou o drasticamente o perfil da curva de batismos realizados a cada ano localidade. Isso pode ser visto na figura abaixo montada com dados extraídos de Maria Luiza Bertulini Queiroz, obra intitulada Paróquia de São Pedro do Rio Grande: estudo de história demográfica 1737-1850 (1992: p. 203). Nessa ilustração observa-se que, a partir do ano de 1750, há a o aumento significativo dos batismos realizados e uma tendência ao crescimento vertiginosamente positivo nos cinco anos imediatamente posteriores a 1750. Isso denota um crescimento por imigração de uma população que permaneceu na localidade e acentua a diferença entre os dois momentos distinto. Uma posterior acomodação, possivelmente decorrente de alguma emigração, talvez mesmo de alguns casais para terras afastadas da jurisdição da Vila tenham influenciado o desenho da curva.

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Ilustração 3 – Batismos da População Livre em Rio Grande: de 1739 a 1762 (anos completos)

Batismos da População Livre em Rio Grande: 1739-1762 250

200

150

100

50

0 1739 1740 1741 1742 1743 1744 1745 1746 1747 1748 1749 1750 1751 1752 1753 1754 1755 1756 1757 1758 1759 1760 1761 1762 Batismos 25

36

42

46

67

35

38

29

55

40

95

59

72

88

117 167 176 222 186 182 195 192 177 196

Fonte: Queiroz, 1992. p. 203 – Anexo 2: Nascimentos, casamentos e óbitos da população livre por ano civil 1737-1849.

Para atribuir o verdadeiro peso dessa população de imigrantes, comparou-se o total de batismos da Vila desde o primeiro até o último ano completo contemplado no segundo livro de batismos com os batismos de crianças nos quais ao menos um dos pais foi identificado como sendo natural dos Açores. Justifica-se esta opção por começar a separação dos registros de batismos de livres e escravos já no livro terceiro, não podendo, portanto, serem comparados com os registros anteriores, nos quais tem-se, de fato, a totalidade dos batismos procedidos na Vila, alertando que o livro primeiro inicia no mês de junho de 1738, não sendo, portanto, um ano completo.

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Ilustração 4 – Confrontação do número de batismos de filhos de açorianos e o número total de batismos – Rio Grande (1738-1756) Batismos Açorianos X Total de Batismos 300

251

250

200 189 195 161 150

146 123 112

100

113

109 85 81

80 71 43

43

51

50

49

53

49

29 10 0

0 1738

1 1739

53 41

34 2

1 1740

1741

1 1742

1

0 1743

1744

2

1 1745

1746

1747 Ano

7

4

1

8

0 1748

1749

1750

1751

1752

1753

1754

1755

1756

Total Batismos Açorianos batizadas

Fonte: ADPRG, 1LBat-RG e 2LBat-RG (1738-1754)

A partir do ano de 1750 houve o crescimento positivo no total de batismos da Vila, mas compreende-se, na comparação das curvas, que muito deste crescimento com certa regularidade foi devido, antes de mais nada, à chegada dos casais de migrantes. Fato inconteste é o ter havido uma ligeira queda no número total de batismos realizados na localidade no ano de 1755 e ainda assim, a curva de batismos das crianças filhas de nativos dos Açores segue com crescimento positivo, ainda que menos acentuado em relação ao ano anterior. As irregularidades nesses batismos devem-se muito a contingentes populacionais que não se fixaram na localidade, como foram os indígenas ou pessoas que, por infortúnio, encontravam-se na localidade. Cita-se como exemplo o ano de 1749, no qual se verifica uma grande ascensão na curva do número de batismos. Pois bem, nesse ano foram batizadas sete crianças filhos de colonos ingleses que naufragaram na costa e cinqüenta e

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quatro índios minuano, a maioria de adultos ou crianças não mais ditas inocentes. Isso ajuda a explicar o aumento abrupto de cinqüenta e três batismos do ano anterior para cento e doze em 1749 (ADPRG - 1LBat-RG - 1738-1753) e a queda no ano seguinte. Em 1753 houve novo batismo coletivo de índios minuano, dessa vez em número de vinte e três. Esses batismos que não dependiam dos nascimentos na Vila só vêm a valorizar o que foi dito com relação à aos migrantes dos Açores: vieram para ficar, para formar família. Sem a presença deles a curva dos batismos da Vila seria semelhante ao que era no período que antecedeu à sua chegada: muito irregular. Uma das principais decorrências da chegada súbita dos migrantes ilhéus na localidade, ao que tudo indica, parece ter sido uma tensão e uma reviravolta no mercado matrimonial da localidade. Em uma situação de fronteira, fortemente militarizada, a carência de mulheres, tidas pelas autoridades como benéficas ao povoamento, foi minimizada. A formação de famílias criava raízes, evitava fugas e deserções. Até o final da década de 1740, o fornecimento principal de esposas ao matrimônio ficava por conta da chegada de mulheres recrutadas em outros pontos da Colônia e das pertencentes primeiras famílias chegadas à localidade. A disponibilidade de mulheres das famílias ao casamento nessa localidade era bastante pequeno, tanto que José da Silva Pais, fundador da fortificação, recorreu inclusive ao recrutamento de “mulheres nocivas”. A grande “riqueza” que representavam as moças casadoiras das famílias era privilégio dado a poucos homens da localidade. Detentoras de um bem tão precioso, essas famílias trataram de ampliar esse patrimônio com batismos de moças indígenas que ficavam sob sua guarda para educar dentro dos preceitos da cristandade. Com a chegada das famílias de ilhéus e de um forte contingente feminino – a trazida de mulheres era estimulada no Edital de 1747 que os

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convocou nas ilhas com promessa de pagamento em espécie de uma ajuda adicional para cada mulher em idade fértil (Fortes, 1999: pp. 26-27) – as boas famílias que deram início ao povoamento encontraram concorrência nesse mercado, no qual o bem que troca de mãos não era comprado, mas repassado como dádiva numa economia em que dom e contradom geravam alianças e cadeias de reciprocidade. Essas mulheres eram bens que se podiam desejar, mas que não eram adquiridos no mercado à custa de moedas. Muito provavelmente a chegada dos migrantes representou uma quebra nessa hegemonia das primeiras famílias em ofertas ao mercado matrimonial. Isso deve ter gerado tensões entre o grupo já estabelecido e o que chegava em levas cada vez maiores, dado o aumento da oferta de mulheres cristãs nesse mercado e de opções outras que não recorrer às famílias mais antigas. Bem provável que um tanto dessa tensão provocada pelo fim da hegemonia das primeiras famílias, muitas delas vindas da Colônia do Sacramento e antes da Península, tenha assumido forma de rechaço a esta população de ilhéus, bem visível nos termos usados para descrevê-los no relato do Cirurgião-mor do Primeiro Regimento do Rio de Janeiro que em 1777 estava estabelecido no Continente do Rio Grande de São Pedro: Como a maior parte dos habitadores desse continente são Insluanos ou Ilhéus, os termos, os costumes, os vestuários são grosseiros, e pela mesma ordem de grosseria criam seus filhos. (...). As mulheres são muito grosseiras (como também são os homens) trazem as camisas mui sujas, e de ordinário de estopa, posto que poucas de linho grosso: os corpos são mui mal feitos. Só sabem falar de éguas, potrancos, cavalos, laço, bois e bolas. As saias são de Baeta, e por sapatos tamancos, por cuja razão têm os pés disformes, e grandes os dedos mal compostos, suposto que os das mãos são também grosseiros e as unhas muito sujas (Souza, 1979: p. 266, grifo meu)

Esse tipo de descrição é semelhante a outros feitos por gente com hábito citadino sobre os camponeses. Entretanto, as populações que migraram de Sacramento para o Continente do Rio Grande de São Pedro, mais especificamente para Vila do Rio Grande, também eram ditas de camponeses, que só entendiam de agricultura. Pouco provável que tenham desenvolvido hábitos refinados em poucas décadas de vivência atribulada numa

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situação de fronteira com incertezas, guerras e ataques. Ou seja, as disputas se faziam sentir na cristalização de posições sociais ou étnicas dentro dessa sociedade. “Nós” e “eles” se formavam para as pessoas que viveram na localidade quando postas em contato umas com as outras1. Tendo os migrantes se colocado na Vila com intenções de ficar e a Vila dando mostra de bastante progresso – tais como haver sido concluída a obra de construção da Igreja Matriz, iniciado a exploração de jazidas para a feitura da cal e o grande comércio de animais que partiam para o centro-sul da Colônia – as relações entre Portugal e Espanha novamente estremeceram. A tranqüilidade e a vida “normal”, tinham seus dias contados. No ano de 1762, a sempre frágil paz com os espanhóis tornou-se guerra novamente. Vindos pelo sul, atacando desde a Colônia do Sacramento, tomaram todas as posições lusas entre Sacramento e Rio Grande. São Miguel, Chuí foram atacadas. Foi feito um grande número de prisioneiros entre civis e militares. Em abril de 1763 chegaram à Vila do Rio Grande, causando grande alvoroço. Esses dias ficaram conhecidos, através da letra do Vigário Manuel Francisco da Silva, como o “tempo da correria” (ADPRG-1LBatEstreito, 1763-1776 - Registro batismal de Clara, filha de Antônio José da Silva, 20/04/1763). O Governador Inácio Elói de Madureira, sabedor dos movimentos dos espanhóis, não tomou as devidas providências para sua defesa e para a proteção dos habitantes da Vila de Rio Grande. Antes, num ato considerado de extrema covardia, preparou uma nau para si e para os seus comandados mais imediatos e fugiu para território seguro situado ao norte do Continente do Rio Grande de São Pedro. Não somente a chegada das tropas espanholas fez estragos à vida dos moradores de Rio Grande. Homens dos mais baixos estratos sociais

1

Como subsídio para a idéia de formação de identidades étnicas no contexto sob estudo ver BARTH, Fredrik. "Os Grupos Étnicos e Suas Fronteiras". In: Fredrik BARTH. O Guru, o Iniciador e Outras Variações Antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000. pp. 25-67.

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e soldados engajados sabe-se lá de que modo, na ausência do comando e da hierarquia a que estavam acostumados, promoveram grande desordem. Mulheres foram estupradas, assassinatos cometidos, os bens da Igreja, de casas de comércio, de particulares, foram saqueados. Disso resultou a Devassa Sobre a Entrega da Vila do Rio Grande às Tropas Castelhanas (Biblioteca Riograndense, 1937), aberta no ano de 1764 que tentava averiguar as responsabilidades e punir os culpados. Mais do que culpados e responsáveis, a Devassa revela ao historiador uma imbricada rede de relacionamentos que colocava quase todos os habitantes do Rio Grande em contato direto ou indireto, haja vista a quantidade e qualidade dos investigados, dos depoentes, dos acusadores e das testemunhas. As antigas amizades e inimizades se mostravam nas falas das testemunhas anotadas pelo escrivão. Com a tomada da Vila pelos castelhanos encerra-se “oficialmente” o recorte cronológico abrangido por esse estudo. Ainda que não seja impossível, seria temerário tentar dar prosseguimento, ao menos nesse momento, na análise que se faz para os anos que se seguiram a essa invasão, por alguns motivos que podem ser enumerados. Em primeiro lugar, porque não foram localizados os registros batismais da Vila do Rio Grande sob o domínio espanhol. Ficaria uma lacuna de quatorze anos preenchida com documentação de natureza completamente diferente da empregada para o período anterior. Em segundo lugar, porque não foi possível, ao menos para a feitura desta pesquisa, consultar a documentação oficial produzida pelos espanhóis para os anos que a vila esteve sob o seu domínio. Em terceiro, porque os moradores de Rio Grande não tiveram um único destino. Muitos foram levados para San Carlos de Maldonado, muitos fugiram para o Estreito, Viamão, Rio Pardo, Gravataí, Porto Alegre e outras localidades. De outros tantos perdeu-se o rastro, tendo ido talvez para o Rio de Janeiro, retornado a Portugal ou qualquer outro destino. Com toda a certeza, houve mortes nos embates, no entanto, ao contrário do que aconteceu com os registros batismais, retomados no Estreito quando a situação

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acalmou-se um pouco e tendo sido “passados a limpo” os registros do tempo da correria, ao livro de óbitos de Rio Grande não foi encontrado seu correlato no Estreito, ficando essas mortes intangíveis à pesquisa. O acompanhamento quase que cotidiano, propiciado pelos registros batismais da Vila, corpus documental principal desta pesquisa, assim como demais documentos paroquiais complementares são inviáveis para esses anos. Entretanto, “extra-oficialmente”, foi possível avançar um pouco no tempo, perseguindo alguns dos agentes sociais de relevo nessa primeira fase de ocupação da Vila pelos súditos de Sua Majestade e encontrando-os nas localidades do Estreito e Viamão. Assim, para algumas das famílias selecionadas como uma “janela para o passado”, foi possível dentro do prazo requerido para a execução dessa investigação, saber um pouco mais de suas vidas nessa mesma região e além. Mas isso “extra-oficialmente”, já que há quebra do ritmo metodológico que até então foi empregado. Estão nos planos futuros, a partir da identificação dos agentes sociais presentes na Vila do Rio Grande até 1763, a busca sistemática em registros paroquiais de outras freguesias do território, na tentativa de dizer o quanto essa partida brusca e emergencial dos locais onde já se haviam estabelecido alterou-lhes os padrões de comportamento à pia batismal e os seus relacionamentos sociais, políticos, econômicos, familiares. Estender a pesquisa para além de uma geração, para épocas e localidades distintas é objetivo futuro. Espera-se que a comparação possa ser profícua. Em decorrência do tipo de fontes que foram utilizadas nesse estudo e alguns outros problemas que serão comentados um pouco mais adiante, da percepção da existência de conflitos – e por certo existiram conflitos – não foi possível dizer mais. O que aqui é chamado de “tensões” são o que se poderia dizer ambientes propícios para que conflitos de interesses fossem gerados. Como o corpus documental principal dessa pesquisa registra os momentos em que famílias formavam suas alianças através do

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compadrio, ainda que transpareçam essas tensões, a fonte não permite ver os conflitos internos a essa sociedade propriamente ditos. Para tanto, haveria necessidade de sistematização de outra sorte de documentos, o que nem sempre é fácil ou possível, pois como já dito, a tomada da Vila pelos espanhóis deu ocasião a que muita coisa se perdesse. Não foi pretensão deste trabalho fazer um estudo da dinâmica da demografia na localidade de Rio Grande. Para o fornecimento dos dados necessários demográficos à execução desta pesquisa, contou-se com o inestimável auxílio das obras de Maria Luiza Bertulini Queiroz, denominadas A Vila do Rio Grande de São Pedro, 1737-1822; A Vila do Rio Grande de São Pedro e Paróquia de São Pedro do Rio Grande: estudo de história demográfica (1737-1850) (1985; 1987; 1992, respectivamente). Com a certeza de que o conhecimento é obra coletiva e cumulativa, estes três trabalhos foram alicerces sólidos que permitiram seguir por outros caminhos. Para além da pesquisa em história demográfica do tipo “clássica”, o estudo do período da formação e primeira fase de ocupação dessa localidade, foi um desafio. A Vila do Rio Grande, muito em função de sua situação de fronteira, foi alvo de estudos em história militar (Monteiro, 1979) ou de estudos que tiveram por objetivo ver a vida de seu herói fundador através da obra realizada (Fortes, 1980; Piazza, 1988). Pretendeu-se que essa pesquisa seguisse sem que o enfoque principal fossem os objetivos estratégicosmilitares ou os grandes heróis fundadores. Para a sua feitura, além de poucos livros da Provedoria da Fazenda Real, providencialmente salvas da invasão por um soldado anônimo, pouca coisa restou ou foi localizada dentre os muitos registros documentais produzidos na localidade. Nenhum livro da Câmara foi achado, tendo sido, possivelmente, destruídos e a documentação cartorária, caso exista, ainda não foi localizada. O conjunto de documentos mais farto gerado em e que diz respeito à população de um modo geral que viveu em Rio Grande, para este recorte

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cronológico são, portanto, os registros eclesiásticos, parte do acervo do Arquivo da Diocese Pastoral de Rio Grande. Ainda assim, houve algumas perdas. Dos livros de registros matrimoniais que abrangem o período sob análise, o primeiro – e que comporta primeiros dezoito anos de existência da localidade – foi extraviado. Seria por demais interessante tê-lo em mãos, já que abrange os casamentos que ocorreram lá antes e depois da chegada dos migrantes ilhéus. Se há algum meio de conferir o impacto que a chegada dessas famílias representaram no mercado matrimonial de Rio Grande, com certeza não dispensaria o uso deste livro como fonte documental. Outra perda que se faz sentir diz respeito aos registros de batismo de escravos. A partir de impreciso momento, foram separados dos registros dos livres. Esses livros tampouco foram encontrados, havendo a possibilidade de terem sido roubados da Diocese ou terem sido extraviados de outro modo. Não foram encontrados até o presente testamentos, róis dos confessados nem autos matrimoniais. A série mais abrangente e mais completa, são os registros batismais, apesar da lastimável lacuna relativa à população escrava. Com essa documentação como base, qual seja, os quatro primeiros livros dos registros batismais da localidade, encarou-se o problema de tentar recompor e analisar algumas das estratégias sociais e familiares empregadas na formação da Vila do Rio Grande. Há que se justificar os motivos de terem sido eleitas algumas famílias da elite – e como elite designa-se neste trabalho algumas famílias que concentravam bens, prestígio, privilégios, poder político e econômico, cargos e patentes militares, ofícios da Coroa e, como se verá adiante, as relações pessoais passíveis de serem tecidas com gente de seu próprio estatuto social e, mais importante que isso, com os setores sociais que não eram o seu. Em primeiro lugar, ratificando o que já foi dito por outros autores, como por

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exemplo E. A. Wrigley, na sua Introdução à obra Identifying People in the Past (1973: pp. 1-16) e Ian Winchester, em seu artigo On referring to ordinary historical persons, publicado na mesma obra (pp. 17-40) ou Sérgio Odilon Nadalin, em História e Demografia: elementos para um diálogo (2004), há complicadores no processo de identificar pessoas comuns na massa documental. O estoque de prenomes das sociedades do passado era bastante limitado e o uso de sobrenomes nem sempre ocorria. Marias e Antônios, Anas e Franciscos se sucedem na documentação, muitas vezes sem qualquer outro indicativo que possa resultar em uma identificação precisa de se tratar de um dos agentes sociais em especial. Para os membros das famílias da elite há uma tendência à maior precisão no registro dos nomes e com maior freqüência há a agregação de um, quando não dois, sobrenomes. Há também a constante referência a outros membros da família, vinculando uns aos outros, tais como algum deles ser o pai, o marido, a esposa ou o filho de outro. Se para Carlo Ginzburg o nome é o caractere único que identifica os agentes sociais, para Wrigley e Winchester não somente não é o único como muitas vezes é insuficiente para uma identificação com pouca margem de dúvidas. Considerando que a os registros batismais são fartos em registros mas nem sempre são muito detalhados ou precisos, trabalhar com cruzamento nominal, ou com o método onomástico, como o chamou Ginzburg (1989) foi, por paradoxal que possa parecer, a grata tarefa de tirar leite de pedras. A conexão de registros nominais, sejam eles em uma única série, como são os registros batismais ou em séries distintas, como por exemplo entre os registros batismais e uma listagem de migrantes, torna-se tarefa bastante difícil de ser executada quando se tem em ambas um Antônio Silveira que não apresenta nenhum outro elemento caracterizador. Um nome comum para um homem comum e que nem sempre vai permitir que se

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investigue a sua vida nessa comunidade ou em outras localidades pelas quais tenha passado. Em acréscimo a isso, há uma grande incidência de homônimos não apenas na Vila de Rio Grande como no restante das terras lusas ao longo do planeta. Os nomes e os sobrenomes se repetem nas famílias e fora delas. Esse fenômeno não é exclusivo da sociedade lusa, mas faz parte das suas tradições de atribuição de nomes às crianças que nasciam, sendo que estudos de pesquisadores franceses apontam para a questão de ser o nome próprio das pessoas à Idade Moderna um patrimônio das famílias, de “clãs”, de grupos de famílias que partilhavam um conjunto de valores sócio-culturais ou regionais, tais como a devoção a certos santos ou notáveis do passado. Sem ter a função de individuação, os nomes tinham função de gerar o pertencimento a esses grupos. Não muito diferente disso foi o que se percebeu na Vila do Rio Grande. Seja por tradição, seja por ter uma função cultural, social, política, econômica e religiosa, os nomes se repetiam amiúde. Com a recorrência a um mesmo e limitado estoque de nomes, alguns procedimentos tiveram de ser feitos para trabalhar essa profusão de poucos nomes. O primeiro deles foi a elaboração de uma base de dados no software Microsoft Access, cujo eixo principal de busca e de localização dos sujeitos históricos fosse o nome próprio, dotado de um ou mais sobrenomes se assim estivessem registrados. Geraram-se fichas cujo primeiro campo a ser preenchido era o nome e nessa mesma ficha, mais dados que se puderam obter. A ficha nominal de entrada da base de dados ficou sendo uma espécie de resumo da vida dessas pessoas. Nome, data e local de nascimento, nome dos pais, do cônjuge, dos sogros. Informações que puderam ser coletadas sobre suas atividades profissionais, carreira militar, bens e posses, estatuto social de livre, escravo, índio, pardo ou outros que por ventura surgissem, também constam nessa ficha de entrada. Como por vezes os dados com informações complementares procediam de fontes outras que não os registros batismais ou

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mesmo eram advindas de fontes secundárias, dois campos do tipo memorando foram criados, um para que fossem colocadas as fontes de onde tais dados procediam e outro para dados coletados nessas fontes acerca do agente social em questão ou aos que a ele estavam relacionados. O primeiro, portanto, referente aos dados das próprias fontes, fossem elas primárias ou secundárias, o segunda para dados coletados. Um terceiro campo do tipo memorando teve de ser acrescido a posteriori já que houve a necessidade de colocação de outro tipo de observação, bem mais subjetivo e que guardassem impressões, “desconfianças” e observações do pesquisador. Foi peculiar na metodologia empregada a necessidade de atualização dos dados das fichas de todos os envolvidos nos eventos registrados. Melhor dizendo, ainda que estejam sendo coletadas dos registros batismais as informações sobre crianças pertencentes a famílias nucleares – pai, mãe e as crianças que se batizam – todos os dados extraídos relativos a outros envolvidos no evento e constantes destes registros são também transferidos para as fichas correlacionadas – avós, padrinhos, esposos ou pais de padrinhos e madrinhas. Essa opção faz com que o preenchimento dos campos das fichas, assim como a transferência de dados de um único registro de batismo movimentasse em torno de três a cinco fichas nominais. Acrescentar mais um titular de ficha nominal podia levar a modificações nas fichas já existentes de outros agentes sociais. De certa forma, esse modo de trabalho gerou uma base de dados que é um verdadeiro manto de Penélope, já que a cada nova informação, fichas que se tinham por concluídas foram e ainda estão sendo alteradas. Uma segunda base de dados, associada a esta e vinculada pelo nome do pai da criança, foi gerada para comportar apenas os batismos, já que as fichas de entrada de dados não estão reservadas a nenhuma sorte de dados em especial e servem como um índice ou um resumo de tudo o que se tem sobre os sujeitos que as nominam. Tome-se o exemplo

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dos registros batismais de filhos de Antônio José de Vargas, cujas informações tomou-se, para efeitos de ilustração aqui, da obra de Jacottet & Minetti. “ANTÔNIO JOSÉ DE BARGES (o correto é Vargas). * e b. na freg. da Praia do Senhor Santo Cristo da Ilha do Faial, fo leg. de Domingos Dutra e Francisca Dutra, c/c MARIA JOSEFA, * e b. na freg. de Sta. Bárbara da Ilha Terceira, fa leg. de Manuel Machado Neto e Maria das Candeias, pais de: F1. Manuel, * 20.11.1754, b. 29.11.1754, fl. 35, Pad: Manuel de Souza Torino e Maria Coelho. Livro 3 F2. Maria, * 27.06.1757, b. 41.07.1757, fl. 23. Pad: Marçal de Lima Veiga e Gertrudes Pais de Araújo. Livro 4 F3. José, *03.01.1760, b. 02.02.1760, fl. 23v. Pad: Antônio José Coimbra de Andrade e Ana Maria Pais, fa solt. de Domingos de Lima. F4. Manuel, * 15.08/1762, b. 5/09/1762, Pad: não registra.” (Jaccottet & Minetti, 2001 45-46)

Exceto para casos de batismo emergencial, além do nome da criança, aparecem os nomes de seus pais e padrinhos. O vigário Manuel Francisco da Silva, pároco de Rio Grande, geralmente produziu assentos das atas de batismo com muitos mais dados do que determinavam as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Manuel Francisco da Silva com muita freqüência acrescia o nome dos avós e, em menor medida, o nome dos genitores ou cônjuges de padrinhos e madrinhas. Abaixo, a ficha nominal de Antônio Jose de Vargas:

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Ilustração 5 – Ficha nominal de Antônio José de Vargas

E, a seguir, a ficha de dados de batismo de uma das crianças e as fichas correlatas nesse batismo, que foram alteradas em função da modificação feita na ficha de Antônio José de Vargas. Tomou- se para tanto o filho mais velho de Antônio José de Vargas, o menino Manuel, afilhado de Manuel de Souza Torino e sua esposa, Maria Coelho, tendo, esse caso ainda o interessante aspecto de padrinho e afilhado compartilharem do mesmo prenome.

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Ilustração 6 – Ficha do registro batismal de Manuel, filho de Antônio José de Vargas

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Ilustração 7 – Ficha nominal de Manuel de Souza Torino, padrinho de Manuel, filho de Antônio José de Vargas

A metodologia de aglutinação de dados que foi desenvolvida ao longo do trabalho com essas fichas revelou-se importante ferramenta, apoio para a resposta de muitas das questões levantadas e, ao mesmo tempo em que essas questões iam ficando mais específicas e precisas, foram percebidos problemas na mesma. O primeiro deles, existente

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desde o início, persistiu durante toda a pesquisa: a forte presença de homônimos nessa sociedade. Solucionou-se temporariamente com o acréscimo de um indicador numérico ao final preenchimento do campo “nome” e com a definição da sorte de dados que ali iriam, fazendo com que fossem recusadas duas fichas com mesma titularidade. Assim, mesmo que se tente criar ficha com o nome de um titular de ficha já existente, a mesma não é salva, fazendo com que se aglutinem os dados de ambas em uma única, se for o caso de criação de uma segunda ficha para o mesmo agente ou que se adicione um indicador numérico nos casos em que não houve a identificação positiva entre dois sujeitos de mesmo nome. Não havendo essa identificação, não significa que não possam ser a mesma pessoa. Antes incorrer na incerteza quanto à identificação do que no risco de, por não considerar essa incerteza, incorrer no erro de dar como sendo o mesmo sujeito dois agentes sociais distintos. O que mais comumente aconteceu foi, por não se dispor de elementos suficientes para a identificação positiva nos dois ou mais documentos em que um nome está grafado, faltarem dados que permitissem essa identificação. Citam-se como exemplo de dados complementares que auxiliam na redução da incerteza o nome do cônjuge ou dos pais, uma data em especial, a associação a algum lugar de origem. Essa última a menos precisa de todas, já que não apenas em Rio Grande existiam homônimos: eles também eram comuns nos locais de origens dessas populações. Verificou-se também a atribuição de mais de um local de origem para a mesma pessoa e o fato de serem, às vezes citada a freguesia de origem e em outro o bispado ou cidade, não possibilitando grande fiabilidade a essa sorte de informações. Entretanto, o tipo de solução que foi utilizada para esse problema mais se assemelha a um curativo colocado sobre uma ferida que foi exposta e não é, nem de longe, a sua cura. Pode-se dizer que foi feito um diagnóstico desse problema e tentou-se, para fins

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de continuidade da pesquisa, uma solução emergencial. A cura definitiva ainda não tem prazo para ocorrer e, talvez, nem possa ocorrer. Para transformar esse paliativo em alguma sorte de solução, há a necessidade de refinamento do método de cruzamento de registros nominais para além do que aqui foi empregado e que, encontrando mais elementos nessa sociedade, possam levar à identificação positiva entre agentes sociais com os nomes grafados de forma semelhante nos diferentes documentos e registros existentes nessa localidade. Também é preocupação, para essa melhoria no método perceber, as variações que os nomes sofreram ao longo do tempo, com fenômenos tais como o descarte de um prenome ou sobrenome e adoção de outro ou mesmo o câmbio completo da desinência do sujeito. Essa mudança de nomes e sobrenomes pode aparecer na documentação de maneira abrupta ou progressiva ou ainda como duas formas de denominar-se concomitantes até que uma seja adotada em definitivo pelo agente social ou não, podendo continuar nesse vai-evem de nomes próprios ad infinitum. O refinamento do método e a busca por ferramentas metodológicas que reduzam a margem de incerteza em identificações são tarefas que já tiveram seu início e terão continuidade para além do encerramento desta etapa da pesquisa que ora se apresenta. Outro problema que teve que ser resolvido foi quem seria titular de fichas nominais, problema que, também, ainda não está completamente resolvido. Esse é decorrente do método, ou antes, da confrontação de métodos que se utilizam em história e de indefinições bastante justificadas quando se está construindo um objeto para estudo. Exemplificando de forma mais prática, Maria Luiza Bertulini Queiroz (1992) produziu seu estudo a partir do método criado por Louis Henry e Michel Fleury para a reconstituição de famílias (Henry & Fleury, 1965). Pois bem, chegou à constatação da existência de um pouco mais que setecentas famílias não escravas – ou livres, como preferiu chamar a

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autora – vivendo na localidade por volta do ano de 1763, quando foram interrompidos os registros batismais em função da chegada abrupta dos soldados espanhóis. Destas famílias, Queiroz diz que em torno de quinhentas e cinqüenta e cinco se formaram nessa paróquia (Queiroz, 1992: p. 70). O número de setecentas famílias, entretanto, não é absoluto ou único, pois depende do que é considerado família tanto pelos próprios agentes sociais como pelo pesquisador que os estuda. Segundo Queiroz e os fundadores do método por ela adotado, a família por ela estudada compreende pai mãe e seus filhos ou o que hoje chamamos de família nuclear. Considerando que, pela documentação vista, esse tipo de família poderia ser dito como um casal e seus filhos. Esse modelo de família, causa alguns problemas quando se pretende analisar o continuum de relações que muitas vezes nascem internos a ela e se expandem para o restante da sociedade, como no caso dos parentescos fictícios ou rituais. Impossível para esta pesquisa que se apresenta agora desconsiderar esse tipo de parentesco fictício. Sendo os registros batismais a porta pela qual se quer adentrar às relações sociais perceptíveis na localidade, há que se ter por certo que o compadrio, um tipo de relação subjacente ao ato batismal, é uma das formas de parentesco rituais das mais notáveis, mais utilizadas e conhecidas nas sociedades cristãs. O comportamento das famílias à pia batismal, os dicionários, a literatura do direito e da filosofia da época e mesmo alguns documentos oficiais dão a entender que a família que existia a esse tempo não se restringia a esses laços estreitos de consangüinidade e nem mesmo aos parentescos afins ou políticos. A família da época, parece muito mais fundada na idéia do oikos grego, do qual participavam pessoas que viviam sob o mando e proteção de um mesmo senhor. Essa idéia pode ser muito mais razoável para a sua análise que aqui se desenvolverá do que na idéia de uma família nuclear, formada por um casal e seus rebentos. Assim, o que é considerado

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uma família no trabalho demográfico de Queiroz, para este que ora se apresenta, pode ser também uma família assim como pode ser parte de uma família. Ainda não foi dado a estabelecer claros limites de pertencimento às famílias extensas das quais se percebeu a existência ao longo desse estudo. Se para a pesquisa de Queiroz é válido trabalhar com o número de pouco mais de setecentas famílias livres existentes na localidade até o ano de 1763, para este vale apenas como uma referência ou uma estimativa. Foi impossível para esta estudiosa da demografia chegar a uma avaliação mais precisa até mesmo do número de habitantes da localidade. Mapear as relações sociais que indicam pertencimento à uma família ou a um grupo familiar não apenas demandaria precisões numéricas. Demandaria também a possibilidade de mapeamento dessas relações em outras instâncias da vida social da Vila. Ao que tudo indica, os critérios para pertencimento a uma família do tipo extenso ou não-nuclear variavam, não havendo regras rígidas para a inclusão ou exclusão de membros. Parece existir, isso sim, acordos tácitos de mútua aceitação – espontâneas ou coagidas – respeito e concordância com as hierarquias e posições internas a essas famílias. Fica a definição de sua abrangência, seus limites e fronteiras não como uma “coisa” estática, mas dependente das relações estabelecidas entre seus membros. São limites e fronteiras tênues e nem sempre perceptíveis, mas que, até que se possa chegar a definições mais claras acerca das composições das mesmas, ainda assim enriqueceram a análise por mostrar que no interior de uma dessas unidades havia pessoas de diferentes estatutos sociais e diferentes posições dentro delas. Havia, portanto, também internos a essas famílias, tensões e conflitos de interesses que tiveram que ser administrados, combatidos, elididos ou dissimulados para que essa estrutura familiar se preservasse, assim como também se preservasse a própria existência dessas famílias.

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Tira-se de cena, portanto uma definição rígida de família como sendo composta de um casal e sua prole e passa-se a tratá-la de um modo mais dinâmico, dotada de movimento, pois qualquer definição que venha a delimitá-la, não pode, doravante, prescindir do termo “relação”. Uma família na Vila do Rio Grande do século XVIII era um conjunto de relações, dos quais algumas puderam ser percebidas e analisadas a partir dos registros batismais existentes para a localidade. Sendo relação algo que não é estático e é mutável, também as famílias desse período de modo geral e as que aqui serão apresentadas para a análise, podem apresentar-se com algumas variações e nuanças, devido à correlação das forças, de interesses e de sub-grupos que compunham essas relações, bem como em resposta aos ambientes externos a ela. Se por um lado se abdica da idéia de família nuclear para tentar entender as relações inter e intra familiares, por outro a família patriarcal que Gilberto Freyre descreve e analisa em sua obra Casa Grande & Senzala (Freyre, 2000) também é insatisfatória para a explicação de fenômenos que se divisam nessa sociedade a partir dos registros batismais. Sem entrar em discussão pormenorizada do modelo de família exposto por Freyre, a grande discordância com relação a ele é despolitização das relações internas a ela. A submissão constante e necessária de todos os membros a um chefe com poderes senhoriais nesse modelo de família acaba por encobrir a agência desses membros na vida cotidiana. Também acaba por reificar poder e família. De relação que é o primeiro e de conjunto relações que se compõe a segunda, passam a uma “coisa que se têm ou não”, no caso do primeiro ou “algo ao qual se pertence ou não”, no caso da segunda. O estudo dos compadrios na Vila do Rio Grande, cujos resultados obtidos até o presente são mostrados aqui, foi importante para a percepção da existência de relações que são chave para a compreensão da outorga de poder a alguns setores sociais feita por outros. São uma das fonte de poder nessa sociedade e ao mesmo tempo são limitadores desse

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poder, não permitindo o uso despótico e tirânico do mesmo. Se formação das família aparece na literatura quase que como um processo natural e inerente a praticamente todas as sociedades que existem sobre a terra, a formação de parentescos fictícios, geralmente voluntários, não podem ser vistos de outro modo que não criações dessas sociedades e necessariamente com funções exercidas nela. Sejam essas em atenção às necessidades da crença coletiva, no caso de Rio Grande, em atenção às necessidades espirituais dos cristãos, sejam em atenção às necessidades de criar vínculos e incluir-se numa cadeia de reciprocidade que perpassava toda a sociedade, agindo como uma força centrípeta que ligava e unia setores com interesses distintos e que sem laços e recursos dessa espécie poderiam tender a posições mais agressivas em defesa de seus interesses. As estratégias associadas a formação de família foram compostas por homens e mulheres que sacralizaram laços mundanos através do através do rito do batismo tornandose irmãos e irmãs espirituais, com deveres e direitos semelhantes aos da família carnal. Segundo a literatura antropológica acerca deste tema, eram laços semelhantes, todavia superiores. Os carnais e afins, por pertencerem ao mundo dos homens eram inferiores aos que se davam na esfera espiritual, tendo Deus Pai e a Santa Madre Igreja como participantes desse ato de irmanamento que transpunha os limites da vida e da morte, permanecendo válidos até o Dia de Juízo. O patriarca todo poderoso, ao que tudo indica, dá lugar a um líder político que não pode prescindir de seus apoiadores, tendo que fazer concessões a seus subalternos para que o poder, essa relação existente entre quem detém o mando e quem delega o mando, possa continuar fluindo. Sendo a família, na visão dos filósofos que davam sustento aos teóricos dessa sociedade, a menor porção da sociedade que tem em si as relações que a estruturam, a despolitização dessas relações implicam também em na ausência ou ao menos na diminuição dos aspectos políticos das relações entre famílias de estatuto social equiparado.

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Se as relações internas à família nesse modelo de família patriarcal quedam despolitizadas, ocorre o mesmo com a sociedade. Existindo nela senhores que tudo podem, as pessoas comuns também se relegam a seu lugar de submissão, não participando do jogo político da localidade. Nisso o analisado aqui se diferencia. Ao contrário desse modelo “préfabricado”, o que se verá ao longo deste, é que construir alianças com os setores subalternos era ciência para poucos. Mais restrito ainda o número de pessoas e famílias encontradas que sabiam como alimentá-las, reiterá-las, estendê-las para além do dia seguinte, a despeito das mudanças conjunturais. Assim, para as famílias que foram analisadas nesse estudo, buscou-se ver das práticas das pessoas com parentesco político e afim e ainda de outras que pudessem estar associadas a esses núcleos familiares em suas ações e relações tecidas à pia batismal, para ver se essas se incluíam pela similaridade das práticas e direcionamento de suas relações, no núcleo maior que estava sendo estudado. Os papéis da mulher e filhos, dos agregados e da escravaria que se puderam observar, se comparados com o modelo patriarcal usual, são distintos dele. As mulheres agiam com bastante desenvoltura nos ritos sagrados do compadrio e eram, ao menos nas famílias de elite, as responsáveis pela captação de um grande número de compadres e afilhados, na maioria das vezes, extrapolando a popularidade dos ricos e poderosos maridos. Os compadrios que se construíram para os filhos, muitas vezes crianças ditas inocentes, também demonstraram ter função de consecução do projeto familiar. Não dar-lhes o devido valor poderia representar fracasso na consecução de projetos familiares tais como futuras alianças matrimoniais. As relações tecidas pelos subalternos das unidades domésticas, os escravos, os forros, os agregados, traziam outra sorte de aliados para essas famílias, ao mesmo tempo que favoreciam redes de sociabilização desses setores subalternos, formados também como famílias espirituais que geravam coesão e aliança. Estendiam o alcance da família de seus senhores, por um

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lado agindo como membros de uma família hierarquizada, por outro teciam suas próprias relações que, por sua vez, lhes geravam aliados que poderiam ser vistos como seus parentes espirituais e apoiadores. Eram, portanto, manifestações de que não estavam isolados e que as agressões feitas a um poderiam ser entendidas como uma afronta feita ao grupo. As famílias e a própria sociedade se construíram, portanto, sobre uma urdidura tensa como as cordas de um violino, o que leva a acreditar que não eram apenas a infância e memórias compartilhadas por senhores e escravos que os uniam, nem apenas o chicote ou o receio dele que mantinha a estabilidade e a paz social. Antes, num complexo jogo de ações e respostas, cada ato deveria ser pensado antes de ser posto em prática, para que o retorno dado por essa urdidura tensa não fosse o seu rompimento sob forma de agressividade. Para distinguir a família como se percebeu na Vila do Rio Grande da família patriarcal delineada por Gilberto Freyre, optou-se por chamá-la, na falta de termo melhor, de família corporativa já que seus principais aspectos se enquadram no paradigma corporativo que vigia nas sociedades de Antigo Regime. Desse modo, puderam ser vistos, através das relações sociais estabelecidas pelas famílias de elite ou de seus membros, também uma parcela daqueles setores que compunham a majoritariamente a sociedade: soldados de baixa patente, camponeses, escravos, agregados, etc. Ou seja, o que aqui será mostrado é a ponta de um grande iceberg e espera-se que este estudo venha a ter utilidade nas pesquisas de quem mais se aventurar por esses caminhos, bem como contribua na discussão acerca dos modelos de família possíveis no Estado do Brasil dos tempos coloniais. A forma de apresentação A organização desse texto que apresenta resultados da pesquisa de mais de quatro anos – mais de seis, se considerado que a coleta de dados para a base Gentes se iniciou em fins de 1999 – não é muito convencional e foi fruto de uma escolha que foi se depurando

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ao longo desses anos. Optou-se por estudar algumas das estratégias sociais e familiares atinentes a essas famílias de elite e que se espraiavam para outras famílias de estatuto social inferior, principalmente pelas relações que entre umas e outras se estabeleciam. Cada um dos capítulos abrange uma temática que está interligada às colocadas nos outros capítulos. Desse modo, cada um tem vida própria, com início, meio e fim, mas que, ao mesmo tempo, está intimamente vinculado aos outros capítulos temáticos que compõe o texto completo. Por vezes algumas questões já ditas em outros capítulos tiveram de ser retomadas, para que a compreensão de cada um, como uma unidade em si, não ficasse prejudicada. Nesses casos, geralmente serão acrescidas outras análises ou interpretações de fenômenos que podem ser vistos em separado mas que fazem parte do conjunto de relações observadas na Vila. Tem-se, entretanto, grande exceção no primeiro capítulo, no qual se pretende um panorama do que havia e do que não havia no território onde a Vila foi fundada, antes de isso acontecer. Também foi opção não apresentar uma história cronológica e factual da própria Vila. Serve de resumo dessa história o breve guia que se colocou nesta Introdução. A história da Vila de Rio Grande pode ser conhecido através de trabalhos outros que enfatizam outros aspectos, tais como as questões militares e diplomáticas. Eis alguns deles: A Dominação Espanhola no Rio Grande do Sul (1763-1777) (Monteiro, 1979); O Brigadeiro José da Silva Paes e a Fundação do Rio Grande (Fortes, 1980); Ancoradouro da Expiação - o porto do Rio Grande de São Pedro nos Quadros da Expansão Colonial Luso-Espanhola Rio Grande (Freitas, 1999); e os já citados trabalhos em história demográfica de Maria Luiza Bertulini Queiroz (1985; 1987; 1992). O segundo capítulo existe em função de problemas encontrados quando do uso das técnicas de conexão de registros nominais em confronto com a forte presença de homônimos nos territórios lusos. O que era um complicador e um empecilho para a

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continuidade da pesquisa tornou-se problema historiográfico e como tal foi discutido nesse capítulo. Os usos e o repasse de nomes dentro dessa sociedade demonstrou ser também uma das estratégias usadas para a família se constituir como tal. A utilização de nomes e sobrenomes e a transmissão dos mesmos poderia facultar ou dificultar acesso a recursos existentes na região e a sociedade. Os habitantes da Vila do Rio Grande construíram seus nomes, destruíram os nomes de outros, repassaram a seus descendentes ou parentes espirituais, negaram o repasse a quem destoava dos projetos e das características familiares. O uso dos homônimos gerava laços mais profundos entre as pessoas que os compartilhavam. Na tentativa de ampliar o horizonte para além da Vila de Rio Grande, nesse capítulo foram buscados também casos para além de sua jurisdição ou que fugiam ao recorte cronológico proposto inicialmente. O terceiro capítulo trata da construção de uma “identidade” de grupo por parte dos migrantes que vieram dos Açores. Trazidos em grandes levas de quase todas as ilhas do Arquipélago dos Açores, por motivos diversos, dentre os quais gerar formas de garantir acesso a recursos naturais e sociais, essas famílias que tinham não apenas uma origem geográfica em comum, mas principalmente origens sociais e expectativas de futuro em comum, engendraram meios para a manutenção de suas vidas e meios de sobrevivência na nova realidade a ser vivida do outro lado do oceano. Nesse capítulo, usando da comparação com o caso do Estado do Grão-Pará, que na mesma época também recebeu populações de ilhéus em número semelhante, busca-se saber porque foi construída uma identidade de “casais de Sua Majestade” ou de gente “das Ilhas” no Continente do Rio Grande de São Pedro ao passo que decorridos pouco mais de cinqüenta anos da migração para o Pará, pouquíssimos ilhéus lá se identificavam como tal. A comparação desses dois casos traz à tona aspectos que cercam a formação de identidades em povoados coloniais e permitem historicizar esses processos, de tal modo que poderá ser comparado, posteriormente, com

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outros casos de construção de identidades étnicas nesta ou em outras regiões. O quarto capítulo trata de situar a importância das relações de compadrio no seio da sociedade cristã. Recupera um pouco dessa tradição e das suas modificações ao longo do tempo. Nele se utiliza largamente o auxílio da literatura antropológica para perceber que sorte de necessidades sociais e que funções tinham os compadrios nessa sociedade. Há a apresentação e discussão da produção antropológica e historiográfica sobre os compadrios no mundo e no Brasil. Através de um peculiar registro de batismo de uma menina nascida escrava e tornada forra, busca-se desenhar o pano de fundo sobre os quais o batismo e as relações a ele subjacentes foram se produzindo na Vila do Rio Grande. O direito, a religião, a economia e a cultura se enredam em uma agradável trama de aspectos que rodeiam essas relações que, sendo sacralizadas, também apresentam aspectos funcionais, imediatos e muito concretos para o tecido social. Por mais distante que possa parecer a recém fundada Vila do Rio Grande do mundo intelectual europeu, algumas das questões muito importantes para os filósofos da Segunda Escolástica e teólogos ibéricos dão mostras de serem conhecidas dos habitantes destes confins do Império. Mostram-se os compadrios de uma família pertencente à elite do Continente do Rio Grande de São Pedro para evidenciar alguns desses fenômenos que são ao mesmo tempo sociais, religiosos, econômicos, políticos e culturais. O capítulo seguinte apresenta um conjunto de famílias de elite e seus compadres, mergulhando no material empírico proveniente dos registros batismais da Vila do Rio Grande. Tenta-se perceber nas relações dessas famílias a formação das redes de relacionamentos que passavam pela pia batismal ou que nela recebiam algum modo de registro formal e que colocavam um patrimônio imaterial construído na vivência da Vila, ainda que algumas relações pudessem preceder a chegada na localidade. Nesse capítulo tenta-se ver a qualidade das relações de compadrio dos escravos da algumas dessas

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famílias e, comparando as malhas que o setor livre das unidades domésticas e os escravos dessas unidades teceram, buscam-se dois objetivos. O primeiro tenta ver as semelhanças e diferenças nos padrões de compadrio e os benefícios possíveis no estabelecimento dessas relações para ambos os setores no continuum de relações pessoais que o batismo podia estabelecer entre os setores situados em diferentes posições hierárquicas podiam obter. O segundo visa, através da análise da família extensa e, nessa incluídos os escravos, ver da possibilidade da construção de parentela fictícia a dar significado às vidas que perderam suas referências quando foram tiradas abruptamente de seu ambiente social e trazidos à força para a América onde viveram sob o jugo da escravidão. Alguns historiadores e antropólogos tentam, através de analogias entre os ritos que criam parentescos fictícios nas regiões africanas de onde foram tirados e na América católica para onde foram trazidos, ver da possibilidade de reverter a ruptura da vida social. Nesse capítulo, portanto, tenta-se mostrar algumas possibilidades passíveis de ocorrer na Vila do Rio Grande. A seguir, há a análise de casos recorrentes e instigantes de atas de batismo que registram crianças de tenra idade como padrinhos de outras crianças. Fossem apenas casos esporádicos, ficariam no rol das curiosidades. Entretanto, era recorrente nas boas famílias da Vila do Rio Grande o início das “carreiras” como padrinhos e madrinhas antes mesmo de terem feito essas crianças a sua primeira comunhão. Eram inocentes batizando inocentes. A eles se juntam outros que começaram a dar sua presença na pia batismal um pouco mais velhos, mas ainda assim abaixo da idade exigida pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (Da Vide, 1707). Esses casos clamavam por uma explicação e através deles se viu a importância dessas relações que foram abençoadas por Deus Pai e pela Santa Madre Igreja como sementes para um projeto de futuro. Através dos atos de batismo as famílias formavam para seus filhos um pecúlio, um dote imaterial no qual um tanto do prestígio social de seus pais e mães lhes eram repassados sob a forma de

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compadrio. Caberia a eles, em idade adulta, conduzirem suas vidas de tal modo que esse bem não fosse desperdiçado em atitudes vãs e sim que fosse capitalizado em novas e futuras relações. Também esses compadrios na tenra idade induziram a análise de relações de compadrio entre as famílias de diferentes estatutos sociais, vendo nelas uma das fontes de poder político na localidade e uma das formas de cerceamento do uso deste poder. Os séqüitos de compadres que cada família possuía cativavam pessoas nos grilhões da reciprocidade, numa estranha mas plausível lógica das dádivas presentes na economia do dom que ajudavam a estruturar e a dar ordem a esta sociedade. No último capítulo buscou-se recuperar as conexões entre os capítulos apresentados anteriormente numa melhor apreciação do que poderiam ser famílias e algumas de suas estratégias para a vida e a sobrevida nessa localidade de fronteira. Foram feitos neles testes com a aplicação da metodologia inerente ao estudo de redes sociais, destacando-se as representações gráficas dessas redes de relacionamentos. Usou-se como piloto para esse teste uma das famílias da elite, incluindo seus escravos e compadres externos a ela. Os resultados foram bastante interessantes e alguns muito surpreendentes. Tais resultados levam a uma reflexão que reavalie o papel da mulher nessas famílias bem como se pensem os critérios que levam à inclusão ou a exclusão de pessoas nessas malhas. Também desses testes veio a certeza de que a conexão de registros nominais, assim como foi trabalhada, poucos frutos ainda tem a dar, a menos que se aprimorem os recursos que permitem a redução da margem de dúvidas na identificação positiva dos agentes sociais. O que era para ser um capítulo conclusivo é o prenúncio de novas pesquisas nesse sentido. Como um aviso aos leitores, alerta-se que o trabalho em grande medida, foi feito com experimentos sobre as fontes, sobre as teorias e sobre as metodologias que podem e devem ser utilizadas por historiadores. Seu conjunto deve, portanto, ser entendido exatamente assim: um grande experimento que pode vir a contribuir no enriquecimento de

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estudos semelhantes e que clama por novas pesquisas que permitam a comparação dos resultados. Dada essa configuração atípica do texto aqui apresentado, cada capítulo respondendo por temas específicos que têm por traço comum as famílias e suas relações demandou, além da bibliografia geral, um tanto de referências bibliográficas que são próprias de cada um. Assim, para que a leitura ficasse mais fluida, optou-se por colocar as fontes utilizadas, bem como as referências bibliográficas de cada capítulo ao seu final, não escusando a relação completa ao final do volume. Assim, sem muito mais a colocar aqui, passa-se ao produto da investigação.

Abreviações usadas nesta Introdução: ADPRG – Arquivo da Diocese Pastoral de Rio Grande LBat – Livro de Batismo LObt – Livro de Óbitos RG – Rio Grande

Fontes e referências usadas nessa Introdução Fontes Primárias Manuscritas ARQUIVO DA DIOCESE PASTORAL DO RIO GRANDE. Livros 1o, 2o, 3o e 4o, de Batismos da Vila do Rio Grande 1738-1753. ARQUIVO DA DIOCESE PASTORAL DO RIO GRANDE. Livro 1o de Óbitos de Rio Grande. 1738-1763. ARQUIVO DA DIOCESE PASTORAL DO RIO GRANDE. Livro 1o de Batismos do Estreito. 1763-1776.

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Capítulo I O que havia em São Pedro do Rio Grande quando não havia nada? Os antecedentes da ocupação lusa

I. Quando não havia nada O território onde em 1737 foi erigido o Forte de Jesus, Maria e José, fortificação militar que teve papel de catalisador dos intentos de povoamento posteriores, era ermo ao limiar do século XVIII. Saindo da povoação da Colônia se buscará o caminho do norte, que por vinte e três dias se seguirá, e andarão dois a dois, com as espingardas sempre na mão e prontas por causa das onças, passando a noite em quartos e cuidadosa vigia com fogo ao pé. (Filgueira, 1973).

Este primeiro parágrafo do Roteiro por onde se deve governar quem sair por terra da colônia do Sacramento pra o Rio de Janeiro ou Vila de Santos, datado de 1703, traz alerta para mais viajantes que por ali passassem, dados por quem fez este caminho e só encontrou dificuldades e isolamento (Filgueira, 1973). De Sacramento até a Serra de Maldonado, vinte e três dias. Oito dias para a passagem da Serra de Maldonado, na qual não era difícil a caravana perder-se, depreende-se da orientação dada por Filgueira: (...) e se nos ditos dias se não avistar a costa ou a lagoa de Castilhos, se seguirá o caminho de Leste a buscar a dita costa; tanto que se der com a lagoa de Castilhos se andará à roda dela, até se tornar a tomar e buscar e meter na praia que nunca mais se largará até dar em povoado. Em todo o caminho é conveniente não penetrar o mato mais do que para apanhar caça, e pela praia se pesca na roda da maré (...) Aqui em

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Castilhos se faça cada um cinco ou seis braças de pesca para amarrar às mochilas e jangadas, fazendo provimento de carne de vaca, porque daí para diante não a há. De Castilhos a até o Rio Grande se gastam quinze dias (...) (Filgueira, 1973).

O primeiro povoado encontrado após a saída da Colônia do Sacramento foi a Laguna, onde chegou desta maneira: (...) na primeira ponta de pedra que se avistar junto da praia, a que chamam os morros de Santa Marta, se entrará para dentro, e pelo rasto do gado se vai dar ao povoado e logo se acham cavalos e ovelhas do Capitão Domingos de Brito, que é o povoador desta terra. (Filgueira, 1973)

O resumo da viagem, medido em dias de jornada, foi dado desta forma: Nesta viagem gastei da Colônia até Castilhos vinte e quatro dias, destes até o Rio Grande dezesseis, deste ao povoado trinta, que por todos são setenta, todos de jornada, e os que faltam para os quatro meses, que me demorei, estivemos parados em ranchos pelas muitas chuvas que nos impediram o seguir jornada. (Filgueira, 1973)

Comenta, ainda, Filgueira, antes do término de suas recomendações: Advirto que o rio Grande à vista do que se diz dele é uma droga; porque nos assim que a ele chegamos, estávamos vendo os lobos sair para a praia e tornarem a meter-se no rio. (Filgueira, 1973)

Em nenhum momento de seu relato, no entanto, Filgueira alerta para problemas causados pela presença humana. Não há relato de paradas em ranchos habitados, não foi anotado nenhum encontro com gente de qualquer origem ou praticante de qualquer atividade. Não foram avistados índios. Nem suas fogueiras, casas, acampamentos ou quaisquer vestígios de sua presença. Ermas, desabitadas. Assim eram, então, essas terras litorâneas que, em pouco mais de trinta e cinco anos desde a viagem de Domingos da Filgueira, estariam pulsando com a chegada de pessoas de diversas partes da América Lusa, da América Hispânica, da Península Ibérica, de outros locais da Europa, da África e, curiosamente, até um “indiático chino natural da Índia” (ADPRG - Registro de batismo de Justina 03/05/1760 e de Leonor, 04/04/1763 -

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4LBat-RG, 1759-1763). Apesar da ausência de presença humana, o território tinha lá seus atrativos, tanto para os autóctones como para os peninsulares. Os indígenas, sazonalmente, deslocavam-se desde o interior até o litoral. Em grupos, providenciavam alimento a partir da caça e da pesca no mar e nas muitas lagoas e banhados existentes nas proximidades das duas grandes lagoas dos Patos e Mirim. Se Domingos da Filgueira e seus companheiros de viagem não encontraram europeus ou seus descendentes, não quer dizer que a região lhes era por completo desconhecida ou que nela não tivessem interesse algum. Desde meados do século anterior já existiam intenções e “proprietários” lusos para o território em questão. Em 1658 Salvador Correia de Sá fez o pedido da mercê de posse de uma capitania que iria desde cinqüenta léguas ao norte da Ilha de Santa Catarina até cinqüenta léguas ao sul, compreendendo a Barra da Lagoa dos Patos, onde um dia se situaria a Vila de São Pedro do Rio Grande (Monteiro, 1979: p. 7). Alguns anos mais tarde, Correia de Sá demandou mais e obteve da Coroa lusa terras contíguas às constantes da primeira solicitação. O limite sul da grande capitania ficaria junto à margem setentrional do Rio da Prata e sua embocadura, incluindo o local onde posteriormente foi fundada a Colônia do Sacramento (Abreu, 1908, nota 10: pp. 44-47). A vasta capitania, entretanto, não teve sua ocupação com contingentes humanos efetivada sob os auspícios dos familiares de Salvador Correia de Sá. As terras compreendidas pela donataria dos Assecas, como ficou conhecida a tal capitania por ter sido legada ao seu neto, Visconde de Asseca, tiveram outros pretendentes, ainda que em porções de terras de menor tamanho. Alguns pedidos de mercê e ofertas de serviços à Sua Majestade colocavam frações dessa terra como objetivo para o povoamento. Um desses pretendentes, Manuel da Silva Jordão, solicitou as terras que margeavam a Lagoa dos Patos, motivado, por um lado, pelas possibilidades de exploração

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do território e, por outro, por problemas pessoais e familiares, dentre os quais o envolvimento em um crime de morte contra membro da nobreza da terra do Rio de Janeiro, em uma das contendas intestinas à elite local. A vítima do crime era um dos membros da família de Salvador Correia de Sá (Hameister, 2002: pp. 99-100). A grande diferença da solicitação de Manuel Jordão, feita em 1695 em relação ao pedido de Salvador Correia de Sá é que Jordão comprometia-se a proceder a ocupação dessas terras, caso lhe fossem dados os auxílios solicitados à Coroa, quais sejam: (...) me ofereço para ir povoar o Rio Grande, por ter muitos filhos e muitos netos, todos para servimos a Sua Majestade, dando-se 50 casais de Índios das Aldeias e 30 solteiros das aldeias reais de São Paulo e 6000 cruzados para ajuda de custo, para o que obrigarei minha fazenda e os pagamentos de 2 engenhos; reservando e fundando esta vila que há de ser opulenta pelas razões que têm andado informação. (apud Costa e Silva, 1968: p. 31, negrito meu)

O pedido de Manuel Jordão foi indeferido pela Coroa. O parecer dado pelo Conselho Ultramarino alegava que tal avanço sobre as terras sulinas, com intenções de povoamento sistemático, poderia ser comprometedor para a frágil paz estabelecida com Espanha nos territórios meridionais (Porto, 1943, v. 1: p. 340). Note-se que a Colônia do Sacramento, fundada em 1680, foi arrasada neste mesmo ano pelos espanhóis, vizinhos da outra margem do Prata. Em 1695 a vida “normal”, por assim dizer, recém se iniciava em Sacramento. O envolvimento no assassinato dos detentores legais da grande porção de terras e com grande influência na esfera política lusitana pode ter influenciado seriamente o parecer do Conselho Ultramarino e do próprio rei, embora tal justificativa não seja citada no documento. II. Interesses dos dois lados do Oceano Atlântico se encontram onde não havia nada Salvador Correia de Sá era um grande conhecedor da Região Platina, além de

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possuidor de negócios em Buenos Aires. Nascido em 1594, no Rio de Janeiro, filho do governador Martim Correia de Sá, tinha por mãe a senhora Maria de Mendoza y Benavides, filha de fidalgos da cidade de Assunción, no Paraguai (Boxer, 1973). Sabia que, além da prata do altiplano andino, sob forma legal ou de contrabando, pelo Porto de Buenos Aires outras riquezas circulavam. Os couros, provenientes dos gados introduzidos no sul da América pelos padres jesuítas que fundaram as missões guaranis, eram mercadoria produzidas a baixos custos neste lado do oceano e de muito valor na Europa. Muitas vezes chamados de “frutos da campanha”, eram extraídos no campo, geralmente pelos indígenas guarani, minuano ou charrua, utilizados como mão-de-obra com paga em produtos coloniais ou em artefatos produzidos no Velho Mundo. Também coureadores de origem ibérica faziam a extração dos couros para colocá-los ao comércio na colônia ou exportá-los para fora da América. Curtidos ao sol, com uso da cal para sacar-lhes os pêlos e o sal a ajudar na desidratação e na conservação, eram adquiridos por comerciantes. O jesuíta Antônio Sepp, missionário que atuou na catequização dos índios das terras de Espanha nesta fronteira dos dois impérios ibéricos na América, escrevia ao século XVII sobre este lucrativo comércio: O benévolo leitor poderá calcular facilmente quantas reses se gastam aqui ao todo, quando eu só já consumo tantas, e quantas ainda ficam sobre os campos infinitos do Paraguai, para a procriação indispensável. Nossos três navios levaram 300 mil couros para a Espanha, mas não de vacas, e sim de touros mais crescidos. Aqui, um couro sai a quinze kreuzers, que vem a ser o salário para o serviço de tirálo. Na Europa, no entanto, em qualquer parte, vende-se um couro de boi como este por seis e mais reichstaler. Daí poderá o benévolo leitor mais uma vez fazer nova conta, calculando o lucro indizível que os espanhóis tiram só do couro. (Sepp, 1980)

Não foi possível estabelecer a relação de valor entre as moedas mencionadas pelo padre Antônio Sepp, mas a expressão “indizível lucro”, por si só, já diz o suficiente sobre o que poderiam ganhar os comerciantes nessa atividade de comprar couros aos índios. Mais ainda se levado em consideração o modo com que se praticava o comércio com os

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indígenas, os produtores diretos da mercadoria em questão, também relatadas pelo Pe. Sepp: [os couros] São as verdadeiras minas indígenas de ouro e prata de Sua Majestade Real. Porque, de resto, não se encontra ouro nem prata entre os índios, e, até o nome de dinheiro lhes é inteiramente desconhecido. Quando os índios compram algo dos espanhóis, fazem-no em troca de mercadorias, não passando de mero negócio de troca, distando muito e muito do verdadeiro comércio de compra e venda. E a palavra usada é só esta: Se tu me deres tantos bois e tantas vacas, dar-teei tantos e tantos côvados de tecido de linho; se me deres tua faca, dar-teei meu cavalo. Desta maneira, os índios tornam verdade o anexim usado pelas crianças européias, quando dizem "dar um cavalo por um apito", porque, na realidade, aqui um apito vale mais do que o melhor e mais lindo cavalo, por causa da superabundância de cavalos e da carência de apitos. (...) Aldeamento que não fosse capaz de criar de 3 a 4 mil cavalos de montaria seria considerado pobre. Particularmente apreciadas são as mulas, possuindo eu também um animal bem criado. Um cavalo vale, quando muito, um taler, não em dinheiro, mas em fumo, mate, agulhas, facas ou anzóis. (Sepp, 1980)

Comprar onde há abundância e vender onde há escassez. Comprar onde custa pouco e vender onde é valorizado. Essa era a essência dos negócios comerciais do século XVIII: no comércio de longa distância, fortunas se fizeram às custas do transporte de mercadorias entre os pólos produtores com um mercado local diminuto para os bens produzidos no local e mercados longínquos e vorazes, todavia carentes de certos gêneros. Segundo Braudel, (...) O comércio de longo curso cria seguramente sobrelucros: joga com preços de dois mercados afastados entre si e cujas oferta e procura, ignorando-se mutuamente, só se encontram por intervenção do intermediário. (...) O comércio de longa distância significa riscos, porém mais ainda lucros excepcionais. Freqüentemente, muito freqüentemente, é ganhar na loteria. Até o trigo, que não é uma mercadoria “régia”, digna do grande negociante, mas que passa a sê-lo em determinadas circunstâncias – caso de penúria, claro. (Braudel, 1996: p. 357)

Após fornecer dois exemplos de comércio de longa distância com circulação de mercadorias por sobre os oceanos e com mercados que se ignoram mutuamente, intermediados pelos homens do comércio marítimo, Braudel reitera:

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(...) Uma vez mais, dois mercados díspares cujos produtos se valorizam fantasticamente ao cruzar o oceano num sentido ou noutro, cobrem de ouro alguns homens, os únicos a lucrar com essas grandes diferenças de preços (Braudel, 1996: p. 357).

Os couros, extraídos anualmente aos milhares, nas vastas planícies que compreendem a Campanha Buenairense, todo o território uruguaio e se estendem até a Depressão Central, no atual estado do Rio Grande do Sul, todos os anos, eram mercadoria que se enquadrava perfeitamente no comércio caracterizado por Braudel. A demanda européia por esse produto encontrava a superabundância de gados e a grande produção de couros no sul da América como correlato. Mercadorias de baixo custo na Europa, facas e agulhas ou mesmo americanas, o fumo e a erva, produzidas por outros indígenas ou com mão-de-obra escrava. O fumo e o mate, mercadorias de baixo custo de produção, eram moedas de troca na aquisição dos animais e dos couros. Um “negócio da China” em plena América. Também no relato do Pe. Sepp vê-se a abundância de cavalos no sul da América. Salvador Correia de Sá podia não entender o significado da falta de um apito a uma criança ou a um indígena, mas era sabedor do drama de quem não tem cavalos estando em situação de guerra. Não bastassem essas suas ligações com as Índias de Espanha e a sua atuação no comércio platino, Correia de Sá comandou as operações para a expulsão dos holandeses do Reino de Angola, em 1648, ali sentiu na própria pele a falta de uma cavalaria nas campanhas militares. Segundo Luís Felipe Alencastro, Angola padecia de uma criação própria de cavalos por uma fatídica conjunção de fatores (Alencastro, 2000: p. 50). A primeira delas, relacionada às precárias condições de salubridade na região, fazia com que os cavalos viessem a sofrer de doenças e, amiúde, morressem por causa delas. Sobre a situação da cavalariça da Praia do Bispo, que teria capacidade para cem cavalos, foi dito:

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(...) mas sendo o terreno, ainda que plano, muito imediato ao monte da Matriz, as águas das chuvas rodeavam o edifício, faziam intratáveis as passagens, umedeciam as paredes; e assim a gente como os Cavalos, respiravam um ar tão danoso à saúde que secundava ao do clima (Correia, apud Santos, s.d.: p. 61)

Uma doença específica: um tipo de tripanossomo, transmitido pela mosca tsé-tsé, era especialmente letal aos eqüinos. Esta doença (...) embaraçava a criação de cavalos na área. Abaixo do Cabo da Verga (atual Conakry) ninguém comprava mais cavalos. Sinal – ontem como hoje – do início da barreira epidemiológica levantada pela tripanossomíase” (Alencastro, 2000: p. 50).

Um segundo impedimento, de acordo com Alencastro, seria parte das próprias estratégias para a conservação dos territórios angolanos sob posse lusa. A introdução de cria de cavalos colocaria aos nativos a possibilidade de obtenção desses animais. Cavalos eram fator de superioridade bélica lusa sobre os exércitos dos reinos africanos. Isso aumentaria a fragilidade militar portuguesa no Reino de Angola se os nativos angolanos pudessem constituir sua própria cavalaria a partir de matrizes roubadas aos portugueses. Assim, essas matrizes jamais foram conduzidas para o território angolano, partindo para lá apenas machos, em condições de utilização militar, para não dar azo à criação de uma cavalaria sob comando dos nativos. Roquinaldo Ferreira reitera essa idéia de conjunção de fatores a complicar a existência de cavalos em Angola. Citando documentos relativos aos embates entre os portugueses e o sucessor da rainha Ginga, entre outros, reafirma a carência desses animais, bem como caracteriza seu envio, providenciados pela Coroa lusa, como sendo irregular e mesmo deficitário (Ferreira, 2001: 374-375). Trabalhos anteriores verificaram a longeva necessidade de eqüinos nos territórios lusos na África, em especial em Angola (Simonsen, 1967; Ferreira, 2001; Hameister, 2001; Hameister, 2002). Essa necessidade gerou uma sucessão de provisões régias que

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ordenavam o embarque obrigatório de cavalos dos portos luso-americanos para essa região do globo. Até onde se pôde averiguar, os editos régios compreendem, no mínimo, o período entre 1666 e 1754 (Simonsen, 1967; Hameister, 2002). A chegada de cavalos à África era dificultada por dois grandes fatores. O primeiro, porque embarcar um número diminuto de animais em cada navio poderia não ser um bom negócio aos comerciantes de tropas que já os comercializavam para mover cargas no interior do continente americano. Ao que tudo indica, não havia interesse em enviá-los na travessia às custas dos baixos valores pagos pela Coroa e com o seu transporte sob responsabilidade e expensas dos comerciantes marítimos, também desagradados de levar consigo carga viva e frágil. O segundo, porque a travessia marítima sempre representava risco de morte, tanto para humanos como para cavalos. Nem sempre os animais chegavam vivos, ainda mais quando se encontram vistorias feitas nos portos de embarque, que acusam estarem sendo remetidos dentro das quotas de obrigatoriedade de envio de cavalos, animais doentes, mal alimentados ou sem condições de suportarem a longa viagem. Muitos animais partiram de Pernambuco para a África, mas no ano de 1731 o envio desde lá foi suspenso (Costa, 1984: p. 143), muito provavelmente em função do Caminho das Tropas, que ligava por via terrestre a Colônia do Sacramento à São Paulo. Essa grande empreitada, realizada por particulares que, agindo em interesse de seu comércio em conjunção aos interesses da Coroa, foi iniciada em 1727 e concluída no ano de 1730. A viagem inaugural do Caminho das Tropas fez chegar a São Paulo mais de 3 mil cavalgaduras conduzidas por seus proprietários empenhados em abrir picadas, fazer pontes e retificar um trajeto pré-existente (Abreu, 1908). O Caminho das Tropas foi o responsável por fazer chegar ao sudeste colonial as mulas e cavalgaduras que foram usadas no transporte de cargas no interior, abastecendo os sertões mineradores e, de lá, escoando o

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ouro. Não causa surpresa a redução do número de animais a serem enviados a partir de Pernambuco após a abertura dessa rota, seja pela quantidade de cavalos enviados do sul, atendendo uma demanda reprimida existente nas Minas e em São Paulo, seja pelos acontecimentos posteriores ao início da empreitada. Rodrigo Cesar de Menezes, governador de São Paulo que ao final da década de 1720 muito obrou em garantir que o projeto tivesse andamento, já havia deixado este governo no ano de 1730 e não mais se encontrava no Estado do Brasil. Chegou a Angola no final do ano de 1732, sendo empossado em seu governo no início de 1733. Em 1734 já havia falecido, em Luanda, possivelmente vítima dos tais “ares danosos”. Rodrigo Cesar de Menezes, membro de uma estirpe de administradores do Império Luso nas suas colônias, propiciara o fluxo de animais de uma região na qual eram abundantes para outras localidades nas quais eram escassos: Ou seja, o governador que dera início à solução dos problemas do fluxo dos animais sulinos até as regiões da Colônia que dele necessitavam, fora transferido para o pólo mais distante destas rotas possíveis aos eqüinos transportados. Ao que parece, uma vez resolvido a parte sul-americana dessa equação, Rodrigo Cesar fora designado a resolver os problemas da parte africana, provavelmente recebendo as mercês e benesses reais decorrentes do cargo de governador em Luanda, mercês estas, facilitadoras inclusive do lucrativo comércio Brasil-Angola (Hameister, 2002).

Assim, dos dois lados do oceano, regiões ditas como periféricas ou “sertões”, ligavam-se através das cavalgaduras existentes ao sul da América e da carência destas na região congo-angolana. Também na própria América portuguesa, regiões muito distanciadas entre si uniam-se pelo mesmo motivo. Quando os olhos da Coroa lusa brilharam com as faíscas de ouro descobertas nas Minas, a necessidade de meio de transporte de cargas fez-se visível. A Coroa, através de seus agentes e com o serviço de particulares agraciados com mercês e privilégios,

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providenciou a ligação terrestre entre as áreas com imensa produção de animais e as áreas dedicadas à produção do ouro ou as que proviam o abastecimento das regiões mineradoras. A Coroa lusa, assim como algumas famílias de súditos tinham de fato uma visão do mundo que extrapolava uma relação de subordinação das colônias à metrópole. Faziam o Império mover-se como um organismo vivo, no qual a ciência do que se passava em locais tão distantes e a colocação de homens com experiência de mando em diferentes situações eram algumas das chaves do seu funcionamento. O comércio de longa distância, dessa vez terrestre, tornou alguns homens ricos e despertou sentimentos de descontentamento em outros. O traçado do Caminho das Tropas, enveredando para o interior na altura da Guarda Velha de Viamão, hoje município de Santo Antônio da Patrulha, no estado do Rio Grande do Sul, colocava à margem do fluxo de animais as terras da Laguna, litoral de Catarina. As terras e os gados de Francisco de Brito Peixoto, o povoado por ele dirigido, avistados e visitados por Domingos da Filgueira ficavam muito distantes do novo traçado. O antigo Caminho do Litoral, cujo reconhecimento e povoamento rendeu mercês ao paulista de Brito Peixoto, não estava nos planos de Francisco de Souza e Faria e Cristóvão Pereira de Abreu, os “descobridores do novo caminho”. Também não estavam incluídas no roteiro outras localidades onde familiares de Brito Peixoto tinham moradia ou interesses. Nos relatos de Francisco de Souza e Faria e de Cristóvão Pereira, há passagens que assumem tom de comédia, se lidos após estes quase duzentos e oitenta anos que se passaram desde a sua escrita. As “pequenas sabotagens” promovidas pelo Capitão-mor da Laguna e os seus são hoje hilários episódios, mas representaram um autêntico drama para quem esteve empenhado na abertura das estradas e picadas nos anos em que ocorreram: “A esta diligência foram sempre opostos vários moradores das Vilas de Santos, Parnaguá, e Curitiba, e da mesma sorte os da Vila de Laguna, e de Sta. Catarina, (...), receosos de que com a

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abertura do novo caminho perderiam as suas liberdades, o faziam impossível; (...). Neste tempo me achava eu na nova Colônia do Sacramento, e tendo esta notícia, me pus logo a caminho a ver o estado em que se achava esta diligência, e chegando à Vila da Laguna achei ao dito Francisco de Souza com alguma gente, mas quase impossibilitado a dar execução ao que se lhe ordenava, porque o Capitão-mor da dita Vila, ou pelos motivos já ditos, ou por contemplação dos moradores da Vila de Santos, Parnaguá, e Curitiba, com quem era aparentado, simuladamente lhe fazia impossível, principalmente na gente, porque tanto se lhe alistava de dia como lhe fugia de noite; e vendo-o eu neste estado, cuidei em aplicar-lhe o remédio, fazendo-o primeiro congraçar o dito Francisco de Souza, com o Capitão-mor a quem não faltava, e tive a fortuna de que ele se pusesse a caminho com boa ordem e a gente necessária em Fevereiro de 728. (...) Este roteiro é o mesmo, que diz trouxera consigo o Sargento-mor Francisco de Souza e Faria, que se o seguira abrindo o caminho a onde acabam as serras e não em Araranguá, nunca experimentaria em perto de três anos que gastou nele, as fomes e misérias que são notórias, verdade é que culpam nesta parte ao Capitão-mor da Laguna, que por seus particulares interesses lhe quis fazer impossível a jornada e o caminho, facilitando-lhe a entrada pela parte mais dificultosa que há para esta abertura. (Abreu, 1908: pp. 5-6 - grifos meus.)

Alguns dos filhos, filhas e genros do Capitão-mor Francisco de Brito Peixoto, poucos anos após a abertura do Caminho das Tropas, empresa da qual alguns deles participaram, transferiram sua moradia para os Campos de Viamão, situados próximos ao extremo-norte da Lagoa dos Patos e à Guarda Velha de Viamão, local do pomo da discórdia sobre o traçado da rota entre descobridores e lagunistas. Em 1735 os familiares de Francisco de Brito Peixoto estavam no Continente do Rio Grande de São Pedro, vendendo gado bovino à Coroa lusa, para atender a Colônia do Sacramento, que novamente passava por ataques espanhóis (Monteiro, 1979: p. 35).

III. Onde não havia nada, havia também os espanhóis O interesse luso por esta porção de terras que continha a barra do Rio Grande, ditas “uma droga” por Domingos da Filgueira, encontrava correlato no interesse dos espanhóis. A posse do sul da América ibérica foi alvo de constante e secular disputa entre

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Portugal e Espanha, estando a questão de seus limites – indefinidos desde o Tratado de Tordesilhas – ainda mal definidos no século XIX, fazendo com que o problema de fronteiras se estendesse do período colonial até depois das independências dos países platinos e do próprio Brasil. O Tratado de Tordesilhas de 7 de Junho de 1494 dirimia diferenças entre Portugal e Espanha no tocante às terras já descobertas e ainda por descobrir. Fazia a divisão dos novos mundos entre as duas coroas ibéricas que, virando às costas à Europa, lançaram-se ao mar: porém que eles por bem de paz e concórdia e por conservação do devido e amor que o dito senhor rei de Portugal tem com os ditos senhores rei e rainha de Castela e de Aragão, (...) A qual raia ou linha se haja de dar e dê direita, como dito é, a trezentas e setenta léguas das ilhas do Cabo Verde pera a parte do ponente, por graus ou por outra maneira como melhor e mais prestes se possa dar de maneira que não sejam mais. E que tudo o que até aqui é achado e descoberto, (...) indo pola dita parte do levante dentro da dita raia à parte do levante ou do norte ou do sul dela, tanto que não seja atravessando a dita raia; que isto seja e fique e pertença ao dito senhor rei de Portugal e a seus sucessores pera sempre jamais. E que todo o outro, assim ilhas como terra firme achadas e por achar, descobertas e por descobrir, que são ou forem achadas polos ditos senhores rei e rainha de Castela e de Aragão, etc., e per seus navios, des a dita raia dada na forma suso dita, indo por a dita parte do ponente depois de passada a dita raia pera o ponente ou ao norte ou sul dela, que tudo seja e fique e pertença aos ditos senhores rei e rainha de Castela e de Leão, etc., e a seus sucessores pera sempre jamais. (...) (BNP - Minuta do Tratado de Tordesilhas de 1494 - versão portuguesa, s.d. grifos meus)

O Tratado de Tordesilhas, acordado para diminuir as tensões entre as duas coroas no que competia às novas descobertas, continha imprecisões, verificáveis no trecho acima, que, apesar de correções em tempos posteriores, deixavam motivos para as disputas que ao final do século XVII e nos três primeiros quartéis do século XVIII tiveram grande influência sobre São Pedro do Rio Grande. O documento diz: trezentas e setenta léguas das Ilhas de Cabo Verde. Entretanto, o arquipélago de Cabo Verde possui dez ilhas e cinco ilhotas. Afinal, onde começava a

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contagem das tais trezentas e setenta léguas? No extremo ocidental da mais ocidental das ilhas? Ou começava em seu limite oriental, partindo daí, trezentas e setenta léguas na direção oeste? O documento não traz nenhuma especificação quanto a esse marco e, havendo diferença na dimensão da légua portuguesa para a légua espanhola, tampouco foi especificado no acordo entre as duas majestades ibéricas qual dos padrões seria adotado na contagem dessas imprecisas trezentas e setenta léguas contadas a partir de um ponto impreciso em uma ilha imprecisa no Arquipélago de Cabo Verde. Aliás, nem havia padrão nem instrumentos e tecnologias capazes de medir com precisão essas distâncias. Desse “pecado original” cometido no tratado que repartia as terras descobertas e por descobrir do outro lado do Atlântico decorrem pretextos às contendas de fronteira entre esses dois impérios no sul da América. Essas tornaram-se mais acirradas a partir do ano de 1680, com a fundação da Colônia do Sacramento. Tanto os reis portugueses como os espanhóis, dadas as experiências anteriores em navegação, descobrimentos e reconhecimento dos territórios aos quais chegavam, contavam com excelentes geógrafos e astrônomos ao seu serviço. Além disso, com freqüência os cultos e estudiosos padres geógrafos da Companhia de Jesus eram chamados para préstimos em demarcações ou estabelecimento de limites, informações e feitura de mapas, muitas vezes com intuito de dirimir divergências de opiniões quanto à localização de povoados ou fortificações militares. No ano de 1680, chegou às margens do Prata o recém nomeado governador do Rio de Janeiro, Dom Manuel Lobo, para a execução de sua missão secreta, com instruções entregue pelo rei ou seus representantes aos vários participantes da expedição em envelopes fechados para serem abertos durante a viagem pelo mar. Os participantes da missão não deveriam deter-se no Rio de Janeiro. Sua chegada ao Prata era de extrema urgência e de suma importância, considerando ainda que nos documentos lacrados de cada

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um dos membros da expedição existiram ordens que os demais desconheciam, com indicações de como proceder em substituição às chefias hierarquicamente estabelecidas em caso de morte ou captura. Não deveria, portanto, ser a missão interrompida, já que nem mesmo a morte dos líderes seria empecilho para sua continuidade. Tudo estava previsto e ordenado nas instruções secretas de Sua Alteza (Regimento que o Governador do Rio de Janeiro Dom Manuel Lobo, levou para a Fortaleza do Sacramento, no Rio da Prata e Carta de Sua Alteza sobre a jornada que vai fazer D. Manuel Lobo Gov. do Rio de Janeiro, in: Monteiro, 1937: pp. 5-16 e 20-21, v. 2). No segundo dia após a chegada no Prata, no mês de fevereiro, no ponto determinado para a fundação da fortaleza, Dom Manuel foi contatado por alguns homens de Buenos Aires, que indagaram “que tipo de gente eram”. Retornados a Buenos Aires, tais homens passaram adiante as notícias do que haviam visto. De lá veio o já esperado: contestaram que Dom Manuel Lobo e seus comandados permanecessem onde estavam. Os portenhos alegavam que a expedição estava em território espanhol. A primeira discussão “diplomática” acerca da posse de Sacramento não ocorreu na Europa, deu-se in loco. Havia, de um lado Dom Manuel Lobo, que relatava: (...) Vinieron com sus argumentos que yo solo les adminti en forma de conversacion y insinuandole assim por que en este lugar no se aavia de resolber el negocio. Salieron varias cartas de marear a publico en que muchas medidas de compás y por la diferencia que se hallo en las mesmas cartas no pudo por este camino aver concordancia (...)(Primeira Carta de Don Manuel Lobo ao Príncipe Dom Pedro, cópia traduzida. In: Monteiro, 1937 p. 26, v. 2)

Do outro lado, os emissários de Buenos Aires que trouxeram consigo o piloto Gomes Jurado, insistiam em resolver ali a questão. O piloto, apoiava-se no livro do Padre português Simão de Vasconcellos, Crônica do Brasil, no qual constava que a linha divisória passaria a trezentas e setenta léguas da Ilha de Santo Antão, arquipélago de Cabo Verde. Em uma carta de navegação, o piloto espanhol marcou a linha divisória e, segundo

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Manuel Lobo, afirmou que estariam os portugueses adentrando o território de Espanha mais de setenta léguas. Dom Manuel Lobo, ocupado em contra-argumentar, relatou o seguinte: (...) Yo tive por un libro que acaso me avia llegado a las manos hecho por Melchor Estasio de Amaral (...) el qual fue ympresso en el tiempo que los Reys de Castilla governabam esta Corona y son argumentos como del se dexa ver. Afirma ser quatrocientas leguas las que se han de partir de la ysla de San Antonio de Cabo Berde para la parte de loeste y de aquel punto se ha de hechar la linia ymaginaria (...) a que un Piloto que con ellos venia respondio que de essa suerte tocarian a la Corona de Portugal todo lo que en estes contornos ellos poseyan y quedariamos muy vesinos al Perú. Yo lo dixe que assi se entendia. Porque lo que pertenesia a las Coronas no tenia prescripsion sin embargo de sus reselos me parece fueran stisfechos de la cortezia con que los traté. (Primeira Carta de Don Manuel Lobo ao Príncipe Dom Pedro, cópia traduzida. In: Monteiro, 1937: p. 27, v. 2)

Neste interessante jogo de convencimento, cada uma das partes usava, como argumento, as palavras escritas e publicadas pelo oponente. Talvez assim o fizessem como recurso retórico, pois tentavam evidenciar a contradição entre o que os reis e sábios de cada uma das Coroas afirmavam e aquilo que se praticava no Prata. Talvez tornando clara a contradição o oponente desistisse daquilo que não necessariamente pertencia à Coroa da qual era súdito, mas incluía os territórios que almejavam, o que também é percebido nesse diálogo. Redondamente enganado estava Dom Manuel Lobo quando acreditou que os espanhóis saíram satisfeitos deste colóquio. A cortesia deve ter sido aceita, mas a argumentação, não. Os espanhóis que se retiraram para Buenos Aires foram comunicar às autoridades o sucedido. Dom José Garro reuniu sua Junta de Guerra em fevereiro de 1680, e com ela fez convocar todos os homens com mais de dezoito anos com suas armas. Entretanto, dizia Don Garro que não podia confiar nos homens recrutados, pois, em sua maioria, eram portugueses ou descendentes de portugueses. Solicitou homens à região de Tucuman e a eles se juntaram índios Tape das Missões, sob comando de Simão de Toledo

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e dos padres jesuítas. Em março de 1680 foi desferido o ataque à Colônia do Sacramento. Sem uma aliança formal, Dom Manuel Lobo contou com a ajuda de índios Charrua e Minuano, inimigos de longa data dos índios Tape, que iam atacando as forças espanholas ao longo de toda a jornada. A Colônia do Sacramento, com a obra de fortificação não concluída, não resistiu aos ataques. Mais de cento e trinta pessoas foram levadas prisioneiras para Buenos Aires, dentre os quais Dom Manuel Lobo, que veio a falecer durante o período de prisão (Monteiro, 1937, capítulos 3-5.v. 1). A Colônia do Sacramento mal teve sua construção iniciada e foi posta por terra pelos espanhóis. Uma nova fortificação foi erguida em seguida, sem paz formalizada mas também sem guerra declarada, sustentou-se até 1705. O governador interino da Colônia do Sacramento, Cristóvão de Ornellas Abreu, em conluio com o governador de Buenos Aires, praticava o contrabando no Rio da Prata, colocando a pique barcos de concorrentes no comércio ilícito. Muito provavelmente essa sociedade fez com que se mantivesse a praça de Sacramento nos anos posteriores a este primeiro ataque. Da década de 1690 até 1705 prosperaram os negócios de extração e comercialização de couros em Sacramento, o que, de certa maneira, também colocava em alerta os espanhóis. Os portugueses eram vistos como concorrentes nesse comércio de grande lucratividade e, por conseqüência, faziam com que a arrecadação do fisco que cabia à Coroa espanhola se visse diminuído. As incursões dos portugueses ao interior em busca dos couros provocava protestos dos homens do rei e da igreja que, num cálculo mirabolante, propunham o extermínio do rebanho de cerca de um milhão de touros da campanha, para evitar os avanços lusos. Esse cálculo, feito à época, pressupunha que, colocados na atividade de extermínio os indígenas, divididos em grupos de cem, cada grupo poderia dar cabo de dois mil animais ao dia, sacando-lhes os couros e os sebos, cujo aproveitamento seria dos homens de Espanha e não de Portugal. Também os impostos

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recolhidos sobre os produtos competiriam à Coroa de Espanha e seus contratadores, não à Coroa de Portugal e aos arrematadores de seus contratos dos quintos dos couros, imposto estabelecido para a Colônia do Sacramento e que quintava também os sebos. O extermínio não foi consumado (Moutoukias, 1987: pp. 154-157), mas as preocupações com as intrusões lusas no Prata continuaram na ordem do dia. Em 1704 o rompimento da sempre tensa paz ibérica, refletiu-se no Prata sob a forma de novos ataques desferidos à Colônia. Dessa vez, meses após, houve a capitulação de seus homens. A Colônia do Sacramento foi esvaziada de súditos da Coroa lusa e os que não desertaram transferiram-se para o Rio de Janeiro, para a Bahia ou retornaram à Península. Muitos seguiram suas trajetórias de oficiais da Coroa, homens de negócios e arrematadores nos locais para onde se dirigiram. Alguns retornaram à Colônia do Sacramento, quando da devolução da praça em 1716 (Hameister, 2002: pp. 109-153). Em 1716, com um novo tratado de paz vigorando e com a Colônia do Sacramento novamente sob domínio luso, os portugueses reiniciaram as coureadas. Os intentos de povoamento foram intensificado e foram convocados casais de migrantes para fazer a ocupação da região. Dentro do que seria chamado por Jaime Cortesão de A Política dos Casais, a Coroa portuguesa estimulou a migração de famílias de trasmontanos, ditos nos documentos relativos a esta migração como sendo de “60 casais de gente Transmontana que só entendem de Agricultura, de que aquelas tão dilatadas campinas necessitam” (Monteiro, 1937: p. 71). Esses migrantes embarcaram em 1718. Algumas famílias, provavelmente almejando os incentivos oferecidos pela Coroa, casaram seus filhos nos portos de embarque ou no Rio de Janeiro, tão logo puseram os pés em terra firme. É interessante verificar as datas dos casamentos das quatro filhas mais velhas do casal Nicolau de Souza Fernando e Ana Marques, migrados para a Colônia. As quatro moças casaram-se no ano de 1717, no porto de embarque. O sobrinho de Nicolau,

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Antônio de Souza Fernando e sua esposa Apolônia de Oliveira, também contraíram matrimônio no local de partida dos emigrantes (Rheingantz, 1979: pp. 370-487, Títulos Nicolau de Souza Fernando e Antônio de Souza Fernando). Algumas dessas famílias, mais tarde, comporiam os contingentes civis que se deslocaram para a barra da Lagoa dos Patos, para promover o povoamento do Rio Grande (ADPRG - Livro Primeiro de Batismos de Rio Grande, 1738-1753). O crescimento populacional e desenvolvimento da Colônia do Sacramento não passaram desapercebidos dos vizinhos espanhóis da margem meridional do Rio da Prata. Se a paz constava em papéis assinados por autoridades, na prática, as situações de beligerância velada e provocações declaradas ocorriam de lado a lado. A década de 1720 foi marcada por episódios de saques e violência que, se não eram excepcionais em sua freqüência, o eram pela riqueza de detalhes com que foram narrados na documentação lusa ou na crônica de Simão Pereira de Sá (Sá, 1993: p. 57; Hameister, 2002: pp. 74 e 199). Os conflitos locais faziam com que a situação da Colônia de Sacramento estivesse sempre sob tensão, e por mais apaziguados que fossem os ânimos, um ataque sempre estava entre as possibilidades postas ao dia. Em 1735 a paz novamente foi quebrada. Sacramento foi sitiada, cerco que durou até 1737, por pouco não completando três anos. Dessa vez não houve capitulação. A praça da Colônia foi mantida a custo de muita luta e muita perseverança dos portugueses, pois os ataques se faziam simultaneamente, desde terra e mar. Os índios tape das aldeias dos jesuítas também formaram força que atuou ativamente nesta operação militar muito bem planejada e muito bem executada, em várias frentes e em vários âmbitos. Em 1735 consta também um ataque dos tape ao Caminho das Tropas, nas proximidades de Laguna, que impedia o transporte dos animais para o centrosul do Estado do Brasil. Os espanhóis buscavam isolar militarmente e inviabilizar economicamente a Colônia do Sacramento.

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Os pedidos de auxílio do governo de Sacramento demoraram a chegar nas localidades que lhe podiam fazer socorro. Ao norte, recordando o relato de Domingos da Filgueira, somente a vila da Laguna enviou alguns reforços. Distando setenta dias de jornada terrestre ininterrupta, já que por mar, a embocadura do Prata estava fortemente guarnecida por vasos de guerra da coroa de Espanha, os lagunistas chegaram quando o confronto não podia mais ser minimizado. Nesse momento, o já alardeado isolamento fezse sentir na população que lá vivia. Consta que durante o período no qual durou o Grande Cerco, como ficou conhecido na historiografia, os habitantes de Sacramento até cães e ratos tiveram que comer, já que espanhóis não permitiam o abastecimento dos inimigos na praça sitiada. A privação foi tão grande que, dentre os feitos mais comemorados do período em que Sacramento esteve sitiada, estão a condução de cavalos para os militares de Sacramento e a feitura de carnes1 a partir dos animais adquiridos da família de Brito Peixoto, também enviadas à Colônia do Sacramento. Ambas as empreitadas foram levadas a cabo pelo então Capitão Cristóvão Pereira de Abreu, que anexou-as em sua folha de serviço e pelas quais recebeu mercê anos depois. Quando não havia nada, portanto, havia espanhóis e portugueses a digladiar-se pela posse do território. A cruzá-lo constantemente em busca de gados e couros, a enviar cavalos e bovinos para áreas que deles careciam. Havia coureadores e changadores, vassalos de ambas as Coroas ibéricas a retirar da campanha o seu sustento. Quando não havia nada, no território que vai da Colônia do Sacramento, havia também a guerra e a paz. Havia a chegada de povoadores, de soldados. Havia o cruzar da barra do Rio Grande no envio de cavalgaduras para o transporte nas Minas. Havia a ação dos charqueadores de ocasião ocupados em abastecer Sacramento. Havia espiões e batedores de ambas as

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Os documentos dizem “fazer carnes” ao ato de produzir o charque na própria campanha.

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facções. Quando ainda não havia nada, o território no qual está compreendida a Barra do Rio Grande já conhecia a guerra e a paz nos confrontos entre portugueses e espanhóis. IV. Onde não havia nada, havia índios charrua, minuano e tape Como no relato de Domingos da Filgueira não há indicação de período do ano em que foi empreendida a viagem, é possível que quando de sua passagem não fosse a época dos deslocamentos sazonais dos indígenas ao litoral. Todo o contorno da Lagoa dos Patos contém registros arqueológicos que evidenciam a presença dos índios guarani. Essa porção leste do atual estado do Rio Grande do Sul fazia parte da grande área sob controle destes indígenas que, além de serem usadas em seus deslocamentos periódicos como locais onde podiam contar com caça e pesca faziam, parte do território abrangido por migrações mais esparsas. Os grupos de autóctones passavam temporadas em determinadas regiões e, quando o ambiente dava mostras de esgotamento, migravam para mais além, fazendo uma rotação de áreas com de plantio, caça e coleta com décadas de duração, para dar tempo à recuperação dos recursos. Mais ao interior, no imenso “nada” que separava a Colônia do Sacramento das serras de Maldonado e nas regiões de campanha, viviam os índios minuano e charrua, grupos nômades de caçadores-coletores que não praticavam a agricultura. Não eram poucos os habitantes autóctones dessas áreas litorâneas e que margeavam os grandes rios e lagos ao sul. Para os espanhóis, que por motivos diversos tiveram interesse imediato na ocupação da vasta planície sulina, não lhes passou desapercebido esses indígenas, em 1604 escreveu Hernandarias: en la entrada del Uruguay, Viaça Santa Catarina y Río Grande, donde no faltan grade suma de indios que poder atraer al conocimiento de nuestra santa fe católica, que es lo que mucho importa, y de donde así mismo, hay grandes notícias de oro. (Cartas de Hernadarias al Rey - 05/04/1604, in: Cartas y Memoriales de Hernandarias, Revista de la Biblioteca de

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Buenos Aires 1937 v.2, apud Bracco, 2004: p. 24)

Dois ou três anos mais tarde, tornava a referir-se a eles: y poblando-se otro en el río Uruguay que es uma provincia mui fértil e de gran suma de indios y que se entiende no está [a más de] cuarenta leguas del mar, se podria poblar el puerto de Santa Catarina (...) (Cartas de Hernadarias al Rey - 05/05/1607, in: Cartas y Memoriales de Hernandarias, Revista de la Biblioteca de Buenos Aires 1937 v.2, apud Bracco, 2004: p. 24)

Com a afirmativa de Filgueira de que muito penaram por chuvas e mau tempo é possível dizer que quando por lá passaram não era a temporada propícia para se estar junto ao mar. E talvez fosse também o tempo de “abandono” do sítio para sua recuperação dentro do modo indígena de exploração dos recursos. Mais ainda, talvez seja indicativo de que o plano de aglutinar os indígenas que viviam no entorno da Lagoa dos Patos em torno da santa fé católica, colocando-os em povoados, conforme indicado por Hernandarias tinha sido bem sucedido. Entretanto, por mais desabitadas que fossem, faziam parte da grande área de domínio e controle de grupamentos indígenas que não foram atraídos ao catolicismo ou às reduções e estâncias dos religiosos. Alguns dos quais com pouquíssimo contato com os europeus, ainda que mantivessem contatos entre seus parentes aproximados pelos europeus. Eram ermas, mas não eram devolutas. Faziam parte do modo de ocupação territorial guarani e eram parte de suas reservas em recursos naturais necessárias para a sobrevivência do grupo. Os indígenas da etnia minuano – uma subdivisão do grupo conhecido como guenoa, “parentes próximos” dos guaicuru, imortalizados na aquarela Carga de Cavalaria Guaicuru de Debret, e hoje, como os demais guenoa, sejam eles yaró, charrua ou outros grupos, não mais existentes no território brasileiro, pelo menos não como população que se reivindica dessa herança étnica – aparecem como, juntamente com os guarani e índios tape,

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senhores do território antes da chegada dos portugueses e espanhóis. Já os tape, segundo Neumann (2000), eram populações autóctones que teriam passado por um processo de “guaranização” durante a expansão ao sul dos guarani. De fala guarani, portanto, mas com especificidades que se fizeram notar pelos missionários jesuítas e pelas populações lusas e espanholas que para a Banda Oriental se dirigiram. Tinham por hábito ocuparem regiões que margeiam grandes rios e lagos, eram agricultores e ceramistas. Após essa “guaranização” dos tape pelos guarani, houve um outro processo de grande influência cultural, política e religiosa em boa parte dos membros dessa etnia. Os guarani e/ou tape, foram o grupo lingüístico mais atingido pela catequização dos padres da Companhia de Jesus na América Meridional. Pertenciam a essa etnia a maioria dos indígenas que viviam nas Missões Orientais e nas estâncias missioneiras dos jesuítas. Os padres Antônio Ruiz de Montoya e Antônio Sepp, jesuítas missionários na América, foram, também, cronistas da obra da Companhia de Jesus nessas terras. Seus relatos Conquista Espiritual Feita pelos Religiosos da Companhia de Jesus nas Provínvias do Paraguai, Paraná, Uruguai e Tape - Reduções Guaraníticas - Ano de 1639 (Montoya, 1997) e Viagem às Missões Jesuíticas e Trabalhos Apostólicos (1697) (Sepp, 1980) foram publicados e republicados em português, estando ao acesso dos pesquisadores do tema. As Cartas Ânuas dos jesuítas das Missões estão na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, adquiridas na coleção de Angelis. Os tape/guarani e as Missões Jesuíticas são tema constante da produção historiográfica sulina, seja qual for o período ou o tipo de abordagem. Seja na historiografia tradicional, da qual cita-se aqui, como exemplo, a belíssima e complexa obra de Aurélio Porto, História das Missões Orientais do Uruguai (1943), de produções voltadas à divulgação do tema ao grande público, como, também por exemplo, a obra de grande qualidade plástica e gráfica Missões Jesuítico-guaranis (Tavares, Nardi Fo & Dalto,

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1999). A produção acadêmica também versa sobre os guarani, como no como no trabalho Historiografia Sul-rio-grandense: o lugar das Missões Jesuítico-guaranis na formação histórica do Rio Grande do Sul (1819-1975), de Luiz Henrique Torres (1997), que discute o índio guarani e as Missões na historiografia sulina, ou na investigação histórica propriamente dita, como em Práticas Letradas Guarani: produção e usos da escrita indígena (séculos XVII e XVIII), de Eduardo Neumann (2005). A estes exemplos muitos mais poderiam ser acrescidos, pois não é escasso o estudo sobre missões, missioneiros e índios guarani. No entanto, não é o objetivo desse estudo. Fazia-se necessário, entretanto, assinalar essa presença indígena na região, juntamente com os outros elementos que existiam nesse território quando ainda não existia nada. Esses elementos se fizeram presentes no dia-a-dia das famílias e tiveram de ser levados em conta nas estratégias sociais e familiares daqueles que chegaram para construir a nova localidade de Rio Grande, na beira da Lagoa dos Patos, onde “não havia nada”.

Abreviações usadas nesse capítulo 1LBat-RG: Livro Primeiro de Batismos de Rio Grande 4LBat-RG: Livro Quarto de Batismos de Rio Grande ADPRG: Arquivo da Diocese Pastoral de Rio Grande BNP: Biblioteca Nacional de Portugal

Fontes e Referências Bibliográficas usadas nesse capítulo Fontes Primárias Manuscritas ARQUIVO DA DIOCESE PASTORAL DO RIO GRANDE. Livro 1o de Batismos da Vila do Rio Grande 1738-1753. ARQUIVO DA DIOCESE PASTORAL DO RIO GRANDE. Livro 4o de Batismos da Vila do Rio Grande 1759-1763. 1759-1763.

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Capítulo 2 O Segredo do Pajé: o nome como um bem (Continente do Rio Grande de São Pedro, c.1735-c.1777)

O remédio está aqui – tornou a bater na testa. – Está no espírito. Um espírito alegre e são vence o tempo, vence a morte. Tibicuera morre? Os filhos de Tibicuera continuam. O espírito continua: a coragem de Tibicuera, o nome de Tibicuera, a alma de Tibicuera. O filho é a continuação do pai. E teu filho terá outro filho e teu neto também terá descendentes e o teu bisneto será bisavô de um homem que continuará o espírito de Tibicuera e que portanto, ainda será Tibicuera. O corpo pode ser outro, mas o espírito é o mesmo. E eu te digo, rapaz, que isso só será possível se entre pai e filho existir uma amizade, um amor tão grande, tão fundo, tão cheio de compreensão, que no fim Tibicuera não sabe se ele e o filho são duas pessoas ou uma só”. ("O Segredo do Pajé" In: As Aventuras de Tibicuera. Verissimo, 1981: p. 22 - em itálico no original.)

I. Eis então um problema Quando se trata de estudar as populações lusas e suas descendências recorrendo aos registros documentais, sejam eles laicos ou eclesiásticos, particulares ou oficiais, um dos maiores complicadores é a presença de homônimos. Tal dificuldade já foi expressa por Faria (1998), Hameister (2001), Scott (2001), entre outros. Este complicador, em especial, faz com que a tarefa torne-se, além de mais árdua, mais interessante e — porque não dizer? — mais divertida, já que para desfazer os nodos em que se amarram os vários fios das

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vidas do passado, há que se descer aos meandros do dia-a-dia, identificando os sujeitos históricos nas diversas facetas de sua existência. Há que conhecê-los intimamente: suas posses; parentescos; seus amores socialmente aceitos e também os escusos; suas descendências legítimas, naturais e ilegítimas; suas amizades e seus desafetos; suas bravuras, bravatas e covardias. Conhecer o conjunto das suas relações, portanto, passa a ser uma pretensão inatingível para quem deseja escapar das armadilhas montadas pela presença de homônimos, tornando o pesquisador um “fofoqueiro” dotado de lupa e “todo o tempo do mundo” para esmiuçar as vidas alheias — e passadas — que estuda. Com muita sorte, como se recebesse a notícia da chegada de uma vizinha “bem informada” da vida alheia — eufemismo para fofoqueira —, o historiador recebe notícia de existência um corpus documental por ele desconhecido. Ou ainda, que houve a abertura de um novo arquivo que contém informações sobre a “sua gente”, como corriqueiramente chamam seu objeto de estudo, tal a intimidade que essa procura gera. Esses acréscimos ao seu universo de pesquisa são sempre saudados com animação e novas “histórias de sua gente” são agregadas às outras, ampliando também o universo de aspectos a serem estudados na perspectiva — como já dito, inatingível — de contemplar todas as facetas da vida social. E, nessas fontes que se agregam às já conhecidas, vai buscar a “sua gente” pelo nome que os identificava. Na tentativa de investigar a nascente sociedade do Continente do Rio Grande de São Pedro, denominação dada a uma parcela do atual estado do Rio Grande do Sul no século XVIII, percebeu-se a existência de um “estoque” de nomes e sobrenomes um tanto reduzido. Esse universo era, eventualmente, acrescido de alguns “novos”, com origem toponímica, indígena ou eventualmente pelo ingresso de algum estrangeiro europeu no contexto sob análise. As combinações resultantes de nomes e sobrenomes também eram,

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portanto, bastante reduzidas, resultando em legiões de Antônio Rodrigues ou Manuel Cardoso, matizados por um ou outro Miguel Apoté, Perico Serra ou Thomas Clarque. Não se pretende aqui resolver o drama dos homônimos — essa sim uma tarefa inexeqüível. Propõe-se tentar, isso sim, conhecer um pouco mais sobre homônimos, dando destaque àqueles que se dão entre pais e filhos. A vontade de resistir a esse fato consumado: os pais davam seu nome aos rebentos, faz com que o historiador anseie pela Máquina do Tempo de Wells, que o permita retornar ao ato do batismo e renomear toda uma parcela da população e assim solucionar o seu problema. Entretanto, isso não soluciona o problema historiográfico cuja existência foi detectada a partir da constatação da recorrência desse fenômeno e da abrangência geográfica do mesmo: reiteradamente, as populações lusas transmitiam aos seus novos membros os nomes e os sobrenomes de seu repertório social e familiar. Não é, portanto, um “azar do historiador” nem um “acaso” para as pessoas que viveram o passado que ele estuda. É um fenômeno social e como tal deve ter status de problema historiográfico. A despeito das tentações de fazer vistas grossas enquanto a tal Máquina do Tempo não é inventada, tentar entender que sorte de necessidades eram supridas com o “singelo” ato de repassar o nome a um filho, neto, sobrinho ou afilhado, deve resultar bem mais útil. Também se tentará introduzir aqui algumas outras questões relativas ao ato de dar o prenome a uma criança. Ainda que a observação desse fenômeno seja muito pouco difundida nos estudos sobre a história colonial brasileira, em outras regiões do globo não é novidade. Isso será visto ao longo do capítulo, inserindo, portanto, as próximas páginas em uma categoria de estudos sobre as assim chamadas naming practices ou “práticas de nomeação” que já tomaram muito tempo de pesquisa de historiadores franceses, norteamericanos, suecos, islandeses, entre outros.

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Tal sorte de estudo se faz por demais necessária para a metodologia que vem sendo empregada, baseada na perseguição dos agentes históricos no conjunto de práticas sociais e relações por eles estabelecidas através de seus nomes próprios, como propõe Carlo Guinzburg em O nome e o como (1989), ao enunciar o “método onomástico”. Para dar continuidade a essa busca, observou-se a necessidade de entender também o ato de nomeação dos indivíduos como uma prática social, passível de estabelecer e de romper padrões, sujeito às normas sociais vigentes à época e aplicado às crianças ou jovens e adultos em seu batismo também com algumas intenções. Podem ser elas, por exemplo, garantir uma proteção mística, como no caso das crianças que recebem o nome dos santos ou de adventos religiosos consagrados ao seu dia de nascimento ou batismo; perpetuar um nome que “circula” na família há gerações; introduzir um novo nome repleto de significados em um estoque antigo de prenomes familiares ou do grupo social; aproximar os adultos — pais, padrinhos, avós ou outros parentes e amigos — das crianças batizandas através do repasse de seus nomes. O nome, até então um “incômodo”, uma “pedra no sapato” dos historiadores da América Portuguesa, deverá ter seu estatuto alterado para “problema historiográfico”. Enfim, para as páginas que seguem, teremos o nome — caractere pessoal — também como um objeto de estudo e um problema para a historiografia, indo além da utilidade de um fio guia para a metodologia empregada. O nome dos agentes sociais perderá, portanto, toda a sua inocência, sendo visto, doravante, como estratégia social de grupos e famílias no processo de conquista e povoamento do território meridional da América Lusa. Com o intuito de abranger tantos aspectos e problemas distintos subjacentes a um único objeto — o nome próprio das pessoas — será inevitável que alguns casos apresentados sejam vistos e revistos em diversas partes do texto que se segue, sob óticas diferentes, mas sempre com o intuito de trazer à tona as intenções e os gestos passíveis de

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acontecer na sociedade que se estruturava no Extremo-sul do Estado do Brasil, ao longo de aproximadamente meio século. No entanto, deve-se primeiro passar pela apresentação do estudo da onomástica, um breve histórico e a algumas pesquisas das quais se tomou conhecimento.

II. Sobre o estudo da onomástica: o nome em tempos, locais e culturas diferentes Abre-se este tópico com uma citação

Sem dúvida, não é supérfluo relembrar que o fato de se denominar, pura exigência da vida em sociedade, não é um problema restrito ao Estado civil, que a cada época, a cada civilização, irá responder à sua maneira e nas formas do caráter jurídico mais ou menos assegurados. (Pérouas, Barrière, Boutier, Peyronnet et alii., 1984: p. 7)

Aqui, então, nos obrigamos a uma reflexão. Não há, verdadeiramente, sociedade que prescinda da atribuição de nomes a seus membros. Mesmo que não seja atribuído, como nas sociedades católicas, num ritual de apresentação e ingresso à sociedade semelhante ao batismo. Em algum momento da vida, os componentes de um grupo social tinham e têm um nome atribuído. Isso remete a uma outra questão, contida na citação abaixo e que também é pertinente no sentido de rever a importância do nome próprio dos sujeitos e seus usos ao longo da história, ainda que não se pretenda avançar por demais sobre ela:

o prenome apresenta duas características particularmente interessantes: é um bem gratuito cujo consumo é obrigatório. Desde então o estudo de sua difusão é particularmente apto para colocar em evidência, em sua pureza, a função de identificação e de distinção como pertinentes ao consumo de bens de moda (Phillipe Basnard apud Dupâquier, 1984: p. 7)

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Sendo o nome um bem de consumo obrigatório e, ao mesmo tempo, gratuito, se coloca tanto quanto a existência da família nas sociedades humanas — independentemente das múltiplas formas e abrangências que possam ter nas sociedades onde existem — como traço comum e estrutural à maioria elas. O nome existe em todas as sociedades e é regulado pelas práticas e necessidades da sociedade onde foi atribuído. As práticas de composição e repasse dos nomes — prenomes ou sobrenomes auto-atribuídos ou recebidos — variam de local para local, de cultura para cultura, de época para época, mas a desinência pessoal dos membros de uma sociedade é fenômeno comum a todas elas. É portanto um traço estrutural da organização social humana e, por isso mesmo, importante para a compreensão das realidades passadas que tentamos atingir através de metodologias que se utilizam do nome próprio dos sujeitos históricos. O estudo da onomástica situa-se na “zona de fronteira” da antropologia, da sociologia e da história. Nos estudos de história, mesmo que não seja a preocupação primeira, surge com força na história demográfica, quando confunde e atrapalha a reconstituição de famílias dada a presença de homônimos e de prenomes repetidos em função de um estoque limitado e condicionado pelas práticas sociais das populações estudadas. Surge também quando se identificam por ele as pessoas e as famílias que migraram, que se desdobraram, que casaram ou batizaram crianças. Alguns estudos de pesquisadores franceses transferiram a ênfase da história demográfica para a história cultural, tentando dizer das práticas de repasse e escolha dos prenomes numa dada sociedade. Aqui, com utilização de trabalhos de pesquisadores dessas áreas, tentar-se-á também validar a onomástica para estudos da história econômica do século XVIII no extremo-sul do Estado do Brasil, haja vista a preocupação com fatores considerados extraeconômicos

que

denotam uma

influência

muito

grande

na

consolidação

de

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comportamentos sociais e familiares que visavam ou serviam de instrumento para angariar ou manter prestígio, cargos e bens materiais. Houve a necessidade, então, de buscar apoio na literatura existente sobre a onomástica e dos nomes como objeto de estudo da história social e cultural, para fundamentar aquilo que foi percebido a partir das fontes paroquiais utilizadas neste estudo. Essa necessidade se faz sentir quando do cruzamento das informações de lá extraídas com o restante da documentação. O ressurgimento do estudo da onomástica na França e seus resultados Na primeira metade da década de 1980, na França, verificou-se a publicação de vários estudos sobre onomástica, fossem eles resultados finais ou parciais de pesquisa com fontes paroquiais, principalmente. Tais trabalhos foram publicados principalmente em periódicos; o número 4 do volume 20 do periódico de antropologia L’Homme, do ano de 1980, foi inteiramente dedicado a este assunto, contendo os artigos Le nom de personne, de Françoise Zonabend (pp. 7-23); Un nom pour soi: le choix du nom de baptême en France sous l'Ancient Régime (XVIe-XVIIIe siècles), de André Bruguière (pp. 25-42); Le nom gardé: la dénomination personnelle en Haute-Provence aux XVIIe et XVIIIe siècles, de Alain Collomp (pp. 43-61); Le nom caché: la dénomination dans le pays bigouden sud, de Martine Segalen (pp. 63-76); Le nom “refait”: la transmission des prénoms à Florence (XlVe-XVe siècles), de Christiane Klapish-Zuber (pp. 77-104) e Le nom de lignée: les sobriquets dans un village d'Emilie, de Carlo Severi (pp. 105-118), agrupados sob o título Formes de nomination en Europe. Esses artigos representaram uma significativa retomada do estudo sobre os nomes e da prenominação na história e na antropologia que, como tal, também têm sua história, história esta a ser apresentada em publicações posteriores.

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Como conseqüência dessa retomada, observou-se a concentração da publicação de resultados parciais e finais de pesquisas em dois livros sobre esse tema, que serviram como base para a discussão sobre a prenominação em investigações das décadas posteriores. (p. ex. Forename, family, and society in Southwest France,

Sangoï, 1999). Esses dois

trabalhos citam-se aqui em destaque, já que foram fruto de larga pesquisa coletiva em torno de fontes batismais e registros civis de pessoas. Alguns autores escrevem em ambos. Não há propriamente uma discussão entre as duas obras, denotando muito mais a colaboração e o esforço conjunto no sentido de elucidar questões sobre o grande tema comum aos dois compêndios. São resultados do mesmo empenho de validação do estudo da prenominação na história social e cultural francesa. Entretanto, um é resultado da compilação de comunicações em um evento e o outro é fruto de anos de trabalho de uma equipe de pesquisa que investigou a prenominação para a região francesa de Limousin. São eles Le Prénom, Mode et Histoire (Dupâquier, Bideau & Ducreux, 1984) e Léonard, Marie, Jean et les Autres: les prénoms en Limousin depuis um millénaire (Pérouas, Barrière, Boutier, Peyronnet et alii., 1984). Baseado em Le Prénome, Mode et Histoire seguirá o breve histórico do estudo da prenominação, ou naming practices, na França e em outras regiões. Essa publicação traz também resultados parciais ou finais de algumas pesquisas para populações italianas, escravos norte-americanos e judeus, entre outros, o que demonstra o crescimento da penetração do tema e suas abordagens entre historiadores, antropólogos e sociólogos. Jacques Dupâquier, um dos seus organizadores, já na introdução afirma que o estudo dos prenomes “retornava à moda”. Estaria, nesse momento, sendo alvo de estudos de antropólogos, cientistas sociais e historiadores que, de certa maneira, retomavam uma antiga tradição de pesquisa acerca das origens dos nomes e sobrenomes (Dupâquier, 1984: p. 4). Relembrando que os registros batismais são, antes de tudo, registros de ingresso à

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vida cristã, este autor remete ao Concílio de Trento a obrigatoriedade de atribuição de um nome ao batizando, podendo essa obrigatoriedade, entretanto, ser mais antiga e existir em sociedades não-católicas. O nome dado ao batizando deveria transmitir qualidades ao seu portador e, por esse motivo, deveria ser pio e meritório. Ao portador do nome serviria de inspiração para sua vida — pia e meritória, portanto — devotada e fiel a Deus e seus mandamentos. Dessa forma, percebe-se que a Igreja Católica via no nome de seus fiéis algo além da simples designação dos membros da comunidade cristã. Dos registros batismais e, posteriormente, dos registros civis da França, veio o material estudado por esses acadêmicos das ciências humanas naquele país. Entretanto, nem sempre foi assim. Dupâquier fornece o ano de 1681 para a obra mais antiga que se ocupa do assunto – Traité de l’origine des nomes et des surnoms – e apresenta o estado da arte da onomástica francesa no que tange ao estudo dos prenomes. Os primeiros trabalhos teriam como interesse os aspectos litúrgicos da assim chamada prenominação. Não colocariam, entretanto, questões acerca da preferência de um ou outro nome de santo para os batizandos, tampouco a ascensão de alguns prenomes, relativa estabilidade de outros e o descenso de outra sorte de prenomes nas preferências e nos usos. Esse autor destaca o ano de 1888 como um marco na mudança de ênfase dos trabalhos sobre onomástica, com a publicação do primeiro ensaio estatístico sobre prenomes, Noms de baptême dans le cadastre de Burlats, de autoria de L. F. Fierville. Ressalta Dupâquier que este ensaio, entretanto, limitava-se ao cômputo dos dados e não colocava a questão dos modos de transmissão e função dos prenomes. Dados coletados, mas com pouca análise. Como origem dos estudos que levaram ao retorno do interesse pela prenominação, o autor chama a atenção para uma feliz conjunção de interesses das diversas áreas das ciências humanas. Fossem os historiadores demográficos, os sociólogos, os antropólogos, a um dado momento, todas elas lançaram seu olhar aos problemas relativos ao nome próprio.

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Para os primeiros teria surgido da necessidade de identificação dos titulares das fichas familiares, necessárias à metodologia da reconstituição de famílias. Para os segundos o interesse teria surgido a partir da investigação sobre o consumo de bens simbólicos, sendo o nome, como já citado acima, um bem de consumo obrigatório e gratuito para as sociedades. Já para os terceiros, teria surgido como investigação de um traço presente nas sociedades capaz de gerar identidades e identificação, sujeito às escolhas de cada sociedade, configurando, portanto, padrões sociais que demandavam estudo. A convergência de interesses, ainda segundo Dupâquier, teria resultado no “retorno” do prenome à ordem do dia nas investigações acadêmicas. Seguem-se a essa introdução um conjunto de trabalhos específicos sobre a questão da prenominação nos quais são feitos desde a apresentação e a crítica das fontes até a análise dos dados levantados pelas equipes de trabalho. Alguns desses artigos serão citados nas páginas que seguem e que intentam discorrer sobre a atribuição de prenomes no Continente, seja pela metodologia aplicada, seja pela comparação dos resultados obtidos lá e cá. O segundo livro a ser comentado, Léonard, Marie, Jean et les Autres — frisando aqui que ambas as publicações são contemporâneas e inseridas em um mesmo movimento, sem atribuir primazia a um ou a outro — faz também, em sua introdução, uma análise sobre o estudo da prenominação na França. Sem menosprezar o conteúdo da obra como um todo, chama-se atenção para o estabelecimento daquilo que ficou conhecido a partir desse ressurgimento da onomástica na França, como o padrão clássico de prenominação. Esse padrão, que deu mostras de seu surgimento em finais da Idade Média, atravessou a Idade Moderna, dando a ver a existência de uma grande alteração nessa continuidade de longa duração, após a Revolução Francesa, quando se inicia, de fato, o padrão contemporâneo de prenominação neste país. Uma alegada crescente “descristianização” da sociedade que se

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iniciara ao final do século XVIII teria modificado-lhe o padrão. Segundo os autores — e não lhes faltam fontes substanciosas em seu estudo de grande fôlego —, esse padrão dito clássico apresenta como recorrência uma predominância do repasse dos prenomes dos padrinhos aos afilhados, a despeito de muitas variantes que vão desde o crescimento da utilização de prenomes compostos até a adoção em larga escala de prenomes que pouca ou nenhuma relação apresentavam com o repertório familiar, local ou regional, como a inclusão de nomes de santos de devoção, reis ou eventos religiosos ou políticos. Os capítulos segundo e terceiro da referida obra são de particular importância para o trabalho que aqui se apresenta. São eles Naissence et développement de’un modèle (Pérouas, Barrière, Boutier, Peyronnet et alii., 1984: pp. 21-117), no qual os autores, com a utilização das fontes de registros de batismo, apresentam esse modelo de grande longevidade, caracterizado, por um lado, pela imposição ou aconselhamento clerical para que aos batizandos fosse dado um nome de santo ou santa, e por outro, a presença de prenomes tradicionais que antecediam à larga penetração do cristianismo no território francês. Mescla das regras cristãs com as práticas germânicas de prenominação, mesmo os nomes de santos canonizados que eram nativos da região — e portanto detentores de nomes germânicos — tiveram sua importância. Isso talvez indicasse uma “mestiçagem” entre a forma anteriormente adotada e a nova forma que era imposta pela Igreja católica. Observou-se que mesmo nos nomes cristãos houve uma lenta modificação nas preferências. Primeiramente os nomes do velho testamento e dos primeiros apóstolos foram cedendo lugar aos nomes da família de cristo e estes, posteriormente, dando lugar aos nomes de santos. Segundo os autores, essa lenta transformação seria imperceptível num estudo de um período mais curto. Entretanto, os cerca de mil e quinhentos anos de registros nominais analisados para a região permitiram essa observação. Isso demonstrou

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que o fenômeno, que era considerado uma “prisão da longa duração”, percebido desde fins da Idade Média, não era estático nem imune às transformações. Com certeza, sofreu modificações e essas foram cumulativas, chegando a um ponto no qual um novo modelo de prenominação impôs-se nessa sociedade, com todo o seu vigor nos séculos XVII e XVIII. Os autores vão associar essas mudanças mais radicais nos padrões de prenominação às profundas transformações sociais ocorridas na França. Em contrapartida, no capítulo seguinte La lente dégradation de un modèle (Pérouas, Barrière, Boutier, Peyronnet et alii., 1984: pp. 119-172), os autores demonstram as modificações sofridas por esse padrão secular, ao qual chamam de modelo clássico. Ao final do século XVIII foi detectado o início de novo modelo que se tornaria predominante após a Revolução Francesa. O nome próprio dos sujeitos históricos passaria a ser um identificador e individualizador nessa sociedade. Em meados do século XIX, esse novo modelo que já dava mostras de sua existência em finais do século XVIII e que ganhou impulso com as transformações sociais decorrentes da Revolução Francesa, passaria a predominar sobre os demais existentes, impondo-se sobre os resquícios do modelo que por tão longo tempo vigorara. Segundo os autores, somente na longa duração é perceptível a ruptura desse modelo que, se não é milenar, é quase. Entretanto, ao perceber modismos na atribuição e uso de prenomes, ou seja, perceber sutilezas que não ferem o padrão geral e longevo, os autores se dizem aptos a uma análise mais abrangente da própria sociedade. Percebem alterações no modo de pensar dessa sociedade. Tomando de empréstimo problemas da antropologia, passam a observar a prenominação como uma forma de classificação social. Pessoas eram incluídas ou excluídas de grupos sociais através do nome que lhes fora atribuído ou do qual se apropriaram no decorrer da vida. Alguns prenomes acusam origens remotas das famílias, bem como alianças com outros grupos sociais, étnicos ou familiares. Percebem os

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autores o ingresso de imigrantes nas sociedades estudadas se refletindo em acréscimos de novos prenomes ao repertório já existente. Perceberam também que, com o declínio ou ascensão de um prenome que ocupava uma posição mais ou menos estável no ranking de ocorrências, poderiam estar associados a modificações ou transformações importantes nos usos, nos costumes, na organização social, política e religiosa dessas comunidades.

Para além da França O impulso ao estudo da onomástica advindo da França encontrou eco em outros países. Trabalhos que têm a onomástica como preocupação central ou tangencial surgiram em muitos locais. Citam-se, a título de exemplo, os artigos Naming Practices in West Ireland (Breen, 1982), The Naming, Kinship, and Estate Dispersal: Notes on Slave Family Life on a South Carolina Plantation, 1786-1833 (Cody, 1982b), There Was No "Absalom" on de Ball Plantations: Slave-Naming Practices in the South Carolina Low Country, 17201865 (Cody, 1987), Slave Names and Naming in Barbados, 1650-1830 (Handler & Jacoby, 1996), Naming practices and the importance of kinship networks in early nineteenthcentury iceland (Gardarsdóttir, 1999), Why Did You Change Your Nname? Name Changing Patterns and the Life Course in Early Modern Japan (Nagata, 1999) Godparents, witnesses, and social class in mid-nineteenth century sweden (Ericsson, 2000), Women and men as godparents in an early modern swedish town (Fagerlund, 2000), Cementing alliances? witnesses to marriage and baptism in early nineteenth-century iceland (Gunnlaugsson & Guttormsson, 2000) entre outros tantos. Alguns desses estudos, como o de Breen (1982), buscam ver no nome e nas alcunhas dadas às pessoas de uma comunidade uma forma de classificação social. Outros, enfatizam que para além de uma classificação social há a inserção em um grupo existente e a construção ou afirmação de alianças entre grupos e famílias (p. ex. Cody, 1982b;

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Gardarsdóttir, 1999). A investigação da prenominação entre os escravos norte-americanos aparece como preocupação central no trabalho de Cherryll Ann Cody (1982b; 1982a; 1987). Para o Continente do Rio Grande de São Pedro, se buscará demonstrar que a atribuição de um nome ou alcunha não apenas agia como forma de classificação social como também serviu como uma forma de qualificação social. O grande número de estudos sobre a onomástica e prenominação para diferentes populações, períodos e com diferentes ênfases denota, acima de tudo, a contribuição que sua investigação pode dar à investigação histórica.

A prenominação ou naming practices em alguns estudos atuais sobre o Brasil

A despeito da pouca importância dada à questão da atribuição, construção, e repasse de nomes em famílias e comunidades pela historiografia brasileira, não são poucos os estudos que indicam haver na investigação onomástica um bom campo de pesquisa. Na historiografia tradicional, em sua maioria, ensaios e escritos que se ocupam do tema estão restritos às contribuições para as investigações de genealogias e não ultrapassam os limites da constatação. Não estão preocupados com a análise das práticas de prenominação nas populações e famílias que estudam, apesar de indicarem, às vezes com algum destaque, os familiares que receberam os nomes de seus ancestrais. O repasse, a atribuição e a construção de prenomes também aparecem nas investigações antropológicas que tem grupos brasileiros como objeto de estudo, citando-se aqui o artigo Nomes Secretos e Riqueza Visível: nominação no noroeste amazônico de Hugh-Jones (2002). Nesse artigo, o autor estuda o sistema de prenominação entre os índios Tukano, concluindo pela existência de práticas sociais e religiosas que fornecem toda uma

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simbologia secreta aos prenomes atribuídos em rituais de iniciação e dos grupos de iniciados que, também secretamente, incorporam qualidades dos animais ou eventos evocados nos vários prenomes do repertório que utilizam e atribuem. Seus nomes secretos, e não os seus nomes revelados — ou públicos — indicariam sua posição na sociedade. Entretanto, isso não significa que a antropologia seja a única área das ciências humanas que voltou seus olhos para os problemas que envolvem a prenominação, ou que essa preocupação esteja ausente dos trabalhos dos historiadores brasileiros. Pelo contrário. Algumas obras publicadas e pesquisas dedicam-se ao assunto, ainda que nem sempre sejam os problemas que envolvem a onomástica a sua preocupação central. Em O Nome e o Sangue, Evaldo Cabral de Mello percebe a repetição dos prenomes no interior de famílias bem como a existência de homônimos servindo como empecilho às mercês ou seu uso estratégico no sentido de confundir os investigadores (Mello, 2000). Uma década antes, o repasse dos nomes entre famílias escravas já havia sido preocupação de Ana Maria Lugão Rios, em seu estudo sobre famílias escravas do Paraíba do Sul cafeeiro (Rios, 1990). Esta autora constatou uma transmissão reiterada dos prenomes nessas famílias, constituindo um modelo de prenominação para os cativos da região nos quais os nomes dos avós repetiam-se nos netos, fossem exatamente iguais, fossem flexionados conforme o gênero. A autora retornou ao assunto em ao menos outras duas obras: The politics of kinship: ‘Compadrio’ Among Slaves in Nineteenth-Century Brazil (Rios, 2000) e Memórias do Cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição (Rios & Mattos, 2005). As pesquisas de Sérgio Luiz Ferreira (2005b; 2005a) para uma população de origem açoriana em Santa Catarina também remeteram à questão da transmissão e uso de prenomes e sobrenomes, resultando em dois artigos de publicação eletrônica. Em A utilização de prenomes: uma comparação entre uma freguesia do Sul do Brasil e uma

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freguesia açoriana, o autor aponta para um “abrasileiramento” na utilização de prenomes nas freguesias estudadas, em detrimento do modelo de prenominação predominante nos Açores, segundo dados de artigo de Maria Norberta Amorim. Em suma, observa uma mudança no tempo curto no território luso-americano, ao contrário da lenta transformação dos modelos observadas na França. Entretanto, convém frisar que o período observado pelo autor (1781-1922) contempla justamente o período em que os autores franceses acusam a grande modificação no modelo clássico de prenominação da Idade Moderna, que daria lugar ao modelo que vigoraria para o período pós Revolução Francesa. Talvez o acaso tenha levado à conclusão de uma rápida transformação exatamente por serem analisadas as décadas da decadência de um modelo e a afirmação de outro. Talvez esses modelos de prenominação percebidos na França também sejam válidos para o contexto da América Portuguesa, ou ao menos nela encontrem seus correlatos, assim como a sua periodização. Entretanto, para uma afirmativa ou rechaço, há que ser empreendido um estudo comparativo entre os padrões que vigoravam no Estado do Brasil e os apresentados pelos pesquisadores europeus. Em Transmissão de sobrenomes entre luso-brasileiros: uma questão de classe, Sérgio Luiz Ferreira (2005a) busca traçar alguns padrões para a transmissão de sobrenomes no interior das famílias nessas freguesias de origem açoriana. Durante o período observado as comunidades receberam o ingresso de imigrantes de origem italiana e alemã, entre outras. O autor observa trocas e abandonos de sobrenomes, geração de sobrenomes compostos, adoção de sobrenomes cujas origens não podem ser identificadas e o hábito de imigrantes “aportuguesarem” seus sobrenomes, como por exemplo o sobrenome italiano Marchese que, tornado Marquese, por último torna-se Marques. Observa também a prática de estrangeiros adotarem sobrenomes luso-brasileiros, abandonando por completo os anteriores. Muitas das práticas observadas por Ferreira também se evidenciam no

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Continente do Rio Grande de São Pedro, como por exemplo a adoção do prenome ou sobrenome do padrinho de batismo ou da localidade de origem da família na Península Ibérica ou nas Ilhas dos Açores. Essas práticas serão melhor comentadas adiante. Mais recentemente, teve-se conhecimento da investigação integrante da pesquisa para dissertação de mestrado de Rodrigo de Azevedo Weimer, Nominação e identificação de ex-escravos através de processos criminais: São Francisco de Paula, RS, 1880-1900, no qual o autor vê nos nomes e alcunhas dos ex-escravos formas de classificação social que podem expressar a proximidade ou o distanciamento do cativeiro (Weimer, 2005) É muito provável que existam ainda outros estudos, que não foram encontrado nos levantamentos feitos para esse trabalho, pois é perceptível que a preocupação com a atribuição de nomes, a sua transmissão e demais práticas a elas subjacentes vem crescendo nas pesquisas históricas. Esse capítulo pretende, então, acrescentar uma contribuição às investigações acerca da onomástica no Brasil e em especial, do período colonial. Nesse estudo, centrado no Continente do Rio Grande de São Pedro de um modo geral e na Vila do Rio Grande de um modo específico, pretende-se apresentar algumas práticas de prenominação bem como suas análises, com o intuito de melhor explicar as estratégias sociais e familiares a elas correlatas. Há que se ter sempre em mente que essa é uma sociedade formada sob os auspícios da religião católica, que as normas vigentes para a atribuição de prenomes deveria respeitar os preceitos da Igreja e que mesmo as práticas que escapavam a esta normatização estavam vinculadas ao ritual católico, uma vez que o prenome é uma das graças que uma pessoa que adentra ao mundo da cristandade recebe no momento do batismo. No ato do batismo, ritual católico — e estamos a falar de uma sociedade erigida sob a égide do catolicismo romano — geralmente se nomeavam as crianças e, eventualmente, os adultos pagãos ou os infiéis conversos. Orientam as Constituições Primeiras do

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Arcebispado da Bahia como proceder no ritual do batismo (Da Vide, 1707, Livro I, Títulos X-XX. ), em consonância com o disposto pelo Concílio Tridentino. Aos padrinhos, segundo as Constituições Primeiras, competiria atribuição do nome ao batizando. Impossível dizer se esta disposição era seguida à risca, se pais e padrinhos entravam em acordo, ou ainda se o padrinho “oficializava” um prenome escolhido pelos pais. Entretanto, as Constituições Primeiras faziam a especial recomendação de que fossem atribuídos nomes cristãos ou de santos e que o nome de santos não beatificados ou canonizados fossem vetados pelos padres que ministravam o sacramento (Da Vide, 1707, Livro I, Título XII. ), também em conformidade com o Concílio de Trento. O prenome podia ser modificado no decorrer da vida, ficando, para a sociedade católica do século XVIII, o momento da crisma — confirmação do batismo — como sendo propício a esta mudança. Também isso está disposto e regulamentado pelas Constituições Primeiras, conforme o texto abaixo transcrito:

[A Confirmação do Batismo] quem o receber poderá mudar o nome que se lhe pôs no batismo, ainda que seja de Santo. (...) E sucedendo mudar algum dos crismados o nome que lhe foi posto no Batismo, o Pároco o declare assim, dizendo: N. que até agora se chamava N. filho de N. e N. E também se fará a mesma declaração da mudança do nome à margem do assento de seu Batismo, se o houver no livro dos batizados de tal Igreja (Da Vide, 1707, Título XXV).

Foram encontradas mudanças de nome nos documentos consultados, sem que tenham sido encontradas as anotações à margem dos livros batismais recomendadas nos registros batismais. Essa mudança de prenome, que em ao menos uma circunstância era permitida e sacramentada, traz à tona mais uma das dificuldades em seguir-se os agentes sociais por seu nome próprio. Outras circunstâncias de mudança de prenome e sobrenome foram percebidas sem que haja o registro que a oficialize. Essas mudanças, escolhas pessoais, familiares ou sociais também serão melhor comentadas adiante.

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III. A hora e o lugar No período sob estudo, a porção da Colônia representada pelo Continente do Rio Grande de São Pedro era uma área de ocupação recente. Era o Continente um território novo para o povoamento, ainda que um tanto mais antigo quanto à exploração dos seus recursos. As miríades de gados que se multiplicaram aos campos a partir dos rebanhos iniciais introduzidos pelos jesuítas foram explorados por gente oriunda da Colônia do Sacramento e da Vila da Laguna, que os alçavam sem que tivessem intenção imediata de promover o povoamento e fundação de núcleos populacionais. Com os ataques à Colônia do Sacramento promovidos pelos espanhóis em meados da década de 1730 e o desdobramento da migração primeira das famílias paulistas que fundaram a Laguna em direção ao sul, a fixação de povoadores teve início. Justamente por ser novo e por ter o imenso tesouro em animais a ser explorado, o Continente do Rio Grande de São Pedro foi um pólo atrativo de populações na primeira metade do século XVIII. Assim, por vezes em movimentos mais lentos, por vezes em grandes levas migratórias, homens, mulheres e crianças foram chegando ao Continente. Alguns grupos são então claramente identificáveis: os soldados enviados por Sua Majestade; os casais de açorianos transmigrados das ilhas; os “paulistas” que tinham, por seu modo de vida e sistema de heranças, a necessidade de migrar para áreas longínquas, abrindo fronteiras (Metcalf, 1983); os indígenas — principalmente de etnia guarani e minuano — que já habitavam o território, os condutores e os comerciantes dos gados e outras atividades correlatas e os escravos, trazidos ou adquiridos por qualquer um desses outros grupos. Todos os que chegavam eram bem-vindos, no intuito de “dar calor” à povoação, expressão que consta em alguns documentos de época.

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Migrados em famílias ou isoladamente, viriam a formar a sociedade que se esboçava. Sendo, portanto, a ocupação recente e tão heterogênea, estes novos habitantes deviam tomar algumas medidas para forjar seus modos de identificação e de pertencimento aos grupos que promoviam o povoamento. Claro ficou, desde cedo, que no isolamento nada prosperaria nessa terra, avassalada pelo frio e pelo vento polar, no inverno; pelos insetos e pelo calor, no verão; e a todo tempo pelas investidas de indígenas e, principalmente, de espanhóis.

IV. Os nomes e as origens Um dos modos de forjar e estabelecer uma relação de pertencimento ao grupo, ao lugar ou à família, parece passar pela escolha do nome das crianças. Ao que tudo indica, este processo se dava em duas fases. A primeira, na pia batismal, no ato de escolher o prenome do rebento. Os livros de batismo consultados raramente registram nome e sobrenome ou dois prenomes (ADPRG, 1LBat-RG, 2LBat-RG, 3LBat-RG, 4LBat-RG, 1738-1763; ADPRG, 1LBat-Estreito, 1763-1776). Segundo o ritual católico, sob orientação dos dispositivos das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (Da Vide, 1707), o padrinho — responsável pela criança ante Deus — propiciaria um prenome ao recém-nascido e renunciaria ao demônio em seu nome. Assim registraram-se os Franciscos, as Marias, os Antônios e as Luzias. Somente num segundo momento, no avançar da vida dessa criança, conforme pôdese observar, seria agregado um sobrenome, não necessariamente o dos pais, podendo ser também o dos avós, de algum parente mais distante ou, em alguns casos, sobrenomes cuja origem não pôde ser percebida ao longo da pesquisa, talvez remetendo aos padrinhos ou a alguma forma de homenagem a pessoas próximas, poderosas ou queridas da família. Podia também ser trocado o nome ou o sobrenome em alguma altura da vida. Aparentemente, a

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escolha destes nomes e sobrenomes ocorria de maneira caótica aos olhos desse século XXI. Entretanto, ainda que não houvesse necessariamente uma norma clara, redigida e formalizada para sua adoção, estas escolhas deveriam estar submetidas a uma lógica e a uma intenção que nos escapa em sua totalidade, que não podemos alcançar de modo completo. Quando muito, podemos esboçar, a partir de certas recorrências e do acompanhamento de alguns casos, um contorno muito tênue para essa lógica dos que viveram o século XVIII. Muitas vezes o local do nascimento era agregado ao nome ou surgia substituindo um sobrenome pré-existente. Tais parecem ser os casos de Custódio Ferreira de Oliveira Guimarães, filho de Domingos Ferreira Oliveira e Isabel Ferreira, natural da Vila de Guimarães, em Portugal (AHCMPA - Autos Matrimoniais de Custódio Ferreira de Oliveira Guimarães e Desidéria Maria Bandeira, 1763), e de Antônio Alves Chaves, filho de Domingos Pires e Catarina Dias, nascido na Vila de Chaves, também em Portugal (Carvalho, 1975: p. 134). Às mulheres, mais do que o sobrenome, era agregado o nome de um santo ou de algum advento religioso, como “de Santo Antônio”, “da Anunciação”, “do Espírito Santo” ou “do Sacramento”. Bem mais comum do que portar um sobrenome, as mulheres ostentavam um segundo prenome, dando origem às “Gertrudes Marias”, “Inocências Antônias” e “Joaquinas Rosas” (AHCMPA - Róis dos Confessados de Viamão 1751, 1776, 1778; AHCMPA - Treslado do Rol dos Confessados de Triunfo, 1758). Ficou claro existir uma flexibilidade maior nos registros dos nomes femininos efetuados pelos párocos e autoridades do que nos masculinos. Isso é muito evidente no caso de algumas mulheres. A mulher de Antônio José Pinto no Rol dos Confessados de Viamão de 1776 foi registrada como Felícia Maria; dois anos depois surgiu como Feliciana (AHCMPA, Rol dos Confessados de Viamão, 1778), e na Relação dos Moradores de

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Viamão de 1784, após a morte de seu marido, seu nome é escrito como Felícia Antônia de Oliveira (AHRGS, cód. F1198 A e B, 1784). Essa foi a primeira vez, em arrolamentos populacionais, que tal senhora surgiu com um sobrenome agregado, talvez denotando a nova posição de chefe de uma família ou de um domicílio, após o passamento de seu marido. Uma outra prática curiosa da época que também se deixa perceber é que o sobrenome de uma mulher flexionava de acordo com o gênero. Tem-se como exemplo Francisca Velosa (AHCMPA, Registro de batismo de Manuel, 12/08/1758, 1LBat-Viamão, 1747-1759) e Domingas Ferreira Pinta (ADPRG, 3LBat-RG Registro de batismo de Inácia, 16/04/1759, 1738-1763). Muitos outros exemplos poderiam ser dados aqui, pois registros dessa natureza não faltam. Os escravos, por sua vez, possuíam um nome de batismo apenas, salvo exceções. Tem-se exemplo dessas exceções em Inácio da Silva e Antônia da Costa, escravos de Manuel Francisco e padrinhos do menino Inácio, escravo de Manuel Pereira (Domingues, 1981: p.1), e Teodoro Ferreira, escravo de Francisco Pereira Gomes (AHCMPA, 1LBatViamão, 26/07/1749, 1747-1759). Uma interessante exceção é o casal Inácio de Aranda e Luzia de Aranda, escravos casados de Antônio de Aranda, que detêm o sobrenome de seu proprietário (ADPRG - Registro de Batismo de Catarina, 09/04/1756, 1LBatRG, 17541757). Para a Vila do Rio Grande não era o mais comum. Mas não era exceção se pensado em termos de Colônia. O pesquisador Donald Ramos, ao estudar uma paróquia mineira, acompanhou a trajetória à pia batismal de um homem importante e seus escravos. Verificou que os escravos que ali mais compareciam na situação de padrinhos tinham um dos sobrenomes de seu senhor (Ramos, 2004). O sobrenome aparece com freqüência maior, todavia, para os pardos e/ou forros (ADPRG, 1LBat-RG, 2LBat-RG, 3LBat-RG, 4LBat-RG, 1738-1763; AHCMPA, Autos Matrimoniais, 1756-1769; ADPRG- 1LBat-Estreito, 1763-1776; AHCMPA - 1LBat-

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Viamão, 2LBat-Viamão, 1747-1765, Kühn & Neumann, prelo). Ao que tudo indica, assumir o sobrenome de quem lhe fora dono ou construir um com sua vivência também podia marcar o ingresso no mundo da liberdade. Essa sim, a mais drástica mudança possível nessa sociedade: deixar de ser propriedade de outrem para ser seu próprio senhor. A constituição de uma família de acordo com os mandamentos da Santa Madre Igreja também favorecia a aquisição de um sobrenome, como no exemplo do casal de Aranda, no qual marido e mulher, casados legalmente, possuíam sobrenome. Junto com a família ou com a liberdade, deter a posse de um nome por completo dava a possibilidade de construir sua vivência familiar ou em liberdade, este bem, este patrimônio, muitas vezes hereditário. Mesmo o mais pobre dos homens, o forro e o escravo, poderiam ter um bem a legar à sua descendência. Parece ter sido usual eleger um dos sobrenomes em detrimento do outro. Cristóvão Pereira de Abreu, natural de Ponte de Lima, arcebispado de Braga (ACMRJ - Registro de Casamento de Cristóvão Pereira de Abreu e Clara Amorim, Candelária, 1708) é constantemente referido nos registros documentais como Cristóvão Pereira, apenas. Jamais se encontrou alusão, na documentação lusa ou castelhana consultada, a qualquer referência a Cristóvão de Abreu. Nuno Gonçalo Monteiro observa que, para a alta nobreza lusa:

Como já foi salientado, não existiam regras para a constituição dos apelidos. Em geral, o apelido mais importante era o primeiro que os senhores das casas utilizavam depois do nome ou nomes próprios, normalmente acrescidos de todos os correspondentes aos diversos morgados por eles administrados. (Monteiro, 1998: pp. 88-89)

Entre irmãos não é difícil encontrar sobrenomes díspares para filhos do mesmo casal, divergindo, também, para as mulheres em uma mesma família. Incomum, para muitas famílias, é encontrar toda a prole com um mesmo sobrenome, como exemplificado nas filhas de Antônio Furtado de Mendonça e Isabel da Silveira, oriundos da Ilha do Faial.

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As cinco moças adotavam o sobrenome da Silveira, herdado de sua mãe Isabel. Sobre isso, também para a alta nobreza lusa, diz Monteiro:

Os filhos segundos podiam usar apelidos diversos dos do primogênito, mesmo se passando com as filhas, que tomavam muitas vezes o primeiro apelido da mãe, da avó paterna etc. Os casos de uso do(s) mesmo(s) apelido(s) pela prole numerosa do mesmo casamento de um Grande são, até um período tardio, relativamente raros. (Monteiro, 1998: pp. 89-90).

Isso também foi verificado nas práticas onomásticas do Continente do Rio Grande de São Pedro, onde o sobrenome mais comumente utilizado é o que vinha imediatamente após o prenome ou prenomes. Importante salientar que, sendo essa a utilização dos sobrenomes pelas famílias de mais alta nobreza nas casas dos Grandes de Portugal, de alguma forma a prática se alastrou para o restante da sociedade, fazendo com que campônios do Continente do Rio Grande de São Pedro, vindos das mais distintas porções do Império, também a usassem ao atribuir um sobrenome à sua descendência. Faz valer a citação que Monteiro faz da sociedade lusa satirizada pelo Cavaleiro de Oliveira:

Não há um único apelido em Portugal que não pertença, simultaneamente, à fidalguia mais estreme e à gentalha mais baixa. (Recreação Periódica, apud Monteiro, 1998: p. 90)

Inútil, portanto, buscar uma fórmula de composição dos sobrenomes pois, acima de qualquer regra que pudesse haver, os valores de uma sociedade de Antigo Regime se faziam ver na sua atribuição e no seu uso. Os primogênitos usavam os sobrenomes mais importantes. Os sobrenomes materno e paterno podiam ser alternados, ter uma ordem “inversa” aos padrões de hoje, se o sobrenome materno importasse mais qualidade que o paterno. Sobrenomes atávicos poderiam ser usados sem nenhum constrangimento, provavelmente também dando a devida importância à qualidade da família dos avós. Ao se estudar, então, a transmissão de sobrenomes nessa sociedade, deve-se abdicar de qualquer

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pretensão a uma lógica matemática de combinações entre lado materno e paterno e ater-se aos valores dessa própria sociedade. Disso pode resultar, inclusive, a identificação de linha de descendência, seja ela materna ou paterna, como detentora de mais qualidade, de mais prestígio e/ou posses do que a outra. Na vida cotidiana do Continente, o segundo sobrenome, ao que parece, era muito mais usado para discernir dois homônimos não aparentados que coexistiam na mesma localidade. Assim, Francisco Pinto, filho de Francisco Pinto e natural da Ilha de São Miguel, não era confundido com Francisco Pinto Bandeira, natural da Vila da Laguna, durante o tempo no qual viveram na jurisdição da igreja da Vila do Rio Grande (ADPRG 1LBat-RG, 2LBat-RG, 3LBat-RG, 4LBat-RG, 1738-1763), ainda que, em muitos documentos que colocam as patentes militares, propriedades ou mercês, o sobrenome Bandeira desse Francisco Pinto pudesse ser omitido (Biblioteca Riograndense, 1937). Várias outras observações poderiam ser feitas acerca das opções no ato de dar o nome ou no ato de eleger um nome para passar a identificar-se. Entretanto, não são esses os propósitos dessas páginas. Antes, pretende-se chamar a atenção para alguns aspectos de dois dos problemas recorrentes ao longo da pesquisa: discernir pai e filho homônimos na documentação consultada e entender um pouco da dinâmica que cerca o nome nessa fronteira colonial, esboçando algumas idéias acerca de sua construção e seus usos.

IV. De pai para filho José da Silveira Bitencourt tinha um filho com o mesmo nome. Ambos eram açorianos da Ilha do Faial. Na década de 1750, produziam muares e estavam envolvidos nos negócios que cercam o comércio de gados vacuns, cavalares e muares e os contratos dos direitos das passagens dos animais, cobrados sobre os rebanhos deslocados para além do Continente do Rio Grande de São Pedro. Em algum momento de suas vidas, ambos

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possuíram patentes militares concomitantemente: o pai era capitão e o filho alferes. Nesse ponto, houve certa facilidade em discerni-los, até porque estando o filho servindo sob o comando do pai, na mesma companhia estabelecida na Vila do Rio Grande, alguns registros acerca das ordens dadas ou de suas atividades nas tropas, diferenciam o filho com a desinência “o moço”, quando não é citada a patente. Não foi notada essa separação em outra sorte de documentação ou mesmo em período posterior. Todavia, a alegria de poder discerni-los durou pouco. O pai pediu sua baixa dos exércitos e a patente de capitão foi passada do pai para o filho, com homologação de Gomes Freire de Andrade (RAPM XXIII, 1929: pp. 571-572). O José da Silveira Bitencourt, pai, nunca deixou de ser referido como capitão, usufruindo, ainda que desligado das tropas, do prestígio associado à patente. O José da Silveira Bitencourt, filho, passou também a ser chamado de capitão, usufruindo, por sua vez, de uma benesse real que já estava vinculada a sua família há uma geração. Desse ponto em diante, a menos que fosse citado o nome da esposa ou a idade do José da Silveira Bitencourt em questão, o que raramente surgiu nos registros consultados, tornou-se praticamente impossível diferenciálos. Algo análogo se deu com dois Domingos Gomes Ribeiro, pai e filho. Ambos serviram aos exércitos de Sua Majestade. Como quase todos os maiorais do Continente, estavam também envolvidos nos negócios de rebanhos e outras atividades correlatas (AAHRS, v. 1, 1977: p. 318). Possuíam escravaria (Queiroz, 1987: p. 98) e foram proprietários de sesmarias tanto próximas à Vila do Rio Grande como nos Campos de Viamão (RAPM, XXIII, 1929: pp. 474-475; RAPM, XXIV, 1933: pp. 248-250). No caso dos Gomes Ribeiro, obter a exata datação dos documentos a serem utilizados na pesquisa tornou-se essencial. As características de pai e filho eram tão semelhantes que só se tem certeza de ser o filho agindo, e não o pai, quando isto se dá após

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o óbito do genitor, que “morreu de tiro que lhe deram no passar do Arroio do Curral do Fiúza” (Domingues, 1990: pp. 111-112), ou quando está expressa a filiação. Esta geralmente foi observada em alguns registros de batismos, principalmente quando a madrinha era Dona Antônia de Morais Garcês que, sendo a segunda esposa de Domingos Gomes Ribeiro, pai, várias vezes formou par à pia batismal com o enteado homônimo de seu marido, como no exemplo que abaixo segue:

Violante filha legítima de Gregório Gonçalves natural da freguesia de Santa Catarina de Castelo branco da Ilha do Faial e de sua mulher Josefa Maria natural da freguesia de Santa Bárbara dos Cedros da dita Ilha (...). Foram Padrinhos Domingos Gomes Ribeiro solteiro filho do Sargento Mor Domingos Gomes Ribeiro, e Dona Antônia de Morais Garcês mulher do dito Sargento Mor (ADPRG - 4LBatRG, Registro de batismo de Violante, filha de Gragório Gonçalves e Josefa Maria, 01/11/1760. 1759-1763 - grifo meu)

Não ocorrendo esse tipo de diferenciação, só se pode afirmar ser pai ou filho quando o jovem ainda não tinha idade suficiente para envolver-se nos eventos em questão ou por já estar morto o pai. Em boa parte dos casos em que agiu um dos dois Domingos Gomes Ribeiro pairam dúvidas acerca de qual deles foi o agente. Como será visto mais adiante, essa dúvida, por vezes, não chega a ser nociva, já que os atos podem ser compreendidos como um ações familiares e não pessoais ou “individuais”. Outros exemplos poderiam ser trazidos para ilustrar a questão que se coloca. No Continente do Rio Grande de São Pedro ou na Vila da Laguna, ponto de origem de alguns de seus primeiros povoadores, existiram alguns tantos pais e filhos homônimos e que são com freqüência encontrados nos registros documentais. Assim se passa com homens oriundos também de outras regiões da Colônia e da própria península. Alguns estavam só de passagem, mas deixaram suas marcas na constituição de uma sociedade nas terras meridionais. Com suas vidas associadas ao povoamento sulino, existiram como pais e filhos, entre outros, dois João de Magalhães, um nascido em Portugal e outro na Vila da

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Laguna (AHCMPA - 1LBat-Viamão, 1747-1759, Kühn & Neumann, prelo); dois Francisco de Brito Peixoto, paulistas que passaram à Laguna, um deles, posteriormente indo morar em Viamão (Cabral, 1976: p. 60); dois José Fernandes Pinto Alpoim, ambos portugueses da península, ao que consta (RAPM, XXIV, 1933: p. 99), e dois José Francisco, que viviam na Laguna e estavam engajados na expedição de Demarcação dos Limites do Tratado de Madri (RAPM, XXIII, 1929: pp. 441, 439; RAPM, XXIV, 1933: pp. 60, 99). De Sorocaba, dois Manuel dos Santos Robalo tiveram terras e membros da família no Continente (AHCMPA - Rol dos Confessados de Viamão - 1751a; AHCMPA - Autos Matrimoniais de Manuel dos Santos Robalo e Ana Porciúncula, 1761) Quanto a Manuel Antunes da Porciúncula existiram, no mínimo, quatro em descendência direta: pai, filho, neto e bisneto, sem contar demais parentes que compartilhavam do mesmo nome (Rheingantz, Título João Antunes da Porciúncula. 1979: pp. 12-29). Por deslizes em uma investigação ou mesmo por superficialidade, Manuel Antunes da Porciúncula poderia receber atributos de longevidade extrema e de onipresença. Mais do que nunca, é exigido ao pesquisador um rigor metodológico na utilização dessas fontes, conforme recomendações e métodos para a conexão de registros nominais encontradas nos capítulos de Identifying People in The Past (Wrigley, 1973). Com isso, talvez se escape dessas falsetas intencionalmente provocadas pelos homônimos ou ao menos reduza a margem de incertezas. Alguns desses pais e filhos eram referidos como “o moço” e “o velho”, como dito para o caso dos José da Silveira Bitencourt, servindo um sob ordens do outro. Mas nem sempre isso ocorria, ou melhor dizendo, quase nunca ocorria. Um caso especial no qual essas desinências foram utilizadas será discutido mais adiante. Passar o nome ao filho e permitir que pai e filho fossem designados pelo mesmo nome, sem acréscimo de partículas diferenciadoras, trata-se, portanto, de uma prática

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recorrente e disseminada por vários locais de domínio português, claramente perceptível nos habitantes e andantes do Continente. Isso podia fazer parte das práticas da alta aristocracia mas, de algum modo, gente sem nobreza ou com, no máximo, uma fidalguia de pouca relevância, também adotava tal uso. Assim como outras práticas da nobreza que se notaram nas famílias de menor estatuto social, esta também parece ter sido incorporada pela sociedade como um todo. Ao que parece, alguns modelos dessas práticas eram seguidos, tanto quanto fosse possível, pelo conjunto da sociedade, talvez indicando uma presença e assimilação dos valores que as instruíam, tais como a qualidade, o prestígio, a antiguidade da existência das famílias. Aqui cabe um parêntese para chamar a atenção sobre o que torna tão peculiar esse tipo de homônimo. Ocorrendo entre pai e filho, ao menos um lado da ascendência é comum a ambos, e geralmente o lado paterno é frisado no nome, se for o homônimo o primogênito. Se a um ou outro for requerido mencionar suas origens familiares ou a procedência geográfica de sua família, pelo menos metade da história familiar do filho é coincidente com a do pai. Pai e filho, salvo acidente do destino, compartilharão ao menos uma parte de suas existências adultas na mesma região, na mesma família, com os mesmos vizinhos, amigos, parentes, aliados e inimigos. Às identidades de duas vidas distintas é facultada uma certa fusão. De todas as outras possíveis categorias de homônimos, esta, ao menos no momento em que pai e filho são homens adultos e coexistem, impede ou, no mínimo, dificulta o discernimento entre um e outro. Acreditando-se, dado a recorrência destes casos, que os homônimos não acontecem por acaso, que são fruto da intenção de pais e filhos, há que se supor que esta fusão de identidades seja o objetivo das desinências coincidentes destes homens. Assim, pensa-se aqui esses nomes em comum, de pai e de filho, como sendo um “modelo” quase que perfeito para os outros tipos de homônimos. Nessa perspectiva, no fundo de sua intenção,

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deseja também gerar uma espécie de “fusão” de duas pessoas distintas, padrinhos e afilhados, avôs e netos ou ilustres desconhecidos. Correndo o risco de cair no abuso da linguagem, poder-se-ia dizer que esses outros tipos de homônimos, dados entre tios e sobrinhos, avós e netos, padrinhos e afilhados, são formas “defectivas” daquela primeira, em que grande parte do passado familiar é compartilhado por pai e filho. Às vezes, a apropriação do nome de algum personagem de relevo na sociedade ocorria, sem que houvesse qualquer tipo de parentesco, como se fosse homenagem ou vontade de absorver atributos do dono primeiro do nome. A idéia de um conjunto de prenomes de uso restrito a um grupo social ou familiar e indicando o pertencimento a ele é conhecido pelos estudiosos franceses como o “padrão clássico” do período moderno. A intenção que permeia esta prática não é a de individuação e sim de pertença ou de mimetização (Boutier, 1988). Alguns grupos e famílias, ainda que não possuíssem “monopólio” dos conjunto de prenomes utilizados, os tinham como sendo característicos de seus grupos, com certas tendências de transmissão que envolviam avós, tios e padrinhos, tanto da linha materna como da linha paterna (Fine, 1984). Foram identificados alguns privilégios dados aos detentores de prenomes que se repetem na família no momento da partilha de heranças. Na maioria dos casos, por não serem as trajetórias tão semelhantes, só “enganam” aos incautos. Mas os homônimos dentro do mesmo grupo, ainda assim geram uma identificação e um pertencimento a este grupo. Também geram elos entre os detentores do mesmo nome, repassado dentro da família propriamente dita ou da família espiritual que se estabelece na pia batismal, no ato do batismo ou no ato da confirmação do batismo, a Crisma. Do entendimento dos homônimos “pai e filho”, talvez venham os elementos para entender também que sorte de vínculos e fusão de identidades eram possíveis nestas formas “defectivas”, que serão abordadas mais adiante.

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Destaca-se aqui, porém, que na pia batismal geralmente foi escolhido apenas o prenome da criança, raramente dois prenomes e, mais raramente ainda, prenome e sobrenomes. O nome completo, pelo qual seria reconhecido pela sociedade coeva e mal identificado pelos historiadores do futuro, era assumido ao longo da existência da pessoa. As trajetórias pessoal e familiar são as que iriam agregar um segundo prenome e um sobrenome ao corpo e à alma que se batizou algum tempo após o nascimento. Mais do que a atribuição, parece tratar-se da “construção” de um sobrenome. A ele estariam unidas as atitudes praticadas ao longo da vida e que fariam com que um “Domingos” se tornasse um Domingos Gomes Ribeiro, e um “José” viesse a ser um José da Silveira Bitencourt. A ciência de que a vida pregressa estaria associada ao nome, ao identificador do sujeito, talvez levasse os homens e as famílias a privilegiar o repasse do nome do pai a um dos rebentos. Eram dois e ao mesmo tempo um, pois continuavam-se um no outro. O nome não era apenas desinência de um indivíduo; antes, designava uma espécie de entidade, entidade esta pertencente à família ou ao grupo no qual estavam inseridos. O ato de assumir um sobrenome e toda a carga a ele vinculado era, portanto, posterior ao nascimento, em sua construção; anterior ao nascimento, como prática de conservar e repassar a outros membros do grupo, clã ou família, atributos obtidos na experiência do povoamento e conquista dos territórios sulinos. Estes atributos eram importantes e com certa freqüência reportados nos registros paroquiais, como no caso de Lucas Fernandes da Costa e sua mulher, Joana Maria da Purificação. No registro de batismo de Joaquim, filho deste casal, aparece a observação do pároco: “povoadores deste novo estabelecimento” (ADPRG, 1LBat-RG - Registro do batismo de Joaquim, filho de Lucas Fernandes, 26/06/1740, 17381753) Em alguns casos, torna-se evidente que, havendo a opção do uso dos adjetivos “o novo” ou “o moço” e “o velho”, que propiciasse o discernimento entre pai e filho, esta não

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era amiúde adotada. Antes, parece que esta possibilidade estava guardada para um momento extremo, que será exemplificado mais adiante, no caso dos dois João de Magalhães. Eis que quase no limite do desespero por não conseguir distinguir, em muitos casos, o pai e o filho, veio a hipótese que agora se tenta esboçar: havia nessa sociedade o desejo e a intenção de que pai e filho fossem “de fato” confundidos em uma única pessoa. A necessidade de distinção entre um e outro é um problema colocado pelo historiador de nosso tempo, e não para as populações que viviam o “fazer-se” da sociedade sulina. Ao contrário: a vida do filho como sendo uma extensão da vida do pai, e por conseqüência de um “ente” longevo dentro de uma família e de um ambiente social, com ações e práticas já conhecidas, parece dar sustento à essa existência do indivíduo — se é que assim se pode chamá-los, já que não se trata de um período em que a individualidade estivesse posta em questão — e das famílias as quais pertenciam, em meio às outras famílias, autoridades e estranhos. A (con)fusão de pai e filho em uma única pessoa parece ter sido quase que uma meta a ser perseguida na maioria dos casos de homônimos. Ainda mais quando se tem claro que, mesmo vivendo em uma sociedade em que havia a escrita, a imensa maioria da população era analfabeta. A tradição oral, o repassar de histórias e “causos”, que partiam da boca dos mais velhos para os ouvidos e memória dos mais novos, era prática recorrente. Não raras as situações em que sob suspeita de existir interdito ao matrimônio dado um parentesco próximo, os anciãos ou pessoas mais inteiradas dessas relações familiares fossem chamados a depor. Assim, desfiando os elos familiares contidos na lembrança, testemunhavam nos processos de casamento, reafirmando o interdito ou liberando os noivos para a união. Um exemplo formidável dessa memória coletiva e familiar encontrase na documentação acerca do casamento de Antônio Alves Paiva, natural de Sorocaba, e

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Andreza Velosa Maciel, natural de Viamão. O testemunho de Salvador Domingues Rodrigues, solteiro, então com 48 anos, morador de Viamão e antigo morador da Vila de Sorocaba, abaixo transcrito, reflete essa situação, relato que é repetido, com pequenas variações, por outras testemunhas deste casamento:

"[disse que] conhecia muito bem o mesmo justificante, seus pais, seus mesmos avós porque eram todos vizinhos de porta e se criaram juntos e que sabia ele testemunha muito bem que eram parentes porque conheceu o capitão mor Brás Mendes Pais e seu irmão o sargento mor Pedro Domingos Pais e do capitão mor nasceu Maria Pais Moreira e de Maria Pais Moreira nasceu Maria Moreira Maciel, mãe da sobredita contraente Andreza e do sargento mor nasceu Messias Soares Pais e de Messias nasceu Isabel Soares, mãe do justificante Antônio que sendo os bisavós o capitão mor e o sargento mor irmãos legítimos, 1o grau de sangüinidade no 2o fica sendo Messias com Maria pais Moreira prima 2a, e Maria Moreira Maciel com Isabel Soares Pais prima 3a e destes 3os primos nasceram Antônio e Andreza contraentes que vão para o 4o grau" (AHCMPA - Depoimento de Salvador Domingues Rodrigues nos Autos Matrimoniais de Antônio Alves Paiva e Andreza Velosa Maciel – 1762).

O repassar das genealogias através dos relatos orais, tendo a memória humana como sua principal portadora, ao que parece, contribuía na fusão dos agentes históricos do período que compartilhavam o uso do nome. Mesmo quando esses relatos foram grafados sob forma de memórias e crônicas, a fusão provavelmente já estava dada na lembrança dessa coletividade. Não parece acaso terem existido. O fenômeno não é exclusividade da porção meridional da Colônia, nem tampouco do século XVIII. Na segunda metade do século XIX, Alfredo do Valle Cabral escreveu suas Questões de História já preocupado em distinguir entre os “três João Ramalhos” existentes na capitania de São Paulo ao século XVI, concluindo serem dois provavelmente pai e filho e um terceiro alheio a esta família (Cabral, 1954). As genealogias, primorosamente escritas, antes de registrar os eventos vitais das famílias, registravam a construção de um passado, fosse ele de tradição oral, fosse ele “inventado” para servir a diferentes propósitos, tais como provar a pureza de

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sangue ou fidalguia, conforme demonstrado por Evaldo Cabral de Mello em O Nome e o Sangue (2000). Isso não quer dizer que o pesquisador deva curvar-se ante o fato de duas existências estarem fundidas em uma só, passando a tratá-las como um único ente. Pelo contrário, deve esforçar-se em discerni-los, mas tendo em mente que estará nadando contra a correnteza, contra uma atitude intencional dos homens d’antanho que fazem parte do seu objeto de estudo. Mas é importante saber que, com toda certeza, uma “sabotagem” à sua pesquisa foi cometida no momento em que os registros documentais foram efetuados: os homens do passado fizeram tudo o que foi possível para que os homens do futuro, dentre os quais nós, os historiadores, não soubessem onde termina o pai e onde inicia o filho. O “problema” de tal discernimento é colocado hoje, para os pesquisadores, mas não era um “problema” para a sociedade sulina do século XVIII. Ao contrário, tudo dá a entender que o “problema” que ao menos uma parcela dessa população tinha era o de gerar e engendrar formas de anuviar este discernimento, fundindo duas ou mais pessoas em uma única existência. Essas pessoas eram, geralmente, pai e filho, embora, de maneira menos freqüente, podiam ser tio e sobrinho, avô e neto, padrinho e afilhado. Recurso muito utilizado pelos homens, mas de maneira nenhuma exclusivo de seu gênero, já que mulheres também possuíam o nome de suas mães, avós, tias e madrinhas.

V. Em nome do pai Ao falar sobre os fundamentos antropológicos da família no Antigo Regime, Hespanha se detém no “especial laço com a qual a Natureza ligara os seus elementos por normas inderrogáveis. Este elemento era o ‘amor’” (Hespanha, 1988: 245). Apesar de já referir-se à existência de traços de uma concepção individualista da sociedade, solapando a existência da família na Europa do século XVIII, em Portugal ela ainda era vista como uma

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unidade social em si, repleta de relações internas que estabeleciam direitos e deveres para pais e filhos, marido e esposa:

“O amor (ou piedade) familiar desdobrava-se em vários sentimentos recíprocos. O amor dos pais pelos filhos, superior a todos os outros funda-se no sentimento de que os pais se continuam nos filhos. Estes são, assim, uma extensão da pessoa que lhe lhes dá o ser, ou seja ‘a mesma pessoa’ (...)”(Hespanha, 1988: 245).

Diz ainda Hespanha que, em se tratando do direito português, sobre o pai repercutiam os atos dos filhos, suas aquisições, dívidas, etc. (Hespanha, 1988: 245). Ainda que o autor não siga adiante neste caminho, através desta sua indicação — a família institui direitos e deveres, assim como sentimentos recíprocos — é lícito imaginar que sobre os filhos recaíssem os atos dos pais. Quando do passamento do genitor, a viúva, assim como os filhos, ficavam responsáveis pelas dívidas do pai, tanto as passivas quanto as ativas. Nem a morte terminava o elo existente em vida. A viúva e/ou sua prole continuavam a zelar pela alma do ente amado que partira, mandando dizer missas e fazendo doações pias, honrando sua memória e seu nome. Ora, se o Direito português reconhecia e regulava essa continuidade do pai no filho, parece bastante lógico que os vassalos de Sua Majestade, mesmo nos mais longínquos rincões por onde seus domínios se estendiam, tivessem esta idéia de continuidade impregnada em suas vidas. Aos filhos caberia dar consecução à obra do pai. No caso dessa fronteira sulina, aos filhos caberia a consolidação da posse dos territórios conquistados pelos pais e a consolidação da ordem da sociedade da qual seus pais lançaram os alicerces. Remetendo ao contexto da América meridional, há que reafirmar aqui que o território, ainda que próximo ao litoral, teve sua ocupação tardia, se comparado a outras regiões da orla. Era um território novo para o qual concorriam populações de diversas origens, embora, excetuando-se as parcelas indígenas, nenhuma vinculada há mais de uma

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geração à região que se povoava. Nenhuma das terras ainda pertencia por direito ancestral ou tradicional a nenhuma das famílias ali chegadas. As sesmarias dadas por Sua Majestade, dependiam, ao menos na legislação, da posse efetiva e em fazer as terras produzirem. Podiam ser retiradas da posse de um e passada à posse de outro, caso não fosse atestada a existência de lavouras, criação ou benfeitorias, se não fosse comprovada a sua ocupação e produção. A continuidade da posse sob um “ente” aparentemente longevo, ao que tudo indica, poderia ser facilitada. As terras, assim como os cargos públicos e as patentes, de onde podiam advir os “prós e percalços”, eram dados por Sua Majestade e seus representantes na Colônia, a este tempo, preferencialmente àqueles súditos que houvessem prestado serviços na conquista destes territórios (Thomaz, 1994: 430-431, Fragoso, 2000: 67-82). Muitos dos sesmeiros do Continente do Rio Grande de São Pedro eram veteranos das batalhas para a manutenção da Praça da Nova Colônia do Sacramento, alvo de ataques dos espanhóis e dos “índios dos padres das Missões”, boa parte dos quais detentores de patentes militares ou da ordenança, também mercês dadas por Sua Majestade visando o bom serviço ou retribuindo um já prestado. Alguns outros detentores de posses de terras haviam participado das pioneiras tentativas de ligação, por via terrestre, do extremo-sul às imediações de São Paulo. A consolidação dessa rota foi vital para dar vazão aos rebanhos de animais até seus mercados consumidores que deles necessitavam para o transporte de cargas nas regiões interioranas. Do bom funcionamento dessa rota e desse comércio entre duas áreas distantes dentro do domínio português dependia a circulação de bens e mercadorias no interior da Colônia. Sua Majestade, sabedora do fato, foi pródiga no reconhecimento desse serviço. Praticamente todos os participantes identificados da expedição de Cristóvão Pereira de Abreu para a abertura do Caminho das Tropas acabaram por possuir, com ou sem homologação da

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Coroa, uma ou mais porções de terras. Ao que tudo indica, mesmo aqueles que não possuíam carta de sesmaria, jamais foram importunados ferrenhamente pelas autoridades no questionamento dessas posses. Talvez até porque desse grupo também tenham saído algumas dessas autoridades locais. Assiste-se assim, nos trinta primeiros anos de existência dos núcleos populacionais sulinos, o surgimento das famílias com “tradição” nas novas terras. Os conquistadores, os pioneiros, os primeiros povoadores, fundavam e forjavam com seus atos os “direitos e os costumes” para a nova terra que nascia junto com essas “tradições”. Um desses costumes no limiar do povoamento era a clara distinção entre aqueles que participaram dos momentos iniciais de conquista e defesa dos territórios e os que chegaram depois. Atributos de semi-heróis que podiam ser repassados aos filhos, sob forma de prenome, prenome e sobrenome e de sobrenome, apenas. Caberia aos seus filhos, em nome da bravura e disponibilidade de seus pais no bem servir a Sua Majestade, a consolidação de suas conquistas, ou seja, a continuidade dos propósitos de suas vidas. A continuidade de suas vidas. A continuidade do nome, portanto.

VI. O nome como um bem a ser legado, negado, usado e usufruído Assim como o nome é agregado ao homem e construído ao longo de sua vida, pode pensar-se na relação inversa, onde as ações e a história de uma vida eram agregadas ao nome. O nome passa a significar uma (ou mais de uma) existência. O nome, em si, passa a ter uma existência. Alguns nomes, ao serem pronunciados, provocam reações, mesmo que os sujeitos aos quais designam não estejam presentes. Nomes causam temor, inspiram respeito, desdém ou malícia. Certos nomes provocam risadas. Os nomes estão impregnados com os atributos dos homens ao quais identificam. Os representantes e procuradores não se

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dizem agindo por um ou outro homem, mas “agindo em seu nome”, ou seja, por um período de tempo ou em algum lugar específico, obtêm a licença legal para responder por um nome; têm, ainda que cerceado, o direito de uso de um nome. As duas ações, agregar atributos ao nome que uma pessoa portava e agregar a uma pessoa um nome repleto de atributos eram simultâneas e complementares, portanto. Esses atos não se extinguiam, sendo também transmitidos dentro de uma família ou outra sorte de agrupamento. O nome adquire, assim, significados que ultrapassam a mera utilidade na identificação dos agentes históricos. Incorpora propriedades, famílias, inimizades, mercês, localidades, direitos, deveres e responsabilidades; incorpora a história pessoal e, em muitos casos, a história familiar. O nome passa a ser, tanto quanto os bens materiais, um patrimônio familiar. O nome adquire uma função social para além da desinência de uma pessoa. O nome passa a ser um bem a ser legado e, às vezes, negado. Ao buscar caracterizar em que tipo de bem se enquadra o nome — e aqui entendase um nome “completo”, formado por prenome e sobrenome(s) — recorreu-se ao auxílio de Maurice Godelier que, em obra publicada no Brasil nessa década de 2000, retorna ao estudo do dom, iniciado por Marcel Mauss. O “enigma do dom”, tal como Godelier o denominou, estaria, segundo o autor, associado à “quarta obrigação do dom”, ou seja, à reciprocidade entre desiguais. Essas obrigações, por sua vez, teriam seu surgimento no primeiro de todos os dons: a vida que todos os homens devem aos seus deuses, e que, por mais que façam oferendas e sacrifícios, nunca será retribuída. Disso derivaria que, ante pequenas ofertas (ou dádivas) aos deuses (ou seus representantes na terra, ou ainda, categorias especiais de homens/elos entre os mortais e as deidades), adviriam dons muito maiores, por vezes imensuráveis. Estes, por estarem diretamente ligados à esfera divina, seriam dados especialmente a um homem ou a um grupo de homens — família, clã ou tribo. Por possuírem certa quantidade de “magia”,

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dariam “poderes” especiais a seus detentores. Como as graças foram dadas a um grupo especial, de sua posse dependeria a sua posição — decorrência da dádiva dos deuses — no grupo maior onde estava inserido. Ainda assim, como jamais foram “realmente” quitados com seu doador primeiro (a divindade, os espíritos, os ancestrais, os conquistadores e — porque não? — os primeiros povoadores), não “pertenceriam” de fato ao grupo. Seguiriam sendo propriedade da entidade que cedeu a posse — mas não a propriedade — e o direito de uso, ao grupo de homens. Tal entidade, no caso sob estudo, não se trata de uma deidade, mas do Rei, que em última análise, também goza de atributos senão divinos, ao menos de uma semi-divindade, já que incorpora o Estado, a Justiça e mantém uma relação quase que paternal com os seus súditos. Da quarta obrigação do dom surgiria, portanto, uma categoria de bens que estaria excluída do circuito de trocas entre os homens. Bens que jamais poderiam ser dados ou alienados, por ninguém ter o direito total sobre eles, mas cujo uso ou posse poderia ser transmitido de grupo a grupo, de geração a geração. Godelier destaca nesta categoria de bens os objetos mágicos, certos saberes, ritos e, com menor ênfase, nomes. E sobre esses últimos, torna-se a discorrer. Poucas coisas, nos dias de hoje, estão tão associados às famílias quanto os sobrenomes. São transmitidos de geração a geração. Registram o ingresso de “estranhos” no núcleo familiar, a ascendência de um ramo, a decadência de um tronco da família ou, em casos extremos, a extinção de toda uma linhagem, por falta de geração, por incompetência ou outro fator qualquer na administração deste e outros patrimônios familiares. É permitido, então, pensar que uma criança que recebeu apenas um prenome no ato de seu batismo, incorpore, ao longo de sua existência, um bem essencialmente vinculado à sua família, ao seu grupo ou local de origem, à sua própria vida, existente antes mesmo de

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seu nascimento. O nome, este qualificador, seria repassado por quem “lhe deu o ser”: a existência física e social. Com ele, as qualidades que também já existiam antes do nascimento: uma posição numa sociedade que se formava e, a exemplo de outras regiões da Colônia luso-americana, marcada pela hierarquização social do Antigo Regime português e por diferenças entre os homens livres, mas portadores de qualidades diferentes (Fragoso, 2001). Sobre essa sociedade diz Godinho:

“Na sociedade de Antigo Regime, o mais aparente é divisão em estados ou ordens - clero, nobreza, braço popular. É uma divisão jurídica, por um lado, é , por outro, uma divisão de valores e de comportamentos estão estereotipados, fixados de uma vez para sempre, salvo raras exceções. Cada qual o como oposição numa hierarquia rígida, segundo tem, ou não, títulos e tem, ou não, direito a certas formas de tratamento.” (Godinho,1975: 72)

Aos pais, caberia designar-lhe esses bens, essas qualidades ou parte delas, agregadas ao nome que se colocava nos filhos. Podia também alijar-lhe de seu uso, eventualmente. A conquista de um sobrenome ou sua designação torna um pouco mais claro o entendimento do fato de, muitas vezes, os pais darem o mesmo prenome a dois ou mais filhos. Nasciam, assim, as duas meninas “Ana” e duas meninas “Maria”, as quatro filhas de Francisco de Brito Peixoto. Também foi assim com os rapazes “João”, filhos de João Antunes Maciel. O sobrenome — os atributos — estes se granjeariam ao longo da existência e em caso de sobrevivência das crianças, as grandes vítimas das precárias condições de higiene e salubridade vigentes a esta e a qualquer época. Vingando um rebento, o sobrenome idêntico ao do pai poderia ser-lhe passado, gerando a fusão de pessoas, dando “continuidade” ao nome. Os nomes completos, verdadeiras entidades, portanto, seriam bens familiares que poderiam ser legados. Note-se bem, por não se tratar de um bem material, cuja “propriedade” possa ser dada, mas de qualificadores, intangíveis à mão humana e

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capturáveis apenas na compreensão de seu significado, remete diretamente à quarta obrigação da dádiva, indo ao encontro do dito por Godelier. Seu uso, o identificar-se através dele, este sim é o grande legado passado de pai para filho dentro das famílias. Mais do que isso, se o filho fizesse o “correto uso” desse sobrenome, ou seja, o honrasse e engrandecesse com seus feitos, mais atributos seriam agregados a esse nome. O uso do nome poderia engrandecer um homem, mas esse homem também poderia engrandecer o nome. O bem familiar podia ser ampliado na “força”, no “mana”, na “magia” do nome, ampliado naqueles atributos que, forjados e sustentados pelas ações humanas, dão matéria para crenças que fogem ou se ocultam à razão dos homens (Godelier, 2001: 260-263). Nomear, estabelecer uma nomenclatura familiar e pessoal, nessas circunstâncias, é uma prática social que visa, antes de mais nada, estabelecer e perpetuar o “nicho” de certos homens e famílias no grupo ao qual pertenciam e ante outros grupos, podendo assumir, assim, um aspecto místico. Se ligado aos fundadores de um clã ou de uma localidade, toma forma de um mito nestes grupos. Se o nome a ser utilizado é possuidor da força que lhe estava associada desde que foi, pela primeira vez, assumido por um homem, somente um homem de características muito semelhantes poderia dar-lhe continuidade. Sendo um patrimônio construído e tendo sido legado ao filho o direito de uso, nada impede que esse direito seja cerceado. Talvez não fosse possível, na maioria das vezes, obrigar ao usuário, por má utilização, fazer a “devolução” do nome, mas parece possível que o elo, ou melhor, a fusão entre as pessoas de pai e filho, fosse rompida, por um ou por outro, ou mesmo pela família e pela sociedade, já que não havia honradez no indivíduo (aqui sim, cabendo este termo – pois agiu per se, em detrimento do grupo de pertencimento) que o portava. Exemplo disso é um dos raros casos que, na documentação consultada, há a explícita intenção de discernir pai de filho, que agora será comentado.

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VII. Quando o elo é rompido João de Magalhães nasceu em Portugal, em alguma localidade do arcebispado de Braga, em data incerta, mas provavelmente ainda no século XVII. Era filho de outro João de Magalhães e Maria Velosa (AHCMPA – 1o Livro de Batismos de Viamão. registro de batismo de Benedita, fl. 63, 1755) — que muito provavelmente não vieram para a Colônia. Em data também incerta passou às terras americanas. Casou-se com Ana de Brito, uma das filhas que Francisco de Brito Peixoto, futuro Capitão-mor da Vila da Laguna, teve com índias ditas “carijós”. O casamento provavelmente ocorreu em Santos, de onde procedia a família Brito Peixoto. Em 1715 já havia adentrado àquilo que viria a ser chamado de Continente do Rio Grande de São Pedro, numa expedição para a busca de gados e de reconhecimento, muito provavelmente atingindo a barra da Lagoa dos Patos, onde seria fundada a Vila de São Pedro do Rio Grande. Em 1725, uma outra expedição, a qual contava com trinta e um homens, entre pardos, negros e livres, foi por ele chefiada (Fortes, 1941: 22), fazendo vau à Barra da Lagoa dos Patos para, no retorno, trazer gados e informações para as famílias derivadas de seu sogro. Essas famílias dirigiram-se para o sul alguns anos depois. Por volta de 1735, juntamente com esposa e filhos, já habitava as vastas terras que seu sogro solicitara em sesmaria (mas não as recebera) nos Campos de Viamão. Da união com Ana de Brito nasceram alguns filhos, dentre os quais um que recebera o nome de João. Deste é citado o matrimônio na Genealogia Paulistana, de Luiz Gonzaga da Silva Leme: “Joanna Garcia Maciel, que foi 1o casada em 1733 em Sorocaba com Theodosio Pires Bandeira, fo de Domingos Pires e de Domingas Fernandes, naturais de Portugal; 2a vez casou-se em 1741 na mesma vila com João de Magalhães, natural da vila da Laguna, fo de outro e de Anna de Brito. (Leme, versão para Internet – grifo meu).

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No ano de 1751, João de Magalhães, pai, já havia enviuvado e casado novamente. Sua esposa, Maria Moreira Maciel, também já era viúva. Era oriunda da mesma Vila de Sorocaba. O casamento ocorreu após o ano de 1745, ano no qual Maria ficou viúva pela primeira vez. Maria foi para o sul, para a Vila da Laguna, onde muito provavelmente casou com João. Posteriormente, passou com o seu segundo esposo para Viamão. Passou a viver com o seu novo marido junto ao núcleo familiar dos Brito Peixoto. Com Maria Moreira Maciel vieram alguns filhos de seu primeiro matrimônio, que conviveram com os rebentos já tidos de João de Magalhães, pai, e Ana de Brito. Maria Moreira Maciel e João de Magalhães tiveram prole. O casamento de João de Magalhães, pai, deu-se dentro da mesma família na qual casara o João de Magalhães, filho. Maria Moreira Maciel era irmã de Joana Gracia. Nesta família também foi tomar esposa Lucas de Magalhães, outro dos filhos de João de Magalhães. Casou-se com filha do primeiro casamento de Joana Gracia. Cláudio Guterres, filho de uma irmã de Ana de Brito, primeira esposa de João de Magalhães, casou-se com uma das filhas de Maria Moreira Maciel. Andreza Velosa Maciel, filha de João de Magalhães, pai, e de Maria Moreira Maciel, casou-se com um parente de sua mãe, também oriundo de São Paulo. As duas famílias se cruzavam em diferentes graus de parentesco ante Deus e ante a comunidade das três localidades: Sorocaba, Laguna e Viamão. Tais casamentos, pelos impedimentos e padrões religiosos vigentes à época, não poderiam (ou não deveriam) acontecer; todavia, esses interditos eram com freqüência relevados. Passavam por cima dos impedimentos porque o interesse maior nesse momento era povoar o Continente e tornar a trazer à cristandade aqueles que cometeram pequenos desvios, no caso uma relação em impedimento de incesto por parentesco afim ou consangüíneo nem tão próximo assim. Também porque, na endogamia característica dessas famílias, as elites locais reproduziam-se, dando lugar a estirpes que uniam atributos de conquistadores,

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primeiros povoadores ou heróis. Esses atributos, tidos como diferenciais entre eles e o restante da população, serviam para demonstrar sua posição superior, ordenando hierarquicamente a sociedade e dando a ela uma forma. João de Magalhães, pai, era um dos pioneiros da conquista e povoamento do Continente do Rio Grande de São Pedro. Tivera filhos com uma filha do fundador da Vila da Laguna, onde exerceu mais de um mandato de vereador (Cabral, 1976: 114). Deixara seu nome gravado nos registros sobre as expedições de reconhecimento do território e recolhimento de gados para a Vila da Laguna. Também fora, ao final da década de 1720 e primeiros anos da década de 1730, um dos “descobridores” do caminho terrestre que ligou o extremo-sul da Colônia às áreas mais centrais, dando vazão às miríades de gados vacuns e cavalares até os locais que dele necessitavam. Os familiares de João de Magalhães e de sua primeira esposa, Ana de Brito, venderam gado para a praça da Colônia de Sacramento em 1735, socorrendo com alimentos os contingentes lusos sitiados pelos soldados e índios dos espanhóis. Eram detentores de prestígio. As qualidades angariadas na formação do povoado estavam agregadas ao seu nome. João de Magalhães, assim como as demais famílias que derivavam de Francisco de Brito Peixoto, faziam parte dos primeiros povoadores de Viamão. João de Magalhães, portanto, era um nome consolidado na sociedade que se formava entre a Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico. João de Magalhães era um nome, construído e fortalecido em e com a sua trajetória. Mais do que isso, também sobre João de Magalhães, suas cunhadas e cunhados, filhos e sobrinhos, assim como dos outros membros de um restrito grupo que viera para os Campos de Viamão na primeira metade da década de 1730, recaía a responsabilidade da organização social do povoado. O empenho em apossar-se das terras, de trazer e aglutinar alguns índios, em adquirir escravos, apresar gados, construir casas, benfeitorias e uma

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capela para os serviços religiosos, foram obras destas primeiras famílias vinculadas a Francisco de Brito Peixoto. Esses homens e seus atos eram, de certa maneira, os alicerces da nova povoação que se formava. Eram a base humana de Viamão. A estabilidade dessa ampliação dos domínios lusos sobre a fronteira recaía sobre os fundadores da sociedade e a credibilidade/legitimidade que esses primeiros povoadores possuíam diante dos demais habitantes dos Campos de Viamão. Isso dava ordem ao caos pré-existente, organizava a sociedade. Disso tudo dependia a frágil estabilidade de uma sociedade em formação. João de Magalhães fazia parte desse grupo identificado com o poder e com o topo da hierarquia social nesse lugar. João, o filho agraciado com o mesmo prenome do pai, não teve passos importantes marcados nos registros documentais. Antes, seu nome “apenas” aparece no Rol dos Confessados de Viamão de 1751 ou nos livros de batismos, como pai ou padrinho de uma criança, mas nada que lhe dê um grande destaque. Era apenas mais um entre os menos de mil paroquianos do povoado de Viamão no ano de 1751. Somente há um pequeno detalhe que se faz notar, talvez por motivos já em incubação e que viriam à tona apenas anos mais tarde: João é o único caso encontrado até o presente, de homônimos cuja identidade entre os portadores de mesmo nome é claramente separada nos róis de confessados consultados (AHCMPA – Róis dos Confessados de Viamão 1751, 1776, 1778 e Treslado do Rol dos Confessados de Triunfo 1758). Somente os João de Magalhães são assinalados no Rol dos Confessados de 1751 como “o moço” e “o velho”. Ao que parece, as coisas se mantiveram assim, latentes, até faltar pouco menos de três anos para o fim da década. Em 1757, o padre José Carlos da Silva, pároco de Viamão, encaminhou um auto de denúncia ao Juízo Eclesiástico contra Joana Gracia Maciel, “pelo escândalo público com que vive e desonesto procedimento”. Nesse auto, tem-se uma idéia do circo de horrores

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que cercava a prestigiosa família dos João de Magalhães. Joana Gracia Maciel, dada a bebedeiras, foi dita “mulher de má língua”, acostumada a receber seus amigos com grande intimidade “portas adentro” — nos dizeres da época —, a colocar suas índias administradas “ao ganho”, “usando mal de si”, para trazer-lhe dinheiro e aguardente. Não se sabe desde quando vinham esses comportamentos impróprios, mas é clara a ciência da comunidade. É francamente perceptível através dos testemunhos dos depoentes que havia um bom tempo que a infidelidade conjugal de Joana ocorria. Sua má fama a seguia desde seus tempos na Vila de Sorocaba, segundo depoimento daqueles que de lá a conheciam. (AHCMPA – Auto de denúncia que mandou fazer o Reverendo José Carlos da Silva contra Joana Gracia Maciel... 1757). Além de compelir suas índias à prostituição, Joana imputava-lhes severos castigos físicos, sendo recorrentes os espancamentos e outras agressões. O Auto de Denúncia se detém sobre o caso da infeliz índia Suzana, espancada e queimada com brasa nos recantos mais recônditos de seu corpo. Suzana foi providencialmente salva por Manuel Vergueiros, misto de padre e condutor de tropas de animais, que a levou para São Paulo com o intuito de livrá-la da morte certa que sofreria pelas mãos de sua senhora. Justo aquela senhora que devia zelar por sua vida e sua alma! Como se tudo isso não bastasse, Joana Gracia Maciel, sabe-se lá por que motivos, mandara Manuel, de alcunha “O Grosso”, filho de seu primeiro casamento, “desonestar” algumas mulheres casadas da comunidade, espancando-as e forçando-as ao ato sexual. Não é possível saber se Manuel conseguiu cumprir por completo as ordens de sua mãe, dado o estado de corrosão do documento. Sabe-se, todavia, que um desses ataques resultou, no mínimo, em uma senhora com um braço quebrado. As vítimas dos atentados eram todas filhas de João de Magalhães, pai, irmãs de seu marido, João de Magalhães, filho. Cunhadas

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de Joana, portanto. De Manuel, o Grosso, eram tias ante Deus e ante a sociedade desde o dia em que Joana desposara João. O comportamento destemperado de Joana Gracia Maciel provavelmente contribuiu para a decadência da família. Essa vinha paulatinamente perdendo espaço nos registros documentais e importância junto à sociedade que se formara em Viamão, em contraste com a destacada posição de João de Magalhães, pai, na Vila da Laguna. Entretanto, o aspecto que mais interessa para este estudo é o fato de serem, no Auto de denúncia, assim como no Rol dos Confessados de 1751, diferenciados pai e filho. No Auto de denúncia Joana Gracia Maciel é dita “esposa de João de Magalhães, o moço”. A diferenciação é feita, tem-se a impressão, não para alertar a sociedade que se estabelecera em Viamão, nem ao pároco que registrara as denúncias. Esses conheciam Joana e João, o moço, muito bem, a ponto de não faltarem testemunhos detalhados acerca de suas vidas no Auto de denúncia, mas sim, para os leitores do Rol e de tal auto, em locais distantes ou em tempos futuros. Alertava-se, desse modo, que o comportamento desviante de Joana e a tolerância ou “vistas grossas” de seu marido a seus tresloucados gestos simplesmente não deveriam recair sobre João de Magalhães, pai. O elo, a fusão de pai e filho fora rompido. Não podendo retomar o direito de uso do nome do filho, o pai, ou ainda, a sociedade com seus costumes, tratou de quebrar a identidade única que este nome lhes conferia. O moço e o velho foram novamente separados em duas pessoas distintas, não mais fundidos, não mais unidos. Foram afastados da própria convivência diária, já que o final do processo de Joana prevê a extradição dela e sua família para pouco mais de uma vintena de quilômetros de onde viviam. Pena branda para tamanha crueldade, “escândalo público e desonesto procedimento”. Talvez o degredo não fosse a punição maior. O afastamento “moral” dela e dos seus do núcleo familiar, este sim. A punição atingia João de Magalhães, o moço, não mais mesclado, no restante de sua existência a João de Magalhães, o velho.

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Não mais incorporava a si e aos seus as qualidades de conquistador, primeiro povoador, descobridor dos novos caminhos, fiel vassalo defensor dos interesses de Sua Majestade que existiam em seu pai. A punição, querendo ou não, também recaía sobre o pai, não mais podendo manter aquela “entidade” interna à família e conhecida na sociedade local, originária da fusão de pai e filho. João de Magalhães, o velho, não podia mais legar os atributos associados ao seu nome para o filho. O grupo de conquistadores e povoadores não podia, na pessoa de João de Magalhães, o velho, e de seu filho, ser identificado com atitudes que ameaçavam a estabilidade. A sociedade, esta sim, separava o joio do trigo. Separava de si os agressores de mulheres honestas, os espancadores de índios — que em 1751 eram em torno de 5,4% da população fixa da localidade (Kühn, 2001), presentes em praticamente todos os lares dos povoadores mais importantes do Continente que haviam saído da Laguna (AHCMPA – Rol dos Confessados de Viamão – 1751; Garcia, 2001). Se houvesse insistência em manter os autores de tais brutalidades junto às suas vítimas, existiria também o risco de revoltas ou crimes de vingança. A ameaça rondaria os domicílios de alguns dos mais importantes moradores de Viamão. O forjar das famílias tradicionais, ainda inexistentes nesta fronteira estava, então, posto em risco pelo comportamento extremado da mulher de João, o moço. Uma operação quase que cirúrgica, pois o tumor social fora removido, foi feita neste povoado. O poderio da elite local, os conquistadores, os primeiros povoadores, não podiam confundir-se com os desvarios de Joana nem com a falta de autoridade e de pulso firme de seu marido João — pertencentes a uma das famílias deste grupo. Os respingos recaíram sobre João de Magalhães, o velho, pois de alguma maneira permitira que os acontecimentos chegassem a tal ponto. Mas não podiam recair sobre os pilares da

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sociedade da Freguesia de Viamão. Deveriam ser preservados os valores calcados na qualidade das boas famílias, em seu status, na justeza de seus atos, na hierarquia da qual essas famílias eram o topo. Junto com a estabilidade desse microcosmo que era a freguesia, estava em jogo a manutenção de um território de Sua Majestade. Na aplicação da pena, o câncer fora extirpado, ainda que às custas da desagregação de uma das famílias que muito contribuiu na formação do povoado. O organismo sobreviveu ao trauma da cirurgia, recuperou-se. Recobrou a saúde. Manteve-se forte para enfrentar novas adversidades. A sociedade dos Campos de Viamão, e mais precisamente aqueles que detinham poder de mando, através da punição exemplar, souberam zelar pela mantença da estabilidade social e da continuidade de sua posição ante o restante da população. Garantiram, em seu gesto, sua posição na hierarquia e com ela a ordem da sociedade, ou seja, o bem-comum (Fragoso, 2001:43-50).

VIII. O nome em uma ocupação territorial recente Em que pese a identificação dos soldados, moradores e andantes do Continente do Rio Grande de São Pedro normalmente dar-se pelo nome, pôde ser observado o costume de muitas vezes alguém auto-designar-se ou ser designado um sujeito por outro nome que não o de sua família. Como já foi dito, não era raro a incorporação de sobrenomes alheios ou toponímicos ao nome de batismo. Conforme visto por Fonseca, essa prática foi recorrente entre os judeus e cristãos novos que passaram à praça do Rio de Janeiro na segunda metade do século XVII e primeira década do XVIII (Fonseca, 1999: 85-113). Também se verificou o “aportuguesamento” das grafias de nomes estrangeiros, gerando novos e “genuínos” sobrenomes coloniais. Assim, o sobrenome Clark transformou-se em Clarque e do

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sobrenome alemão Schram surgiu a família Charão. Porém, é difícil, através dos registros eclesiásticos do Continente que sobreviveram ao tempo, detectar as origens judaicas, cristãs novas ou estrangeiras. É possível, isto sim, afirmar que a despeito do nome seguir como receptador de atributos familiares e pessoais, de ser portador de histórias de vida e do grupo, esta principal partícula identificadora dos sujeitos que viveram a formação do Continente do Rio Grande de São Pedro, podia ser mudada. Senão a bel prazer, ao menos sem grandes dificuldades. Pode-se imaginar, então, considerando que se está ante um caso limite, no qual uma fronteira entre dois impérios assiste o começo do processo de conquista e povoamento, que certos nomes, com todos os atributos que lhes foram agregados no decorrer do tempo, possam ser indesejados. No caso de cristãos-novos ou judeus, transmigrados da península ou de outras localidades dentro do Império Português onde a perseguição inquisitorial se fez mais forte, na troca de nome residiu não apenas a sobrevivência física e a protelação dos processos inquisitoriais. Também o reiniciar da vida ou manutenção da vivência anterior, com as mesmas relações pessoais e comerciais, diminuído o risco de prisão ou de deixar sócios, parentes, amigos e clientes na posição desconfortável de serem chamados a depor, fora possível com o câmbio do nome. Pode-se também especular alguns outros motivos para a abdicação de um nome e/ou sobrenome pré-existente e adoção de novos. A matriz da sociedade que se estabelecia no Continente era calcada na organização social lusa. Era, portanto, calcada na hierarquização social e nas diferenças entre os homens – tanto pelo estatuto de livres e escravos e mais ainda pelas diferenças entre homens livres (Godinho,1975: 72). Os atributos angariados em uma vida ou por várias existências em uma família qualificavam homens, distinguindo-os. Todavia, a impureza de sangue, o defeito mecânico, a origem campônia, eram fardos pesados para uma existência.

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As crianças nasciam iguais ante os olhos de Deus, espíritos puros, cujo nome dado por seus padrinhos — responsáveis pela sua renúncia ao demônio — seria aquele pelo qual seriam chamados à presença do Senhor no Dia de Juízo. Mas as crianças não nasciam iguais perante os homens. Mesmo antes de seu nascimento seus pais e seus avós haviam planejado alianças, geralmente obtidas através de matrimônios. Haviam também planejado suas carreiras — cuidar da propriedade familiar, ingressar nos exércitos, no clero, cursar a Universidade de Coimbra, partir para as conquistas, migrar para terras estranhas. Eram direcionados a fazer suas vidas, não como folhas secas lançadas ao vento, mas dentro do leque das possibilidades que se abriam para si e para os seus, delineados pelas suas origens familiares. Os passos de todos os membros eram planejados para que a família se engrandecesse — social, política e financeiramente (Monteiro, 2001), ainda que, na prática, nem sempre as coisas ocorressem dessa maneira. Para os conquistadores e primeiros povoadores do Continente do Rio Grande de São Pedro é possível observar alguns casos de alianças formadas com as populações autóctones, visíveis principalmente através dos enlaces matrimoniais ou de uniões não formais com moças indígenas, possivelmente filhas de maiorais das tribos da região ou de aldeamentos próximos. Foi assim com Francisco de Brito Peixoto, fundador da Vila da Laguna, descendente das primeiras estirpes paulistas e antigo morador da Vila de Santos. Francisco de Brito Peixoto furtou-se ao casamento, mas não se furtou a tomar mulheres ditas carijós, procriando em quantidade. Seus filhos, portadores dos sobrenomes luso-brasileiros, tinham, no mínimo, metade de sangue indígena (Rheingantz, 1979; Silva Leme, 2002). Tudo leva a crer que, para viver em terra de índios, o parentesco com os povos da terra tenha sido uma estratégia importante para a sobrevivência e crescimento das famílias. Em vez de combater, arriscando a vida e a sorte nestes embates, o parentesco com

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os indígenas propiciaria uma coexistência relativamente pacífica e por vezes acesso a terras e mão-de-obra inatingíveis para quem tentasse outra via. Esse viés, a garantia do estabelecimento das famílias através das uniões interétnicas luso-indígenas repetiu-se algumas gerações adiante na família de Brito Peixoto, na figura de Rafael Pinto Bandeira, natural do Continente e bisneto de Francisco de Brito Peixoto. A primeira união com relativa estabilidade de Rafael não se fez com mulher de seu grupo social — os primeiros povoadores da região — e sim com Bárbara Vitória, filha de um maioral dos indígenas da etnia minuano, este também mestiço com sangue espanhol. O chamado Dom Miguel Caraí, com posição de chefe em um grupo dos minuanos, tinha reconhecida a sua liderança sobre este entre os outros maiorais (Saldanha, 1938: 234-235, Porto, 1943: 43, Silva, 1999 e Gil, 2002: 127, 138-139). Trabalhara vários anos como peão ou capataz para Francisco Pinto Bandeira, neto de Brito Peixoto e pai de Rafael (Saldanha, 1938: 234-235). Provavelmente foi Dom Miguel o elo capaz de manter esta família em larga paz com os minuanos. Essa “amizade”, ou aliança, consumou-se na união dos filhos de ambos, que, segundo alguns autores, foi “formalizada” através de ritual minuano, mas não do católico. Resultado de tal casamento pagão, por assim dizer, foi o nascimento de Bibiana Bandeira, portadora do sobrenome do pai e da infelicidade de ceifar a vida da mãe ao vir à luz. Essa aliança não se desfez com a morte de Bárbara Vitória, pois anos após seu passamento Dom Miguel ainda era um dos principais homens da rede de contrabando de gados e couros montada por Rafael Pinto Bandeira (Gil, 2003). Não se sabe por quem Bibiana foi criada, mas ela recebeu o nome da família Bandeira, e seu marido, o alferes de milícias Antônio Rodrigues Nicola, recebeu de Rafael, como presente, 400 cabeças de gado vacum — não podendo ser chamado de dote, pois é bem possível que não tenha sido subtraído dos bens de Rafael e sim da Fazenda Real

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quando Rafael exercia o governo interino do Continente (AN. SEB (86), Cód. 104 v. 6 fls.329-344). Após essa união, Rafael tornou a casar mais duas vezes, a primeira com uma índia guarani, originária de um dos povos das Missões Jesuíticas, que faleceu sem lhe dar filhos, e posteriormente com Josefa Eulália de Azevedo, a mais lusa de suas mulheres. De Josefa Eulália vieram suas duas filhas e herdeiras legítimas (Silva: – inventário posto em anexo, 1999). A proximidade, parentesco e procriação com indígenas em nada macularam a trajetória de Rafael Pinto Bandeira. Pelo contrário, ele sempre foi designado para altas patentes e cargos, como já dito, chegando a ser governador do Continente, ainda que de forma interina, por pelo menos duas vezes. Além disso, sua fortuna, no momento de sua morte, parece ter sido a maior de todo o Continente, denotando que seus negócios e suas investidas aos campos em busca de gados e couros ou do escuso comércio com castelhanos e índios (Silva, 1999; Gil, 2001) provavelmente tenham sido facilitados pelo parentesco com as populações nativas. No caso de Rafael Pinto Bandeira, muito mais por ter conseguido unir-se, em ocasiões distintas, às duas etnias mais importantes da região e que eram freqüentemente inimigas entre si. As famílias do Continente moldavam-se fora dos padrões de pureza de sangue desejáveis e possíveis na península, através de acordos entre boas famílias em atenção às necessidades conjunturais neste limiar povoamento do sul da América portuguesa. Os nomes construíam-se neste contexto. José Pinto Bandeira, o primeiro deste ramo, era migrante luso e pobre, ascendendo pelo casamento com uma das filhas de Francisco de Brito Peixoto. Era analfabeto. Todavia, era vereador na Vila da Laguna (Abaixo-assinado. In: Monteiro, 1937 v. 2: p. 179-180), talvez muito pelo prestígio do sogro. Seus filhos e netos galgaram posições bem mais altas, sempre portando o sobrenome Pinto Bandeira.

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Lícito pensar que os nomes também podiam ser moldados, modificados, adquiridos ou descartados de acordo com as ocasiões e as urgências. Exemplo de uma troca de nome que propiciou a continuidade de uma existência digna e aumentada em honrarias e serviços à Sua Majestade é José Marcelino de Figueiredo — como era conhecido no Continente que chegou a governar — ou Manuel Jorge Gomes de Sepúlveda, fidalgo da Casa de Sua Majestade e condenado por um crime em Portugal:

“Manuel Jorge Gomes de Sepúlveda, como vimos anteriormente, não tinha a “ficha limpa” em sua carreira militar na metrópole. Após matar um oficial inglês, em nome da honra ao Rei, fora julgado e condenado à morte por um Conselho de Guerra. Com a ajuda de Pombal, Sepúlveda transfere-se para a colônia em 1765, ainda como coronel, mas escondendo sua “perigosa identidade” no codinome de José Marcelino. Em 1767 é transferido do Rio de Janeiro para a fronteira do Rio Grande, na qual iria participar da primeira tentativa de reconquista da vila do Rio Grande. O insucesso na referida ação tem como corolário a substituição em 23.04.1769 do então Governador José Custódio de Sá e Faria pelo Coronel José Marcelino”. (Silva, 2000: p. 80)

A possibilidade de uma nova vida distante de quem o condenara por um crime de honra estava, então, associada à mudança de identidade. Mais do que isso, à geração de uma nova identidade. Não podendo ser reconhecido como Manuel Jorge Gomes de Sepúlveda, o fidalgo que assassinara um nobre oficial inglês detrator da Coroa portuguesa, passara à América. Talvez por não poder reclamar ou por ser mais difícil de ser reconhecido, fora conduzido para o distante Continente do Rio Grande de São Pedro. Passou para a longínqua fronteira sulina, tão necessitada de homens capazes de agir na sua defesa. Ainda que acobertado pelo Marquês de Pombal em sua evasão da península, da troca de nomes surgiu-lhe a possibilidade de uma nova vida, repleta de serviços à Sua Majestade e, a posteriori, devidamente reconhecida. Passando novamente a Portugal, morreu com honra, pois não retornou à Colônia. Ficou em Portugal para a defesa contra as hostes de Napoleão. Note-se bem: tudo isto — a troca de nome, inclusive — com o aval do grande ministro Pombal. De alto a baixo, a sociedade admitia o recurso do câmbio de

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nomes como estratégia de vida e sobrevida. Sepúlveda/Figueiredo reconquistou, com sua trajetória, o direito de uso de seu nome primeiro, aquele que fora maculado. É bem verdade que essa mácula era bastante leve, porque não dizer, “hidrossolúvel”: dissipara-se no ato de cruzar duas vezes o oceano. Leve porque o assassinato cometido contra um nobre inglês fora para preservar a honra de El-Rei, seu amo e senhor. Não sendo possível o perdão, valeu-lhe o novo nome de substituto, até que o velho, novamente honrado, pudesse ser reassumido. Mas, sem esta mudança de identidade, talvez a pena de morte, à qual fora condenado, fosse levada a cabo. Ao construir uma “nova sociedade”, havia sempre uma possibilidade dos homens recém-chegados fazerem-se “homens novos”. A experiência, como formulado e utilizado por Thompson (1987), e o aprendizado obtido na conquista e povoamento desta e de outras terras pelos súditos de Sua Majestade, lhes abria uma pequena margem para a mudança. O nome e a pessoa podiam mudar, honrar-se, engrandecer-se, definhar ou macular-se. As características agregadas ao nome podiam ser ocultas ou relembradas nos momentos especiais. IX. O nome, a mobilidade social e a sociedade de Antigo Regime As genealogias e as memórias de descender de heróis na defesa dos interesses de Sua Majestade eram constantemente rememorados. No ato de solicitar uma mercê, uma patente, um cargo, os nomes e os feitos dos ancestrais eram aludidos, lembrando às autoridades e ao rei quão justa e justificada era a solicitação e quão merecedor e distinto era o suplicante. As mercês régias eram recebidas como distinções, ou seja, como diferenciadores entre os homens. Tudo concorria, portanto, para que os nomes agissem como qualificadores dos sujeitos — nestes casos, muito mais sujeitos coletivos, membros de grupos, clãs ou famílias, do que sujeitos individuais.

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Em situação oposta, algum pretendente a estas mercês que tivesse no passado — seu ou familiar — origens escusas ou poucas qualidades, poderia não ser atendido em sua súplica. Ainda que mais freqüentes fossem aqueles agraciados por mercês devido à comprovação de sua competência e serviços prestados a El-Rei, não raros são os casos que entre vários pretendentes a um mesmo posto, os eleitos tenham sido aqueles com reconhecidas qualidades, em detrimento daqueles que iniciavam sua trajetória no serviço da Coroa ou que possuíam origem inferior. No ano de 1750, Henrique Cesar de Berenguer e Bitencourt, natural da Ilha da Madeira, fez um requerimento ao Rei, através do Conselho Ultramarino. Seu caso será mais detidamente analisado no terceiro capítulo, mas de momento cabe dizer que solicitava que dessem terras às suas três filhas e a ele a patente de Capitão da Ordenança. Usando do nome de sua família de reconhecida trajetória no bom serviço de Sua Majestade e conhecida de um dos conselheiros do Conselho Ultramarino, obteve mercês de vulto. Ou seja, um nobre falido da Ilha da Madeira, ao qual não restavam outros bens que não o nome familiar, passou à Colônia com vantagens diferenciadas das dos outros colonos, em geral agricultores ou artesãos em situação de pobreza pior que a de um filho segundo de uma família de nobres. Fora privilegiado na concessão das mercês em terras e da patente solicitada em função do bem familiar que portava, construído por gerações anteriores de sua estirpe no constante serviço de Sua Majestade. Porém, a contrapartida existia. Pessoas de modesta situação ou isenta de grande prestígio, como campônios, oficiais mecânicos, soldados de baixa patente, muitas vezes coagidos ao alistamento nas tropas, podiam ser preteridos em suas pretensões. A vida pregressa, pessoal ou familiar, consubstanciada em um nome, poderia significar uma alavanca ou um entrave para galgar novas posições.

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O contexto da conquista dos novos territórios permitia, tanto pela migração para um território semi-virgem, como também através da troca de nomes nessas novas povoações, o distanciar-se das origens escusas e humildes. Um camponês, um homem pobre, um ilhéu famélico, através da troca de nomes poderia angariar terras, riquezas, prestígio, bom casamento, boas relações, patentes militares, mercês diversas. Mesmo que obtivesse apenas um pouco disso tudo, muito pouco, talvez. Mas com o novo nome, com uma ficha “limpa” de máculas anteriores, desvinculada das origens humildes, judaicas, cristãs-novas, do trabalho mecânico ou de atos criminosos, uma nova vida se abria. Provavelmente, na maioria dos casos, o que houve foi a possibilidade de passar de “ninguém” a “alguém”. Um homem, de nome Ventura, “do gentio da Guiné”, que vivia na casa do Mestre-de-Campo André Ribeiro Coutinho, foi batizado no povoado de São Pedro do Rio Grande. André Ribeiro Coutinho a esse tempo governava a Fortaleza e o próprio Continente do Rio Grande de São Pedro. Os padrinhos de Ventura eram escravos, mas nada no registro de batismo de Ventura diz que ele também o era, apesar da observação do pároco sobre dizerem “ser fugido das Minas” (ADPRG – 1LBat-RG, batismo de Ventura, nat. do gentio da Guiné - 16/07/1739). Essa cerimônia possibilitou-lhe uma nova vida, com a liberdade, ainda que passível de questionamento, surgindo em seu horizonte, dando-lhe um nome cristão com o qual distanciava-se do provável cativeiro nas regiões mineradoras. Deixar de ser um “zé ninguém” para possuir um novo nome e uma nova vida para construir era o que estava ao alcance da maioria dos moradores do Continente. Isso pode parecer pouco. Mas lembrando que se está ante uma sociedade de Antigo Regime, de características estamentais, onde a posição dada ao nascimento, devido às origens familiares, condicionava a posição de um homem ao longo de sua vida, isso é muito. Nessa sociedade, ao menos aparentemente, tudo tenderia à mantença da ordem e hierarquia social, na qual as posições sociais cristalizadas deveriam ser rígidas, imutáveis.

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A pequena brecha aberta na conquista de novos territórios, vinculada às várias possibilidades de angariar um nome, construí-lo, mudá-lo, descartá-lo, no entanto, existia aberta às mudanças. As experiências dos conquistadores e povoadores lhes forneciam elementos para agregar novos atributos a um velho nome ou forjar uma existência nova sob novo nome. O falido Berenguer agregou à sua família de primeiros povoadores da Ilha da Madeira também o atributo de primeiros povoadores de Santa Catarina. Também lhes era possível legar essas experiências, vivências e atributos aos seus. Berenguer obteve mercês através do nome consolidado de seus ancestrais. Ventura aproximou-se da liberdade juntamente com o registro de seu novo nome e da sua associação ao nome do comandante do território, André Ribeiro Coutinho. Os nomes e sobrenomes agregavam, então, os atributos de seus portadores e, de modo inverso, atribuíam certas qualidades aos seus portadores. Essa mobilidade dentro da hierarquia social podia funcionar de maneira ascendente, como no caso de um escravo/ninguém passar a ser um livre/alguém; um camponêsservo/ninguém migrado que podia transformar-se em um soldado, um pequeno funcionário ou pequeno proprietário. Havia a possibilidade de tornar-se alguém no estabelecimento das novas povoações. A mobilidade, possibilitada, então, pelos atributos agregados aos nomes, agia mantendo o status e a vida de quem já era alguém, como no caso de um fidalgo Manuel Jorge Gomes de Sepúlveda. Condenado à morte, tornado José Marcelino de Figueiredo, veio a ser coronel e governador do Continente do Rio Grande de São Pedro. Podia destruir o que fora construído ao longo de uma ou mais gerações, como no caso de João de Magalhães, conquistador dos territórios, e o João de Magalhães, cuja desvairada mulher quase pôs a perder a estabilidade social. Mudanças de nomes e das vidas, são, também, mudanças nas posições ocupadas na escala social em uma sociedade em que, ao menos em teoria, a hierarquia não permitia tais modificações.

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Percebe-se, então, por mínima que seja, que uma possibilidade de romper com a condicionante da posição social ao nascimento estava dada. Ao mesmo tempo, essa possibilidade foi usada com o intuito de estabelecer no novo local que se povoava uma hierarquia tão rígida e uma sociedade tão excludente quanto aquelas que foram deixadas para trás no momento das migrações individuais ou coletivas. O “clube” dos conquistadores dos novos territórios — a bem da verdade poderia ser dito um belo “bando” formado por muitos “ninguéns” em suas origens, salvo raríssimas exceções — através da construção dos novos nomes “tradicionais” em uma terra ainda sem tradições, aglutinava senhores de terras, índios, escravos, patentes militares, cargos de administração, legislação e justiça. Esses homens, formando uma elite local, foram zelosos de suas posições construídas. Concentraram em si e nos seus a riqueza e o prestígio. Foram seletivos na admissão de novos membros. Foram impiedosos ao excluir velhos membros que ameaçassem essa ordem e “tradição”. Apesar de parecer contraditório — um espaço de mobilidade atuando na permanência das velhas estruturas sociais —, foi assim que se deu. Há, portanto, que considerar-se o componente “mobilidade social” como elemento dessa sociedade que tende ao imutável. Um componente estranho, pois apontando para a mudança e ascensão da posição social de homens, famílias ou grupos de famílias — o que aparentemente daria um caráter “implosivo” para esta sociedade — acabava por reforçar o caráter de rígida hierarquia, caracterizada pela permanência e imutabilidade, pela clivagem entre os setores que a compunham, pela exclusão da imensa maioria da população da riqueza e do poder. A contradição, entretanto, começa a dissipar-se quando se tem a compreensão de que o que está sendo mantido não é a posição de uma ou outra família dentro da hierarquia social, e sim a própria hierarquia social. Essas elites que se formaram nos povoados sulinos, chamando para si os adjetivos e engrandecimentos obtidos nos serviços da

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conquista dos territórios e no romper dos limites entre os dois impérios ibéricos na América, construíam a sociedade dentro dos moldes de organização que conheciam. Ainda que o ingresso no que poderia ser chamado de elite local fosse de famílias ou de alguns de seus membros mais destacados, o que esta elite tratava de forjar e manter era o nicho do topo da hierarquia social. Ascender ou decair dessa posição dependia de atitudes de grupos e famílias, tendo de comprovar ante seus pares as suas qualidades, bens e posses, forjar alianças e estabelecer acordos, nem tanto firmados, mas tácitos. Esses grupos e famílias podiam ser postos em questão. Ascender ao grupo que detinha bens e poder político ou decair na escala social era possível. Mas a existência do hierarquia social não estava questionada. Entende-se aqui “elite” não como um grupo, mas como um locus social, preenchido por pessoas com qualidades reconhecidas pela sociedade como um todo. A mobilidade social, portanto, não ameaçava a existência desse patamar social. Podia ameaçar alguns homens, algumas famílias, alguns grupos de famílias, mas não o nicho que estes homens, famílias ou bandos ocupavam na pirâmide social.

Abreviações usadas nesse capítulo: ABN – Anais da Biblioteca Nacional AAHRS – Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul ACMRJ – Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. ADPRG – Arquivo da Diocese de Rio Grande AHCMPA – Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre. AN – Arquivo Nacional do Rio de Janeiro SEB – Fundo Secretaria de Estado do Brasil LBat – Livro de Batismos RAPM – Revista do Arquivo Público Mineiro RG – Rio Grande RIHGB – Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. SEB – Secretaria de Estado do Brasil

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Capítulo 3 A construção de uma “identidade açoriana” na colonização do Sul do Brasil ao século XVIII

I. Introdução ao tema O intuito desse capítulo é colocar em pauta a discussão acerca da formação de uma “identidade açoriana” durante o processo de ocupação e colonização do então Continente do Rio Grande de São Pedro. Não sendo o objeto central da pesquisa que ora se desenvolve, esse tema tem-se imposto ao longo da investigação, demandando sua problematização e estudo. Assim, o tema é colocado aqui muito mais como uma tentativa de chamar a atenção para essa questão e propor o seu debate, do que como apresentação de conclusões finais acerca do assunto. O capítulo tem o foco para além da Vila do Rio Grande e avança até o período posterior à devolução da Vila aos portugueses (1776), após sua tomada pelas tropas espanholas em 1763. Para destacar o processo de formação deste grupo como tal, foi necessário acompanhar certas trajetórias familiares. Isso fez com que os recortes, tanto o geográfico quanto o cronológico, fossem constantemente extrapolados, para que não se perdesse a riqueza de detalhes dessas trajetórias que dão sustento às hipóteses que aqui serão levantadas. Cabe aqui afirmar, antes de mais nada, que essa “identidade” nada ou muito

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pouco tem a ver com a “identidade açoriana” que atualmente e, cada vez mais, se afirma nos estados sulinos entre os descendentes de ilhéus, moradores de localidades por eles fundadas ou povoadas durante o período colonial. Pela exigüidade do espaço, fica esta discussão — a “identidade açoriana” contemporânea — para uma próxima ocasião. Na visão corrente, essa “identidade açoriana” é, em muito, associada ao local de origem dos migrantes. Todavia, no desenvolvimento da pesquisa percebeu-se que, no século XVIII, nem todo nativo das Ilhas que habitou o Rio Grande compartilhava do pertencimento ao grupo. Alguns não eram vistos nem se viam como “gentes das Ilhas” ou “Casais de Sua Majestade”. Pretende-se, assim, demonstrar que a “identidade açoriana” no século XVIII foi historicamente construída no Continente do Rio Grande de São Pedro. Valem algumas premissas dessa análise também para o caso de Santa Catarina, já que ambos faziam parte de um mesmo processo migratório, regido pelas diretrizes da Coroa lusa, intensificado no Período Pombalino. Não se fará aqui uma vasta discussão acerca do tema “açorianos” na historiografia. Somente isso já ocuparia um sem-fim de páginas. O que se pretende destacar aqui é um aspecto comum que perpassa todas as obras das quais se procedeu à leitura, das mais antigas às mais recentes: o fato de “ser açoriano”, nos escritos aos quais se teve acesso, aparece como coisa dada e não como uma construção que ocorreu ao longo do processo de conquista e povoamento dos territórios meridionais. Podem ser citadas aqui, a título de exemplo, algumas obras produzidas na historiografia tanto tradicional quanto acadêmica. Os Casais Açorianos, de João Borges Fortes (1999) e A Colonização Açoriana no Rio Grande do Sul, de Henrique Oscar Wiedersphan (1979), são obras da historiografia tradicional que têm os açorianos como objeto e que são permeadas por esta visão: os açorianos como um grupo coeso e homogêneo, dada a sua origem comum. Publicada mais recentemente, há a coletânea de

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artigos intitulada Açorianos no Brasil, organizada por Véra Lúcia Maciel Barroso (2002), que reúne textos de produção acadêmica e não-acadêmica. Mais da metade dos artigos nela contidos versa sobre os açorianos no sul do Brasil e, também, na totalidade destes, os imigrantes são vistos do mesmo modo: um grupo já construído como tal desde antes de sua chegada ao Continente, haja vista todos terem a origem comum insulana. Na historiografia acadêmica, pode ser citada a obra A Vila do Rio Grande de São Pedro, de Maria Luiza Bertuline Queiroz (1987). Ainda que não seja os açorianos o tema central desse trabalho, o impacto demográfico causado pela chegada do grande contingente de migrantes ilhéus à Vila de Rio Grande se coloca como tema em cinco sub-capítulos. Os açorianos, nessa obra, talvez pelo destaque dado aos aspectos demográficos que a permeiam, também são analisados como uma unidade, um grupo coeso, sem grandes distinções internas e com a origem geográfica a conferir-lhe o traço comum e suficiente para a inclusão de componentes. Como último exemplo, a tese de doutoramento recentemente defendida, intitulada Sonhos, Desilusões e Formas Provisórias de Existência: os açorianos no Rio Grande de São Pedro, de Cleusa Maria Gomes Graebin (2004). A autora, nesse trabalho, se propõe à análise das estratégias de sobrevivência dos açorianos no Rio Grande do Sul durante o século XVIII. Propõe também o estudo da vida cotidiana desse grupo. Preocupada com a construção da imagem e das representações do açoriano na historiografia regional, entretanto, a autora não concebe o fato da construção e consolidação de um grupo identitário, com origem e interesses comuns, como sendo, também, uma estratégia e, portanto, fruto de escolhas e de opções que se ofereciam ou que eram possíveis nessa sociedade. Tampouco analisa a possibilidade de algumas famílias de origem insulana não compartilharem o sentimento de pertencimento ao grupo. O trabalho de Graebin, que também se utiliza das fontes paroquiais do Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de

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Porto Alegre cedidas por Vanessa Gomes de Campos, colocadas em seus anexos, não detecta, a partir dessas e outras fontes, as grandes diferenças sociais existentes entre os migrantes insulanos. Essas diferenças já foram apontadas na monografia de Adriano Comissoli (2002) sobre os Casais de Sua Majestade em Viamão. Boa parte dessas diferenças, pensa-se aqui, pré-existiam nas localidades de origem. Assim, mesmo nos trabalhos mais recentes sobre “os açorianos”, encontra-se presente o tal traço comum: “ser açoriano” antecede à chegada ao Continente do Rio Grande de São Pedro. É a origem no arquipélago que determina o pertencimento ao grupo, que possui características homogêneas. “Ser açoriano” também é, nessas obras, uma situação pré-determinada pelo local de nascimento, e não uma relação entre um certo grupo de pessoas e aquilo que encontraram na nova localidade para onde se dirigiram. “Ser açoriano” é, para todas as obras lidas, uma situação atemporal e imutável, não aparecendo como processo dinâmico ocorrido em tempo e local específicos, ou seja, não é considerado um processo histórico. Pretende-se indicar, ao longo desse escrito, que não basta uma origem geográfica comum para dar as características necessárias para a inclusão nesse grupo que se configura como um grupo étnico (Barth, 2000). Assim como muitos dos migrantes dos Açores eram parte dos casais ou eram ditos das ilhas, alguns não eram vistos assim e nem assim apercebiam-se. Ao contrário, pretende-se mostrar que uma “identidade” como essa somente é construída em algumas ocasiões, fruto das condicionantes e das escolhas possíveis em um determinado local e um determinado momento histórico. A construção dessa identidade foi, afirma-se aqui, antes de mais nada, uma opção dos nativos das Ilhas. Não era compartilhada de maneira homogênea por todos que de lá vieram. Tampouco foi opção adotada pelos ilhéus em todas as localidades para as quais migraram. Mais do que isso, era um grupo, de alguma forma, “permeável”, que permitia, através do casamento ou

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de outras formas de aproximação, que outros elementos ingressassem em suas fileiras, passando a gozar de prerrogativas pertinentes ao conjunto. Ou ao contrário, que determinadas pessoas ou famílias se distanciassem do grupo ao qual originalmente eram ligadas. Em nenhum dos documentos utilizados nessa pesquisa, tais migrantes eram ditos ou se diziam “açorianos”. Antes, as desinências mais comuns para tais homens e suas famílias eram as de gente das Ilhas, dos Casais de Sua Majestade, dos Casais de Número ou simplesmente dos Casais. Isso leva a crer que mesmo a idéia de o Arquipélago dos Açores ser uma unidade geográfica suficiente para conferir traço comum aos seus naturais é posterior à chegada e ao estabelecimento dos “açorianos” no Continente do Rio Grande de São Pedro. Muitas vezes, a ilha de origem se sobrepõe, em importância, ao próprio arquipélago. O termo “açoriano”, portanto, soa anacrônico para a realidade estudada. A origem de seu emprego também pode ser investigada por historiadores, que muito provavelmente encontrarão o seu enraizamento na historiografia nacionalista das primeiras décadas do século XX. O termo “açoriano” será empregado doravante, no máximo, como indicação de origem geográfica e não mais como designação de um grupo. Essa ressalva é significativa, pois a auto-desinência e a desinência por outros é de fundamental importância para forjar e manter a identidade de um grupo quando em contato com outros grupos (Barth, 2000b: pp. 25-67). Nesse pressuposto se baseia o presente texto. Sobre outros aspectos, a discussão assumirá forma pontual ao longo do texto, na medida em que algumas questões colocadas a tornem necessária. Também é necessário alertar que, para um melhor entendimento das questões aqui levantadas, será esboçada uma comparação com o caso dos imigrantes ilhéus trasladados para o Estado do Grão-Pará e Maranhão ao mesmo período em que eram enviados

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açorianos para o Continente do Rio Grande de São Pedro. Tal comparação não será feita através de pesquisa em manuscritos, e sim tendo o trabalho da professora Rosa Elisabeth Acevedo Marin, da Universidade Federal do Pará, complementado com algumas fontes impressas sobre o Período Pombalino no Pará como mediadores (Cortesão, 1951; Mendonça, 1963; Mendonça, 1989; Acevedo Marin, 2002). A discussão será apresentada em cinco partes. Na primeira será feita uma digressão para situar o contexto em que se deu o início do povoamento da Vila do Rio Grande. Após, uma exposição das situações de emigração nas Ilhas, bem como a reiterada vinda de migrantes dos Açores para a América portuguesa. Na terceira parte, através do bem documentado exemplo de um fidalgo madeirense que engajou a si e a sua família em uma das levas migratórias saídas do arquipélago dos Açores, discorre-se um pouco sobre situação dos filhos segundos das boas famílias de ilhéus e sobre a diferenciação de estatuto social entre os próprios migrantes. A quarta parte apresenta, através da parca documentação encontrada a esse respeito, a percepção dessa diferenciação social nas famílias que saíram dos Açores e chegaram ao Continente do Rio Grande de São Pedro. Na quinta e última parte, através de uma breve comparação com o caso dos migrantes dos Açores enviados para o Estado do Pará e Maranhão, estudado por Acevedo Marin, discutem-se os motivos que levaram “os casais de Sua Majestade”, no sul do Estado do Brasil, a construírem-se como Ilhéus ou a não necessitarem disso para a sua sobrevivência.

II. O Início da Povoação da Vila do Rio Grande e a posse dos territórios de Sua Majestade “Para dar calor à nova povoação” que se estabelecia à margem da Barra da Lagoa dos Patos, à sombra protetora da fortificação de Jesus-Maria-José, erigida sob o comando de José da Silva Paes, tratou-se de trasladar populações civis — fossem elas lusas, luso-

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brasileiras ou indígenas. Especial atenção era dada para que fossem remanejadas as mulheres desimpedidas, sozinhas ou acompanhadas de suas famílias. Grande incentivador do crescimento populacional nas regiões meridionais, o Brigadeiro Silva Pais preocupavase com as deserções dos soldados. Boa parte deles já havia participado das batalhas em defesa da Colônia do Sacramento. Preocupava-se com a fuga dos mais jovens. Ansiava que, com a presença de mulheres, os casamentos passassem a ocorrer amiúde, gerando laços familiais que, em sua concepção, dariam menos azo às fugas (Fortes, 1980: p. 113). Primeiramente, Silva Pais, governador do Rio de Janeiro e comandante militar do Rio Grande, tratou de remanejar aquelas que ficaram conhecidas na historiografia como as mozuelas. Eram mulheres da “difícil vida fácil” que foram conduzidas desde o Rio de Janeiro para o Continente do Rio Grande de São Pedro. Solicitou-as também à Bahia, conforme carta de Silva Pais ao Vice-rei: Mulheres desimpedidas que lá [Rio Grande] podem casar e que aqui [Rio de Janeiro] eram nocivas, e se Vossa. Excelência dessa cidade [Salvador] manda também algumas (suponho não faltarão) serão úteis, pois servem de raízes que prendem a gente moça que ali existe (...) (apud Fortes, 1980: p. 113)

Não se sabe se da Bahia também vieram as “recrutas”, mas existem registros de batismos nessas primeiras décadas da localidade de Rio Grande de São Pedro de mulheres da Bahia sendo madrinhas de algumas crianças ou tendo filhos naturais ou legítimos com homens de procedências diversas (p. ex. Registro de batismo de João, 03/06/1747 e Registro de batismo de Mariana, 19/07/1750. ADPRG - 1LBatRG). Esses dão margem para que se pense que o Vice-rei também tenha enviado as tais “mulheres nocivas”. Num tom panegírico à terra, Silva Paes, em outra missiva, falava do êxito de seu “exército feminino” no Rio Grande ao Prior de Chaves: (...) podendo segurar que é o melhor clima que tem na América, pois ainda ali se não experimentou, nem houve sezões, nem febres malignas, e Mulheres que eu tinha mandado do Rio, as mais corridas, e

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Galicadas sem cura melhoraram, e pariram quase todas.(Extrato das notícias que em uma Carta escreveu José da Silva Pais ao Prior de Chaves In: Cesar, 1969: p. 128)

Após sua saída do comando da fortificação e da governança militar do presídio e do Continente, foi nomeado seu sucessor. Um guerreiro experimentado em três continentes passou a responder pela Comandância Militar do Rio Grande de São Pedro (Junta: termo sobre a expedição. In: Mendonça, 1989 p.171). O Mestre-de-Campo André Ribeiro Coutinho também se preocupou em acolher gente disposta a “dar calor à povoação”. Durante seu serviço na Comandância, foram chegando povoadores, além dos soldados, dos peões, dos condutores de tropas e das mozuelas. Foram remanejados outros contingentes populacionais, desde casais de outras áreas da Colônia até os ditos “índios de Sua Majestade”, muitos dos quais vindos de São Paulo, para o bom serviço de El-Rei. (Coutinho, 1921). Entre outros motivos para promover o povoamento, há o de que, já em meados da década de 1730, os tratados de fronteira com Espanha, baseados no Tratado de Tordesilhas e na tese dos limites naturais, estavam com seus dias contados. As terras do Continente do Rio Grande de São Pedro ficavam todas para além dos territórios portugueses assinalados pelo Tratado de Tordesilhas. Foram, durante todo o século XVIII, motivo de disputa entre as duas Coroas ibéricas. Se por um lado os avanços em direção ao sul e ao oeste, buscando os tais limites naturais, davam sinais de falência nas tratativas diplomáticas, por outro os tais avanços, na prática, prosseguiam com muita força. Já se esboçava, desde a década de 1730, elementos para fazer valer a tese do utis possidetis. Ou seja, em algum momento futuro das negociações, cada uma das duas nações européias ficaria com o exato território que estivesse sob seus pés (Prado, 2002: pp. 57-58). Até a década de 1740, a “caça aos gados”, com finalidade de extração de couros, era responsável pela maior parte da produção comercializável e das receitas que

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ingressavam no extremo-sul do Estado do Brasil (Porto, 1943 pp. 354-355). Mas ao que tudo indica, essa atividade dava mostras de declínio, devido à extinção dos animais (Coutinho, 1921; Hameister, 2002 pp. 186-198). A conduta de tropas de eqüinos, bovinos e muares, enviadas para São Paulo e Minas Gerais, era a nova possibilidade de obter dinheiro e mercadorias para comércio ao retornar da viagem (Hameister, 2002: pp. 186193). Todavia, os habitantes da localidade sulina deveriam dedicar-se também à agricultura. Deveriam prover seus próprios alimentos. A missão de tomar conhecimento dos territórios interioranos e desenhar seus mapas, delegada aos padres geógrafos Domingos Capaci e Diogo Soares, tentava, para a Coroa de Portugal, dar conta dos mais longínquos rincões por onde andavam seus súditos. Sem nenhum exagero, os padres tomaram ciência, um tanto por suas viagens, outro tanto por informações tomadas de homens experimentados nos inóspitos caminhos, desde o Rio da Prata até Belém do Pará, dos caminhos litorâneos àquilo que ainda viria a ser chamado de Região do Pantanal (Notícias Práticas, 1908). Antevendo uma guinada na diplomacia das fronteiras, assinalavam qualquer agrupamento de choças onde habitassem os lusos ou gente leal à Coroa Portuguesa. Portugal precisava ocupar efetivamente todo o território que conseguisse, para argumentar posteriormente que a terra era sua, por direito de posse. Distante dos outros povoados de posse lusa inconteste, a Colônia do Sacramento era uma estrela sem constelação. Sua fragilidade aos ataques espanhóis, dado seu isolamento, ficara evidente durante o cerco que estes promoveram e que durou de 1735 a 1737, quando foi quase perdida para os inimigos da outra margem do Rio da Prata (Monteiro, 1937; Prado, 2002). Em 1737, portanto, ficou patente a necessidade de outros povoados que servissem simultaneamente de apoio a Sacramento e de porta de entrada às miríades de gados. Os gados estavam inacessíveis pelo norte de Sacramento desde que os espanhóis ergueram o Campo de Bloqueio àquela praça. Também era desejável que o novo

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povoado que margeava a Barra da Lagoa dos Patos servisse de pólo irradiador de povoadores, que adentrassem mais e mais as terras do interior, com suas casas, lavouras e benfeitorias, para quando as novas tratativas de limites chegassem a gerar um acordo. Isso só ocorreria em 1750, quando foi assinado o Tratado de Madri. Urgia, portanto, por esses diversos motivos, a povoação do extremo-sul. Era de suma importância reverter a situação de seu litoral ermo e o interior, a esse tempo, pontilhado pelas Missões dos Jesuítas espanhóis e suas estâncias e reduções repletas de indígenas.

III. Os povoadores vindos das Ilhas para a América O início da chegada dos açorianos à Vila do Rio Grande, desde a década de 1750, trouxe a esse povoado de fundação recente — menos de quinze anos se passaram desde que o Forte fora erigido — um grande contingente de famílias migradas em conjunto. Não mais as mozuelas de vida desregrada, “regeneráveis” na nova vida, na nova localidade. Vieram famílias inteiras, migradas do Arquipélago dos Açores, em atenção às solicitações de Gomes Freire de Andrade e de seu colaborador José da Silva Pais (Parecer do Conselho Ultramarino e despacho, março e abril de 1744. In Cortesão 1951: pp. 440-441). Ainda que trasladar casais das Ilhas para a porção sul dos territórios lusos na América fosse uma novidade, não o era no processo de expansão do Império Português em direção ao Novo Mundo. Datam de 1550 as primeiras solicitações de povoadores para a Bahia (Carta de D. João III a Pedro Anes do Canto... In: Cortesão, 1951: pp. 395-397). Ou seja, apenas cinqüenta anos tinham se passado desde o achado de Cabral. Por seu lado, as Ilhas mal tinham completado cem anos desde que foram ocupadas por migrantes vindos do norte de Portugal e da Madeira, além de um significativo grupo de estrangeiros: flamengos em sua maioria e, em menor número, genoveses, ingleses e outros mais (Vieira, 1992: pp.

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53-103). O argumento da Coroa, usado para proceder tal transporte, passava primeiramente pelos desastres naturais. Esses faziam das Ilhas dos Açores um local muito arriscado: os vulcões do arquipélago lançavam constantemente pedras, fumaça, cinzas e lava de suas entranhas. Deitavam fogo sobre a lavoura e a criação, expulsando as famílias de suas casas, deixando como terra arrasada algumas vilas e povoados. Por outro lado, ao final da travessia do Atlântico, havia terras de dimensões quase infinitas, onde o solo era bom. Assim diziam as notícias: uma terra imensa em que “se plantando tudo dá”. Entretanto, terra esta carente de povoadores, tanto agricultores como gente de ofício: carpinteiros, ferreiros, pedreiros e outros mais, necessários para “construir” a sociedade e seus bens materiais (In: Cortesão, 1951: p. 411). Afinal, na terra do pau-brasil tudo ainda estava por fazer. Assim, a Coroa propunha o que aqui será chamado de duplo remédio: para as populações de insulanos, a possibilidade de viverem de modo mais próspero, sem as catástrofes que lhes destruíam casas e plantações; para as novas terras, gente que as povoasse, que estendesse, que ampliasse, no além-mar, os domínios povoados de Sua Majestade. Assim foi feito nesses primeiros momentos. Já no século XVII, além da Bahia, tiveram vez Pernambuco, Grão-Pará e Maranhão, Rio de Janeiro, sempre avançando, atingindo São Paulo e o interior da Amazônia. Tem-se a impressão de que, sempre que as expedições militares ou chefiadas por particulares adentravam um novo território, solicitavam, imediatamente após, povoadores. As expedições entravam em contato com indígenas, promovendo seu apresamento para servirem de mão-de-obra nas lavouras, colocavam-nas a “correr para os matos”, contagiavam-nas com doenças ou, por vezes, dizimavam as aldeias daqueles a quem não podiam submeter. Via de regra, os novos povoadores eram requeridos aos Açores (In: Cortesão, 1951: pp. 395-493).

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Porém, no século XVII não apenas as catástrofes naturais impunham fome e necessidade nas Ilhas. Outros problemas surgiam no Arquipélago, causados pela presença humana de um modo geral e pelo sistema agrário português de um modo mais específico. Nos Açores, assim como em outras partes de Portugal, as grandes porções de terras eram propriedades indivisíveis das famílias nobres. As formas de sucessão e a indivisibilidade das terras existentes no direito consuetudinário, mais precisamente na Lei Mental, foram especificadas nas Ordenações Filipinas, regulamentando e esclarecendo dúvidas relativas às interpretações da lei não escrita (Almeida, 1870 Livro 2, Tit. 35-37: pp. 454-463). As terras das famílias nobres deveriam ser, segundo o sistema de herança que regia a transmissão de propriedades de raiz da nobreza, repassadas apenas ao primogênito, o único herdeiro delas, deixando para os demais filhos apenas a possibilidade de receber bens móveis, se colocados em testamento. Por serem as terras doadas pelo Rei a alguns de seus súditos, em reconhecimento aos bons serviços prestados por famílias em campanhas militares, deveriam seguir na família, não podendo ser alienadas. Os filhos seguintes podiam receber de herança algumas jóias, roupas e tecidos, algum dinheiro, caso a família os tivesse. Mas, a menos que o primogênito viesse a falecer, o filho seguinte na linha sucessória não receberia um grão de terra sequer (Almeida, 1870 Livro 2, Tit. 35: pp. 454462). Além das grandes propriedades e morgados das boas famílias, havia no Arquipélago muitas propriedades religiosas, também indivisíveis e inalienáveis. A maior parte dos agricultores que não procediam dessas ricas famílias não possuíam terras. Eram, em sua maioria, camponeses livres que lavravam as terras dos grandes senhores e das ordens religiosas (Vieira, 1992: p. 71). A propriedade fundiária nos Açores, portanto, era em sua maioria concentrada em poucas mãos, não podia ser dividida, tampouco vendida.

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Em conjunção com os desastres naturais e com essa concentração das terras nas mãos de poucos senhores e dos conventos e ordens religiosas, as terras dos Açores, ao que tudo indica, não eram muito férteis. Foram exaustivamente exploradas nas lavouras de cana-de-açúcar e pastel — uma erva tintória produzida nessas ilhas —, assim como o trigo para a exportação (Vieira, 1992: pp. 136-173). As lavouras com fins de comercialização exigiam muito das qualidades nutritivas do solo que, sem nenhum manejo — adubação, reflorestamento ou outra prática que lhes repusessem os nutrientes — viu-se esgotado e incapaz de prover o sustento daqueles que o lavravam (Vieira, 1992: p. 143 e ss.). Além disso, em intervalos impossíveis de serem previstos, continuavam a acontecer as tais erupções, terremotos e maremotos de vagas imensas, inviabilizando, vez por outra, as safras. Se no primeiro momento da migração para a Bahia eram as erupções vulcânicas e os terremotos os motores da migração, no século XVIII há a explícita insuficiência na produção de alimentos como motivo da emigração. Em um dos documentos que tratam do traslado de açorianos para a Colônia do Sacramento, encontra-se o seguinte trecho: Nos anos seguintes se poderão mandar mais casais, que se poderão tirar das Ilhas, onde são tantos que os não pode sustentar o pequeno terreno que habitam, e a conveniência que se pode tirar daquelas terras fertilíssimas do Rio da Prata só há de ser pelo meio dos moradores que fazendo assento nela hão de procurar utilidades que pode dar. (Parecer do Conselheiro Antônio Rodrigues da Costa ... In: 1951: p. 411 - grifo meu)

As Ilhas, portanto, sofriam o problema da superpopulação. Não quer dizer, necessariamente, que possuíssem uma população numericamente exagerada em termos absolutos. Mas o exagero existia na relação desse número de habitantes com os recursos e a capacidade ou a disponibilidade das terras em produzir alimentos. O terreno das Ilhas dedicado à produção de grãos e outros gêneros para o consumo local era insuficiente para prover seus habitantes. Para a obtenção do alimento necessário, os proprietários das

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grandes glebas que também detinham as porções de terras mais férteis teriam que cessar a produção voltada para a comercialização fora das Ilhas. Isso encontrava boa oposição dos grandes senhores que dessas lavouras obtinham sua riqueza. Os Açores eram, com bastante freqüência, a esse tempo, importadores de alimentos. Não foram poucos os conflitos e revoltas causados pela falta de abastecimento (Vieira, 1992: pp. 136-203). Eis, então, que fazer migrar os camponeses e os artesãos aliviava essa situação de carência de mantimentos oriunda da pressão demográfica existente no arquipélago. Aqui se faz necessário registrar a discordância com Graebin, que afirma em sua tese de doutoramento serem os desastres naturais o motivo maior da retirada de contingentes populacionais de ilhéus em direção à América (Graebin, 2004: pp. 80-89). A longeva e reiterada migração de insulanos — a bem da verdade, ela estendeu-se até o século XIX — pensa-se aqui, tinha como impulsionador o mesmo motivo que levava as gentes do norte de Portugal, lugares não afeitos a tantos cataclismos, a deixarem para trás sua terra natal de forma constante e sistemática: o sistema de heranças e propriedade de terras vigente em Portugal. Nas palavras de Jorge Miguel Pedreira é dito: “regimes sucessórios não igualitários que privavam da posse de terra uma grande parte dos descendentes, obrigando-os a abandonar a exploração agrícola” (Pedreira, 1995: p. 207). Entretanto, a migração periódica dessa população necessitada resolvia apenas parte da equação que tem o Atlântico como separador de seus dois membros. As famílias eram conduzidas para a América, podiam viver com maior prosperidade, procriar e povoar os territórios, aliviando a pressão demográfica nos Açores. Todavia, faltava também gente experimentada em mando e administração nas novas colônias que se fundavam no alémmar. Em contrapartida, as boas famílias das Ilhas tinham seus filhos segundos distanciados da herança das terras. Também havia de ter solução esse problema.

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IV. Os filhos segundos e os novos povoados, através do exemplo de uma família madeirense A migração dos setores menos aquinhoados resolvia a questão de reduzir a população nas Ilhas e aumentar o número de povoadores nos novos territórios americanos. Mas isso não dava solução ao problema das melhores famílias do Arquipélago, qual seja: o que fazer com os outros filhos das boas famílias que tinham nome, nobreza, prestígio, distinção e o cofre vazio? Ao que tudo indica, facilitar a migração desses outros filhos que não os primogênitos também foi prática corrente nesse século XVIII. Foi, inclusive, subsidiada pela Coroa lusa. Muito provavelmente os chamados segundões não viessem a obter títulos de nobreza nos novos territórios americanos. Poderiam, entretanto, angariar terras e prestígio, aumentando as folhas de serviços próprias e de suas famílias, agindo no interesse de Sua Majestade. Tem-se o exemplo de Henrique Cesar de Berenguer e Bitencourt, migrado para a Ilha de Santa Catarina nos anos que cercam 1750 (Requerimento de Henrique Cesar Berenguer e Bitencourt, natural da Ilha da Madeira - 1750 e anexos. In: AN-BN vol. 50, 1936: pp. 83-85). Esse homem não era um açoriano, mas um madeirense, ou seja, não pertencia às Ilhas contempladas com a ênfase migratória para o extremo sul da Colônia dada no Edital de 1747 (Fortes, 1999: pp. 26-27). Segundo Walter Piazza, o engajamento de 59 migrantes da Madeira nos intentos de povoamento do extremo-sul do Estado do Brasil ocorreu por insistentes solicitações de Berenguer e Bitencourt, iniciadas em 1746, a despeito de mais de dois mil alistados nos Açores (Piazza, 1997: p. 125). Somente de sua família vieram quinze pessoas. Isso acabou contribuindo para que o arquipélago da Madeira fosse incluído na área de emigração nessa metade do século XVIII (Santos, 1999: pp. 110-113). Berenguer e Bitencourt pediu ao Conselho Ultramarino especial atenção ao seu

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caso e de seus familiares. Solicitou que fossem trasladados para a Ilha de Santa Catarina às custas da Real Fazenda, como os demais migrantes, para dar contribuição para o povoamento, com sua qualidade e com sua experiência em uma situação de mando: fora Capitão da Sala do General na sua cidade natal, Funchal, capital do Arquipélago da Madeira (Consulta do Conselho Ultramarino, anexa ao Requerimento de Henrique Cesar Berenguer e Bitencourt... 1750. In: AN-BN vol. 50, 1936: p. 84). Sua trajetória, das Ilhas Atlânticas ao sul do Estado do Brasil, dá as pistas para entender o drama que se passava com as melhores famílias das Ilhas e como ele era resolvido. Tentava-se solução e, ao mesmo tempo, alívio à pressão demográfica “específica” que pesava sobre os membros dessas famílias nobres, e ao problema da falta de gente de mando nas terras por povoar. Seria esse, também, uma espécie de duplo remédio à situação de “excedente populacional” específica entre os fidalgos. Berenguer e Bitencourt solicitou ao Conselho Ultramarino que lhe fosse permitido embarcar junto com os nativos dos Açores que partiam para a Ilha de Santa Catarina. Argumentava que Sua Majestade teria nele um bom e laborioso súdito. Contando a seu favor, tinha a trajetória de seus ancestrais. Pedia, então: (....) atenção ao serviço que tem feito, e seus antepassados e qualidades de sua pessoa, na certeza de que não passará àquelas partes outro de qualquer das Ilhas que o exceda em nobreza (...) para passar à América a povoar aquelas terras incultas com a diferença na ajuda de custo segundo o número de sua família e distinção de sua pessoa. (Requerimento de Henrique Cesar Berenguer e Bitencourt, natural da Ilha da Madeira e um dos povoadores da Ilha de Santa Catarina - 1750. In: AN-BN vol. 50, 1936: pp. 83-85).

O Executor do Conselho Ultramarino contribuiu com informações a respeito de Berenguer e Bitencourt: Sem embargo de não ter do suplicante conhecimento, o tive bastante de seu pai, que foi meu condiscípulo nos estudos, é com efeito de famílias ilustres e das primeiras daquela Ilha, que suposto haja na sua casa um morgado ou dois, o suplicante procede de um filho segundo dela e não tem cabedais para conservar-se, com tratamento igual à sua pessoa; e a razão de ficarem pobres os filhos segundos daquela

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casa foi por seus avós despenderem todo o valor dos bens livres que possuíam, na fundação de um Mosteiro de Religiosas Capuchas de que são os Padroeiros e haverem-no reedificado por duas vezes. (Requerimento de Henrique Cesar Berenguer e Bitencourt, natural da Ilha da Madeira e um dos povoadores da Ilha de Santa Catarina - 1750. In: AN-BN vol. 50, 1936: pp. 83-85 - grifos meus).

Houve o reconhecimento das qualidades, suas e de sua família, já que sua solicitação acabou sendo atendida em todos os seus pormenores. Isso o diferenciava, em muito, das demais famílias migrantes. Pouco tempo após a chegada de Berenguer e Bitencourt às terras americanas, encaminhou nova solicitação. Dessa vez, além do pedido de ajuda de custo diferenciada, pedia que lhes fossem dadas quatro porções de terra medindo meia légua quadrada. Meia légua para si e meia légua para cada uma de suas três filhas, como dote para o casamento das moças. Talvez por não ter idéia das reais dimensões do território para aonde estava sendo (havia sido) enviado, talvez por não saber que os homens que acumulavam serviços à Coroa estavam solicitando e recebendo sesmarias de até “três léguas de comprido por uma de largo” na década de 1750 (RAPM, 1933), solicitara uma parcela de terras muito inferior aos dos “melhores” que se envolviam na conquista dos territórios do extremo-sul da América. Entretanto, o somatório das terras pedidas por Berenguer e Bitencourt era de duas léguas de comprido, por meia légua de largura. Isso era uma grande quantidade de terras em comparação ao que se podia obter nas superpovoadas Ilhas portuguesas. Isso também era muito mais do que o quarto de légua em quadro que receberiam os demais ilhéus, como ressaltava o próprio parecer do Conselho Ultramarino. Pedia, também, que lhe fosse dada a patente de Capitão das Ordenanças da localidade onde se estabelecera. Este, assim como seus demais pedidos, foi atendido, com a ressalva em destaque na citação que abaixo segue: (...) e como o suplicante quer levar na sua companhia 3 filhas, se dê para o casamento de cada uma delas meia légua de terras em quadra de sesmaria, e o mais que se manda a dar a cada um dos casais que

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naquela parte se estabelecerem, dando-se também ao mesmo suplicante meia légua de terra em quadra, sem embargo de se dar a cada um dos casais um quarto de légua, e vistas as razões que o suplicante refere e informação que dele há, se lhe dêem 150$000 rs de ajuda de custo para o seu transporte, com as seguranças necessárias e uma patente de Capitão da Ordenança do distrito aonde se lhe determinar o seu estabelecimento, com declaração que não terá menos de 50 casais na sua jurisdição, o que é conveniente acautelar para que se não multipliquem os cargos da ordenança desnecessariamente... (Anexo ao Requerimento de Henrique Cesar Berenguer e Bitencourt.... In: ANBN vol. 50, 1936: pp. 84-85- em itálico na publicação, negritos meus)

Supondo-se uma família, constando de pai, mãe e três filhos — ainda que seja um número pequeno de filhos para a época e desconsiderando a existência de outros parentes e agregados — Berenguer e Bitencourt tinha garantido, sob o seu mando, numa estimativa que deve ficar aquém do número real, um mínimo de duzentas e cinqüenta pessoas. Em um território não povoado, isso significa ser o principal poder de uma nova aldeia. Era o líder, nomeado pelo próprio Rei, de praticamente toda a população livre de uma localidade. Na localidade onde Berenguer e Bitencourt assentou-se, Desterro, hoje Florianópolis, acumulou os cargos de Capitão de Ordenanças, Juiz de Órfãos, e Juiz Ordinário (Santos, 1999: p. 113). De forma diferente, aos “casais” recrutados nas Ilhas, o Edital de 1747 colocava apenas uma ajuda de custo de dois mil e quatrocentos réis para cada mulher acima de doze anos que embarcasse, e ajuda “para vestir” de um mil réis para cada filho ou filha, além de insumos e ferramentas (Edital. In: Fortes, 1941: pp. 26-27). Ainda que adendos posteriores a esse edital tenham estendido benefícios aos filhos e agregados dos casais, a presteza no atendimento da solicitação desse madeirense não é, nem de longe, comparável aos vinte ou mais anos que levaram os Casais para receber seu quinhão de terras. A Coroa, nas novas terras conquistadas, numa visível redistribuição social das riquezas da conquista, privilegiava alguns em detrimento de outros. Propiciou, na mercê de terras, o dote das filhas do fidalgo segundão da Ilha da Madeira e sua liderança sobre os demais povoadores.

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Percebe-se, portanto, nos pareceres às solicitações de Henrique Cesar de Berenguer e Bitencourt, notada diferença entre o tratamento que ele e sua família receberam e aquele usualmente dispensado aos Casais de Sua Majestade. O filho segundo e demais membros de uma família de nobres vindos das Ilhas, sejam elas do Arquipélago dos Açores ou da Madeira, não eram igualados aos demais habitantes que migraram para a América. As diferenças de estatuto social não se esvaeciam na migração. Isso é plenamente compatível com a idéia de justiça distributiva vigente nas sociedades mediterrâneas de Antigo Regime, as quais possuíam uma forte hierarquização social. Uma desigual distribuição social de recursos, pois os homens possuem diferentes qualidades, e ainda assim justa, pois a cada um há o quinhão que lhe compete de acordo com uma avaliação de seus pares e coevos sobre sua posição nessa sociedade (Levi, 2002). Semelhante ao caso de Berenguer e Bitencourt, tem-se a família de Antônio Rodrigues Carneiro, trasmontano que conduzira casais de sua região para a Colônia do Sacramento. Rodrigues Carneiro foi agraciado com a patente de Sargento-mor daquela praça, com soldo equivalente aos sargentos-mores dos Terços do Rio de Janeiro, além da superintendência do linho-cânhamo. Os homens prometidos como noivos às suas quatro filhas receberam patentes de Alferes e Tenentes, também sendo transportados às custas da Coroa (Parecer do Conselheiro Antônio Rodrigues da Costa... In: Cortesão, 1951: p. 413). A cada um dos casais de trasmontanos foi dado, além de ferramentas e sementes, um tostão por cabeça a cada dia de viagem, supondo-se 4 pessoas em cada casal, como ajuda “para se fardar”, a quantia de 12$000 por casal. Em terras ser-lhes-iam dadas “10 jeiras de terra em quadra, para nelas poderem fazer roças, currais e o mais que lhe parecer em benefício próprio”, onde uma jeira equivale a 400 braças ou 0,2 hectare (Parecer do Conselheiro Antônio Rodrigues da Costa... In: Cortesão, 1951: p. 414). Todavia,

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Ao Capitão Antônio Rodrigues Carneiro parece se devem dar 20 jeiras de terra na vizinhança da praça e duas léguas em quadra no território e para fazer a jornada para esta Corte e conduzir a sua família 60$000 e para se fardar 120$000 (Parecer do Conselheiro Antônio Rodrigues da Costa... In: Cortesão1951c: pp. 413-415).

O território, portanto, era novo, mas a estrutura social era calcada na velha sociedade portuguesa do Antigo Regime, que muita distinção fazia entre os homens livres. Eram todos povoadores, mas uns já partiam das ilhas ou da península com possibilidades de obtenção de patentes e mercês diferenciadas. A acumulação de bens, poder de mando e prestígio eram possibilitados a uma família (a algumas famílias), ou seja, a quem já tinha um lastro familiar e aquilo que poderia se chamar de “um bom berço”. A responsabilidade do mando em uma sociedade recente recaía, então, sobre membros de antigas e boas famílias portuguesas, considerando aqui as Ilhas como a última fronteira atlântica do território português em toda a acepção desses termos, não como colônias de Portugal. A estruturação da sociedade nas colônias do extremo-sul da América, portanto, era moldada na mesma forma da sociedade portuguesa de Antigo Regime, ou seja, calcada nas diferenças de estatuto social entre os homens livres, na hierarquia, na distribuição desigual dos recursos. Um camponês ou um artífice não se igualava a Berenguer e Bitencourt em origens e qualidades. A segunda parte da equação encontrava, assim, uma solução plausível. Os segundões da nobreza das Ilhas partiam para as novas terras recém-conquistadas. Agregavam o atributo oriundo do desbravamento das terras e da formação de novos povoados às folhas de serviço de suas famílias, já aludidas nos registros documentais como sendo dos primeiros povoadores das Ilhas atlânticas, aumentando assim as suas qualidades e os seus préstimos no “Real Serviço de Sua Majestade”. Ao redor desses segundões e suas famílias organizava-se a sociedade. Davam seqüência a trajetórias familiares que reuniam prestígio, terras, riquezas e poder de mando.

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Sua migração aliviava a “pressão demográfica específica” das famílias nobres, ao mesmo tempo em que contribuía para dar ordem ao caos pré-existente, dar ordem a algo que não passaria de um aglomerado de pessoas, caso lhes faltassem os esteios da organização social conhecida. As famílias de baixo estatuto social, sem ter quem os dirigisse e os colocasse no caminho do bem-servir à Coroa, da qual eram súditos, talvez não levassem a bom termo a colonização americana. Os fidalgos “empobrecidos” contribuíam, assim, com sua presença e com sua posição nos novos povoados para que, em tudo, a ordem sobrepujasse o caos nos novos territórios de Sua Majestade. Em se tratando de estratégias, a migração para a América demonstrou ser uma possibilidade de sobrevida às famílias fidalgas, através de seus filhos segundos. Tanto quanto era uma perspectiva de alívio de uma situação de fome iminente que sempre assombrava os despossuídos agricultores ilhéus. Um mesmo fenômeno histórico — a migração para terras americanas — possuía, então, significados e importâncias diferentes para os agentes sociais, diferenças essas associadas às diferenças sociais pré-existentes nas Ilhas.

V. As boas famílias dos Açores e o povoamento do Rio Grande Para o Continente do Rio Grande de São Pedro encontram-se casos semelhantes ao desse “pobre nobre” madeirense e do Capitão trasmontano. Ainda que não se tenham encontrado explicitamente solicitações ou pareceres do Conselho Ultramarino que os diferenciassem, tais como as citadas no tópico anterior, é muito pouco provável que houvesse tanta diferença nas práticas da Coroa e dos ilhéus. Eles eram portugueses, e como portugueses se organizavam. Eis aqui o papel das regularidades percebidas ao longo do tempo e em diferentes locais a ajudar a suprir as lacunas da documentação. Encontraram-se, todavia, referências menos substanciosas em seus conteúdos,

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mas que deixam antever distância entre certas famílias de insulanos e o restante dos migrados. As filhas de Antônio Furtado de Mendonça e Isabel da Silveira, oriundos da Ilha do Faial, freguesia de São Salvador da Vila da Horta, por exemplo, têm o tratamento de “Dona” desde que chegaram ao Continente (ADPRG - Livros 1, 2, 3 e 4 de Batismos da Vila do Rio Grande, 1738-1763). Também se verificou que seus maridos não faziam parte do contingente de camponeses de poucas posses ou de homens de ofício. Essas moças, em sua maioria solteiras quando da chegada, casaram-se dentro do seleto grupo de detentores de sesmarias de grandes proporções, de grandes rebanhos de gado, arrematadores de contratos e oficiais da Câmara, conforme se verá a seguir. As moças de sobrenome Silveira, da família Furtado de Mendonça, destacavam-se do conjunto dos insulanos, mesmo quando casadas com insulanos. Tanto as filhas de Antônio Furtado de Mendonça quanto os seus genros, não compartilharam dos momentos de penúria que atingiram os migrantes dos Açores à sua chegada no Continente. Veja-se, a seguir, a qualidade das relações sociais estabelecidas por esse grupo de migrantes, cujas conexões foram identificadas através dos registros de batismo dos filhos de um desses casais. Francisco Pires Casado, filho de Francisco Pires Casado e Felipa Antônia da Silveira, natural da Ilha do Pico, freguesia de Santa Luzia, era casado com Dona Mariana Eufrásia da Silveira, filha de Antônio Furtado de Mendonça e Isabel da Silveira. Ela era natural da Ilha do Faial, freguesia de São Salvador da Vila da Horta. Provavelmente as mães de Francisco e de Mariana Eufrásia guardavam parentesco próximo. O pai de Dona Mariana Eufrásia, falecido antes de 1761, era alferes, provavelmente da Companhia da Ordenança (Jaccottet & Minetti, 2001: p. 61). No ano de 1778, em seu domicílio na freguesia de Viamão estavam arrolados, além de familiares e agregados, 19 escravos. Francisco Pires Casado, em registro

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documental de 1784, detinha campos em sociedade com Manuel Bento da Rocha, nos quais animais foram contados em quantidade — “8000 animais vacunares, 700 animais cavalares, 90 burros/burras, 30 bois mansos, 100 mulas 60 cavalos mansos e 300 ovelhas”. No 1o Livro de Óbitos da Freguesia de Viamão é dito Capitão (AHCMPA - Rol dos Confessados de Viamão -1778; AHRS - Relação dos Moradores de Viamão, 1778 - códs. F1198 A e B1784; Neumann & Kühn, prelo 1º LObt Viamão). Francisco Pires Casado e Dona Mariana Eufrásia tiveram no mínimo quatro filhos batizados na Vila do Rio Grande, os quais também registram os padrinhos. São eles:

Quadro I – Compadrio de Francisco Pires Casado e Dona Mariana Eufrásia Criança Rosália

data bat. 12/01/1755

Padrinho Nat. padrinho Francisco Antônio da Das Ilhas Silveira Maurícia 01/10/1758 Manuel Fernandes Vieira Braga, Póvoa de Lanhoso Manuel 17/02/1760 Manuel Bento da Rocha não consta (península?) Francisca 02/08/1762 Domingos de Lima Veiga Portugal Fonte: (ADPRG - Livros 1º, 2º, 3º e 4º de Batismos de Rio Grande, 1738-1763)

Madrinha Dona Joana Margarida da Silveira Dona Maria Antônia da Silveira Dona Isabel Francisca da Silveira não consta

nat. madrinha Faial, fr. S. Salvador da Vila da Horta Faial, fr. S. Salvador da Vila da Horta Faial, fr. S. Salvador da Vila da Horta não consta

Vejam-se agora, quem eram os padrinhos dos filhos desse casal e com quem guardavam relações, fossem estas de parentesco sangüíneo, parentesco afim, parentesco fictício ou de negócios: Francisco Antônio da Silveira: provavelmente irmão ou primo de Dona Mariana Eufrásia da Silveira, casado com Úrsula Maria da Conceição. Além da menina Rosália, possui apenas um outro afilhado, juntamente com Úrsula. A madrinha não compareceu à cerimônia desse segundo afilhado, dando procuração para que a representassem na cerimônia (Jaccottet & Minetti, 2001: p. 93) Francisco Antônio possuía, em 1767, marca de gado registrada nos livros da Câmara de Viamão (Fortes, 1941: p. 175). Manuel Fernandes Vieira: natural de Povoa de Lanhoso, arcebispado de Braga, freguesia de Fonte da Arcada. Casado com Dona Ana Inácia da Silveira, natural da Ilha do

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Faial, fr. São Salvador da Vila da Horta, irmã de Dona Maria Eufrásia. Dos batismos levantados até o momento, Manuel Fernandes Vieira foi padrinho de quatro crianças, incluindo a filha de Pires Casado. Fernandes Vieira deve ter chegado ao Continente por volta de 1751, com os contingentes convocados por Gomes Freire de Andrade para a expedição de demarcação de limites do Tratado de Madri. Em 1752 foi nomeado Tabelião da Vila do Rio Grande, podendo ter renovação do cargo em seis meses. Essa renovação deu-se várias vezes, sendo-lhe acrescentado ainda ofício de Escrivão de Órfãos da Vila do Rio Grande. Teve sucessivamente as patentes de Sargento-supra da Ordenança e de Capitão da mesma companhia, todas essas mercês dadas ou ratificadas por Gomes Freire de Andrade (RAPM, 1929: pp. 452, 488 e 574). Ainda na Vila do Rio Grande foi Contratador dos Açougues, em sociedade com Manuel Bento da Rocha. Uma vez tendo deixado a Vila do Rio Grande, foi oficial da Câmara em Viamão, logo após a reinstalação desta, em 1766, provavelmente continuidade de um mandato interrompido com “a correria que promoveram os castelhanos” (PMPA, 1992: pp.14). Essa era a única câmara existente no Continente do Rio Grande de São Pedro. Registrou marca de gado nessa mesma Câmara em 1767 (Fortes, 1941: p. 167), e em 1776, morador nos Campos de Viamão, tinha arrolados em sua propriedade, além de sua família, cerca de dezessete escravos (AHCMPA – Rol dos Confessados de Viamão, 1776). Manuel Fernandes Vieira registrou três filhos nos livros de batismo de Rio Grande. A menina mais velha, Vicência, não tem padrinhos registrados, pois seu batismo deu-se em casa, em situação de emergência. Da segunda filha, Clemência, o padrinho é Antônio Lopes da Costa, morador do Rio de Janeiro. Ausente na cerimônia, Lopes da Costa passou procuração para o Capitão de Mar e Guerra ad honorem Mateus Inácio da Silveira, natural da Ilha do Faial, Freguesia de São Salvador, casado com Maria Antônia Silveira, outra das irmãs de Dona Mariana Eufrásia. Mateus Inácio era parente próximo de sua esposa. Por último, o menino Manuel, cujo padrinho foi

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Anacleto Elias de Afonseca (Jaccottet & Minetti, 2001: p.80), um dos mais importantes comerciantes da praça do Rio de Janeiro (Fragoso, 1998) e arrematador do contrato dos Registros das Passagens dos Animais de Viamão e Santa Vitória na década de 1770 (Kühn, 2000). Manuel Bento da Rocha: não se tem por certo a sua procedência. Provavelmente fora vereador na Vila do Rio Grande, sendo também membro da Câmara em Viamão, após a transferência. Era casado com Dona Isabel Francisca da Silveira, outra das irmãs de Dona Maria Eufrásia e sócio de Manuel Fernandes Vieira no contrato dos Açougues. Em 1755 recebeu carta de sesmaria de uns campos chamados Curral de Arroios, constando neles edificações de casas, plantações das quais já fizera colheitas (RAPM, 1933: pp. 150-152). Na nova freguesia do Triunfo possuía terras em sociedade com Francisco Pires Casado, com os já citados numerosos animais (AHRS- Relação dos Moradores de Triunfo, cód. F1198-A 1784). Consta ter mais dois rincões, sem sociedade. Nessas terras possuiria 12.000 vacuns, 4.600 cavalos e éguas, 1160 burros e burras; todavia, essas últimas informações não estão confirmadas (Pawels, 1930: nota 13 e nota 23). Em Rio Grande foi padrinho de mais quatro crianças, além do filho de Francisco Pires Casado, seu sócio em terras e cunhado. Seus afilhados são filhos de gente provinda das ilhas de São Jorge, Graciosa, Pico e Faial, dentre os quais uma das filhas do também já citado Capitão de Mar e Guerra ad honorem Mateus Inácio da Silveira, (Jaccottet & Minetti, 2001: pp. 90). Entre os anos de 1766 e 1775 estão registrados cinco óbitos de escravos seus em Viamão (Neumann & Kühn, prelo 1º LObt Viamão 1748-1777), ainda que não se tenha encontrado outros registros de sua escravaria. Domingos de Lima Veiga: Natural da Península, casado com Gertrudes Pais de Araújo. Segundo Queiroz, possuía no mínimo entre cinco e sete escravos na Vila do Rio Grande. Deteve patente de Sargento, Alferes da Cavalaria de Ordenança e de Capitão da

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Ordenança do Rio Grande, foi oficial da Câmara em Viamão em 1767 (PMPA, 1992: p.14) e escrivão da Fazenda Real na década de 1770. Na vila do Rio Grande foi padrinho de oito crianças açorianas, o que denota o seu prestígio entre os ilhéus. Muito mais se visto que sua família — esposa e filhos — era constantemente convidada ao compadrio, ainda que não houvesse grande concentração de afilhados em quaisquer de seus membros. Domingos de Lima Veiga é o único dos padrinhos dos filhos de Francisco Pires Casado que não pertencia à família, mas não deixava de pertencer ao pequeno “clube” de detentores de escravos, terras, patentes e privilégios na Vila do Rio Grande. A assinatura de Domingos de Lima Veiga aparece num grande número de documentos de datas de terras entregues aos açorianos e, coincidentemente, sua família, quando ainda era moradora de Rio Grande, foi uma das que mais apadrinhou filhos de migrantes ilhéus. Isso aponta para uma estreita relação entre a “popularidade” daqueles que são amiúde convidados para padrinhos e a existência de uma base social de apoio que dê sustento às posições de mando em uma localidade (Hameister, 2003a). Também aponta para a existência de uma via de duas mãos: de alguma forma, o Capitão participou da aplicação da justiça distributiva quando fez medir e assegurar as terras a seus compadres e afilhados ilhéus ou descendentes, retornando a eles a dádiva inicial de ser incluído em suas famílias através de um parentesco religioso e espiritual. Retornando aos batismos do genro de Antônio Furtado de Mendonça, tem-se que, entre Francisco Pires Casado, seus parentes, seus compadres ou cunhados, encontram-se, no mínimo, as seguintes mercês, cargos, patentes, escravos, terras e animais, concomitantemente ou dispersas ao longo de suas trajetórias:

4 marcas de gado; 1 patente de Capitão-de-Mar e Guerra ad honorem, 1 de Sargento-supra da

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Ordenança, 2 patentes de Sargento das Ordenanças, 3 patentes de Capitão das Ordenanças; 2 patentes de Alferes das Ordenanças 3 vereadores; 4 sesmarias; 41 escravos 20.000 cabeças de gado vacum; 5.000 cavalos, 1.200 asininos; ofício de Tabelião da Vila do Rio Grande, ofício de Escrivão do Juizado de Órfãos, ofício de escrivão da Fazenda Real; contrato dos Açougues.

Outras comprovações do estatuto social elevado dessas famílias podem ser observadas na qualidade dos dotes quando do casamento de suas filhas, estudados por Fábio Kühn (Kühn, 2003; Kühn 2006). Não há como dizer que a família derivada de Antônio Furtado de Mendonça se igualava, na pobreza e na necessidade, com os demais insulanos. Observando a qualidade dos compadres de Francisco Pires Casado e dos compadres de seus cunhados, vê-se que jamais convidaram ao compadrio alguém em situação inferior à sua. Todos os compadres de Francisco Pires Casado detinham bens, cargos e privilégios suficientes para inseri-los nos altos escalões da pirâmide social do Continente do Rio Grande de São Pedro. Francisco Pires Casado e seus familiares, cientes de sua posição na sociedade, não abriam as portas das relações mais próximas com sua família às outras famílias que não detinham posição semelhante à sua. Importante registrar que, salvo os registros de batismo, nos quais as “Ilhas” são mencionadas de forma genérica ou com seu nome próprio — elas aparecem apenas como local de origem dos pais, padrinhos ou avós das crianças —, não se localizou nenhum outro registro documental no qual Francisco Pires Casado ou qualquer um de seus compadres ou familiares que de lá viessem, alegassem ser “gente das Ilhas”, ou

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pertencerem aos “casais de Sua Majestade”. As terras que dispunham não lhes foram dadas como datas de Casais. Foram doadas na década de 1750, durante a distribuição de sesmarias promovida por Gomes Freire de Andrade em sua expedição de demarcação de limites do Tratado de Madri (RAPM, 1929; RAPM, 1933) ou adquiridas por compra. Tampouco suas terras se comparavam a essas datas de casais em tamanho (dimensões). Disso é possível antever que, nem eles, nem a sociedade na qual viviam, os percebiam como “gente das Ilhas”, aqueles que durante vinte ou mais anos aglutinaram-se em torno da reivindicação comum: receber as terras e incentivos prometidos quando de sua partida das Ilhas. No conjunto das relações mais próximas de Francisco Pires Casado, portanto, encontramos muitas pessoas nascidas nos Açores, com toda a certeza, mas não que compartilhavam da “identidade açoriana” que se forjou no Continente do Rio Grande de São Pedro. Essa “identidade”, tudo leva a crer, tinha como agente aglutinador a insistência em fazer cumprir os termos do Edital de 1747, que prometia aos Casais de Sua Majestade terras, insumos e auxílios. Não é, então, essa identificação, prerrogativa do local de origem e sim fruto de um processo histórico do qual algumas famílias participaram e outras abdicaram de sua inclusão no grupo. Se os homens e mulheres da família de Antônio Furtado de Mendonça não eram “açorianos” na acepção de desinência de uma identidade, resta perguntar quem o era e por que o era. Assim como cabe também perguntar o porquê de as filhas e genros de Antônio Furtado de Mendonça não o serem. O caso dos migrantes ilhéus para o Estado do GrãoPará e Maranhão pode vir a trazer alguma luz sobre esse problema.

VI. Açoriano: “ser ou não ser, eis a questão” No tópico anterior, foi visto que nem todos os que migraram padeciam da mesma sorte. A alegada “pobreza” de Berenguer e Bitencourt, que possuía um ou dois morgados

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em sua família, nem de longe se compara à perspectiva de fome pela qual passavam os agricultores não proprietários ou a gente de ofício, pertencentes aos estratos livres mais baixos da sociedade insulana. Como já visto, a pressão demográfica que existia nas ilhas apresentava duas faces específicas: uma para os estratos subalternos e outra para os bem nascidos, mas que, todavia, não eram os primogênitos. Entretanto, como sói acontecer nas sociedades de Antigo Regime, os mais aquinhoados eram uma minoria, uma parcela diminuta da sociedade. Os arquipélagos dos Açores e da Madeira não eram exceção dentro da sociedade portuguesa (Vieira, 1992). Isso significa que a maioria dos migrantes também era oriunda desses estratos inferiores da sociedade. Eram famílias de agricultores sem terras, em sua maioria, e alguns artesãos. Os membros dos estratos inferiores também se engajavam, voluntariamente ou não, nas tropas de Sua Majestade, podendo vir a servir em qualquer ponto do Império Português, fosse na América, na África ou na Ásia. Isso hes dava uma possibilidade de ascensão social, através das promoções por mérito e, também, do uso da farda, o que os punha a certa distância de um mundo majoritariamente camponês. Muitos desses soldados oriundos das Ilhas chegaram ao Continente do Rio Grande de São Pedro antes da migração em massa das famílias dos Açores. Se chegaram ao extremo-sul como soldados (Parecer do Conselho Ultramarino assinado por Alexandre de Gusmão, e um despacho real ordenando o embarque de soldados... In: Cortesão, 1951 442-443), fica claro que não faziam parte dos “Casais de Sua Majestade”. Mas, dependendo das opções que se abriram a eles, não se escusaram de tentar tornar-se membros dos casais, principalmente através do casamento com moças ou viúvas vindas dos Açores. Verificam-se, também, soldados e civis que, não tendo nenhuma relação com os Açores, buscaram, através de alianças matrimoniais, seu ingresso nesse grupo de migrantes, com seus filhos passando a ser identificados como “gente das Ilhas”. Isso é perceptível através de solicitações de “não-

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açorianos” nas cartas de datas de terras passadas aos que se reivindicavam do direito de recebê-las a partir dos termos do Edital de 1747 e adendos posteriores (Barroso, Brochado & Tassoni, 2002). Existe, portanto, uma série de intentos distintos, fazendo parte de um mesmo grande fenômeno: nativos dos Açores que não se identificam como “das Ilhas”; nativos dos Açores que faziam questão de serem identificados como “das Ilhas”; gente que jamais havia posto os pés nas Ilhas, ocupada em juntar-se às gentes “das Ilhas”. Resta entender esses fenômenos e tentar explicar por que eles ocorriam. Busca-se, pois, comparação com o caso estudado por Acevedo Marin (2002) para os ilhéus que migraram para o Estado do Grão-Pará e Maranhão no mesmo período em que migraram também para o extremo-sul do Estado do Brasil. Acevedo Marin destaca a Vila de São José de Macapá, uma povoação levada a cabo, principalmente, por nativos das Ilhas. Em uma outra localidade, com diferentes especificidades, essa comparação pode trazer luz à sorte de fenômenos que aconteceram no sul e, talvez, auxilie na explicação para a acentuada diferença entre esses dois procedimentos nas fronteiras americanas do Império Português. Segundo essa autora, os açorianos migrados na década de 1750 experimentaram um processo de decadência, pois, ao final de pouco mais de cinqüenta anos, em um arrolamento populacional feito em 1808 no qual também são listadas posses e propriedades, só restavam alguns poucos açorianos. Destes, a imensa maioria achava-se em estado de pobreza. A posse de escravos por parte dos açorianos seria muito pequena em comparação a outros setores, assim como o restante de seus bens. Achou, também, muitas viúvas com sua prole ou poucos agregados, ocupados na execução das funções domésticas, do artesanato e da agricultura. Como motivo alegado por essa autora para tal decadência financeira estariam o

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fato de serem os açorianos majoritariamente pequenos agricultores, e que o Grão-Pará, a este tempo, passava pela inserção de seus produtos naquilo que ela chama de “uma política mercantilista”. Os açorianos não estariam, portanto, aptos a uma produção em larga escala que suprisse essa demanda. Além disso, a produção dessas pequenas propriedades seria escoada e comercializada dentro da política pombalina de incentivo ao desenvolvimento do comércio nessa região. Isso colocaria os ilhéus na dependência da Companhia de Comércio do Pará para a vazão dos grãos e farinhas produzidos, bem como os colocaria como usuários dos créditos cedidos pela mesma Companhia. Por ser a produção diminuta, não teriam podido concorrer no mercado de exportações com os “grandes” da Capitania, tampouco saldar as dívidas oriundas da cessão de créditos. Isso teria corroído a economia que, nos primeiros momentos, dava sinais de prosperidade, mas que com o transcorrer dos anos teria levado à bancarrota os “açorianos” da Vila de São José de Macapá. Ante os dados colocados pela autora, não é possível duvidar que, passados cinqüenta anos, os “açorianos”, ainda que assim não se identificassem, estavam de fato em uma situação pouco favorável. Mas essa parece uma explicação por demais simples para uma situação que, mesmo através dos dados fornecidos pela autora, apercebe-se com uma configuração muito mais complexa. Em primeiro lugar, há o recorrente alerta de que o povoamento dessa fronteira norte foi modificado pela política pombalina. Mas isso também ocorreu no sul, não sendo esse, portanto, motivo de diferenciação entre as duas distantes regiões. Todavia, fica num segundo plano o fato de que todas as diretrizes pombalinas experimentadas no Norte previam e privilegiavam a inserção das populações autóctones através, inclusive, de alianças matrimonias na sociedade de características predominantemente lusas que se formava. Durante os anos do Ministério de Pombal, a obtenção de privilégios, mercês,

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cargos, patentes e terras, assim como honras passava pela integração das populações de origem européia com os indígenas. Ilhéus ou gente de outra procedência entrariam nessa cadeia de prestações e contraprestações de dádivas com a Coroa lusa — o sistema de mercês — principalmente se procedessem alianças com as populações autóctones. O maior incentivo era dado aos que gerassem filhos miscigenados. Essa era a ênfase das diretrizes de Pombal, expressas principalmente na Lei de Liberdades e no Diretório dos Índios (1757). Caso isso não ocorresse, ainda assim poderiam usufruir de algumas benesses reais. Todavia, a prioridade era para aqueles que obtiveram sucesso nessas alianças. Diferente foi o caso do Continente do Rio Grande de São Pedro, no qual a aplicação da legislação pombalina, como foi visto por Elisa Frühauf Garcia em sua dissertação de mestrado acerca da integração dos indígenas na sociedade sulina, atingiu muito mais as práticas de particulares em sua utilização dos índios como mão-de-obra do que apresentando alterações no acesso a privilégios e mercês dados pela Coroa aos que miscigenaram (Garcia, 2003). Em segundo lugar, e corroborando essa idéia, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, governador da Capitania e irmão do Marquês de Pombal, quando da chegada das primeiras levas de colonos dos Açores em Belém, em citação feita pela autora, reclama do fato de estarem sendo envidadas muito mais mulheres do que homens (Acevedo Marin, 2002: p. 50). Não se sabe aqui se essas migravam sozinhas ou em famílias. Todavia, esse detalhe pouca diferença faz. O que importa é que ali ocorria o contrário do que se verificava no sul, onde os casais com prole numerosa e, mais ainda, aqueles que levavam consigo mulheres acima dos doze anos, eram claramente privilegiados nas ajudas de custo. Havia um plus nessa ajuda: 2$500 réis eram dados por cada mulher que se dirigisse para lá, conforme o Edital de 1747 (Fortes, 1999: pp. 26-27). Isso porque, conforme visto anteriormente, o extremo-sul necessitava de mulheres para estabelecer famílias com os

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soldados e demais povoadores. Desejavam que essas famílias, juntamente com a promessa de terras e insumos, servissem de âncora aos povoadores. A ajuda de custo extra oferecida aos “açorianos” do extremo norte era, inicialmente, em maio de 1751, de 2$400 réis pelas mulheres desimpedidas entre 12 e 25 anos, à semelhança do que fora oferecido para o Rio Grade e Santa Catarina (Carta de D. José I para o Governador do Maranhão-Pará, 1951a), não sendo oferecido nenhum plus aos homens. Entretanto, por algum motivo, em dezembro de 1751 passou a haver uma diferença na ajuda de custo efetivamente dada, em favor dos homens. Passou para um tostão para cada homem e dois vinténs para cada mulher. Ou seja, ao contrário do sul, as mulheres lusas eram pouco “valorizadas” nesse povoamento, haja vista que recebiam ajuda menor que a dos homens. Além, é claro, da reclamação de que seguiam muitas mulheres nas embarcações. Disso depreende-se que, ao contrário do extremo-sul, o extremo-norte não tinha um desequilíbrio na relação entre os sexos, com diferença favorável ao setor masculino luso na formação dos povoados. Tudo induz a pensar que, ao contrário, no extremo-norte, havia oferta de mulheres o bastante para que casamentos fossem realizados e para que a procriação dos colonizadores ocorresse. Ora, é recorrente na historiografia e na documentação colonial que, ao iniciar um povoamento, principalmente em áreas de fronteira aberta, dada a necessidade de conquista bélica ou de defesa militar dos territórios, o contingente masculino seja mais numeroso e as mulheres pouco dispostas a irem para esses locais ermos, violentos e instáveis. José da Silva Pais recorreu, inclusive, às tais mozuelas, já que os soldados, se casados, raramente conduziam às fronteiras as suas esposas e filhas. Se as mulheres européias não eram bem-vindas na região do Pará, significa dizer que havia mulheres em abundância para proceder ao povoamento. Mulheres estas,

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portanto, oriundas dos inúmeros grupamentos e aldeias indígenas existentes na região. Não parece por acaso que Francisco Xavier de Mendonça Furtado tenha aconselhado que as novas povoações ficassem intercaladas entre duas aldeias indígenas, fossem elas autônomas, fossem elas geridas pelos padres da Companhia de Jesus (Acevedo Marin, 2002) . Também aos colonos ilhéus, com alegação de evitar a nociva ociosidade, era recomendado que trabalhassem a terra com as próprias mãos (Instrução que levou o Capitão-mor João Batista de Oliveira ... In: Mendonça, 1963 v. 1: p. 116). Isso os colocava distantes da possibilidade de ter concessão, estatal ou dos padres da Companhia, para explorar a mão-de-obra indígena como os demais povoadores podiam fazer. Necessitavam, assim, para ter acesso a essa mão-de-obra ainda abundante na região, a formação de alianças com os autóctones. O casamento com as índias, mais do que uma mulher e uma prole, significava formar uma família nesse meio, possuir cunhados, adentrar nas cadeias de reciprocidade das populações indígenas. Muitas destas, tradicionalmente, trabalhavam em mutirão. A obtenção de tal força de trabalho, portanto, passava por alianças. Dessas, as alianças matrimoniais eram mais fáceis de serem obtidas do que acordos negociados. Essas alianças eram estimuladas pela Coroa e recompensadas com mercês e privilégios (Diretório dos Índios, 1757). Para que com esses casamentos miscigenados fosse obtido sucesso, a identificação como “gente das Ilhas” deveria desaparecer. Deveriam esses ilhéus, e principalmente sua prole, tornarem-se tão nativos quanto os nativos. Para obter o acesso aos recursos locais, a abdicação da pertença à “gente das Ilhas” se fez necessária, assim como a construção de uma nova, consoante com os estímulos régios e às possibilidades de formação de alianças com as populações locais. Casos como esse, de formação um grupo étnico e de padrões sociais e culturais associados ao acesso a recursos, foram estudados e

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discutidos por Fredrik Barth, cujas conclusões e indicações auxiliam no entendimento do tema aqui abordado (Barth, 1961; Barth, 1980 [1959]; Barth, 1981; Barth, 2000a). No entanto, diz uma carta do Governador do Grão-Pará para o Conselheiro Ultramarino Diogo de Mendonça Corte Real, datada de 1752, referindo-se a São José de Macapá: A mim me parecia que com o grande estabelecimento que tem a podia Sua Majestade fazer cidade, porque de primeiros povoadores há de ter perto de 600 pessoas brancas que, certamente, sem mescla, não as tem nenhuma deste Estado (....) (In: Mendonça, 1963 v. 1: p. 210)

Se em 1752 a população da localidade era branca e sem mesclas, muito possivelmente assim ainda o era em 1757, quando foi instituído o Diretório dos Índios. Ou seja, quando passou a vigorar a legislação que premiava e concedia mercês às populações com mescla. Os recursos econômicos e políticos a serem conferidos com base no Diretório, portanto, passaram longe da população branca — os nativos das Ilhas e seus descendentes — de São José de Macapá. Sem grandes porções de terras, sem a farta mãode-obra indígena, de fato, parece muito lógico e provável que não prosperassem. Na referida listagem de 1808, Acevedo Marin destaca a quantidade de viúvas açorianas, também empobrecidas e que lavravam a terra com o auxílio da mão-de-obra familiar e/ou poucos agregados e menos ainda com escravos. Ao que parece, “açorianas”, e mais especialmente as “viúvas açorianas” no extremo-norte, possuíam “pouco valor” no mercado matrimonial da região. Isso também contrasta com a situação do extremo-sul. No norte elas não representavam um “passaporte” para uma data de terras. Essas doações régias estavam reservadas — ou ao menos eram dadas com mais freqüência — às famílias que geraram prole miscigenada e, com isso, aproximaram grupos indígenas da sociedade portuguesa no Estado do Grão-Pará e Maranhão. Parece que um segundo casamento a essas mulheres não era uma possibilidade posta ao dia. De forma antagônica, encontram-se

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registrados nas datas de terras do Rio Grande de São Pedro alguns homens que não procediam dos Açores e solicitavam uma porção de terras por serem casados com “viúva de casal”. Também são recorrentes os pedidos de terra para homens casados com “filhas de casal” ou “agregadas de casal” (Barroso, Brochado & Tassoni, 2002). Isso ressalta o “valor” dessas “açorianas” em uma escolha matrimonial no extremo-sul. Através do matrimônio com algumas delas, homens viram-se habilitados a uma mercê régia, sob forma de terras e outros incentivos. Em outras palavras, não é surpreendente que, em São José de Macapá, um povoado formado essencialmente por “açorianos”, ao cabo de cinqüenta anos estes não mais existissem como setor mais abastado da população paraense. Mais ainda, os que reivindicavam a “identidade açoriana” ou “gente das Ilhas”, ao que parece, investiram em uma estratégia que se revelou equivocada na obtenção de terras, mão-de-obra, privilégios, patentes, distinções e honras. Nessa porção da América Portuguesa a ênfase ao acesso de recursos era, antes de tudo, oferecida àqueles que povoaram de acordo com as orientações do Diretório dos Índios (1757). Retornando ao extremo-sul, verifica-se, portanto, que o acesso aos recursos, ao contrário do extremo-norte, tinha como ênfase a ligação com gente dos “casais” ou “das Ilhas”. Assim reza o Edital de 1747 e seus posteriores adendos. As populações recém chegadas das Ilhas a partir 1749 deveriam, portanto, manter-se como “gente das Ilhas” até um matrimônio dado no prazo de, no máximo, cinco anos, como diziam as ordens. Esse item, num primeiro momento, atingia apenas os “filhos dos casais”. Posteriormente foi estendido aos “agregados dos casais”. Houve uma demora de aproximadamente vinte anos, até o início da década de 1770, para o início da distribuição de terras. O retardo foi provocado, num primeiro momento, pela impossibilidade de serem assentados os colonos nas terras pertencentes às Missões dos padres espanhóis, cujos índios levantaram-se no

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episódio denominado na historiografia como Guerras Guaraníticas. Num segundo momento, complicaram-se ainda mais, dada a invasão da Vila do Rio Grande pelos espanhóis e perda de boa parte do Continente do Rio Grande para os castelhanos. O prazo para que os “Casais”, “filhos de Casais”, os “casados com filhos de Casais”, os “agregados de Casais”, os “casados com agregados de Casais”, os casados com “viúvas de Casais” requeressem a terra e os incentivos foi dilatado quase que ad infinitum. Por outro lado, nos documentos de registro das datas de terras conferidas a partir de 1770 e que contemplaram um grande número de imigrantes dos Açores, entre outros outorgados, não se encontrou nenhuma reivindicação vinda de alguém que alegava ser casado com índia, ter filho com índia ou descender de índios. Encontram-se veteranos das campanhas militares, moradores antigos reivindicando a terra por compra que haviam feito ou herança que haviam recebido com intuito de legalizar a posse. Mas não há nenhuma alegação, nos mais de 600 registros vistos, de laços familiares com indígenas. Isso não quer dizer, de forma alguma, que essas uniões mistas não ocorressem. Prole natural ou legítima de brancos e indígenas não são raras nos registros de batismo da Vila do Rio Grande ou de Viamão. Todavia, o que se percebe é que a ênfase na distribuição de recursos do extremo-sul passou ao largo do Diretório dos Índios, sendo privilegiados os termos do Edital de 1747 e seus adendos posteriores. Muito provavelmente por terem os nativos das Ilhas conseguido uma aglutinação. Conseguiram forjar elementos de pertença a um grupo com interesses comuns e que, como tal, de alguma forma, pressionavam as autoridades no sentido de fazer cumprir os termos do Edital. Novamente retoma-se a discussão acerca de estratégias. Se foi visto que dentro de um mesmo grupo de origem pessoas ou famílias podiam fazer a escolha de não-inclusão em um grupo étnico, o caso paraense demonstra que aqueles que insistiram em manter a sua “identidade” pregressa foram malfadados. Assim, há que se pensar estratégias, no

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plural, quando se remete a essa construção ou abdicação de identidades. Também há que se entender estratégias como fruto de uma relação de um grupo social com o restante da sociedade. Ou seja, pode-se investir em uma determinada direção, com intuito de obtenção de uma melhor vida, mas o resultado não é perfeitamente previsível, pois depende de coisas sobre as quais nem sempre esses agentes sociais possuíam o controle. As escolhas, condicionadas pelo meio, não possuem um resultado matematicamente calculado, havendo sempre lugar para que o imprevisto e o acaso interfiram.

VII. Algumas considerações Esse grupo de “gente das Ilhas”, forjada e sustentada no Continente do Rio Grande de São Pedro, foi estendida por esses vinte anos e mais além, haja vista ainda em 1800 estarem sendo concedidas as tais datas de terras aos “Casais de Sua Majestade”, sua descendência e seus agregados. O Diretório dos Índios, ainda que aplicado em outros territórios luso-brasileiros após seu “teste” no Estado do Grão-Pará e Maranhão, não teve no extremo-sul impacto semelhante, conforme é percebido no trabalho de Garcia (2003). Não foi encontrado nas solicitações de sesmarias, tampouco nas datas de terras de um quarto de légua cedidas aos colonos, nenhum homem que se alegasse habilitado a uma mercê por ter se casado com índia ou por ser filho de europeu com índia. Isso porque a ênfase para a distribuição dos recursos fora dada ou, antes, conquistada, através da aglutinação de ilhéus em torno de seus anseios comuns — o cumprimento dos itens que os favoreciam no Edital de 1747. A geração da identidade “açoriana” foi, assim, estritamente ligada aos motivos bastante objetivos que não são exclusivos dos açorianos, mas característica comum a toda a humanidade: ter acesso a recursos lhes garantisse a sobrevivência. A identidade “miscigenada”, por não ter sido privilegiada ou por não ter mobilizado os colonos no

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sentido de conquistar os direitos previstos no Diretório dos Índios no extremo-sul, não foi “construída”. Ou ainda, se nessas famílias miscigenadas houvesse um componente açoriano, este sim, por motivos estratégicos, seria destacado como desinência identitária. Logo, as estratégias vinculadas à geração de uma identidade como a das “gentes das ilhas” ou como a de “mestiços” de sangue europeu e indígena, são fruto de processos históricos, somente possíveis em dadas localidades e regiões. Fazem parte do universo de escolhas possíveis a essa população. Fica claro, então, na comparação entre os casos do norte e do sul, que a permanência e o fortalecimento da desinência “casal de Sua Majestade” ou outros de seus sinônimos, no caso sulino, resultou de uma opção racional. Opção essa condicionada pela necessidade de acesso a recursos que lhes permitissem a sobrevivência ou uma vida melhor, condicionada pelo meio social em que se deu. Associam-se, assim, à noção de estratégia, os atos desse grupo que construiu e manteve uma identidade como recurso de sobrevivência. Essa noção, muito cara aos micro-historiadores e, em particular, a Giovanni Levi, numa apropriação do trabalho do antropólogo Fredrik Barth, surge em oposição à noção de estratégia como concernente a (....) um agente livre e perfeitamente racional que escolhe a partir de um conhecimento perfeito das regras do jogo e de suas conseqüências, tendo a mão todos os recursos necessários para tanto. Em contraposição a esse “homo economicus” – que era o modelo do indivíduo da economia clássica – o que o modelo de Barth colocava em cena era um ator que deveria agir dentro de uma sociedade (qualquer sociedade onde os recursos materiais, culturais e cognitivos disponíveis eram distribuídos de modo desigual. Um indivíduo racional, certamente, mas não dotado de uma “racionalidade absoluta: ao contrário, o que se propõe é um indivíduo que age – nas palavras de Levi – a partir de uma “racionalidade limitada”, isto é, a partir dos recursos limitados que o seu lugar na trama social lhe confere, em contextos onde sua ação depende da interação com as ações alheias, e onde, portanto, o controle sobre o seu resultado é limitado por um horizonte de constante incerteza. (Lima Fo, 1999 259-260 - grifos do autor).

Tanto no sul como no norte, a construção de identidades seguiu critérios racionais,

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práticos e objetivos na vida dessas pessoas. As estratégias para vida e sobrevida nos territórios americanos, crê-se aqui, comandaram esse espetáculo de formação de identidades ou abdicação das mesmas no processo de colonização.

Abreviações usadas nesse capítulo: ADPRG – Arquivo da Diocese Pastoral de Rio Grande AHCMPA – Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre AHRS – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul AN-BN: Anais da Biblioteca Nacional LBat – Livro de Batismos LObt – Livro de Óbitos PMPA – Prefeitura Municipal de Porto Alegre RAPM – Revista do Arquivo Público Mineiro

Fontes e Referências Bibliográficas usadas nesse capítulo

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Capítulo 4

O Mundo que os Homens Criaram e a Lei de Deus; O Mundo que Deus Criou e a Lei dos Homens

I. Sobre o tema e as fontes Ao serem eleitos os registros batismais da localidade de Rio Grande como corpus documental principal para esta pesquisa, deu-se a necessidade de entender a instituição do batismo da Igreja Católica e seus significados para a cristandade que se estabelecia nesta fronteira, que atraía para seu convívio gente nascida e criada sob outras crenças. Também foi exigido um mergulho na antropologia social para entender o significado das relações de reciprocidade simétricas e assimétricas que tal instituição impõe em uma sociedade. Portanto, antes de discorrer sobre a análise do material empírico levantado e estudado, há que se discorrer sobre esses aspectos que fundamentam as relações que se estabeleceram na Vila, tendo a Santa Madre Igreja a propiciá-las dentro de suas próprias regras. Regras essas que, tampouco, foram seguidas à risca, havendo sempre algum espaço para adequações locais do que era válido para o mundo cristão. Bem provável que não pudesse deixar de ser assim: tratava-se de um povoado novo, erigido sobre um terreno onde “não havia nada”, mas que deveria, para seu bom funcionamento, aglutinar gente de distintas tradições religiosas e culturais. Essas características não são específicas da Vila do Rio

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Grande, mas estão presentes nas sociedades católicas que se firmaram na América. Diz o antropólogo Stephen Gudeman em um de seus artigos dedicados ao batismo e às relações de compadrio: Eu acredito que todos os sistemas de compadrazgo, incluindo a versão da Igreja, podem ser vistos como um conjunto de variações que ocorrem através do tempo e do espaço. As formas correntes do complexo derivam do dogma da Igreja, o qual foi enunciado ao tempo da Conquista (século XVI). Desde então, o contato entre muitas áreas rurais e a Igreja são esporádicos. As regras eclesiásticas atuais foram codificadas ao longo do tempo por especialistas da Igreja; os domas folclóricos foram codificados através de gerações de leigos. Todas as formas têm um fundamento similar mas se desenvolvem em diferentes direções. Todavia, desde as versões contemporâneas, são derivadas da mesma “grande tradição” e são vinculadas por suas conexões históricas à difusão do Cristianismo, do qual são variantes (Gudeman, 1971: p. 50).

II. O Mundo que os homens criaram e as leis de Deus

A pequena Vila do Rio Grande, a despeito de lá poder haver outras práticas religiosas que não as da Santa Madre Igreja, era uma Vila Católica, também fruto dessa difusão do cristianismo pós Concílio de Trento, através da conquista e povoamento da América. Entretanto, o mundo no qual se impunham as leis e dogmas da Igreja, a difundir a salvação que só era encontrada em Deus todo poderoso, era o mundo dos homens de diferentes origens e tradições. Sob a bandeira da cristandade viviam lá, junto com os cristãos europeus e de outros continentes, os africanos e indígenas não-cristianizados, adeptos de diferentes crenças, que na pequena localidade do Rio Grande receberam o batismo e alguma instrução cristã. Além deles, era bem possível que houvesse algum judeu ou cristão novo, já que essa foi uma constante no Novo Mundo, ainda que não constem nos documentos consultados nenhuma referência. Pouco provável também que fossem encontrados. As práticas judaizantes eram alvo de sanções e perseguições e o defeito de sangue pesava sobre os cristãos novos no

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julgamento dos méritos para a obtenção de mercês e inclusão nas ordens militares. Se havia judeus e cristãos novos na Vila, estes não se dão a perceber nos livros de registros eclesiásticos dessa paróquia. Se aqueles que em suas existências anteriores à chegada na Vila tinham outras crenças e práticas religiosas que não o catolicismo as abandonaram de todo, é algo praticamente impossível de saber através dos registros batismais, de casamento e óbito. É, portanto, muito difícil perceber através da documentação histórica que restou do período inicial deste povoado quais eram as práticas religiosas domésticas ou veladas que não são pertinentes ou condizentes com a religião católica e o culto aos seus dogmas e santos. Essas práticas, caso tenham existido, colocariam seus adeptos, no mínimo, na mira do Juízo Eclesiástico e sob risco de abertura de processos por heresia ou paganismo, se fossem de conhecimento público e notório. Mais fácil perceber, todavia, a partir desses mesmos registros que, de alguma forma, as experiências de vida pregressas dessas populações que vieram a formar a sociedade riograndina readequaram à sua nova vida as práticas tão européias e católicas como são o próprio batismo e as relações de compadrio. As alianças e relações tecidas na pia batismal acabam por dar mostras de um quase inacreditável mundo, no qual, por exemplo, indígenas de etnias distintas e, com freqüência, inimigas, elegiam padrinhos para seus filhos e cônjuges para “todo o sempre”. Não se pode ter certeza de influências pregressas semelhantes nas práticas do dia-a-dia para os escravos africanos. Dificilmente é dado a perceber as alianças que antecediam sua migração forçada para a América ou problemas de convívio entre membros de grupos distintos em uma única unidade domiciliar. Entretanto, é possível notar que havia algo nessa prática cristã que poderia ser utilizada em proveito próprio por quem quer que seja e em que condições houvesse chegado a Rio Grande. Ter um padrinho significava ter alguém que lhe dava fiança ante Deus e ante a sociedade. Algum esforço nesse

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sentido, de buscar uma continuidade das práticas sociais, sejam elas familiares ou religiosas, será feito a partir de alguns estudos de antropólogos e historiadores que tiveram várias regiões e populações africanas como objeto. Haverá, portanto, a preocupação em ver no comportamento à pia batismal dos africanos e seus descendentes a aproximação com práticas de suas culturas originárias. Os registros de batismo, para toda a Colônia, são os mais “democráticos” – no sentido de cobrirem uma mais variada gama da população e, por conseqüência, um número bem maior de pessoas do que outras fontes documentais. Toda a sorte de documentação que propicia registros nominais é excludente em sua essência. Se é um Rol de Confessados, exclui de sua listagem nominal, salvo preciosismo de algum pároco, os menores de sete anos. Se é uma relação de cobrança de impostos, exclui os pobres. Se são os testamentos, excluem quem não tem o que legar. Se é uma listagem de recrutamento militar, exclui as mulheres. E assim por diante. Segundo Wrigley, os muito pobres e os muito jovens e os que migram muito são, geralmente, a população excluída dos registros (Wrigley, 1976: p.12). Os registros batismais, apesar de deixarem “escapar” parte dos nascimentos, incluem neles todos os setores da sociedade. Assim pobres como ricos, assim livres como escravos. Diferente para países nos quais católicos e protestantes conviviam apesar de toda a intolerância, a Vila do Rio Grande nasceu católica. A cristandade deste território era, oficialmente, católica. Dado, também o fato de ser El-Rey a autoridade leiga que regia os membros da Igreja em seus domínios, a associação entre Igreja Católica e o Estado português se fazia sentir de maneira muito forte. Os domínios portugueses eram domínios católicos e a heresia e o paganismo, ao menos em tese, não eram tolerados. Isso fez com que a população da Vila do Rio Grande, a despeito da possibilidade de ter outras crenças que não o catolicismo praticadas de maneira velada, publicamente professasse o catolicismo. Com isso, os sacramentos da Igreja, e em especial o batismo de crianças e adultos

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pagãos, eram bastante procurado, pois, segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, “o batismo é o primeiro de todos os Sacramentos e porta por onde se entra na Igreja Católica” (Da Vide, 1707, Livro I, Título X, § 33). Entrar na Igreja Católica, dada a junção Igreja e Estado, era condição sine qua non para ingressar por inteiro na sociedade lusa, seja ela na península ou em suas colônias. O batismo foi o sacramento da Igreja mais buscado na localidade. Para o período em questão foram produzidos quatro livros de batismos, dois de casamento e um de óbitos. Casar ou não casar podia ser uma opção, podia ser fruto da falta de oportunidade. Ter pais casados também nunca foi requisito obrigatório para que as crianças viessem ao mundo. Entretanto, se tem por certo que morrer é ocasião que chega de maneira irrevogável para todos que vieram ao mundo. Se o intervalo de tempo abrangido por este estudo não compreende o lapso de uma vida, nascer e morrer no Rio Grande em pouco menos de trinta anos, essa sociedade foi formada por adultos e suas crianças. Por um lado, não se espera um número de registros de óbitos semelhante ao número dos registros de nascimento. Mas a proporção que há entre um e outro não deve corresponder ao número de mortes que houve na localidade. Para o Rio Grande vieram ou foram trazidos, por exemplo, índios que sofreram os males e as epidemias adquiridas dos europeus e muitos maus-tratos praticados contra seus corpos e seu modo de vida. A vila experimentou, como toda a Colônia, uma alta mortalidade infantil, dadas as condições de higiene. Tamanha disparidade entre nascimentos e óbitos é fruto da mobilidade espacial dessa população, que chegava à localidade portuária, quedava-se por algum tempo e seguia em busca de terras e melhores condições de vida, mas também é fruto de menor rigor em registrar os falecimentos. A sede da Vila não continha toda a população que vivia sob sua jurisdição. Havia muitas fazendas e estâncias no território sob os cuidados dessa paróquia e que, frise-se aqui, não tinha limites bem definidos. Uma pessoa que, tendo morrido em uma dessas estâncias, sem o sacramento da extrema-unção e que fora

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enterrada em chão a isso destinado na área das próprias fazendas, se não tinha o que legar, se não devia para ninguém ou se não fez testamento, muito provavelmente não teve seu óbito registrado. As crianças moradoras de áreas distantes do centro da freguesia, falecidas logo após o nascimento ou um viajante vítima de agressão em seu roteiro muito provavelmente não tiveram seus óbitos informados. Assim sendo, o batismo foi o mais praticado de todos os sacramentos. O batismo se impunha com regras e normas bastante claras e restritivas quanto à seleção de padrinhos possíveis. Tem-se no disposto abaixo, considerações que restringem em muito o universo dos padrinhos possíveis para uma criança ou adulto que serão batizados: E mandamos aos Párocos não tomem outros padrinhos senão aqueles, que os sobreditos [pais ou responsáveis pelo batizando], nomearem, e escolherem, sendo pessoas já batizadas, e o padrinhos não será menor de quatorze anos, e a madrinha não será menor de doze, salvo de especial licença nossa. E não poderão ser padrinhos o pai ou mãe do batizado, nem também infiéis, hereges, ou públicos excomungados, os interditos, os surdos, ou mudos, e os que ignoram os princípios de nossa Santa Fé, nem Frade, Freira, Cônego Regrante, ou outro qualquer Religioso professo de Religião aprovada, (exceto o das Ordens Miltares) per si, nem por procurador. (Da Vide, 1707, Título XVIII, § 64 - grifos meus)

A despeito de toda essa regulamentação, amiúde os padrinhos escolhidos na Vila do Rio Grande fugiam a estas recomendações, como será visto mais adiante. Religiosos eram padrinhos com muita freqüência. Crianças foram registradas como madrinhas e padrinhos de recém-nascidos, sem que constasse qualquer registro de licença especial obtida. A aplicação rigorosa do que estava determinado pelo Concílio Tridentino e pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707), não apenas no que concerne aos batismos, mas também às demais práticas e sacramentos cristãos, ao que tudo indica, poderia mais afastar do que atrair novos povoadores para as práticas religiosas católicas. Como aplicar essas normas da Igreja sem lançar de imediato ao inferno, por exemplo, os polígamos indígenas minuano, um dos grupos que a Coroa desejava atrair para o convívio na Vila?

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Observam-se nos registros paroquiais da Vila do Rio Grande alguns batismos de filhos de índios minuano que, tendo o mesmo pai, não eram filhos das mesmas mães. Nem por isso, foram ditos filhos naturais, ilegítimos ou espúrios nos registros batismais. Há casos em que são ditos “legítimos”. Nesses casos, não foi incomum o pároco registrar apenas “filho de” seguido do nome do pai, sem qualquer alusão à legitimidade. Em vários registros há a omissão do nome da mãe do batizando ou se seus pais eram ou não casados. Isso não era usual nos registros batismais de afro-descendentes, da população “branca e livre” ou dos indígenas tape que se diziam – por vezes, de fato o eram – casados com benção dos padres espanhóis da Companhia de Jesus em suas Missões, ou mesmo solteiros. Muitas vezes, para os outros grupos batizados na Vila do Rio Grande há a omissão do nome dos pais, dito pelo pároco como sendo “pai incógnito” ou “pais incógnitos”, para o caso dos poucos expostos havidos nesse conjunto. Mas a omissão do nome das mães era pouco comum na Vila do Rio Grande como um todo e bastante freqüente para os índios minuano em especial. As omissões do nome das mães dos batizandos ocorreram, amiúde, nos batismos coletivos de filhos de índios minuano no primeiro livro de batismos da Vila (ADPRG - Rol dos Minuanes batizados na Capela de Santa Ana em 08/09/1749 - 06/12/1749 - 1LBatRG, 1738-1744). Entre eles, filhos de chefes – ou maiorais, como diziam à época – cuja poligamia foi indicada por demarcadores de fronteiras décadas mais tarde (Saldanha, 2003: pp. 9-10). No mesmo primeiro livro de batismos há o registro de uma cerimônia coletiva de índios tapes. Todas as crianças tiveram pai e mãe nominados, fossem elas filhas naturais ou legítimas dos casais. Tais índios não estavam aldeados nesse momento ou, como diz o registro, eram “filhos de índios Tapes que andam pelo campo sem domicílio” (ADPRG termo de batizado de 17 crianças de 2 até 3 anos “filhos de índios Tapes.. ” 24/07/1751 - , 1LBat-RG, 1738-1744). Isso pode representar um abandono maior da prática poligâmica entre esses índios, que já haviam tido contato mais duradouro com o cristianismo nas aldeias dos

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padres jesuítas e um convívio mais estreito de índios tape com lusos na área sob jurisdição da paróquia. Além disso, membros do tronco lingüístico tupi, como eram os tape, tinham a contar como elo de ligação entre eles e os lusos e luso-brasileiros, os “índios das aldeias de São Paulo”, que foram trazidos nos primeiros anos de povoamento por iniciativa dos oficias da Coroa. As aldeias de São Paulo foram formadas a partir do apresamento de indígenas dos sertões e das reduções jesuíticas espanholas do Guarirá, Tape e Uruguai (Monteiro, 1994 : pp. 58-85). Uma ou duas gerações, portanto, entre os abduzidos das aldeias e os que migraram para o povoamento do sul, conduzidos pelas autoridades. Podiam guardar memória do parentesco com os que haviam sido levados e vice-versa, transmitidos através das tradições orais. Muitos desses eram batizados e viviam, mesmo que minimamente, dentro da fé católica, sabe-se lá com que intensidade de fé ou com que interpretações das crenças e dogmas da religião. O padre jesuíta Antônio Sepp afirmava que esses índios eram, mais que aos santos, muito simpáticos às figuras da Sagrada Família e às imagens do Presépio. Contando as histórias de Jesus e sua família conseguia transmitir ensinamentos cristãos aos guarani que se comoviam ante a imagem do menino e sua mãe (Sepp, 1980). Se a ausência de uma qualificação social e de uma ascendência materna devidamente registrada não ocorria nos outros grupos sociais que viviam no Rio Grande, ocorria, entretanto, com os membros de um grupo que, para o bom andamento do povoamento luso nas margens da Lagoa dos Patos, deveriam ser tidos como amigos. Aproximar e manter em amizade os índios minuano havia sido de muito proveito na defesa da Colônia do Sacramento, poucos anos antes da fundação de Rio Grande e da chegada do primeiro pároco. A poligamia expressa foi banida dos registros batismais dos índios minuano, mas aparece dessa forma velada, como uma espécie de acordo entre os modos de vida cristãos e minuano. As Ordenações Filipinas, o maior código de direito do Império Português vigente ao século XVIII, previa penas duríssimas aos faltosos. Os polígamos tiveram espaço nas

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preocupações com faltas e penas no Livro Quinto das Ordenações Filipinas, o qual prevê castigo para este comportamento: Todo homem, que sendo casado e recebido com uma mulher, e não sendo o Matrimônio julgado por inválido per Juízo da Igreja, se com outra casar, e se receber, morra por isso (Ordenações Filipinas, 1870, Livro 5, Título XVIII)

Sendo o matrimônio um Sacramento ministrado pelos próprios nubentes, as promessas feitas de um a outro são consideradas válidas e são um contrato firmado através da palavra ou por meio de sinais: O Último Sacramento dos sete instituídos por Cristo Nosso Senhor é o do Matrimônio. E sendo ao princípio um contrato com vínculo perpétuo e indissolúvel, pelo qual o homem, e a mulher se entregam um ao outro, o mesmo Cristo Senhor nosso o levantou com a excelência do Sacramento, significando a união, que há entre o mesmo Senhor, e a sua Igreja, por cuja razão confere graça aos que dignamente o recebem. A matéria deste Sacramento é o domínio dos corpos, que mutuamente se fazem casados, quando se recebem, explicado por palavras, ou sinais, que declaram o consentimento mútuo, que de presente tem. A forma são as palavras, ou sinais do consentimento, enquanto significam a mútua aceitação. Os Ministros são os mesmos contraentes. (Da Vide, 1707, Livro I, Título LXII, § 259)

O compromisso firmado entre os que pretendiam casar também era algo muito sério, a ponto de as Constituições Primeiras terem um título específico sobre os desposórios de futuro, ou seja, Desposórios de futuro são o mesmo, que promessa de futuro Matrimônio: para eles é necessário que tenham os promitentes, assim homens como mulheres sete anos completos de idade. E declaramos ainda que entre desposados se siga cópula depois dos desposórios, não ficam por isso casados de presentes, segundo a disposição do Sagrado Concílio Tridentino, o qual nessa parte emendou o direito antigo. Se alguém, tendo celebrado os desposórios de futuro antes de estar deles desobrigado, se desposar segunda ou mais vezes, incorra em pena de vinte cruzados para o Meirinho, e acusador (...). E tendo cópula nos segundos ou mais desposórios serão presos e se livrarão do aljube, e serão condenados em degredo (...). E casando-se por palavra de presente se livrará da prisão, e será castigado com tão graves penas pecuniárias, e degredo a nosso arbítrio, que seja exemplo aos mais para fugirem de semelhante culpa (Da Vide, 1707, Livro I, título LXIII, §§ 262-263).

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Ainda que não seja um casamento, o desposório de futuro, fazendo valer o peso da palavra dada em intenção de um casamento, era assumido como compromisso e, não havendo cópula, poderia ser liberado. Havendo cópula, melhor remédio seria a consumação do casamento ou matrimônio de palavra presente – a afirmação em presente através da promessa e compromisso de matrimônio, com a graça da Santa Madre Igreja a ser-lhe conferida através do Pároco. A participação do pároco, portanto, não é como ministrante do Sagrado Sacramento do Matrimônio e sim como uma testemunha e representante do poder divino que abençoa e confere graça ao contrato firmado entre o marido e a mulher. Mas este pré-existe à bênção dada. Assim sendo, o casamento de índios batizados, o contrato, a promessa, ainda que não houvesse recebido a bênção, seria considerado válido ante os olhos da cristandade e apenas seria invalidado sob certas circunstâncias – como, por exemplo, ter sido contraído sob coerção. Os vários casamentos dos índios minuanos seriam, portanto, casos explícitos de poligamia, a serem punidos com pena capital. Entretanto, não o foram. Mais do que isso, foram dissimulados sob múltiplas formas, desde negar a condição de legítimo, espúrio, ilegítimo ou natural de prole até omitir estrategicamente o nome das mães das crianças, possivelmente esposas diferentes de um mesmo homem. As Ordenações Filipinas, em tese um código civil sob os auspícios da lei cristã, dedica boa parte de seu Livro Quinto a tratar dessas questões acerca de infidelidade conjugal, poligamia, relações sexuais forçadas ou incestuosas. As punições para as faltas e crimes eram muito duras. Se olhado detidamente o temido Livro Quinto das Ordenações, a conclusão seria uma única: Portugal quedar-se-ia despovoado em pouco tempo se as penas fossem aplicadas com o rigor da dura letra da lei. Boa parte das pessoas sairia das terras lusas por pena de degredo para outras regiões do Império – África e Brasil, principalmente – e outra parte se extinguiria sob as penas capitais aplicadas a casos como os de bigamia ou mesmo de

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adultério, entre outros passíveis de aplicação de tal pena. Uma “pequena concessão” como essa, feita aos índios polígamos e condenáveis na lei, na ética e na moral cristãs, poderia significar, entre outras coisas, o que foi dito pelo Mestre-de-Campo André Ribeiro Coutinho: a “dissimulação das faltas leves” (Coutinho, 1921) em favor do bem maior que era tecer e fortalecer as relações com os minuanos para a própria segurança do povoado, sempre no bom serviço de Sua Majestade Fidelíssima. Até mesmo o bom André Ribeiro Coutinho, oficial da Coroa, católico praticante, governador militar que foi do Continente do Rio Grande de São Pedro, também teve suas “faltas leves” dissimuladas em prol do bom andamento da conquista e da manutenção dos territórios de Sua Majestade no extremo-sul do Estado do Brasil. Sendo casado em Portugal, André Ribeiro Coutinho batizou filha sua com uma mulher, também casada, que vivia no Rio Grande (ADPRG - Registro de Batismo de Eufrásia, filha natural do Mestre-de-Campo André Ribeiro Coutinho - 29/03/1740,1738-1744 1LBat-RG, 1738-1744). O Mestre-de-Campo, no mínimo, estaria sujeito à pena de degredo de um ano para a África, se fosse invocada a sua situação de oficial de Sua Majestade: Todo o Desembargador, ou Oficial de Justiça, e outro algum nosso Oficial, assim da Corte, como de nossos Reinos, Advogado, Procurador, Escrivão, Porteiro, Meirinho, que dormir com mulher que demanda, ou desembargo requeira perante ele, se for leigo perca o Ofício e mais seja degredado para a África por um ano.(Ordenações Filipinas, 1870, Livro 5, Título XX)

Manuel de Almeida, o marido de Ana Maria da Conceição, conhecida como “A Mineira”, com quem André Ribeiro Coutinho teve esta filha, poderia ter matado sua mulher pelo crime de adultério que cometera sem incorrer em punição por isso. O adultério feminino, com a correlata ofensa à honra de seu marido, redimia de culpa o cônjuge que assassinasse a esposa em um ato passional ou de vingança fria: Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim a ela, como o adúltero, salvo se o marido for peão e o

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adúltero Fidalgo, ou nosso Desembargador ou pessoa de maior qualidade. Porém quando matasse alguma das sobreditas pessoas achando-a com sua mulher em adultério, não morrerá por isso, mas será degredado para a África (...) não passando de três anos. E não somente poderá o marido matar a sua mulher e o adúltero, que achar com ela, mas ainda os pode licitamente matar, sendo certo que lhe cometerem adultério; e entendendo assim provar, e provando depois o adultério per prova lícita e bastante conforme o Direito, será livre sem pena alguma, salvo nos casos sobreditos (...). (Ordenações Filipinas, 1870, Livro V, Título XXXVIII, §§ 1-2)

Se assim não fosse feito, a justiça local poderia tê-la julgado culpada do crime de adultério e mandado executá-la, pois era a pena para adúlteras e para os adúlteros, os de qualidade inferior. Um assassinato por honra, mesmo para os de menor qualidade que o cometiam contra pessoa de qualidade superior, poderia livrar o assassino da pena capital. No entanto, nada disso ocorreu. André Ribeiro Coutinho não foi morto pela justiça nem pelo marido traído. Muito menos foi conduzido para a África em pena de degredo para oficiais da Coroa que dormiam com mulheres casadas. Ao deixar o Continente do Rio Grande de São Pedro, o André Ribeiro Coutinho continuou servindo na América Portuguesa, vindo a falecer no Rio de Janeiro em 1751 (Torres, 1904-1915: p. 283). Seu nome ficou associado à defesa do sul e à estratégia militar, assunto sobre o qual publicou livros1 . Quanto à adultera, no livro primeiro de Batismos de Rio Grande há uma Ana Maria da Conceição que surge como madrinha de algumas crianças que bem poderia ser “A Mineira”, ainda que jamais se possa ter certeza disso. Em complemento a esses exemplos, pode-se perceber que a aplicação indistinta das regras e leis da Igreja ou quaisquer outras, não fazia parte do direito que vigia ao século

1

São obras de André Ribeiro Coutinho os seguintes livros: Prototypo constituído das partes mais essenciaes de um general perfeito, delineado em perfeitíssimo governador das armas do Alemtejo o sr. Pedro Mascarenhas, Lisboa, 1713; Relação diaria da expugnaçâo e rendimento da praça de Bicholym, Lisboa, 1728; O capitão de Infantaria portuguez, com a theorica e pratica das suas funcções, assim nas armadas terrestres e navaes, como nas praças e côrte, Lisboa, 1751, cf. Portugal - Dicionário Histórico, Corográfico, Heráldico, Biográfico, Numismático e Artístico. Lisboa: 1904-1915. O Capitão de Infantaria foi escrito nos anos em que viveu no Brasil com base na suas experiências militares, incluindo a do Grande Cerco à Colônia do Sacramento (1735-1737), com atuação elogiada por Gomes Freire de Andrade.

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XVIII. Para as sociedades cristãs mediterrâneas, das quais fazia parte Portugal e a Vila do Rio Grande, por conseqüência, também era tributária, segundo Giovanni Levi (2002), do princípio da eqüidade e do direito distributivo. Ou seja, ainda que houvesse uma lei geral, a justiça existia para corrigir as distorções de uma aplicação indistinta de seus dispostos. Segundo os preceitos aristotélicos, a sociedade era – e devia ser – composta por desiguais. Da desigualdade advinha a hierarquia e a hierarquia organizava a sociedade. Da desigualdade, portanto, derivava a ordem que punha fim ao caos. Um dos exemplos dessa idéia da necessária desigualdade e da deletéria igualdade em Aristóteles é colocado abaixo: ... a alma governa o corpo, assim como ao servo o amo. (...) É evidente, portanto, que a obediência do corpo ao espírito, da parte afetiva à inteligência e à razão, é coisa útil e de acordo com a natureza. A igualdade ou direito de governar de cada qual, por sua vez, seria prejudicial a ambos (Aristóteles, 2005: p. 18)

São Tomás de Aquino encontrou em Aristóteles uma grande fonte de inspiração para suas premissas e suas discussões. Seguidores da filosofia tomista são encontrados na prática da filosofia e da teologia de toda a cristandade, inclusive a ibérica. Sendo a sociedade organizada a partir do princípio da desigualdade, nada impunha, portanto, uma aplicação igualitária das penas existentes nos dispostos legais. Ao contrário, cada caso deveria ser avaliado de acordo com a situação sócio-econômica dos implicados, com a sua posição na escala social ou, em outras palavras, com o seu estatuto social. Essa questão será retomada mais adiante. Essa evidente aplicação desigual da lei que pode ser uma para todos e geral em sua formulação, quando se retorna à legislação lusa e como esta era posta em prática, com freqüência são verificadas situações em que a pena de degredo ou a pena pecuniária é substituída por penas físicas e castigos corpóreos àqueles que compunham os escalões mais baixos da pirâmide social. Nas Ordenações Filipinas, a pena para o crime de “dormir com uma mulher casada”, o crime de André Ribeiro Coutinho, portanto, é a pena capital. Mas o específico do Livro

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Quinto apresenta pena distinta se o ato for cometido por oficiais da Coroa, membros do clero ou que exercessem certos cargos: transmuta para pena de degredo a pena que seria capital para o homem comum. Revendo o caso de André Ribeiro Coutinho, tem-se que um mesmo crime teria uma pena diferentes para cada um dos envolvidos, ambos pessoas casadas e que, juntas, cometeram o mesmo crime de adultério. “A Mineira”, por ser pessoa comum, estaria condenada à morte; o oficial da Coroa estaria condenado ao degredo por um ano. Tudo isso muito bonito, em teoria. Na prática, nem “A Mineira” foi condenada e muito menos André Ribeiro Coutinho foi degredado. Impossível, inclusive, a alegação de que esse adultério seria desconhecido das autoridades, já que foi lavrado com todas as letras no livro de registros batismais da paróquia de Rio Grande. Foi feito por um vigário, autoridade moral, religiosa e ética que, entre outras responsabilidades, tinha a de zelar pelas almas e pelo cumprimento das leis da Santa Madre Igreja. Disso pode-se dizer apenas uma dessas duas coisas: ou esse sistema de justiça é irracional e ilógico ou obedece a uma racionalidade e uma lógica muito distintas das que regem esse século XXI no qual vivemos. Partindo do pressuposto de que esse código vigeu por alguns séculos e que em sua aplicação na recém fundada Vila do Rio Grande não houve registro de grandes distúrbios ou revoltas contra ele, há que se buscar, portanto, ao menos alguns contornos de seu funcionamento e aplicação, para tentar uma aproximação do que seria viver as primeiras décadas de existência de um povoado luso de fronteira na América. Com isso, logo após uma explanação sobre a instituição do batismo e seus significados para a cristandade ibérica, antes que se parta para a análise de alguns casos significativos registrados entre os batismos da Vila do Rio Grande, faz-se necessário, também, um passeio rápido pelo direito e pela justiça vigentes. Acredita-se que isso auxiliará no entendimento do que seriam os princípios da reciprocidade e da justiça distributiva que

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vigeram a este tempo nas sociedades mediterrâneas e como estes princípios se estenderam para além do Atlântico. Para tanto, haverá o apoio nas obras de Giovanni Levi, Reciprocidad mediterrânea (2002) e Antidora: Antropologia Catolica de la Economía Moderna, de Bartolomé Clavero (1991).

II.1. O ato do Batismo e as relações a ele subjacentes

Segundo o antropólogo Stephen Gudeman (1971), para uma melhor percepção do ato do Batismo e as relações a ele subjacentes, há a necessidade de uma compreensão mais profunda de sua origem num dos dogmas da Igreja Católica e a sua significação para a sociedade cristã. Essa ressalva, feita pelo autor, muito mais vale no caso das sociedades coloniais que se fundaram na América ibérica, uma vez que se tratava de povoados nascidos sob a égide da Igreja Católica, de estados europeus que eram católicos e cujos reis receberam os títulos hereditários de Majestade Católica e Majestade Fidelíssima, dados pelo Papa. Ao se ter, portanto, os registros batismais como fonte, é mais do que necessário ter a compreensão de que todos os registros e todas as informações foram tomados sob os auspícios da Igreja Católica e efetuados por um de seus ministros. Mesmo que se busquem informações quantitativas, que se intente uma análise através de uma aproximação demográfica, os critérios, por exemplo, de legitimidade e ilegitimidade têm como base as normas católicas. As uniões não formais muitas vezes o eram em função dos impedimentos matrimoniais ditados pela Igreja e não há como desconsiderá-los quando é feita uma análise das estratégias sociais e familiares. As normas das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, se não se impunham como um todo, condicionavam as escolhas matrimoniais e de compadrio, restringindo as possibilidades de escolhas para cônjuges e padrinhos dados os impedimentos

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gerados pelos laços de parentesco afins, consangüíneos ou espirituais. Como toda a instituição, o batismo cristão passou por profundas modificações desde que começou a ser praticado. Em uma análise da evolução histórica desta instituição, Stephen Gudeman — enfatizando sempre que não há como proceder à análise dos laços sociais e espirituais que o batismo gera sem considerá-lo como fruto de um dos dogmas da Igreja — traz à tona as discussões ocorridas no seio da própria Igreja Católica, através dos teólogos e filósofos que, durante séculos, se ocuparam em ver os fundamentos dessa instituição. As formas que assumiu o batismo e as relações a ela subjacentes são reflexo, também, da sacralização de certos laços que por muito tempo pertenceram à esfera das relações humanas e não divinas (Gudeman, 1971: pp. 48-59). Certas mudanças nas concepções da igreja e da sociedade acerca do parentesco e dos papéis representados por homens e mulheres no interior da família e no grupo social refletiram-se também nas relações subjacentes ao batismo. Isso fez com que o processo de modificação e transformação dos conceitos associados ao batismo e à família natural tivessem influência mútua e recíproca e se alterassem as práticas – ou ao menos o discurso sobre as práticas – mundanas ou sacralizadas. Colocam-se aqui, em poucas páginas, observações mais significativas de Gudeman para, mais adiante, embasar nelas análises e conclusões acerca das relações subjacentes ao batismo que foram observadas na Vila do Rio Grande. Gudeman atribui a instituição do batismo a uma profunda elaboração acerca de um dos dogmas da Igreja Católica, qual seja, o pecado original, o pecado de Adão, que a toda sua descendência teria sido repassado. O batismo, a imersão na água benta, acompanhado dos demais atos do rito, purifica a alma e purga este pecado. Através do batismo, o ser humano – carnal, imperfeito, pecador em sua essência – renasce para o Reino de Deus, tocado pela graça divina, purificado, limpo de alma, redimido tanto do pecado original como dos atuais. O

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batizando, através do rito do batismo, morre para sua vida carnal e renasce para a vida em Deus. Ratificando essa idéia do renascimento espiritual, dizem as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia: Causa o Sacramento do Batismo efeitos maravilhosos, porque por ele se perdoam todos os pecados, assim original, como atuais, ainda que sejam muitos, e mui graves. É o batizado adotado em filho de Deus, e feito herdeiro da Glória, e do Reino da Fé. (...) E se por este Sacramento de tal maneira se abre o Céu aos batizados, que se depois do Batismo recebido morrerem, certamente se salvarão, não tendo antes da morte algum pecado mortal. (Da Vide, 1707, Livro I, Título 10, § 34)

O rito do batismo seria, portanto, a representação sacramental da morte e ressurreição de Cristo. Os conceitos básicos que regem tal rito são regeneração e renascimento. O batizando viveria, dessa forma, a sua própria paixão (Gudeman, 1971: p. 49). O rito do batismo e o mito do Pecado Original, vinculados desde as primeiras vezes que o ato foi percebido, eram praticados pelos cristãos primitivos. Segundo Gudeman, a esse tempo os pais de uma criança geralmente eram seus padrinhos, não havendo nenhum impedimento para que aqueles que geraram a carne propiciassem ao novo cristão a sua apresentação a essa comunidade religiosa, nem tampouco respondessem às perguntas feitas pelo ministro – o nome da criança, se renunciava a Satanás e se aceitava Cristo como seu salvador – fossem respondidas pelo pai do batizando. O conjunto de pessoas participantes do rito do batismo – doravante conjunto do batismo – seriam o ministro, os pais e o próprio batizando. Ainda segundo esse autor, o ministro estaria em substituição à presença física de Deus, e o padrinho – nesse caso o próprio pai – estaria representando a Santa Madre Igreja que o acolhia em seu seio. Mesmo percebendo o batismo como uma instituição cristã, o autor detecta nas práticas e crenças do judaísmo e de outras religiões orientais alguns elementos presentes no rito. A água que purifica estaria associada ao mito do dilúvio, o renascimento à Páscoa e a necessidade de padrinhos – testemunhas do ato do batismo – à circuncisão, cerimônia que

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marca o ingresso de um menino no judaísmo e necessita de ao menos duas testemunhas. Gudeman (1971: p. 49) afirma que a garantia imediata da salvação e renascimento, entretanto, vem do próprio Cristo, dada na seguinte passagem bíblica: Entre os fariseus havia um homem chamado Nicodemos. Era um judeu importante. Ele foi encontrar-se de noite com Jesus, e disse: “Rabi, sabemos que tu és um Mestre vindo da parte de Deus. Realmente, ninguém pode realizar os sinais que tu fazes, se Deus não está com ele.” Jesus respondeu: “Eu garanto a você: se alguém não nasce do alto, não poderá ver o Reino de Deus.” Nicodemos disse: “Como é que um homem pode nascer de novo, se já é velho? Poderá entrar outra vez no ventre de sua mãe e nascer?” Jesus respondeu: “Eu garanto a você: ninguém pode entrar no Reino de Deus, se não nasce da água e do Espírito. Quem nasce da carne é carne, quem nasce do Espírito é espírito. Não se espante se eu digo que é preciso vocês nascerem do alto. (Bíblia Sagrada, 1990, J. 3:1 - J. 3:8)

Ainda com relação ao ato do batismo, Gudeman assinala a importância da marca indelével feita no batizando pelo ministro. Indelével aos olhos de Deus e invisível aos olhos dos homens. Quer-se destacar aqui que, acerca do nome atribuído ao novo cristão no momento do batismo, há uma importante associação de termos e que, conforme o capítulo aqui intitulado O Segredo do Pajé, confere características sobrenaturais ao nome que as pessoas portam. Ao ser batizado, um cristão recebe a graça do Senhor e também a graça lhe é concedida pelo padrinho, onde graça é, ainda hoje, um dos sinônimos de prenome ou nome de batismo, tanto quanto o é de benefício e salvação concedidos por Deus2. Gudeman observa que para os hispânicos há a expressão padres de gracia como sinônimo de padrinhos. Se os pais carnais trouxeram a criança ao mundo, os padrinhos a conduzem à graça de Deus e dão-lhe a graça de um nome ao qual serão chamados a ter com o Senhor no dia de Juízo. Santo Agostinho teria sido o primeiro teólogo a resumir as várias doutrinas concernentes ao batismo. A partir dessa compilação feita por Santo Agostinho, São Tomás de

2

Cf. verbete “graça”, acepções 7, 9 e 10 em HOLANDA, Aurélio Buarque de. Dicionário Aurélio Eletrônico Século XXII, versão 3.0. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Lexikon, 1999. Edição em CD. e acepções 3-8 e 13 em HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. Edição em CD.

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Aquino, em sua Summa Theológica estabeleceu os preceitos dos quais derivam todas as demais formas do batismo até os dias de hoje. Se as distinções feitas por Santo Agostinho sobre o caractere indelével e a graça atingida ao batismo geraram muitas discussões, o Concílio de Trento (1545-1563), diz Gudeman, já as tinha bem claras e cristalizadas, e foram as resoluções de Trento que se disseminaram na América Latina em processo de conquista territorial e espiritual. Todas as variações do rito, do conjunto do batismo, dos laços que ali se firmam, sejam elas ao longo do tempo ou em diferentes espaços, são derivadas do conteúdo religioso do Concílio de Trento e, ao mesmo tempo, são reflexos parciais dele (Gudeman, 1971: pp. 48-50). Ainda segundo Gudeman, os argumentos filosófico e teológico de discussão tomista são dados sob forma de analogias e oposições, sendo que Gudeman detectou na parte concernente ao batismo da Summa Theológica a fórmula mais freqüente em quatro termos, havendo oposição análoga entre os dois primeiros e os dois segundos, na seguinte disposição: Nascimento : Batismo : : Família : Compadrio

Dessa oposição análoga inicial, derivam que, o natural está para o espiritual assim como o nascimento está para o renascimento; o nascimento está para o renascimento assim como a vida está para a morte; a vida está para a morte assim como os pais naturais estão para os pais espirituais, nas seguintes disposições:

Natural : Espiritual :: Nascimento : Renascimento :: Morte : Vida :: Pais Naturais : Pais Espirituais

Dessa constante oposição entre os mundos espirituais e temporais, entre o sagrado e o profano, é que seria dada a substância do rito do batismo e às relações a ele subjacentes. A análise desse argumento bem como da prática do batismo e dos deveres e direitos a que estão obrigados os participantes do batismo num tipo de relação que abrange todo o conjunto de

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batismo, foi denominado por Gudeman Complex of the Compadrazgo3. Retornando ao histórico da instituição do batismo na Igreja Católica, as modificações apresentaram certas rupturas no conjunto de relações que antes não havia. Se ao tempo da Igreja do cristianismo primitivo os pais podiam ser os padrinhos dos seus filhos e o ministro adquiria vínculo espiritual com a criança batizada, nos séculos IV e V já há mostras, em Santo Agostinho, de que outras pessoas conduziam e elevavam a criança à condição de cristã, respondendo por ela as questões feitas pelo ministro durante o ritual. Em outras palavras, assumem a posição de fiadoras de sua renúncia ao demônio, até o dia de ministrar o Sacramento da Confirmação, na qual o jovem não mais inocente, capaz de responder por si próprio no uso de seu arbítrio, reafirmará o compromisso de renúncia ao demônio, feito em seu nome por seus padrinhos e zelosos protetores de sua alma no dia do batismo. O ministro, alegadamente por falta de tempo, teve suas responsabilidades reduzidas sobre os batizandos em especial, zelando com mais afinco pelo rebanho de Deus como um todo. Essas responsabilidades de educação e acompanhamento religioso do novo membro da cristandade também foram delegadas àquele que conduzia, elevava a criança e a retirava da pia. Dissociado, portanto, da figura do pai carnal e do ministro que representava a Santa Madre 3

Importante notar que o Complexo de Compadrazgo conforme definido por Gudeman, abrange não somente a relação entre compadres (pais e padrinhos) como também as relações entre os fiéis e a Santa Madre Igreja; entre os fiéis e Deus; entre os fiéis e o ministro; entre pais e filho; e entre pais espirituais e filho espiritual (padrinhos e afilhado). Já o compadrazgo ou o compadrio são as relações existentes apenas entre os compadres. Doravante, será aqui chamado de Complexo do Compadrio a esse conjunto de relações e de compadrio como as relações entre os compadres. Importante, também, buscar ver a alteração que o termo compadrazgo, em sua outra grafia compadradgo, sofreu ao longo do tempo. Em 1729 em espanhol significava “ a conexão, ou parentesco que resulta entre o Padrinho e os Pais do menino ou menina batizados. (...) Confirmação e Batismo são dois Sacramentos de que nasce o compadradgo, que é parentesco espiritual” (REAL ACADEMIA ESPAÑOLA. Diccionario de la Lengua Española. Madrid: Real Academia Espanola, 1729. verbete Compadradgo o Compadrazgo), sendo muito diferente da definição atual no mesmo idioma, “Conexão ou afinidade que contrai com os pais de uma criatura o padrinho que a retira da pia ou o assiste na confirmação” (REAL ACADEMIA ESPAÑOLA. Diccionario de la Lengua Española. Madrid: Real Academia Española, 2001. verbete Compadrazgo), na qual as palavras “parentesco” e “parentesco espiritual” estão ausentes, ou seja, o pertencimento à família e a sacralização da relação desapareceram, assumindo, portanto, um teor laico. O Vocabulário Portuguez e Latino de Raphael Bluteau não traz o verbete compadrio e define compadre como sendo o companheiro da madrinha à pia batismal. Entretanto, para os verbetes padrinho e madrinha há extensa explicação acerca do rito batismal e dos elos espirituais entre os pais da criança batizada, a criança batizada e eles, seus pais espirituais (BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez e Latino - 1712. . Rio de Janeiro: UERJ, 2000 , edição em CD-Rom, verbetes compadre, comadre, padrinho e madrinha).

205

Igreja, o padrinho passou a incorporar funções que cabiam a eles. No século VI houve a proibição, pelo Código de Justiniano, de casamento entre padrinho/madrinha e afilhado/afilhada, denotando que as figuras de pais e padrinhos já estavam por completo dissociadas, não vigendo mais a prática de pais serem padrinhos de seus filhos. Isso fica por demais claro por ser a prática do incesto condenada pela religião católica desde muito tempo. Portanto, se um impedimento matrimonial entre padrinho e afilhado

foi

gerado,

isso

significa

que

não

guardavam

mais

parentesco

de

paternidade/maternidade carnal. Também no século VI, na segunda metade, houve a proibição de clérigos serem padrinhos de batismo, separando, também definitivamente, a figura do ministro e a do padrinho. O padrinho passou a ser, portanto, figura constante e necessária, presente ao ato batismal, dando os contornos do conjunto de batismo4 que hoje se tem. Não há certeza quanto ao número de padrinhos exigidos na cerimônia a essa época, nem idéia precisa de quando o elo espiritual, o perfilhamento existente entre padrinho e afilhado foi também aplicado aos compadres (termo derivado de co-padres ou co-pais). Entretanto, quando da canonização do Código de Justiniano, houve a extensão do impedimento matrimonial para mãe e padrinho da criança: Aqueles que são padrinhos de uma criança não podem desposar sua mãe. A relação espiritual é mais alta que a corporal. (Hefele, 1896 apud Gudeman, 1971: p. 51)

Isso denota que o elo espiritual entre pais carnais e padrinhos já estava há mais tempo em gestação, marcando sempre a superioridade do vínculo espiritual sobre o mundano. Por volta do século VI foi permitido que as mulheres agissem como padrinhos, e adiante nos séculos VII e VIII, com a ênfase na analogia entre a geração natural e espiritual, um homem e

4

Conjunto de batismo vêm a ser as pessoas necessárias ou envolvidas no rito batismal. São a criança, os pais carnais, os pais espirituais e o ministro.

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uma mulher passaram a ser utilizados como padrinhos. O conjunto de compadrio reflete também a natureza dual de Cristo e o dogma da virgindade de Maria. Há natureza mundana de Cristo, cuja família era formada por Jesus, José e Maria, e há a sua natureza espiritual, tendo Deus/Espírito Santo atuando na concepção de Maria. Essa dupla natureza se reproduz no batismo quando a família carnal da criança, formada por ela, por seu pai e sua mãe é colocada em contraposição, segundo Gudeman, em complementaridade a ela, concordando com o que diz Pitt-Rivers sobre o tema: Ele [Pitt-Rivers] argumentou que o compadrazgo é o que “o parentesco cognático aspira, mas não pode ser”. O compadrazgo estabelece laços de relacionamento de confiança que podem ser postos em usos diferentes. Essa idéia é uma variante do tema da solidariedade social. PittRivers também ligou o compadrazgo com o parentesco em de um modo mais profundo. (Gudeman, 1971: p. 46)

O complexo do compadrio, portanto, estabelece elos profundos e espirituais. É a conexão do mundo carnal da criança com o mundo espiritual, sendo os padrinhos – pessoas de carne e osso – que mediam a relação entre o conjunto do nascimento (pai, mãe e filho) ao Reino de Deus. Tudo no nascimento carnal, de acordo com a tese de Gudeman, estaria relacionado ao mundano, ao imperfeito, ao pecaminoso. Do ponto de vista dos atos e ações sociais, o nascimento carnal tenderia à vergonha e à introspecção, ao passo que o renascimento espiritual remeteria à pureza e à extroversão. A concepção de uma criança é restrita ao casal que copula, em local privado e longe das vistas dos demais. O nascimento ocorre em casa, sem mais testemunhas que uma parteira ou um médico. Da família carnal, qualquer um dos elos pode ser negado ou mesmo rompido, nem que seja pela morte. O nascimento ocorre em meio à dor e ao sangue. Já o batismo – renascimento da alma para Deus – é cerimônia pública e comemorada. Há testemunhas, é um dos Sagrados Sacramentos, a Madre Igreja e Deus estão presentes ao ato. O ocorre em local santo, em meio a símbolos de pureza e de purificação,

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como a água benta e as chamas das velas. Após o nascimento, a reclusão da mãe e a apreensão pelo risco de morte que mães e crianças correm no pós-parto. Após o batismo, a confraternização e a certeza de que, sucedendo algo nefasto, Deus receberá a alma do pequeno e a conduzirá à vida eterna. Assim como é dual a natureza de Cristo e de suas duas parentelas, parte humana, parte sobrenatural, são as duas famílias presentes no complexo do compadrio. Os laços gerados por esse são firmados na esfera sobrenatural, na presença de Deus e sobrevivem até mesmo à morte, já que os que se irmanam ou quem perfilha no ato do batismo não são os corpos e sim os espíritos. Esses, por definição, são imortais. Assim, há também, a natureza dual das relações presentes no complexo do compadrio. A irmandade entre os espíritos de pais e padrinhos e a paternidade espiritual do padrinho para com a criança geram obrigações mútuas e desiguais que têm expressão no mundo terreno. Segundo Gudeman, portanto, as relações subjacentes ao batismo possuem dois aspectos principais: o aspecto funcional, que fomenta as solidariedades sociais, e o aspecto religioso, no qual os laços espirituais amarrados sob os auspícios da Igreja se dão não no mundo dos humanos, mas na esfera divina. Sob essa ótica ficam irmanados os espíritos dos compadres perfilhando espiritualmente o batizando. Se a relação entre compadres na esfera espiritual é equilibrada, na esfera mundana ela denota certas hierarquias e diferenças existentes nas relações da sociedade. Na relação padrinho-afilhado, tida por muitos como a menos importante, há fortemente marcada, tanto na esfera espiritual como no mundo terreno, a hierarquia existente no interior de uma família. Ao padrinho correspondem a educação, os conselhos, o encaminhamento do jovem a uma profissão ou a um casamento, e ao jovem competem as atitudes de respeito e apoio aos seus padrinhos. Ainda segundo Gudeman, os parentescos espirituais formados ao batismo são superiores aos parentescos mundanos, já que estes acabam com a extinção da vida na matéria.

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Os laços espirituais, por serem laços que existem entre as almas, são levados pela eternidade, até o Dia de Juízo. As relações parentais podem ser rompidas através da negação da paternidade ou do abandono de filhos e da família. Mas não há meios de negar as relações espirituais, já que estas se dão no âmbito místico e com Deus, através da Santa Madre Igreja e seus representantes, conferindo graça a esses laços. O pecado original purgado das almas dos batizandos os insere, ao mesmo tempo, no rebanho divino e no mundo social. Os pais dão à criança o ser e os padrinhos lhes dão o ser social no seio da cristandade. Se é um tanto difícil perceber a maior parte das obrigações instituídas pelo aspecto religioso do compadrio, seu aspecto funcional, ou seja, a expressão mundana desses laços sacralizados, é dado a ver em uma série de atitudes que foram documentadas nos registros da Igreja. Os Róis de Confessados de Viamão, de 1776 e 1778 têm em dois domicílios jovens designados como afilhados do chefe da família, em categoria semelhante a de outros parentes e não como eram ditos os agregados, ou os “camaradas”, designação de outras relações que não pertencem ao âmbito da família consangüínea ou dos parentescos espirituais. A Devassa Sobre a Entrega da Vila do Rio Grande às Tropas Castelhanas (Biblioteca Riograndense, 1937) arrola quinze questões a serem respondidas pelas testemunhas e implicados. Há, entretanto, uma décima sexta questão que não está inscrita entre essas quinze. Antes da assinatura ou da colocação do sinal característico dos analfabetos, há uma observação acerca “do costume”, o que, em termos jurídicos, significa a relação pessoal de uma testemunha com a pessoa sobre a qual vai depor5. Nessa Devassa de cinqüenta e oito testemunhas previstas ao início, às quais se somaram mais quinze “referidas”, ou seja, que foram chamadas a depor por serem referidas em depoimentos de testemunhas, poucos foram os que tinham algo a dizer do costume, ou

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Cf. verbete “costume”, acepção 8, in: HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. Edição em CD.

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seja, de suas relações pessoais com os implicados na Devassa. Havia ali, alegando-se como tal, um primo-irmão; um ex-sócio “mas não inimigo”; um “procurador para lhe assistir a casa em sua absência”, um homem “casado com uma neta” de um dos referentes, e seis homens que diziam “ser compadre de”. Ou seja, mesmo documentos oficiais como uma devassa, que assumem aspectos de inquérito em busca de responsáveis por fatos ocorridos, fazem anotar a situação de compadrio como possível interferente no teor do depoimento. Muito provavelmente para alertar que, de acordo com os laços sagrados do compadrio, essa testemunha não diria voluntariamente nada que pusessem em perigo o seu irmão espiritual. As obrigações religiosas e morais advindas do compadrio colocam um em eterna solidariedade com o outro. Se isso se expressava assim, de modo claro em documentos dessa sorte, é porque, também, os laços, a solidariedade, as responsabilidades, as obrigações mútuas deviam se fazer presentes no quotidiano das famílias e no interior dos grupos sociais. Nessa devassa há uma afirmação muito interessante: do costume disse ser compadre do dito José da Silveira [Bitencourt] porém que era seu inimigo e que juntamente era compadre do dito referente [Antônio de Souza Fernando] (Biblioteca Riograndense, 1937, Devassa Sobre a Entrega..., depoimento de Eusébio Alves de Souza, p: 147)

Isso significa que o elo mundano, o aspecto funcional da relação de compadrio de Eusébio Alves de Souza com o implicado José da Silveira Bitencourt foram rompidos. A solidariedade e o auxílio mútuo, decorrentes da relação que se estabeleceu à Pia Batismal, se transformaram em inimizade. Entretanto, o elo espiritual permanecia. Negava-se a amizade, mas não o compadrio. Negava-se o que decorria da carne, mas não se negava a relação superior entre espíritos. Tanto isso era importante que, para além da amizade rompida, há a afirmativa de uma outra relação de compadrio completa, sem a quebra da solidariedade e da reciprocidade funcionais, entre os compadres, Eusébio Alves de Souza e Antônio de Souza Fernando. Isso vai ao encontro da idéia do parentesco espiritual subsistindo às coisas terrenas

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que é apresentada em Gudeman (1971).

II.2.Um pouco sobre os estudos sobre compadrio no mundo O estudo acerca das relações de compadrio tomou novo impulso com este trabalho de Gudeman de 1971. Outros autores, em adendo ou em discordância com Gudeman, produzem outras explicações aos papéis desempenhados pelos participantes do rito do batismo ou ampliam a extensão das relações de compadrio para outras esferas religiosas ou não. Destacam-se alguns aqui. Peter Coy em 1974 publicou An Elementary Structure of Ritual Kinship: A Case of Prescription in the Compadrazgo, cuja principal intenção, baseado em pesquisas de campo, é incluir o matrimônio entre os sacramentos da Igreja que geram relações de compadrio, neste caso, entre os nubentes e suas testemunhas, além de tentar ampliar as conclusões de Gudeman acerca do compadrio gerado à pia batismal (Coy, 1974). Em 1975 o próprio Stephen Gudeman retornou ao tema com o artigo intitulado Spiritual Relationship and Selecting Godparent (Gudeman, 1975). Sem discutir o dito por Coy, Gudeman reafirma o Complexo do Compadrio apenas como surgido do batismo e confirmação, explorando as regras para seleção de padrinhos a partir das normas da Igreja e de sua interpretação popular, levando em consideração os impedimentos matrimoniais gerados pelas relações do Complexo do Compadrio e a superioridade dos laços espirituais sobre os laços terrenos. Nesse mesmo ano o antropólogo Roderick L. Stirrat publicou o artigo Compadrazgo in Catholic Sri Lanka, saindo, portanto, do âmbito estudado pelos autores anteriores, que se detinham na Europa, em especial a Europa mediterrânea e a América Latina. Discute também a diferença que considera crucial entre o compadrio da pia batismal e o que ocorre no casamento. Esse trabalho é importante pois, de um modo mais contundente, discute o aparato

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conceitual utilizado por Gudeman, problemático em sua concepção, no que concerne à dicotomia entre as esferas espiritual e natural. Segundo Stirrat, aí reside o maior problema de sua análise, sendo que o que é dito “espiritual” em Gudeman poderia ser dito “cultural”, ou seja, a dicotomia poderia aparecer como sendo entre “homem cultural” e “homem natural”, em vez de “homem espiritual” e “homem natural”. Apesar de suas discordâncias com Gudeman, de seu trabalho Stirrat toma a idéia de que o compadrazgo é um produto da teologia católica. De Pitt-Rivers assume a idéia de que na relação de compadrio padrinho guarda semelhanças com o tio materno, ou seja que há uma afinidade espiritual. Conclui dizendo que, se por um lado Gudeman enfatiza apenas um aspecto do problema, focando a relação entre nascimento e batismo, reduzindo o conjunto do compadrio ao contraste entre as famílias espiritual e terrena, por outro Pitt-Rivers via o compadrazgo apenas como família, enfatizando essas coletividades e o papel individual dos padrinhos. Segundo Stirrat, ambas as análises são falhas ao analisar o compadrio em separado do matrimônio, sem analisar as regras positivas e negativas do primeiro agindo sobre o segundo e vice-versa. Conclui dizendo sobre seu estudo: “A análise que eu propus é concernente a uma variante da Grande Tradição do Catolicismo: uma Pequena Tradição” (Stirrat, 1975: p. 604) e por conseqüência, clama por novos estudos que ampliem os horizontes neste tema. O ano de 1976 foi marcado pelo início da produção mais intensiva de autores franceses que se voltaram para esse assunto. Curiosamente, assim como nos temas vinculados à onomástica, as tradições de pesquisa de um lado inglesa e norte-americana, e de outro, francesa ignoraram-se mutuamente, não discutindo entre si. Jean Louis Christinat publicou artigo sobre padrinhos de batismo e seus afilhados no Bulletin de Institut Franças d'Études Andines, tendo como objeto de estudo o compadrazgo praticado no Peru. (Christinat, 1976). A ênfase desse estudo é a sacralidade do laço, a importância das relações de compadrio e o alcance social de uma relação sacralizada. Em sua bibliografia não estão incluídos os autores

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anteriormente mencionados, de onde se conclui que ignorava a existência de vasta literatura em língua inglesa. Françoise Zonabend, dois anos após, publicou o artigo La Parenté Babtismale a Minot (Côte-D'Or) (1978), hoje considerado clássico para quem se inicia no estudo do compadrio e suas relações. Não constando a produção em língua inglesa em sua bibliografia, em certos pontos, chega a algumas constatações semelhantes as de seus colegas ingleses e norte-americanos. Demonstrando, ao longo do estudo, quanto da cultura popular e de modificações que ocorreram nessas práticas ao longo do recorte cronológico, Zonabend identifica certas práticas e crendices associadas à mortalidade infantil e à crença em uma “fragilidade” da criança enquanto não for tocada pelo Espírito, enquanto não renascer pelo batismo. Indo além, a autora percebe também padrões de escolha para os padrinhos das crianças, socialmente condicionados, dando a ver que os padrinhos das crianças mais velhas são geralmente pessoas da família com uma certa regularidade dos graus de parentesco entre padrinhos, pais e crianças, e em menor medida, pessoas do mesmo grupo social. Os últimos filhos tendiam a ser batizados com mais freqüência por pessoas alheias à família e/ou de estatuto social superior. Zonabend coloca que o compadrio nessa região ocorre em três fases distintas, todas elas ritualizadas, senão pelas práticas cristãs, pelos costumes populares. Esse artigo, que abrange o batismo de crianças e vários ritos e práticas dessa sociedade a ele associadas, é, dito de outra maneira, o estudo aprofundado de uma das assim chamadas variantes locais do dogma cristão. Ele será, de certo modo, ponto de partida para muitos outros estudos da antropologia francesa sobre o parentesco ritual contraído ao batismo. Interessante também notar que as ciências humanas, como fruto de seu tempo, também passam a enfatizar, nos estudos do compadrio, temáticas e abordagens e discussões em voga ao tempo em que foram produzidos. Bloch & Guggenheim, que em Compadrazgo, Baptism and the Symbolism of a Second Birth (1981) também enfatizam a oposição entre o

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natural e o espiritual na comparação entre o conjunto de nascimento e o conjunto de compadrio, demonstram a crença na superioridade do segundo sobre o primeiro, afirmando ser isso decorrência de uma intencional diminuição, no discurso e na prática cristãs, do papel da mulher na sociedade. Todo o mal que vem da carne – o sangue, o sofrimento, a dor e o pecado – viria através da mulher, a mãe. O bem, a limpeza, a purgação, a salvação e a vida eterna vêm da relação espírito, onde a mulher – mesmo a madrinha – desempenha um papel secundário. Uma mulher seria capaz de gerar uma criança, mas esta nasce imperfeita, necessitando ser redimida das falhas que precede seu nascimento e que derivam do pecado não apenas de Adão, mas de Adão e Eva, sendo ela a indutora do pecado. Muito provavelmente influenciadas pelos ideais e teorias feministas das décadas de 1970 e 1980, as autoras, para além da oposição carne-espírito, enxergam uma depreciação da capacidade criadora e geradora da mulher. Independente dessa ênfase demasiada na depreciação feminina no ato batismal, o destaque da oposição sagrado-profano vêm a contribuir na análise que se faz das relações subjacentes ao ato do batismo na Vila do Rio Grande. Talvez numa tentativa de romper com a ignorância mútua entre a historiografia de língua francesa e inglesa acerca das relações de compadrio, em 1981 Jacques Dupâquier publicou Naming Practices, Godparenthood, and Kinship in the Vexin, 1540-1900 na revista norte-americana Journal of Family History (1981) e, em contrapartida, a autora norteamericana Cheryll Ann Cody, no ano de 1980, levou artigo seu sobre as práticas de nomeação entre escravos norte-americanos a um evento organizado pelos franceses acerca de parentesco ritual e práticas de nomeação, publicado posteriormente em uma coletânea dos trabalhos apresentados neste evento (1984). Na década seguinte, Salvatore D’Onofrio, no artigo L’Atome de parenté spirituelle (1991), também destacou a oposição entre os laços sagrados estabelecidos ao batismo e os laços mundanos das relações carnais e de parentesco consangüíneo, e avançou por onde a

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investigação de Gudeman não obteve resposta: a origem do impedimento matrimonial entre a mãe e o padrinho ou entre o pai e a madrinha. Sua idéia é a de que o rito batismal tenta imitar a “família espiritual” de Cristo, invocando a presença de uma concepção sem pecado tanto quanto o “nascimento espiritual” prescinde do contato entre padrinho e madrinha. A década de 1990 foi marcada também por muitos estudos de caso acerca do parentesco batismal não apenas na forma da Igreja Católica, como fazem alguns pesquisadores italianos, como é o artigo Family, kin, and the quest for community: A study of three social networks in early-modern Italy, de Sandro Lombardini (1996) mas, também para locais nos quais o protestantismo vigorava, trazendo à tona outras tantas variações de um ritual que não é somente católico, mas cristão em sua essência. Sua publicação em periódicos internacionais ganhou fôlego a partir do ano 2000. Citam-se aqui, a título de exemplo, os artigos Godparents, witnesses, and social class in mid-nineteenth century sweden, de Tom Ericsson (2000); Women and men as godparents in an early modern swedish town, de Solveig Fagerlund (Fagerlund, 2000) e Cementing alliances? witnesses to marriage and baptism in early nineteenth-century Iceland de Gisli August Gunnlaugsson e Loftur Guttormsson (2000). Portanto, estudos sobre as explicações acerca do tipo de relações espirituais e seculares dadas a partir do comparecimento à pia batismal, longe de demonstrarem dar um fim à questão, vêm colocando mais e mais perguntas a serem respondidas. Os estudos de caso para localidades que antes estavam ausentes do debate trazem novos dados e novos significados para as relações de compadrio, de parentesco fictício e de solidariedade, que implicam numa conjunção de aspectos da vida social, política, religiosa e econômica daqueles que tem o batismo de crianças e adultos como um ritual nas suas sociedades.

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II.3. Um pouco sobre estudos acerca de compadrio e batismos no Brasil

No Brasil os estudos acerca do batismo e relações de compadrio iniciaram de um modo tímido, muitas vezes aparecendo como um aspecto relevante, mas de menor importância, em trabalhos que focalizavam temáticas outras, alguns direcionados para a demografia histórica ou para a história da família, que se utilizaram de registros batismais como fontes para a investigação. Sheila de Castro Faria, em A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial (1998), usa registros batismais e neles, além de padrões de legitimidade, também tece considerações acerca das relações que o batismo e o compadrio criam na vida da população colonial. Seu trabalho é consecução de um esforço iniciado na segunda metade da década anterior. Do mesmo modo que foi observado por Gudeman e por Guggenheim & Bloch que a presença masculina normalmente é mais freqüente à pia batismal, não deixa de ser também notável para todo o período colonial da história brasileira que se no conjunto de compadrio falta apenas um dos padrinhos, este será necessariamente a mulher. Havendo apenas um padrinho, não foram anotados casos em que houvesse madrinha e o padrinho estivesse ausente. Já o contrário, a presença de um único padrinho (e em casos muito raros dois padrinhos de mesmo sexo), este necessariamente era um homem. Ao mesmo tempo, muito raramente foram percebidos casos em que o padrinho fosse substituído por ente sobrenatural, como um ou outro registro de santo como padrinho de alguma pessoa, substituindo ente humano (Venâncio, 1986; Ramos, 2004). Ao contrário, o nome de santas, registradas como madrinha das crianças – em geral Sant’Ana, avó do Cristo, ou Maria, sua mãe em uma de aparições como Nossa Senhora – foram registradas, ainda que com muito pouca freqüência para o período abrangido por esse estudo (ADPRG, LBat1-RG, LBat2-RG, LBat3-RG, LBat4-RG1738-1763).

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Essa constatação, a ausência de madrinhas na pia batismal, foi tema do artigo A Madrinha Ausente – condição feminina no Rio de Janeiro (1750-1800), de autoria de Renato Pinto Venâncio (1986) que, como o título indica, investiga a condição feminina através dos registros batismais. Nesse ano se inauguram os intentos mais intensivos acerca dos batismos e relações de compadrio, sendo este um dos primeiros estudos voltados inteiramente para o tema. Ainda que sem um forte discurso feminista, visível no trabalho de Guggenheim & Bloch, o autor argumenta que a ausência da madrinha seria, principalmente, fruto da sociedade patriarcal luso-brasileira, que tendia a manter suas mulheres em forte reclusão para dar menor azo à infidelidade conjugal ou a relações sexuais precoces ou não desejadas pelas boas famílias para as suas filhas. A substituição de madrinhas de carne e osso por entidades místicas, como Nossa Senhora, a Virgem Maria e outras santas, para este autor, preencheriam o vazio deixado na pia batismal pelas mulheres reclusas. Reclusas, ainda segundo ele, por terem a natureza a lhes dominar, por serem naturalmente frágeis, físicas e moralmente, não fazendo, portanto, frente aos assédios e brutalidades que os homens lhes impunham. Essa é uma interpretação. Mas, como se verá adiante, não é válida para a colônia como um todo. Se certo é que a ausência feminina na pia batismal é maior que a dos homens, também é certo, como será demonstrado em momento oportuno tendo por base os compadrios das famílias açorianas na Vila do Rio Grande, as mulheres das boas famílias que mais batizaram crianças na localidade comparecerem muito mais vezes à pia batismal do que seus maridos, filhos e irmãos. O problema da freqüência feminina nos ritos de batismo da Vila do Rio Grande, portanto, requer outra explicação. Despontando como um dos primeiros trabalhos brasileiros, senão o primeiro, a dar destaque ao compadrio tem-se Pais, Padrinhos e o Espírito Santo: um resultado de Compadrio, de Antônio Augusto Arantes (1982), seguido do já comentado trabalho de Renato Pinto Venâncio. Uma outra importante pesquisa que tem o compadrio como tema é o capítulo

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Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII (1988), escrito por Stephen Gudeman e Stuart Schwartz e publicado em livro organizado por João José Reis. Discorrendo acerca do compadrio para as famílias escravas da Bahia, os autores deram grande impulso às pesquisas realizadas com registros paroquiais e àquelas com interesse nas relações estabelecidas à pia batismal. Esse é o primeiro estudo que se encontrou para as relações de compadrio específicas dos escravos do período colonial brasileiro. Gudeman & Schwartz, partindo da premissa da existência de um aspecto religioso e de um aspecto funcional nas relações de compadrio, afirmam, entre outros, a insignificância numérica de senhores batizando seus escravos como derivado do laço espiritual contraído ao batismo, momento no qual estariam irmanados aos pais das crianças que batizaram. Uma vez irmanados espiritualmente aos seus escravos, estariam em uma situação na qual não poderiam exercer a violência sobre os mesmos. De tal forma, evitariam ao máximo participar como padrinhos dos batismos das crianças suas escravas para que sua autoridade, expressa também pelo direito de submeter a castigos corpóreos os seus escravos, não se visse diminuída. Também esse ponto será discutido em momento oportuno. Destaca-se aqui a grande contribuição que esse artigo dá ao estudo do parentesco entre escravos, seja ele consangüíneo, afim ou fictício. Os autores demonstram que uma rede social unia escravos de diferentes propriedades através do comparecimento à pia batismal e mostram, também, que as escolhas de compadres eram feitas dentro de padrões condicionados socialmente, deixando perceber a penetração dos dogmas da Igreja católica nas populações escravizadas e suas formas de interpretação e utilização dos sagrados laços do compadrio. Em seguimento a esses estudos primeiros, outros tantos surgiram. Citam-se aqui, não mais que para demonstrar que a produção historiográfica sobre o tema não estagnou, alguns entre os tantos trabalhos de pesquisa publicados, Família e compadrio entre escravos das

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Fazendas de Café: Paraíba do Sul, 1871-1888, e The politics of kinship: Compadrio Among Slaves in Nineteenth-Century Brazil, de Ana Maria Lugão Rios (1990; 2000); Compadrio, Relação Social e Libertação Espiritual em Sociedade Escravistas, de S.M. Brügger e T.M Kjerfe (1991); O compadrio batismal a partir dos registros paroquiais: sugestões metodológicas, de Sérgio Odilon Nadalin (1997); Na Pia Batismal: família e compadrio entre escravos na Freguesia de São José no Rio de Janeiro (primeira metade do século XIX) dissertação de mestrado de Roberto Guedes Ferreira (2000) e o capítulo quinto de Minas Patriarcal - Família e Sociedade (São João del Rei, séculos XVIII e XIX), tese de doutoramento de Sílvia Maria Jardim Brügger, dedicado ao parentesco ritual e às estratégias sociais. No ano de 2003, em evento da Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica, ao menos três trabalhos se utilizaram de registros batismais para investigar mobilidade e inserção social, para escravos, forros e livres. São eles De pai para filho: legitimação de escravos, herança e ascensão social de forros nos Campos dos Goitacases, c. 1750-c.1839, de Márcio de Souza Soares (2003); Trabalho, família, aliança e mobilidade social: estratégias de forros e seus descendentes - Vila de Porto Feliz, São Paulo, século XIX, de Roberto Guedes Ferreira (2003) e Na Pia Batismal: estratégias de interação, inserção e exclusão social entre os migrantes açorianos e a população estabelecida na Vila do Rio Grande através do estudo das relações de compadrio e parentescos fictícios (1738-1763) de Martha Daisson Hameister (2003). Como traço comum, os três trabalhos se utilizam do “método onomástico” ou cruzamento de registros nominais para traçar trajetórias de famílias, delinear a parentela carnal ou espiritual e tentar identificar as estratégias que podem ser percebidas a partir destes registros. Em 2004, a revista Varia História, da Universidade Federal de Minas Gerais, publicou seu número 31 com artigos dedicados à história da família e aos registros

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eclesiásticos. Chama-se especial atenção para os artigos Teias Sagradas e Profanas: o lugar do batismo e compadrio na sociedade de Vila Rica durante o século do ouro, de Donald Ramos (2004), que busca padrões de escolha de padrinhos para escravos, forros e livres, tentando se ater aos aspectos seculares e sagrados da relação de compadrio; Filhos de Deus: batismos de crianças legítimas e naturais na Paróquia de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, de Douglas Libby e Tarcísio Botelho (2004), que abrange um recorte de quase cem anos de registros batismais de uma paróquia mineira, e Aspectos da Função Política das Elites na Sociedade Colonial Brasileira: o parentesco batismal como elemento de coesão social, de Vera Alice Cardoso Silva (2004), que enfatiza a importância da escolha de padrinhos como elemento que reduz as tensões sociais entre grupos e pessoas de estatutos sociais diferentes, bem como a importância da formação de redes de parentesco fictício numerosas e abrangentes de vários setores da sociedade para a sustentação do poder das elites. Cada um desses três artigos explora, de modo diferente, as implicações das escolhas de padrinhos e das teias de parentesco fictício gerados ao batismo. No mesmo ano de 2004, mais três trabalhos importantes foram apresentados no Encontro Nacional de Estudos Populacionais. São eles Casamento & Compadrio: estudo sobre relações sociais entre livres, libertos e escravos na passagem do século XVIII para o XIX (São José dos Pinhais - PR), de Cacilda Machado (2004), que analisando trajetórias de casais formados por escravos com livres e libertos e de seus filhos, verifica essas relações serem estratégicas para a garantia ou obtenção da liberdade, ao mesmo tempo que reiteravam a hierarquia e a estrutura social escravistas; Compadrio em uma Freguesia Escravista: Senhor Bom Jesus do Rio Pardo (MG) 1838-1888, de Jonis Freire (2004), que vê nas relações de compadrio dos escravos e nos padrões de escolha de compadres um leque muito maior de opções do que o imaginado anteriormente, além de afirmar ser o compadrio instrumento fundamental para o estabelecimento de solidariedades, não apenas entre os cativos, mas dos

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cativos com aqueles de estatuto social superior: forros e livres, abrangendo também pessoas do topo da hierarquia social da localidade; e Compadrio e Escravidão: uma análise do apadrinhamento de cativos em São João del Rei, 1730-1850 de Sílvia Maria Jardim Brügger (2004). Assim, excetuando o trabalho de Machado, que enfatiza as trajetórias de casais mistos, os dois outros trabalhos destacam os compadrios dos cativos em períodos distintos. Esse crescente interesse pelas relações de compadrio se confirmou no ano de 2005, no qual alguns eventos nacionais tiveram sessões com trabalhos nessa temática. Haja vista que nenhum desses trabalhos é algo encerrado e sim observações iniciais ou intermediárias, ao que tudo indica, os anos vindouros serão bastante férteis nesse terreno. No Brasil, percebe-se que há uma grande ênfase nas análises de batismos e compadrios da parcela escrava da população em detrimento de famílias livres, talvez respondendo à antiga e cada vez mais infundada queixa de que não existem fontes para o estudo da escravidão. Também surgem esses estudos em resposta a uma discussão antiga na historiografia acerca da escravidão, entre aqueles que acreditam na reificação do escravo dadas as condições opressivas e degradantes da escravidão e aqueles que acreditam ser o escravo um agente social e, portanto, agente histórico. O fato de gerar famílias e o fato de estabelecer uma malha de relações sociais entre os de estatuto social semelhante ou superior, se utilizando das solidariedades implícitas a estas relações em proveito próprio, como estratégia de manutenção de uma qualidade de vida ou de melhoria desta, vai contra à idéia de um escravo tornado coisa, sem possibilidade outra de ação que não a submissão, o suicídio ou a rebelião. A violência que é a própria escravidão não é diminuída em nada com essa constatação. Apenas se acrescentam aspectos mais sutis de dominação na “instituição escravidão” que também não é “uma coisa” e sim uma relação. Sendo a escravidão uma relação, não é nem estática nem imutável. Apresentou várias faces ao longo do tempo e ao longo do território onde existiu, podendo, portanto, diferir em formas e

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práticas sociais inerentes a esta relação. A perspectiva que se adotará nos casos que serão adiante analisados destoa dos estudos anteriores apresentados por uma opção que tem dois motivos, um prático e um teórico-metodológico. O motivo prático diz respeito às condições das fontes disponíveis para esse estudo. Como já dito, os livros exclusivos de registros batismais de escravos na Vila do Rio Grande desapareceram do Arquivo da Diocese. Não há fontes suficientes para que se proceda nem ao acompanhamento das trajetórias dessas famílias nem que se aplique metodologia da reconstituição de famílias. Maria Luiza Bertulini Queiroz, em sua tese, abdicou da inclusão das famílias escravas, provavelmente por este mesmo motivo (1992). Havendo portanto, essas dificuldades notadas na carência de fontes, buscou-se, então, um modo de abranger essa parcela no estudo sem que se incorresse no erro de tentar fazer coisas inexeqüíveis, dando razão ao segundo motivo para que se destoe das abordagens anteriores. Eis, então que o segundo motivo é de cunho teórico-metodológico, surgido a partir da percepção, ainda que incipiente, no momento em que os dados eram agregados às respectivas bases de dados, da existência de teias de relações estabelecidas pelas famílias em seus compadrios. Essas, cruzadas com outros registros disponíveis para a época e o lugar sob estudo induziram a uma concepção diferente do usual sobre o que sejam “as famílias” na Vila do Rio Grande ao século XVIII. Retornando à questão de que a escravidão constitui uma relação, tem-se que, apesar da impossibilidade de seguir a trajetória das famílias formadas por mãe, filhos e, com menor freqüência, pais escravos, é correto afirmar que estes eram escravos “de alguém”. Não existem escravos sem proprietários, mesmo que os proprietários sejam instituições como as irmandades, a igreja ou o Estado. Assim, se não é possível quantificar, por lacunas na documentação, o número de famílias escravas, tem-se a certeza que estas faziam parte de

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alguma unidade que foi quantificada no estudo de Maria Luiza Bertulini Queiroz, que estudou a parcela livre desta sociedade, abdicando de estudar a parcela escravizada. A tentativa que se faz neste estudo é, quando identificados escravos e seus proprietários, investigá-los como parte componente da unidade domiciliar a que pertenciam. Embora uma coisa não substitua a outra, pensa-se aqui que esta seja, senão a única, uma das formas de incluir estes escravos que desapareceram junto com os registros subtraídos à Diocese na sociedade na qual viveram, procriaram e morreram. III. O Mundo que Deus Criou e a Lei dos Homens

Um documento singular Aos doze dias do mês de junho de mil setecentos e quarenta e cinco anos nesta Igreja Matriz de Jesus-Maria-José da povoação do Rio Grande de São Pedro estando eu de cama enfermo dei licença ao Reverendo Manuel Henriques para batizar por forra e pôr os santos óleos a Felícia inocente filha natural de Francisca parda escrava do Comissário Cristóvão da Costa Freire e de Antônio Pires homem paisano e dando eu licença ao dito Reverendo padre para batizar por forra no dia onze ele a batizou no dia doze muito cedo por fazer gosto ao dito Comissário, amigo seu muito particular, que não queria se batizasse por forra a dita criança, e a Pedro da Costa Marim, a quem o dito Comissário fez a venda da dita sua escrava Francisca para melhor se escusar de forrar a filha e também porque não houvesse quem lhe levasse à pia batismal o dinheiro que o pai dela dava para se forrar conforme o estilo e costume de todas as freguesias do Bispado, porque para ele a não levar à pia o fez prender o dito Reverendo padre pelo governo deste estabelecimento e preso esteve até fazer o dito batizado a gosto do Comissário e Ajudante Pedro da Costa Marim e não do pobre pai, que à cama me veio trazer o dinheiro para forrar sua filha e logo a deu por forra pedindo-me assim a mandasse batizar e eu assim a mandei batizar por forra e livre como se forra e livre nascesse o dito Reverendo Padre não o fez foi por dolo e malícia e se não apareceu pessoa alguma que requeresse na pia o dito batismo e levasse o dinheiro para tal, foi por estar o pai preso e ele vir muito cedo batizar a criança, a qual, como conheço ser estilo e costume nas mais freguesias do Bispado e o pai querer dar o valor dela segundo o estado de pequenez, dou por forra e liberta no seu batismo, havendo o senhor a todo o tempo que quiser o valor da dita Felícia no estado da inocência em que foi batizada, pois é a Igreja mãe e não quer filhos que a ela chegam cativos e por descargo de minha consciência e saber se fez todo o contrário do que é costume por traição, ódio e malquerença que contra uns e outros há nesta freguesia, é que julgo ser forra a dita Felícia inocente, da qual foram padrinhos Manuel Francisco da Costa e NSra do Rosário e por verdade de todo e ter batizado e posto os santos óleos à dita Felícia o dito Reverendo

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Padre fiz este assento dia e era ut supra. Pe. João da Costa Azevedo. (Domingues, 1981 pp. 34-35).

III.1. Do batismo de Felícia O registro do batismo de Felícia nem de longe se assemelha aos demais assentos nos livros da Vila de Rio Grande. Normalmente esses anotavam aquilo que era exigido pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Segundo essas, era mister “que em um livro se escrevam seus nomes, e o dos seus pais, e mães, e dos padrinhos” (Da Vide, 1707: Livro Primeiro, Título XII.). Tampouco os registros normais eram usualmente tão sumários quanto o disposto nas Constituições. Dependendo do rigor do pároco ou da passagem recente de um visitador, os registros podiam conter outras tantas informações, tais como a procedência dos pais, a data de nascimento da criança, os estatutos de “forro”, “escravo”, “administrado” ou “liberto”, mesmo que em condição pretérita (p. ex. “escravo que foi”); anotações sobre o que poderia ser dito como cor mas que, ao mesmo tempo poderiam designar o fenótipo, designavam também uma situação social: “pardo”, “preto”, “índio”. Poderia ser uma classificação até social bastante precisa, se não percebêssemos que muitas dessas desinências somem ou transformam-se com o passar do tempo; nome e procedência dos avós; procedência dos padrinhos e o local atual de residência dos partícipes do ato batismal. Também era dito do batizando sua situação legal: legítimo, natural – muito raramente bastardo –, ou exposto. Ainda que filhos de relações adulterinas ou espúrias estivessem sendo batizados na vila, a nenhum deles coube a anotação de “ilegítimo”, ainda que o registro expressasse a condição de casado de um de seus pais ou ainda de ambos serem casados com outras pessoas. Era a leitura do pároco, quiçá da sociedade em formação: filhos naturais. E se assim foi lavrado nos livros, aqui serão ditos naturais. Variações nos dados contidos nos assentos batismais foram percebidas em estudos anteriores que se debruçaram sobre fontes semelhantes (Gudeman & Schwartz, 1988;

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Ferreira, 2000; Rios, 2000; Brügger, 2002). Fica, então, anotado aqui que os assentos produzidos pelos párocos da Vila e imediações, ainda que contenham peculiaridades, não destoam dessa variada gama de possibilidades acrescidas ao mínimo exigido pelas Constituições. Entretanto, no batismo de Felícia há um longo texto a trazer tantas mais informações das práticas sociais e costumes da Vila do Rio Grande e mesmo do Bispado do Rio de Janeiro. Com um pai camponês e uma mãe parda escrava – sem que isso necessariamente indique uma origem africana, haja vista os índios amiúde serem ditos pardos – Felícia tinha, de acordo com os planos de sua família, a liberdade iminente. Para seu azar e para a sorte dos historiadores, essa liberdade não estava nos planos do comissário. Sobre esse texto se lançarão os olhares na tentativa de enxergar para além do que está registrado. Em primeiro lugar, destaca-se aqui que, margeando a evidente “tramóia” que foi armada para que a menina Felícia permanecesse em estado de escravidão, houve o rompimento de um trato. Apesar do pai de Felícia ter entregue o dinheiro referente ao preço da criança “em seu estado de pequenez” ao vigário adoentado, sua alforria não ocorreu. O proprietário, o comissário Cristóvão da Costa Freire, agiu de má fé ao contrariar um trato que havia sido feito com o padre. Mas há que se perguntar por que o trato havia sido feito com o vigário e não com o proprietário da criança. Eis aqui o que diz o vigário convalescente acerca da instituição Igreja: “é a Igreja mãe e não quer filhos que a ela chegam cativos” (Domingues, 1981: p.35). Para essa sociedade, Deus é o pai e a Igreja é a mãe dos filhos que vagam pela Terra. Não há mãe nem pai neste e no outro mundo que desejem ver seus filhos cativos. O amor cristão almeja a isenção do cativeiro, usualmente associado ao pecado e ao serviço do demônio. O pior dos cativeiros é ser escravo do pecado, um escravo do demônio, colocando a alma em cativeiro por toda a eternidade. Para tanto, a Santa Madre Igreja tem o batismo como

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primeiro sacramento dado aos seus filhos. O batismo é a expiação do Pecado Original, a libertação do pecado primeiro, herdado de Adão e Eva que, tendo provado o fruto da Árvore do Conhecimento, repassaram seu fardo à sua descendência. O batismo liberta a alma. O padrinho, que em nome da criança renuncia ao demônio, fornece-lhe um prenome cristão ou de santo. Com os Santos Óleos o pároco unge em cruz a testa do pequenino. Esse sinal, que desaparecerá da pele da criança, é perene em sua alma: marca indelével dos membros do rebanho do Senhor, daqueles que foram libertos do pecado original. Por essa marca Deus reconhece seus filhos e pelo prenome dado ao batismo eles serão chamados no Dia de Juízo, para terem seus atos avaliados e direcionados à chama eterna, em companhia de hediondos seres, ou ao Paraíso, ao lado de Deus Pai e todos os anjos. Muito bem observado por Gudeman & Schwartz (1988), as instituições da escravidão e do batismo são opostas entre si. A escravidão remete pessoas ao cativeiro e o batismo as liberta. As Constituições Primeiras tentam, de alguma maneira, gerar regra para a libertação espiritual dos corpos cativos. De alguma maneira, isso também foi percebido pela sociedade que via, conforme o descrito pelo vigário de Rio Grande, o batismo como um momento propício para a libertação do corpo, indo, então, além do significado de libertação da alma que o rito possuía. Claro fica não ser norma escrita, mas ser “estilo e costume de todas as freguesias do Bispado”, a saber, o Bispado do Rio de Janeiro, o senhor da criança aceitar o valor em “seu estado de inocência” oferecido para a sua alforria. Ao que tudo indica, não uma punição formal, na dura letra da lei, mas um constrangimento social haveria de dar lugar a quem se negasse a receber tal oferta. O hábito e o costume eram tão fortes que tão logo pôde, o pároco redigiu a anotação e reverteu a situação de cativeiro, aliviando sua própria consciência. A menina Felícia, belo nome escolhido para a criança que tendo nascido escrava teria a felicidade de tornar-se livre de corpo e alma no dia de seu batismo, tinha pai e

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mãe que a amavam e a queriam livre. Livre do pecado, livre do cativeiro. Tinha um padre disposto a fazer valer a vontade de Deus Pai e da Santa Madre Igreja, advogando a sua causa. Desse documento, de suas linhas e entrelinhas, há mais o que ser dito. O Padre João da Costa Azevedo, vigário de Rio Grande tinha por certo estar praticando a justiça quando reparou os atos praticados por dolo e malícia. Mais do que isso: estava corrigindo o que poderia ser dito “uma distorção” do aparato legal. Legalmente, o proprietário da mãe e da criança poderia ter efetuado a venda e negado a alforria à pia. Isso estava dentro das suas prerrogativas de senhor de um escravo. Entretanto, percebe-se que “por uso e costume” geravam-se constrangimentos a quem fizesse valer suas prerrogativas de proprietário de escravos por sobre o praticado no Bispado. Apoiado na lei, o comissário Cristóvão da Costa Freire poderia ter feito tudo o que fez, dispensando a sórdida tramóia. Assim, vê-se o “estilo e costume” assumir forma de lei de fato, já que outra havia de direito. Foi baseado nisso que o Padre João da Costa Azevedo reverteu os atos praticados pelo comissário e seus “amigos”, que impediam a prática dos usos e costumes. O direito consuetudinário prevaleceu sobre a normatização. Reverteu a situação de cativeiro a qual fora lançada a pequena Felícia. Ao corrigir o legal com o costume, corrigir o abuso de quem muito tinha sobre quem pouco possuía, o vigário aplicou o princípio da justiça distributiva, cujo preceito é: a cada um o que lhe compete de acordo com o seu estatuto social, nem mais, nem menos. A cada um de acordo com o seu mérito: Portanto, a medida é a proporção, que pode definir-se caso por caso através da avaliação que só uma autoridade pode determinar. Mas se trata de uma medida exata, não arbitrária, ‘posto que ao dar ou premiar sem mérito não será ato de virtude de liberdade, e sim vício de prodigalidade, que comporta injustiça ao quitar os meritórios e dar aos que carecem de mérito’. (Levi, 2002: p. 6).

Em uma rápida passada de olhos poder-se-ia dizer que a tendência seria favorecer Cristóvão da Costa Freire, nomeado Comissário de Mostras da Expedição que acudiu

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Sacramento e posteriormente indicado pelo Provedor da Fazenda do Rio de Janeiro, ratificado pelo governador interino José da Silva Pais, para o cargo no Rio Grande. Ao cargo, a este tempo por falta de uma administração formal instituída, competia fazer as vezes de Provedor da Fazenda e existiu até que um fosse nomeado. Cristóvão da Costa Freire era um dos homens mais poderosos da localidade, agraciado por mercê real. Todos os bens das Estâncias Reais de Bojuru e Torotama, produtoras de gados bovinos e cavalares, estavam sob sua responsabilidade. Um percentual da receita obtida com os couros – principal produto da região, com vistas à exportação para fora do Continente e, inclusive, para fora do Estado do Brasil – lhe competiam, sob a forma dos “prós e percalços” correlatos à sua função (AAHRS, v. 1, 1977 p. 73). Os outros envolvidos na venda e no batismo de Felícia eram o Reverendo Padre Manuel Henriques, também produtor de gados e cavalos e proprietário de escravos (AAHRS, 1977: p.214; Queiroz, 1987: p.100) e Pedro da Costa Marim, braço-direito de Cristóvão da Costa Freire, em sua função de comissário, e por ele nomeado ajudante nos Serviços das Guardas e Passagens dos Animais. Esses três homens, sem sombra de dúvidas, tinham estatuto social mais elevado que o de “Antônio Pires, homem paisano”. Mas a atitude dos três vai de encontro ao que deles se esperava. De Cristóvão da Costa Freire, um homem em tal posição, deveria se esperar, antes de tudo, ser portador de atitude pia e cristã. Ora, se Deus Pai e a Santa Madre Igreja não desejam que os filhos cheguem a eles escravos, era de se esperar que um bom cristão não se colocasse contrário aos desejos de Deus Pai e da Mãe Igreja. Nisso, Cristóvão da Costa Freire, o reverendo Padre Manuel Henriques e o ajudante Pedro da Costa Marim, a despeito de suas posições sociais, agiram como gente mesquinha e que tem o lucro e o valor material acima dos valores cristãos. Não agiram como competiria a alguém de seu estatuto social. Valeu o costume sobre a lei e os princípios da graça e da piedade sobre o da ganância. Ao corrigir a lei e o ato dos que por “traição, ódio e malquerença que contra uns e

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outros há nesta freguesia” prejudicavam os demais, ou seja, que quitavam aos outros o que lhes competia segundo o seu mérito e sua posição dentro da sociedade, o vigário foi autoridade que avaliou as duas posições que nessa querela havia. Se a posição social de Cristóvão da Costa Freire e os seus lhes permitia certos desmandos, a autoridade responsável pelas almas desta freguesia era o vigário, e não apenas negócios estavam envolvidos neste assunto, mas os preceitos da própria cristandade: a libertação das almas, a graça e a piedade. Giovanni Levi, ao discorrer sobre este tema, afirma que a liberdade que a Idade Moderna trouxe aos homens, a liberdade decorrente de seu livre arbítrio, é um tanto ilusória. Se não havia nas Sagradas Escrituras, ou seja, na Palavra do Senhor, disposições sobre tais assuntos, a Igreja assumia a função de “tutela” de seus membros. “Portanto, a liberdade dos homens deve estar presidida pela superioridade moral da Igreja, com sua função corretiva e de controle.” (Levi, 2002: p. 7). Ou, dito mais adiante: “é a liberdade do pecador sob tutela” (Levi, 2002: p.8). Levi baseia suas conclusões no exame do aparato legal e de costumes à luz da filosofia de Aristóteles, que não pode prescindir do princípio de eqüidade. Eqüidade assume não o sentido de igualdade, como consta em dicionários atuais6, mas o princípio de ser equânime ante seus pares ou, melhor dito, ante às diferenças existentes e que são estruturadoras da sociedade. O justo e o eqüitativo são iguais, e apesar de serem excelentes ambas as coisas, o eqüitativo é melhor. A aporia é produto de que o eqüitativo é justo, mas não o é segundo a lei e sim que, pelo contrário, é uma correção do legalmente justo. Causa disto é que toda a lei é universal, mas sobre determinados temas é impossível pronunciar-se de uma maneira universal (...) portanto, quando a lei se pronuncia em geral, mas no âmbito da ação sucede algo que vai contra o universal é justo corrigir a omissão ali onde o legislador deixou o caso às meias e errou porque se pronunciou em geral (....) portanto, o eqüitativo é justo e é melhor que um certo tipo de justo, não que o justo em absoluto, e sim que o erro que tem como causa a formulação absoluta. E esta é a natureza do eqüitativo, a de ser a correção da lei na medida em que esta perde seu valor por causa de sua formulação geral. (Aristóteles. Ética a Nicômaco. apud Levi, 2002: 8)

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Cf. Dicionários Aurélio XXI.

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O princípio da eqüidade se faz valer em uma sociedade que, ao contrário do que se apregoa neste início de século XXI, os homens não eram iguais perante a lei. Os homens nasciam diferentes, alguns livres, outros escravos; alguns nobres, outros campônios. Os homens moviam-se na escala social, ao longo de suas existências partindo de pontos diferentes e, galgando degraus diferentes, atingiam patamares diferentes. A cada um havia um leque de possibilidades de acordo com sua posição no interior dessa sociedade complexa e hierarquizada, estruturada, justamente, sobre a desigualdade entre os homens e na eqüidade. Mas o conceito surgiu e teve importância em sociedades que não reconheciam a igualdade entre cidadãos abstratos – segundo a qual a lei é igual para todos – e sim que, ao contrário, carregavam o acento na desigualdade de uma sociedade hierárquica e segmentada, na qual convivem sistemas hierárquicos correspondentes a diversos sistemas de privilégio e de classificação social. Portanto, uma pluralidade de eqüidades segundo o direito de cada um a que se lhe reconheça o que lhe corresponde sobre a base de sua situação social e de acordo com o princípio de justiça distributiva. Na sociedade de Antigo Regime, o conceito de eqüidade era o protagonista central de seu sonho impossível – ou melhor dito, desde o princípio impossível – de construir uma sociedade justa de desiguais. Nela a possibilidade não estava tanto no conflito de aequitas e aequalitas como no sonho em que cada um fosse classificável com exatidão em um papel ou em uma condição social unívoca, definível e estável. A lei difere para cada estrato social, quando não para cada pessoa, em uma justiça do caso concreto, determinado segundo as desigualdades sociais definidas. (Levi, 2002: p.9).

O fenômeno da articulação dos três homens que tentavam impedir a alforria à Pia Batismal também é objeto de estudo (Fragoso, 2001; Fragoso, 2003; Gil, 2003). Os denominados “bandos” juntavam e punham em movimento gente de diferentes setores sociais, compondo grupos que muitas vezes continham gente de diferentes estratos em seu interior. Não é de se duvidar que o padrinho arranjado para a menina Felícia em seu batismo fora da data marcada também fosse membro do “bando” de Cristóvão da Costa Freire. Do padrinho tem-se apenas ciência de ter ficado viúvo por volta do ano de 1744 e ter sido proprietário de escravos e padrinho de outras crianças. Seus escravos compareciam com freqüência à igreja para batizarem crianças filhas de escravos de outros proprietários (Domingues, 1981). Fica

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claro no documento que o tal bando possuía rivais, contra os quais usavam de vários recursos e o faziam “por traição, ódio e malquerença”. Essa era uma localidade que entrava em seu sétimo ano de existência e seu povoamento ainda dava mostras de chegada irregular de moradores oriundos de diferentes localidades do Império Português, mas, ao que tudo indica, esse tempo fora mais que suficiente para que as pessoas se amassem ou se odiassem. Por razões óbvias, exclui-se aqui Nossa Senhora do Rosário de qualquer participação malintencionada sobre o futuro de Felícia ou na constituição dos bandos. Quanto à Nossa Senhora do Rosário fazer parte do set do compadrio, não é fenômeno isolado. Outros estudos, amiúde, vêm colocando em evidência essa prática (Venâncio, 1986; Gudeman & Schwartz, 1988; Ferreira, 2000; Rios, 2000; Brügger, 2002). Entretanto, ela não era recorrente nos batismos de Rio Grande. Até o presente, menos de 1% das madrinhas pertencem à esfera sobrenatural, no período sob análise, nos registros batismais levantados. Apesar de não estarem completamente transcritos todos os livros de batismo, é possível observar que quando ocorre de uma madrinha ser uma santa, a criança geralmente é escrava ou filha de escravos. No caso de Felícia, provavelmente pelo fato da criança ter sido batizada em uma situação anormal, ou seja, em outra data que não a previamente acertada para o seu batismo e com responsáveis outros que não seus pais – a quem compete, ao menos pelas regras da Igreja, fazer a escolha dos padrinhos – ao que tudo indica, Nossa Senhora do Rosário ocupou lugar no conjunto do compadrio por ser o padrinho viúvo e por não haver, possivelmente, tempo hábil de se encontrar mulher que participasse da manobra, haja vista nem o Reverendo Padre – também por razões óbvias –, nem Cristóvão da Costa Freire ou Pedro da Costa Marim serem casados no Rio Grande ou haverem levado suas famílias para este território em processo de conquista. Nossa Senhora do Rosário, registrada nesse batismo, só traz mais certeza de que não eram todos os membros da comunidade que compactuavam com atitudes que iam contra o “estilo e costume” do bispado do Rio de Janeiro.

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Com esses elementos aqui destacados, começa-se a delinear o pano de fundo da sociedade surgida no extremo-sul do Estado do Brasil. Uma sociedade que avaliava a justiça como sendo superior à lei, na qual as famílias se formavam também na interseção entre a liberdade e o cativeiro, onde bandos se articulavam e na qual os princípios do amor cristão, da piedade, da reciprocidade e da eqüidade guiavam a sua formação. Passa-se então, a discorrer sobre outros registros batismais e outras famílias de Rio Grande, não tão cheios de palavras, detalhes, ódios e malquerenças, mas que também dizem muito da formação de um povoado da fronteira lusa na América.

III. 2. Sobre o compadrio em geral e o compadrio em Rio Grande em particular Antes de passar aos registros de batismos de Rio Grande, necessário reiterar o que já foi dito sobre as relações de compadrio conforme estabelecido pela Igreja Católica e normatizado pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Destaca-se como ponto de partida para as discussões que seguirão, o artigo de Gudeman & Schwartz (1988) acerca do compadrio de escravos na sociedade colonial brasileira, entre outros trabalhos que analisam a questão. O compadrio é uma das relações subjacentes ao ato do batismo. Ela existe entre os pais carnais e os padrinhos – pais espirituais de uma criança. Portanto, todo o compadrio acontece sob os auspícios da Santa Madre Igreja, que regulamenta também quem pode servir de padrinho e dita as regras – positivas e negativas – do conjunto de relações estabelecidas na pia batismal entre os parentes carnais e consangüíneos e entre os parentes espirituais – que podiam ser membros da família consangüínea ou afim. Como pais e padrinhos irmanam-se espiritualmente no batismo, tem-se como exemplo de regra positiva o respeito e o auxílio mútuo que entre uns e outros deve haver. Como exemplo de regra negativa, os impedimentos matrimoniais que geram: um compadre não poderá desposar sua comadre, seja ela solteira ou

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viúva (Gudeman, 1971). Assim como o batismo, o compadrio também tem sua história, e assim como as regras do sacramento, a relação modificou-se com o passar do tempo (Gudeman, 1971; Gudeman & Schwartz, 1988). Para a Colônia, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707) acrescentam a tantas outras normas já pré-existentes alguns itens relativos ao batismo de escravos, sendo este o primeiro dos sacramentos “e a porta por onde se entra na Igreja Católica, e se faz o que recebe, capaz dos mais Sacramentos, sem o qual nenhum dos mais fará nele o efeito” (Constituições Primeiras... Livro Primeiro, Tit. X, 1707 p. 10). O batismo deveria ser ministrado por padre ou vigário, mas em caso de necessidade, por estar o batizando em perigo de morte iminente, o mesmo poderia ser ministrado por leigo – homem ou mulher – ou mesmo infiel, desde que não faltassem “alguma das coisas essenciais”, a saber, a água natural e as palavras ditas em latim ou em vulgo: “Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Era mister que quem o ministrou “tenham a intenção de fazê-lo, como faz a Igreja Católica”. Causa o batismo efeitos maravilhosos, porque por ele se perdoam todos os pecados, assim o original como atuais, ainda que sejam muitos e mui graves. (...) É o batizado adotado em filho de Deus, e feito herdeiro da Glória, e do Reino do Céu. (...) E por este Sacramento de tal maneira se abre o Céu aos batizados, que se depois do Batismo recebido morrerem, certamente se salvam, não tendo antes da morte cometido algum pecado mortal. (Constituições Primeiras, Tít. X, 1707: p. 11)

O prazo para o batismo ser ministrado era dito como sendo de oito dias a partir do nascimento, sendo imputadas penas pecuniárias progressivas por semana de atraso, recolhidas ao cofre da “fábrica da nossa Sé”. Se a criança estivesse em risco de morte, poderia ser batizada em casa e depois de comunicado o batismo ao pároco, poderia o padre fazer o exorcismo deste batismo e se lhe ungir com os Santos Óleos e conferir-lhe padrinhos. Ciente das dificuldades de locomoção no interior da Colônia e que existiam locais que distavam mais de vinte léguas de uma igreja, as Constituções Primeiras instruíam para que se erigissem

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capelas e que se guardassem dignamente os objetos e as “coisas essenciais”. Nessas capelas ou mesmo em casa, o batismo poderia ser ministrado por mais pessoas que, preferencialmente, tivessem recebido previamente alguma instrução religiosa e que comunicassem ao pároco assim que possível. É perceptível o interesse em manter centralizadas as informações acerca desses atos e seus registros, pois nem mesmo um outro sacerdote poderia batizar em outra circunstância que não a de urgência. Precisava, para assim proceder, licença do pároco da sede da Igreja. Os dois expedientes, o batizado por leigos em urgência e por padres que obtiveram licença e davam procedimento ao primeiro dos sacramentos às pessoas que moravam distantes da sede da paróquia, são observados em Rio Grande. Entretanto, os párocos, a exemplo do que ocorreu no batismo de Felícia, mantiveram como válido o batismo feito em situação especial, não lhes conferindo novo batismo nem atribuindo padrinhos a este conjunto de compadrio desfalcado. Poucos foram os casos excepcionais em que um padrinho foi adicionado a posteriori (ADPRG - Livros 1º, 2º, 3º e 4º de Batismos de Rio Grande, 1738-1763). O batismo emergencial era confirmado no registro, conforme os exemplos abaixo: Francisco filho legítimo de Francisco de Góes da Costa natural de São Paulo, e de Catarina Machada natural da Freguesia de São Mateus da Ilha de São Jorge (...) e foi batizado em casa por Jerônima mulher de Manuel Álvares, por estar em perigo, e aos dois dias do mês de Março Recebeu os Óleos Santos por mim Vigário Manuel Francisco da Silva nesta Matriz de São Pedro do Rio Grande. Por verdade fiz este assento. Vigário Manuel Francisco da Silva

ou Inês filha legítima de Antônio de Souza Reis Cardoso, e de Vitória Maria de São José (...), e foi batizada em casa por necessidade por Manuel Rodrigues solteiro filho de João Rodrigues, e de Maria Silveira, e Recebeu os Óleos Santos por mim Vigário Manuel Francisco da Silva nesta Matriz de São Pedro do Rio Grande aos nove dias do mês de Outubro do dito ano. Foram Padrinhos, ou neste caso testemunhas, Manuel da Costa de Carvalho, e sua mulher Inês de Santo Antônio. Por Verdade fiz este assento. O Vigário Manuel Francisco da Silva.

Talvez o fato de se fazer registrar as testemunhas satisfizesse o costume de atribuir

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padrinhos e gerar ou reiterar laços entre as famílias que participavam do batismo. Não seria um laço sacramentado, como o existente no batismo padrão, mas no costume e na intenção, talvez tivessem os mesmos deveres e direitos de um padrinho e compadre formalizado pela bênção da Igreja. Os laços de compadrio, gerados no ato do batismo, são irreversíveis e não podem ser desfeitos. Aqueles que assumem a responsabilidade de levar uma criança à pia batismal tornam-se seus pais espirituais, responsáveis pela sua orientação religiosa e tornam-se irmãos dos pais das crianças, unindo-se em cadeias de auxílio mútuo e ações de solidariedade como – ou segundo Gudeman, mais ainda – que de uma família consangüínea. Isso era válido para todo o mundo católico. Entretanto, Gudeman alerta que, para além das regras formais do compadrio os costumes locais são adicionados à cerimônia e às relações subjacentes ao ato, se não forem excludentes com este. Gudeman observou, para a população centro-americana que estudou, o acréscimo de “damas acompanhantes” da madrinha, ficando o conjunto presente à pia batismal ampliada em uma pessoa. Entretanto, o que mais vai interessar nos casos que se seguem, está parcialmente contemplado nas Constituições Primeiras e vem a ser o ato do batismo em uma sociedade que possui escravos e livres em sua composição. Como já dito, as duas instituições, que são estruturais nessa sociedade, são antagônicas em seu princípio, e ao mesmo tempo, coexistiram sem que se percebam grandes conflitos de consciência gerados por este antagonismo. De alguma forma, a sociedade soube superar os constrangimentos surgidos dessas contradições e mesmo se utilizar delas para seu benefício, fosse pelo que consta nas Constituições, fosse através do que era “estilo e costume”.

IV. A Ciranda dos Compadrios Na Vila do Rio Grande algumas famílias primavam por fazer uma alternância de

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compadres, indo buscá-los, senão nas mesmas famílias, ao menos nos mesmos grupos de atividades sociais e econômicas. Isso faz com que o “desenho” dessas redes de compadrio seja bastante circunspecto. Para tanto, observem-se os quadros dos compadrios dos genros do alferes das Ordenanças dos casais Antônio Furtado de Mendonça e de Dona Isabel da Silveira, naturais da Ilha do Faial, durante o tempo em que viveram na localidade, ou seja, até a tomada da vila pelos soldados espanhóis. Toma-se aqui, novamente, essa família de ilhéus como exemplo. Mostra-se o quadro com os compadrios de Francisco Pires Casado e de sua esposa, acrescentando-se os quadros de compadrio de outras duas filhas de Furtado de Mendonça, de cujos casamentos foi encontrada descendência nascida na Vila do Rio Grande. São os casais que seguem: - Dona Ana Inácia da Silveira, casada com Manuel Fernandes Vieira, este natural da Península e presente no Continente, no mínimo, desde a metade da década de 1740. Seu casamento com Ana Inácia deve datar do início da década de 1750, sem que se possa precisar data dado o desaparecimento do primeiro Livro de Registro de Casamentos de Rio Grande. Manuel Fernandes Vieira possuía patente de Capitão das Ordenanças e ofício de Tabelião e Escrivão de Órfãos da vila, além de sociedades com alguns dos cunhados no Contrato dos Açougues e estâncias de criação de gado vacum e cavalar, além de ter participação em negócios outros (Kühn, 2003). Possivelmente foi vereador na Vila do Rio Grande, mas impossível afirmar dado o desaparecimento dos livros da Câmara. - Dona Maria Antônia da Silveira, casada com Mateus Inácio da Silveira, natural da Ilha do Faial e provavelmente primo ou parente próximo da família materna de sua esposa. Mateus Inácio recebeu patente de Capitão de Mar-e-Guerra ad honorem por ter debelado rebelião de índios a bordo de uma sumaca. Sua patente trazia junto “privilégios, graças e isenções”. - Dona Mariana Eufrásia da Silveira, casada com Francisco Pires Casado, natural da Ilha do Pico e também provavelmente parente da família materna de sua esposa. Francisco Pires

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Casado era proprietário de escravos, criador de gado, detinha patente de Capitão e produzia gados em sociedade com um de seus cunhados. Quadro II – Compadrio de Manuel Fernandes Vieira e Dona Ana Inácia da Silveira Criança Vicência Clemência

data bat. 20/07/1753 15/08/1756

Manuel

15/08/1761

Francisca

02/08/1762

Padrinho João de Souza Rocha Antônio Lopes da Costa

Nat. padrinho Das Ilhas ? (morador do Rio de Janeiro) passou procuração p/ Mateus Inácio da Silveira Anacleto Elias da ? (morador da cidade do Fonseca Rio de Janeiro) passou procuração a Domingos de Lima Veiga (Porto) Domingos de Lima Porto Veiga

Madrinha nat. madrinha não consta não consta Dona Mariana Eufrásia Faial, fr. S. Salvador da da Silveira Vila da Horta não consta

não consta

não consta

não consta

Fontes: (ADPRG - Livros 1º, 2º, 3º e 4º de Batismos de Rio Grande, 1738-1763)

Criança Nicolau

Quadro III – Compadrio de Mateus Inácio da Silveira e Dona Maria Antônia Silveira data bat. 21/12/1754

Francisco

03/10/1756

Alexandre

17/08/1758

Dorotéia

17/02/1760

Maurício

07/03/1762

Padrinho Manuel Vieira

Nat. padrinho Fernandes Braga, Póvoa Lanhoso

Madrinha de não consta (batizado em casa pelo Frei João Batista) Francisco Pires Ilha do Pico, fr. Santa Dona Mariana Eufrásia Casado Luzia da Silveira Francisco Lopes de não consta Não consta Souza (procuração a (península? Porto?) José Antônio de Brito) Manuel Bento da não consta Joana Maria da Silveira Rocha (península?) (Joana Margarida da Silveira) Francisco Coelho não consta Isabel Francisca da Osório (península?) Silveira

nat. madrinha não consta

Faial, fr. S. Salvador da Vila da Horta não consta não consta Faial, fr. S. Salvador da Vila da Horta

Fontes: (ADPRG - Livros 1º, 2º, 3º e 4º de Batismos de Rio Grande, 1738-1763)

Quadro IV – Compadrio de Francisco Pires Casado e Dona Mariana Eufrásia

Criança Rosália

data bat. 12/01/1755

Maurícia

01/10/1758

Manuel

17/02/1760

Francisca

02/08/1762

Padrinho Nat. padrinho Francisco Antônio da Das Ilhas Silveira Manuel Fernandes Braga, Póvoa Vieira Lanhoso Manuel Bento da não consta Rocha (península?) Domingos de Lima Porto Veiga

Madrinha Dona Joana Margarida da Silveira de Dona Maria Antônia da Silveira Dona Isabel Francisca da Silveira não consta

nat. madrinha Faial, fr. S. Salvador da Vila da Horta Faial, fr. S. Salvador da Vila da Horta Faial, fr. S. Salvador da Vila da Horta não consta

Fontes: (ADPRG - Livros 1º, 2º, 3º e 4º de Batismos de Rio Grande, 1738-1763)

No mínimo, mais duas filhas de Antônio Furtado de Mendonça eram casadas no Continente. Joana Margarida (também dita Joana Maria) da Silveira, casada com Antônio Moreira da Cruz, Sargento de Dragões que foi exonerado em 1738 por dar azo à

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fuga de um prisioneiro e, principalmente, de índios recolhidos à fortaleza, que eram a mão-deobra nas construções da vila recém-nascida (AAHRS - v. 11977: p.56). De todos os genros de Furtado de Mendonça, ao que tudo indica, Moreira da Cruz era o menos aquinhoado, mas não deixava convidado ao compadrio de crianças de setores menos abastados da sociedade, como índios e escravos (ADPRG - Livros 1º, 2º, 3º e 4º de Batismos de Rio Grande, 1738-1763). Em no mínimo uma ocasião teve participação ativa na alforria de um dos seus afilhados, conforme registro abaixo: Joaquina filha natural de Suzana preta solteira de nação Angola escrava de João Antônio Fernandes, e de pai incógnito (...) Foi padrinho Antônio Moreira da Cruz, e madrinha Teresa Rosa de Jesus solteira filha do dito João Antônio Fernandes. E declaro que o dito João Antônio Fernandes recebeu do dito Antônio Moreira da Cruz padrinho da dita criança dobra e meia para alforria da dita criança e a deu por forra, como se forra nascesse, e como tal foi batizada, e por verdade de tudo assinaram comigo este termo o dito Padrinho, e o dito Senhor da escrava. O Vigário Manuel Francisco da Silva. Antônio Moreira da Cruz João Antônio Fernandes (ADPRG - L4Bat RG - 1759-1763: fl. 107v.)

A outra filha, Isabel Francisca da Silveira, era casada com Manuel Bento da Rocha, proprietário de, no mínimo, duas grandes porções de terras, uma delas em sociedade com um dos cunhados, povoadas com mais de 8000 animais vacuns e 700 cavalares. Detentor do Contrato dos Açougues, também exerceu vereança. Manuel Bento da Rocha foi Capitãomor da Vila do Rio Grande e Capitão das Ordenanças. Em 1782 ganhou a preferência para a nomeação de Capitão da Nobreza dos Auxiliares de Viamão, onde se estabeleceu após a tomada da Vila (ADPRG - Livros 1º, 2º, 3º e 4º de Batismos de Rio Grande, 1738-1763; RAPM, ano XXIV, 1933 pp. 150-152; AARRS, 1977). De Isabel e Manuel Bento, assim como de Joana Margarida e Antônio Moreira da Cruz, não se viu descendência nascida em Rio Grande. Como é possível observar nos quadros do compadrio acima colocados, as madrinhas, quando existem, eram todas cunhadas dos pais da criança. Ou seja, não foi eleita madrinha externa à família consangüínea. Já os padrinhos, ou eram os cunhados ou gente de estatuto social semelhante. As filhas e genros de Furtado de Mendonça se alternavam no batismo de

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seus sobrinhos. Vê-se nesse ato, a reiteração de alianças e amizades previamente existentes, amalgamadas nos casamentos que inseriram os homens nesta família que tinha predominantemente, senão somente, mulheres colocadas ao mercado matrimonial. Os demais compadres das filhas e genros de Furtado de Mendonça também pertenciam aos estratos mais privilegiados dessa sociedade. Aqui, resumidamente, o que já foi colocado no capítulo 3: - Domingos de Lima Veiga: natural do Porto, Portugal, casado com Gertrudes Pais de Araújo, natural de São Paulo. Foi Sargento e Capitão da Ordenança, era proprietário de escravos e sua família era uma das mais concorridas como padrinhos de crianças, fossem elas escravas, forras, livres e de ascendência diversas, luso-brasileiras, indígenas, peninsulares ou açorianas (ADPRG - Livros 1º, 2º, 3º e 4º de Batismos de Rio Grande, 1738-1763). - Francisco Coelho Osório: não consta ser casado. Provavelmente nascido na Península, foi Capitão-mor do Distrito do Rio Grande até o ano de 1763, quando se deu a entrega da Vila do Rio Grande aos Castelhanos. Possuía escravos e foi constantemente convidado à Pia Batismal (ADPRG - Livros 1º, 2º, 3º e 4º de Batismos de Rio Grande, 1738-1763; ADPRG Livros 1º, 2º, 3º e 4º de Batismos de Rio Grande, Arquivo Histórico Do Estado Do Rio Grande Do Sul, 1977). - João de Souza Rocha: casado com Antônia Maria Luísa, Almoxarife da Fazenda Real nos anos 1752 e 1753 e depois nomeado Tesoureiro da Fazenda Real (ADPRG - Livros 1º, 2º, 3º e 4º de Batismos de Rio Grande, 1738-1763; AAHRS, v.1, 1977 pp. 297-299, 303-304, 318). - Antônio Lopes da Costa: não consta ser casado. Tinha patente de Capitão e era, ao tempo dos batismos, morador do Rio de Janeiro. Provavelmente sócio de Manuel Fernandes Vieira em seus negócios naquela região. - Francisco Lopes de Souza: Alferes da Ordenança. Natural do Porto, é dito “homem de negócios” (ADPRG - Livros 1º, 2º, 3º e 4º de Batismos de Rio Grande, 1738-1763). - Anacleto Elias da Fonseca: não consta procedência. Homem de negócios da Praça do Rio

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de Janeiro (Fragoso, 1998), contratador do Registro de Viamão, associado aos negócios de Manuel Fernandes Vieira na Praça do Rio de Janeiro (Kühn, 2003). - Francisco Antônio da Silveira: parente da esposa de Francisco Pires Casado, irmão ou primo. Casado com Úrsula Maria da Conceição (ADPRG - Livros 1º, 2º, 3º e 4º de Batismos de Rio Grande, 1738-1763). Não se obteve mais informações. Assim, consideram-se aqui todas as famílias derivadas de Antônio Furtado de Mendonça como sendo uma única e extensa família, haja vista as reiteradas ocasiões em que demonstravam suas afinidades e alianças, fossem elas nos negócios, nos matrimônios, nos compadrios ou mesmo em eventos sociais e religiosos. Pode-se observar os batismos de Dorotéia e Manuel, primos consangüíneos não co-residentes, terem sido efetuados no mesmo dia, com o mesmo tio e sócio de seus pais a servir-lhes de padrinho e suas tias maternas como madrinhas. As relações familiares, religiosas e de negócios estavam todas enredadas de tal forma que parece impossível dizer onde uma começa e termina a outra. Ou seja, aqui se fala de uma sociedade que tem a família como o modelo de organização do tecido social, ou o menor tipo de associação entre os homens que tem os mesmos elementos da sociedade. A filosofia escolástica e o modelo de sociedade corporativa autorizam esta percepção. Indo mais longe e buscando em Aristóteles essa idéia, tem-se: Sabemos que uma cidade é como uma associação, e que qualquer associação é formada tendo em vista um bem. (...) Deve-se primeiro unir em dupla os seres que, como o homem e a mulher, não têm existência individual, devido à reprodução. A dupla união entre o homem e a mulher, o senhor e o escravo, forma, antes de mais nada, a família. Afirmou Hesíodo, com razão, que a primeira família foi constituída pela mulher e pelo boi próprio para a lavra. Efetivamente, o boi é o escravo dos pobres. Desse modo a sociedade formada para atender as necessidades diárias é a família, constituída por aqueles que Carondas denomina de “homo pyens” (tirando o pão da mesma arca) e que Emimenides de Creta chama “homo capiens” (que comem na mesma manjedoura). A primeira sociedade constituída de muitas famílias, visando a utilidade comum, porém não diária, é o pequeno burgo; este parece ser, de modo natural, algo assim como uma colônia da família (...). (Aristóteles, 2005: pp.11-13)

Indo por essa progressão, da forma de organização mais simples para a mais

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complexa, expressa além da natureza do homem, um ser essencialmente político, a noção de corpo para a organização social: Na ordem natural, o Estado antepõe-se à família e a cada indivíduo, visto que o todo deve, obrigatoriamente, ser posto antes da parte. Levantai o todo: dele não restará nem pé nem mão senão o nome, como se poderá afirmar, por exemplo, que a mão separada do corpo não será mão senão pelo nome.(Aristóteles, 2005: p.14)

Para Aristóteles, aquele que não consegue viver em sociedade ou que a si se basta “ou é um bruto ou uma divindade” (Aristóteles, 2005: p.15). Para os padrinhos externos à família, pressupõe-se também que, ao estabelecer uma relação de compadrio, estreitavam-se os laços e as relações de negócio, haja vista os fatores extra-econômicos que são componentes das relações comerciais. Ou, dito por Levi, levando em consideração que a reciprocidade entre os comerciantes age como mediadora: (...) em uma sociedade que não tem uma definição clara da determinação dos valores econômicos, que não conhece um mercado impessoal e auto-regulado, os problemas de definição do preço justo e do salário justo são complexos e remetem continuamente ao conceito de eqüidade. Não se trata de deduzir o valor dos bens intercambiados (...) e sim de construir um sistema de intercâmbio no qual os valores estejam determinados por características específicas de quem os intercambia, ao ponto de que um mesmo bem adote valores distintos segundo quem sejam as pessoas que entram na transação. (Levi, 2002: p. 21).

Em uma sociedade em que não existem separações claras entre religião, política e economia, Bartolomé Clavero busca contribuir em sua elucidação usando o conceito de oiconomia. Para Clavero, os mercadores formam um corpo e o direito de comércio é um privilégio de signo corporativo (Clavero, 1991: 167). E mais do que isso: O setor não era alheio à religião, ainda que a corporação não pudesse facilmente na interioridade de alguns negócios.(...) A própria companhia mercantil resultava família ainda que não o fosse: é “species amicitiae” e tem “instar fraternitatis”; a mesma correspondência cambiária podia ser encontrada na família: a troca “si dice litterario, cioè, che por mezzo delle lettere familiari tra corrispontenti si ottiene comotamente il transporto della moneta”. (...) Dizia Palacio: há uma “disciplina rei familiaris”, oiconômica ou doméstica, como também a qualificava, que é e deve ser “secundum naturam”. (Clavero, 1991 :p. 169)

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A “família” dos homens de negócio, fraterna, irmanava-se também em espírito ao contrair relações de compadrio. Como os demais setores desse corpo oiconômico, como quer Clavero, reiterava e reforçava os laços pré-existentes à Pia Batismal. E, retornando à família de Furtado de Mendonça, coloca-se aqui o quadro dos compadrios de alguns escravos localizados na documentação parcialmente transcrita: Quadro V – Batismo de crianças escravas das Famílias Furtado de Mendonça e correlatas Criança

data bat.

Mães (escravas)

Madrinha

Padrinho

Proprietário

Joaquim

10/07/1749

Luzia, angola

Vicente*

30/04/1750

Antônia, mulata

Teresa

22/10/1752

Joana, angola

Catarina, mina Januária

09/04/1756

não consta

Rosa Maria da Manuel Fernandes Conceição Vieira Ana Maria Manuel Fernandes Vieira Mariana Eufrásia Francisco Pires da Silveira Casado Luzia de Aranda Inácio de Aranda

11/10/1756

Maria, angola

Leonardo

04/03/1757

Catarina, mina

Aniceto

27/04/1757

Maria, congo

Jacinto

26/02/1758

Rosa, angola

Domingos Ribeiro Domingos Ribeiro Manuel Vieira Francisco Casado n consta (batismo n consta (batismo Manuel emergencial) emergencial) Vieira n consta (batismo n consta (batismo Francisco emergencial) emergencial) Casado Catarina Antônio Manuel Rocha Maria João Ferreira [João Mateus Pinto] Silveira

Proprietário Padrinhos Gomes Livres Gomes Livres Fernandes Livres Pires Antônio de Aranda Fernandes n consta Pires n consta

Bento Inácio

da Francisco Pires Casado da Manuel Bento da Rocha e padrinho livre

Fontes: (ADPRG - Livros 1º, 2º, 3º e 4º de Batismos de Rio Grande, 1738-1763)

V. A família e a economia do lar Impossível não perceber a repetição de nomes existentes também nos compadrios dos netos de Furtado de Mendonça, sejam estes nomes os dos padrinhos ou dos proprietários dos padrinhos. Contra o argumento de que a escolha dos padrinhos poderia ser feita pelos senhores, Gudeman & Schwartz afirmam que estudos vêm comprovando que, mesmo quando há liberdade de escolha, os padrões, por condicionados pelas práticas sociais que são, dificilmente apresentam alterações significativas (Gudeman & Schwartz, 1988: p.41). Também afirmam estes autores, corroborado em estudos já citados ao início deste escrito, que era padrão que as pessoas convidadas ao compadrio tivessem estatuto social igual ou superior ao daqueles que emitiam o convite. Tem-se aqui uma repetição do padrão. As

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pessoas que fazem parte dos compadres eleitos para as crianças escravas ou são escravos ou são livres. Todavia, dificilmente alguém pudesse ter um estatuto social inferior ao de escravo nessa sociedade. Mas não é impossível que assim ocorresse. Buscando novamente apoio em Aristóteles, vê-se que pior que um servo, pior que um escravo, é a condição de alguém socialmente desapegado, “pois se o homem, chegado à sua perfeição, é o mais excelente dos animais, também é o pior quando vive isolado, sem leis e sem preconceitos.” (Aristóteles, 2005: p.15). De onde se conclui que não basta o estatuto de livre para ser socialmente superior a um escravo. Há que estar socialmente arranjado. Os escravos das famílias de Furtado de Mendonça não estavam desgarrados. Estavam muito bem entrosados no esquema familiar, tendo esta organização em seu interior todos os estatutos sociais também verificados na organização maior externa a ela: a própria sociedade. A exemplo de um corpo, o pater familias era a cabeça que dirigia o corpo e seguindo nessa hierarquia descendente: (...) é preciso falar da economia do lar, já que o Estado é formado pela reunião de famílias. Os elementos da economia doméstica são, precipuamente, os da família, a qual, para estar completa, deve compreender servos e indivíduos livres (....) conhecendo-se que na família elas são [partes primitivas e indecomponíveis] o senhor e o servo, o marido e a mulher, os pais e os filhos. (Aristóteles, 2005: p.15)

Assim, dentro de todo o embasamento filosófico do Estado e do Direito da sociedade lusa que bebe diretamente da taça de Aristóteles, esses preceitos, da família estendida sobre laços que não são de parentesco afim ou consangüíneo e que não possuem nem a coabitação como limite, mas sim ter lugar e função neste corpo articulado e que trabalha pelo bem comum há lugar para, além dos agregados, os escravos. Esses cumprem funções que não competem às demais partes do corpo. Retornando ao tema da eqüidade, assim como não basta ser livre para ser superior a um escravo, não basta ser escravo para igualarem-se. Os escravos da família Furtado de Mendonça não convocaram quaisquer escravos para padrinhos de seus

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filhos e sim escravos de famílias da elite, tais como eles também eram. Dos nomes que não aparecem na listagem dos padrinhos dos netos de Furtado de Mendonça, dizem-se algumas palavras agora: Domingos Gomes Ribeiro foi identificado como o maior proprietário de escravos da Vila do Rio Grande por Queiroz (Queiroz, 1987: p.98), possuía duas sesmarias de três léguas por uma, exerceu vereança na Vila da Laguna, foi Capitão da Cavalaria e da Ordenança, tendo sido apontado como uma das pessoas mais abonadas da Vila do Rio Grande em 1752. Tinha conexões comerciais no Rio de Janeiro. De Antônio de Aranda sabe-se apenas que ostentava o título de Dom, que era Capitão de Dragões (AAHRS, 1977: pp. 152-156) e era casado com Dona Antônia Rita. Muito pouco, mas o suficiente para distingui-lo da maioria dos habitantes deste povoado. Deste senhor, também perceptível o lugar de seus escravos dentro da família: compartilhavam, inclusive, o sobrenome. Impossível de momento, trazer outros tantos exemplos de famílias de elite com seus escravos, para demonstrar que se a escolha dos padrinhos dos escravos dessas famílias de elite não era um padrão, tampouco era exceção. Justifica-se afirmando-se que os livros de batismos da Vila de Rio Grande ainda estão em processo de transcrição e mais casos podem surgir ou mesmo outros comportamentos recorrentes. De todo o modo, afirma-se aqui que ao menos duas crianças filhas de escravos de Domingos de Lima Veiga – outro dos padrinhos dos netos de Furtado de Mendonça – foram batizados dentro dos mesmos moldes, com padrinhos escolhidos nessas mesmas famílias. Demonstrada através do exemplo das famílias de Furtado de Mendonça a “ciranda de compadrios” passível de acontecer nessa sociedade, torna-se a refletir sobre os elos e as decorrências morais e éticas desses elos existentes entre senhores e escravos firmados ao compadrio, decorrentes da contradição assinalada por Gudeman & Schwartz entre as instituições do batismo e da escravidão.

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VI. Corpo Cativo x Espírito Liberto O batismo é a libertação da alma. A escravidão torna homens cativos de outros homens. As duas instituições eram práticas dos habitantes do Rio Grande assim como de todo o Estado do Brasil. Discutido por Gudeman & Schwartz, o impedimento moral que pairava sobre um senhor/compadre que fizesse punir a seu escravo/compadre. Impedimento ou constrangimento advindo do elo que se gerava à Pia Batismal. Mas uma contradição dessas não poderia sobreviver por tanto tempo se a própria sociedade não tivesse meios de eludi-la dentro da própria regra estabelecida para este jogo de compadrios e almas. Ou como no ditado: “hecha la ley, hecha la trampa”. Para Gudeman (1971), o parentesco espiritual firmado no compadrio apresentava aspectos que o colocavam como superior ao parentesco consangüíneo. Para tanto, mostra as oposições entre o nascimento (nascer para este mundo) e o batismo (nascer para o mundo cristão). Como já dito, este autor demonstra que tudo o que está relacionado ao nascimento carnal de uma criança é introspectivo, interno à família, ao passo que o nascimento espiritual dela é exteriorizado, externado em cerimônias públicas. A cópula é restrita e compartilhada – assim se espera pelo bom costume cristão – apenas entre os pais que, inclusive, podem estar em pecado, caso não tenham se unido pelo laço do sagrado matrimônio. Já o nascimento espiritual, o batismo pelo qual a mácula do pecado é removida da alma do batizando, é público e comemorado. Há o regozijo de incluir mais um na cristandade e, por conseqüência, na vida social. Os pais dão aos filhos o ser. Os padrinhos dão aos afilhados o ser cristão, o ser social. No batismo, o apadrinhamento, ao contrário da paternidade carnal, não pode ser negado. O elo entre os participantes do batismo, por se dar na esfera sobrenatural, não pode ser revertido, ao contrário do que muito se observa, pais abandonarem seus filhos, negando-

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lhes a presença paterna e/ou materna. O fenômeno da exposição de crianças, em que pese todos os seus outros significados é, em síntese, o abandono de crianças. Esse abandono jamais pode ocorrer entre pais e filhos espirituais, pois suas almas estão vinculadas até o Dia de Juízo. O mesmo se verifica entre irmãos. Pode haver o ódio e, amiúde, crimes ocorrem nas famílias. Ainda que isso possa ocorrer entre os compadres, o elo não é quebrado, pois não são os seus corpos que são irmãos, e sim os seus espíritos. E esses, segundo os cristãos, têm vida eterna. Como decorrência desta oposição, Gudeman & Schwartz (1988: p. 43) observaram que os senhores não batizavam seus escravos. Seria incompatível, dada a ligação existente, que um senhor imputasse pena física a seu escravo. Observaram também que outros senhores ou parentes ocasionalmente batizavam os escravos. Afirma-se que “ocasionalmente” não é apropriado para os compadrios dos escravos da Vila do Rio Grande. Muitas vezes os filhos dos senhores ou mesmo a sua esposa serviam de padrinhos às crianças de seus escravos e, muito raramente, o senhor também servia de padrinho a seu próprio escravo. Entre os genros de Furtado de Mendonça observa-se a mesma ciranda de compadrios para os escravos e para os seus próprios filhos. Pensa-se aqui que, nos estudos já citados, pode haver uma aparente lassidão neste tipo de escolha devido à metodologia empregada na análise dos casos. Se não se investigam os laços parentais consangüíneos e de parentescos fictícios ou afins, fazendo o cruzamento dos dados obtidos para uma grande quantidade de agentes sociais e seus co-relacionados, pouco se pode afirmar acerca de serem ou não vinculadas a eles as pessoas que batizam seus escravos. Outra coisa que pode induzir a este engano é secionar a sociedade entre “livres” e “escravos”, na medida em que os estudiosos da família senhorial se atêm no núcleo livre e principal desta, e os que investigam as relações de compadrio dos escravos não adentram às relações semelhantes dos senhores. Assim, diz-se de escravos que têm compadrios no conjunto de escravos de outros senhores, que há nessa sociedade um

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espaço de sociabilidade para os cativos, que circulam, que estabelecem suas próprias relações com outros cativos. Afirma-se aqui que não somente podiam estabelecer suas próprias relações com outros cativos mas que também estas ocorriam com outros tantos setores da sociedade. Possivelmente reproduziam o “desenho” da malha de relações da família na qual estavam inseridos. Essa é uma hipótese que será testada oportunamente, com a conclusão da transcrição dos registros batismais e tabulação de seus dados, para verificar se o padrão da família de Furtado de Mendonça também ocorre em muitos outros lares. Tentando entender as relações subjacentes ao batismo, observa-se que elas são não individualizadas — já que a noção de indivíduo não pertence a essa sociedade —, mas são personalizadas. Se a esposa de alguém é madrinha, seu marido, se não compareceu à cerimônia na posição de padrinho, não teve nenhum vínculo instituído com a família carnal da criança nem com a própria. Se era ética e moralmente condenável um irmão espiritual colocar à venda o outro irmão ou, como colocam os autores acima citados, impossível mandar castigá-lo, não o seria para alguém que fosse pai ou casado com um destes irmãos espirituais, já que, por mais próximos que fossem, a relação era pessoal. Retornando à situação da família como incorporadora de todos os estratos sociais nela contidos, a família senhorial mantém um vínculo espiritual – que implica em lealdade, proteção e reciprocidade entre desiguais – através de seus outros parentes, de uma forma personalizada e não abrangente. Vejam-se os exemplos abaixo, no qual o padrinho de Ana é filho do proprietário, assim como a jovem madrinha de Inácio também é filha do proprietário, sem que isso esteja explícito nos documentos: Ana preta de nação Mina de idade pouco mais, ou menos de doze anos escrava de Antônio Simões (...). Foram Padrinhos Manuel Marques de Souza, e Ana de Azevedo mulher de Silvestre de Moura. Por verdade fiz este assento. O Vigário Manuel Francisco da Silva.(ADPRG 3º LBat, 17571759: fl. 20v) Inácio filho natural de Teodora preta solteira escrava de Manuel da

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Costa de Carvalho (...) Foram Padrinhos Inácio Francisco e Laureana solteira. Por verdade fiz este assento. O Vigário Manuel Francisco da Silva.(ADPRG, 4º LBat, 1759-1763: fl 55v)

Mas por ser a ligação personalizada, entre seus filhos e os escravos em questão, está redimido de culpa quando, em seu papel de senhor, o pater familias, castiga os seus escravos. Tanto quanto está redimido de culpa quando, para preservar o bem maior, ou seja, o funcionamento da própria família, pune fisicamente um filho seu. Ou um mestre castiga o seu aluno para afastá-lo do vício, impelindo-o, literalmente às pancadas, para o caminho da virtude. Preservam-se, assim, amarrando os laços espirituais desse todo familiar em outros membros da família – e nesta podem ser incluídos até mesmo os sócios e os amigos, muito mais aqueles que já foram vinculados a ela através de compadrios anteriores – e liberando o pater familias para o pleno exercício de seu patrio poder. Por outro lado, o que dizer dos batismos, ainda que raros, de crianças escravas apadrinhadas por seus senhores? Estes casos eram poucos, mas ocorriam na Vila do Rio Grande, como no exemplo abaixo: Joaquina filha legítima de Manuel, e de Luísa, pretos escravos do Ajudante João Gomes de Melo (...) Foram Padrinhos o Ajudante João Gomes de Melo e Josefa Maria da Conceição sua mulher. Por verdade fiz este assento. Vigário Manuel Francisco da Silva.

Indo pela mesma lógica, pensa-se numa forma de amenizar quaisquer contradições existentes entre a mão-de-obra escrava e o seu proprietário em uma unidade doméstica. Um registro desse tipo parece implicar na certeza de que a família da menina Joaquina – filha legítima, ou seja, de um casal de escravos com a união formalizada na Igreja – não seria desfeita e que a criança não seria vendida em separado de seus pais quanto tivesse idade para tanto. Gozaria de alguns privilégios e talvez até de uma alforria ou uma parcela, por mais ínfima que fosse, no testamento de seus padrinhos. Esses teriam uma afilhada, um membro próximo da família espiritual cristã e a eles devotado quando entrassem na velhice. Os

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estratos inferiores de uma família tão hierarquizada quanto a própria sociedade também tinham benefícios no estabelecimento desta relação. Os membros da família eram cristãos – inclusive seus escravos. Viviam de acordo com as regras da cristandade. Senão pelas regras formalizadas à tinta e ao papel, nas regras do “estilo e costume”, como dissera certa feita o vigário. A plasticidade de arranjos sociais que essa relação espiritual cristã permitia e que lançava vínculos estreitos a todos os âmbitos da vida social talvez ajude a explicar a total ausência de conflitos violentos na relação senhor-escravo na vila do Rio Grande entre os anos de 1738 e 1763. A opressão existia, a violência da escravidão era presente em toda a vila. Mas não foram encontrados registros de casos concretos de rebelião coletiva ou individual contra os próprios senhores, ficando estes casos de violência pessoal, quando muito, restritos a pessoas distanciadas da família proprietária de escravos e geralmente por brigas entre bêbados, dívidas ou passional. Um pouco mais freqüentes foram as fugas, cujo estudo também é dificultado pela já dita carência de fontes, desaparecidas no contexto da guerra. Ainda assim, não são tão numerosas que possam configurar uma estratégia de uso constante e reiterado pelos escravos da Vila. Tampouco, à exceção de uma fuga coletiva de índios, um prisioneiro e um escravo nos anos iniciais da formação do povoado, no qual foram ajudados por pessoa de boa situação social da Vila, não foram vistas iniciativas grupais de fuga, mas empreendimentos pessoais de uns poucos. Impregnar as escravarias e aos seus senhores com os ensinamentos católicos e em especial com a apreensão dos significados dos sagrados laços do compadrio, parece ter sido uma vacina, um tratamento preventivo contra a doença da rebelião e da rebeldia que podia contaminar as relativamente pequenas escravarias da Vila do Rio Grande. Também poderia contribuir na diminuição dos excessos senhoriais sobre seus escravos, reduzindo o grau de insatisfação e de violenta passionalidade de seus escravos.

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A inserção de escravos, índios, agregados e mais setores sociais de baixo estatuto no âmbito da família espiritual cristã, compartilhando da fé e dos auspícios de um mesmo clã, favorecia a todos na medida em que dava a cada um seu lugar no corpo social. Não dava espaço nem a brutos nem a divindades. Não restam dúvidas que alguns foram muito mais favorecidos que os outros nessa sorte de inserção. Mas esse era o parâmetro da organização da sociedade lusa, quer européia, quer em suas conquistas: a cada um de acordo com sua posição social, nem mais nem menos. Introjetar esses valores através da fé cristã foi obra de muito efeito! VII. Algumas Considerações Pretensão seria tentar, aqui, concluir alguma coisa. O estudo que vai por estas sendas recém se inicia. Deixam-se algumas outras questões em aberto, indicadas como rumos futuros da investigação. Uma delas, não poderia deixar sua falta: se foram detectadas percepções de diferenças de estatuto social entre os escravos de diferentes proprietários, deve-se tentar averiguar, também, as diferenças existentes, ou seja uma escala social, interna às escravarias de uma unidade doméstica. Não é impossível a existência de pessoas com um prestígio ou um grau maior de reconhecimento dentro deste estrato. Todavia, ainda não se pode obter instrumentos que o acusassem a partir da documentação parcialmente transcrita. Entretanto, algumas coisas já podem ser ditas. A principal delas é a ampliação do conceito de família para a vila do Rio Grande ao tempo de sua formação. Não pode ser vista como a família nuclear, nem como a família co-residente. Isso vai ao encontro do observado por Levi para a região Piemontesa (Levi, 2000: p. 121). Não pode também ser dita como composta de parentes consangüíneos e afins, somente. Os padrões de compadrio dos escravos de algumas famílias investigadas indicam que mesmo os cativos compartilhavam de comportamentos semelhantes na eleição de padrinhos e mesmo nos prenomes e na aquisição de sobrenomes. Mais do que um setor separado pela clivagem livre x escravo, os servos,

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como coloca Aristóteles, eram membros da família, do oikos grego. Em sua analogia, dizia: a alma governa o corpo, assim como ao servo o amo. (...) É evidente, portanto, que a obediência do corpo ao espírito, da parte afetiva à inteligência e à razão, é coisa útil e de acordo com a natureza. A igualdade ou direito de governar de cada qual, por sua vez, seria prejudicial a ambos. (Aristóteles, 2005: p.18)

O grande corpo familiar não podia prescindir de nenhum de seus membros, que trabalhavam em desejada, mas nem sempre obtida, harmonia. Dar ordens, assim como sujeitar-se a elas é bom para os componentes de um corpo assim como é salutar para o próprio corpo. Cada um de acordo com sua posição dentro do organismo, Entretanto, as mesmas instituições que estruturavam a sociedade e eram contraditórias entre si, deixavam brechas para que a contradição fosse aplacada. Fosse pelo disposto por Deus, fosse através do “estilo e costume”. Estes, como no caso de Felícia, apresentado ao início, muitas vezes sobrepujavam a própria lei. Então, encerra-se esta reflexão da mesma forma que ela iniciou, falando de alguns traços característicos dessa sociedade que devem ser levados em consideração; eis a observação de Clavero: “o anacronismo é o pecado do historiador” (Clavero, 1991: 20). Quando se analisa este povoado de fronteira, ao longo dos seus primeiros cinqüenta anos, há que se ter certeza de estar diante de uma sociedade que está impregnada pelas noções de reciprocidade e de eqüidade. Reciprocidade entre desiguais e eqüidade como base da justiça distributiva, aquela que apresenta o que é justo na desigualdade: a cada um o que lhe compete de acordo com seu estatuto social. Mais que isso seria o vício da prodigalidade, menos que isso, o vício da mesquinhez. A sociedade, assim como a família, nessa visão, era e tinha de ser composta por diferentes categorias de pessoas, pois assim, impregnada pela noção corporativa, não pode dispensar nenhuma de suas partes às quais competiam funções diferenciadas, mas essenciais para seu bom funcionamento. As famílias se formavam e existiam na interseção entre escravidão e liberdade, e não em sua secção entre os que são escravos e os que são livres. As

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famílias e a própria sociedade, considerada como um grande espaço de relacionamento das muitas famílias, tinham em seus fundamentos um pensamento de cunho religioso, que regrava não apenas as relações pessoais, mas o que poderia ser chamado de política e de economia. Estabeleciam-se relações que eram políticas e organizavam-se sobre as bases das famílias amplas. Organizavam-se de forma oikonomica, como quer Clavero (1991: p.161). Essa percepção pode, enfim, dar outro contorno aos estudos sobre povoados de fronteira no Estado do Brasil ao período colonial, no qual os fatores extra-econômicos não sejam assim, tão externos a esta oikonomia.

Abreviações usadas nesse capítulo: RAPM – Revista do Arquivo Público Mineiro AAHRS – Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul ADPRG – Arquivo da Diocese Pastoral de Rio Grande AHCMPA – Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre LBat – Livro de Batismo

Referências documentais e bibliográficas usadas nesse capítulo:

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Capítulo 5 Os meus, os teus e os nossos: a construção de um patrimônio imaterial na Vila do Rio Grande

O contexto da conquista e povoamento do Rio Grande de São Pedro, marcado pela alternância de períodos de guerra declarada e de frágil paz, dava como certo aos participantes do processo apenas a incerteza. Fossem vindos da Colônia do Sacramento, do restante do Estado do Brasil ou nas levas migratórias de ilhéus, indígenas, africanos, lusos, luso-americanos, quem quer que seja, todos experimentaram a situação de “recomeçar a vida” numa situação que lhes era, no mínimo parcialmente, estranha. As famílias que migraram de Sacramento para iniciar o povoado do Rio Grande vivenciaram os ataques em tempos de paz e o inesperado cerco que lhes fizeram os espanhóis ainda naquela praça. Muito provavelmente em sua vida em Sacramento conseguiram desenvolver algumas atividades de comércio e negócios e iniciar produções agro-pecuárias no tempo decorrido desde a partida de Trás-os-Montes até os ataques que isolaram a Colônia do Sacramento do restante do Estado do Brasil por via terrestre e via marítima. Entretanto, a guerra lhes tirou tudo o que haviam obtido. Em sua nova migração, dessa vez para a barra da Lagoa dos Patos, provavelmente só levaram o que coube em alguns parcos baús e aquilo que não pode ser contido em recipientes: suas relações

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familiares, de amizade, de compadrio, do trato com outras pessoas. As famílias derivadas de Nicolau de Souza Fernando e Antônio de Souza Fernando e suas respectivas esposas, trasmontanos que foram fazer o povoamento da Colônia do Sacramento, são exemplares nesse sentido. Ainda que representem apenas uma parcela da população que chegou para fazer o povoamento – aqueles que migraram para Sacramento e fizeram nova migração para a Vila de Rio Grande – certos traços que serão aqui destacados valem para o restante dos habitantes. Muitas dessas práticas poderão ser percebidas mais adiante, quando o quando será analisado o comportamento à pia batismal de outras famílias, com origens bastante diferentes das que derivaram dos Souza Fernando. Outras se mostrarão diferenciadas, o que denota a existência de opções para a realização das alianças e para a geração dos elos sagrados que, para além da amizade, uniam pessoas e famílias sob a égide do sal, do óleo, da água benta e da benção de Deus Pai e da Madre Igreja.

I. As famílias Souza Fernando No ano de 1716, a Colônia do Sacramento foi devolvida à posse portuguesa. Após ter sido tomada pelos espanhóis em 1705, Sacramento foi evacuada pelos portugueses, cuja maioria dirigiu-se para o Rio de Janeiro, mas não exclusivamente. Parte dos evadidos retornou à Península Ibérica, outros foram para a região das Minas. Com a devolução de Sacramento, a Coroa promoveu mais um de seus intentos de migração de famílias, coletiva e direcionada, como já havia feito outras tantas vezes na colonização dos territórios de seu vasto Império ultramarino. Houve a convocação de colonos do norte de Portugal que tinha terras pouco férteis. Também o sistema de herança da nobreza que privilegiava os primogênitos colocava sempre a população por vivenciar situações de carência de alimentos e outros problemas correlatos à insuficiência no abastecimento. Da região de Trás-os-Montes, em 1718, chegaram partidas de imigrantes (Relatório do Conselheiro

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Antônio Rodrigues da Costa sobre o transporte dos Casais de Trás-os-Montes..., In: Cortesão, 1951: pp. 413-415). Na lista em que estão relacionados os chefes de famílias que atenderam a convocação, constam Nicolau de Souza e Antônio de Souza (Relação dos casais que foram para a Colônia em 1718. In: Monteiro, 1937: pp.68-70). Seus nomes completos: Nicolau de Souza Fernando e Antônio de Souza Fernando. Estes dois homens, tio e sobrinho, migraram com suas famílias, já que esse era o intento para o extremo-sul do Estado do Brasil: ocupar e povoar o território com famílias, naquilo que Jaime Cortesão explicitaria como sendo a “Política dos Casais” da Coroa portuguesa. Segundo esta listagem, Nicolau de Souza Fernando teria embarcado com mais seis pessoas. Uma delas provavelmente sua esposa, Ana Marques, de quem era primo em terceiro grau (Rheigantz, Título Nicolau de Souza Fernando, 1979: p. 406). A família de Nicolau, portanto, compunha-se do casal e alguns dos seus filhos. Todos esses nascidos no Valongo (Rheigantz, Título Nicolau de Souza Fernando, 1979: p. 406-487). Os anos que antecederam a chegada desta família não devem ter sido fáceis. Dona Ana Marques, de inconteste fecundidade, já que trouxera ao mundo no mínimo dez rebentos, viu cinco deles partirem desta vida. Crisanto, nascido em 1698; Romão, em 1700; Anastácia, em 1702; Josefa, em 1705 e Beatriz, em 1707. Faleceram ainda no Valongo, provavelmente quatro deles na tenra infância, haja vista não lhes ter sido agregado um sobrenome qualquer e apenas Josefa era Josefa Marques (Rheigantz, Título Nicolau de Souza Fernando, 1979: p. 470). As três filhas mais velhas dessa família, em ordem, Maria Marques de Souza, Ana Marques, e Teresa Marques, contraíram matrimônio no Quartel da Torre da Marca, enquanto aguardavam o embarque para o Brasil. Provavelmente, seus casamentos haviam sido arranjados há mais tempo, pois Maria Marques e Teresa Marques foram tomadas

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como esposas por dois irmãos, sendo José de Azevedo Barbosa o marido de Maria e Francisco de Azevedo Barbosa o de Teresa. Não se exclui a possibilidade de ter sido o marido de Ana Marques também eleito dentro da sua famílias. Chamava-se Francisco de Souza Soares, tinha patente de alferes, e era filho de Francisco de Souza e Maria de Souza Barbosa (Rheigantz, Título Nicolau de Souza Fernando, 1979: p. 406-487). A descendência desses três casais também está vinculada à conquista e manutenção dos territórios do Continente do Rio Grande de São Pedro, tanto através de suas trajetórias de militares e homens que exerceram cargos da Coroa como também através das famílias com as quais teceram alianças matrimoniais ou ao compadrio. Uma vez que foram identificados esses três casais que também migraram para Sacramento em uma mesma partida, decorre uma discrepância entre o número de membros da família de Nicolau de Souza Fernando listados na Relação dos Casais e o número de filhos que co-habitavam com ele. Os genros compõe casais aparte do encabeçado por Nicolau. José de Azevedo Barbosa e Francisco de Souza Soares passaram à Colônia como “casal” composto de duas pessoas – muito provavelmente eles próprios e suas esposas – e Francisco de Azevedo Barbosa passou como “casal” com três pessoas em sua comitiva. Interessante notar que nesse caso, as filhas casadas de Nicolau de Souza Fernando passam a integrar outro casal. Muito provavelmente, não deixaram de integrar a “família’ encabeçada por seu pai, haja vista as ligações reiteradas ao compadrio e em casamentos intra-familiares que ainda teriam lugar na Vila do Rio Grande. Entretanto, como era costume, os editais de convocação de migrantes ofereciam auxílio, sementes, insumos, pagamentos por casal. Nesse momento, parece que seria mais benéfico, inclusive, à família extensa, subpartir-se em vários casais, multiplicando o número de núcleos ou “casais” a serem favorecidos pelos incentivos prometidos. Dessa forma, Francisco de Azevedo, genro de Nicolau, foi beneficiado, em 1718,

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com uma quota sementes de trigo que vieram de Portugal. Recebendo dois alqueires e meio de sementes, colheu dois alqueires, com a colheita prejudicada como foram as de todos os colonos, pois plantaram as sementes fora da época propícia, além de terem esses grãos sofrido deterioração no transporte. Nicolau de Souza Fernando, por sua vez, obteve sementes em Buenos Aires, das quais com um alqueire comprado, colheu dois, assim como seu genro José de Azevedo que, com sementes obtidas do mesmo modo, também plantou um e colheu dois. Apesar de terem uma colheita melhor, não era ainda a desejada. Os colonos, talvez como prenúncio dos prejuízos que teriam com as rivalidades entre Portugal e Espanha nesse Brasil meridional, foram sabotados pelos Espanhóis. Os grãos do trigo adquiridos em Buenos Aires foram escaldados em água quente antes de lhes serem entregues. Assim, cozidas, não germinaram como era o esperado. (AHU - Lista do pão que receberam os casais este ano passado de 1718 das sementes que vieram de Portugal e se repartiram conforme Sua Majestade ordenou... -1719). Não foi fácil começar a vida em Sacramento. Continuando o levantamento dos benefícios recebidos que foi possível fazer, temse que Francisco de Azevedo obteve um boi manso, Nicolau de Souza Fernando e seu sobrinho Antônio de Souza Fernando, assim como o alferes Francisco de Souza, receberam, cada um, um boi brabo dado a amansar para posteriormente servirem-se deles (AHU - Listas dos bois que se deram aos casais - 1719). Assim, se continuassem “oficialmente” agrupados como membros de um único casal, os insumos recebidos teriam sido aproximadamente um terço do que efetivamente lhes foi dado. Considera-se, portanto, a aceitação dessa condição de aparente fracionamento da família como uma estratégia para a obtenção de recursos já que, como será visto adiante, os Souza Fernando mantiveram estreitas ligações e reiteradas alianças registradas nos livros paroquiais da Vila do Rio Grande.

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Segundo Fredrik Barth, ao falar sobre questões acerca do lugar dos valores, das suas utilizações sociais e suas variações, diz que estas se refletem no comportamento das pessoas e podem mostrar os fatores que geraram essas alterações (Barth, 1981b). Tais variações são fruto de escolhas racionais, todavia restritas pelos valores e normas sociais, de forma que, ainda que com um variado leque de opções para a ação, ele não é ilimitado nem infinito. Ainda segundo um alerta bem-humorado deste antropólogo, quem vive em sociedade é capaz de dizer o quanto essa vida pode ser impraticável (Barth, 1981a: p.14). Esse é um dos objetivos desse trabalho: tentar ver, por mínimas que sejam, as variações nos comportamentos sociais das famílias e grupos sociais com o intuito de perceber quais os ganhos obtidos ou almejados e quais as estratégias sociais e familiares que subjazem às escolhas que direcionaram suas ações. Junto com isso, tentar ver o quanto o desenvolvimento desses eventos tornaram mais ou menos “praticável” a vida na Vila do Rio Grande. Uma outra observação que pode ser feita é que a desinência “casal” inclui o casal propriamente dito e seus filhos solteiros, talvez um ou outro agregado, um aparentado, um afilhado ou sobrinho ou mesmo um dos prometidos às filhas solteiras. Isso dá a impressão de que as pessoas que compõe a comitiva do “casal” são aquelas pela qual o cabeça desse casal assumiu a responsabilidade durante o transporte. De outro modo, a “família” pode configurar-se de um modo bem mais amplo, incluindo nela outras formas de parentesco e ligações não tão visíveis quanto as dadas pelo nascimento. Podem, inclusive, dar-se a perceber quando não se está de posse dos registros eclesiásticos. Esses, muitas vezes, ou não puderam ser consultados ou não sobreviveram ao tempo. Os nomes, conforme já foi dito, não mantinham uma lógica de composição e transmissão semelhante a que hoje conhecemos. A falta de apreensão dessa lógica que lhes é própria, em grande medida, anuvia a percepção de suas sutilezas e dessa sua lógica

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própria, dando a parecer que sempre falta uma peça do quebra-cabeças quando se tenta montar o quadro mais completo. Um pouco pelo que é peculiar ao período. Outro pouco pela impossibilidade de contar com tais registros. De certo, tem-se que além dos filhos solteiros de Nicolau de Souza Fernando, outras pessoas, não sabe-se quem, compunham sua comitiva de “casal”. Dos descendentes de Nicolau de Souza Fernando, os dois filhos mais novos tiveram grande importância no período que se seguiu à fundação da Vila do Rio Grande. São eles o Reverendo Padre Manuel Marques de Souza e sua irmã caçula, Maria Quitéria Marques de Souza. Desta última, a descendência foi vasta e reiterou a importância da família nas constantes guerras de conquista e reconquista dos territórios, como se verá no próximo capítulo. Já o casal encabeçado por Antônio de Souza Fernando passou à Colônia, segundo a listagem, com quatro pessoas. Uma, certamente sua esposa, Apolônia de Oliveira, mas os outros dois membros deste “casal” permanecem uma incógnita: segundo Rheingantz, todos os seus filhos nasceram em Sacramento. Além disso, Antônio, a exemplo de suas primas filhas de Nicolau, também contraiu matrimônio no período que antecedeu o embarque. Apesar de ser um casal novo, existe a possibilidade de Dona Antônia já haver concebido alguma criança fora do casamento. Entretanto, a data de nascimento que se possui para sua filha mais velha é o ano de 1718, já na Nova Colônia do Sacramento (Rheingantz - Título Antônio de Souza Fernando - 1979: p. 370). Fica, então, o mistério dos acompanhantes do casal que não eram seus filhos, ainda por resolver. Talvez a forma de solucioná-lo não esteja longe, já que foram localizados alguns livros de registros batismais da Colônia do Sacramento relativos a este período no Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro que, infelizmente, estavam com seu acesso vetado à pesquisa quando do período da coleta de dado para este estudo, permanecendo essa situação, segundo consta, até o presente.

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Após uma estada de aproximadamente dezoito anos em Sacramento, da qual pouco se têm notícia, os novos ataques e o conseqüente cerco promovidos pelos castelhanos roubaram-lhes a tranqüilidade. Nos tempos que duraram de 1735 a 1737 experimentaram, sem sombra de dúvidas, a carência de alimentos e mais gêneros de abastecimento que lhes impuseram os espanhóis. Como alguns outros moradores daquela praça, Antônio de Souza Fernando, juntamente com esposa, filhos e genros, passou ao novo povoado que se fundava às margens do Canal da Lagoa dos Patos. Nesse tempo, seis de seus filhos já haviam nascido junto ao Rio da Prata, a filha mais velha, Maria de Oliveira, já havia casado na própria Colônia no ano de 1734, com João Garcia Dutra, natural da Ilha do Faial (Rheingantz - Título Antônio de Souza Fernando - 1979: p. 370). Apenas sua filha mais nova, Felícia Maria de Oliveira, nasceu em Rio Grande, no mesmo ano em que chegava o primeiro pároco à localidade. Por falta de acesso aos registros eclesiásticos da Colônia do Sacramento, pouco se pode dizer de como estabeleceram suas relações sociais naquela localidade. Entretanto, no ano de 1738, com o batismo de sua primeira filha, pode-se dizer alguma coisa de como procediam em seu novo local de moradia. Felícia foi batizada no dia 29 de dezembro de 1738 e teve como padrinho Francisco de Barbuda e Maldonado, solteiro cuja família se estende por vários rincões de Portugal, e madrinha Maria de Oliveira, filha mais velha de Antônio de Souza (ADPRG - 1LBat-RG - 1738-1753 - Registro de Batismo Felícia, filha de Antônio de Souza Fernando, 29/12//1738 ). Anotação do pároco indica que todos os partícipes do ato do batismo eram moradores do presídio que se erigira. Essa não foi, entretanto, a primeira aparição dos Souza Fernando à pia batismal. O Segundo registro de batismo efetuado no Primeiro Livro de Batismos da Vila do Rio Grande traz como padrinhos o Capitão João Caetano de Barros e Clara Maria de Oliveira, outra das filhas solteiras de Antônio de Souza Fernando (ADPRG - 1LBat-RG - 1738-

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1753- Registro de Batismo de Antônio, filho de João Antunes da Porciúncula, 03/07/1738). O batizando, o menino Antônio, filho de Antônio Antunes da Porciúncula e Antônia Pinto, guarda traços em comum com a menina Felícia. A primeira observação a ser feita sobre os padrinhos: tanto o capitão João Caetano de Barros quanto Francisco de Barbuda e Maldonado estavam vinculados à Colônia do Sacramento. O primeiro, tendo servido lá por mais tempo, possivelmente desde os anos que cercaram a sua devolução em 1716, e o segundo, chegado para um posto de comando da Artilharia em 1737, durante o grande cerco (ABN - Carta de Gomes Freire de Andrade, para o Governador da Colônia 20/03/1737, 1928: 342-342). Ambos homens de patente, ambos, portanto, membros destacados do corpo da sociedade como um todo, composto majoritariamente por agricultores e camponeses como, segundo a Relação dos Casais, também eram os Souza Fernando: Manda Vossa Majestade que se povoe a nova Colônia para a qual vão 60 casais de gente Transmontana que só entendem de Agricultura, de que aquelas tão dilatadas campinas necessitam, pelos grandes interesses que prometem à sua Real Fazenda: como também não só parece conveniente mas preciso irem algumas pessoas práticas, e de inteligência para reduzirem a boa forma o que pertencer à conservação dos Povoadores. (Relação dos casais que foram para a Colônia em 1728. In: Monteiro, 1937:p. 70)

A segunda observação é sobre as famílias dos batizandos: tanto João Antunes da Porciúncula como Antônio de Souza Fernandes foram moradores da Colônia do Sacramento. João Antunes da Porciúncula era natural do termo de Santarém, em Portugal. Casou-se na Colônia do Sacramento com Antônia Pinto, natural de Salamanca, em 1727 e, no mínimo, seus dois primeiros filhos nasceram lá (Rheingantz - Título João Antunes da Porciúncula, 1979: p. 11-12). Eram, portanto, veteranos em ocupação de territórios. A primeira experiência foi a que se encerrara na Colônia do Sacramento e a segunda ,a que se iniciava em Rio Grande.

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As famílias migradas provavelmente compartilharam as mesmas desventuras: perder tudo, terras, lavouras, animais, benfeitorias. Algumas delas perderam na guerra filhos, pais e esposos. Na retirada da população civil da Colônia do Sacramento sob fortes ataques, provavelmente não puderam levar a maior parte dos bens, por terem migrado sob a insígnia da guerra. Entretanto, observam-se, comparando e tecendo as ligações contidas nessas duas atas de batismo que uma sorte de bens que não são transportados em carretas e navios, tampouco são acomodados em caixas, barris ou baús, foram levados junto para a nova moradia: as relações parentais, de amizade, de parentesco real ou fictício também foram trazidas desde a Colônia do Sacramento até o Rio Grande. Novamente, lamenta-se aqui não ter sido possível rastrear essas ligações visíveis ao compadrio na Colônia do Sacramento. Não seria de espantar se Antunes da Porciúncula e Souza Fernando ou membros de suas famílias já houvessem compartilhado o espaço no batistério da Igreja da praça da Colônia. Na falta dessa documentação apenas pode-se deixar aqui indicado para pesquisas futuras, quando alguém tiver condições de investigar essa reiteração em Rio Grande, dos laços já forjados na Colônia do Sacramento. Sempre que possível e observável na documentação que se tem disponível, esse fato será alertado. Dos descendentes de Nicolau e Antônio de Souza Fernando elegeram-se para análise neste estudo, respectivamente, Maria Quitéria Marques de Souza e Clara Maria de Oliveira. A primeira sendo a filha caçula de Nicolau de Souza Fernando e a outra a secundogênita de Antônio de Souza Fernando. A escolha dessas duas descendências se fez por vário motivos. O principal deles é que, devido a importância que assumiram seus filhos na manutenção dos territórios sulinos para a Coroa portuguesa, as trajetórias de seus membros são muito bem documentadas, muito mais se comparados com as pessoas “comuns” da Vila do Rio Grande, cujas seqüências de suas vidas se perdem num emaranhado de homônimos e na carência de dados mais significativos que permitam uma

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identificação destes agentes sociais com muitas garantias de sua correção e meticulosidade. O segundo motivo, talvez não menos importante, é que, preservando as características já observadas na geração anterior e na mesma geração dessas mulheres, tanto elas quanto seus descendentes mantiveram a cada geração certas práticas, que são visíveis em menor intensidade em outras famílias moradoras da localidade. A saber, dessas práticas: a cada geração “reservam” ao menos um dos filhos para o casamento com parentes – tal como ocorreram nos casamentos de Nicolau de Souza Fernando, Maria Marques de Souza e Teresa Marques – reiterando alianças anteriores ou tecendo novas alianças com novas famílias. Também são perceptíveis, nas escolhas dos compadres, as práticas familiares e da sociedade como um todo: chamar de tempos em tempos algum parente para o compadrio, reiterando na pia batismal as alianças pregressas contraídas ao matrimônio, ao mesmo tempo que convocam, também, companheiros de armas, autoridades locais ou do Império. Uma outra característica importante dessas duas linhas de descendências dos Souza Fernando é que, por estarem entre os “primeiros moradores” ou “principais moradores” do Continente do Rio Grande de São Pedro, possuem uma significativa quantidade de escravos de diferentes origens. O adjetivo “significativo” aqui é usado em relação às posses de escravos visíveis nos registros da localidade, sendo aproximadamente quinze cativos o número de escravos estimado por Maria Luiza Bertulini Queiroz para o maior proprietário da Vila no período sob análise. Se comparado com outras regiões da colônia, dedicados ao plantio e fabrico do açúcar, por exemplo, essa quantia é ínfima1. Entretanto, quando se analisa as formas e processos de acumulação de bens e prestígio em

1

Cf. SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhias das Letras, 1988; SCHWARTZ, Stuart. "O Brasil colonial c. 1580-1750: as grandes lavouras e as perifierias". In: Leslie (org.) BETHELL. História da América Latina. A América Latina Colonial. São Paulo /Brasília: Edusp/Fundação Alexandre de Gusmão, 1999.

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uma situação peculiar de fronteira entre as duas nações ibéricas na região sulina, não cabe, ao menos nesse momento, a comparação com economias distintas em territórios de posse mais antiga e consolidada. Mais produtivo seria analisar as possibilidades e opções de pessoas que vivenciaram uma mesma realidade, assinalando o que as aproximavam em suas trajetórias e o que as distanciavam na escala social que eles próprios estabeleciam como uma das formas de dar sentido às suas vidas. As famílias derivadas dos Souza Fernando possuíam, portanto, sob sua influência e em contato consigo, gente de diferentes estatutos e qualidades. Isso faz com que seja visto, através dessas duas linhas de descendência, um esboço da própria sociedade. Essa era, ao mesmo tempo, diversificada quanto à classificação e à qualificação sociais e econômicas. Era organizada a partir de critérios inerentes a ela, tendo a hierarquia estabelecida ou por estabelecer em um território ainda sob conquista, um de seus pilares. Ainda que estejam as relações aqui sob análise, num primeiro momento, separadas por categorias que foram definidas para esse trabalho, tais como os batismos dos filhos do casal, os afilhados dos membros das famílias, os compadrios dos escravos, etc. é importante frisar que são entendidas aqui estas relações como sendo um continuum e que essa quebra nos níveis de articulação entre elas é meramente feita com o intuito de facilitar uma primeira análise. Marcando e salientando a artificialidade deste recurso, fica, ao menos nesse momento, redimida a culpa por qualquer anacronismo decorrente dessas classificações absolutamente insatisfatórias para dar conta do objeto em questão. Tendo em vista o aporte teórico que será melhor explicitado quando da análise das famílias como um todo, terá lugar um aprimoramento na conceituação que tenta dar conta de fazer entender família, acrescentando como partícipes dela também os agregados e os servis, gente de posição subalterna e muito inferior à da parentela consangüínea e afim dos Souza Fernando.

267 Ilustração 8 – Famílias dos Casais Nicolau de Souza Fernando e Antônio de Souza Fernando.

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Posteriormente, então, serão reagrupados o que se considera aqui inseparável para uma análise mais completa: os membros de uma família incluindo os escravos e os agregados, se forem visíveis aos registros. Desse momento em diante, a seção artificial será substituída por uma nova maneira de se verificar o que é comum a uma família, com todos os setores e graus hierárquicos que existem internos a ela. Passemos, pois, a uma olhada nos compadrios estabelecidos para a família de Maria Quitéria Marques de Souza, filha de Nicolau de Souza Fernando, incluindo filhos, marido.

1.1 Antônio Simões e Maria Quitéria Quadro VI –Filhos de Maria Quitéria Marques de Souza e Antônio Simões Filho Teodósia Maria de Jesus José Ana Marques Vitorina Bernardo Marques Luís Francisco Marques Fernandes Manuel Marques de Souza Escolástica Marques de Souza Feliciano Marques de Souza Joaquina Marques de Souza Maria Joaquina Marques de Souza

Ano Nasc 1730 1733 1735 1737 1740 1743 1746 1748 1750 1752

Local Nasc Sacramento Sacramento Sacramento Rio Grande 2 Rio Grande Rio Grande Rio Grande Rio Grande Rio Grande Rio Grande

Data Óbt

Local Óbt

1760 1749

Sacramento Sacramento

1822

Rio de Janeiro

1808

Porto Alegre

FONTE: (ADPRG - 1LBat-RG, 1738-1753; Rheingantz - Título Nicolau de Souza Fernando - 1979: pp. 406-487)

Conforme já dito, os registros batismais da Colônia do Sacramento não estão disponíveis para a consulta de pesquisadores, ficando esta lastimável lacuna insanável até mudança de orientação do Arquivo da Diocese do Rio de Janeiro, onde tais livros se encontram. Seria extremamente importante poder seguir toda a descendência de Antônio 2

Bernardo Marques, segundo Rheingantz, nasceu em Rio Grande cf. RHEINGANTZ, Carlos G. "Povoamento do Rio Grande de São Pedro. A contribuição da Colônia do Sacramento". In: INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO / INSTITUTO DE GEOGRAFIA E HISTÓRIA MILITAR DO BRASIL. Anais do Simpósio Comemorativo do Bicentenário da Restauração do Rio Grande (17761976). Rio de Janeiro: IHGB/IGHMB, 1979. . Entretanto, a data de seu nascimento antecede a chegada de pároco ao local. Na falta deste registro de nascimento, pensa-se em duas possibilidades: houve engano na construção desta genealogia por parte de Rheingantz ou a criança foi batizada na Colônia do Sacramento, podendo ter ficado aos cuidados de seus avós ou tios que lá residiam.

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Simões e Maria Quitéria, assim como conhecer os padrinhos dos seus primeiros filhos, com o intuito de ver quanto dessas relações que antecederam a sua chegada em Rio Grande foram renovadas na Vila. Deixando de lado o que é impossível fazer e indo para o que os registros da Diocese do Rio Grande permitem, olhemos, pois, um segundo quadro, composto dos filhos de Antônio Simões e Maria Quitéria que nasceram e foram batizados em Rio Grande. Quadro VII – Batismos dos Filhos de Maria Quitéria Marques de Souza e Antônio Simões em Rio Grande Criança Luís Francisco Manuel Escolástica Feliciano Joaquina Maria

Padrinho José Carlos da Silva Francisco Barreto Pereira Pinto Francisco Pinto do Rego Domingos Martins João Gomes de Melo José da Silveira

Tit. ou pat. Madrinha Vigário Eufrásia Maria de São Jose Tenente Catarina de Lima Ten-Coronel Maria Josefa da Conceição Feliciana Domingues Ajudante Teodósia Marques Capitão Brigida Antonia de Oliveira

data 04-10-1740 07-03-1743 11-01-1745 03-06-1748 25-07-1750 11-03-1752

FONTE: (ADPRG - 1LBat-RG, 1738-1753)

Pois bem, com exceção de Feliciano, cujo registro não traz nenhum título associado ao nome, todos os demais padrinhos são gente com algum título ou patente, o que os distancia do corpo das pessoas comuns da sociedade. É necessário afirmar aqui que Domingos Martins não possui título apenas nesta ata, já que existem outras que lhe atribuem a patente de capitão (p. ex. ADPRG - 1LBat-RG, Registro de Batismo de Maria, filha do soldado dragão Francisco da Silva, 17/02/1752). Portanto, todos os seis padrinhos das crianças do casal Antônio Simões e Maria Quitéria possuem alguma distinção social. Falemos mais um pouco sobre eles. José Carlos da Silva foi o primeiro vigário da localidade de Rio Grande. O último registro batismal assinado por ele, em Rio Grande, data de 18 de abril de 1741. Em dezembro de 1750 estava na localidade de Viamão, de onde também foi pároco por muitos anos. A Relação de moradores que tem campos e animais neste Continente 1784-1785

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(AHRS – cód. F1198 A e B) indica que o Pe. José Carlos da Silva foi também proprietário de terras; vendeu uma porção de três léguas de largo por uma de comprido que tinha em sociedade com o capitão Antônio Teixeira da Cunha para o também padre João Diniz Alves de Lima. No tempo em que foi batizada a menina, o Padre José Carlos da Silva era a autoridade eclesiástica máxima da localidade, responsável pelas ovelhas do Senhor em Rio Grande. O batismo de Manuel Marques de Souza é um tanto atípico. O menino, provavelmente por ter passado por perigo de morte após o nascimento, foi batizado em casa por necessidade. Manuel Marques de Souza é um dos raros casos em que a criança tendo sido batizada em situação de emergência, recebeu padrinhos. Casos como esse e suas decorrências serão analisados nos próximos capítulos. A preocupação principal das autoridades eclesiásticas era a de que não ficasse sem batismo qualquer criança que viesse a nascer, ou mesmo se ...perigarem as crianças, antes de acabarem de sair do ventre de suas mães, mandamos às parteiras, que aparecendo a cabeça ou outra alguma parte da criança, posto que seja mão, ou pé, ou dedo, quando tal perigo houver, a batizem na parte que aparecer... (Da Vide, 1707, Livro Primeiro, Título XIII, § 44)

A falta do batismo as condenaria a danação eterna. Provavelmente a responsabilidade por omissão de batismo a uma criança fosse bastante pesada, assim como o destino da alma do infante. A tal ponto de, normativamente, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (Da Vide, 1707) estabelecerem que a pessoa que ministrava esse Sacramento não necessitava ser um cura ordenado ou menos ainda, não necessitava nem ser cristã, podendo, inclusive, incluir os antigos praticantes da Santa Fé Católica que foram punidos com a excomunhão: ...nem por isso se deixa de se poder administrar licitamente fora da Igreja em qualquer lugar, e por efusão ou aspersão, e por qualquer pessoa nos casos de necessidade, e todas as vezes que houver justa, e racionável

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causa, que obrigue a que assim se faça: como são, se alguma criança, ou adulto estiver em perigo, antes de poder receber o Batismo na Igreja, pode, e deve ser batizado fora dela, em qualquer lugar, por efusão, ou aspersão, e por qualquer pessoa, posto que seja leigo, ou excomungado, herege, ou infiel, tendo intenção de batizar, como manda a Santa Madre Igreja. E posto que o Batismo feito por qualquer das ditas pessoas fica valioso... (Da Vide, 1707, Livro Primeiro, Título XIII, § 42)

Um batismo feito nessas circunstâncias especiais, ainda que válido, não tem os mesmos elementos de um batismo efetuado nas condições normais. Rezam as Constituições Primeiras que ao batizando não serão conferidos padrinhos, supondo-se ser essa uma das atribuições do pároco como representante máximo de Deus em sua paróquia. O batismo procedido em casa, em situação de emergência, não consagraria padrinhos à criança e, para que padrinhos tivesse, a criança deveria ser exorcizada desse batismo emergencial e passar por novo ritual na Igreja, quando então lhe seria conferidos padrinhos pelo pároco. Assim como é raro o caso de uma criança batizada em situação de emergência ter padrinhos, é inexistente qualquer ata de batismo nos quatro primeiros livros de Rio Grande que revele haver sido feito o exorcismo do ritual caseiro. Entretanto, anotado o batismo de Manuel como sendo emergencial, ainda ali são visíveis padrinho e madrinha. Seria apenas um fato curioso se a repetição não tornasse visível um certo padrão: as poucas crianças que foram batizadas em casa e tiveram padrinhos pertenciam aos estratos sociais mais elevados da localidade, como no exemplo no capítulo anterior, no batismo de Nicolau, filho de Mateus Inácio da Silveira. De algum modo, a posição social das famílias das crianças batizadas em situação de emergência poderia possibilitar-lhes a designação de um padrinho, ou seja de um pai e uma família espiritual, não sendo o mesmo válido para as crianças nascidas em famílias de condição inferior. O que era de extrema raridade para estas não era exatamente uma exceção nas famílias mais bem situadas.

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Francisco Barreto Pereira Pinto, o padrinho escolhido para o menino Manuel, era natural de Portugal e, ao tempo do batismo, tinha patente de tenente de Dragões do Regimento das Minas Gerais, tendo participando da fundação do Presídio na expedição de José da Silva Pais. Chegara a Rio Grande possivelmente no mesmo período em que chegavam as famílias evadidas de Sacramento. Não é impossível que tenha estado lá anteriormente, já que muitos dos oficiais militares que se estabeleceram em Rio Grande faziam parte das forças dos terços que fizeram reforço à praça sob ataque. Em 1750 foi promovido a Capitão e em 1755 foi nomeado Sargento-mor do Regimento de Dragões (Queiroz, 1987: p.98). Supõe-se ter alguns conhecimentos de engenharia, por também ter sido designado como “ajudante” em alguns documentos, desinência esta quase sempre relativa a pessoas com certo grau de estudo técnico. Outra demonstração de boa situação social da família do padrinho de Manuel é o título de Dona associado ao nome de sua esposa, Francisca Veloso. As relações de compadrio da família de Francisco Barreto Pereira Pinto com os Souza Fernando não se extinguiram no batismo de Manuel. Alguns meses após, Dona Francisca Veloso foi convidada para madrinha de uma prima de Manuel, a menina Felícia, neta de Antônio de Souza Fernando, também batizada em casa por necessidade e também teve padrinhos atribuídos (ADPRG - 1LBat-RG - 1738-1753 - Registro de Batismo de Felícia, filha de Sebastião Gomes de Carvalho, 23/12/1743 ). Segundo Queiroz, Francisco Barreto situava-se na segunda faixa de maiores proprietários de escravos da Vila de Rio Grande antes da tomada pelos espanhóis, detendo entre oito e dez cativos (Queiroz, 1987: p. 98). Após a invasão da Vila, entre setembro de 1763 e junho de 1764, exerceu interinamente o cargo de governador do Rio Grande de São Pedro. Não foi, portanto, uma das “pessoas comuns” da localidade.

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De Francisco Pinto do Rego, padrinho de Escolástica, além da patente de coronel, pouco é possível saber através dos registros de Rio Grande. Francisco Pinto do Rego não compareceu à cerimônia batismal de Escolástica, fazendo-se representar através de procurador. Não foi morador da localidade e tampouco manteve maiores vínculos visíveis através dos registros eclesiásticos. Entretanto, não foi difícil localizá-lo em outra sorte de fontes primárias ou secundárias através dos procedimentos de buscas onomásticas mais simples: Francisco Pinto do Rego era neto do antigo Capitão-mor da Capitania de São Vicente, Diogo Pinto do Rego, cuja indicação para o cargo foi feita e aprovada pelo Conselho Ultramarino, e nomeado pelo Rei como tal em 1678. Há uma grande possibilidade de Francisco Pinto do Rego ter estado na Colônia do Sacramento à época da chegada dos imigrantes de Trás-os-Montes, ainda que não se tenha obtido nenhuma informação mais sólida quanto a isso. Entretanto, alguma ligações familiares podem ser identificadas entre Francisco Pinto do Rego e os Souza Fernando, através de um dos muitos braços que essa família estendia na Colônia. Voltando à Ilustração I, posta acima, visualiza-se na descendência de Antônio de Souza Fernando o casamento entre Clara Maria de Oliveira e o capitão Francisco Pinto Bandeira, cuja ascendência paterna é oriunda da Laguna, por sua vez, fundada pelo capitão Francisco de Brito Peixoto, de quem já se falou aqui, e avô materno de Pinto Bandeira (veja-se a Ilustração II, posta adiante juntamente com a análise dos compadrios do casal Francisco Pinto Bandeira e Clara Maria de Oliveira). Francisco de Brito Peixoto, nesse emaranhado de parentescos afins e consangüíneos que uniam os que passaram por Sacramento e Laguna, era irmão da mãe de Francisco Pinto do Rego. Seu tio materno, portanto. O elo familiar entre esses irmãos era bastante forte, a ponto de Brito Peixoto designar o sobrinho e irmão de Francisco Pinto do Rego, o mestre-de-campo Diogo Pinto do Rego, morador de São Paulo, como herdeiro de

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suas mercês, em detrimento das filhas e filhos que vieram fazer o povoamento da Laguna e do extremo-sul (BN - Manuscritos II-1,2,2,3- Notícia da Povoação, e fundação da Vila da Laguna feita por Francisco de Brito Peixoto que foi Capitão-mor...). Francisco Pinto do Rego, em São Paulo ou em qualquer outra localidade da colônia, também se destacava das “pessoas comuns” dadas as qualidades suas e de sua família. Domingos Martins, como já foi dito, apesar de não ter sua patente no registro da ata batismal de Feliciano, era detentor de patente militar. Foi soldado do destacamento da Bahia na Colônia do Sacramento, onde recebeu terras e gados (Queiroz, 1987: p. 98). Há, na lista dos homens que acompanharam Dom Manuel Lobo na fundação da Colônia do Sacramento, um Domingos Martins, sem que se possa saber se é o mesmo padrinho de Feliciano ou não (Relação dos prisioneiros feitos pelos espanhóis na tomada da Colônia em 1680, in: Monteiro, 19371937: pp. 47-48). Em 1738 o militar passou ao Regimento de Dragões do Rio Grande, do qual deu baixa logo em seguida. Assim como Francisco Barreto Pereira Pinto, está situado na segunda faixa estabelecida por Queiroz para os maiores proprietários de escravos da localidade, possuindo, no mínimo, entre oito e dez cativos. Tendo dado baixa do Regimento de Dragões, recebeu patente de capitão de Infantaria das Ordenanças da Vila do Rio Grande. Em 1755 passou a capitão de Cavalos das Ordenanças (Queiroz, 1987: p. 98). Dadas as patentes e mercês obtidas, tampouco Domingos Martins poderia ser confundido com as “pessoas comuns” da Vila. O Ajudante João Gomes de Melo, natural de Pernambuco, também foi proprietário de um número mínimo de escravos entre oito e dez. Também compartilhava dessa segunda faixa de maiores proprietários de cativos da Vila, estabelecida por Queiroz (1987: p. 98). Sua patente de ajudante de engenharia era devida aos cursos técnicos de Arquitetura Militar e Geometria e foi indicado para o cargo pelo mestre-de-campo André Ribeiro Coutinho, sucessor de José da Silva Pais na Comandância Militar do Rio Grande

275

de São Pedro. Segundo parecer do Conselho Ultramarino, André Ribeiro Coutinho julgava que em João Gomes de Melo concorriam todas as circunstâncias necessárias para ocupar aquele posto, assim pela sua suficiência e merecimento, como por ter se empregado nos estudos da Arquitetura Militar e Geometria em tal forma que, fazendo-lhe por várias vezes e em várias matérias individual exame, o achara capacíssimo daquele emprego (AAHRS- Registro de uma carta patente passada ao Cabo-de-Esquadra João Gomes de Melo... 1977 : p.1124)

O mestre-de-campo André Ribeiro Coutinho era pessoa habilitada a emitir tal parecer pois, além de guerreiro experimentado na Guerra da Sucessão ibérica, em Corfu na Grécia, na Hungria, sargento-mor instrutor de disciplina militar no Estado da Índia sob o comando de Gomes Freire de Andrade e tenente-coronel em Sacramento, era também engenheiro militar, tendo escrito obras sobre a arte da guerra e as instalações militares, tanto terrestres como marítimas (Portugal - Dicionário Histórico, Corográfico, Heráldico, Biográfico, Numismático e Artístico, 1904-1915). No mesmo documento há um breve relato de serviços prestados por João Gomes de Melo nos anos que antecederam sua chegada no Rio Grande. O cabo-de-esquadra da infantaria da praça da Bahia que estava recebendo patente de ajudante de engenheiro havia servido Sua Majestade no Rio de Janeiro, passando à Colônia do Sacramento, como condestável nomeado por José da Silva Pais. Foi responsável pela correção dos planos equivocados de construção da Guarda do Arroio do Taim, sendo indicado para continuar as obras da fortificação de Rio Grande quando do recebimento da patente. No ano de 1740 já estava casado com Maria Josefa da Conceição, moça de família mineira que teve a infelicidade de ficar órfã de pai logo após a chegada de sua família ao Rio Grande. O casamento deu-se por intercessão de André Ribeiro Coutinho, segundo petição do cunhado de Maria Josefa: passados poucos meses faleceu o dito seu sogro, deixando em total desamparo sua mulher, a do Suplicante [Manuel de Almeida Peixoto],

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três filhas e algumas escravas as quais só acharam a piedade e favor de V.Sª [André Ribeiro Coutinho] que, casando duas de suas cunhadas com o Ajudante João Gomes de Melo e com o Sargento João da Cunha, evitou a ruína que a desgraça poderia ordenar na dita família (AAHRS Registro de um requerimento que fez Manuel de Almeida Peixoto..., 1977: p.147)

João Gomes de Melo foi agraciado com sesmaria de três léguas por uma légua, na localidade de Palmares/Castilhos Grandes no ano de 1752, concedida por Gomes Freire de Andrade durante a Expedição de Demarcação dos Limites do Tratado de Madri (RAPM v. XXIII, 1929: pp. 502-503). Sua esposa, Maria Josefa, já comparecera à Pia Batismal a convite dessa mesma família, sendo madrinha da menina Escolástica. O casal foi padrinhos de outras crianças nessa mesma família e Maria Quitéria, juntamente com o Comissário de Mostras Cristóvão da Costa Freire, batizou um dos filhos de João Gomes de Melo que, curiosamente, recebeu o mesmo nome de um dos netos de Antônio de Souza Fernando (ADPRG - 1LBat-RG - Registro de batismal de Venceslau, filho de João Gomes de Melo 06/10/1749, 1738-1753). As relações entre os Souza Fernando e João Gomes de Melo provavelmente também remontavam, no mínimo o tempo em que viveram em Sacramento e seu casamento com Maria Josefa veio a acrescentar mais possibilidade de variação do conjunto presente à pia batismal a reiterar alianças de compadrio já efetuadas anteriormente. Pelas patentes e mercês recebidas, percebe-se que João Gomes de Melo tampouco era uma pessoa pertencente a estratos inferiores dessa nascente sociedade. Fazendo valer a condição de que, via de regra, convidam-se para padrinhos pessoas do mesmo estatuto social ou estatuto social superior ao seu, a troca bilateral de afilhados entre essas duas famílias sugere que a descendência dos Souza Fernando também fazia parte desses estratos sociais superiores de Rio Grande, caso contrário apenas chamariam gente importante da Vila para batizar seus filhos, sem nunca serem chamados por estes. Não é o que acontece,

277

como será visto adiante, quando do quadro dos afilhados dos membros desta família na localidade de Rio Grande e os que foram encontrados em Viamão. Por último, o capitão José da Silveira. A patente associada ao seu nome no registro batismal de Maria já o apresenta como membro destacado da sociedade local. Pelos registros batismais nos quais aparece o capitão José da Silveira, no primeiro livro de registros batismais de Rio Grande, ele possuía no mínimo três escravos. Provavelmente é um dos José da Silveira Bitencourt, pai ou filho, naturais da Ilha do Faial e que chegaram à localidade por volta de 1742. Também foram proprietários de terras e comerciantes de gados. Devido pai e filho serem homônimos e terem trajetórias bastante semelhantes, conforme já apresentado no capítulo intitulado “O Segredo do Pajé”, não há como concluir por um ou outro. Mas, sendo José da Silveira Bitencourt, pai ou filho, nesse caso não importa qual seja, há na família uma patente de Alferes, duas patentes de Capitão de Dragões, uma de Capitão da Ordenança, um ofício de Juiz de Órfãos, um ofício de Juiz Ordinário, duas sesmarias, uma em Rio Grande e outra em Rio Pardo, e a posse de cinco a oito cativos, que na classificação de Queiroz os coloca na terceira faixa de maiores proprietários de escravos do Rio Grande. Pertence o capitão José da Silveira, padrinho da menina Maria, a um seleto grupo de moradores da localidade. Quanto às madrinhas, por geralmente haver menos informações sobre as mulheres em todos os registros documentais do período, os comentários são mais sucintos. A madrinha de Luís Francisco, Eufrásia Maria de São José era uma das filhas de Antônio de Souza Fernando, casada com o cirurgião-licenciado Sebastião Gomes de Carvalho. Pertencia à família Souza Fernando, portanto, apontando a reiteração espiritual de parentescos consangüíneos existentes entre os Souza Fernando e sua descendência. Catarina de Lima é dita apenas como solteira, podendo ser Catarina de Lima, filha de Antônio Pinto e Isabel de Lima, que posteriormente casou-se com João Diniz Alves (ou

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Álvares), sesmeiro que possuía no mínimo um escravo, ou Catarina de Lima, casada posteriormente com José Antônio de Vasconcelos, também sesmeiro. Maria Josefa da Conceição é tal boa moça mineira que tendo passado por penúria e miséria após a morte de seu pai teve a sorte de ser dada por André Ribeiro Coutinho a casar com o ajudante João Gomes de Melo. Feliciana Domingues, madrinha de Feliciano, era casada com o capitão Domingos Martins. Teodósia Marques era irmã mais velha de sua afilhada Joaquina e casada com o então tenente e posteriormente capitão Antônio Pinto da Costa. Brízida ou Brígida Antônia de Oliveira era filha de Antônio de Souza Fernando, casada com o capitão de dragões Manuel Pereira Roriz de Negrelos. Ou seja, também nas madrinhas dessas crianças, em que pese incerteza sobre qual das duas Catarinas de Lima que viveram em Rio Grande nesse período, são visualizados os atributos de quem está bastante mais elevado do que o rés-do-chão da sociedade de Rio Grande. Através das características e caracterizações encontradas nos registros eclesiásticos complementados com outras fontes pode ser dito, com toda a segurança, que os atores sociais presentes nessas seis cerimônias de batismo são membros destacados da sociedade Riograndina, dadas as qualidades suas e das pessoas e famílias de suas relações. Boa parte deles fazia parte dos setores agraciados por mercês de Sua Majestade, sob forma de sesmarias de terras, patentes, cargos e ofícios. Muitos deles, como o próprio marido de Maria Quitéria e os padrinhos de Maria, eram ativos comerciantes de gado, riqueza maior do extremo-sul do Estado do Brasil no período sob análise. Eram, portanto, famílias e pessoas que, em consonância com o momento em que viviam, teceram relações pessoais e estabeleceram atividades que podiam ser bem rentáveis. Se essa malha de compadrios dadas aos batismos dos filhos do casal Antônio Simões e Maria Quitéria Marques de Souza já é complexa, a complexidade maior é verificada quando são colocados em um quadro todos os batismos ao qual comparecerem como padrinhos este casal ou um de seus filhos. Veja-se o quadro a seguir.

279 Quadro VIII – Compadrios do casal Antônio Simões e Maria Quitéria Marques de Souza e seus filhos Criança

Pai

Mãe

Raimundo Fernandes

Antonio

Antonio de Almeida

Francisca Pereira

capitão

Rafael Rodrigues de Andrade

Maria Josefa

tenente

Angélica

-

Antonia da Rosa

Joaquim

Rosa

Nataria Ribeiro

título patente padrinho

Narcisa

Inácio da Costa Santos

Rosa Maria

Isidora

Luis Dias

Helena, índia

Manuel

Sebastião Gonçalves, índio

Inacio

-

ajudante

Comissário cabo

-

tenente

Quitéria

Francisco Gonçalves

Ana Pereira de Souza

Teodora

Raimundo Fernandes

Nataria Oliveira

ajudante coronel

Luis

Estevão da Silva

Isabel, índia Tape

Jose Dias

Marta Antunes de Souza

Albano

João de Caldas

Efigênia

Manuel Afonso

Domingos

livre

situação

fonte

Tomas Luis Osório

Maria Quitéria Marques de Souza

17-08-1741

livre

natural 1Lbat RG

Francisco Barreto Pereira Pinto

Maria Quitéria Marques de Souza

09-10-1741

livre

legitimo 1Lbat RG

Pedro Monis de Menezes

Maria Quitéria Marques de Souza

18-02-1743

livre

natural 1Lbat RG

legitimo 1Lbat RG

Antonio Simões

Teodósia Marques

11-03-1743

livre

Cristóvão da Costa Freire

Maria Quitéria Marques de Souza

27-10-1743

livre

índia

natural 1Lbat RG

Manuel de Oliveira Braga

Maria Quitéria Marques de Souza

27-10-1743

livre

índio

natural 1Lbat RG

Antonio Pinto da Costa

Teodósia de Jesus

04-11-1743

livre

índio

Tesoureiro Faz. Real Pedro Jacques João de Freitas Silva

natural 1Lbat RG

Maria Quitéria Marques de Souza

07-01-1744

livre

Maria Quitéria Marques de Souza

12-03-1744

livre

índia índio tape

-

1Lbat RG

legitimo 1Lbat RG legitimo 1Lbat RG

Maria Quitéria Marques de Souza

08-11-1744

livre

02-05-1745

livre

legitimo 1Lbat RG

Joana do Livramento

Antonio Francisco

Maria Quitéria Marques de Souza

20-05-1745

livre

legitimo 1Lbat RG

Ângela Pereira

Manuel Francisco da Costa

Maria Quitéria Marques de Souza

30-05-1745

livre

legitimo 1Lbat RG

Manuel Henriques

Maria Quitéria Marques de Souza

18-09-1746

livre

legitimo 1Lbat RG

Diogo Osório Cardoso

Ana Marques de Souza

29-06-1747

livre

índia minuane natural 1Lbat RG

Lucas Fernandes

Joana Maria da Purificação Josefa, índia Minuane

Inácio

Estatuto

06-08-1741

Maria Quitéria Marques de Souza

Estevão Rodrigues

Francisca

Madrinha

Diogo Osório Cardoso

Jacinto Ana

data

Maria Quitéria Marques de Souza

Domingos Gomes Ribeiro

Bernarda Inocência

Padrinho

João de Freitas Silva

Padre Governador

natural 1Lbat RG

João Gomes de Melo

Maria Josefa da Conceição

Joaquim Manuel da Trindade

Ana Marques de Souza

17-07-1747

livre

legitimo 1Lbat RG

Máximo dos Santos

Inácia Gouveia

Francisco de Lemos

Maria Quitéria Marques de Souza

31-07-1747

livre

legitimo 1Lbat RG

Francisco Ribeiro da Costa

Inácia Maria dos Ramos

João da Silva Valadares

Maria da Assunção

Licenciado Governador

ajudante

João de Freitas Silva

Ana Marques de Souza

09-08-1747

livre

legitimo 1Lbat RG

Jose Antonio de Vasconcelos

Maria Quitéria Marques de Souza

11-10-1747

livre

legitimo 1Lbat RG

Margarida

Estevão da Silva

Damásia Rodrigues

Diogo Osório Cardoso

Maria Quitéria Marques de Souza

25-02-1748

livre

legitimo 1Lbat RG

Antonio

Luis de Queiroz

Francisca Correia

Francisco de Almeida Lisboa

Maria Quitéria Marques de Souza

01-05-1749

livre

legitimo 1Lbat RG

Severina

Domingos Martins

Feliciana Domingues

Manuel dos Santos Lobo

Maria Quitéria Marques de Souza

05-05-1749

livre

legitimo 1Lbat RG

Manuel Pinto Rabelo

Maria Quitéria Marques de Souza

20-01-1749

livre

legitimo 1Lbat RG

Cristóvão da Costa Freire

Maria Quitéria Marques de Souza

06-10-1749

livre

legitimo 1Lbat RG

-

Maria Quitéria Marques de Souza

08-09-1749

livre

índia minuane

1Lbat RG

Vilela

Maria Quitéria Marques de Souza

08-09-1749

livre

índia minuane

1Lbat RG

Escolástica Francisco de Seixas

Josefa de Jesus

Venceslau João Gomes de Melo

Maria Josefa da Conceição

Sofia Faustina

-

-

Tacu

-

Comissário Cabo

Rufina

-

-

Padre

Bento Pereira

Maria Quitéria Marques de Souza

08-09-1749

livre

índia minuane

1Lbat RG

Guiomar

-

-

Padre

Manuel Henriques

Maria Quitéria Marques de Souza

08-09-1749

livre

índia minuane

1Lbat RG

Águeda

-

-

Francisco

Maria Quitéria Marques de Souza

08-09-1749

livre

índia minuane

1Lbat RG

Hilária

-

-

Francisco Pinto

Maria Quitéria Marques de Souza

08-09-1749

livre

índia minuane

1Lbat RG

280 Anacleta

Faustino de Macedo

Paula Teresa

Joaquina

Antonio Simões

Maria Quitéria Marques de Souza

Bernardo

Cipriano Jose de Oliveira

Maria Antônia de Oliveira

João Antonio Amatildes

João de Oliveira

Francisca Ferreira

Manuel Bicudo da Luz

Brígida de Oliveira

José da Silveira ajudante furriel de Dragões

20-02-1749

livre

índia minuane

1Lbat RG

João Gomes de Melo

Teodósia Marques

25-07-1750

livre

legitimo 1Lbat RG

Manuel Osório

Maria Quitéria Marques de Souza

28-08-1750

livre

legitimo 1Lbat RG

tenente de Dragões Antônio José de Figueroa cabo de Dragão

Ana Marques de Souza

Maria Quitéria Marques de Souza

__-09-1750

livre

legitimo 1Lbat RG

Jose Coelho

Maria Quitéria Marques de Souza

21-09-1750

livre

legitimo 1Lbat RG

Manuel de Assunção de As

Antonia Maria de Faria

capitão

Manuel Carvalho de Lucena

Maria Quitéria Marques de Souza

18-06-1751

livre

legitimo 1Lbat RG

Antônio Pinto da Costa

Teodósia Marques

alferes

Antônio Pinto Carneiro

Ana Marques de Souza

18-04-1752

livre

legitimo 1Lbat RG

José

José Pacheco

Dionísia da Rosa

capitão

Gaspar dos Reis

Ana Marques de Souza

30-04-1752

livre

legitimo 1Lbat RG

João

José Caetano Pereira

Maria Eugênia de Figueiredo

José da Silva Ribeiro

Maria Quitéria Marques de Souza

23-05-1752

livre

legitimo 1Lbat RG

Fabiano

Jacinto

Luis da Rocha

Maria da Costa

Maria Quitéria Marques de Souza

15-02-1753

livre

legitimo 1Lbat RG

João

Pedro Quadrado

Ângela de Souza

Manuel Marques de Souza

Luísa Maria

06-08-1753

livre

legitimo 1Lbat RG

Ana

Salvador Moreno

Maria de Santo Antonio

Francisco Coelho Osório

Maria Quitéria Marques de Souza

27-08-1753

livre

legitimo 1Lbat RG

Corroído

Matias Gonçalves

Isabel Maria

Romão da Silva

Maria Quitéria Marques de Souza

30-09-1753

livre

legitimo 2Lbat RG

incógnito

[---] mulata escrava

?

Maria Quitéria Marques de Souza

00-01-1754 escravo

Úrsula

Luis Álvares dos Santos

Mariana Rosa

Antonio Francisco

Maria Quitéria Marques de Souza

18-04-1754

livre

legitimo 2Lbat RG

Felícia

Pedro Lopes

Bárbara de Jesus

José Lopes

Maria Quitéria Marques de Souza

10-06-1754

livre

legitimo 2Lbat RG

Rita Bernarda

Antonio Simões

Maria Quitéria Marques de Souza

13-03-1755

livre

legitimo 2Lbat RG

Bárbara Maria

Antonio Simões

Maria Quitéria Marques de Souza

23-06-1755

livre

legitimo 2Lbat RG

Luis

Bernardina Miguel Pereira João

Mateus Marques

tenente de Dragões Antônio Pinto da Costa

natural 2Lbat RG

Antonio

Jose Caetano Pereira

Maria Eugenia de Figueiredo

João Martins da Costa

Maria Quitéria Marques de Souza

11-08-1755

livre

legitimo 2Lbat RG

Joaquim

Agostinho da Cunha

Mariana de Souza

Antonio Simões

Maria Quitéria Marques de Souza

19-08-1755

livre

legitimo 2Lbat RG

Mariana

Manuel Jose Soares

Catarina Maria

Jose da Costa Guimarães

Maria Quitéria Marques de Souza

16-10-1755

livre

legitimo 2Lbat RG

Jacinto

Estevão da Silva

Damásia Rodrigues

Jacinto Rodrigues da Cunha

Teodósia Marques

22-12-1755

livre

legitimo 2Lbat RG

Manuel

Jaques de Oliveira

Angélica da Cruz

Ana

Antonio Machado

Rita Maria

Joaquim

-

Antonio

Jose de Deus

Domingos

Francisco Pires de Souza

Josefa Isabel de Bitencourt

Leonor

João Caetano de Souza

Joana Maria da Ressurreição

Ana

Antonio Teixeira Batista

Teresa Maria

Sebastião Gomes de Carvalho

Eufrásia Maria de São Jose

Rosaria Antonio

capitão Capitão-mor

Francisco Coelho Osório

Maria Quitéria Marques de Souza

13-04-1776

livre

legitimo 2Lbat RG

Manuel Marques de Souza

Escolástica Marques de Souza

18-05-1756

livre

legitimo 2Lbat RG

Joana, Mina

Feliciano Antonio Marques

Maria Marques

18-05-1756 escrava

natural 2Lbat RG

Paula Maria

Antonio Francisco dos Santos

Escolástica Marques de Souza

20-06-1756

livre

legitimo 2Lbat RG

Domingos Fernandes de Oliveira

Maria Quitéria Marques de Souza

19-07-1756

livre

legitimo 2Lbat RG

Francisco Lopes

Maria Quitéria Marques de Souza

08-08-1756

livre

legitimo 2Lbat RG

alferes Capitão

Manuel Marques de Souza

Apolinária de Souza

10-08-1756

livre

legitimo 2Lbat RG

Manuel de Araújo Gomes

Maria Quitéria Marques de Souza

18-08-1756

livre

legitimo 2Lbat RG

Antonio Pinto da Costa

Teodósia Marques

Antonio Simões

Maria Quitéria Marques de Souza

22-09-1756

livre

legitimo 2Lbat RG

Maria

Jose Francisco

Maria do Rosário

Antonio Simões

Maria Quitéria Marques de Souza

23-08-1756

livre

legitimo 2Lbat RG

Ana

Jose Pacheco

Dionísia da Rosa

Antonio Teixeira de Abreu

Maria Quitéria Marques de Souza

22-11-1756

livre

legitimo 2Lbat RG

Mateus

Bárbara Maria

Manuel Marques de Souza

Joaquina Marques

26-01-1757

livre

legitimo 2Lbat RG

Joaquim

281 Manuel

Pedro Ca[?] de Alcântara

Corroído

[---]Teixeira Francisco Machado Antonio Francisco dos Santos

Mariana Felícia da Encarnação

-

-

José Antonio Ana, mina

Josefa Ana de Andrade

Padre

Manuel da Cruz Gomes

Escolástica Marques de Souza

Apolinária de Souza

Manuel Marques de Souza

Teresa Maria

27-03-1757

livre

legitimo 3LBatRG

Maria de Jesus

Antonio Simões

Maria Quitéria Marques de Souza

10-04-1757

livre

legitimo 3LBatRG

Manuel Marques de Souza

Maria Quitéria Marques de Souza

09-05-1757

livre

legitimo 3LBatRG

Manuel Marques de Souza

Ana de Azevedo

17-06-1757 escrava

Padre

17-02-1757

livre

legitimo 3LBatRG

-

3LBatRG

Manuel

Miguel Pereira

Rita Bernarda

Manuel Marques de Souza

Maria Quitéria Marques de Souza

02-08-1757

livre

legitimo 3LBatRG

Joaquim

Simão Pereira de Souza

Maria Josefa

Manuel Marques de Souza

Maria Quitéria Marques de Souza

11-08-1757

livre

legitimo 3LBatRG

Rosaria Maria

incógnito

Jacinta, mina

Feliciano Antonio Marques

Joaquina Marques

10-10-1757 escrava

natural 3LBatRG

Antão de Ávila

Luzia Maria

Manuel Marques de Souza

Teresa Maria

29-05-1758

legitimo 3LBatRG

livre

Francisca

incógnito

Joana, mina

Manuel Marques de Souza

Rosa Maria Seria

18-10-1758 escrava

Giralda

incógnito

Ana, Angola

Manuel Marques de Souza

Escolástica Marques de Souza

18-10-1758 escrava

natural 3LBatRG

Antonio

Antonio Francisco dos Santos

Mariana Felícia da Encarnação

Manuel Marques de Souza

Maria Quitéria Marques de Souza

19-10-1758

legitimo 3LBatRG

Carlos

Manuel Teles de Bitencourt

Maria do Carmo Lemos

Inácio Osório

Escolástica Marques de Souza

09-11-1758

livre

legitimo 3LBatRG

Mateus Marques

Bárbara Maria

Feliciano Antonio Marques

Rosa Maria Seria

25-12-1758

livre

legitimo 3LBatRG

José

Padre

livre

natural 3LBatRG

Manuel

Jose Francisco

Ana Maria

Manuel Marques de Souza

Maria Marques

04-02-1759

livre

legitimo 3LBatRG

Antonio

Silvestre de Moura Ribeiro

Ana Gomes de Azevedo

Manuel Jorge

Maria Quitéria Marques de Souza

22-04-1759

livre

legitimo 3LBatRG

Marta Antonia João Manuel

Manuel Teixeira

Apolinária de Souza

Manuel Marques de Souza

Luzia Maria

27-05-1759

livre

legitimo 3LBatRG

Manuel Correia Simões

Josefa Mariana da Luz

Antonio Jose de Moura

Maria Quitéria Marques de Souza

06-10-1759

livre

legitimo 4LBatRG

Sebastião Gomes de Carvalho

Eufrásia Maria de São Jose

Antonio Jose de Moura

Escolástica Marques de Souza

24-10-1759

livre

legitimo 4LBatRG

Caetano Furtado

Custodia Pereira

Antonio Jose de Moura

Maria Quitéria Marques de Souza

11-02-1760

livre

legitimo 4LBatRG

Francisca

Carlos Teixeira

Maria do Rosário

Manuel Marques de Souza

Maria Quitéria Marques de Souza

08-03-1760

livre

legitimo 4LBatRG

Domingos

Pedro Pais de Figueiredo

Maria Antonia

Padre

Domingos Martins Pereira

Maria Quitéria Marques de Souza

08-04-1760

livre

legitimo 4LBatRG

Jose

Jose Rodrigues Nicola

Inês de Lima

Antonio Jose de Moura

Escolástica Marques de Souza

23-06-1760

livre

legitimo 4LBatRG

Rosa

Antonio Jose de Brito

Catarina de Sena

Antonio Jose de Moura

Escolástica Marques de Souza

31-07-1760

livre

natural 4LBatRG

Antonio

Luis da Rocha

Maria da Costa

Antonio Ferreira

Maria Quitéria Marques de Souza

05-04-1761

livre

legitimo 4LBatRG

Antonio

Antonio Correia da Silva

Josefa Maria

Antonio Jose de Moura

Escolástica Marques de Souza

10-03-1762

livre

legitimo 4LBatRG

Antonio Francisco dos Santos

Maria Josefa

Antonio Jose de Moura

Escolástica Marques de Souza

05-09-1762

livre

legitimo 4LBatRG

Jose Francisco

Ana Maria

Antonio Jose de Moura

Escolástica Marques de Souza

11-09-1762

livre

legitimo 4LBatRG

Cristóvão Ferreira de Carvalho

Isabel de Jesus

Antonio Jose de Moura

Escolástica Marques de Souza

06-12-1762

livre

legitimo 4LBatRG

Antonio Pinto da Costa

Teodósia Marques

Antonio Jose de Moura

Escolástica Marques de Souza

23-01-1763

livre

legitimo 4LBatRG

Maria Antonio Isabel Ana

Jose Rodrigues Nicola

Inês de Lima

Manuel

David

Manuel Lourenço

Maria Silveira

Manuel

Francisco Luís

Isabel Inácia

Gertrudes

Constantino José Rodrigues de Lima Maria da Conceição

Padre Capitão

Francisco de Lima Pinto

Joaquina Marques

22-02-1763

livre

legitimo 4LBatRG

Manuel Marques de Souza

Úrsula Teresa

12-04-1766

livre

legitimo 1LBEstreito

Manuel Marques de Souza

Joana Maria

24-05-1766

livre

legitimo 1LBEstreito

Manuel Marques de Souza

Mariana

12-05-1768

livre

legitimo 1LBEstreito

282 Maria

Antão Pereira Machado

Joana Maria

Manuel Marques de Souza

-

13-05-1768

livre

legitimo 1LBEstreito

Custódio

Gonçalo José

Ana

João Caetano

Luísa Inácia

Manuel Marques de Souza

-

15-07-1764

livre

legitimo 1LBEstreito

Joana Maria

Manuel Marques de Souza

-

30-09-1764

livre

legitimo 1LBEstreito

Manuel

Joaquim Pires

Teresa de Jesus

Manuel Marques de Souza

Antônia Teresa

20-10-1776

livre

legitimo 1LBEstreito

José

Francisco de Souza

Ana Alexandra Fernandes

Manuel Marques de Souza

Josefa Marques

15-05-1764

livre

legitimo 1LBEstreito

Manuel

Francisco de Souza

Ana Alexandra Fernandes

Manuel Marques de Souza

-

14-10-1766

livre

legitimo 1LBEstreito

Manuel

-

Maria do Rosário

Manuel Marques de Souza

-

14-10-1766

livre

natural 1LBEstreito

Joaquina

Francisco de Souza

Ana Alexandra Fernandes

Manuel Marques de Souza

-

14-10-1766

livre

legitimo 1LBEstreito

Felipe

Francisco de Souza

Rita Maria da Ressurreição

Manuel Marques de Souza

Páscoa Maria da Ressurreição

09-06-1773

livre

legitimo 1LBEstreito

José

Francisco da Rosa

Quitéria Maria

Antônio Pinto Carneiro

Maria Quitéria Marques de Souza

03-07-1763

livre

legitimo 2LBViamão

Bernardina Francisco da Rosa

Quitéria Maria

Manuel Fernandes de Castro

Joaquina Marques

06-08-1765

livre

legitimo 2LBViamão

Francisco Rodrigues Xavier Prates Joaquina Marques

21-09-1762

livre

legitimo 2LBViamão

Joaquim

Alberto Soares

Leonarda Francisca

Angélica

Antônio da Terra

Catarina Josefa

Antônio

Bartolomeu Bueno da Silva

Margarida da Silveira

Luís Teixeira da Silva

Bernarda Rosa Ramos

Antônio Fernandes da Fonseca

Brízida Maria de Jesus

Luis Joaquina

Reverendo Capitão Capitão

Manuel Bento da Rocha

Joaquina Marques

26-01-1766

livre

legitimo 2LBViamão

Antônio Pinto Carneiro

Maria Quitéria Marques de Souza

04-04-1766

livre

legitimo 2LBViamão

Francisco de Oliveira Coutinho

Escolástica Marques de Souza

20-10-1766

livre

legitimo 2LBViamão

Antônio Pinto Carneiro

Joaquina Marques

26-09-1767

livre

legitimo 2LBViamão

Escolástica Domingos Martins

Ana Francisca de [---]

Antonio Jose de Moura

Escolástica Marques de Souza

09-07-1768

livre

legitimo 2LBViamão

Escolástica Antônio Francisco de Abreu

Rita da Conceição

Francisco Martins de [---]

Escolástica Marques de Souza

03-04-1769

livre

legitimo 2LBViamão

Escolástica Antônio da Terra

Catarina Josefa

Manuel Fernandes de Castro

Joaquina Marques

16-07-1769

livre

legitimo 2LBViamão

283

Foram, no mínimo, cento e dezoito as vezes nas quais ao menos um dos membros do casal ou um de seus filhos compareceram à pia batismal como padrinhos de crianças nas localidades de Rio Grande, Estreito e Viamão entre os anos de 1738 e 1776. Mais seriam se fossem encontrados os desaparecidos livros específicos de registros batismais de escravos de Rio Grande, se alguns registros fragmentados e corroídos pudessem ser lidos ou se fossem acrescidos os livros dos escravos de Viamão, Porto Alegre e Gravataí. Se Antônio Simões e Maria Quitéria Marques de Souza foram pouco ecléticos ao eleger os padrinhos de seus filhos, uma rápida passada de olhos no quadro acima colocado demonstra a variedade de compadres que os convidaram, a eles e a seus filhos, para padrinhos e madrinhas de suas crianças nessa localidade. Entre os compadres deste casal e os de seus filhos, além das pessoas pertencentes ao seu estrato social, estão índios tape, índios minuano, escravos, forros, agricultores açorianos e mais gente cuja procedência, origem étnica, ocupação e posses não pode ser verificada. A família em questão era uma das mais procuradas para o compadrio em Rio Grande. Deviam ter, portanto, algumas qualidades que os tornavam desejáveis para esse tipo de relação. De algum modo, a proximidade com os membros da família deveria favorecer seus compadres e afilhados. Treze crianças nomeadamente indígenas foram batizadas por membros dessa família. Todas elas num período em que ainda não vigoravam nem a Lei de Liberdades nem Diretório dos Índios, que devolviam a liberdade que fora subtraída aos indígenas, datados ambos de 1755. Ainda que nem sempre fosse expresso, instituição da administração de indígenas por particulares ainda se fazia notar em Rio Grande. Apesar de não poderem ser consideradas escravas por não haver nesses registros nada que vincule os pais das crianças ao estado de escravidão, as afilhadas indígenas das famílias livres eram usadas para suprir mão-de-obra nas unidades domésticas (Garcia, 2003). Uma espécie de negociação feita entre a sociedade indígena que se buscava atrair para a localidade e os

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lusos que ali chegaram, utilizava-se o sacramento cristão do batismo como forma de aproximação. Nove moças, das quais seis eram da etnia minuano, foram batizadas por Maria Quitéria Marques e duas, também ditas minuano, por sua filha Ana Marques Vitorina, nascida em Sacramento e ainda solteira quando desses batizados. Antônio Simões foi colocado na segunda faixa de maiores proprietários de escravos na Vila por Queiroz. Entretanto, a contagem foi feita a partir dos pais e crianças nomeadamente escravos nos registros batismais. Se houvesse a possibilidade de fazer-se contagem diferente, ou seja, que fossem contados aqueles que podiam estar submetidos a alguma forma de trabalho compulsório, essa situação seria brutalmente alterada. Se as afilhadas indígenas foram dadas a criar por Maria Quitéria Marques de Souza e sua filha, como era costume, esse núcleo familiar saltaria de súbito para a primeira faixa de utilizadores de mão-de-obra sem obrigação de pagamento sob seu mando. Sobre esse costume, das moças indígenas serem dadas a criar por suas madrinhas, há o registro de uma carta de um padre anônimo que se refere a um batismo coletivo ocorrido em outubro de 1750, batismo para o qual não se encontra registro lançado nos livros de Rio Grande nem neste ano nem no seguinte. Provavelmente por deslizes da memória, o padre referia-se ao batismo coletivo ocorrido um ano antes, em setembro de 1749, e lançado no livro de batismo de Rio Grande em dezembro do mesmo ano. Um bom indicativo de que possa ser esse o motivo de diferença nas datas é que o anônimo cita a mediação de José Ladino, um minuano catequizado e catequista, que falava o idioma dos minuano e também o espanhol, sendo usado como língua no contato com os grupos que viviam nas imediações das fortalezas e nas terras reais de Bojuru. Ladino tinha filhos incluídos nos batismos de 1749. Também o padre Bento Pereira, presente como padrinho em alguns desses batizados de 1749, é dito pelo padre anônimo como sendo Bento Nogueira, o que autoriza uma certa

285

desconfiança para com a fidelidade às datas e nomes citados pelo anônimo. Entretanto, acerca do costume, veja-se o que diz o anônimo: Mas os Índios batizados, com suas mulheres, por conselho dos Padres, foram servir a el-Rei nas terras do Boiuru, pertencentes à Coroa, onde ganhavam o mesmo salário dos homens de trabalho, ficando as moças índias ao cuidado de suas madrinhas para instruir e doutrinar. Em outubro de 1750 celebraram-se os batismos dos índios Minuanos, sendo seus padrinhos o mesmo Governador e todas as outras pessoas importantes do Presídio. Os batizados, entre adultos e crianças, foram pouco mais de 60 (Autor Anônimo, Catequese e Aldeamento dos Minuanos - in: Cesar, 1988.: p.122).

O tema da incorporação dos indígenas à sociedade lusa nas terras sulinas foi objeto da dissertação de mestrado de Elisa Frühauf Garcia (2003: pp.102-103). Essa autora, entretanto, para a Vila do Rio Grande, não obteve mais sucesso na confirmação e coleta de dados empíricos para o estudo das práticas de educação e catequese das moças indígenas nessa localidade do que o que aqui acima está posto. De todo o modo, se as moças minuano foram de fato deixadas sob a guarda de Maria Quitéria e Ana Marques, a família possuía um séqüito feminino, do que decorre muito mais coisas, das quais algumas passaram despercebidas a Garcia. A que aqui se pretende destacar é que, em uma região de fronteira, sujeita a guerras e necessitada de gente para o seu povoamento, ter autoridade sobre tantas moças que estão recebendo uma educação cristã, em uma localidade como essa, significa deter um tanto mais de poder e influência no mercado matrimonial da Vila. As relações de compadrio, forneceram afilhadas – filhas espirituais – aos Souza Fernando, aqui analisados através de Maria Quitéria Marques de Souza, seu marido e filhos e asseguraram compadres entre os minuano que foram alocados na aldeia de Bojuru. Nunca é demais lembrar que as famílias de migrantes açorianos, agricultores e camponeses em sua maioria, que se destinaram a Rio Grande com seus filhos e filhas ainda por casar, somente começaram a chegar em fins de 1749, e apenas a partir de 1752 ou 1753 seu peso começa a fazer-se notar na população da Vila.

286

A família tinha, por seu prestígio e posição social, através de suas filhas, um recurso inestimável para captar bons matrimônios. A Ilustração I demonstra a qualidade dos maridos dos Souza Fernando expressa em seus títulos e patentes. Entretanto, não somente de pessoas situadas no alto se compõe uma sociedade. Há gente de todos os estatutos sociais e, através do recurso de tornarem-se madrinhas e preceptoras de moças, ou ao menos das oito moças da etnia minuano, muito provavelmente eram colocadas Maria Quitéria Marques de Souza e sua filha Ana Marques na posição de obter obséquios e gratidão dos pretendentes às mesmas, a quem foi concedida a mão. Através das meninas batizadas e educadas, os Souza Fernando acabavam por exercer influência sobre setores sociais aos quais não pertenciam diretamente. Faziam, portanto, ligações fortes através de elos de reciprocidade com os setores possivelmente situados abaixo do seu. Com isso, ainda que as moças tenham sido exploradas e usurpadas em sua força de trabalho como retribuição à educação que lhes seria dada na casa de suas madrinhas, talvez não seja a mão-de-obra a maior contribuição das afilhadas indígenas para o enriquecimento, engrandecimento e prestígio de uma família que já tem posses. Um bom número de homens da vila, soldados, agricultores, através dessa possibilidade de matrimônio que lhes era dada pela descendência dos Souza Fernando, lhes deviam respeito e gratidão, colocando-os como área de influência desta família. Convém lembrar aqui que esta é uma sociedade na qual os bens, alguns deles os mais importantes para a vida e para a sobrevivência, não eram todos obtidos no mercado. Existiam outros fatores que influenciam a vida econômica para além do comprar e vender. Uma boa família só conseguia manter-se acima das demais porque existem outras tantas situadas abaixo a lhes dar sustentação. Os batismos das moças indígenas, pensa-se aqui, era uma das formas de gerar uma base social diversificada e cômoda. Cômoda porque amenizava a tensão social sempre

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existente quando se obriga alguém ao trabalho ou quando se lhes acomoda no convívio em uma situação subalterna que, nesse caso, fica devida, além da submissão ao trabalho, por ser espiritualmente subalterna a posição de uma afilhada ante sua madrinha, já que respeito, cuidado e gratidão são devidos àqueles que, de forma pia, as receberam em suas casas, alimentaram, educaram, colocaram Deus em suas vidas e as inseriram no corpo da cristandade. Os grilhões da reciprocidade com os quais as futuras famílias de suas afilhadas se vincularam aos Souza Fernando valeria a eles bem mais que anos de salário que pudessem ser pagos a empregados ou jornaleiros. Muito mais porque dentre as moças tornadas noivas e esposas provavelmente algumas seriam concedidas a pessoas que não pertenciam ao mesmo nicho social de suas madrinhas. Através das mulheres da família e de suas novas afilhadas, a influência, o prestigio e o aguardo do contradom – sempre esperado mas nunca exigido – eram estendidos em reciprocidades entre desiguais, atingindo, portanto, um espectro social muito mais amplo do que as boas famílias ali chegadas, que não trocaram favores com gente de estatuto social diferente do seu. Se pelo costume do compadrio e do mercado matrimonial seria impraticável trazer, através de seus filhos, gente dos estratos inferiores para dentro do seu círculo de relações, através das afilhadas de origem social diferente da sua, podiam atrair aliados espalhados por toda a pirâmide social. Cabe ainda uma outra observação. Não é porque essas moças eram indígenas que sua situação social era necessariamente muito inferior à dos seus padrinhos. Destaca-se aqui a moça Faustina, afilhada de Maria Quitéria Marques de Souza e do Cabo Vilela. Faustina era filha de Tacu, um dos chefes de grupos minuano que viviam na região. Os Souza Fernando, assim, aliavam-se com gente do topo da hierarquia social própria dos minuano. Combinando essa sorte de relações com a cessão de moças ao matrimônio com

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gente não pertencente à família ou aos estratos superiores da sociedade, têm-se com isso que ampliavam a sua rede de relações e de influência tanto horizontalmente, se comparado o prestígio e a posição social do chefe minuano que lhes dava uma filha para educar com o da família que a recebia. Mas também ampliavam suas relações e influências verticalmente nessa sociedade. Tanto as moças quanto seus possíveis maridos estariam obrigados ao respeito e à gratidão devidos pelos dons recebidos. Colocavam-se, portanto, na posição de devedores de uma graça dada, no caso uma família a ser constituída e a inclusão das moças na sociedade cristã. Os Souza Fernando, através de suas esposas e filhas, detinham um bem muito cobiçado nessa sociedade, que não poderia ser comprado ou vendido, mas cujos valores e benefícios trazidos eram inestimáveis tanto para quem recebia uma mulher “livre”, cristã e casadoira, como para quem a concedia em casamento, ou ainda para quem, ocupando posição de destaque na sociedade de origem, tal como o chefe Tacu, adentra as relações de quem tem posição de destaque na sociedade que se implantava. O inverso também era verdadeiro: esses compadrios ligavam os Souza Fernando ao topo da hierarquia minuano. Para os Souza Fernando e para Antônio Simões, homens que se ocuparam das atividades de preia de gado nas campanhas pra sua posterior comercialização, a aliança com os minuano era inestimável. Os primeiros e mais aguerridos indígenas a dominarem esta vasta área de campinas ricas em animais, era parte de sua fortuna, novamente dito aqui, imensurável e impossível de quantificar em valores monetários. O quanto isso era importante é visível nas campanhas de defesa e suporte à Colônia do Sacramento (Hameister, 2002). Os Souza Fernando, com essa sorte de compadres e afilhadas, além de suas próprias descendentes, dominavam uma importante fatia do mercado matrimonial da Vila do Rio Grande. Essas relações de compadrios e apadrinhamento compunham,

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portanto, um patrimônio imaterial, intangível e não avaliável em termos financeiros, mas certamente fundamentais nos termos da economia do dom praticada nas sociedades de Antigo Regime. Antes de encerrar as observações aqui cabíveis sobre esse assunto, um último comentário acerca do que se divisa a partir disso: a sociedade lusa que se implantava ao sul do Estado do Brasil se utilizava de diferentes mecanismos e instituições que concorriam todos para um mesmo fim: a inclusão de parcelas minuano em seu corpo. Através das relações de compadrio, a conquista de aliados nesse importante grupo que ao longo de todo o século XVIII manteve sua relativa autonomia das parcelas européias. Através da criação das afilhadas dessa etnia, a cristianização das moças e de sua prole, dando-as ao casamento, o reforço, através da formação de famílias miscigenadas às alianças políticas conquistadas com presentes e mimos. Através de contratos de “trabalho remunerado”, a inclusão dos homens como mão-de-obra nas estâncias de cria de gado e, principalmente de cavalos, como era Bojuru. Pode-se dizer, portanto, que a sociedade lusa, fortemente hierarquizada e que primava por deixar claras as diferenças sociais era tudo, menos excludente. Tratava, antes, de gerar mecanismos muito sutis para incluir novos membros em seu corpo. Buscava, e esse é o assunto que concerne a esse estudo, através da instituição Igreja e seus sacramentos e laços sacralizados, unir ao corpo social, usando de um rito de iniciação como é o batismo – isso pode ser lido por qualquer sociedade que os possua: atribuição de nome, recepção de um novo membro, geração de parentescos rituais – novos e desejáveis membros. Muito mais do que com apresamento forçado, a inclusão de indígenas minuano foi feita com a utilização dessas sutilezas religiosas, das madrinhas, da devoção de suas afilhadas. Além da diversidade de compadres que convidaram os membros da família para o compadrio, ficou evidente, na análise do quadro, o prematuro comparecimento dos

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meninos e meninas da família como padrinhos nos rituais de batismo. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia estabeleciam critérios para que alguém pudesse se tornar padrinho de outrem: Conformados com a disposição do Santo Concílio Tridentino mandamos, que no Batismo não haja mais que um só padrinho, e uma só madrinha, e que se não admitam juntamente dois padrinhos, e duas madrinhas; os quais padrinhos serão nomeados pelo pai, ou mãe ou pessoa, a cujo cago estiver a criança; e sendo adulto, os que ele escolher. E mandamos aos Párocos não tomem outros padrinhos senão aqueles, que os sobreditos nomearem, e escolherem, sendo pessoas já batizadas, e o padrinho não será menor de quatorze anos, e a madrinha de doze, salvo especial licença nossa (Da Vide, Livro Primeiro, Tit. XVIII, § 64, 1707 - grifo meu).

Se calculada a idade de Manuel Marques de Souza, batizado logo após o nascimento em 1743, quando de sua primeira aparição como padrinho, tem-se que batizou seu primeiro afilhado em Rio Grande com dez anos, apenas. Essa também foi a idade da primeira aparição como madrinha de sua irmã Escolástica. Feliciano batizou pela primeira vez em Rio Grande com oito anos, acompanhando sua irmã Maria, de quatro anos de idade, também “debutante” como madrinha. Joaquina, nascida entre Feliciano e Maria, tinha cinco anos de idade quando batizou pela primeira vez. Fez par à pia com seu irmão Manuel Marques de Souza. Frisa-se aqui que, por falta de dados acerca do compadrio dessa família na Colônia do Sacramento, onde já haviam morado os pais e onde parte da descendência de Nicolau de Souza Fernando ainda vivia, não é conclusiva a idade da primeira aparição de Manuel Marques e de Teodósia. Estes podem ter batizado em Sacramento algumas crianças, antes de surgirem como presença freqüente nas cerimônias de batismo na Vila. Contrariando, portanto, o disposto no livro que regulava a vida cristã no Estado do Brasil, as crianças filhas de Antônio Simões e Maria Quitéria Marques de Souza, algumas delas ainda inocentes, ficavam responsáveis pela salvação da alma, pela purgação do pecado original, pela educação cristã e pela atribuição de nome a muitas crianças nessa

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Vila. Isso não poderia ter sido feito sem intenção. Há algo, portanto, algo perceptível e que demanda uma resposta que agora se tenta esboçar. Se essas relações tecidas à pia batismal fazem parte do patrimônio de uma família, crê-se que se está assistindo a formação de um legado em relações sociais aos filhos. Como o restante dos bens que serão repassados pelas famílias por herança ou dote, esse pecúlio acumulado sob forma de alianças e relações também é repassado dentro das famílias, e uma boa maneira de fazer isso seria induzindo as crianças à situação de padrinhos o mais cedo possível. Imagine-se a aqui a menina Maria, com dezesseis anos de idade e um afilhado com doze, a prestar-lhe respeito e obediência. Jovem e com ascendência sobre pessoas. Seu primeiro afilhado era escravo do marido de Teodósia Marques de Souza, Antônio Pinto da Costa. A menina madrinha realiza, no mínimo, dois tipos de intenção, ambas vinculadas à ampliação da rede de relacionamentos socialmente desejáveis. A primeira, como comentado no parágrafo anterior, a formação de um conjunto de compadres e afilhados que serão, sacramentados pelos laços religiosos, seus aliados nessa vida e na próxima. A segunda, a intensificação de uma relação que é de trabalho e de subordinação em outros âmbitos da vida social. O menino ingressa na família espiritual de seus padrinhos – ambos irmãos da senhora da casa – em uma condição de débito: deve-lhes seu nome, deve-lhes o ingresso no mundo cristão, deve-lhes o respeito e o auxílio, em troca de orientação religiosa. Para o proprietário do menino Joaquim, um modo de reforçar a lealdade e pertencimento à família através do compadrio e uma forma de elidir as normas sociais que constrangiam a venda ou castigos, jogando esses laços, que são pessoais, a parentes colaterais e não diretamente para si. Alinhavar, portanto, relações lançadas ao futuro, formar um pecúlio imaterial para esses jovens, subjaz ao ato de torná-los disponíveis ao compadrio ainda em tenra idade. Podendo parecer uma exceção, Feliciano e Maria Marques são exemplos de uma prática

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recorrente na Vila. Lá se percebem outras tantas crianças de famílias de certa posição iniciarem suas carreiras de madrinhas sem serem ainda confessadas ou ter deixado sua condição de inocentes. A norma era clara e o costume a sobrepujava. Para o menino escravo e sua mãe, também deveria haver vantagens nesse tipo de relação, considerando que as opções ao compadrio nessa localidade não são ilimitadas, mas não são tão poucas. Esses escravos teriam pessoas muito próximas aos seus senhores, em igualdade de condições sócio-econômicas às deles, a interceder por suas questões. Podia ser uma via para escapar da vala-comum de ser apenas “escravo de Antônio Pinto da Costa” para ser, além disso, afilhado de Feliciano Antônio Marques de Souza e Maria Marques. Pode parecer pouca coisa, mas em uma sociedade na qual seus partícipes eram avaliados pelos coevos não apenas em relação ao que tinham, mas com quem estavam vinculados, isso poderia gerar uma diferenciação social entre os escravos da Vila e mesmo internas à escravaria de um mesmo proprietário. Para ser escravo, basta ser legalmente privado da liberdade e submetido a regime compulsório de trabalho, com subordinação ao senhor. Para ser afilhado ou compadre de alguém, há que passar por rituais que circundam e antecedem o próprio batismo, desde o convite até o final da cerimônia3. Entende-se que, ainda que não fosse condizente com as regras estabelecidas pela Igreja através das Constituições Primeiras, essa situação de batismos levados a cabo por padrinhos jovens era desejável para o bem comum. Atenuava tensões entre setores sociais em tese

3

Sobre alguns dos ritos sociais não estabelecidos pela Igreja nem pelas normas de administração do batismo que antecedem o ato batismal propriamente dito, em sociedade contemporânea, há o trabalho da antropóloga Françoise Zonabend, um dos textos inaugurais do estudo das relações e ritos de compadrio na França, cf. ZONABEND, Françoise."La Parenté Babtismale a Minot (Côte-D'Or)". In: Annales. Histoire, Sciences Sociales.v. 33 (3). 1978. Esse estudo indica que tais ritos, que remetem às antigas tradições cristãs da localidade por ela estudada, eram práticas sociais derivadas de interpretações populares do próprio sacramento e das obrigações mútuas dele derivados. Sendo a vida em sociedades de Antigo Regime fortemente ritualizada em vários âmbitos, crê-se aqui, que muito principalmente nas questões que circundam importantes atos vinculados aos sacramentos cristãos, também o fossem, ainda que não se conheça estudo específico sobre as práticas e ritos populares de origem religiosa que antecediam o ato batismal no Brasil Colonial.

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antagônicos e, ao mesmo tempo, contribuía para a manutenção da hierarquia social, delegando ascensão de uma parcela sobre outras. Comentando, então, um outro aspecto bastante visível no quadro que traz os afilhados desse núcleo familiar: há reiterada presença da parentela feminina sobrepujando a presença masculina à pia batismal, sendo que para os últimos anos, fez-se a contagem dos homens da família incluindo os genros maridos das filhas já casadas. Aqui cabe uma breve discussão sobre a presença das mulheres de elite no período colonial nos atos de batismo. O assunto foi tema de artigo de autoria de Renato Pinto Venâncio, cuja idéia principal defendida é “a existência de uma valorização do recato doméstico feminino e, por vezes, uma real obediência a ele” (Venâncio, 1986: p. 95). Venâncio afirma que as mulheres da elite carioca “evitavam sair às ruas, até mesmo para comparecer a cerimônias simples, como a de ser madrinha em um batizado” (idem: p. 96). Sem entrar no mérito da afirmativa quanto a ser a cerimônia de batismo algo simples, já que a complexidade da mesma foi demonstrada por Gudeman (1971; 1975), Zonabend (1978) e Christinat (1976) entre outros, e o discutido aqui em capítulos anteriores, o intento será tentar entender porque as mulheres dessa e de algumas outras famílias de Rio Grande tinham comportamento tão distante do verificado por Venâncio em período concomitante à parte de seu estudo, que abrange de 1750 a 1800. As mulheres descendentes dos Souza Fernando compareciam sim, e muito, à pia batismal, com ou sem o acompanhamento de seus maridos, filhos ou irmãos. Essas mulheres foram madrinhas noventa e oito vezes nos cento e dezoito batismos arrolados, sendo que nesses noventa e oito não estão computadas as vezes em que Rosa Maria Séria, filha de Teodósia Maria, batizou. Se computada essa neta de Maria Quitéria, seriam cem vezes. Os homens da família compareceram à pia batismal por trinta e cinco vezes; quarenta, se incluídas as vezes que o genro Antônio Pinto da Costa fez par à pia com sua

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esposa, e quarenta e três se computados os compadrios do Reverendo Padre quando também em par com alguma das mulheres da família. Noventa e oito era o número mínimo de comparecimento dessas mulheres diretamente vinculadas ao núcleo do casal Antônio Simões e Maria Quitéria, contra as trinta e cinco vezes que compareceram os homens, o que leva a descartar a idéia de reclusão e não comparecimento às cerimônias batismais. Com tudo o que foi dito aqui, fica evidente que eram mulheres pertencentes à elite local. Entretanto, sua presença à pia batismal na condição de madrinhas de batizandos clara e evidentemente ultrapassa a presença masculina nessa sorte de cerimônia. Tampouco se crê que os homens da família eram descuidados da proteção e zelo para com suas mulheres. Percebe-se através da “bifurcação” dos compadrios, durante os anos em que a Vila do Rio Grande esteve sob domínio espanhol, que “esta fronteira do Rio Grande” — como costumava o Padre Manuel Francisco da Silva anotar nos registros batismais do Estreito — era área limítrofe e em contexto de guerra. Manuel Marques de Souza, incorporado à força dos Dragões, permanecia na fronteira. As mulheres passaram a ser madrinhas na localidade de Viamão, que nunca esteve sob ameaça espanhola direta. Proteger mulheres e crianças, afastando-as da área de perigo, é atitude de zelo condizente com quem prima pela preservação da família e de sua continuidade. Se o termo “recato” no texto de Venâncio é usado no sentido de precaução para evitar dano, transtorno ou perigo4, não há cuidado mais extremo do que o tomado pela família de Maria Quitéria Marques de Souza. Ela e seus filhos e filhas mais jovens foram protegidos do risco que era permanecerem em suas casas, na Vila do Rio Grande. Entretanto, se recato vem com o sentido do que se oculta à vista5, não pode estar mais distante do que se encontra registrado

4

Conforme acepção 1 do verbete “recato”, in: HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. Edição em CD. 5 Conforme acepção 3 do mesmo dicionário.

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nos livros de batismo. As mulheres da família, assim como suas crianças, eram por demais visíveis nesses registros. Protegidos, entretanto, com uma visibilidade imensa. Tentando entender esta tamanha diferença entre o comportamento das mulheres de famílias de elite do Rio de Janeiro e das mulheres descendentes dos Souza Fernando, pensa-se na diferença de modos de vida entre as duas localidades. O Rio de Janeiro era uma cidade já constituída, estava assumindo o posto de principal porto de comércio do Império português na América e, a despeito das investidas francesas do início do século XVIII, não se pode dizer que era um local de frágil defesa. Na década de 1750 havia muitas fortificações e outras formas de proteção a ataques que usavam a costa, sua face mais exposta, como via de acesso. O Rio de Janeiro era um dos pontos mais importantes do conjunto de portos portugueses existentes pelo mundo. A Vila do Rio Grande, por sua vez, em 1750 ainda era uma localidade nova, em vias de construção. A igreja matriz teve sua obra concluída por esses anos e ainda estava na memória de todos os dissabores experimentados pelos ataques à Colônia do Sacramento entre 1735 e 1737. Natural seria pensar que nesse contexto de possibilidades de ataques e revides de indígenas às propriedades rurais, de exposição direta ao inimigo espanhol quer por mar, quer por terra, as famílias e, mui principalmente suas mulheres, deveriam estar recolhidas ao lar, sem muito mostrar o rosto em locais amplos, inclusive pela situação de carência de mulheres na localidade fundada por tropas militares, evidenciada na correspondência das autoridades. Mais do que no contexto estudado por Venâncio, seria concebível a essas famílias uma espécie de agorafobia no que tange às suas mulheres. De forma diferente do Rio de Janeiro, em Rio Grande tudo ainda estava sendo construído. Não apenas casas, prédios públicos, armazéns e instalações militares, mas as próprias famílias, a economia, as escravarias, as unidades domésticas com a variedade de tipos sociais que lhes compete, a agregação de pessoas e, principalmente, as relações pessoais mais sólidas e

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duráveis. Uma maneira de adquiri-las e consolidá-las, pelo que até aqui foi visto, era através da participação em cerimônias religiosas, dentre as quais é destacado o batismo e as relações a ele subjacentes. Tornar-se padrinho ou madrinha, compadre ou comadre, afilhado ou afilhada era estabelecer vínculo para além da vida terrena. Era contrair laços que disputas, discórdias, maledicências, brigas e guerras não podiam romper. Considerando que boa parte dos homens necessitavam ausentar-se com freqüência ou sazonalmente da localidade por suas atividades, as mulheres tomavam conta da vida em suas unidades domésticas. Quer militares, quer vinculados às condutas e comércio de tropas de animais ou mesmo engajados nas muitas tentativas de aliciar indígenas ou demarcar e vigiar as fronteiras, os homens se ausentavam amiúde. Ainda que fossem nomeadamente os chefes das famílias, estas permaneceriam acéfalas se outras pessoas não assumissem “interinamente” o posto de administradores dessas unidades domésticas, econômicas e sociais. Antônio Simões ausentava-se por seu vínculo com as condutas e comércio de tropas. Manuel Marques de Souza distanciou-se das mulheres da família, sua mãe e suas irmãs, por ser militar destacado para a fronteira em guerra. Não é remota a possibilidade de que muitas das suas mulheres se incumbiam das tarefas de administração das suas famílias por períodos relativamente longos. Correlatas a essas tarefas também estariam o fato de fazer-se presente em cerimônias de batismo. Ainda que os laços sagrados entre compadres e entre padrinhos e afilhados fosse pessoal, não recaindo sobre os cônjuges de quem apadrinha ou amadrinha uma criança, as famílias eram grupos de pertencimento importantes e primavam por isso. O afilhado e o laço sagrado do compadrio eram de responsabilidade pessoal, mas as obrigações mundanas podiam ser estendidas às famílias, gerando relações que eram capitalizadas por essa organização social. As mulheres faziam-se visíveis por serem membros de um corpo com bastante

297

coesão, que necessitava da reiterada aparição pública e de manifestações de seu prestigio e de sua influência. Com essa visibilidade, a despeito de qualquer intenção de recato no sentido de recolhimento ao lar, tornaram-se pessoas públicas, talvez quase tanto quanto a parcela masculina da família e, acostumados a vê-las e tê-las em cerimônias e festividades na paróquia, não deveria haver muitos constrangimentos em convidá-las para madrinhas de uma criança sem que o convite fosse estendido a seus maridos ou filhos. Um outro motivo perceptível nos muitos registros batismais da vila, vendo o exemplo da menina Violante, citado em capítulo anterior, que ocorria principalmente nas famílias sem maiores destaques na sociedade, é a existência de um padrinho pertencente à família e uma madrinha externa a ela. O padrinho, portanto, de condição social semelhante a dos pais das crianças, e a madrinha, com condição social superior a dos pais do batizando. Pensa-se isso ser explicado pela própria situação de inconstância na paz. Essa era uma localidade na qual muitos dos habitantes, fossem eles indígenas, africanos, lusos, luso-brasileiros, espanhóis, hispano-americanos, se viram, de uma hora para a outra, sob ameaça de ataques, seqüestro ou aprisionamento. A guerra, se por um lado provoca a destruição, por outro constrói algo muito forte: a oposição entre “nós” e “eles”. Em uma situação de emergência, o padrinho – pai espiritual da criança – também se encarregaria dos deveres mundanos de um pai: prover o alimento e demais necessidades de uma criança. Confiar esses cuidados ao tio, avô ou irmão mais velho do batizando parece uma decisão muito sábia, pois os elos mundanos, dados pelo parentesco consangüíneo, seriam reforçados no parentesco espiritual. Já aos deveres da madrinha poderiam ser acrescidos os deveres de uma mãe carnal: cuidar para que estejam dignamente vestidos, que façam suas orações, que freqüentem as missas e outros ofícios religiosos, investigar os pretendentes, travar relações com suas famílias, fazer o papel de casamenteiras para seus afilhados, interceder por eles junto às suas comadres e seus compadres – gente de seu mesmo estatuto

298

social ou superior – por uma mercê, por um consentimento de casamento, por relevar faltas leves, por um serviço, por um cargo, por uma inclusão nos contingentes militares. Também é visível um outro padrão, muito usado por famílias melhor situadas social e economicamente. Visível na descendência de Antônio Furtado de Mendonça, as madrinhas são todas pertencentes ao núcleo familiar, enquanto alguns padrinhos são buscados fora da família. A intenção é clara: o cuidado diário das crianças é responsabilidade das mulheres e o compadrio pelo lado masculino busca novas alianças ou reforço dos elos que já existiam em outros âmbitos da vida, no caso dessa família, relações de comércio e exercício do poder na Câmara ou em outras áreas do poder, como os Juizados e forças da Companhia das Ordenanças. Laços mundanos que adquiriam ar sacro. Nesse contexto de incertezas e inseguranças, sobretudo as que expunham a existência física das crianças, não se podia sempre investir todas as possibilidades de relações pessoais e familiares em uma única direção. Muitas vezes, portanto, o compadrio tinha um outro sentido, apresentando uma tendência a internalizar e reiterar laços familiares já existentes, oriundos dos casamentos ou de compadrios anteriores. Ao que tudo indica, os habitantes de Rio Grande eram por demais cientes da necessidade de gerar elos pessoais e familiares fortes, com os quais pudessem contar em momentos de extrema dificuldade. As madrinhas pertencentes à esfera sobrenatural, as Nossas Senhoras e as Santas Anas, são muito raras nesse período sob estudo, ao passo que no quinto livro de registros de batismos de Rio Grande, após a devolução da Vila ao domínio luso sob novos pactos de paz, passa a ocorrer com maior freqüência. Em uma conjuntura de fragilidade de paz e de risco de morte para as crianças, foram amiúde privilegiados padrinhos e madrinhas com existência real e terrena. Com a paz, situação mais estável, os elos com o mundo sagrado, com as santas e protetores de características divinas, podia tornar-se mais freqüente.

299

Ainda sobre as mulheres dessa família, é curioso notar que, ainda que geralmente quando há a falta de um dos padrinhos em Rio Grande, é a madrinha quem está ausente, concordando, aí sim, com o dito por Venâncio. Entretanto, Maria Quitéria Marques de Souza é um dos raríssimos casos em que há madrinha mas não há padrinho. Veja-se os casos de Sofia, índia minuano, no qual homem nenhum acompanhou Maria Quitéria no ritual, configurando um extremamente raro caso de “padrinho ausente”. Em se tratando de um batismo coletivo, com dificuldades de compreensão da língua dos indígenas pelo padre, como foi dito na ata dos mesmos: e dos homens foram os mesmos padrinhos de muitos e não pude fazer este termo com mais clareza por lhe não entender a língua ainda se lhe fez a diligência (ADPRG - 1LBatRG - 1738-1753 - Lançamento do rol dos batizados celebrados a 08/09/1749, )

aventa-se a possibilidade de tratar-se de uma omissão involuntária. Entretanto, diferente dos registros de batismo das crianças de famílias mais abastadas, não foi corrigido a posteriori, podendo ser, também, o que de fato ocorreu naquele dia. Desse modo, esse batismo fica aqui colocado apenas como demonstração de que a variedade de combinações do conjunto presente na pia batismal e as variações no seus registros são muitas. Sendo feitas generalizações a partir dos padrões mais recorrentes, esses não podem apagar as especificidades encontradas. Essas também existiam e faziam parte das possibilidades na vida dos habitantes da Vila do Rio Grande, assim como mulheres que compareciam às cerimônias batismais para amadrinhar uma criança muito mais que seus filhos ou maridos. Para não alongar mais a análise acerca desse casal e sua descendência, passa-se agora ao casal Francisco Pinto Bandeira e Clara Maria de Oliveira, sendo ela filha de Antônio de Souza Fernando e Apolônia de Oliveira. Como muitos dos aspectos perceptíveis nos compadrios e nos casamentos desse ramo dos Souza Fernando foram

300

comentados quando da análise de Antônio Simões e Maria Quitéria e sua descendência, isso será feito de modo mais sucinto. 1.2. Francisco Pinto Bandeira e Clara Maria de Oliveira O casal Francisco Pinto Bandeira e Clara Maria de Oliveira une os Souza Fernando aos “paulistas”, descendentes de Francisco de Brito Peixoto, o conquistador e fundador da Laguna. Também através desse casal as duas formas de conquista, ocupação de territórios e colonização que se deram no extremo-sul (Prado, 2002: p. 44), se unem em matrimônio. Da descendência dos paulistas vêm as práticas bastante elaboradas de herança, matrimônio e avanço e migração para as fronteiras abertas a cada mostra de limitação dos recursos para a sobrevivência, tanto nos termos básicos de bens necessários para um mínimo de conforto como para sobrevivência como parcela da elite “paulista” que eram (Metcalf, 1983: p. 189; Metcalf, 1992). Francisco Pinto Bandeira, nascido na Laguna, migrou para o sul juntamente com seus tios maternos, os quais, em grande medida, situaram suas moradias em Viamão e nas imediações do Caminho das Tropas (Hameister, 2002). Já Clara Maria de Oliveira, nascida na Colônia do Sacramento, foi uma das primeiras moradoras da Vila do Rio Grande, tendo migrado para lá juntamente com seus pais após os ataques espanhóis de 1735-1737. Fazia parte dos intentos oficiais de conquista e povoação da Coroa que se levassem casais da Península e das Ilhas dos Açores e Madeira para as localidades ainda sob processo de conquista, para que promovessem a agricultura, os serviços artesanais e, com suas filhas disponíveis ao casamento, um mercado matrimonial efetivo, que fixasse os conquistadores e os soldados nas localidades granjeadas para a Coroa.

301 Ilustração 9

302

Dona Clara, assim como Francisco Pinto Bandeira, figuram como padrinhos de crianças já nos primeiros assentos de batismos de Rio Grande, o que comprova sua chegada entre os “primeiros da povoação”, como seria anotado em tempos posteriores pelo pároco Manuel Francisco da Silva, como forma de distingui-los dos que chegaram depois, principalmente dos imigrantes açorianos que começaram a se estabelecer na localidade na década de 1750. Vejam-se os filhos nascidos no Continente do Rio Grande de São Pedro: Quadro IX – Filhos de Francisco Pinto Bandeira e Clara Maria de Oliveira Criança

Padrinho

Tit

Madrinha

data

Fonte

Rafael

Diogo Osório Cardoso

coronel

Eufrásia Maria de São José

04-01-1741

1LbatRG

Desidéria

01-09-1743

1LBatRG

Maurícia

1744*

Rheingantz

Evaristo

pároco

Nossa Senhora da Conceição 06-12-1749

1LBatViamão

Felisberto José Carlos da Silva

Manuel Luís Vergueiro

padre

Teresa Gracia de Jesus

08-12-1753

1LBatViamão

José

padre

Felícia Maria de Oliveira

20-05-1760

2LBatViamão

Felícia Maria de Oliveira

04-6-1762

2LBatViamão

José Carlos da Silva

Francisca Antônio José Pinto

*Não foi localizado o registro de batismo, podendo estar entre os muitos danificados pela ação do tempo e insetos

Poucos comentários acerca dos padrinhos das crianças. Em termos de escolha feita, ela pouco difere dos padrinhos dos filhos de Antônio Simões e Maria Quitéria. O padrinho de Rafael, anotado pelo pároco como sendo coronel, era também o Comandante do Continente do Rio Grande de São Pedro. Amiúde chamado e tratado por Governador tanto nos registros paroquiais como na correspondência oficial trocada com demais autoridades. Desidéria foi batizada em casa e não foram dados padrinhos. De Maurícia não foi localizado o registro, podendo ter sido um dos tantos que se perderam por ação do tempo e dos insetos. Evaristo Pinto Bandeira tinha por padrinho o pároco Manuel Luís Vergueiro. Esse padre, além das suas atribuições religiosas, era também condutor de tropas de animais nos caminhos dos sertões, fazendo o comércio de gados e cavalgaduras. Com bastante freqüência, ausentava-se para São Paulo nessa sua segunda e provavelmente mais lucrativa atividade (ADPRG – Auto de Denúncia que mandou fazer O Reverendo Vigário José Carlos da Silva). O padrinho de Antônia agregou-se à família através do casamento

303

com Felícia Antônia de Oliveira. Esta, juntamente com Eufrásia Maria, era também descendente dos Souza Fernando. Teresa Gracia de Jesus, ainda que não se possua certeza quanto à sua identidade, é possivelmente a mesma Teresa de Jesus, filha de Dionísio Rodrigues Mendes e Beatriz Barbosa, com quem a família Pinto Bandeira guardava distante parentesco, ou ainda Teresa, filha de Antônio de Souza Fernando. Nessa família também há o compadrio com ente místico, invocando a proteção de Nossa Senhora da Conceição, padroeira da Capela de Viamão. Provavelmente promessa feita e cumprida para a proteção no parto, como foi visto por Renato Pinto Venâncio (Venâncio, 1986: p.97), já que o ato de dar a luz era o maior responsável pela morte de mulheres em idade fértil, assim como um momento de muito risco para a criança que vinha ao mundo. Para esses casos, as Constituições Primeiras estabeleciam, inclusive, instruções e treinamentos para que as parteiras pudessem ministrar o sacramento do batismo em situação de emergência no melhor cumprimento das exigências da Igreja (Da Vide, Título XVI, § 62, 1707). Nesses compadrios de Francisco Pinto Bandeira e Clara Maria de Oliveira estão as características básicas do mesmo tipo de relação firmada à pia batismal por seus parentes Antônio Simões e Maria Quitéria: pessoas do mesmo estatuto social ou superior convidadas para padrinhos. As madrinhas majoritariamente pertencentes à família e homens com posição de destaque, não pertencentes a ela. Reiteravam, por meio dos laços sagrados com essas mulheres pertencentes à família, alianças pregressas contraídas ao matrimônio ou de laços de parentesco consangüíneo. Além de cunhadas, tias ou primas, tornavam-se co-mães das crianças e irmanavam-se em espírito aos seus pais. Através do compadrio com os homens, reiteravam também alianças outras, tais como o companheirismo e pertencimento ao corpo dos comerciantes de tropas de animais, atividade também exercida por Francisco Pinto Bandeira e pelo padre Manuel Vergueiros. Ainda que não existisse uma corporação comercial formalmente constituída no Continente

304

do Rio Grande de São Pedro — e não se tenha informações sobre a formação de uma Irmandade religiosa que os aglutinasse em específico —, os praticantes de certas atividades, nas sociedades de Antigo Regime, comportavam-se e pensavam-se como um corpo, legitimados pela idéia corporativa que permeava toda a sociedade originada na filosofia aristotélica à luz da filosofia escolástica. ... possuíam uma idéia de economia bastante distinta da que vulgarmente utilizamos hoje. Não havia uma economia, mas uma pluralidade de “economias”, na acepção de que nos falava Bluteau: era a arte ou ciência “...que ensina o governo e regimento particular da casa, família, mulher, criados e administração da fazenda.” De um modo geral, esta noção de economia, mais exatamente de “oikonomia”, prevaleceu durante toda a idade moderna. Por casa se podia entender, inclusive, o Reino, do qual o Rei era o grande pater familias, sendo a analogia entre rei, senhor e pai amplamente difundida. Da mesma forma, uma irmandade ou corporação era entendida como uma espécie de família, com sua jurisdição, direitos e obrigações próprios dos irmãos (Gil, 2005 - grifo e itálicos do autor).

Segundo Bartolomé Clavero, dom e contradom, ou a reciprocidade antidoral, são fundamentais para a existência e legitimação desses corpos, instituindo-lhes as obrigações da dádiva como espinha dorsal e parâmetro para todas as medidas Sabemos as maneiras que articulavam à família em sua diversidade de espécies, das menos às mais artificiais, todas naturais: a reverência e o obséquio, a correspondência e a amizade. Têm sido uma referência contínua e pacífica de nossa doutrina. Suas trocas brindavam a melhor ilustração, os exemplos mais inteligíveis para ao mesmo tratamento da economia menos natural do tráfico de dinheiro. Representava uma profundidade social mais subentendida do que explicada. Oferecia o modelo da antidora. Era a economia que todos conheciam, mas a qual poucos lhe davam um nome e ninguém realmente, com distinção e suficiência, um tratamento (Clavero, 1991: p. 161).

Se não possuíam por certo uma corporação e possivelmente não havia uma irmandade específica no Continente que os irmanassem sob o auspício da religião católica, nem por essa falta ficavam sem derramar a graça divina sobre essas relações mundanas e, de certo modo, depreciativas. Provavelmente faziam isso também através das relações de compadrio, quando membros de um mesmo corpo, no caso criadores e comerciantes de

305

tropas, se irmanavam espiritualmente ao contrair o parentesco ritualizado à pia batismal, elevando-as, portanto, de mundanas e depreciativas, à esfera das relações especialmente abençoadas por Deus e com direitos e deveres mútuos semelhantes, mas superiores, às obrigações dos irmãos por parentesco carnal. Parece ter sido utilizado também para os praticantes das atividades castrenses, já que Francisco Pinto Bandeira era tenente quando do nascimento de seu filho Rafael e subordinado ao coronel governador Diogo Osório Cardoso, seu compadre. Não era incomum membros do Corpo de Dragões servirem como padrinhos ou testemunhas de autos matrimoniais e atividades pregressas de seus subordinados ou companheiros de armas (AHCMPA- Autos Matrimoniais - 1756-1769). Dos outros padrinhos, vê-se que o padre José Carlos da Silva é o mesmo que já havia sido vigário de Rio Grande, conhecido de longa data dos Souza Fernando e de Francisco Pinto Bandeira. Com esses também compartilhava a posição de sesmeiro nas terras de Viamão. Era a autoridade religiosa, moral e ética que adentrava à família espiritual dos Pinto Bandeira, que no mundo terreno também compartilhava certas qualidades e posses que o aproximava destas famílias bem situadas. Passa-se às observações que podem ser feitas acerca dos afilhados e escravos da família de Francisco Pinto Bandeira e Clara Maria de Oliveira, a partir dos quadros postos a seguir.

306

Quadro X – Afilhados da família de Francisco Pinto Bandeira e Clara Maria de Oliveira Criança

Pai

Mãe

tit p

Madrinha

data

Estatuto

situação

fonte

Alexandre

José Rodrigues Nicola

Inês de Lima

ten. dragões Francisco Pinto Bandeira

Clara Maria de Oliveira

08-12-1738

livre

legítimo

1LBatRG

Luís Zeferino Sebastião Gomes de Carvalho

Eufrásia Maria de São José

coronel

Clara Maria de Oliveira

05-09-1740

livre

legítimo

1LBatRG

Inocência

Sivestre Domingues

Antônia Pereira

ten. dragões Francisco Pinto Bandeira

Maria

Bartolomeu Gonçalves de Magalhães Francisca Teresa de Jesus

Manuel

Francisco Manuel de Souza

Teresa Antônia

ten. dragões Francisco Pinto Bandeira

Felícia Maria

Gertrudes

Bernardo [_]

Joana Dias Vieira

ten. dragões Francisco Pinto Bandeira

Clara Maria de Oliveira

Francisco

José Pinto Bandeira

Bernarda Gonçalves

Clara Maria de Oliveira

05-04-1752

Ricardo

Bartolomeu Gonçalves de Magalhães Francisca Teresa de Jesus

Ana

Manuel Dias, pardo forro

Rosa Maria, índia

Josefa

Bernardo Pinto Bandeira

Maria Sancha

Padrinho Diogo Osório Cardoso

Maria de Oliveira

Francisco Manuel de Souza Távora Clara Maria de Oliveira

Rafael Pinto Bandeira ten. dragões Francisco Pinto Bandeira licenciado

14-04-1741

livre

legítimo

1LBatRG

25-12-1747

livre

legítimo

1LBatViamão

21-01-1751

livre

legítimo

1LBatViamão

12-04-1751

livre

legítimo

1LBatViamão

livre

legítimo

1LBatViamão

Clara Maria de Oliveira

13-08-1752

livre

legítimo

1LBatViamão

Rafael Pinto Bandeira

Desidéria Maria Bandeira

31-05-1751

livre

legítimo

1LBatViamão

José Vasconcelos

Clara Maria de Oliveira

16-08-1753

livre

legítimo

1LBatViamão

Inácia

Martinho Correia Garcia

Ana Maria

Rafael Pinto Bandeira

27-12-1753

pardo for. legítimo

1LBatViamão

Maria

Miguel Fernandes

Maria Mendes

Rafael Pinto Bandeira

Desidéria Maria Bandeira

29-03-1755

livre

legítimo

1LBatViamão

José

Manuel Duarte do Amaral Rosa

Rosa Maria

Rafael Pinto Bandeira

Desidéria Maria Bandeira

30-03-1758

livre

legítimo

1LBatViamão

Ana

Bartolomeu Bueno da Silva

Margarida da Silveira

Francisco Pinto Bandeira

Clara Maria de Oliveira

23-09-1759

livre

legítimo

2LBatViamão

Pedro

Manuel Duarte do Amaral Rosa

Rosa Maria

capitão

Antônio José Pinto

Desidéria Maria Bandeira

24-07-1760

livre

legítimo

2LBatViamão

Antônio

Antônio José Pinto

Felícia Maria de Oliveira

Rafael Pinto Bandeira

Clara Maria de Oliveira

15-08-1760

livre

legítimo

2LBatViamão

Maria

Bartolomeu Antônio

Francisco Pinto Bandeira

Clara Maria de Oliveira

09-05-1762

livre

legítimo

3LBatRG

Joaquim

Bartolomeu Bueno da Silva

Margarida da Silveira

Rafael Pinto Bandeira

Desidéria Maria Bandeira

05-06-1762

livre

legítimo

2LBatViamão

Gertrudes

Francisco Álvares

Maria da Silva

Rafael Pinto Bandeira

Bernarda Gonçalves

21-09-1762

livre

legítimo

2LBatViamão

Pedro

José Garcia de Morais

Teresa de Jesus

Custódio Ferreira

Desidéria Maria Bandeira

26-01-1764

livre

legítimo

2LBatViamão

Francisco

José de Souza

Bárbara Maria

capitão

Francisco Pinto Bandeira

Maria de Jesus

03-04-1764

livre

legítimo

1LBatEstreito

Venâncio

Luís Antônio

Narcisa do Espírito Santo

capitão

Francisco Pinto Bandeira

Genoveva Maria do Livramento

19-08-1764

livre

legítimo

1LBatEstreito

João

Francisco Ferreira Jardim

Ana do Sacramento

capitão

Francisco Pinto Bandeira

Genoveva Maria do Livramento

01-10-1764

livre

legítimo

1LBatEstreito

Jacinta

Pascoal de Souza

Maria do Sacramento

capitão

Francisco Pinto Bandeira

Maria Bárbara

??-09-1765

livre

legítimo

1LBatEstreito

Hilário

Antônio José da Silva

Quitéria Maria da Ressurreição capitão

Francisco Pinto Bandeira

Páscoa Maria da Ressurreição

01-03-1765

livre

legítimo

1LBatEstreito

307 Maria

incógnito

Maria de Jesus

Felisberto Pinto Bandeira

Bárbara de Souza

16-06-1765

livre

legítimo

1LBatEstreito

Ricarda

Francisco de Oliveira

Maria da Silva

Bernardo José Pereira

Clara Maria de Oliveira

13-11-1765

livre

legítimo

2LBatViamão

Felizarda

João Carvalho Francês

Lourença Antônia

Francisco Pinto Bandeira

Rita da [---]

03-03-1766

livre

legítimo

1LBatEstreito

Eufrásia

Antônio José da Silva

Quitéria Maria da Ressurreição coronel

Francisco Pinto Bandeira

Úrsula Teresa Fernandes

13-02-1777

livre

legítimo

1LBatEstreito

Ezequiel

incógnito

incógnita

Rafael Pinto Bandeira

22-07-1779

livre

exposto

1LBatEstreito

coronel

Quadro XI – Batizados de escravos de Francisco Pinto Bandeira batizando

pai

mãe

padrinho

Proprietário pd

madrinha

proprietário md

fonte

data

José

Antônio de Souza Fernando

Maria de Oliveira

1LBatRG

03/08/1738

João, Cabo Verde

Antônio de Souza Fernando

Teresa de Jesus

1LBatRG

18-09-1740

Manuel de Souza

Teresa de Jesus

1LBatRG

01-09-1743

Antônio de Souza Fernando

Maria de Oliveira

1LBatViamão

08-12-1747

Quitéria Jacinto

Manuel Bartolomeu mameluco

Josefa

legítimo

Quitéria

Antônio Tapanhuma

Maria Tapanhuma

legítimo

Sebastião Tapanhuma

Cristóvão da Costa Freire Teresa Tapanhuma

Cristóvão da Costa Freire

1LBatViamão

08-12-1747

Anastácia

Manuel Tapanhuma

Josefa Tapahuma

legítimo

Antônio Tapanhuma

Francisco Pinto Bandeira Maria Tapanhuma

Francisco Pinto Bandeira

1LBatViamão

23-06-1748

Maria

Antônio, guiné

Isabel, guiné

legítimo

João, guiné

Francisco Pinto Bandeira Maria, guiné

Francisco Pinto Bandeira

Manuel

Manuel de Souza Silveira Ana Silveira

natural

Francisco Manuel de Souza

Vitorino

Mateus

Josefa

legítimo

Casemiro Pinto Bandeira

Florência

Antônio

Maria

legítimo

Sebastião

Sanches, Antônia Tapanhuma legítimo

Eufrásia de Ribeiro

forro

Mariana, mulata Cristóvão da Costa Freire Teresa

1LBatViamão

26-12-1750

1LBatViamão

20-10-1749

1LBatViamão

28-08-1752

José Rodrigues Prates

1LBatViamão

16-10-1752

1LBatViamão

14-01-1753

1LBatViamão

27/12/1753

1LBatViamão

14-04-1754

incógnito

Engrácia

natural

Jacinto Mateus

Marta

Manuel da Silva Pinto

Josefa Pinta

legítimo

Luís

José Rodrigues Prates

Tomásia

Domingos Bamba

Domingos Gomes Ribeiro Gracia

Francisco Pinto Bandeira

Inácia

Antônio Martinho, escravo

Luciana, crioula

João Baracu

Gracia Benguela

Gracia

Francisco Pinto Bandeira

Felipe

Manuel

Josefa

legítimo

Francisco

João de Macedo

Maria

Padre Tomás Clarque

Maria

João Cabaru

Gracia Angola

legítimo

Antônio, forro

Maria, tape

Nazario, pardo

Martinho, parda

Ana Silveira, parda legítimo

Estevão da Silva Conde

Maria da Encarnação

Damásio

Manuel

Josefa

Ventura, solteiro

Rosa, casada

pardo

Maria da Silva legítimo forro Ana Maria, parda forra escrava legítimo legítimo

legítimo

Dona Isabel Francisca

Rafael Pinto Bandeira José

06-03-1749 25-07-1750

Cristóvão da Costa Freire

Jerônima, mulata

Maria Rodrigues

1LBatViamão 1LBatViamão

pardo

1LBatViamão

27-10-1754

1LBatViamão

12-05-1758

1LBatViamão

12-09-1756

1LBatViamão

26-12-1756

308

A família de Francisco Pinto Bandeira e Clara Maria de Oliveira compareceu menor número de vezes à pia batismal na qualidade de padrinhos de crianças. Trinta vezes puderam ser computadas no mesmo lapso de tempo em que seus parentes, o casal Antônio Simões e Maria Quitéria, compareceram mais de uma centena de vezes. A diversidade social de seus compadres é menos expressiva. Existem pessoas pertencentes a todos os setores sociais, mas em menor medida. Nos livros de batismos consultados para esse estudo pessoas nomeadamente indígenas não foram encontrados com a mesma profusão com que foram vistos nos registros do casal anterior. Isso não quer dizer que não houvesse. Há escravos, há índios, há pardos forros. Há casais de açorianos, como Pascoal de Souza e Maria do Sacramento, pais da menina Jacinta. Há pobres e ricos. Mas com menos representantes em cada um desses grupos sociais, ficando os parentes. As mulheres vinculadas aos Pinto Bandeira compareceram em menor medida sozinhas à pia. Com muita freqüência formavam par com seus pais, irmãos ou maridos e raramente com alguém alheio à família. Clara Maria de Oliveira foi à pia batismal em companhia de Diogo Osório Cardoso que, mesmo sem pertencer à família consangüínea ou afim, apresentava uma ligação mais forte com o casal: este batizado aconteceu em setembro de 1740, e em janeiro do ano seguinte Diogo Osório Cardoso estaria novamente com essa família à pia batismal, dessa vez para o batismo do primogênito Rafael. A criança batizada por Dona Clara Maria de Oliveira e pelo coronel comandante Diogo Osório Cardoso era da descendência dos Souza Fernando, um sobrinho de Dona Clara, filho de sua irmã Eufrásia e do cirurgião-mor do presídio Sebastião Gomes de Carvalho. Rafael Pinto Bandeira, a exemplo de seu primo Manuel Marques de Souza, fez sua primeira aparição como padrinho antes da idade determinada pelas Constituições Primeiras e seu primeiro afilhado foi criança da família. Desidéria teve como primeira afilhada uma menina forra, filha de índia com um pardo forro – o que não significa

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exatamente uma ascendência africana, pois o termo, no Continente, era usado também para designar índios (Garcia, 2003). De um modo geral, essas identidades indígenas estão mais ocultas nos registros batismais de Viamão do que em Rio Grande, talvez porque boa parte dos primeiros povoadores de Viamão também tivessem ascendência indígena. Ainda que se perceba a clara intenção, nos batismos dos filhos de Francisco Pinto Bandeira e Clara Maria de Oliveira, de estreitar os laços existentes entre essas duas famílias, não se pode deixar de notar que os convites que receberam os membros dessa família ampliam a sua esfera de influência. Alguns casais de açorianos, os migrantes que “chegaram depois do início do povoamento”, estão incluídos como compadres. Também a crença na perenidade ou, ao menos, na longevidade dessas relações, é percebida quando sabemos, dada a posição privilegiada do historiador que vê os registros com uma grande distância no tempo, que o primeiro afilhado de Francisco Pinto Bandeira e Clara Maria de Oliveira na localidade de Rio Grande terá vínculo por parentesco afim com esta família. A filha bastarda “minuano” de Rafael Pinto Bandeira encontrou casamento numa dessas famílias décadas depois, vindo a desposar um irmão do menino Alexandre, afilhado de Francisco e Clara, dando origem, segundo Aurélio Porto, aos Rodrigues Lima, família de importância no Rio Grande do Sul (Porto, 1946: p. 66). Os laços de compadrio serviam, portanto, não somente para fortalecer alianças antigas; também serviam para lançar alicerce para novas alianças que podiam ampliar o leque de opções futuras para aproximações, fossem essas nos negócios, nos matrimônios ou em outros âmbitos da vida. Se iam ou não render frutos, era-lhes impossível dizer, mas podiam investir em relações novas, geradas em seus novos locais de moradia, tentando fazer com que a vida futura tivesse a alternativa de tornar-se melhor. Com os compadrios constituíam e investiam nessa sorte de bens que não são materiais, mas podem consubstanciar-se em favores e dádivas que influenciam no bem estar material e pessoal.

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Colocaram-se aqui também os batismos dos escravos dessa família por acharemse ali certas ocorrências que merecem atenção. Todos os escravos encontrados nos livros de batismo que serviram de base para este estudo pertenciam a Francisco Pinto Bandeira. Nem sua mulher nem seus filhos possuíam, a esse tempo, escravos registrados nesses livros batismais como sendo seus. Segundo Fábio Kühn (2001), Francisco Pinto Bandeira era o maior proprietário de escravos no Continente do Rio Grande de São Pedro no ano de 1751, o que demonstra que tinha uma capacidade para a acumulação bastante grande, revertida na mão-de-obra adquirida no mercado escravista bem como em possibilitar um mínimo de recursos e qualidade de vida para que sua escravaria procriasse e suas crianças subsistissem à infância. A bem da verdade, o tempo das grandes charqueadas, com produção em larga escala para o abastecimento de carnes destinadas às propriedades escravistas ainda não havia chegado. A fabricação de carnes – expressão da época para a feitura do charque – era ainda em pequenas quantidades, tendo sido documentada uma maior demanda durante os anos do Grande Cerco à Colônia do Sacramento, a partir de gados adquiridos dos lagunistas que já viviam no Continente – majoritariamente membros da parentalha de Brito Peixoto (Monteiro, 1979), incluindo o próprio Francisco Pinto Bandeira, que vendeu 100 cabeças para o encarregado da Coroa. Talvez, para o fornecimento de carnes nas expedições de demarcação de limites e no combate aos índios missioneiros amotinados contra sua expulsão e a dos padres jesuítas, na primeira metade da década de 1750, tenham-se “feito carnes” em uma escala maior. Entretanto, fazer carnes em grande quantidade não era a preocupação maior, ao menos não nesse momento, dos proprietários de terras, gados e escravos. Durante os três primeiros quartéis do século XVIII o responsável pelo ingresso de valores em metais e moedas foi o transporte e o comércio de gados em pé. Com isso, provavelmente os

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escravos passavam mais tempo ocupados nas lavouras, na feitura dos couros e no trato dos gados, transferindo-os de pastagens, arrebanhando-os e procedendo a marcação, do que na faina extenuante e insalubre do fabrico do charque. A sazonalidade era a marca das tarefas braçais, havendo uma época para o plantio e outra para a colheita, uma época para a marcação e outra para o abate de reses, uma época para separar as crias e engordá-las e outra para colocar as tropas de animais vivos a caminho das feiras do Sudeste. Era uma economia diversificada e, ao mesmo tempo, bastante restrita, sem um único grande produto a capitanear o ingresso de receitas. Havia também as guerras, ataques, saques e defesas preparadas para deter tais ataques. Essas podiam ocorrer a toda hora, ainda que o período para o qual esse estudo se dirige talvez tenha sido o de mais prolongada paz no primeiro século de existência de povoados nessa fronteira. Mas o risco de uma invasão, sempre presente nas preocupações das autoridades e dos moradores da região, expressava-se nas negociações do final da década de 1750, quando da proibição da criação de muares no Continente do Rio Grande de São Pedro. A alegação dos vereadores – boa parte deles vivendo dessa produção muar ou mantendo estreita relação com os produtores – era a de não haver no Rio Grande outras minas e que, uma vez interrompida a mais lucrativa de suas atividades, teriam de se retirar do território, deixando-o ermo e disponível à penetração espanhola. Blefe ou não, o argumento foi levado em consideração pelas autoridades de Portugal e o Rio Grande do Sul obteve permissão para dar continuidade à produção de muares, que seguia proibida no restante do Estado do Brasil (Hameister, 2002). As atividades bélicas faziam não menos parte dos afazeres dos escravos, havendo, inclusive, um escalonamento na divisão do butim de guerra que também os contemplasse. A década de 1770 foi farta em embates e em saques de guerra. Havia nas falanges do exército e milícias chefiados pelos Pinto Bandeira um grande número escravos, incluindo

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os seus, que recebiam a parte que lhes cabia do que fosse tomado dos castelhanos (Gil, 2003: pp. 35 e ss.). Para a tomada de São Martinho dispomos do cálculo realizado para a divisão do butim. O valor total do saque, retirado o quinto de Sua Majestade, foi calculado em 6.015$184 réis. Para fins de divisão cada oficial inferior, soldado, agregado, bombeiro, peão ou escravo participante foi contado como um. Os oficiais subalternos foram contados como dois. Os capitães tiveram peso três, e o comandante, peso doze (Gil, 2003: p. 39 - grifos do autor).

Os escravos dessa família, portanto, sem serem oficialmente membros das tropas, eram membros de fato, com um percentual a receber dos ganhos feitos em guerra. Sem pertencer legalmente ao corpo de guerra da Coroa portuguesa, pertenciam como combatentes que eram. E, em posição subalterna, como os soldados, agregados, bombeiros tinham uma parte do saque, assim como parte do butim tinha Sua Majestade Fidelíssima. Ao rei, cabeça de todo o corpo da sociedade portuguesa, cabia um quinto do montante ou 20% do total. Os quatro quintos restantes eram divididos de acordo com o escalonamento acima. Ora, vê-se, portanto, o reconhecimento dos escravos fazendo parte de um dos mais importantes corpos nessa situação de fronteira: aquele que fazia a efetiva manutenção dos territórios. Se recebiam pouco por sua participação, recebiam tão pouco quanto os setores livres de menor qualidade nessa sociedade. A hierarquia das tropas, refletindo também a importância da manutenção da sociedade hierarquizada que vigia ao Antigo Regime, mantinham-nos no mais baixo patamar do corpo, mas incluso nele. A situação de guerra, portanto, contribuía para o estabelecimento e mantença dessa hierarquização tão importante e que dava formato ao corpo social. Se as forças militares e a sociedade lusa eram fortemente hierarquizadas, não há onde pousar dúvidas. Entretanto, não eram excludentes. Tratavam de incluir todos os setores dentro dessa mesma massa social, que tinha a forte hierarquização a suplantar o caos que se lhe imporia em situações em que a igualdade fosse pleiteada. O que vemos

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aqui, então, são escravos incluídos – em óbvia situação inferior – no corpo militar do reino. O que tentaremos ver com os registros batismais de escravos de Francisco Pinto Bandeira é se essa inclusão era possível em outros corpos sociais. Uma opção adotada nos compadrios é estender os laços formados sob a benção da Igreja a outras famílias de igual ou superior condição social. Isso é perceptível, por exemplo, nas duas vezes em que o casal de escravos do comissário de mostras, , Cristóvão da Costa Freire batizaram filhos de escravos de Pinto Bandeira, ou ainda na escrava do Padre Tomás Clarque, comparecendo como madrinha a um desses batizados. No entendimento luso das relações de compadrio, o padrinho ou a madrinha de uma criança ou adulto teria a responsabilidade de sua orientação religiosa, nesse mundo em que a religião era o grande normatizador ético e moral da população. Um casal de escravos pertencente a uma pessoa de tão destacada posição social e, segundo Gudeman & Schwartz, por serem casados sob a benção da Igreja, já tinham introjetados muitos dos valores da sociedade cristã e seriam bons preceptores para a vida em sociedade. O mesmo pode-se supor da escrava do padre, possivelmente não apenas escolhida pelas qualidades de seu proprietário, autoridade moral e ética sobre os cristãos, mas também pelos conhecimentos do catolicismo colhidos junto ao seu senhor. Para conduzir uma criança no mundo católico, a escrava do padre pode ter tido orientação religiosa muito superior a de muitos cristãos livres da comunidade de Viamão e servir de elo entre a criança e o seu senhor clérigo. Nos primeiros registros que foram feitos em Rio Grande percebe-se que, mesmo sendo a localidade muito recente, Francisco Pinto Bandeira estava despendendo recursos para adquirir escravos africanos. Isso significa, entre outras coisas, que Francisco Pinto Bandeira, ainda que recém-chegado na localidade, era portador de cabedais que lhe permitiam essas aquisições. Não estava, portanto, despojado de bens, podendo ser esse,

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juntamente com sua patente militar, alguns dos atrativos que possuía para ingressar no clã dos Souza Fernando através do matrimônio com uma de suas filhas. Nesse quadro dos batismos de escravos de Francisco Pinto Bandeira, algumas coisas saltam aos olhos desde o primeiro momento: os dois primeiros escravos provavelmente eram adultos, adquiridos ao mercado. José e João Cabo Verde foram batizados pelo sogro ou cunhado homônimo desse e duas de suas cunhadas. Um outro padrinho, Manuel de Souza, sem acréscimo de outro sobrenome, pode ser um deslize do pároco ao atribuir Antônio de Souza como pai de Manuel de Souza ou um dos muitos homens que portavam o nome de Manuel de Souza, mas que têm alguns quesitos semelhantes. Se assim for, um dos mais prováveis era Manuel de Souza Torino, vereador em Rio Grande no ano de 1753, que tinha como cônjuge de seu primeiro matrimônio Josefa de Jesus. O nome de sua companheira à pia batismal é Teresa de Jesus, podendo ser também deslize do pároco ou mesmo um dos outros nomes adotados por Josefa. A madrinha podia ser tanto a Josefa de Jesus como Teresa de Jesus, filha de Antônio de Souza Fernando. Podia ser também o sargento de dragões Manuel de Souza, entre outras possibilidades de “Manuéis de Souza” existentes na localidade nesse ano. No caso específico desse registro de batismo, jamais se saberá exatamente quem são os padrinhos. Entretanto, isso não impede alguns dados para análise: tratavam-se de homem e mulher livres, nada tendo sido anotado quanto a ser índio, forro, pardo, escravo ou qualquer outro qualificativo junto a seu nome. Vários deles possuíam características que os diferenciavam das famílias comuns da população, fosse uma patente, fosse o cargo de vereador ou posse de terras, gados e escravos. Os três primeiros escravos de Francisco Pinto Bandeira batizados em Rio Grande, tinham como padrinhos pessoas bem além de sua própria condição e alguns deles pertencentes à família de seu senhor. Estavam, portanto, do ponto de vista da família espiritual, inseridos na grande família formada por parentescos

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rituais e fictícios. E como a sociedade e a família se organizavam a partir da hierarquização das posições, estavam inseridos nela, nos estratos inferiores desse corpo social, como escravos, privados de sua liberdade. Mas não estavam alijados da participação nesse corpo. Um outro traço marcante na escravaria de Francisco Pinto Bandeira é a quase inexistência de crianças bastardas filhas de seus escravos. Em sua maioria ou são escravos novos, cujos pais são ignorados nos registros, ou são crianças filhas legítimas desses escravos. As únicas exceções são duas crianças ditas naturais, uma delas, o menino Manuel, filho de pai livre, nomeadamente Manuel de Souza Vieira. O menino Manuel, homônimo de seu pai livre, foi alforriado à pia, recebendo de seu pai o nome e muito provavelmente a liberdade adquirida pelo costume de não ser negada a alforria no batismo. Seu padrinho era, possivelmente, seu tio paterno. A outra, a menina Jerônima, dita mulata em seu registro, era filha de pai incógnito com a escrava Engrácia. O pai, dada a característica de miscigenação expressa na situação de “mulata” da criança, provavelmente era “branco” e provavelmente livre. Muitos desses filhos de pais “incógnitos” eram filhos de pessoas conhecidas e reconhecidas na comunidade, como expresso nas Constituições Primeiras: E quando o batizado não for havido de legítimo matrimônio, também se declarará no mesmo assento do livro o nome de seus pais, se for cousa notória e sabida, e não houver escândalo; porém havendo escândalo em se declarar o nome do pai, só se declarará o nome da mãe, se também não houver escândalo, nem o perigo de haver(Da Vide, Livro I, Título XX, § 71, 1707).

O restante das crianças filhas de escravos eram nascidos de legítimo matrimônio e foram registrados como filhos legítimos. Essas crianças continuaram sendo batizadas por membros da família, ao mesmo tempo em que se introduziam outros recursos para amalgamar as famílias escravas que viviam nas propriedades de Francisco Pinto Bandeira. Parece haver um estímulo para a formação de parentescos fictícios ou espirituais dentro da

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própria escravaria. Pares de escravos de Francisco Pinto Bandeira eram padrinhos de seus companheiros. Geravam-se no parentesco espiritual as relações, ou simulacro das relações, que haviam sido abruptamente interrompidas com a captura de escravos na África e sua posterior venda como “peças” no mercado escravista desse lado do Atlântico. Diz James H. Sweet: A despeito de um punhado de exemplos de relações ancestrais que sobreviveram à travessia, a dolorosa realidade da escravidão nas Américas fez com que as linhagens natais da maioria dos africanos fosse quebrada para sempre. E não importa como sucedesse de um indivíduo criar novas redes parentais, essas redes de relações de parentesco corporativo ou fictício podiam nunca restaurar as que foram perdidas no rompimento do parentesco da unidade natal. Ser removido de uma rede parentesco fazia alterar todo o ciclo vital de modo inimaginável à maioria dos ocidentais. (...). Encarar esse desafio sozinhos, sem o suporte coletivo e compreensões compartilhadas com a rede de parentesco natal, era equivalente à morte social6. E, apesar da recriação de uma variedade de parentescos formados nas Américas, a perda dos parentes natais deve ter pesado fortemente nas vidas daqueles que foram escravizados e nas vidas daqueles parentes consangüíneos que foram deixados para trás na África. (Sweet, 2003: pp. 31-32)

Sweet interpreta a baixa quantidade de escravos casados sob os auspícios da Igreja e que têm seus filhos como filhos naturais, com “pai ignorado”, como uma forma de recusa e resistência aos ensinamentos dos cristãos e seu modo de vida, ao mesmo tempo em que era uma afirmativa de seus antigos costumes de liberdade sexual (Sweet, 2003: pp. 34-50) . Entretanto, silencia quanto ao grande número de escravos africanos ou filhos de africanos que eram batizados. A baixa incidência de filhos naturais entre a escravaria de Francisco Pinto Bandeira será comentada adiante. Os casos de registros de filhos naturais, com ou sem paternidade reconhecida, eram bastante freqüentes, sendo essa configuração da escravaria de Pinto Bandeira não necessariamente uma exceção, mas um tanto mais difícil de ser encontrada.

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O autor refere-se à “morte social” conforme o trabalhado por Orlando Patterson, em Slavery and Social Death. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1982.

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Registra-se aqui que, a introdução no mundo cristão dava-se, e ainda é assim, pelo batismo, assim como na religiosidade africana se dava através de rituais de iniciação. Em nenhum dos dois casos a inclusão nos âmbitos social, econômico, religioso e cultural é feita através do matrimônio. Pode-se pensar que, para uma nova realidade, em que o mercado matrimonial é bastante restrito aos cativos e que estes usualmente ocorriam dentro de uma mesma escravaria, que essa recusa ao matrimônio podia ser uma estratégia bastante simples para fazer valer alguns dos costumes e práticas matrimoniais ancestrais. A Igreja católica estabelecia o parentesco de até quinto grau como motivo de impedimento matrimonial. Ao serem ocultos os nomes dos pais das crianças, preservava-se, portanto, ao menos a linha paterna para os matrimônios e procriações endógenas, já que não havendo o parentesco reconhecido tampouco haveria a interdição ou o empecilho do matrimônio entre primos ou entre tios e sobrinhos. Essa possibilidade merece mais atenção e um estudo mais detalhado, ficando essa intenção registrada para trabalhos futuros. O que assistimos, portanto, com os compadrios entre os escravos de Francisco Pinto Bandeira e entre estes e escravos de pessoas de situação social semelhante ou superior, como era o comissário de mostras Cristóvão da Costa Freire, proprietário de padrinhos “tapanhumas” de duas crianças, filhas de “tapanhumas”, era, possivelmente, a formação de uma rede parental fictícia que reproduzia ou simulava laços que lhes foram rompidos com a escravização. Uma reinvenção de parentelas que se assemelhassem àquelas que foram deixadas na África ou que ficaram esparsas na América. A desinência “tapanhuma”, é corruptela de tapanhuna ou tapanhuno, herdada dos paulistas, palavra de origem indígena usada para os escravos negros (Monteiro, 1994 : p. 119). A aglutinação predominante de escravos negros em famílias e parentesco fictício não excluía a introdução de indígenas nessas redes que tentavam reconstituir um terreno mais ou menos seguro para a existência em grupo. Há um “mameluco”, referência muito

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rara nesses registros dada filhos de brancos com indígenas. Entre qualificativos dados a esses escravos e forros há também a estranha desinência de “pardo forro escravo de Francisco Pinto Bandeira”. O uso dos termos antagônicos “forro” e “escravo” deve ter sido a solução dada pelo pároco para a paradoxal situação dos indígenas sob administração particular sob a luz da nova legislação pombalina que a proibia, em especial a Lei de Liberdades e o Diretório dos Índios. Esse batismo deu-se no ano de 1756, no momento em que tais leis eram ainda novidade. Pouco que Pinto Bandeira houvesse a adotado de imediato. Faz-se a especial observação de que a existência de parentescos rituais não era estranha nem aos índios nativos do sul ou os que para lá foram conduzidos desde o sudeste. Também não eram novidade para a imensa maioria dos africanos. A utilização de um meio tipicamente cristão para a geração de redes de parentesco fictício e ritual pode ter sido uma porta convidativa aos “estrangeiros” – índios ou africanos – para ingressarem nessa sociedade cristã. Podia ser uma “tradução” dos ritos africanos e autóctones para “idioma” dos costumes cristãos e suas expressões próprias. Para os escravos, a utilização dessa forma de ingresso no mundo da cristandade admitida pelos conquistadores e povoadores e, mais do que isso, estimulada por eles, pode ter permitido a recriação de laços em moldes mais ou menos semelhantes aos conhecidos desde a infância na África. Podem ter sido “lidos” e interpretados pelos africanos e afrodescendentes a partir de uma óptica que, em seus traços, mínimos pôde ser captada dos ensinamentos cristãos. Ainda que não se possa generalizar, boa parte das sociedades africanas tinha na base de suas religiões a crença na dualidade corpo e espírito. Um corpo portador de uma alma de vida eterna, independente, que pode ausentar-se do corpo por momentos, procedendo a viagens místicas e que sobrevive à morte do corpo. Após o passamento, a alma dos mortos podia ir visitar parentes locais onde viveram. Os dissabores que os vivos

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experimentavam estariam, em muitas dessas concepções, vinculados a falhas e desleixo no culto dessas almas ancestrais (Sweet, 2003: pp. 104-105.). No rito cristão do batismo há corpos mortais e almas eternas. Há, por um momento, a união das duas esferas na pia batismal, o que pode ser “traduzido” para “idiomas religiosos” dualistas. A idéia, portanto, da possibilidade de um perfilhamento que faziam os espíritos dos adultos ao tomar para seu cuidado as almas das crianças ou dos que recém haviam feito a travessia do oceano – que para muitas religiões era uma analogia para a morte – e o irmanar-se das almas no ato do batismo, não deveria estar tão longínquo assim de quem previamente sabia que existia um mundo que pertencia somente aos espíritos, inacessível aos corpos que ainda vagavam no mundo de sofrimento e dor, possivelmente os maiores seriam aqueles que se iniciaram com a captura na África, seguindo-se de doenças, morte e dor durante a travessia e a realidade da escravidão que seguiu-se a esses. O significado do renascimento próprio do batismo cristão bem poderia tomar também esse significado nos “idiomas religiosos africanos” que, após a travessia do oceano – ou a morte – tinham uma nova vida em um local diferente. Ao fazer a análise do parentesco espiritual dentro do complexo da Santeria cubana, ritual de origem yorubá, Mary Ann Clarck, destaca em seu artigo Godparenthood in the Afro-Cuban religious tradition of Santeria (2003), que essas davam-se em duas esferas. De um lado as relações interpessoais, dadas entre os iniciados e seus iniciadores e, por um conjunto de conexões religiosas, a existência de um vínculo entre um iniciado e os demais, que foram dadas pelo iniciador. A segunda, entre o iniciado e as deidades da Santeria, no qual os protegidos de um mesmo orixá guardavam também relação entre si. A autora optou por explorar algumas das origens dessas relações pessoais focalizando também a origem cultural dos termos de parentesco e como elas foram transformadas no contexto da Santeria.

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Ainda que a realidade cubana enfrentada por aqueles que haviam completado e sobrevivido à travessia do Atlântico fosse diferente dos que vieram para a Colônia lusa, a origem não difere muito. A experiência de construção de parentescos fictícios nos ritos de iniciação religiosa na África eram comuns. Também eram comuns muitos dos traços das sociedades coloniais para as quais foram trazidos. Parentescos rituais existiam em África, em Europa e também na América. Sílvia Maria Jardim Brügger (2004) desenvolve raciocínio semelhante para os rituais afro-brasileiros durante o período escravista, nos quais deidades africanas e figuras do rito de compadrio se juntam na iniciação de seus membros. Essa autora vê a presença dos orixás e outras entidades contracenando com padrinhos e madrinhas nos rituais que nominavam os escravos e os inseriam, ritualmente, nas suas comunidades. Os ritos afro-brasileiros apresentam, por conseqüência e por mais tênues que sejam, semelhanças com os ritos afro-cubanos, tais como uma existência espiritual que antecede ao nascimento para o mundo terreno, a dualidade corpo/espírito, a iniciação através de um preceptor denominado padrinho ou madrinha. Apresentam também suas idiossincrasias. Entretanto, as bases sobre as quais foram construídas são comuns: a religiosidade africana pregressa e a nova religiosidade católica. Ainda que possuam características que por vezes muito as diferenciam, há que se levar em consideração o rompimento dos elos de iniciação religiosa quando do início do cativeiro, ainda na África: aquilo que se dava no seio da família e da comunidade natal, unindo parentesco consangüíneo e afim não mais era exeqüível na nova vida que lhes foi imposta. Havia a possibilidade de levar à morte social que a abdução representou às vias de fato: não inserir-se, não resistir, não sobreviver, inclusive fisicamente, ao novo meio. Havia também a possibilidade de, através do conhecimento preexistente, reinventar elos e laços parentais entre aqueles que não compartilhavam dos mesmos grupos de parentesco. Segundo Mary Ann Clark, a iniciação religiosa nos ritos yorubá se dava com um iniciador

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pertencente à família e mais velho do que o iniciado, pais ou avós iniciando seus filhos e netos (Clark, 2003: p.45-47). Dado o rompimento das famílias com o fenômeno da captura e escravização de alguns de seus membros e posterior venda para diferentes localidades das colônias lusas, a reinvenção de uma sociedade e de uma religiosidade não mais calcadas nos elos consangüíneos ou afins, e sim usando dos mais antigos, provavelmente com conhecimentos mais profundos dos ritos ancestrais, como iniciadores nos rituais religiosos, veio dar lugar a uma nova forma e configuração de parentesco, uma nova organização familiar, fictícia ou corporativa, que simulava e, ao mesmo tempo, tentava reproduzir aquelas formas já conhecidas (Clark, 2003: p.45-47). Não era exatamente a mesma coisa, mas vinha tentar suprir a lacuna do drástico rompimento ao qual se refere Sweet. Na Santeria afro-cubana, os iniciadores religiosos foram os mais velhos das comunidades de escravos e, posteriormente, os anciãos da comunidade afro-cubana. Os adeptos dessas novas formas de manifestações religiosas que têm os cultos yorubá como ponto de partida, chamam seu iniciadores, geralmente não pertencentes à rede parental consangüínea e afim através da apropriação dos termos do parentesco ritual católico construídos no rito do batismo. Os iniciadores na religião são chamados de padrino e/ou madrina, e guardam semelhança em suas funções religiosas e sociais com os padrinos e madrinas cristãos: zelam pelas vidas religiosas e mundanas dos ahiados como protetores. Eludiam assim, a “morte social” cujo conceito elaborado por Patterson foi usado por Sweet ao analisar o que ele chama de recriação da África no contexto da América lusa. Na Vila do Rio Grande, na qual uma comunidade de africanos e afro-descendentes estava ainda por se constituir, assim como a sociedade ainda estava por fazer-se a partir de conhecimentos e experiências pregressas, não havia muitos “anciãos africanos” para servirem de iniciadores nos ritos religiosos. Por outro lado, encontraram na nova localidade

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formas de parentesco ritualizado que vinculavam pessoas que não pertenciam necessariamente ao mesmo núcleo familiar, fosse de parentesco afim ou consangüíneos. A esses africanos foi oferecida a possibilidade de vincularem-se a “protetores espirituais”, iniciadores nos ritos da cristandade no ato do batismo, que para os católicos também tem o significado de renovação, renascimento, deixar para trás o pecado original ou a vida pregressa e inserir-se no novo mundo que a eles se lhe impunha. Não parece ser por acaso que os escravos novos de Francisco Pinto Bandeira tiveram padrinhos, ou seja, preceptores, pertencentes à própria família, no caso o sogro e cunhadas de Francisco Pinto Bandeira. Também não parece acaso que para padrinhos das crianças filhas de “tapanhumas” tenham sido escolhidos padrinhos também “tapanhumas”: guias espirituais e protetores pertencentes a este mundo, já iniciados nos conhecimentos místicos tanto da cristandade quanto do mundo africano que havia ficado para trás. Esses guias espirituais e protetores acabavam gerando ligações fortes entre as famílias que se formavam internas à escravaria de Francisco Pinto Bandeira. Também não parece por acaso que, eventualmente, um membro das famílias escravas crioulas ou já ladinas fosse convocado ao compadrio com escravos africanos novos: propiciavam para mais uma geração, além das cadeias de reciprocidade a proteção, auxílio, orientação espiritual, normas de comportamento social, respeito e devoção formadas nas gerações anteriores. Em uma seqüência de rompimentos e clivagens, tais como uma existência africana que fora abortada com o cativeiro, os laços familiares e sociais rompidos com a abdução, a necessária convivência com o desconhecido, as diferenças sociais marcantes existentes na sociedade lusa, que separavam os melhores dos comuns, os livres dos escravos, os gentios dos cristãos, a instituição do compadrio parece ter sido um dos tecidos instersticiais entre esses inúmeros estatutos e qualificadores sociais. Fazia com que se compartilhasse o sentimento de pertença a uma ou mais de uma unidade política, econômica e social, que

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eram as famílias, tanto as formadas pelos escravos como as senhoriais às quais, em vários sentidos, pertenciam. A instituição cristã do compadrio e apadrinhamento pode ter contribuído, portanto, não de um modo sincrético como quer Clark, mas no sentido de uma reelaboração dos conhecimentos trazidos das comunidades natais para a nova realidade com que se defrontavam, gerando formas de convívio, de relacionamentos parentais físicos e espirituais, de interpretação do mundo e de práticas religiosas mestiçadas. Sendo as vertentes desse novo “parentesco” tão distintas, concorriam para um mesmo ponto: a consecução da vida de tantos estranhos e migrantes na nova localidade que se formava, tanto para o corpo como para a alma eterna. Seria possível que, através das bases mínimas dos conhecimentos religiosos africanos, compreendessem e acabassem por serem inseridos por vontade própria na nova realidade, sem que a anomia e o caos provocados pelo rompimento de suas vidas normais junto às suas famílias, amigos e orientadores espirituais predominassem nessa nova existência de privações e provações. As noções básicas da religiosidade dos ancestrais e a aceitação mínima de alguns princípios do catolicismo os jogavam para dentro da sociedade lusa nessa fronteira. Se todas as novas experiências geravam o efeito da entropia, o parentesco religioso encontrado à pia batismal jogava um peso muito grande como uma força centrípeta, atraído-os e mantendo-os junto ao núcleo familiar de seus senhores. Com isso, não parece difícil entender porque e principalmente depois de alforriados, alguns escravos conduzissem em seus nomes os sobrenomes ou os prenomes de seus senhores: designavam o locus social de origem no mundo luso-brasileiro. Os africanos e seus descendentes, se acreditarmos na existência de uma cultura oral, do costume da educação e orientação moral e religiosa passados dos mais velhos para os mais novos, puderam conduzir suas experiências pregressas mescladas aos novos

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conhecimentos sociais, religiosos e econômicos, gerando uma forma peculiar de pertencimento. A adoção do cristianismo, com maior ou menor conhecimento de seus ensinamentos, com maior ou menor utilização das bases religiosas africanas, pode não ter sido somente um fator de predomínio cultural dos conquistadores sobre o restante da população. Pode ter sido, também, um fator que permitiu a essas populações escravizadas e situadas no sopé da escala social na Colônia, gerarem formas de vinculação reais ou fictícias que lhes possibilitaram a existência social em contrapartida à morte social que a abdução representou em suas vidas. A incorporação dos mitos, ritos e santos da cristandade ao panteão africano e aos comportamentos sociais pregressos pode ter significado um fôlego na existência dessas tradições, ao invés de seu esmagamento por total pelo escravizador luso. O mais instigante de tudo é que, tanto sob a óptica dos senhores como da óptica de suas escravarias, ambos se inseriam numa mesma rede de parentescos rituais e espirituais, haja vista o filho do senhor de todos esses escravos, Rafael Pinto Bandeira, comparecer como padrinho a um desses batizados, o mesmo acontecendo com outros parentes, tanto do ramo dos Pinto Bandeira como do ramo dos Souza Fernando. O significado mais imediato desse parentesco ritual era amalgamar os diferentes estratos, estatutos e qualificações sociais coexistentes em uma unidade doméstica, dando a noção de pertencimento a um corpo que tinha representantes, em seu interior, de todas as camadas existentes na própria sociedade. Os “meus ancestrais”, os “teus ancestrais”, vinculados através dos ritos que uniam espíritos ou almas, com fundamentos diferentes para cada uma dessas duas concepções religiosas, mas que compartilhavam da crença na existência dual corpo/espírito, sendo o segundo eterno e superior ao primeiro; poderiam dar-lhes a noção do “nosso corpo social e familiar” em contraste àquelas redes parentais – reais ou fictícias – com as quais não guardavam relações. O “meu mundo”, unido ao “teu mundo” dava a

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noção – verdadeira ou falsa, não vem ao caso – de estarem construindo, cientes da necessidade de haver diferenças entre uns e outros, um “nosso mundo”, ordeiro e bastante coeso, um corpo social e familiar único, nos quais as diferenças de estatutos internos que o hierarquizassem eram fundamentais para seu funcionamento. A exclusão social, então, voluntária ou imposta, estava ausente dos intentos de senhores e escravos ao levarem à pia batismal os adultos boçais recém chegados e as recém-nascidos filhas de escravos. O ato do batismo servia para internalizá-los, incorporá-los espiritualmente às unidades domésticas às quais pertenciam em suas existências mundanas. Agregados sob um catalisador de relações sociais tão forte quanto o sistema de compadrio, parece bastante compreensível que, durante o período sob estudo, não surgissem significativas revoltas, fugas massivas ou muitos atentados contra membros das famílias senhoriais. A opção amiúde adotada nos compadrios é estender os laços formados sob a benção da Igreja a outras famílias de igual ou superior condição social é perceptível, por exemplo, nas duas vezes em que o casal de escravos do comissário de Mostras Cristóvão da Costa Freire batizou filhos de escravos de Pinto Bandeira. Ou ainda na escrava do Padre Tomás Clarque, comparecendo como madrinha a um desses batizados. Interrompe-se aqui as observações acerca dos Souza Fernando e dos Pinto Bandeira, passa-se a visualizar os compadrios de uma outra família de posses, tanto em bens de raiz como em bens móveis nessa porção meridional da Colônia e que possui uma configuração familiar um tanto mais complexa.

2. As famílias de Antônio Gonçalves dos Anjos, Antônia de Morais Garcês e Domingos Gomes Ribeiro Desde a primeira década de existência do povoado de Rio Grande há registros de batismos que anotam o nome dessas três pessoas. Antônio Gonçalves dos Anjos era natural

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de Matosinhos. No tempo em que viveu em Rio Grande exerceu as atividades de condutor de tropas (AAHRS, 1977 - Registro de um despacho do Mestre-de-Campo André Ribeiro Coutinho: p. 105), conduzindo-as desde o sul através da Barra da Lagoa, possivelmente dando prosseguimento às viagens que terminavam nas feiras de gados e cavalos que existiam em São Paulo. Possivelmente, ainda que não se tenham encontrado registros dessa atividade, foi também criador de animais, já que nas primeiras décadas da existência da localidade não havia uma especialização muito grande nem a divisão por completo entre aqueles que conduziam os animais a seus mercados e aqueles que os produziam para o comércio. Atividade também correlacionada à criação dos animais era a extração de subprodutos para o comércio, o fabrico dos couros, exercida por Antônio Gonçalves dos Anjos (AAHRS, 1977, - Registro de uma petição feita a requerimento de Francisco Lopes da Silva e Antônio dos Anjos, : pp. 74-74) . Esse homem, em sua transferência para o Rio Grande, trouxe consigo sua mulher, nascida no Rio de Janeiro e com família também nas Minas. Dona Antônia de Morais Garcês, apesar da alegação de seu marido de possuir frágil saúde, era requisitada como madrinha de crianças no povoado. Entre os anos de 1740 e 1748 Dona Antônia compareceu à pia batismal na condição de madrinha ou nomeou procurador para que a representasse por catorze vezes. Em contrapartida, seu marido compareceu apenas três vezes, talvez em função de sua atividade de preador de gados e condutor de tropas. Nessas ocasiões, o parceiro mais freqüente de Dona Antônia de Morais Garcês era o capitão Domingos Gomes Ribeiro, que foi padrinho em seis dos batizados que Dona Antônia foi madrinha (ADPRG - 1LBat-RG, 1738-1753). Dona Antônia de Morais Garcês sofria de muitas doenças, segundo alegação de seu marido Antônio Gonçalves dos Anjos. O requerimento que este encaminhou em 1740, dizendo da necessidade de tratamento de sua esposa onde houvesse médico, medicamentos

327

de botica e solicitando autorização para que se dirigissem ao Rio de Janeiro em busca de melhores ares para os maus humores que afligiam sua esposa, foi atendido depois de ter esta sido examinada pelo cirurgião-mor do presídio, o licenciado Sebastião Gomes de Carvalho, genro de Antônio de Souza Fernando. Dizia a certidão emitida pelo licenciado e anexada ao requerimento: Dona Antônia de Morais padece continuamente de moléstias, tanto de erisipelas universais como também de moléstias nos olhos continuamente, procedido tudo de um parto infeliz que teve, de que lhe não ficou lúbrico o seu ordinário; e padece continuamente de dores de cabeça que lhe dão grande moléstia... (AAHRS, 1977, - Registro de uma petição feita a requerimento de Francisco Lopes da Silva e Antônio dos Anjos, : pp. 74-74)

A despeito de sua saúde, Dona Antônia de Morais sobreviveu à própria existência do marido. No registro batismal do menino Manuel, filho de José Dias de Menezes, feito no dia 12 de fevereiro de 1747, ela foi dita viúva. Nos dois batismos seguintes em que foi convidada para madrinha, Dona Antônia não compareceu às cerimônias. Passou procuração a dois representantes no mês de maio. Voltou a atuar como madrinha no mês de setembro do mesmo ano. Em novembro foi madrinha de seu próprio neto, Manuel, filho do alferes Joaquim Francisco Homem e de sua filha Ana Francisca. O padrinho foi novamente Domingos Gomes Ribeiro. Depois de seu neto, foi madrinha de mais uma criança, em maio de 1748 (ADPRG - 1LBat-RG. 1738-1753). Sua próxima aparição como madrinha em Rio Grande deu-se no dia 28 de outubro de 1748, um ano e seis meses após ter sido dita viúva pela primeira vez, sendo o padrinho Domingos Gomes Ribeiro, agora dito seu marido (ADPRG - 1LBat-RG - Registro batismal de Eufêmia, filha de Francisco Gonçalves, 28/10/1748.). Desse casamento ao menos duas crianças nasceram: Vicente e Rosária. Domingos Gomes Ribeiro, já tantas vezes citado aqui, também era viúvo. Fora casado com Maria Engrácia Rodrigues Lima e com ela teve pelo menos um filho

328

homônimo seu. Natural da freguesia de São Miguel de Carvalho, no bispado de Braga, Domingos Gomes Ribeiro teve passagem por Laguna e foi vereador de sua Câmara no ano de 1732 (Cabral, 1976: p. 154). Transferiu-se para Rio Grande nos primeiros anos de existência do povoado. Em Rio Grande possuía terras, duas sesmarias que lhes foram dadas com posse homologada por Gomes Freire de Andrade, durante a expedição de Demarcação dos Limites do Tratado de Madri. A despeito dessas cartas de sesmaria serem datadas da primeira metade da década de 1750, em sua solicitação Domingos Gomes Ribeiro alegava possuí-las de longa data (RAPM, v. XXIII, 1929: 474-475; RAPM, v. XXIV, 1933: pp. 248-250). Também participou das atividades de conduta de gado, subscrevendo em 1749 uma carta contendo a opinião dos moradores de Rio Grande acerca do local onde deveriam ser cobrados os Direitos das Passagens dos Gados no Registro de Curitiba (AAHRS - Resposta que deram os moradores casais desse estabelecimento, 1977: pp. 234-235) Domingos Gomes Ribeiro também era padrinho bastante solicitado na Vila do Rio Grande, tendo comparecido à pia batismal mais cinco vezes além daquelas em que acompanhou Dona Antônia antes de serem casados. Com a morte de Antônio Gonçalves dos Anjos e posterior casamento de Domingos Gomes Ribeiro e Dona Antônia, tem-se a impressão, ao analisar as qualidades dos compadrios dessa família, ter havido uma fusão das redes de compadrio que vinham desde o núcleo Antônio Gonçalves e Antônia de Morais com as que vinham da parte do então viúvo Domingos Gomes Ribeiro. Essas relações, se as entendemos como patrimônio social construído na vivência da Vila do Rio Grande, foram também repassadas como uma espécie de herança imaterial. A complexidade da trama dos compadrios dessa família que tem seu início em dois casais distintos é muito impressionante, pois envolve também os compadrios de seus escravos, que puderam ser detectados a partir da lacunar documentação existente. Há, portanto, a

329

necessidade de colocação de vários quadros abaixo que são de certo modo contínuos e interligados, mas cuja separação se fez necessária para que se pudesse analisar essa origem bifurcada, bem como as suas diferenças e semelhanças quando da fusão dessa. O marco para o momento da fusão é primeira aparição de Domingos Gomes Ribeiro e Dona Antônia de Morais como marido e mulher nos registros batismais, ainda que o que foi chamado de “compadrios Anjos-Garcês” tenham continuidade após a morte de Antônio Gonçalves dos Anjos, com os compadrios da filha e do genro.

330

Quadro XII – Afilhados da Família Antônio Gonçalves dos Anjos -Antônia de Morais Garcês Criança

Pai

Mãe

Padrinho

Madrinha

data

fonte

Tomas

Antonio de Almeida

Joana Pereira

Antonio Goncalves dos Anjos

Antonia de Morais Garces

16-03-1740 livre natural 1LBatRG

Jose

Joao de Souza da Costa

Maria Nogueira de Jesus

Antonio Goncalves dos Anjos

Antonia de Morais Garces

04-04-1740 livre legitimo 1LBatRG

Helena

Miguel de Mendonca

Maria Teixeira

Manuel Henriques

Antonia de Morais Garces

29-04-1740 livre legitimo 1LBatRG

Ana

Joao da Cunha

Antonia Maria de Jesus

Domingos Gomes Ribeiro

Antonia de Morais Garces

17-05-1741 livre legitimo 1LBatRG

Manuel

Manuel Duarte

Vitoria da Costa

Domingos Gomes Ribeiro

Antonia de Morais Garces

19-06-1741 livre natural 1LBatRG

Domingos

Manuel da Silva Varges

Pascoa Maria

Cosme da Silveira

Antonia de Morais Garces

06-12-1741 livre legitimo 1LBatRG

Antonio

Roberto Edmunds

Jean Poor

Antonia de Morais Garces

27-05-1742 livre legitimo 1LBatRG

Joana

Silvestre Domingues Pereira

Antonia Pereira

capitão

Antonia de Morais Garces

17-11-1742 livre legitimo 1LBatRG

Antonio Coelho

Maria do Rosario

alferes

Joao da Cunha

Antonia Maria de Jesus

Manuel Jose

sargento

Joaquim

soldado dragao Lourenco Marques

Ana Maria

padre

Domingos Gomes Ribeiro

alferes

Antonio Goncalves dos Anjos

Dona

Manuel Pereira Roriz

Antonia de Morais Garces

12-08-1743 livre legitimo 1LBatRG

Domingos Gomes Ribeiro

Antonia de Morais Garces

29-12-1744 livre legitimo 1LBatRG

Joaquim Francisco Homem

Nossa Senhora do Rosario

24-04-1746 livre legitimo 1LBatRG

Domingos Gomes Ribeiro

Antonia de Morais Garces

20-11-1747 livre legitimo 1LBatRG

Domingos Gomes Ribeiro

Antonia de Morais Garces

12-02-1747 livre legitimo 1LBatRG

Luis Goncalves de Souza

Antonia de Morais Garces

04-09-1747 livre legitimo 1LBatRG

Manuel

Joaquim Francisco Homem

Ana Francisca

Manuel

Jose Dias de Menezes

Marta

Manuel

Joao Gomes de Oliveira

Apolonia da Silva

Maria

Manuel da Assuncao e As

Antonia Maria de Oiveira

Francisco Coelho Osorio

Antonia de Morais Garces

07-05-1748 livre legitimo 1LBatRG

Inacia

Eusebio Alvares de Souza

Luisa Maria da Fonseca

Jose da Silveira

Ana Francisca dos Passos

10-08-1750 livre legitimo 1LBatRG

Manuel da Cunha

Ana Francisca dos Passos

16-08-1750 livre legitimo 1LBatRG

Angelica Teresa

16-02-1751 livre legitimo 1LBatRG

Ana Francisca dos Passos

16-06-1751 livre legitimo 1LBatRG

Rogerio

alferes dragões Manuel da Cunha e Souza

Maria Gomes

padre jesuita

Marta Antunes de Souza

alferes dragoes Joaquim Francisco Homem

Jose

Antonio da Cunha Viegas

Antonio

Domingos de Lima Veiga Gertrudes Pais de Araujo Antonio Xavier Cavalcante, Antonia de Morais, parda forra pardo forro

Rosalia

sargento

Marcal de Lima Veiga alferes

Joaquim Francisco Homem

01-10-1756 livre natural 2LBatRG

331 Quadro XIII – Batismos de Escravos Família Antônio Gonçalves dos Anjos -Antônia de Morais Garcês batizando pai Manuel

incognito

Inacio

Manuel, cabo Verde

Hilario

Francisco, fula

Nazario

Manuel Goncalves

Antonia

Francisco Goncalves

Bento

Manuel, cabo Verde

Jose

Francisco, Benguela

Mariana

Manuel

Joao

Joao, angola

Francisco Francisco Teodosia

Luis Vieira

Maxima

Manuel dos Anjos

mãe

proprietário Antonio Goncalves dos Maria Goncalves Anjos Antonio Goncalves dos Josefa, Benguela Anjos escarvo Antonio Goncalves dos Maria, Benguela Anjos Antonio Goncalves dos Josefa do Rosario Anjos Antonio Goncalves dos Maria dos Anjos Anjos Antonio Goncalves dos Josefa, Benguela Anjos cabo Antonio Goncalves dos Maria, Benguela Anjos Antonio Goncalves dos Josefa Anjos Maria Pequena, Antonio Goncalves dos Anjos angola Antonio Goncalves dos Anjos Maria Antonia de Morais Garces Antonia, mulata Antonia de Morais Josefa de Morais Garces

padrinho

prop pad

Paulino da Costa

Ascenca da Anunciacão Manuel Francisco escrava Domingas da Costa

Jacó

madrinha

Luis Mendes Inacio Soares Domingos Gomes Ribeiro Simplicio Antonio Luis Vieira Jose Meireles Diogo Francisco Severim Rafael Rodrigues de Andrade Manuel Lopes Vilas Boas Manuel Alves Guimaraes

prop mad

livro

data

natural escravo 1BatRG 25-01-1740 Manuel Francisco legitimo escravo 1BatRG 07-02-1740 da Costa

Josefa de [---] Maria da Encarnacao Godinho

escravo 1BatRG 20-02-1740 legítimo escravo 1BatRG 06-08-1741

preta parda forra parda forra

Sebastiana Pinto

legítimo escravo 1BatRG 29-11-1741

Antonia do Prado

legítimo escravo 1BatRG 20-07-1743

Josefa de Jesus

natural escravo 1BatRG 28-09-1743

preta

Domingas

Luis da Cunha

legítimo escravo 1BatRG 28-07-1745

Teresa Pedroso

legítimo escravo 1BatRG 21-10-1745

Maria Josefa de Azeredo

legítimo escravo 1BatRG 04-01-1746 mulata natural forra 1BatRG 10-04-1747

Angelica Teresa Ana

Antonia de Morais dos Anjos legitimo escravo 1BatRG 03-07-1748

332 Quadro XIV – Afilhados de Domingos Gomes Ribeiro Criança

Pai

Mãe

Padrinho

Ana

Joao da Cunha

Antonia Maria de Jesus

Manuel

Manuel Duarte

Vitoria da Costa

Antonio

Roberto Edmunds

Jean Poor

Joao

Gaspar Nunes

Florencia de Oliveira

Luzia

Antonio de Araujo Vilela

Joana Correia

Manuel

Manuel Duarte

Quiteria da Cunha

Jose

Madrinha

data

situação fonte

Domingos Gomes Ribeiro

Antonia de Morais Garces

17-05-1741

livre

legitimo 1LBatRG

Domingos Gomes Ribeiro

Antonia de Morais Garces

19-06-1741

livre

natural

Domingos Gomes Ribeiro

Antonia de Morais Garces

27-05-1742

livre

legitimo 1LBatRG

Domingos Gomes Ribeiro

Ana Francisca dos Passos

24-06-1742

livre

natural

Domingos Gomes Ribeiro

Antonia Maria de Jesus

31-07-1742

livre

legitimo 1LBatRG

Domingos Gomes Ribeiro

Maria Josefa

24-02-1743

livre

natural

1LBatRG 1LBatRG

1LBatRG 1LBatRG

incognito

Pascoa da Ressureicao

Domingos Gomes Ribeiro

Nossa Senhora do Rosario

07-11-1744

livre

natural

João da Cunha

Antonia Maria de Jesus

Domingos Gomes Ribeiro

Antonia de Morais Garces

29-12-1744

livre

legitimo 1LBatRG

Manuel

Joao Ferreira

Josefa da Silva

Domingos Gomes Ribeiro

Margarida da Silva

30-03-1745

livre

legitimo 1LBatRG

Domingos

Jose Dias

Marta Antunes de Souza

Domingos Gomes Ribeiro

Maria Quiteria Marques de Souza 02-05-1745

livre

legitimo 1LBatRG

Jose Dias de Menezes

Marta

Domingos Gomes Ribeiro

Joaquim Francisco Homem

Ana Francisca dos Passos

Domingos Gomes Ribeiro

Jose

sargento

Manuel Manuel

alferes

viuva viuva

Antonia de Morais Garces

12-02-1747

livre

legitimo 1LBatRG

Antonia de Morais Garces

20-11-1747

livre

legitimo 1LBatRG

Quadro XV – Escravos de Domingos Gomes Ribeiro batizando

pai

mãe

proprietário

Joaquim

incognito

Luzia, Angola

Domingos Gomes Ribeiro

Tomas

Joao Angola

Maria Angola

Domingos Gomes Ribeiro

Vicente

incognito Antonia, mulata Domingos Gomes Ribeiro Domingos Maria do Rosário Domingos Gomes Ribeiro Bamba Manuel, cabo Josefa, angola Domingos Gomes Ribeiro verde Maria Garcês de Joao Silveira Morais Domingos Gomes Ribeiro Caetano Rosa, índia forra Domingos Gomes Ribeiro Angola

Mariana Maria Joao Amaro Joao

Francisco

Luzia Antonia

Domingos Gomes Ribeiro

padrinho

prop pad

madrinha Rosa Maria Conceicao

Manuel Fernandes Vieira escravo

Francisco

prop mad

data

da

natural 10-02-1749 escravo 1LBatRG

escrava Brizida

Manuel Fernandes Vieira Dionisio Rodrigues Mendes

Ana Maria Beatriz Rangel

legitimo 05-01-1750 escravo 1LBatRG natural 30-04-1750 escravo 1LBatRG Barbosa

legitimo 25-07-1751 escravo 1LBatViamão

João Martins

legitimo 30-04-1752 escravo 1LBatViamão

Inácio Fernandes capitão escravo

Felipe Manuel Cabo Verde

livro

Maria Fernandes forra Domingos Gomes crioula Ribeiro

legitimo 24-06-1752 escravo 1LBatViamão

Maria Maria

legitimo 03-02-1753 livre* Domingos Ribeiro

Gomes

1LBatViamão

legitimo 29-06-1755 escravo 1LBatViamão

333

Jose Santiago

Joao

Isabel

Joao Manuel, verde

Brizida

incognito

Giralda

incognito

Rosalia Clemencia

incognito Florencio Sampaio

Maria

cabo

Domingos Gomes Ribeiro

Maria

Domingos Gomes Ribeiro

Josefa, angola

Domingos Gomes Ribeiro

escravo escravo

Teresa, Angola Rosa Maria

Domingos Gomes Ribeiro Domingos Gomes Ribeiro

Manuel Cabo Verde Domingos de Lima Veiga

Teresa, Angola Domingos Gomes Ribeiro Ana, preta Domingos Gomes Ribeiro Angola

de

Domingos Gomes Ribeiro escrava Caetana Rosa Domingos Gomes Ribeiro escrava Caetana Rosa

Manuel Cabo Verde

Gomes Gomes

Maria de Lemos Luzia do Espirito Santo Escolástica Marques de Souza

Manuel Ferreira da Silva Manuel Marques de Souza escravo Inacio Dr. Prov.da Manuel da Costa Morais Fazenda Barba Rica

Domingos Ribeiro Domingos Ribeiro

Manuel Roriz

Pereira

escrava Francisca Domingas parda Pinto

legitimo 03-08-1755 escravo 1LBatViamão legitimo 03-08-1755 escravo 1LBatViamão legitimo 20-11-1756 escravo 1LatViamão natural 25-01-1757 escravo 2LBatRG natural 18-10-1758 escravo 3LBatRG

Gaspar dos Santos natural 27-10-1758 escravo 3LBatRG Ferreira

legitimo 05-01-1761 escravo 4LBatRG

Quadro XVI –Afilhados da família Domingos Gomes Ribeiro - Antônia de Morais Garcês batizando tit pai

Pai

Mãe

Padrinho

Madrinha

data

fonte

Eufemia

Francisco Goncalves

Ana Pereria de Souza

Domingos Gomes Ribeiro

Antonia de Morais Garces

28-10-1748

livre

legitimo 1LBatRG

Ana

Sebastiao Gomes de Carvalho

Eufrasia

Domingos Gomes Ribeiro

Antonia de Morais Garces

28-10-1748

livre

legitimo 1LBatRG

Silvestre

Silvestre Domingues

Antônia Pereira

Domingos Gomes Ribeiro

Antonia de Morais Garces

Jose

Joao Vieira

Inacia Pereira

Domingos Gomes Ribeiro

Antonia

Maximo dos Santos

Inacia de Gouveia

Maria

Joao Antunes da Porciuncula

Josefa Maria Barbara

Manuel

Antonio Francisco dos Santos

Maria

Luis Pereira

Inacia

Luis de Queiroz

Ana

incognito

Joao Jose

ajudante

capitão

09-11-1748

livre

legitimo 1LBatRG

13-02-1751

livre

natural

1LBatRG

Domingos Gomes Ribeiro

Antonia de Morais Garces

00-05-1751

livre

legitimo 1LBatRG

Francisco Coelho Osório

Antonia de Morais Garces

27-08-1751

livre

legitimo 1LBatRG

Mariana Felicia da Encarnacao capitão

Domingos Gomes Ribeiro

Antonia de Morais Garces

21-11-1751

livre

legitimo 1LBatRG

Joana da Silva

Francisco Moreira da Cruz

Antonia de Morais Garces

22-08-1752

livre

legitimo 1LBatRG

capitão incognito

Domingos Gomes Ribeiro

Dona

Antonia de Morais Garces

15-09-1754

livre

legitimo 2LBatRG

Sargento-mor Domingos Gomes Ribeiro

Dona

Antonia de Morais Garces

04-12-1756

livre

exposto 2LBatRG

Joao da Cunha

Antonia Maria

Manuel Jorge

Dona

Antonia de Morais Garces

17-06-1758

livre

legitimo 3LBatRG

Joao Gomes de Melo

Mariana Josefa da Encarnacao governador

Pascoal de Azevedo

Dona

Antonia de Morais Garces

18-11-1758

livre

legitimo 3LBatRG

Andre de Sa Fonseca

Joana

incognito

Sebastiana Gomes da Silva

Dona

Antonia de Morais Garces

24-01-1759

livre

natural

Brizida

Lourenco Correia Florim

Rita Maria de Jesus

Sargento-mor Domingos Gomes Ribeiro

Dona

Antonia de Morais Garces

2?-06-1759

livre

legitimo 3LBatRG

Ana Inacia de Jesus

Sargento-mor Domingos Gomes Ribeiro

Dona

Antonia de Morais Garces

21-08-1759

livre

legitimo 4LBatRG

Antonia

soldado dragao Manuel Cabral

3LBatRG

334

Violante

Gregorio Goncalves

Josefa Maria

Luciana

incognito

Florinda, mulata forra

filho do Sargento-mor Domigos Gomes Ribeiro* filho do Sargento-mor Domingos Gomes Ribeiro*

Francisca soldado dragao Claudio Brandao

Ursula Francisca

Capitao-mor

Maria

Joao Antonio Fernandes

Luzia Rita da Esperanca

sargento-mor Domingos Gomes Ribeiro

Jose

Jose da Costa Luis

Inocencia Francisca Pereira

Antonio Antonio

Antonia de Morais Garces

15-11-1760

livre

legitimo 4LBatRG

Josefa Maria

04-02-1761

livre

natural

4LBatRG

Dona

Antonia de Morais Garces

31-07-1761

livre

legitimo 4LBatRG

Dona

Antonia de Morais Garces

26-11-1761

livre

legitimo 4LBatRG

Antonia de Morais Garces

03-12-1761

livre

legitimo 4LBatRG

incognito

sargento-mor Domingos Gomes Ribeiro Dona alferes de Antonia de Morais, parda forra Dragões Joaquim Francisco Homem Dona

Antonia de Morais Garces

06-02-1762

livre

legitimo 4LBatRG

Salvador Pinto Bandeira

Maria de Brito

Ana de Brito

19-05-1762

livre

legitimo 1LBatViamão

*Trata-se do filho homônimo de Domingos Gomes Ribeiro

Francisco Coelho Osório

Dona

Sargento-mor Domingos Gomes Ribeiro

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Parece claro que a separação que foi feita tendo os matrimônios de Dona Antônia de Morais Garcês como marcos da existência dos núcleos familiares é por completo artificial. Entretanto, a ênfase nesse ponto de articulação entre as vidas de Dona Antônia e seus dois maridos traz à tona aspectos que a observação continuada deixaria muito anuviada. O primeiro deles é, de fato, a continuidade das relações existentes entre o núcleo Domingos Gomes Ribeiro-Antônia de Morais Garcês e os membros do núcleo familiar Antônio Gonçalves dos Anjos-Antônia de Morais Garcês. Dona Antônia comparece à pia batismal ao lado do genro Joaquim Francisco Homem para batizar a criança filha de Antônia de Morais, parda forra que fora sua escrava, possivelmente alforriada com o passamento de Antônio Gonçalves dos Anjos. A criança, em clara homenagem aos antigos proprietários, recebeu o nome deles. Do mesmo modo, sua mãe, também Antônia, tinha sobrenome “de Morais”. O mesmo acontecia com a escrava Maria de Morais Garcês, que utilizava o sobrenome completo de Dona Antônia. No núcleo familiar Antônio Gonçalves dos Anjos-Antônia de Morais Garcês não era novidade escravos usarem os sobrenomes de seus proprietários, já que cinco deles, homens e mulheres, tinham os sobrenomes Gonçalves ou dos Anjos. Muito destacado fica isso nos batizados das crianças filhas de Francisco Gonçalves e Maria dos Anjos, escravos de Antônio Gonçalves dos Anjos e de Manuel dos Anjos e Josefa de Morais, escravos de Dona Antônia. A despeito da legislação e do costume de separar claramente os bens adquiridos na vida que antecedia ao matrimônio, os escravos que eram de Antônio Gonçalves dos Anjos e que teriam passado por herança à Dona Antônia, são amiúde ditos escravos de Domingos Gomes Ribeiro. Em paralelo a isso, também é perceptível a inexistência de escravos de Domingos Gomes Ribeiro fazendo batizar seus filhos no período que antecedeu seu matrimônio com Dona Antônia. Pouco provável que não os tivesse, ao mesmo tempo que, muito provavelmente, dadas as suas atividades e as de seu filho

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homônimo como criadores de gados e condutores de tropas que eram, esses seus possíveis escravos fossem homens usados nessas atividades que, entre outras coisas, se dão afastadas do núcleo de maior concentração populacional e mesmo obrigam a viagens longas e demoradas. Havia a necessidade de cuidar de duas grandes sesmarias de três léguas de comprido por uma légua de largo que se situavam em locais distantes do povoado e da igreja da localidade. Contribui para isso também o fato de ser viúvo, apesar de ser homem de posses, dispensando a necessidade de escravas para o acompanhamento doméstico de sua esposa de frágil saúde em uma residência naquilo que mal poderia ser chamado de “núcleo urbano” de Rio Grande nas primeiras décadas de sua existência. Uma criada ou uma índia daria conta do serviço dos ranchos situados nas propriedades rurais de quem tanto se ausentava. Muito possivelmente, se escravos de Domingos Gomes Ribeiro reproduziram antes do matrimônio com os de Dona Antônia de Morais Garcês, eram alguns dos tantos pais das crianças ditas “filhas de pais incógnitos”. No entanto, a partir de seu matrimônio com Dona Antônia, começou a surgir crianças na sua escravaria, assim súbito aparece a índia Rosa, natural das Missões, dita “parda forra”, que casou com o escravo Caetano Angola. Ambos não aparecem nos batismos dos escravos de Antônio Gonçalves-Antônia de Morais. Muito provavelmente fossem escravos que viviam nas propriedades rurais de Domingos Gomes Ribeiro. A índia missioneira Rosa não deu esse filho a batizar e também foi madrinha de uma criança, alheia à escravaria da família. Foi madrinha de João, filho de Antônio Rodrigues Prates e Maria Rodrigues Prates, escravos de João Rodrigues Prates, dito dos primeiros povoadores de Viamão, oriundo da Laguna, onde Domingos Gomes Ribeiro também viveu. O menino Amaro, filho de Rosa, por ter nascido de mãe legalmente livre, herdou a liberdade de ventre. No entanto, por ter o pai escravo e a mãe coexistindo com seu

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marido dentro dos limites da propriedade de seu senhor, muito possivelmente nem ele nem a sua mãe teriam uma condição de vida muito diferenciada dos escravos desta família. Estariam sujeitos à execução de tarefas dentro da propriedade e, por fazerem parte da família do escravo, pouco provável estivessem sujeitos à paga de jornal. Infelizmente a insuficiência de registros das vidas de Antônio Gonçalves dos Anjos, de Dona Antônia de Morais Garcês e de Domingos Gomes Ribeiro no tempo que antecedeu sua chegada em Rio Grande não permite que sejam sabidos quantos filhos tiveram nem seus destinos. Domingos Gomes Ribeiro, filho homônimo do capitão, como seu pai, ingressou na Companhia de Dragões. Como seu pai, retirou-se dela, transferindose para a Companhia da Ordenança. Comprou e vendeu terras em Viamão e continuou envolvido em vendas de animais. Se tudo indica que Antônio Gonçalves dos Anjos morreu de morte natural, de Domingos Gomes Ribeiro sabe-se fim distinto. Em dois de junho de 1762, pouco mais de um mês após comparecer à pia batismal pela última vez, registrou-se seu óbito: Domingos Gomes Ribeiro morreu “de um tiro que lhe deram ao cruzar o Arroio do Curral do Fiúza” (AHCMPA - 1LObt-Viamão, 1748-1777. Registro do Óbito de Domingos Gomes Ribeiro, 02/06/1762). Dona Antônia ficou viúva pela segunda vez. Talvez isso tenha representado um baque na precária saúde de Dona Antônia. Em junho de 1764 Dona Antônia faleceu (AHCMPA - 1LObt-Viamão, 1748-1777. Registro do Óbito de Antônia de Moraes Garcês, 24/06/1764). A filha de Antônio e Antônia, Ana Francisca dos Passos, foi beneficiada com a herança havida com o passamento de Domingos Gomes Ribeiro. Ela e seu marido herdaram a Estância da Figueira que posteriormente a legaram ao seu filho Manuel Joaquim Homem (Domingues, 1990: pp. 111-112) A despeito da ciência do que se passou com cada um dos membros dessa família de complexa composição, destaca-se aqui a fina malha de relações sociais que souberam

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tecer, não apenas com os parentes, sejam consangüíneos, mas envolvendo todos aqueles que viviam em suas propriedades ou sob as chefias das famílias. Os arranjos foram muito bem imbricados e a idéia de pertença perpassava as distintas posições sociais internas a esse tipo de família, por vezes consubstanciada no uso dos sobrenomes dos senhores. Para viver em uma situação de fronteira, não bastava ter posses, terras, casas, bens móveis e de raiz. As terras podiam ser tomadas a qualquer momento, como de fato o foram com a chegada dos espanhóis invasores em 1763. A produção, fosse ela em animais ou agrícola, podia ser requisitada pelos soldados de Sua Majestade para o munício das tropas. Podia ser vítima de vandalismos, saques e ataques dos índios ou dos inimigos espanhóis. Tudo o que tinham de bens tangíveis podia ser levado ou deixado de um momento para o outro. Os autos da Devassa Sobre a Entrega da Vila do Rio Grande são prolixos em relatar as perdas sofridas com o ataque. Barcos, casas, lojas, animais, roupas, mantimentos, utensílios e mais bens de quem os possuía foram deixados para trás, no que foi chamado de “os tempos da corrida”. Esses homens e mulheres que viviam em Rio Grande puderam reconstituir suas vidas com base no mais importante dos bens que possuíam. Um patrimônio que não podia ser perdido porque não podia ser tocado pelas mãos humanas. As relações de compadrio e os deveres da reciprocidade que a estruturavam, eram levados para onde quer que fossem. Apresentou-se, assim, essa outra família que, tal como os Souza Fernando, viveu na Vila do Rio Grande até da tomada pelas tropas castelhanas e que, na urgência da fuga, levou consigo só o que podia carregar, além das coisas que não precisam de sacolas nem baús para serem conduzidas, ou seja, as relações inter-pessoais e inter-familiares que arranjaram no tempo em que viveram em Rio Grande.

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Abreviações usadas nesse capítulo: ABN – Anais da Biblioteca Nacional AHRS – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul AAHRS – Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul ACMRJ – Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. ADPRG – Arquivo da Diocese de Rio Grande AHCMPA – Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre. AN – Arquivo Nacional do Rio de Janeiro BN – Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro SEB – Fundo Secretaria de Estado do Brasil LBat – Livro de Batismos LObt – Livro de Óbitos RAPM – Revista do Arquivo Público Mineiro RG – Rio Grande RIHGB – Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. SEB – Fundo Secretaria de Estado do Brasil

Fontes e referências bibliográficas usadas nesse capítulo Fontes Primárias Manuscritas: ARQUIVO DA DIOCESE PASTORAL DO RIO GRANDE. Livros 1o, 2o, 3o e 4o de Batismos da Vila do Rio Grande 1738-1763. 1738-1763. ARQUIVO HISTÓRICO DA CÚRIA METROPOLITANA DE PORTO ALEGRE. Auto de Denúncia que mandou fazer o Reverendo Vigário José Carlos da Silva contra Joana Gracia Maciel, mulher de João de Magalhães, o moço, pelo escândalo público com que vive e desonesto procedimento, como depõem as testemunhas abaixo. Viamão: 1757. ARQUIVO HISTÓRICO DA CÚRIA METROPOLITANA DE PORTO ALEGRE. Autos Matirmoniais. 1756-1769. ARQUIVO HISTÓRICO DA CÚRIA METROPOLITANA DE PORTO ALEGRE. Livro 1o de Óbitos de Viamão. 1748-1777. ARQUIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Relação de Moradores que têm campos e animais neste Continente. Porto Alegre: cód. F1198 A e B, 1784-85. BILBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO. Francisco de Brito Peixoto. Notícia da Povoação, e fundação da Vila da Laguna feita por Francisco de Brito Peixoto que foi Capitão-mor dela e doou os seus serviços em seu sobrinho Diogo Pinto do Rego. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos, II – 1, 2,2,3.

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Capítulo 6

As Sementes Para o Futuro: os padrinhos infantes, a formação de um pecúlio imaterial e a subversão da lógica do dom na vila do Rio Grande Algumas famílias do Rio Grande, em clara desatenção ao que era determinado nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, iniciavam seus filhos na carreira de padrinhos com uma idade muito aquém da exigida nesse conjunto de ordenações para a vida cristã e moral. Nos registros batismais da vila do Rio Grande não é difícil encontrar meninos com idade abaixo da exigida comparecendo em cerimônias de batismo no papel de padrinhos nas cerimônias; muito freqüente, é ainda o comparecimento de algumas meninas em tenra idade. Algumas madrinhas foram encontradas batizando dentro da faixa etária ainda considerada como inocente – até sete anos ou até que cumprissem o segundo sacramento da Igreja Cristã, a comunhão com Deus e demais membros da cristandade. O estado de inocência dava-se após o batismo, quando a criança, liberta do Pecado Original, estava livre de culpas. Estava também livre de responsabilidades. Ou como no verbete “inocência”, do dicionário de Raphael Bluteau: (...) pureza da alma, livre de todo o gênero de pecados. Neste sentido dizemos que Adão foi criado no estado da inocência, e que a inocência Batismal restitui o homem à sua primeira pureza, etc. A idade dourada da inocência é a infância do homem no leite, com que se alimenta, se divisa o seu candor; a ignorância daqueles anos é o seu preservativo, a simplicidade o seu adorno. (...) (Bluteau, 2000 , verbete INOCÊNCIA)

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Estando isento de culpa e de responsabilidades, um inocente não poderia, ao menos não em tese, assumir para si as funções de padrinho ou madrinha de uma outra criança. Apadrinhar era dar a graça de um nome cristão. Também era assumir a responsabilidade pela salvação da alma de outrem, pela sua educação moral e religiosa. Segundo as Constituições Primeiras, ...o padrinho, ou a madrinha nomeados toquem a criança, ou a recebam ao tempo que o Sacerdote a tira da pia batismal feito já o Batismo, e que o Sacerdote, que batizar, declare aos ditos padrinhos, como ficam sendo fiadores para com Deus pela perseverança do batismo na Fé, e como por serem seus pais espirituais, têm a obrigação de lhes ensinar a Doutrina Cristã, e bons costumes (Da Vide, Tíluto XVIII, § 65, 1707).

Apadrinhar era tornar-se fiador ante o pároco, ante a comunidade e, acima de tudo, ante Deus, pela renúncia ao Demônio. Passada a idade da inocência, a criança batizada reafirmaria o compromisso assumido por seus padrinhos no momento em que recebesse o sacramento da Crisma ou Confirmação do Batismo. Nesse momento, aquela criança que foi levada ao estado de inocência em seu batismo com os compromissos inerentes aos cristãos, afirmados por seus padrinhos, afirmaria ser sua própria vontade renunciar ao Demônio e manter-se um cristão no seio da cristandade. Eram, portanto, os compromissos assumidos pelos padrinhos no ato do batismo por demais pesados para serem levados a cabo por um inocente. Para isso, as Constituições Primeiras recomendavam que uma vez nomeado o padrinho pelos pais ou responsáveis pela criança, o mesmo tivesse a idade mínima de catorze anos se fosse rapaz e de doze anos no caso das moças (Da Vide, Título XVIII, § 64, 1707). Deveria ser essa idade a da perda completa da inocência ou de admissão na idade adulta pois “o varão para poder contrair Matrimônio deve ter quatorze anos completos e a fêmea doze anos também completos...” (Da Vide, Título LXIV, § 267, 1707), vindo após observação sobre as exceções que possibilitariam contrair matrimônio

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antes da idade recomendada. Entretanto, para a idade determinada para apadrinhar ou amadrinhar uma criança não estão descritas as exceções e, caso pudessem haver, ficaria, talvez, ao critério do pároco, que deveria obter licença do bispado. Assim, como nos casos de batismos por outros curas que não o vigário da igreja estão anotadas as referidas licenças, os batismos que eram procedidos tendo crianças como padrinhos deveriam ter anotadas as referidas licenças no assento. Mas não era o que ocorria. Em nenhum dos registros batismais que tiveram meninos e meninas com a idade abaixo da determinada por essa compilação de regras e normas traziam referência a alguma licença concedida.

I. Quem se busca para padrinho Para que se possa entender esse fenômeno, será feita uma breve análise da qualidade dos compadrios buscados na vila. Para tal, será tomado como base as crianças filhas de nativos das Ilhas dos Açores, batizadas em Rio Grande desde a fundação do povoado e seus padrinhos. Elegeu-se esse grupo por possuírem ao menos uma origem geográfica semelhante e possivelmente hábitos sócio-culturais mais homogêneos do que aqueles que chegaram em momentos diferentes e a partir de lugares distintos, fosse da península ou da Colônia. A freqüente anotação acerca de sua origem no arquipélago dos Açores é elemento que os distinguia dos demais segmentos da sociedade e que por essa facilidade em sua identificação foi tomado aqui. Desde meados da década de 1740 verifica-se a chegada de nativos das Ilhas. No princípio, como soldados que vieram para fazer a defesa dos territórios de Sua Majestade; posteriormente, casais enviados para que se procedesse ao povoamento (Parecer do Conselho Ultramarino assinado por Alexandre de Gusmão, e um despacho real ordenando o embarque de soldados... In: Cortesão, 1951 442-443). A partir de 1749 os casais foram chegando ao Rio Grande, a princípio com pouco ímpeto, sendo intensificada essa chegada

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com o passar dos anos da primeira metade da década de 1750. Inicialmente havia o plano de assentar os casais de açorianos, seus filhos e agregados na fronteira oeste, ocupando as áreas das estâncias e povoamentos missioneiros, desde que o Tratado de Madri acordou a expulsão dos padres jesuítas do território. Não contavam as autoridades, entretanto, com a resistência dos indígenas a esse acordo feito entre as nações ibéricas. Sem poderem ir para as terras que lhes seriam, ao menos em tese, destinadas, os ilhéus ficaram “represados” na vila do Rio Grande, aguardando solução para o caso. Se as autoridades acreditavam que a derrocada da resistência indígena era uma questão de tempo, as populações civis não podiam esperar para dar consecução às suas vidas. Estabelecidos na vila do Rio Grande, atendidos pela Ordenança dos Casais, continuaram a viver com as parcas condições que ali possuíam. Muitos dos que eram solteiros e solteiras casaram-se e, juntamente com os que já vieram casados, começaram a constituir família na nova localidade onde estavam vivendo. O nascimento de crianças fazia parte dessa continuidade, fossem seus pais solteiros e casados. Como cristãos, buscaram batizar seus filhos, livrando-os do pecado original. Ao mesmo tempo, reatavam laços, através do parentesco espiritual que remontavam às Ilhas, e atavam novos laços com moradores que já estavam na vila há mais tempo. O resultado é uma bem elaborada malha de relações que transparecem nos registros batismais, dando a esses novos moradores uma base de sustento para suas existências sociais. No que se refere aos quatro primeiros livros de registros batismais da vila do Rio Grande desde o surgimento de seu primeiro pároco até o ano de 1763, quando a vila foi tomada por espanhóis, foram coletados um total de 1368 registros legíveis parcialmente ou na íntegra, haja vista os livros terem sofrido com a ação do tempo e de agentes naturais, como a umidade ou ataque de insetos. Desses registros, 97 não têm padrinhos registrados, o que geralmente ocorria nos casos em que o batismo havia sido efetuado em situação de

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emergência, ou não foi possível saber dado o estado de corrosão do documento. Um pouco distante desse número estão aqueles em que não havia madrinha ou foi impossível saber (227 registros). Considerando os dados encontrados por Renato Pinto Venâncio para as freguesias do Rio de Janeiro, encontramos para o grupo de imigrantes vindos dos Açores uma presença muito alta de mulheres à pia batismal como madrinhas, em relação à freqüência que o autor encontrou para aquela cidade. Venâncio achou um índice de abstenção das madrinhas de 70% para as crianças filhas de escravos e de 60% para as crianças nascidas livres (Venâncio, 1986). Os percentuais de ausências para os batismos de filhos de imigrantes dos Açores foram de 16,5%, incluídos os registros cujas condições não permitiam saber se houve ou não a presença de uma madrinha. A ausência de padrinhos ou a impossibilidade de extração desse dado corresponde, praticamente, à metade: somente 7,9% dos batismos não possuem padrinho ou não foi dado a coletar este dado. Infelizmente, Venâncio não apresenta números ou percentuais de ausências masculinas nesses batismos, para que pudesse ser feita também uma comparação. Bem mais próximos aos índices encontrados para a vila do Rio Grande estão os percentuais fornecidos por Donald Ramos para a paróquia de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto. Esse autor encontrou 28% das crianças livres, 20% das escravas, 27% das forras sem constar madrinhas. Outro dado interessante a contrapor aos imigrantes dos Açores na vila do Rio Grande e essas duas outras localidades é a inexistência de madrinhas pertencentes à esfera sagrada. Donald Ramos (2004) oferece os dados em números absolutos, 60 crianças escravas e livres num universo de 11.295 batizados. Renato Pinto Venâncio encontrou 22% do total de 2.110 registros batismais. Entre os filhos dos açorianos não foi localizada nenhuma criança com madrinha santa, como Nossa Senhora ou Santa Ana. Ao que tudo indica, por mais que se invocasse a

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proteção sobrenatural na hora do parto, a importância do estabelecimento de relação de compadrio com pessoas do mundo terreno estava dada. A necessidade de pais espirituais com existência de carne e osso era muito forte nessa região de fronteira, ainda mais quando se vê um grupo de imigrantes chegando a uma localidade inteiramente nova para eles, tendo ainda que firmar sua posição dentro do corpo social. Nesse ponto, o aspecto dos compadrios dito funcional por Stephen Gudeman (1971) parece ter sido privilegiado na seleção de padrinhos e madrinhas. Estabelecer contato e relação estreita sob a bênção da Igreja pode ter sido fundamental para o futuro desses imigrantes.

II. Os padrinhos e as madrinhas dos filhos dos ilhéus Nas escolhas de padrinhos e madrinhas para as suas crianças, os ilhéus transmigrados para Rio Grande deixaram transparecer clara preferência por alguns grupos familiares, fossem eles de nativos dos Açores ou vindos de outras partes quaisquer. Dos 1.259 batismos que tinham padrinhos nomeados, 648 desses compareceram apenas uma vez à pia batismal, sendo que neste número estão aqueles de quem não se pode fazer uma identificação positiva com pessoas homônimas constantes em outros registros; 118 compareceram, com identificação positiva, duas vezes à pia batismal, podendo haver suspeição de que tenham apadrinhado em outras ocasiões, embora nesses casos, não havendo certeza, permaneceram na categoria anterior; 52 apadrinharam por três vezes, valendo a observação anterior. Apenas 22 compareceram quatro vezes à pia como padrinhos. Os que compareceram cinco ou mais vezes estão dispostos em quadro abaixo, em ordem decrescente:

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Quadro XVII – Padrinhos de crianças filhas de ilhéus que batizaram 5 ou mais vezes

Padrinho Manuel da Costa de Carvalho Padre Manuel da Cruz Gomes Manuel de Souza Torino Manuel Marques de Souza Joaquim Manuel da Trindade João Martins da Costa João Martins Lima José Antônio de Brito Lucas Fernandes da Costa Bartolomeu Antônio Domingos de Lima Veiga Francisco Coelho Osório Inácio Osório Vieira Manuel Machado Fagundes Antônio Gonçalves Passos Domingos Martins Manuel de Oliveira Antônio Francisco dos Santos Antônio José Coimbra de Andrade Antônio Rodrigues Sardinha Domingos Fernandes de Oliveira Luís Gonçalves Viana Manuel Bento da Rocha Manuel Pinto Rabelo

# 18 16 16 13 13 12 10 10 10 9 9 9 9 9 8 8 8 7 7 7 7 7 7 7

Antão Pereira Machado Antônio de Souza dos Reis Cardoso Antônio Francisco Domingos Simões Marques Padre Francisco de Lima Pinto João de Souza Rocha José Gonçalves Dias Manuel Jorge Tomé Teixeira André de Sá da Fonseca André de Souza Aguiar Antônio Gomes Pacheco Antônio Goularte Antônio José de Moura 1 Antônio Pereira Antônio Simões Francisco Pires Casado João da Cunha Vale José da Corte José Luís de Queirós Manuel da Costa Pimentel Manuel da Silva Padre Manuel Francisco da Silva Manuel Leite Vieira

6 6 6 6 6 6 6 6 6 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5

Fonte: ADPRG – 1LBat-RG, 2LBat-RG, 3LBat-RG, 4LBat-RG

Um quadro semelhante, de concentração de compadrios também aparece nas madrinhas escolhidas por esses casais: 292 mulheres compareceram apenas uma vez como madrinhas nas cerimônias de batismo, em que pese, por exemplo, haver 11 Teresas de Jesus que não continham nenhuma outra informação que pudesse redundar em identificação positiva com outras de idêntico nome, o mesmo acontecendo com Maria da Conceição e outras mulheres de nomes comuns sem sobrenome. Foram madrinhas por duas vezes 80 mulheres, valendo para estas também as observações feitas anteriormente; 34 foram madrinhas por três vezes e 37 por quatro vezes. As que foram madrinhas por cinco vezes ou mais estão dispostas em quadro abaixo, também organizadas de modo decrescente.

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Quadro XVIII – Madrinhas de crianças filhas de ilhéus que batizaram 5 ou mais vezes Madrinha Joana Maria da Purificação Inês de Santo Antônio Laureana Maria de Santo Antônio Maria Quitéria Marques de Souza Ana Maria Ana Maria Pais Maria Inácia Maria Coelho Maria Goularte [Maria do Rosário] Margarida Luísa Rosa Ana Maria Pinto [Ana Maria Pinta] Joana Maria da Ressurreição Maria Silveira Rosa Maria Rosa Maria [Rosa Francisca] Helena do Espírito Santo Isabel Francisca da Silveira Maria Rodrigues Catarina Josefa Escolástica Marques de Souza Josefa Maria Maria Lauerana [Maria Lourenço] Angélica Teresa Francisca Correia

# 36 23 20 20 16 16 14 13 12 11 10 10 10 10 9 8 8 8 7 7 7 7 6 6

Isabel Maria Joana Rosa Luzia da Conceição Maria do Espírito Santo Maria do Rosário Maria Francisca Rosa Maria Pires Águeda Maria Águeda Teixeira Ana Francisca Ana Maria da Silva Antônia Maria Catarina de Sene Cipriana Gonçalves Francisca Fagundes de Oliveira Francisca Joaquina de Almeida Castelbranco Inácia Xavier Josefa de Jesus Luzia Maria Madalena do Rosário Maria de São José Maria Rosa Mariana Rosa Rosália Inácia do Sacramento

6 6 6 6 6 6 6 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5

Fonte: ADPRG – 1LBat-RG, 2LBat-RG, 3LBat-RG, 4LBat-RG

De pronto tem-se a medida: o homem que mais vezes compareceu à pia batismal como padrinho, o fez exatamente a metade das vezes que foi madrinha a mulher que mais batizou crianças filhas de ilhéus. A concentração de escolhas para madrinha era, então, muito maior do que a concentração de escolhas para os homens. Entre os homens que constam nos quatro primeiros lugares da lista de preferência dos ilhéus, tem-se que Manuel da Costa de Carvalho era sargento-supra da Companhia das Ordenanças. A Companhia das Ordenanças era responsável por dispensar recursos tanto em sementes como ferramentas agrícolas, alimentação e vestimentas para os casais de Sua Majestade. Sem a menor sombra de dúvidas, Manuel da Costa de Carvalho era pessoa influente e interessante de se ter como aliado nesse momento de chegada à vila. Também é interessante notar que sua primeira aparição nos registros batismais data do ano de 1753,

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coincidentemente um ano de grande chegada de contingentes das Ilhas na localidade. Há, portanto, grande possibilidade de Manuel da Costa de Carvalho ser também um ilhéu, de qualidade mais elevada, já que teve a patente da Ordenança. Também é bastante provável que seu posto de sargento-supra fosse referente à específica Companhia das Ordenanças dos Casais, o que o deixava em situação de liderança direta sobre os casais de Sua Majestade. Manuel de Souza Torino era homem de posses, tendo exercido o cargo de vereador da câmara de Rio Grande no ano de 1753. É possível que tenha sido eleito outras vezes, mas a documentação da câmara foi perdida com a invasão que promoveram os espanhóis, tendo sido localizado para esse ano um único documento enviado pela câmara de Rio Grande a el-Rei por estar no acervo do Arquivo Histórico Ultramarino. Esse documento contém a assinatura de Manuel de Souza Torino. Com cinco ou mais afilhados, entre os filhos de ilhéus havia padres, o que por si só os colocam acima e distante da maioria dos mortais. Eram homens de Deus em uma terra estranha. Um deles foi padrinho por 16 vezes, a despeito das Constituições Primeiras proibirem clérigos de serem padrinhos de crianças. Mas isso não era desrespeitado apenas em Rio Grande. Sílvia Brügger encontrou padres entre os padrinhos mais freqüentes de São João del Rei (Brügger, 2002). Fazendo o caminho inverso, tentemos, pois, saber quem são as quatro mulheres que mais batizavam crianças filhas de ilhéus na vila do Rio Grande. Joana Maria da Purificação era casada com Lucas Fernandes da Costa, que figura como padrinho de dez crianças. Lucas Fernandes era criador de gados e detentor de larga porção de terras, ainda que não homologadas. Foi fiador de tropas de animais que eram enviadas para a o sudeste. Lucas Fernandes e Joana Maria com freqüência eram ditos “dos primeiros povoadores”, o que tem duplo significado a esse tempo. Por um lado, significa

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que foram os que chegaram quando ainda estava tudo por fazer, quando Rio Grande não passava de uma fortaleza militar e um amontoado de choças daqueles ex-moradores da Colônia do Sacramento, refugiados do Grande Cerco ou militares que faziam sua defesa. O outro significado é de estarem inseridos entre os principais, os melhores da terra, entre as primeiras famílias na hierarquia social. Inês de Santo Antônio era esposa do primeiro colocado no ranking dos padrinhos, sendo possivelmente uma nativa dos Açores de família com algum destaque entre eles, já que era mulher do sargento-supra da Ordenança. Laureana Maria de Santo Antônio, a terceira colocada no ranking das madrinhas, era filha deste casal. A quarta mulher empatada com Laureana Maria era Maria Quitéria Marques de Souza, casada com Antônio Simões, que batizou por cinco vezes. Também era mãe de Manuel Marques de Souza. Tentando ver, portanto, qual a colocação da esposa de Manuel de Souza Torino, Maria Coelho, no quadro das madrinhas, observa-se que tinha o expressivo número de treze afilhados entre os filhos de ilhéus. Não é coincidência, portanto, o fato de se encontrarem essas quatro mulheres, associadas a homens também bem posicionados nas escolhas dos insulanos, liderando o número de batismos, assim como não parece ser por acaso que as esposas dos homens que eram casados e que ocupavam as liderança nas escolhas também estavam associados a madrinhas de muitos afilhados. Isso dá a certeza de que as escolhas para os compadrios se davam muito menos em termos escolhas que recaiam sobre pessoas do que escolhas por grupos familiares. Havia, pois, uma concentração de preferência para padrinhos em torno de algumas famílias. Organizados abaixo, então, os padrinhos e madrinhas identificados nos dois quadros acima, dispostos por núcleo familiar, nos quais as datas indicam o primeiro e o último compadrio na localidade, não sendo necessariamente de filhos de nativos dos Açores.

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Quadros de Compadrios com açorianos por membro do núcleo familiar

1º Compadrio na localidade

16/06/1738 16/06/1738 17/07/1747 07/08/1761 25/10/1758

Quadro XIX – Lucas Fernandes da Costa e Joana Maria da Purificação último compadrio na localidade

nome

posição família

07/08/1761 18/04/1763 14/11/1762 07/08/1761 02/02/1762

Lucas Fernandes da Costa Joana Maria da Purificação Joaquim Manuel da Trindade Inácia Maria de Lima Jacinto José Xavier Total de comparecimentos à pia

Marido Esposa Filho Nora Filho

na comparecimentos à pia 10 36 13 1 2 61

Fonte: ADPRG – 1LBat-RG, 2LBat-RG, 3LBat-RG, 4LBat-RG

1º Compadrio na localidade

último compadrio na localidade

Quadro XX – Manuel de Souza Torino e Maria Coelho nome

03/06/1743 05/10/1760 Manuel de Souza Torino 16/04/1739 05/10/1760 Maria Coelho

posição família Marido Esposa

Total de comparecimentos à pia

Fonte: ADPRG – 1LBat-RG, 2LBat-RG, 3LBat-RG, 4LBat-RG

16 13 29

Quadro XXI – Antônio Simões e Maria Quitéria Marques de Souza

1º Compadrio na localidade

último compadrio na localidade

nome

posição família

11/03/1743 06/08/1741 18/05/1756 18/05/1756 05/09/1762 18/05/1756 18/05/1756

10/04/1757 05/05/1761 16/05/1759 14/01/1763 14/01/1763 25/12/1758 22/03/1763

Antônio Simões* Maria Quitéria Marques de Souza Manuel Marques de Souza Escolástica Marques de Souza Antônio José de Moura Feliciano Marques de Souza (Maria)Joaquina Marques de Souza Total de comparecimentos à pia

Marido Esposa Filho Filha Genro Filho Filha

* Faleceu em 31/05/1758 – L1Obt-RG, Registro do óbito de Antônio Simões Fonte: ADPRG – 1LBat-RG, 2LBat-RG, 3LBat-RG, 4LBat-RG

1º Compadrio na localidade

na comparecimentos à pia

na comparecimentos à pia 5 20 13 7 5 1 1 55

Quadro XXII – Manuel da Costa de Carvalho e Inês de Santo Antônio

último compadrio na localidade

nome

25/10/1753 30/10/1762 Manuel da Costa de Carvalho 09/03/1755 30/10/1762 Inês de Santo Antônio 25/10/1753 31/01/1762 Laureana Maria de Santo Antônio

Total de comparecimentos à pia

Fonte: ADPRG – 1LBat-RG, 2LBat-RG, 3LBat-RG, 4LBat-RG

posição família Marido Esposa Filho

na comparecimentos à pia 18 23 20 61

As esposas, portanto, tendiam a comparecer à pia batismal mais vezes que seus maridos e filhos, com exceção do casal Manuel de Souza Torino e Maria Coelho. Ainda assim, dadas as 13 vezes que compareceu a cerimônias de batismo como madrinha, Maria

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Coelho não é exatamente o tipo de mulher que viveria reclusa no lar, dando mostras de sua presença em cerimônias públicas da Igreja Católica. Com certa freqüência, também as filhas extrapolaram o número de compadrios estabelecidos por seus pais. O que se verifica nesses quadros de padrinhos e madrinhas e nos quadros pro núcleo familiar é um maciço comparecimento de mulheres de boas famílias aos atos batismais, o que torna a explicação de Renato Pinto Venâncio para a ausência de mulheres de famílias de elite nas cerimônias de batismo inválidas para o contexto da fronteira sulina. As mulheres saíam de casa, ainda que somente para cerimônias religiosas e, muitas vezes, o faziam sem estarem necessariamente acompanhadas de seus maridos ou filhos; filhos ou irmãos, já que, muitas vezes não era com eles que formavam par ao batizar uma criança. Uma constatação que pode ser feita a partir da análise desses quadros é que os ilhéus, antes de investirem suas possibilidades de relacionamentos firmados pelo compadrio em pessoas, investiam em famílias. As quatro famílias de “campeões” de compadrio entre os açorianos na vila do Rio Grande tinham posição de destaque. Ao mesmo tempo, há um grande número de pessoas que compareceram apenas uma ou duas vezes à pia batismal. Isso remete a uma situação de diversificação do direcionamento das relações de compadrio em um mesmo batismo. Um deles voltado para as alianças de compadrio para com famílias bem posicionadas; outro, voltado para possibilidades diversas, muito provavelmente dentro do próprio grupo familiar ou de próxima origem social, econômica ou geográfica. Em tempos de instabilidade — como o de chegada e estabelecimento em um novo povoado, considerando-se ainda uma situação de constante insegurança, característica da fronteira sulina no século XVIII —, criar e reiterar as alianças entre esses grupos de origem semelhante significa uma reciprocidade entre pares, podendo estar mais calcada na solidariedade “entre os iguais que vivem situação semelhante”. O convite ao compadrio entre os colonos dos Açores e as famílias de elite da

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vila do Rio Grande permitiu a construção de elos de reciprocidade entre desiguais, com famílias situadas em um nível superior na escala social. A opção por abordar mais as mulheres do que os homens — com a exceção do casal Manuel de Souza Torino e Maria Coelho — é por demais interessante para estudo. No que se refere a Antônio Simões e Lucas Fernandes, uma das causas plausíveis é que, sendo condutores de tropas, nem sempre estariam na localidade à época do batismo. Mas essa não é a única explicação, pois encontra eco em algumas outras famílias, inclusive na de Manuel da Costa de Carvalho, que tinha entre suas atividades a de Ordenança dos Casais e, portanto, passava a maior parte do tempo dentro da jurisdição da freguesia onde estavam situados estes casais. Pensa-se aqui que, para uma situação de instabilidade como era a de fronteira, na qual a morte e o infortúnio espreitavam a todos, manter um compadre interno à família ou interno ao grupo de origem social e/ou geográfica semelhante significava pronto auxílio sem maiores formalidades, talvez necessárias quando se acorre a um homem de posição social superior. Entretanto, ao buscar o compadrio com as esposas desses homens, ainda assim conseguiam adentrar na malha de parentela espiritual dessa família. O compadre responsável pelo sustento de uma criança, o braço provedor, estaria ao alcance praticamente imediato, ao passo que a solicitação respeitosa de um favor, de uma intervenção dos homens de poder, poderiam ser feitas através da intermediação das comadres, suas filhas e esposas. Também a essas poderiam caber outros aspectos mais sutis da vida: agirem como casamenteiras, intercederem na obtenção de uma colocação de trabalho ou no alívio da aplicação de alguma pena. Enfim, uma faceta da vida que facilmente escapa dos registros em fontes documentais. Essa situação de desequilíbrio de condição social entre padrinhos e madrinhas das crianças foi observada também por Solveig Fagerlund (2000), que analisou os compadrios

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de Helsingborg, na Suécia, no período de 1688-1709, uma localidade na qual o predomínio religioso era do luteranismo, o qual guarda diferenças importantes principalmente quanto à importância do batismo. Sendo considerado menos relevante que a confirmação, ainda assim era uma cerimônia importante na vida das comunidades cristãs. A constatação do autor é semelhante à constatação aqui feita para a vila do Rio Grande e exemplificada no grupo facilmente identificável como oriundo dos Açores. Segundo Fagerlund, as mulheres desempenhavam papel importante na rede de relações de compadrio, nas quais os padrinhos e madrinhas sempre eram buscados entre famílias de mesmo estatuto social dos pais das crianças ou em estatuto superior, jamais inferior. As mulheres casadas oriundas de estratos sociais superiores eram privilegiadas na escolha para madrinhas, ao passo que os homens casados de situação semelhante à da família dos batizados eram privilegiados para padrinhos. Não necessariamente situados em grupos de atividades profissionais, ofícios ou companheiros de armas, mas também voltados para dentro das famílias. As mulheres casadas de alto estatuto social eram, portanto, as mais visadas para o estabelecimento de relações ditas verticais através do compadrio, ao passo que os homens casados de mesmo estatuto social eram os mais visados para estabelecimento de relações do tipo horizontais ao contrair o laço do compadrio. Um dos pontos de contato entre as famílias de estatuto social distinto era feito, então, nessa localidade sueca, através das mulheres das famílias de posses, em detrimento de seus maridos. Observando assim a grande disparidade na escolha das madrinhas e padrinhos nas famílias aqui consideradas para estudo, percebe-se que, na vila do Rio Grande, as relações do compadrio masculino serviriam para reiterar alianças de companheirismo, sociedade e solidariedade oriundos da profissão: a atuação na conduta de tropas, na lavra de um mesmo campo; de vida em um mesmo mundo, no qual, carentes de tudo, reivindicavam sementes,

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rações de alimentos e a terra para viverem e produzirem; de parentesco consangüíneo ou afim, obtidas em alianças matrimoniais pregressas, que muito provavelmente atravessaram o oceano em sua bagagem imaterial. Já as relações do compadrio feminino na vila do Rio Grande possibilitariam a ampliação desse círculo de relações para além da família consangüínea ou afim, para além do grupo de origem, para além dos companheiros de ofício. Através do compadrio feminino era costurada a fina teia da malha social que englobava todos os setores, por vezes com graves antagonismos de interesses, como seria de se esperar daqueles existentes entre senhores e escravos, entre patrões e jornaleiros. É bem provável que tenha sido essa malha tecida por Joanas, Marias, Quitérias e Laureanas a dar coesão ao tecido social e minimizar as tensões internas. No Rio Grande, através do compadrio, diferentes setores dentro da fortemente hierarquizada sociedade lusa desta fronteira se punham em contato e assumiam compromissos mútuos de respeito e auxílio, sejam lá quais forem os significados que essas palavras pudessem assumir para cada um desses segmentos sociais. Para os camponeses migrados podia significar um trabalho, a venda de uma colheita, um teto e um prato de comida para a criança que ficou órfã. Para as famílias mais aquinhoadas, a formação de uma base de sustentação à sua posição dentro da sociedade, já que não basta estar no topo, mas é preciso manter-se lá. O número de pessoas entre as crianças e os compadres que lhes deviam respeito na parcela oriunda dos Açores nessa localidade fala bem alto acerca de quão abrangente podia ser a área de sua influência. Não é exagerado lembrar novamente que compadrios como os que se passam entre padrinhos e afilhados são relações e, portanto, precisam funcionar em mão-dupla. Dando-se entre iguais, tendem à solidariedade, ao auxílio mútuo. Entretanto, se entre desiguais, os bens trocados nessa relação e, principalmente sendo bens não materiais na

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maioria das vezes, fazem com que se criem relações de dependência mútua, com dívidas que nunca serão saldadas. Mais ainda porque há a tendência de serem os compadres pertencentes a grupos com estatuto social superior ao de seus afilhados. Também não é exagerado lembrar que o topo da pirâmide social em sociedades hierarquizadas sempre é muito mais afilado que sua base, essa alargada. Os que na sociedade riograndina não obtiveram acesso restrito a recursos e benesses eram bem mais numerosos que os setores que por meios diversos obtiveram e mantiveram privilégios, largas porções de terras, altas patentes militares, cargos e ofícios régios, contratos para a distribuição de municio de tropas, dos açougues do fisco sobre a passagem das tropas etc. Se o compadrio funcionava como instituição da Igreja Católica que por tanto tempo se manteve, tecendo alianças entre setores desiguais na sociedade, deveria ter algo de benéfico a ambos. Não seria tão longevo se permanentemente existisse grande prejuízo para um mesmo setor. Para as camadas mais baixas da sociedade, não faltam as afirmativas extraídas das próprias obrigações estabelecidas pelo sacramento do batismo: contrapartida dada como proteção, educação religiosa e moral e mais cuidados para com o afilhado. Para o grupo das famílias que apadrinhavam e, mais ainda, para as que apadrinhavam em quantidade, a contrapartida percebe-se com formação de um séqüito de compadres apoiadores, que reconhecem nos padrinhos qualidades suficientes para entregar-lhes a salvação de seus filhos. Na situação de risco permanente que havia nessa fronteira, não só a salvação religiosa mas, muitas vezes, a salvação física, com a cessão de mantimentos e roupas, com a introdução em outras redes de relacionamentos através da indicação dos padrinhos e madrinhas mais bem situados, famílias que, ligadas a eles por laços sacramentados, lhes deviam, no mínimo, respeito. As relações subjacentes ao batismo eram fortes e tiveram ampla permanência ao longo do tempo. Ainda hoje, passados mais de dois séculos do período sob estudo, é de uso popular dizer que alguém que foi favorecido em uma disputa

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no mercado de trabalho é “apadrinhado” de quem decide ou de quem é próximo a quem decide. Havia então, a esse tempo, um mercado de influências cuja moeda não cabia em cofres ou no bolso de quem detinha a fortuna. Entretanto, ao que tudo indica, a “contabilidade” aproximada dessa fortuna poderia ser feita através do que está registrado nos livros de batismo da igreja. Conforme Barrington Moore (1988), não basta chegar ao topo da pirâmide social para que uma família seja parte da elite ad infinitum. Moore afirma que tão difícil quanto escalar os degraus da hierarquia social e chegar ao topo era manter-se nele. Nome, propriedades, riqueza, prestígio, em um dado momento, nunca eram, por si só, suficientes para a permanência de pessoas e famílias como membros da elite para pouco além de um átimo da vida da coletividade, para além dos “quinze minutos de fama”, como disse certa feita Andy Wharol. Há a constante necessidade de reiteração das qualidades que os alçaram a tais posições e de reinvenção dos mecanismos que as sustentam (Moore, 1988). Há, portanto, que engendrar formas de manter-se lá. Há a necessidade de inventar e reinventar modos de angariar aqueles quesitos que faziam com que alguns se destacassem do corpo da sociedade, mostrando distinção e que detinham qualidades que os outros não possuíam. Uma dessas qualidades, supõe-se aqui, era a de aglutinar gente de distintos estatutos sociais em torno de si, com um apoio quase que irrestrito, como as obrigações relativas ao ato do batismo se lhes impunham. O pressuposto básico da superioridade do espírito sobre a matéria, da alma sobre o corpo, fazia com que as obrigações recíprocas do compadrio se estendessem para além da vida terrena. A morte não romperia os compromissos assumidos na pia batismal. Um padrinho de muitos afilhados era alguém que tinha praticamente o dobro de compadres e comadres do que tinha de afilhados. Como por vezes ocorria das mesmas pessoas servirem de padrinhos a mais de um filho de uma mesma família, esse número deve inferior à

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exatamente o dobro do número de afilhados. A alta mortalidade infantil existente à época talvez viesse a equilibrar novamente essa proporção. Sendo assim, um padrinho de cinco crianças teria, além de aproximadamente dez compadres, cinco afilhados a tratar-lhes com o devido respeito como fariam a um pai, ou mesmo mais do que deviam a um pai. Por outro lado, os padrinhos seriam a autoridade externa à família consangüínea que poderia colocar-se como amortecedores das tensões entre pai e filho. Poderia levar, em momentos de crise familiar, o afilhado a viver em sua casa, sem que isso parecesse estranho a quem quer que fosse. Poderia castigar-lhe fisicamente por desobediências ou pela falta de cumprimento de seus deveres domésticos. Entretanto, por não se tratar de pessoa diretamente lesada com o mau comportamento, o faria de modo mais brando, afastado da passionalidade do ofendido. Em benefício do afilhado, poderia legar-lhe algo em testamento da parte que dispunha livremente; não tendo herdeiros, poderia nomeá-lo como tal. Junto com os cinco afilhados, teria aproximadamente dez adultos, cinco homens e cinco mulheres a nomeá-lo como compadre – alguém com quem dividiam a responsabilidade de serem pais. Um padrinho de cinco afilhados teria algo próximo de quinze pessoas sob sua influência, nomeados e registrados nos livros da igreja como sendo parte de sua família espiritual, aquela que, pela sacralidade dos laços, era superior em qualidade e intenções à família carnal ou afim. Assim como se percebe a diversificação de aliados a partir dos laços contraídos nos compadrios. Uma parte deles se direciona para dentro do grupo de origem familiar, social ou geográfica e outra parte para setores sociais mais bem posicionados do que o seu. Percebe-se também a diversificação no que tange às famílias escolhidas como favoritas ao compadrio dentre essas mais bem posicionadas. Ao retomar-se a análise dos dois quadros apresentados anteriormente, quanto às quatro primeiras linhas, optou-se por excluir-se o padre Manuel da Cruz Gomes pelos

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motivos seguintes: não foi encontrada nenhuma referência quanto a ter família no Rio Grande, ficando então a preferência vinculada a sua condição de padre. Não obstante essa ocupação, que lhe dava ascendência espiritual, moral e ética e muita proficiência na orientação religiosa de seus afilhados, Manuel da Cruz Gomes era um padre que fazia constantemente “rondas” pelos sítios e fortalezas no entorno dos quais os novos colonos se colocavam. Assim, mesmo quando os batismos ocorriam na matriz, as famílias que o convidavam, podiam estar fazendo isso como um deferimento àquele que lhes levava a palavra de Deus e as missas nos locais distantes ou ermos em que viviam. Nas linhas superiores de cada quadro, portanto, foram encontradas quatro famílias concentrando, com distância das outras, as preferências ao compadrio dos ilhéus. Isso não significa que não houvesse outras bem cotadas nessas predileções, mas indica também que não foram investidas todas as possibilidades de alianças com os principais da vila em apenas uma. Havia mais de uma opção. Essa opção era daqueles que convidavam ao compadrio e não daqueles que eram convidados. Esse aspecto acrescenta uma nova dimensão na idéia da formação dos séqüitos de apoiadores por segmentos sociais que se divisam a partir dos compadrios dos nativos dos Açores. Todos que nasciam na vila necessitavam

de

padrinhos,

mas

não

necessitavam

de

padrinhos

escolhidos

necessariamente nessas famílias mais bem situadas. Eis que somos levados a uma reflexão com base nos fundamentos da economia do dom e nos deveres que a dádiva impõe aos que entram nas tramas da reciprocidade.

III. A subversão da lógica do dom O antropólogo Marcel Mauss, em seu estudo sobre a dádiva, chega às três obrigações do dom: dar, receber e retribuir (Mauss, 1974). Por sua vez, Maurice Godelier aprofunda a discussão acerca do que chama “a quarta obrigação do dom”, advinda da

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reciprocidade entre desiguais. Não apenas entre pessoas de estatuto social desigual mas também da desigualdade na própria dádiva ofertada. Disso viriam os bens que, uma vez aceitos, jamais poderão ser retribuídos na mesma medida. Ainda segundo este autor, é estabelecida uma relação de desigualdade. Quem recebe a oferta fica em dívida para com quem a fez, fica obrigado à retribuição (Godelier, 2001: 23). Dar, parece instaurar assim uma diferença e uma desigualdade de status entre doador e donatário, desigualdade que em certas circunstâncias pode se transformar em hierarquia. Se essa já existisse entre eles, antes do dom, ele virá expressá-la e legitimá-la ao mesmo tempo. Portanto, dois movimentos opostos estariam contidos em um único mesmo ato. O dom aproxima os protagonista porque é partilha e os afasta socialmente porque transforma um deles em devedor do outro. Pode-se divisar o formidável campo de manobras e de estratégias possíveis contidos virtualmente na prática do dom e a gama de interesses opostos a que ele pode servir. O dom é, em sua própria essência, uma prática ambivalente que une ou pode unir paixões e forças contrárias. Ele pode ser, ao mesmo tempo ou sucessivamente, ato de generosidade ou ato de violência, mas nesse caso de uma violência disfarçada de gesto desinteressado, pois se exerce por meio e sob a forma de partilha. (Godelier, 2001: p. 23)

Usualmente, a dádiva parte de quem tem mais para quem tem menos, de quem está em uma posição privilegiada em direção àquele que menos possui. Segundo António Manuel Hespanha, era o dom quem cimentava as reações sociais e essas as relações políticas. (...) Deste modo, o dom podia acabar por tornar-se um princípio e uma epifania do Poder. Assim, era freqüente que o prestígio político de uma pessoa estivesse estreitamente ligado à sua capacidade de dispensar benefícios, bem como à sua fiabilidade no modo de retribuir os benefícios recebidos. (...) Usualmente o benefício não possuía uma dimensão meramente econômica. Daí que fosse difícil definir os limites exatos do seu montante. Esse caráter incerto do montante da dádiva instituía um campo indefinido de possibilidades de retribuição. (...) Uma das formas mais comuns de manifestação desse estado de desequilíbrio é a idéia de “amizade” (“desigual”, no sentido aristotélico) – que, para o pólo dominante, (credor), se traduz na disponibilidade de quem dá um benefício e não exige contrapartida expressa e/ou imediata, e, do lado do pólo dominado (do devedor), está associada às idéias de “respeito”, “serviços”, “atenção”, significando a disponibilidade de prestar serviços futuros e incertos. (Xavier & Hespanha, 1988: 340).

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Mais adiante, Hespanha menciona os termos em que se dá essa “amizade” no sentido aristotélico: ...a amizade desigual é, formalmente, aquela que legitima as relações de poder entre homens livres. Sob este ponto de vista, a regra será a da proporção entre a posição social dos dois ‘amigos’, quer no plano das prestações (em que o inferior é obrigado a prestações menos importantes), quer também, de modo inverso, no plano do amor, (em que o inferior é obrigado a dar mais que o superior). O modelo de troca é o mesmo – prestações materiais em troca de submissão política, effectus em troca de affectus”. (Xavier & Hespanha, 1988: 343).

Muito instigante é pensar a relação de compadrio como agindo na contra-mão dessa troca de effectus e affectus notada por Xavier & Hespanha, subvertendo a lógica do dom na sociedade de Antigo Regime. Havendo uma relativa equiparação de posições sociais entre os compadres, a dádiva inicial poderia ser retribuída na mesma moeda. Uma família convida pessoas de outra família para adentrarem à sua, sob o laço sagrado do compadrio. A recíproca seria um convite semelhante: quando do nascimento de uma criança, convidar os já compadres que lhes convidaram para batizar um filho seu. Porém, o que torna tudo mais complexo ainda, é que isso só é possível em uma única situação. Pelo

que

foi

demonstrado

anteriormente,

houve

um

grupo

situado

majoritariamente em camadas subalternas da sociedade oferecendo constantemente seus filhos como via de acesso às suas famílias e às suas redes de reciprocidade. Nesse caso, assim como no compadrio de escravos, forros ou índios, tem-se que os compadres que batizaram os filhos nesses estratos inferiores jamais ou muito excepcionalmente – talvez no caso de uma parteira que acompanhou o sofrimento e socorreu mãe e criança ao longo do parto, ou de alguém com quem já tivessem alguma dívida moral que só pudesse ser retribuída dessa maneira – seriam chamados a apadrinhar uma criança de seus compadres melhor situados socialmente. Essa dívida jamais seria quitada, pois o uso e o costume não eram os de convidar pessoas de estatuto social inferior para batizar as crianças de estatuto

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superior. Inclusive porque, provavelmente através dessa mesma lógica, pudessem agrilhoar aqueles que estavam em situação social mais privilegiada nas cadeias do dom e contradom. Inverter-se-ia, assim, não a direção dessa relação, mas o sentido da mesma: partia de quem tem menos a oferta inicial e inexistia a possibilidade de quitação da dívida na mesma moeda por parte de quem tem mais. Havendo uma relação assimétrica, dos menos aquinhoados, como se verá melhor adiante, viria o ato de “generosidade ou violência”, havido sob forma de uma oferta de cunho religioso, que obrigava os mais aquinhoados à dívida impagável. As nuanças intermediárias entre estatutos sociais nem sempre claramente visíveis aos historiadores eram, antes de mais nada, uma complexa combinação de prestígio, bens e outros atributos angariados ao longo da existência das pessoas e, de modo geracional, pelas famílias. Essa complexidade dificilmente pode ser apreendida em sua totalidade pelos estudiosos do período mas, percebe-se, estavam presentes na vida dos habitantes do Rio Grande. Tanto é que mesmo a situação de cativeiro não tornava os escravos iguais uns aos outros. Existiam qualificativos anotados nos documentos que dão pistas para essa desigualdade de condição. Ser dito “de nação” ou “crioulo” já distinguia aquele que era um estrangeiro daquele que tinha raízes familiares e sociais na América. Acredita-se que a alusão aos proprietários também acrescentava qualificativos a esses escravos, uma vez que colocava a público pertencer a uma família que, na ciência dos moradores da localidade, possuía certos atributos. Estaria assim o escravo associado aos qualificadores que cercavam aquela família. Faria diferença ser escravo de um capitão de dragões e escravo de um “homem paisano”. Tanto fazia diferença que se percebe em muitos registros batismais dos escravos da vila do Rio Grande nos quais os proprietários puderam ser identificados que, em se tratando de criança nascida no cativeiro, porém dentre a escravaria de uma família

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prestigiosa, os padrinhos dessa criança, ainda que escravos, eram pertencentes às famílias de condição social superior ou de condição social semelhante a de seu proprietário. Não raro essas crianças filhas de escravos eram batizadas por pessoas livres e de estatuto social bastante elevado, como foi o caso, por exemplo, do menino José, filho de Tomás e Rosa, escravos de Antônio Simões. O padrinho do menino, um dos tantos Antônios Rodrigues existentes na vila do Rio Grande, era soldado de Dragões e a sua madrinha Rita era escrava do capitão Domingos Martins. Os escravos de Antônio Simões também participavam de compadrios cujos pais das crianças eram escravos de famílias bem situadas, como essa mesma escrava Rosa, que foi madrinha da menina Anastácia, filha de José Congo e Maria Benguela, escravos de Francisco Coelho Osório, capitão-mor do distrito de Rio Grande. Segundo Giovanni Levi, os atributos que acompanhavam uma pessoa eram muitos e emanavam das distintas facetas da vida familiar e pessoal. A avaliação desses atributos pelos coevos e autoridades regia a aptidão para discernir “quem é quem”, quem eram os seus pares e o que lhes competia nessa sociedade, tanto em deveres como em direitos (Levi, 2002). A máxima atribuída aos compadrios, de que os padrinhos sempre eram pessoas de estatuto social igual ou superior, vêm mostrar que, ainda que se faça um “achatamento” das categorias sociais, discernindo, por exemplo, entre livres e escravos, tanto uma categoria quanto a outra eram bem mais ricas nos atributos de seus membros. De tal forma que não basta ser livre para ser igualado a outro livre. Também não basta ser escravo para igualar-se aos demais escravos. Assim como é perceptível no caso dos compadrios dos setores inferiores dessa sociedade, isso também transparece nas famílias da elite riograndina. O padrinho de Manuel Marques de Souza, por exemplo, filho de Maria Quitéria Marques de Souza e de Antônio Simões, uma das famílias favoritas para compadrios dos nativos dos Açores, era Francisco Barreto Pereira Pinto. No tempo do batismo de Manuel Marques, Pereira Pinto

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tinha a patente de capitão de Dragões e fora também sargento-mor da mesma companhia. Esse homem nasceu por volta de 1708, na freguesia de Lagoalva, Terra da Feira, no bispado de Coimbra. Seu pai foi capitão-mor da freguesia e comarca do mesmo nome. Francisco Barreto Pereira Pinto também era um dos homens que vivenciaram o lançamento das fundações do presídio militar da vila do Rio Grande, vindo pelo Regimento das Minas Gerais na expedição de José da Silva Pais. De acordo com Maria Luiza Bertulini Queiroz, Pereira Pinto estaria situado na segunda faixa de maiores proprietários de escravos da localidade (Queiroz, 1987: p. 98), mesma faixa em que se encontrava Antônio Simões, pai de Manuel Marques de Souza. Pereira Pinto foi também um dos dois padrinhos – situação que só ocorreu duas vezes nos registros que foram consultados – de Dom Agostinho, cacique minuano. O outro padrinho era Diogo Osório Cardoso, governador militar do Continente do Rio Grande de São Pedro no tempo em que ocorreu esse batismo. No ano de 1763, após a tomada da vila do Rio Grande pelas tropas espanholas, Pereira Pinto assumiu o governo interino do Continente do Rio Grande de São Pedro. Na devassa que foi feita sobre essa tomada, foi ele um dos principais acusadores dos atos do seu antecessor, ditos por ele como sendo atos de covardia do antigo governador (Biblioteca Riograndense, 1937: p. 19). Visível, pois, que mesmo a família de Antônio Simões e Maria Quitéria encontrava em Rio Grande gente situada acima de seu estatuto social para chamar ao compadrio e induzir a laços eternos de reciprocidade. E se não existia mais gente de posição superior na localidade, ainda assim podiam, dentro das vastas redes familiares, de parentesco fictício, de negócios e amizades, buscar alguém que, de longe, se inserisse nessas cadeias da reciprocidade do compadrio. Isso ocorreu no compadrio estabelecido pelo tenente-coronel de Dragões Tomás Luís Osório. Seu filho Belchior, batizado no Rio Grande, tinha como padrinhos O “Excelentíssimo Gomes Freire de Andrade”, que a esse

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tempo nada mais era do que o governador do Rio de Janeiro e da Repartição Sul. Não estando presente no Rio Grande, Gomes Freire o batizou por procuração. O menino teve como madrinha Dona Ana de Lorena, camareira-mor da Rainha, que passou procuração ao capitão-mor Francisco Coelho Osório para que o batizasse em seu nome (ADPRG Registro batismal de Belchior, filho de Tomás Luís Osório, 30/09/1752 - 1LBat-RG, 17381753). A oferta inicial, o convite ao compadrio era feito, nos casos de assimetria entre os estatutos sociais dos partícipes, pelos setores que menos tinham a ofertar em termos materiais, mas que mais tinham em termos de parentela ou de pessoas de sua mesma condição, pertencentes a seu grupo de relações. Em uma sociedade eminentemente agropecuária, o número de pequenos agricultores, peões, jornaleiros nas estâncias, deveria extrapolar em muito o número de capitães nela existentes, em que pese ser uma localidade com um grande contingente militar devido a sua situação de fronteira com terras de Espanha. Entretanto, quem ficava obrigado à retribuição da dádiva ao aceitar o convite para o compadrio não eram os pequenos agricultores, os peões e mais gente de modestas condições na vila. Pelo contrário, quem estava obrigado a uma contra-prestação, sem exigência de compensação imediata e sem um valor atribuído ao dom inicial, eram justamente as pessoas mais proeminentes na vila. Talvez fosse justamente essa “contramão” das obrigações do dom que equilibrava um pouco as relações tão díspares dessa sociedade fortemente hierarquizada. Segundo Giovanni Levi: ... essas eram sociedades em que a arte da sobrevivência baseava-se para muitos, na capacidade de proteger-se contra a ameaça permanente de flutuações conjunturais e de eventualidades ligadas ao ciclo de vida. (Levi, 1998: pp. 218-219)

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Os setores menos aquinhoados, não-destacados, tornaram-se, através das relações de compadrio, credores dos setores mais aquinhoados. Esses, para manter e ampliar a sua base de apoiadores na seqüência de suas vidas ou repassar o prestígio e a ascendência sobre um grande de famílias aos seus, deveriam corresponder às expectativas de seus compadres. Deveriam ser solidários, prestar auxílio, promover casamentos, arrumar emprego, educar, punir as falhas de seus afilhados, se necessário ajudar, com algum bem material as famílias que investiram neles a sua “fortuna” de alianças. Deveriam dar a proteção necessária aos seus compadres e afilhados, ou seja, suas famílias espirituais. Não corresponder a essas expectativas poderia significar serem preteridos em novos convites, reduzindo para tempos futuros o leque de relações e, por conseqüência, a manutenção e ampliação do leque de relações sociais possíveis de obter com outros setores sociais que não o seu. As relações de compadrio poderiam, portanto, agir como meio de regular a conduta de oficiais da Coroa, militares de altas patentes, administradores, sesmeiros, criadores e comerciantes de gados. Ainda que não pudesse ser cancelado o compromisso sagrado assumido anteriormente, de uma hora para outra poderia cessar o afluxo de convites, fragilizando sua posição não ante os setores que lhes seriam antagônicos, mas muito pior que isso: fragilizavam-nos ante pessoas e famílias que competiam com eles por recursos: terras, cargos, contratos, patentes, mão-de-obra etc. Fragilizavam-nos ante pessoas situadas em seu mesmo nicho social. Sem dúvida, esse era um poder de barganha muito forte, lançado contra a elite e situado na mão de gente tão comum. Havia uma situação sempre tensa entre os estratos inferiores e os estratos superiores da sociedade. No caso das escolhas aos compadrios, favorecia aos inferiores por lhes competir a oferta inicial. Da aprovação deles dependia a reiteração dos laços sociais que permeavam a

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sociedade desde baixo ao alto. Deles dependia a reiteração das famílias da elite no tempo, através dos legados em relações pessoais que podiam deixar aos seus filhos. Exemplo da não reiteração do apoio incondicional que o batismo suscita foi visto por João Fragoso para algumas das famílias de elite do Rio de Janeiro no século XVII. As famílias Barbalhos e Lobo Pereira, envolvidas nas disputas de poder intra-elite, foram derrotadas. Juntas detinham 15% dos compadrios da localidade. Após a conclusão desses embates políticos, nos anos seguintes, os Barbalhos não batizaram mais, não foram padrinhos de nenhuma criança e os Lobo Pereira compareceram à pia batismal apenas uma vez (Fragoso, 2001b: p. 252). Isso indica o redirecionamento do investimento em relações sociais na localidade, alimentando a base social de apoio de outras parcelas dessa elite que pudessem satisfazer-lhes necessidades. Os compadrios que já existiam não podiam ser retirados, mas não foram reiterados na forma de novos convites. A sempre tensa relação entre os setores que detêm mando e prestígio e os setores subalternos ficam visíveis nos convites e intenções de compadrio. Os registros batismais desses setores subalternos são quantitativamente indicadores dessa barganha tácita. A predileção dos setores privilegiados por padrinhos de estatuto social muito elevado, por vezes distantes geograficamente, são mostras da qualitativas dos compadrios que eram buscados: gente de posição social mais elevada que era atraída para dentro da família pelo parentesco espiritual e amarrada a ela pelas obrigações do dom, ou os deveres antidorais, como quer Bartolomé Clavero (Clavero, 1991).

IV. Tentando entender os padrinhos infantes Retornando ao assunto esboçado ao início, acerca dos padrinhos e madrinhas de tenra idade, comenta-se sobre o debut e posterior carreira à pia batismal de algumas

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crianças. Feliciano Antônio Marques, filho de Maria Quitéria Marques de Souza e Antônio Simões, foi batizado no dia 3 de junho de 1748 (ADPRG- 1LBat-RG,1738-1753 - Registro batismal

de

Feliciano,

filho

de

Antônio

Simões,

03/06/1748).

Seu

primeiro

comparecimento à pia batismal como padrinho foi para batizar o menino Joaquim, “filho natural de Joana de nação Mina, preta escrava do capitão Antônio Pinto da Costa”, tendo como madrinha sua irmã Maria Marques. A cerimônia deu-se no dia 18 de maio de 1756 (ADPRG, 2LBat-RG, 1753-1757 - Registro Batismal de Joaquim, filho de Maria, 18/05/1756 -), quando Feliciano tinha seis anos, prestes a completar sete e sair da “idade da inocência”. Maria Marques foi batizada no dia 11 de março de 1752 (ADPRG- 1LBatRG, 1738-1753, Registro Batismal de Maria, filha de Antônio Simões, 11/05/1752), e tinha três anos de idade - quatro incompletos – quando do seu debut como madrinha. Nenhum dos dois irmãos respondia por seus atos segundo as Constituições Primeiras, mas foram convocados para fiadores de Joaquim ante Deus e a comunidade cristã de Rio Grande. Feliciano foi padrinho em Rio Grande por mais duas vezes, nos anos seguintes de 1757 e 1758. A menina Joaquina Marques de Souza foi batizada em 25 de julho de 1750 (ADPRG- 1LBat-RG, 1738-1753 - Registro batismal de Joaquina, filha de Antônio Simões, 25/07/1750) e iniciou sua carreira de madrinha no dia 26 de janeiro de 1757, com sete anos incompletos, batizando o menino Joaquim. Seu par à pia foi seu irmão mais velho, Manuel Marques de Souza (ADPRG- 1LBat-RG, 1753-1757 - Registro Batismal de Joaquim, filho de Mateus Marques, 26/01/1757). Os pais do menino eram livres e naturais dos Açores. A despeito do sobrenome do pai, não parecem guardar parentesco com os Marques de Souza. O nome da criança foi escolhido provavelmente em homenagem à madrinha, estreitando ainda mais os laços que ambos contraíam à pia batismal. No futuro,

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conviveriam no espaço da vila Joaquina Marques e seu afilhado Joaquim Marques, se esse fosse o sobrenome escolhido para portar. Joaquina foi madrinha mais sete vezes além desta, sendo o último registro batismal que cita seu nome nessa localidade, antes da invasão espanhola, datado de 26 de janeiro de 1762, ano em que poderia começar a iniciar de crianças no mundo cristão de acordo com as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Sua participação como madrinha em batizados teve continuidade na freguesia de Viamão, para onde mulheres e crianças da família dirigiram-se quando da invasão da vila do Rio Grande. De outra família, temos a menina ou moça Laureana de Santo Antônio1. Sempre dita solteira, batizou muitas crianças, não apenas entre os filhos dos ilhéus mas também em outros estratos sociais, como por exemplo, as vezes em que foi madrinha de uma criança filha de uma escrava de seu próprio pai. Por um deslize do pároco que registrou o batismo equivocadamente no livro de registros dos livres, para depois proceder à transferência do assento para o livro dos escravos, que está desaparecido, tornou-se possível saber que Manuel da Costa de Carvalho possuía escravos, já que nenhum outro documento visto até o presente acusa este fato (ADPRG - 4LBat-RG - Registro de Inácio, filho de Teodora 09/10/1760, 1759-1763). Laureana Maria de Santo Antônio é um caso interessante de “hereditariedade” da preferência ao compadrio para uma de suas filhas espirituais. De certo modo, já era “herdeira” das qualidades que seu pai e sua mãe possuíam aos olhos dos ilhéus povoadores de Rio Grande, tendo-se como parâmetro o grande número de compadrios, tanto dele quanto dela, estabelecidos com gente desse segmento social. Dentre as afilhadas de

1

Laureana Maria, nos livros de registros batismais de Rio Grande foi dita também Laureana Maria do Espírito Santo, Laureana Maria de São José, Laureana Maria de Santa Rosa e Laureana Maria e Jesus. Em todos estes casos têm-se a certeza de tratar-se da mesma moça, dada a recorrência de padrinhos com quem forma par e/ou ou a referência expressa a seus pais. As diferenças nos modos com que era chamada podem acusar ou a sua pouca idade ou a indefinição acerca de qual nome portaria para o restante da vida.

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Laureana Maria encontramos a menina também chamada Laureana, filha de José da Silveira de Andrade e Maria Silveira, ambos naturais da Ilha do Faial. O padrinho foi seu pai, Manuel da Costa de Carvalho (ADPRG - 1LBat-RG, 1753-1757- Registro batismal de Laureana, filha de José da Silveira de Andrade, 08/06/1755). Após a invasão castelhana, Manuel da Costa de Carvalho e Inês de Santo Antônio se transferiram para o Estreito e podem ser vistos atuando em batismos por um curto lapso de tempo. De sua filha Laureana perdeu-se o rastro. Pode ter morrido com a invasão, pode ter casado e mudado para longe. Em Viamão tampouco soube-se dela. A menina Laureana, afilhada de Laureana Maria, fez sua estréia como madrinha portando o nome de Laureana de Jesus no dia 23 de dezembro de 1770, então com dez anos, batizando mais algumas crianças nos anos seguintes. Eis a pergunta que não quer calar: por que essas famílias, geralmente bem posicionadas na sociedade local, expunham seus filhos desde a tenra idade assumindo um dos compromissos mais sérios que um cristão poderia ter ante Deus e ante a cristandade? Uma das respostas possíveis é que, cientes da necessidade de reafirmação de seu prestígio e posição nessa sociedade, tinham intenções de reiteração destes ao longo do tempo. A constatação de que as pessoas não vivem para sempre e que é dever dos pais construir legado para os seus filhos também são pertinentes. A noção de que essas relações, apesar de serem nominais, pessoais, eram direcionadas a famílias específicas e não a apenas um de seus membros vem a reforçar esta idéia. Algumas vezes o primeiro afilhado de uma criança de pouca idade era um escravo da família, fosse dos pais do padrinho, fosse dos cunhados ou tios. Nesses casos, parece ser intencional fazer a inauguração da carreira de padrinhos, mesmo que o convite não venha de um outro núcleo familiar, como que alertando aos outros que a família já estava disponibilizando-o ao compadrio. Também soam comuns os afilhados dos núcleos

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familiares vindos dos Açores. Esses eram “estrangeiros” na localidade, chegados depois de transcorrida mais de uma década desde a fundação do povoado e buscando vínculos com as famílias que já viviam lá há mais tempo. Como raramente se pode conferir as idades que muitas dessas crianças tinham ou com quantos anos se iniciaram como padrinhos e madrinhas, qualquer quantificação nesse momento, devido à forma de coleta e a metodologia com que foram trabalhados esses dados, seria inconseqüente. Entretanto, tem o mérito de apontar para uma questão a ser pesquisada futuramente: a origem social e geográfica desses pequenos padrinhos e madrinhas. O que pode ser feito aqui, apenas, é colocar à discussão alguns dos casos que puderam ser identificados e que podem ser dados como exemplo. Pode-se pensar, a partir dessas recorrências, que os filhos mais velhos e as filhas mulheres eram os “herdeiros” da popularidade dos pais à pia batismal. Tudo dá mostras de que a família estava formando um patrimônio em relações sociais e legando aos seus filhos, numa clara estratégia de lançar estas alianças ao futuro da família. Estavam, de certo modo, gerando um pecúlio imaterial que servia como um dote, que não podia ser descrito e quantificado nos inventários que restaram desse período. Muriel Nazzari, em seu extenso estudo sobre o dote em São Paulo, usou os inventários como fonte principal. Concluiu por uma decadência dessa prática, que já dava algumas de suas mostras ao século XVIII e que culminou com o seu desaparecimento na primeira metade do século XX (Nazzari, 1991). Essa autora vê, na dotação das noivas, a parte material do pacto de alianças inter-famílias que concretizava ao matrimônio, sendo o dote uma transferência de bens da família da noiva ao novo casal. João Fragoso, ao estudar as famílias de elite do Rio de Janeiro, percebeu que as escrituras de dotes, ainda que fossem pouco menos de dez por cento do total de 110 escrituras vistas para o período, representavam um terço do valor registrado nessa sorte de

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documentos. Ou seja, um terço dos valores movimentados nessa sociedade não era feito através do mercado de compra e venda e sim através de acordos entre as famílias. Conclui este autor: ...as pessoas que fizeram tais escrituras criaram a imagem de um mercado definitivamente marcado não somente pela oferta e procura, mas também por outras relações sociais (Fragoso, 2001a: pp. 61-62)

Fábio Kühn (2003), ao analisar a prática do dote entre as famílias sulinas, percebe que algumas famílias não mais dotavam suas filhas e que a colação dos bens nos inventários, ou seja, o retorno do montante do dote ao monte-mor para a posterior divisão dos bens entre os herdeiros, tornou-se comum naquelas famílias em que o dote havia sido dado quando do casamento das moças, reforçando a idéia que também é colocada por Sílvia Brügger em sua tese, de que o dote, antes de ser um presente, era um adiantamento da herança à moça que se casava (Brügger, 2002: pp. 201-202). Mas o aspecto que aqui se levanta, a imaterialidade de certos bens que eram repassados no interior das famílias, não é e nem pode ser dimensionado com essa sorte de fontes. Se a dotação fosse em forma de bens materiais, bens móveis ou de raiz, apareceria na colação dos inventários e nas próprias escrituras de dote. Mas não é nessa sorte de documentação que serão encontradas aquelas relações sociais que, segundo Fragoso, também marcavam o mercado dito imperfeito, no qual há valores e bens que não passam por ele. Nisso concordam Brügger e Kühn. As posses dessas famílias, devido às migrações que tiveram como motor as instabilidades da diplomacia ibérica refletida em guerras de fronteira, possivelmente foram perdidas e refeitas, algumas por mais de uma vez. Mas a rede de alianças que teceram ao tornarem-se compadres de outros moradores – e nesse caso tanto faz se na Colônia do Sacramento ou na vila do Rio Grande – estavam feitas para todo o sempre.

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Durante as migrações e as reinstalações dos núcleos familiares em novas localidades, os compadres, a verdadeira fortuna em relacionamentos humanos e espirituais, moviam-se junto com os migrantes. Junto com eles, as obrigações mútuas relativas à economia do dom. Ao que tudo indica, os livros dos registros batismais, assim como os registros de matrimônios, que para este estudo não foram analisados de forma intensiva, guardam notícia desse patrimônio imaterial no momento de sua formação. No ato de batismo de uma criança seriam sacralizadas certas relações que, a despeito de um possível ganho imediato sob forma de presentes ao afilhado, eram carregadas para o restante da vida e para além dela. Dessa forma, mesmo laços mundanos como as sociedades aos negócios ou fazer parte de um mesmo corpo militar, reiteravam-se no ato do batismo recebendo a bênção da Igreja. Os filhos de Antônio Simões e Maria Quitéria que nasceram em Rio Grande começaram a batizar ali fora da idade determinada pelas Constituições Primeiras, havendo também possibilidade de terem sido realizados outros batismos na colônia do Sacramento antes destes. Manuel Marques de Souza estreou no Rio Grande com dez anos de idade e seu primeiro afilhado era filho de um casal das Ilhas. A segunda criança que batizou, também filha de ilhéus, foi a estréia de sua irmã, Escolástica, como madrinha no Rio Grande, aos nove anos de idade. No ano de 1756, Manuel Marques de Souza fez par à pia batismal com sua sobrinha, Rosa Maria Séria, natural de Rio Grande e filha de sua irmã mais velha, Teodósia, nascida na colônia do Sacramento. A menina Rosa tinha nove anos de idade e sua primeira afilhada no Rio Grande era filha de uma escrava de seu pai, Antônio Pinto da Costa.

Feliciano

Antônio

Marques

e

Maria

Marques

começaram

a

batizar,

respectivamente, aos sete e quatro anos incompletos, quando fizeram par à pia batismal para o batismo de um menino chamado Joaquim, também filho de uma escrava de Antônio

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Pinto da Costa. Joaquina Marques foi madrinha pela primeira vez quando tinha seis anos de idade, e seu par também foi Manuel Marques de Souza; a criança batizada, Joaquim, era filho de ilhéus. A recorrência de crianças apadrinhando outras crianças nessa e em outras famílias chamou a atenção. A um outro núcleo familiar, encabeçado pelo casal Domingos de Lima Veiga e Gertrudes Pais de Araújo, estende-se essa análise. Domingos de Lima Veiga, nascido no Bispado do Porto, em Portugal, acumulou diversos ofícios e patentes na vila do Rio Grande. Foi sargento e, posteriormente, capitão da ordenança, situado por Queiroz na terceira faixa de proprietários de escravos da vila (Queiroz, 1987: p. 100). Sua esposa, Gertrudes Pais de Araújo, era sorocabana, descendente das famílias paulistas já tradicionais. Os nomes da filha deste casal aparecem com grandes variações nos registros batismais de Rio Grande, talvez denotando, como já foi dito anteriormente, uma certa indefinição na juventude acerca de qual deles seria adotado para o restante de suas vidas. Não se exclui a possibilidade de haver mais de uma menina com nome semelhante, fato comum neste período e por vezes impossível de dar a perceber. Após a evasão para Rio Grande, transferiram-se para Viamão, onde tiveram mais filhos e de onde novamente migraram, dessa vez para Porto Alegre, acompanhando também o deslocamento da única câmara de vereadores que existiu no continente do Rio Grande de São Pedro ao longo do século XVIII. Esse núcleo não se encontra entre os que estão no topo dos quadros apresentados acima mas, ainda assim, possui considerável número de afilhados entre os ilhéus e em outros setores da sociedade. O grande número de membros dessa família assegurava que, ainda que não houvesse grande concentração em uma única pessoa, os batismos dispersos por vários deles fossem bastante significativos. Diferente dos outros quadros, não é a esposa que desponta na predileção dos açorianos, mas uma filha e o marido. De forma

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semelhante aos outros núcleos familiares citados anteriormente, com a honrosa exceção de Manuel de Souza Torino e Maria Coelho, os compadrios da parcela masculina, se somados, não ultrapassam os compadrios da parcela feminina. Quadro XXIII - Domingos de Lima Veiga e Gertrudes Pais de Araújo

1º Compadrio na localidade

último compadrio na localidade

Nome

posição família

03/09/1754 03/09/1754 16/06/1750 14/11/1760 30/09/1755

02/08/1762 10/07/1757 29/09/1760 14/11/1760 15/09/1760

Domingos de Lima Veiga Gertrudes Pais de Araújo Marçal de Lima Veiga* Narciso de Lima Veiga Ana Maria Pais/Ana Joaquina Total de comparecimentos à pia

marido esposa pai filho filha

Faleceu em 02/09/1762, 1LObt-Rg Fonte: ADPRG – 1LBat-RG, 2LBat-RG, 3LBat-RG, 4LBat-RG

na comparecimentos à pia 9 4 2 1 16 32

A quantidade dos compadrios convertida em qualidade dos compadres pode ter sido um dos fatores que colocavam essas moças e rapazes numa posição privilegiada quando na idade de casar. Da família de Domingos de Lima Veiga sabe-se ao menos de um bom casamento. Tanto para os rapazes quanto para as moças que eram padrinhos com certa popularidade, a quantidade e a qualidade diversificada de seus afilhados e compadres dava a demonstração sobre quais os setores sociais sobre os quais tinham ascendência, o quão eram alastradas essas relações e quantas pessoas lhes deviam respeito e deferência. Não se encontrou o registro de nascimento de Ana Maria ou Ana Joaquina na vila do Rio Grande, sendo possivelmente natural de Sorocaba, onde nasceu e se casou sua mãe, em 1744 (Leme, Título Lemes, 2002), ou qualquer outro lugar em que o casal tenha residido, não se descartando a possibilidade de terem vivido na colônia do Sacramento. Por conseqüência, não se tem a menor idéia da idade com que ela começou a batizar crianças na vila. Entretanto, a julgar por seu irmão mais novo, Narciso, batizado na vila do Rio Grande em dez de outubro de 1756, acredita-se que tenha sido mais uma das madrinhas infantes da localidade. Narciso teve um triste fim, como que sina do próprio nome: morreu

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afogado em Viamão, em 1764, aos oito anos de idade (AHCMPA - 1748-1777 - 1LObtViamão- Registro do óbito de Narciso, filho de Domingos de Lima Veiga, 21/11/1764,). Mas nada impediu que antes do nefasto acidente pudesse ter batizado duas crianças na vila do Rio Grande, a primeira delas aos quatro anos de idade, aumentando a lista dos parentes fictícios correlatos à família dos Lima Veiga/Paes de Araújo. A despeito das posses do pai de Ana, que tudo indica não serem poucas, pois fora o almoxarife da Fazenda, cargo que exigia certo cabedal para o seu exercício, estava sendo formado um outro pecúlio para ela. Assim como as demais famílias aqui citadas, esse núcleo familiar não possuía compadres apenas entre os ilhéus, fazendo parte do circuito de relações por eles formadas ao batismo de crianças, filhos de gente de estatuto social semelhante ao seu – sesmeiros, militares, oficiais da Coroa, comerciantes de tropas, contratadores – além de escravos, forros, pardos, índios, camponeses, peões, soldados de baixa patente. Como as outras famílias que eram preferidas ao compadrio em Rio Grande, havia uma diversificação de origem sócio-econômica e geográfica entre os seus compadres. Ao que tudo indica, essa diversificação podia demonstrar ou construir um referencial de inserção na sociedade, não apenas na camada social de onde eram originários, mas na capacidade de cativar – aqui usando os dois sentidos da palavra, de seduzir ou angariar simpatia, e no de tornar escravo, tornar preso moralmente e estar obrigado a algo – pessoas de outra situação que não a sua. Ana, por sua vez, casou-se com o também popular padrinho Manuel Marques de Souza, filho de Antônio Simões e Maria Quitéria. Somente entre os ilhéus que tiveram filhos batizados em Rio Grande eles amealharam um dote em relações pessoais sacramentadas pelo batismo cujo montante mínimo era de 29 afilhados, pecúlio este formado desde suas infâncias, como uma extensão da popularidade de seus que se espraiava sobre toda a família. Em compadres ilhéus, talvez um pouco menos que o dobro

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disso, pois pode ter havido núcleos familiares que os convidaram mais de uma vez. Teriam, portanto, somente entre compadres e afilhados com origem nos Açores, algo em torno de 80 pessoas, ligadas a eles de modo sagrado e direto. Parece ser isso uma fortuna bastante sólida para um jovem casal que inicia a vida. Havendo documentos suficientes, ao historiador é dada a possibilidade de uma visão do “futuro” dos protagonistas que fazem parte do seu objeto de estudo. Devido às características muito chamativas desse casal que se formou na vila do Rio Grande, não foi possível resistir a uma escapadela ao “futuro”, para saber da descendência deste casal, para tentar verificar se as estratégias montadas por suas famílias, visíveis nos registros batismais, foram bem sucedidas. Extrapolando, então, o recorte cronológico desse estudo, verificou-se que o filho homônimo de Manuel Marques de Souza, assim como seu pai, também teve carreira militar, sendo também guerreiro em lutas contra espanhóis. Obteve a patente de tenente general e exerceu o governo interino do Rio Grande do Sul como presidente do Triunvirato entre setembro de 1820 e agosto de 1821. O neto de Manuel Marques de Souza e da então chamada Dona Ana Maria (ou Ana Joaquina), também guerreiro experimentado em lutas de fronteira, atuou na Guerra da Cisplatina, na Guerra dos Farrapos ao lado das tropas legalistas e foi herói da Guerra do Paraguai, entre outros feitos – podendo haver um outro homônimo em descendência direta do qual não se encontrou referência. Esses feitos pessoais seus e os serviços de sua família lhe renderam título de nobreza, sendo agraciado como visconde e, posteriormente, conde de Porto Alegre. As bem sucedidas estratégias familiares e sociais dos Marques de Souza suscitam a continuidade desse estudo, aí sim, perseguindo ao longo do tempo tanto sua descendência quanto sua ascendência, escrutinando suas práticas matrimoniais, que incluem o casamento endogâmico, as alianças com diversos setores da sociedade, visíveis através do compadrio

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e que inclui a experiência geracional em guerras intestinas e contra o estrangeiro. Uma estirpe de guerreiros especializados em guerras de fronteira formou-se ao sul. Desse seu conhecimento, especialização e vivência de fronteira, vieram o reconhecimento e a retribuição sob a forma de mercês. Em trabalho anterior (Hameister, 2002: p. 203), foi dito que a guerra só tem como frutos a morte e a destruição. Entretanto, acompanhando o processo de estabelecimento de famílias povoadoras na fronteira sul do Império português, assinala-se aqui o grande erro contido nessa afirmativa. Corrige-se agora o equívoco anterior: a guerra, deletéria em sua essência, também trouxe benefícios para a sociedade sulina. As guerras, nessa fronteira meridional, contribuíram para o estabelecimento das hierarquias e para a sua manutenção. A hierarquia, muito dela imanente das atividades bélicas, dava forma à sociedade lusa que se formou ao sul, fazendo com que o caos oriundo de uma possível igualação de posições dentro dela não passasse pelo o menor risco de acontecer. Por mais paradoxal que possa parecer, a guerra teve seus efeitos positivos na medida em que trouxe mais uma forma de organização para a sociedade que, sem essas hierarquias, tenderia ao tão amedrontador caos social. A sempre presente ameaça de invasões e conflitos fazia com que toda a sociedade muito necessitasse de quem houvesse de fazer sua defesa. As famílias que investiram forças e membros nessas carreiras, fossem as famílias de elite, fossem as pertencentes a outros setores da sociedade, estavam entre os agraciados privilegiados pelas mercês de Sua Majestade, sempre recebendo o justo: aquilo que era proporcional aos seus serviços e à sua qualidade, de acordo com o discutido por Levi (2002). Isso contribuía, inclusive, para o estabelecimento de qualidades diferenciadas dentro de estratos sociais semelhantes. Havia peões, escravos, pardos, forros, índios minuano, índios tape, índios del-rei que foram à guerra e os que não foram. Isso aumentava a complexidade dessas escalas da

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hierarquização social de fronteira ao mesmo tempo em que gerava distinções internas aos muitos setores, avaliáveis e perceptíveis pelas autoridades morais e legais de seu próprio tempo. Contribuía para que escravos, pardos, livre, forros, e gente de “nação” apresentassem diferenças internas dentro dessas mesmas categorias, podendo, inclusive, gerar “elites” dentro desses mesmos setores: escravos com ascendência social e política sobre outros escravos ou um “rei dos pardos” entre aqueles que eram classificados e qualificados como pardos. Estirpes de guerreiros se fundaram e se firmaram na defesa dos territórios de sua Majestade, permitindo um aprendizado nessas funções militares que eram ao mesmo tempo familiares e geracionais. Os descendentes de Francisco de Brito Peixoto que se firmaram ao sul foram partícipes da conquista e defesa dos territórios lusos contra os ataques dos espanhóis. Lutaram na Colônia do Sacramento e pela manutenção do Rio Grande sob a égide da Coroa portuguesa; Francisco e seu filho, Rafael Pinto Bandeira, acumularam fortunas significativas em uma terra em que o normal era nada ou quase nada ter de sólido (Silva, 1999; Gil, 2003). Os descendentes de Antônio Simões e Maria Quitéria construíram seu nome e sua carreira em meio às guerras. A hereditariedade nas carreiras militares e o repasse dos nomes dentro dessas famílias, muito bem exemplificado no caso dos três – talvez quatro – militares Manuel Marques de Souza que, em descendência direta, fizeram com que o nome e os atos – partes intangíveis de suas trajetórias – se perpetuassem e se engrandecessem ao longo das três gerações nascidas na América. Com isso chegaram à obtenção de título nobiliárquico a uma família que teria, quando muito, uma pequena fidalguia desde quando deixou o Trás-os-Montes, arrolados como “gente que só entende de agricultura”. Na península, provavelmente isso seria impensável para essas famílias. O contexto de fronteira e de guerras, ao mesmo tempo em que primava pelo estabelecimento de hierarquias sociais

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nessa sociedade, que tinha nessa hierarquização um de seus pilares, permitia uma mobilidade bastante acentuada, quer para os setores situados mais acima na escala social, quer para aqueles menos favorecidos pela sorte ou pelo nascimento.

V. Os destinos diferentes Ainda ficou no ar a questão: e os açorianos credores do dom feito inicialmente e que deram inicio a essa discussão, o que receberam nessa troca de bens não mensuráveis? A resposta a essa pergunta também é difícil, pois se trata desse patrimônio imaterial e das trocas imateriais que praticamente não são passíveis de mensurar e raras vezes são perceptíveis aos olhos. O recurso da analogia e o apoio teórico conferem suporte ao tentar suprir o que a documentação não diz com aquilo que se percebeu como sendo práticas sociais e religiosas do período. Permitem, ainda assim, dizer algo dessas relações e dos bens trocados. Das famílias que mais receberam o “investimento” em convites ao compadrio, nem todas foi encontrada a seqüência de suas vidas, cuja “normalidade” – se é que esse termo pode ser aplicado a um breve período de paz em uma localidade na qual até mesmo sua fundação foi fruto da guerra – foi interrompida pela tomada da vila promovida pelos espanhóis. De Manuel de Souza Torino e Maria Coelho quase nada mais se soube. Talvez possam ter sido levados para San Carlos de Maldonado pelos invasores, ou podem ter migrado para qualquer outra localidade do Império luso. Um de seus filhos transferiu-se para o Estreito, onde foram batizados e crismados filhos seus sem, no entanto, comparecer como padrinho a nenhuma cerimônia. Bem mais adiante, foram percebidos com alguma atividade junto aos ritos batismais em Viamão, ainda que sem a expressão que tiveram em Rio Grande. Era um outro contexto, havia tantos mais habitantes que já viviam lá. Jamais recobraram a predileção ao compadrio que tinham antes, talvez por já estarem

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envelhecidos, talvez porque Torino foi um dos que fugiu da vila aos primeiros sinais da invasão, não ficando para o enfrentamento nem para a proteção das demais famílias. Bem provável não tenha conseguido dar essa proteção em um momento que testou ao limite a capacidade de zelo às famílias espirituais formadas anteriormente. Talvez não tenha sido, em momento extremo, o padrinho e compadre que todos esperavam. Da família de Manuel Gonçalves de Carvalho, de quem já foi falado um pouco, quedam dúvidas que poderão ser diminuídas ou eliminadas com o exame dos registros eclesiásticos de San Carlos de Maldonado, já que Moacyr Domingues cita pessoas com o nome dos membros dessa família sem que os dados que os circunstanciam possam refutar ou afirmar peremptoriamente uma identificação. Manuel Gonçalves de Carvalho e Inês de Santo Antônio passaram para a localidade do Estreito, que recebeu fugitivos da invasão e para onde o pároco de Rio Grande, Manuel Francisco da Silva, deu continuidade ao seu trabalho de pastor desse rebanho. Ambos desaparecem subitamente dos registros sem que tenham sido localizados na freguesia de Viamão, e Laureana não aparece em nenhum outro registro, quer em Viamão, quer no Estreito, ficando, então, a continuidade do estudo dessa família aguardando ocasião e documentação que a permitam. Lucas Fernandes da Costa e Joana Maria da Purificação transferiram-se para a jurisdição de Viamão, também não tendo expressão maior na vida da freguesia, fosse em cargo da câmara, fosse em algum ofício. Muito provavelmente as perdas de gados e terras para uma família que concentrava suas atividades quase que exclusivamente na criação de animais e seu comércio não pode ser revertida, principalmente por já estar a família Pinto Bandeira e mais descendentes de Francisco de Brito Peixoto, que atuavam nesse mesmo comércio, já estabelecidos há décadas na localidade, deixando pouco espaço para a reinstalação dos que fugiram da vila do Rio Grande. Dos filhos de Lucas Fernandes, um ordenou-se padre. O outro, casado, viveu em Viamão. Com o peso da idade já se fazendo

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sentir, tampouco Lucas Fernandes da Costa atuou nas campanhas de defesa do Rio Grande, vindo a falecer em 1776, por volta dos noventa anos de idade (ADPRG, 1LObt-Viamão, 1748-1777 - Registro do Óbito de Lucas Fernandes, 20/04/1776 ). Provavelmente a falta de disposição e de condições de atuarem na defesa do território e dos seus moradores, como possivelmente ocorreu com Manuel de Souza Torino e sua mulher Maria Coelho, foi fator decisivo para sua decadência nas preferências batismais na década de 1770. Nessa década, Lucas Fernandes e Joana Maria compareceram apenas uma vez à pia batismal e seu filho, Joaquim Manuel da Trindade, não foi padrinho sequer uma vez. É possível que a família de Lucas Fernandes não tenha sido capaz de dar a proteção e amparo aos compadres nos momentos de maior dificuldade pelos quais passaram os habitantes do Rio Grande. A dádiva não sendo retribuída, tampouco seriam reiterados os laços que vinham sendo firmados e reafirmados na vila do Rio Grande. Das cinco famílias aqui analisadas, duas tiveram consecução. Curiosamente, essas duas famílias uniram-se através do matrimônio de Manuel Marques de Souza e Ana de Lima. Isso traz à discussão a questão da racionalidade limitada, posta em ação em situação de recursos também limitados e cujo resultado também é limitado “por um horizonte de constante incerteza” (Lima Fo, 1999: pp. 259-260). Os grilhões da dádiva que partiam dos açorianos nessa localidade foram concentrados nessas cinco famílias; entretanto, os embates entre lusos e espanhóis nessa fronteira não lhes dava segurança nenhuma quanto aos resultados. Nem a eles, nem às cinco famílias de padrinhos de muitos afilhados, na expressão de Sílvia Brügger (2002: pp. 351 e ss.). Entretanto, essas duas famílias que “vingaram”, continuaram a batizar filhos e netos de açorianos no Estreito e em Viamão, dando a entender que de alguma forma conseguiam cumprir com o que deles era esperado, ainda que na maioria das vezes escape à apreensão do pesquisador o que se esperava de padrinhos ou famílias de padrinhos que muito batizaram.

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Somando-se a essa evidente e bem sucedida trajetória dos Marques de Souza/Lima Veiga, há interessante querela de dois nativos dos Açores, um deles compadre de Domingos de Lima Veiga e arbitrado pelo próprio, um com patentes, sesmarias de terras, contratos de fornecimento de carnes, criação de gados e cargo na câmara e outro com poucas distinções.

VI. O que ganharam com isso os credores do dom primeiro? Um caso revelador da dádiva e da subversão de sua lógica Eis que no ano de 1778, André Pereira Maciel, natural das Ilhas, casado com uma filha de nativo das Ilhas, entrou com um requerimento pedindo confirmação da posse de umas terras havidas por dote de seu já defunto sogro, Francisco da Fonseca Quintanilha, de alcunha Francisquinho. Argumentava estar de posse das terras por mais de dez anos, bem como de um retalho de terra em uma várzea que sobejara quando da divisão da Estância de Itapuã. Essas terras antigamente pertencentes ao Capitão Domingos Gomes Ribeiro, foram desapropriadas para o assentamento dos casais de Sua Majestade em datas de terra que deveriam ter um quarto de légua em quadra ou tamanho menor, se houvesse a concordância do pretendente a elas. A terra foi dada a Quintanilha e o retalho de terras, na alegação do mesmo requerente, era insuficiente para alojar mais um casal, mas muito serviriam a ele, lindeiro de tal retalho. Ambas haviam sido dadas por carta de autoridades a esse requerente primeiro (Barroso, Brochado & Tassoni, 2002: pp. 554-555). Não obstante, André Pereira Maciel solicitava a confirmação da posse de ambas as porções com certa urgência, já que um homem de destacada posição na sociedade também as pretendia. Dizia ele em seu requerimento: ...que informasse o Capitão do Distrito com o seu parecer, e sendo-lhe que este apresentando o deu sem informação por conhecer se de justiça o que alegava o antecessor do suplicante, e como agora o mesmo Capitão

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Francisco Pires Casado requereu a Vossa Senhoria se lhe desse a dita vargem com o pretexto de que esta se acha devoluta, e que assim ficou quando se arrumaram os moradores da Freguesia da Senhora de Santa Anna, quanto tudo é pelo contrário, visto os documentos juntos, e bem certo estará Vossa Senhoria que estando naquela mesma paragem estabelecido o sogro do suplicante lhe pôs Vossa Senhoria em sua vida duas bestas para correrem as paradas, e é bem certo que não haver ali moradores e estarem devolutas nem Vossa Senhoria lhe poria as ditas bestas nem teria aquela paragem o nome de Vargem do Francisquinho, nestes termos e a vista dos documentos juntos, e dos mais que alega o suplicante com aquela verdade que costuma (Barroso, Brochado & Tassoni, 2002: pp. 554 - grifos meus)

O escrivão da Provedoria Real da Fazenda a este tempo era Domingos de Lima Veiga. O seu despacho nesse requerimento foi o que segue: Da Certidão junta consta ter-se medido e demarcado as terras na mesma mencionadas a Francisco da Fonseca Quintanilha sogro do suplicante, e como este alega o pertencerem por lhe serem dadas em dote parece se deve conservar na posse em que está, e que estava o dito seu sogro, requerendo a confirmação da referida data para a poder possuir com o título justo como se conferiram os casais. É o que posso informar a vossa mercê. Porto Alegre, trinta e um de julho de mil setecentos e setenta e oito = Domingos de Lima Veiga = (Barroso, Brochado & Tassoni, 2002: pp. 554)

O Provedor da Fazenda Real considerou o despacho do Escrivão e deu o “cumprase”, dando a posse definitiva da terra e do retalho de várzea, medidas por um capitãoengenheiro, a André Pereira Machado, ilhéu casado com filha de ilhéu. Resolveu-se, portanto, baseado num julgamento que competiu ao escrivão da Fazenda Real, fazer a justiça, com parecer dado ao provedor. Decidiu, então, Domingos de Lima Veiga uma querela em que estava envolvido um de seus muitos compadres. Entretanto, não se encerra aqui a discussão acerca das relações de compadrio e sua relação com o exercício do poder. Ao contrário, mais interessante fica. O compadre de Domingos de Lima Veiga, ao contrário do que se poderia pensar, não era André Pereira Machado e sim Francisco Pires Casado! Como interpretar essa atitude de “compadre que emite parecer contra compadre”? Aparentemente contraria os compromissos assumidos à pia batismal. Aparentemente, o

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favorecimento a um compadre estaria na ordem do dia ao distribuir os bens da Coroa cuja responsabilidade estava em suas mãos. Havia inúmeras formas de negar o requerimento de André Pereira Machado. Uma delas era alegar estarem as terras devolutas, com apenas algumas cabeças de animais que bem poderiam ser fugidas das terras de seu dono. Poderia ser alegada a necessidade maior do compadre Pires Casado no uso dessa terra. Alegações não faltariam e tampouco deixaram de ser usadas em processos por disputas de posse de terras no Brasil colonial. Entretanto, Domingos de Lima Veiga não o fez. Lembrando aqui o caso da menina Felícia, havia outros compromissos que aqueles ocupados em dispensar justiça deviam respeitar. Como a própria justiça que dá a cada um o que lhe compete. Também a posição de quem dispensa justiça exigia o compromisso com o bem-comum e com a ordem social. Bem possível também tenha Lima Veiga pressentido alguma ameaça à ordem e à estabilidade, contida na frase de André Pereira Machado: Pede a Vossa Senhora mandar que se conserve o suplicante nas ditas terras que ocupa, visto estar na posse delas há mais de dez anos para que não seja inquietado por outros requerimentos semelhantes ao do suplicado, pois deseja viver pacífico, debaixo da proteção de Vossa Senhoria (Barroso, Brochado & Tassoni, 2002: pp. 554 - grifo meu.) .

Novamente, há a necessidade de retorno aos estudos da dádiva. Foi dito anteriormente que a dádiva primeira caberia a quem oferece seu filho como afilhado de outrem e caberia a quem convida o outro a adentrar a sua família através dos laços sagrados do compadrio. As obrigações de receber e retribuir caberiam a quem foi feito o convite. Maurice Godelier, ao discutir várias formas de dons, agonísticos e nãoagonísticos, diz que em alguns casos o que interessa é não quitar jamais as dívidas e sim criar dívidas que durem o maior tempo possível, guardando o bem ofertado primeiro, de tal modo que o prestígio possa ser acumulado e o nome engrandecido. Nesse tipo de trocas estariam o kula e o potlatch. Cadeia de dons agonísticos com função de cancelar as

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dívidas. Os dons não-agonísticos funcionariam com resultado distinto no interior da sociedade. Teriam, portanto, uma função diferente também. Isto nos permite destacar a grande diferença que existe entre a prática de dons e contra-dons não agonísticos e o kula ou o potlacht. No kula quando um objeto de igual categoria e de valor equivalente vêm a ocupar o lugar do dom inicial, a dívida é anulada. O contradom apaga a dívida. Isso é completamente diferente, como vimos, com os dons nãoagonísticos. Nesse caso, os contradons não anulam os dons. O objeto não é “devolvido”, ele é dado de novo. Os dons criam dívidas de longo prazo que, muitas vezes, ultrapassam a duração da vida dos doadores e os contradons têm como motivo primeiro restaurar o equilíbrio entre parceiros, a equivalência de seus status – não a anulação da dívida (Godelier, 2001: p. 143).

A quarta obrigação do dom estaria em guardar, reter o bem ofertado, conservando aquele que recebe tudo o que representa pelo maior tempo possível. Engrandece assim a sua história e a história de sua família com tudo o que está associado ao bem recebido. Guardar, reter e protelar a retribuição faria parte, portanto, da economia do dom. O sacramento do batismo e as relações que este gera são formas de dom e contradom. Godelier afirma que nas trocas os objetos que são doados tomam o lugar das pessoas, substituindo-as e representando-as. Quando se dá algo, se dá algo de si. No caso dos batismos, não há um objeto trocado e sim crianças que se oferecem tomando o lugar das famílias nessa troca. O bem oferecido – um filho – é aceito em outra família, uma família espiritual, como um afilhado ou filho espiritual. O batizando representa a família que se oferece, consubstanciada nele. O elo gerado entre pais da criança e os padrinhos ultrapassam a duração da vida e nem sempre pode ser a oferta retribuída de imediato ou mesmo decorrido muito tempo. As relações de compadrio, dependendo da qualidade das famílias envolvidas, podem ser trocas de tipos diferentes. Uma vez parceiros na troca, possuindo posições sociais diferentes, cai-se no caso em que a dívida nunca será cancelada. A criança que representa a família nessa troca, pelos costumes dessa sociedade, não será batizada por

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uma pessoa de qualidade inferior à de sua família. Assim, ao convidar pessoa de estatuto social superior, a família de condição inferior sabe, de antemão, que jamais será convidada a ir à pia batismal proceder o batismo de um filho de seu compadre. O bem ofertado, o filho que foi batizado, ficará “retido” para todo o sempre sob forma de afilhado por seus padrinhos. Os compadrios que se formam nesse momento tampouco serão re-alimentados com uma oferta de valor semelhante, um filho espiritual para a família daqueles com quem já se teceu uma primeira ligação sob forma de afilhamento e compadrio. Quem recebeu o e aceitou o convite feito, ficará ad eternum devedor desse dom primeiro. Como observou Godelier (2002), tendo como ponto de partida os estudos de Annette Weiner, esse tipo de troca não engrandece o nome de quem fez a doação primeira, mas aquele que, de certo modo, teve a coragem de deixar-se agrilhoar nas cadeias da dádiva por uma família, por um grupo social de condição inferior à sua e reteve o bem ofertado sem retribuí-lo. Quem se engrandece na relação de compadrio entre desiguais são aqueles que, pertencendo às camadas superiores da sociedade, se deixam cativar pelas inferiores, e demonstram isso nem que seja nos registros dos livros de batismo. São padrinhos de muitos afilhados que tem origem em muitos estratos sociais. Por outro lado, a relação de compadrio, quando estabelecida entre pares, pode ser retribuída na mesma moeda, o que pode parecer uma quitação da dívida; mas não, é “dar de volta”, é “dar de novo”. Talvez haja constrangimento social em recusar um convite ao compadrio, mas não há nada que obrigue a fazer a oferta. Se nessa situação de compadrio entre famílias de estatuto social semelhante o que batizou primeiro opta por manter os grilhões da dívida com o que ofertou primeiro, a equiparação de seus estatutos não é feita. O bem ofertado é retido a despeito da possibilidade de ser equiparado com bem de igual valor.

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Nessa condição, o receptor do bem primeiro sairia engrandecido com este compadrio procedido dentro de seu próprio nicho social, mas não teria autonomia para certas decisões sobre a sua vida que afetassem a vida de seu compadre, pois não dera de novo um bem equiparável à dádiva inicial. Não demonstraria aos seus pares e mais gentes com quem compartilha a existência em uma mesma sociedade a existência de equivalência entre as posições sociais dos envolvidos na troca. Esta seria uma situação sempre tensa, o que não quer dizer que não pudesse ser proveitosa. Muitos compadrios entre pares ocorreram sem a mão-dupla. Houve a oferta de um bem inicial que não foi novamente ofertado, mas que pode ser retribuído parcialmente sob forma de proteção e auxílio díspar, que não se dão entre iguais. Demonstravam a ascendência reconhecida entre um e outro e colocavam um como sendo “gente do outro”, protegido, aliado. Mostravam que junto com a partilha do filho de um como afilhado do outro estava o reconhecimento de posições desiguais e de compromissos assumidos entre um e outro, que os vinculavam nessa situação de diferença de status e, portanto, de dívida em aberto, até que houvesse a retribuição do dom inicial. Essa poderia, então, nunca ocorrer. Outras vezes, o bem era dado de novo. Esse é o caso da relação existente entre Domingos de Lima Veiga e Francisco Pires Casado. No ano de 1761, Domingos de Lima Veiga ofertou seu filho Francisco para ser afilhado de Francisco Pires Casado. Deu algo de si, de sua família, representado pela criança, para Pires Casado. Note-se que a busca por uma ligação perene também foi manifesta na escolha do nome da criança, que recebeu o nome de seu padrinho. No ano de 1762, Francisco Pires Casado fez a retribuição da dádiva inicial: ofertou sua filha Francisca – e note-se também o nome da menina: Francisca e não Domingas – para Domingos de Lima Veiga tê-la como afilhada. As posições foram equiparadas no contradom ofertado, na mesma moeda da troca, excetuando-se o nome da

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criança – mas essa já e uma dádiva de padrinho para afilhado e não entre compadres – feito por Pires Casado. A partir desse momento, a relação passou a ser de estatuto social equilibrado e, portanto, conferindo a ambos uma maior autonomia para as decisões que afetassem a vida de seu compadre. A oferta primeira, o dom maior, a doação da família consubstanciada na criança ofertada como afilhada, fora retribuída em bem de igual valor. Gerou-se, nesse caso, uma relação entre pares, mas não uma relação de poder propriamente dita, já que um não se deixou ficar em posição inferior ao outro na troca que iniciara há mais de um ano. Francisco Pires Casado não reteve o bem ofertado, deu de novo na primeira oportunidade que teve. Não engrandeceu nem a si nem à sua família com a retenção da oferta por muito mais que um ano. Não houve, para nenhum dos lados, um “engrandecimento” do status ou de posição social. Houve, isso sim, por parte de Pires Casado, o anseio de demonstrar que sua situação social não era superior à de Lima Veiga, não subordinando sua existência a uma dádiva não retribuída de mesmo modo. Equiparouse e não deveu mais obrigações díspares a Lima Veiga. Suas almas estavam unidas, irmanadas ad eternum, mas até irmãos têm suas diferenças e por vezes são levados a agir com certa dureza um sobre o outro para a manutenção do justo e do certo. André Pereira Machado não era compadre de Domingos de Lima Veiga. Não possuía relação nenhuma que colocasse o então escrivão da Fazenda Real em dívida para consigo. Entretanto, por casamento, estava vinculado a um grupo que, somente na vila do Rio Grande, dera à família de Lima Veiga a oportunidade de comparecer por trinta e duas vezes à pia batismal, tornando-se uma família com muitos afilhados dentro desse grupo de origem e com necessidades e anseios em comum. Os nativos das Ilhas dos Açores compartilharam das mesmas agruras, das mesmas e constantes reivindicações de terras, alimentos, roupas e insumos prometidos no Edital que os convocara e os seduzira à migração nas Ilhas.

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Nessas trinta e duas ocasiões em que compareceram à pia batismal para o compadrio com ilhéus, geraram-se dívidas que nunca foram retribuídas na mesma moeda, portanto, nunca foram e nunca seriam quitadas. Somaram-se em torno de noventa parentes espirituais à família de Lima Veiga. O nome dos Lima Veiga foi engrandecido com esses tantos comparecimentos à pia, reiterados ano após ano, agregando afilhados e compadres a si e aos seus. Uma relação de poder, por ser desigual, foi instaurada nesse instante em que alguém de estatuto social inferior ofertou algo de si a Lima Veiga e este aceitou, certo de que, por usos e costumes dessa sociedade, não poderia retribuir, jamais, na mesma moeda. A quantidade de afilhados e compadres dos Lima Veiga era uma manifestação da ascendência e influência dessa família – ou uma epifania do poder, como quer Godelier – sobre um grupo relativamente coeso de habitantes de Rio Grande e, mais tarde, de Viamão e Porto Alegre, localidades para onde muitos nativos das ilhas com suas famílias migraram, assim como Lima Veiga. Ao mesmo tempo, como a dádiva inicial nunca seria equiparada, para a reiteração dessas relações e sustentação futura ou geracional dessa ascendência, Lima Veiga devia retribuir, ainda parcialmente ou com bens inferiores aos que lhe foram ofertados no início. Obtinha respeito, distinção, prestígio e engrandecimento nessa relação, mas havia a necessidade de retribuir com, no mínimo o ato de dispensar justiça em um caso como o de André Pereira Machado, para que não decaísse – nem ele nem os seus – na preferência de um dos grupos sociais que geravam e mantinham o seu poder na localidade. Com essas retribuições feitas sob forma de “dons menores”, contraprestações que não se igualavam ao bem ofertado inicialmente, de modo constante, mantinha um certo grau de satisfação das necessidades e apelos de um dos grupos sociais que lhe sustentavam o poder e mesmo a predileção na escolha para certos cargos e ofícios, tais como o próprio ofício de escrivão da Provedoria. Com isso também se mantinha a relação de “mão-dupla”

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e certa limitação do poder delegado aos setores da elite, cujos membros estariam à mercê de seus próprios pares, com os quais disputavam recursos caso não soubessem manter e reiterar constantemente a base social de onde emanava seu prestígio e que era demonstração clara de sua ascendência sobre homens e suas famílias, fossem elas livres, fossem elas escravas, fossem elas cativas ou agregadas de outrem. Tendo em vista que Lima Veiga e os seus continuaram a batizar em profusão em Viamão, conclui-se que essa família estava desempenhando a contento, ao menos aos olhos dessa comunidade, as suas obrigações de padrinhos e madrinhas. Assim, conclui-se aqui que os setores subalternos tinham a ganhar com esse tipo de relação na qual delegavam ascendência sobre si a um compadre de muitas qualidades. Também fica evidente que os compadres de muitas qualidades tinham a ganhar nessa troca desigual. De certo modo, a grande oferta de afilhados como representantes de suas famílias servia como demonstração de uma delegação de poder e ascendência, mas também em um limitador desse poder cedido às elites locais. Era um elemento que coibia o abuso desse poder, que impedia que fosse utilizado de forma descomedida e descompromissada com o bem-estar dos que estavam situados em patamar inferior ao seu. A estratégia das famílias situadas na base da pirâmide social de Rio Grande mostrou-se efetiva e bem elaborada. Uma retribuição ocorreu sob forma de “bem menor” às famílias de ilhéus, ainda que a longo prazo. A assinatura de Domingos de Lima Veiga, cabeça de uma família que era uma das favoritas ao compadrio, consta não apenas na data de terras de André Pereira Machado, mas em aproximadamente 50% das 631 datas de terras conferidas entre os anos de 1770 e 1800, quando dadas finalmente as terras prometidas em 1747 no Edital de Convocatória lançado nas Ilhas. Ainda que não se tenha podido por enquanto verificar o percentual de famílias vinculadas por compadrio a Lima Veiga por terem sido muitas vezes dadas aos herdeiros das terras, como foi o caso de

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André Pereira Machado, não constando o nome dos já falecidos que pleiteavam a terra, não é de duvidar que entre os muitos que receberam terras estivessem descendentes dos irmãos espirituais do escrivão ou mesmo seus afilhados, dos quais as atas batismais registraram apenas o primeiro nome, que pode ter sido trocado por outro ao longo da existência. O investimento concentrado em poucas famílias com preferência majoritária ao compadrio rendeu-lhes como contrapartida, no mínimo, a proteção física, através da defesa das gentes e dos territórios pelos Marques de Souza e a proteção da Justiça, na distribuição do que lhes competia nessa sociedade, pela mão do escrivão da Provedoria. Se de cinco famílias que receberam o investimento apenas duas foram capazes de retribuí-lo, isso fazia parte da incerteza com relação ao futuro e que é parte da existência humana. Entretanto, não há como negar que os habitantes da vila do Rio Grande prepararam, de algum modo, através das estratégias das quais pode se ver o esboço nos seus livros de batismo, a possibilidade de um futuro no qual pudessem viver. A estratégia dos Marques de Souza e da família de Lima Veiga, ao aceitar o risco de deixarem-se cativar pela dádiva, de não retribuir a mesma, de reter o bem ofertado e de formarem um pecúlio de prestigio, ascendência e distinções teve resultados positivos. Também na união dessas duas famílias isso é demonstrado. Esse resultado foi expresso na trajetória de sua descendência. Com três gerações de existência na América chegaram a um título nobiliárquico, passando por importantes comandos dentro das tropas regulares, tanto da Coroa lusa como, posteriormente, no Império do Brasil. Souberam não apenas receber a dádiva inicial ofertada por seus compadres de situação social inferior, mas também souberam retê-la e dar a correta moeda para a retribuição parcial. A não quitação da dívida e a prestação de dons menores ao longo do tempo os manteve na preferência dos convites que, por sua vez, realimentavam a cadeia de dons e contra-dons. Por último, só resta dizer que nessa situação de uma fronteira com alto risco de

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conflito com o país limítrofe, o bem maior e o patrimônio mais sólido que as famílias podiam constituir era intangível. Não podia ser tirado, não podia ser roubado. Não necessitava de armários e baús para acondicioná-lo. Unia as pessoas e as famílias sem que as disputas e rivalidades para detê-los se transformassem em conflitos entre os setores sociais que podiam conservar antagonismos entre si. Não podiam ser comprados ou vendidos, mas eram ofertados e aceitos de bom grado. Não se transformavam em riqueza imediata na mão de saqueadores nem de contrabandistas, mas era a riqueza maior que tinham e que, com sabedoria e cuidado, transmutava-se em sobrevivência para alguns e em melhoria da situação de existência para outros. As relações sociais tecidas na Igreja e nas capelas eram o bem maior dessa gente toda. Por outro lado, como visto no parentesco espiritual entre Lima Veiga e Pires Casado, podia despertar até mesmo a rivalidade entre as frações da elite que deles dependiam para manter sua situação social. Eram intangíveis e elemento da maior importância para a mantença da sempre frágil paz em uma sociedade que se mostra mais complexa na medida em que são averiguadas estas e outras possibilidades de arranjos sociais.

Abreviações usadas nesse capítulo ADPRG- Arquivo da Diocese Pastoral de Rio Grande AHCMPA – Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre LBat – Livro de Batismos LObt – Livro de Óbitos

Fontes e referências bibliográficas usadas nesse capítulo: Fontes manuscritas: ARQUIVO DA DIOCESE PASTORAL DO RIO GRANDE. Livros 1o, 2o, 3o e 4o de Batismos da vila do Rio Grande 1738-1763.

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ARQUIVO DA DIOCESE PASTORAL DO RIO GRANDE. Livro 1o de Óbitos da vila de Rio Grande. 1738-1763. ARQUIVO HISTÓRICO DA CÚRIA METROPOLITANA DE PORTO ALEGRE. Primeiro Livro de Óbitos de Viamão. 1748-1777. Fontes publicadas BARROSO, Véra Lucia Maciel, BROCHADO, Suzana S. & TASSONI, Tatiani de Souza. "Açorianos, proprietários de terras no Rio Grande do Sul 1770-1800 (Documentos Interessantes do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul - códices F1229, F1230, F1231)". In: BARROSO, Véra Lucia Maciel. Açorianos no Brasil. Porto Alegre: EST, 2002. BIBLIOTECA RIOGRANDENSE. Devassa Sobre a Entrega da vila do Rio Grande às Tropas Castelhanas 1764 -. Rui Grande: Biblioteca Riograndense, 1937. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez e Latino. Rio de Janeiro: UERJ, 2000 CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid (1750) -Antecedentes do Tratado. Documentos organizados e anotados por Jaime Cortesão. Parte III, Tomo II. Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores - Instituto Rio Branco, 1951. DA VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Coimbra: Colégio das Artes da Compahia de Jesus, 1707. Livros, artigos, teses e dissertações: BRÜGGER, Sílvia Maria Jardim. Minas Patriarcal - Família e Sociedade (São João del Rei, séculos XVIII e XIX). Niterói: PPG-HIS/UFF, UFF, 2002. [tese de doutoramento] CLAVERO, Bartolomé. Antidora: Antropologia Catolica de la Economía Moderna. Milão: Giuffré Editore, 1991. FAGERLUND, Solveig. "Women and men as godparents in an early modern swedish town". In: The History of the Family 5. (3). 2000/11. 2000. FRAGOSO, João. "A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial (séculos XVI e XVII)." In: FRAGOSO, João, BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria de Fátima. O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001a. FRAGOSO, João. "Um mercado dominado por ‘bandos’: ensaio sobre a lógica econômica da nobreza da terra do Rio de Janeiro seiscentista". In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da, MATTOS, Hebe Maria & FRAGOSO, João. Escritos Sobre História e Educação: homenagem à Maria Yedda Leite Linhares. Rio de Janeiro: Mauad/Faperj, 2001b. GIL, Tiago Luís. Infiéis Transgressores: os contrabandistas da 'fronteira' (1760-1810). Rio de Janeiro: PPGHIS/IFCS, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2003. [dissertação de mestrado] http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp000163.pdf GODELIER, Maurice. O Enigma do Dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. GUDEMAN, Stephen. "The Compadrazgo as a Reflection of the Natural and Spiritual Person". In: Proceedings of the Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland vol. 0. (1971). 1971. Royal Anthropological Institute of Great Britain, 1971. KÜHN, Fábio. "A prática do Dom: família, dote e sucessão na fronteira da América Portuguesa". In: Anais da V Jornada Setecentista. Curitiba, 2003. http://www.humanas.ufpr.br/departamentos/dehis/cedope/atas/fabio_k%FChn.pdf, consultado em mar/2005. LEME, Luiz Gonzaga da Silva (2002). Genealogia Paulistana. Reedição em CD-ROM contendo ampliações e correções de diversos autores. AMATO, Marta (org.). LEVI, Giovanni. "Comportamentos, recursos, processos: antes da "revolução" do consumo." In: REVEL, Jacques. Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV Editora, 1998.

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Capítulo 7 “A mão separada do corpo não será mão senão pelo nome”1: experimentando conceitos e métodos O que até aqui foi visto, sempre tendo os registros batismais como fonte principal para o estudo, trouxe várias facetas de fenômenos sociais que sucederam na vila do Rio Grande. Estes tiveram como eixo comum, além das fontes, as famílias que lá se estabeleceram. Estas famílias foram tomadas como janelas privilegiadas para dar vistas ao passado na fronteira sul do Estado do Brasil. A discussão acerca de uma possível formação de identidade entre o grupo de migrantes originários das Ilhas dos Açores deu-se a partir da observação de algumas famílias. A utilização e repasses de prenomes e sobrenomes do Continente do Rio Grande foi feita a partir da observação do que ocorria no interior de algumas famílias. A geração de alianças entre pessoas e grupos de diferentes estatutos sociais foi demonstrada através dos batizados nos quais participaram algumas famílias, nos papéis de parentes consangüíneos e afins ou como padrinhos, testemunhas ou procuradores nos atos batismais. Quando se viu a formação e repasse do pecúlio formado em relações sociais, viu-se isso no seio das famílias. Cabe, agora, tentar entender o que é essa família que se formou ao sul e da qual tanto se falou até agora. Com isso, os diferentes temas abordados até aqui de modo

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ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2005. p. 14.

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aparentemente desconexo, nos quais cada capítulo apresentado tem início, meio e fim, podendo serem tomados em separado, receberão a ligação que está faltando. Os aspectos isolados das manifestações de práticas sociais se mostrarão um tanto mais coesos e componentes de uma trama complexa que envolvia a todos nessa localidade, através das famílias mencionadas e das relações inter e intra familiares. Com toda a certeza, a família que foi vista até agora em “funcionamento” na vila do Rio Grande extrapola os limites da família formada por pai, mãe e prole. Esse tipo de família quase sempre era aludido como “casal” quando das migrações e os filhos dos migrantes se diziam filhos de casal. Dona Antônia de Morais Garcês teve que proceder requerimento especial para seu tratamento no hospício do presídio – hospital da fortaleza – e sua licença para tratamento no Rio de Janeiro porque seu nome e de seu marido, Antônio Gonçalves dos Anjos, não estavam na lista de casais. Casais também foram chamados os pais, mães e filhos que se alistaram em Trás-os-Montes para migrarem para Sacramento. Três décadas depois, os pares de marido e mulher, ainda que acompanhados de seus filhos, alistados nos Açores e Madeira, também eram ditos casais. Os genros de Antônio Furtado de Mendonça, que além desse parentesco político desfrutavam de negócios em comum, teceram relações de compadrio entre si e entre seus outros sócios ou pessoas com quem mantinham negócios em outras localidades. Trouxeram para dentro da família espiritual – a família fictícia para os historiadores, mas muito real para a cristandade do século XVIII nessa fronteira – uma sorte de pessoas com quem estavam ligados por laços mundanos, menos dignos que o parentesco, menos dignos que os laços abençoados das relações de compadrio. Utilizaram a instituição da Igreja Católica e um de seus sacramentos, talvez o mais importante deles, pois era o batismo que inseria as pessoas no seio da cristandade, para conferir um outro caráter às relações de tipo inferior. Acrescenta-se a isso a participação de seus escravos naquilo que foi chamado aqui

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de “ciranda de compadrios”, através do compadrio estabelecido a partir dos batismos dos filhos que nasciam ou do batismos de escravos africanos novos. As escravarias estavam colocadas nessa mesma “ciranda”, que abrangia também este setor, situado no mais baixo escalão da sociedade, e a outras pessoas que viviam em uma unidade doméstica. Os escravos estavam colocados em uma posição inferior, mas participando, mesmo que fosse como a mais baixa posição hierárquica nessa família, dentro do mesmo movimento e intento de captação de novas relações e reiteração das já existentes. Eram os mesmos “jogos”, por assim dizer, sociais e familiares dos quais participavam seus senhores. Por mais estranho que possa parecer, as fontes e a interpretação dos dados nelas coletados apontavam nessa direção. Não sendo parte da família, os escravos tendiam a um comportamento semelhante ao dos seus senhores na hora de tecer as relações lançadas ao futuro na pia batismal. Como explicar esse fenômeno? Se sua configuração é complexa, sua interpretação e sua explicação não podem ser menos. I. Buscando entender os significados Para melhor entender essa sorte de organização social e familiar, buscou-se, portanto, algumas definições em dicionários de época, tanto lusos quanto espanhóis. Segundo o verbete do dicionário elaborado por Raphael Bluteau (2000), publicado em 1717, Família são “As pessoas que de que se compõe uma casa, pais, filhos e domésticos”. No verbete Familiar encontra-se: “Familiar da casa. Doméstico. Ser um dos familiares da casa ou pessoa de alguém”. Nesse mesmo dicionário, uma das acepções do termo Casa é: “Geração. Família”, e para Doméstico há: “cousa da casa”. Para Escravo, encontramos, dentre muitas acepções: “Aquele que nasceu cativo, ou foi vendido e está debaixo do poder de Senhor”. Dando seqüência, buscou-se a significação de outros termos correlacionados a

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estes, como Escravaria, “Os servos”; Escravidão, “servidão, cativeiro”; Servo, “Criado. Servidor. Escravo. Cativo”. Já no dicionário elaborado pela Academia de Autoridades da Espanha (Real Academia Española, 1726-1739), no volume que contém a letra C, datado de 1729, dentre as acepções de Casa encontram-se as palavras: “Vale asimismo la familia de criados, y sirvientes, que assisten y sirven como domesticos al señor y cabeza o dueño de ella”(...) “Se llama tambien la descendência o lináge que tiene un mismo apellido, que viene de un mismo orígens”. (Real Academia Española, 1726-1739)

No volume que corresponde à letra F, lançado em 1732, há entre as acepções de Família: La gente que vive en una casa debaxo del mando del señor de ella. Es voz puramente Latina. Por esta palabra família se entiende el señor de ella, e su muger, e todos los que viven só el, sobre quien há mandamiento, assi como los hijos e los sirvientes e los otros criados (...) Se toma mui comunmente por el numero de los criados de alguno, aunque no vivan dentro de su casa (Real Academia Española, 1726-1739)

Para Familiar tem-se: “vale tambien Amigo” e “se toma comunmente por el Criado o sirviente a una casa: y en este sentido y otros se usa esta voz como substantivo” (Real Academia Española, 1726-1739). O volume que guarda os vocábulos iniciados com P foi lançado em 1737, e nele foram buscados Parentela: “conjunto de todo género de parientes. Es voz Latina. Lat. Congnatio. Singnifica lo mismo que parentesco”, e Parentesco: “Vinculo, connexion ò ligacion, por consguinidade ò afinidad. Unido con el vinculo de amistad, mas estrecho que de parentesco” (Real Academia Española, 1726-1739). O Tesoro de la Lengua Castellana o Española, do Padre Sebastian de Covarrubias Orozco (1674) também é bastante inclusivo a pessoas outras que não os parentes consangüíneos ou afins no âmbito da família ibérica. Encontra-se no vocábulo: FAMÍLIA, en comun significacion vale la gente que un señor sustenta

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dentro de su casa, de donde tomô el nombre de padre de familias: dixose del nombre Latino famelia: y se entendia de solos los siervos, trayendo origen de la diccion Osca, famel, que cerca los Oscos siginficavan siervo, pero ya no solo debaxo deste nombre se comprehenden los hijos, pero tambien los padres, y abuelos, y los demás ascendientes del linage, y dezimos la familia de los Cesares, de los Scipiones: ni mas; ni menos a los vivos, que son de la mesma casa, y decendencia, que por otro nombre dezimos parentela: y debaxo desta palbra familia se enteiende el señor, su muger, y los demás que tiene de su mando, como hijos, criados, esclavos (...) (Orozco, 1674 - grifos meus)

Essas definições coevas aos eventos aqui analisados dão todos os indícios de que os parentes consangüíneos e afins, como eram as filhas e os genros de Furtado de Mendonça, mas também mais gente que pudesse viver sob seu Domínio, que assume também acepções distintas no dicionário de Bluteau: Direito de propriedade sobre terras, rios, etc. (...) Bens, que se possuem e de que se pode usar e dispor como próprios. (...) Poder, mando. (...) Autoridade, para persuadir, e para inclinar a vontade alheia ao que se quer. Ter domínio sobre alguém. (...) Vale o mesmo que influência poderosa na produção de algum efeito” (Bluteau, 2000 ).

Tais significados, provavelmente presentes para as pessoas que fizeram parte da formação da vila do Rio Grande, autorizam então a ampliação dessa família que lá se instaurou. Ao que tudo indica, assim como o conceito de Nação, aponta: Nome coletivo que se diz da Gente, que vive em uma grande região, ou Reino, debaixo de um mesmo senhorio. Nisto se diferencia nação de povo, porque nação compreende muitos povos (Bluteau, 2000 ).

Estavam presos a uma relação que tinha entre seus componentes a lealdade e a proteção, colocar-se debaixo de seu domínio e ao mesmo tempo, estar obrigado a serviços e respeito. Somente os partícipes dessas relações que amalgamavam a família é que poderiam estabelecer os limites das suas próprias famílias, quais as pessoas que incluíam e que excluíam. Resta saber o que dava suporte a essa maior abrangência de estratos sociais e qualidades diversas no seio das famílias.

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II. Tentando perceber os conceitos Diz Aristóteles: (...) é preciso falar da economia do lar, já que o Estado é formado pela reunião de famílias. Os elementos da economia doméstica são, precipuamente, os da família, a qual, para estar completa, deve compreender servos e indivíduos livres (....) conhecendo-se que na família elas são [partes primitivas e indecomponíveis] o senhor e o servo, o marido e a mulher, os pais e os filhos. (Aristóteles, 2005: p.15)

Eis então que, na visão aristotélica, entre partes componentes de uma família, entre as relações que a estruturam estão aquelas travadas entre senhor e escravo, de onde é possível pensar que os escravos faziam parte desta família abrangente na visão aristotélica, que permeia a filosofia escolástica, predominante no período sob estudo. Ainda que possa parecer difícil entender que gente analfabeta ou mesmo escravos pudessem ter acesso à filosofia de Aristóteles, esse absurdo se desfaz quando as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, em cujo texto não faltam citações de obras de Aristóteles e de filósofos de importância para a cristandade moderna, estabelecem como um dos deveres dos párocos proceder à educação de seus fregueses Porque aos Párocos, como Pastores, e Mestres espirituais, obriga mais o cuidado de apascentar suas ovelhas com a Católica e verdadeira doutrina, exortamos a todos os do nosso Arcebispado, e a todas e quaisquer pessoas, a que nele estiver encarregada a cura das Almas, ainda que sejam isentas, que todos os Domingos do ano em que não concorrer alguma festa solene, ensinem aos meninos, e escravos a Doutrina Cristã no tempo e hora que lhe parecer mais conveniente, atendendo aos lugares e distâncias das suas Paróquias, ou sejam nas cidades ou fora delas (...) E para se conseguir o fruto desejado, ordenem os párocos aos Pais, que mandem aos lugares, e horas determinadas seus filhos, e aos senhores seus escravos (...). E aos Padres Capelães encomendamos que nas suas Capelas façam a mesma diligência, principalmente com os escravos (Da Vide, Livro I, Título III - Da especial obrigação dos Párocos para ensinarem a doutrina Cristã a seus fregueses, §§ 6º e 7º - grifos meus)

Fosse aos domingos em que não havia festa, nos quais o público-alvo eram “os

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meninos e os escravos”, fosse com seus sermões, sempre proferidos com intuito de indicar o caminho cristão e livrar os fiéis da tentação do pecado. Idéias e juízos morais aristotélicos e tomísticos, mediados pela interpretação dos agentes de divulgação, chegavam até os lugares mais distantes. Assim, os párocos, os curas e mais gente autorizada a fazer a pregação da palavra divina agiam como vetores do repasse ou mediadores do pensamento cristão acerca da virtude e do pecado, acerca das próprias instituições da Igreja. Não se torna, então, completamente absurdo considerar que um tanto dessa visão de sociedade cristã, esboçada nas Constituições Primeiras, a qual também encerra em si recomendações do Concílio de Trento, tenha sido de algum modo absorvida e apreendida por meninos e escravos. Não se pode esquecer também que os principais juristas lusos e espanhóis da Idade Moderna tinham rígida formação religiosa, quando não eram também doutores em teologia. Dá-se como exemplo o espanhol Luís de Molina, também presente nas notas e citações que margeiam as páginas das Constituições Primeiras. O comportamento à pia batismal dos escravos dos genros de Furtado de Mendonça assumia uma feição semelhante à de seus senhores ou a da família da qual faziam parte, quer como servos, quer como domésticos. Isso reflete um tanto do que pode ter chegado até eles, com as devidas mediações, das normas cristãs ensinadas por homens doutos, e versados nas Divinas letras, lição dos Santos, e de boa vida, e costumes para Pregadores desse Arcebispado, e no conceder das licenças se hajam com grande exame como requer o tal ofício (Da Vide, Livro III, Título XX – Da Pregação e dos Pregadores, § 512º)

As relações cristãs eram delineadas pelas possibilidades de relações cabíveis ao seu estatuto social, mas eram lançadas às famílias – aqui também entendidas as escravarias dessas famílias, como partes componentes dos domínios dos seus senhores – de estatuto social semelhante ou superior à família na qual estavam inseridos.

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Não parece, portanto, absurdo pensar que a utilização do sobrenome de um chefe de família ou de um proprietário ou proprietária de escravos por parte de seus cativos, de seus agregados, de seus afilhados, de seus subordinados, fosse uma forma de demonstrar o pertencimento a uma dessas unidades domésticas, família ou casa. Estas também definiam os seus membros como aquela gente “que tiene un mismo apellido”. No já citado exemplo dos compadrios dos escravos de Antônio Gonçalves e Antônia de Morais Garcês, seus escravos assumiam o nome de família de um ou de outro. E se é possível pensar como “origem” um mesmo ponto de referência, sendo este a casa da qual faziam parte, essa também seria compartilhada pelos seus membros, independentemente de sua posição na hierarquia interna dessa família ou casa. Entretanto, a tal “economia do lar” encontrada no texto de Aristóteles também teria que ter uma expressão, uma face visível nessa sociedade, se assim ela pensasse e visse a si própria, tendo um modelo de organização que levasse em conta essas considerações. Quem trata disso, pensando no âmbito da economia, ou melhor, da economia em uma sociedade moderna católica, é Bartolomé Clavero, em Antidora: Antropología Catolica de la Economía Moderna (1991). Quanto a essa antropologia e a essa sociedade, Clavero vai buscar no léxico da época e na filosofia coeva os elementos que eram seus estruturadores, percebendo que a noção de indivíduo não pertencia nem a uma nem a outra. Si avanzándose en la edad moderna ya pudía apuntar de alguna parte la ocurrencia física y es piritual, lo fuera el indivíduo también jurídica, parece un "vulgare axioma" descartable sin mayor problema. La sociedad no se construía con evidencias tan burdas. No tenía el indivíduo espacio propio ni contaba con consistencia para determinarlo. Nos encontramos con una antroponogía que no merece su nombre: no conoce un sujeto individualizadamente humano. Nos encontramos con un orden de sujetos plurales. El hombre en sentido individual genrérico no podía ser entonces más que un tópico de reagrupación de una materia jurídica que, sin principio propio, no cabe reducir a sistema. (...) No hay espacio común ni ámbito alguno que el individuo pueda determinar. Como no habia ni podría haber una economía, tampoco, mas sustantivamente un derecho. Con la pluralidad de sujetos no reducibles a categoría unitaria, con la multiplicación de

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cuerpos sociales, distinciones de ámbitos habia desde la misma base del espacio oiconómico primario. Tenían su derecho las familias particularmente privilegiadas. Podían tenerlo las corporaciones o cuerpos sociales. Solo el individuo derecho en rigor no tenia (Clavero, 1991: pp. 164-165).

Para entender a existência desses sujeitos coletivos, inseridos nos corpos sociais, Xavier & Hespanha (1998) buscam os paradigmas políticos que davam substância ao modo como essa sociedade compreendia a si mesma. Referem-se esses autores à existência de uma tensão entre dois modelos, quais seriam, o tradicional, que concebia a sociedade como um corpo e o moderno ou pós-cartesiano, que explica os movimentos e estabilidades sociais a partir de sua materialidade (Xavier & Hespanha, 1998: p. 113). Sendo projetos alternativos de sociedade e poder, decorrem, no entanto, de uma tradição largamente comum. O universo literário dos juristas seiscentistas e setecentistas era composto por obras (de teologia moral, direito e, mais tarde, política) de juristas e teólogos. Daí que nos tópicos ocorrentes em ambos se encontrem mútuas contaminações (Xavier & Hespanha, 1998: p. 113).

O modelo corporativo medieval sofreu algumas transformações com a segunda Escolástica, mas o principal pressuposto, a sociedade como um corpo, tendo o Rei como cabeça2 e mais corporações como o corpo, persistiu na sociedade lusa por largo tempo. Entretanto, as modificações sofridas não concernem à importância das atividades articuladas das partes para o bom funcionamento do corpo. Não podia ser diferente. A segunda Escolástica, através da filosofia de São Tomás de Aquino, ainda era tributária das idéias de Aristóteles no que tange à organização social, começando por suas unidades básicas até chegar ao organismo completo, qual seja, a própria sociedade. Citado por Xavier & Hespanha, há o pensamento de Luís Marinho Azevedo acerca da sujeição do rei às leis, retirado da obra Exclamaciones Politicas, datada de 1645, que dá a idéia da prevalência desse modelo corporativo como analogia para o funcionamento da sociedade:

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Sobre a concepção medieval do Rei como cabeça do corpo social, há importantes elaborações na obra de Ernest Kantorowicz, Os Dois Corpos do Rei. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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como si fuera com fortisima cadena, y desobligarse el Principe de semejantes leyes fundamentales seria el mismo que atropellar los direitos del Reyno, arracar la vabeza de los miembros, arruinar todo su Imperio (Luís Marinho Azevedo, Exclamaciones... Exclamação II, apud Xavier & Hespanha, 1998: p. 120)

O que aqui interessa para a seqüência da análise da formação da sociedade riograndina é justamente o modelo que, segundo esses autores, começou a entrar em decadência no final do século XVIII, decadência essa que se aceleraria a partir das reformas pombalinas. O modelo de sociedade corporativa coloca o funcionamento da mesma de forma análoga ao corpo humano. O Rei, como cabeça simbólica do reino (Hespanha, 1994: p. 490) e, com função análoga, a do pater familias, chefe de uma unidade doméstica, de uma família. O restante da sociedade comporia as demais partes do corpo social, sendo que as muitas formas de organização por setores ou grupos de interesses também teriam a organização corporativa a reger-lhes internamente. Tal como o homem, tinha uma ordem natural e universal que orientava homens e coisas, orientava-os para um destino final, que seria, na sociedade cristã, seu próprio Criador. Os corpos sociais eram diferentes partes componentes do grande corpo dessa monarquia. Essa organização corporativa, quer do grande corpo como dos pequenos corpos seus componentes, pressupunha diferentes funções a cada uma das partes: (...) a unidade dos objetivos da criação não exigia que as funções de cada uma das partes do todo na consecução desses objetivos fosse idêntica às outras. Pelo contrário, o pensamento medieval sempre manteve firmemente agarrado à idéia de que cada parte do todo cooperava de forma diferente na realização do destino cósmico. Por outras palavras, a unidade da criação era uma “unidade de ordenação” (unitas ordinis, totum universale ordinatum) – ou seja, uma unidade em virtude do arranjo das partes em vista de um fim comum – que não comprometia, antes pressupunha, a especificidade e irredutibilidade dos objetivos de cada uma das “ordens da criação, e dentro da espécie humana, de cada grupo ou corpo social”. (Xavier & Hespanha, 1998 p. 114).

Chega-se então, ao ponto em questão. Tal modelo de organização social exigia que diferentes corpos e diferentes pessoas tivessem também diferentes funções nos organismos sociais, fossem os pequenos corpos que compunham a sociedade, fosse o

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grande corpo social. Nas funções diferenciadas encontram-se também fundamentos para a hierarquização da sociedade, já que algumas funções são de órgãos únicos e vitais para o funcionamento do todo, não havendo substituição. Outras são de menor importância, por serem múltiplos e exercerem funções secundárias. Entretanto, para o seu funcionamento, é necessário que todas as partes estejam atuando em favor do bem comum e que a cada uma seja conferida a autonomia necessária ao desempenho de suas funções (Xavier & Hespanha, 1998: p. 115). Havia, ainda, a necessidade de leis, para que tal organismo ou seus componentes não se afastassem de sua natureza, de forma que um tirano, um mau governante, revoltas e revoluções fossem “acidentes” no desenvolver-se desse corpo social, e não sua negação, propriamente dita. Do ponto de vista social, o corporativismo promovia a imagem de uma sociedade rigorosamente hierarquizada, pois, numa sociedade naturalmente ordenada, a irredutibilidade das funções sociais conduz à irredutibilidade dos estatutos jurídico-institucionais. (dos “estados”, das ordens). O direito e o governo temporais não podem fazer outra coisa que não seja ratificar essa ordenação superior (Xavier & Hespanha, 1998: p. 20).

Regressando ao tema da família, elo que une as várias discussões apresentadas nessa pesquisa, tenta-se ver em Aristóteles alguns dos fundamentos da sociedade e da família que podem ter perdurado até o período sob análise. Organizando a sociedade do menor ao maior, agrupa-se primeiro homem e mulher, ainda que essa seja uma união que tem por finalidade a reprodução e não outros fins que não os biológicos. Em torno da relação homem-mulher outros se aglutinariam, aí sim visando benefícios que só a socialização seria capaz de oferecer. Diz ele: Estas duas primeiras associações, a do senhor e o escravo, a do esposo e a mulher, são as bases da família, e Hesíodo o disse muito bem neste verso “A casa, depois a mulher e boi arador;” porque o pobre não tem outro escravo que o boi. Assim, pois, a associação natural e permandente é a famíla, e Corondas pode dizer dos membros que a compõe “ que comiam na mesma mesa”, e Epimenides de Creta “que se aqueciam no mesmo lar”. A primeira associação de muitas famílias, mas formadas em

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virtude de relações que não são cotidianas é o povoado, que justamente pode chamar-se colônia natural da família, porque os indivíduos que compõe o povoado, como dizem alguns autores “mamaram o leite da família, são seus filhos, “os filhos de seus filhos”. Se os primeiros Estados se viram submetidos a reis, e se as grandes nações o estão ainda hoje, é porque tais Estados se formaram com elementos habituados à autoridade real, posto que na família o de mais idade é o verdadeiro rei, e as colônias de famílias seguiram fielmente o exemplo que lhes foi dado (Aristóteles, 2000: pp. 6-7).

Entendia Aristóteles a família como sendo o primeiro tipo de associação e que, como tal, também deveria funcionar a exemplo de um corpo. Acerca do funcionamento do corpo, da necessidade de manter unidas todas as suas partes ao mesmo tempo em que o corpo é mais do que o somatório das partes isoladas, também era bastante claro: Não pode pôr-se em dúvida que o Estado está naturalmente sobre a família e sobre cada indivíduo, porque o todo é necessariamente superior à parte, posto que uma vez destruído o todo, já não há partes, não há pés, não há mãos, (Aristóteles, 2000: p. 8).

Ou como consta em outra tradução: Levantai o todo: dele não restará nem pé nem mão senão o nome, como se poderá afirmar, por exemplo, que a mão separada do corpo não será mão senão pelo nome. (Aristóteles, 2005: p.14)

Mais adiante, afirma: Ora, o que não consegue viver em sociedade, o que não necessita de nada porque se basta a si mesmo, não participa do Estado; é um bruto ou uma divindade. A natureza faz assim com que todos os homens se associem. Ao que primeiro estabeleceu essa fórmula se deve o bem maior; pois se o homem, chegado à sua perfeição é o mais excelente dos animais, também é o pior quando vive isolado e sem leis e sem preconceitos. Tremenda calamidade constitui-se a injustiça com armas na mão. As armas que a natureza fornece ao homem são a prudência e a virtude. Não possuindo a virtude, torna-se o mais ímpio e o mais feroz de todos os entes vivos; não sabe, para a sua vergonha, mais do que amar e comer. (Aristóteles, 2005 - grifo meu).

Assim, o agrupamento de homens e mulheres com diferentes posições em sua organização hierarquizada, sendo aglutinados em torno de um mesmo senhor, forma uma família. A extensão dessa família pode ser variável, pois parece evidente que o critério

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principal para sua inclusão é a mútua aceitação, seja essa obtida de forma consensual ou sob coerção.

III. Experimentação de um método A título de experimento3, utilizou-se a metodologia empregada na análise de redes sociais4 (social network analysis) e tomou-se uma das famílias já apresentadas anteriormente como “grupo teste”. Autores como Jeremy Boissevain afirmam não se tratar de uma teoria para a análise social, mas uma metodologia a ser empregada e, como tal, tem suas implicações teóricas e suas limitações. Tal metodologia não é recente: As análises de redes sociais surgiram no final dos anos 60, através dos trabalhos pioneiros de Mitchell, Boissevain e Barnes. 5 Tratase de uma metodologia que percebe nas interações humanas o objeto de análise primordial, sem, contudo, dispensar o diálogo com outras metodologias. A preocupação central desta abordagem são os tipos e forma de relacionamentos mantidos pelas unidades de análise (que podem ser pessoas, empresas, cidades, palavras) e como estes laços podem interferir no comportamento e nas escolhas destas unidades (Gil, 2005).

Seu emprego vem crescendo no interesse dos historiadores e tem acrescentado bastante às análises de fenômenos históricos e sociais. Ela vêm sendo utilizada por autores como Zacharias Moutoukias, no estudo de redes sociais da elite portenha, tomando os comerciantes de Buenos Aires como grupo-chave (Moutoukias, 1992), e Susan Socolow, também tendo como alvo as famílias dos comerciantes portenhos (Socolow, 1991). Daniel Santilli (2003) se utilizou desta metodologia para o estudo do compadrio em Quilmes e alerta que as relações por ele estabelecidas podem encontrar nuances que

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Agradeço a Tiago Luís Gil o convite, o incentivo e o coleguismo nessa “aventura” de trilhar por sendas que me eram completamente desconhecidas. Devo-lhe também a interlocução e a constante discussão quanto aos empregos do método e aos resultados parciais obtidos. Isso auxiliou por demais num refinamento das análises obtidas e principalmente em tentar definir o que pode e o que não pode ser feito com o método. 4 Há excelentes referências bibliográficas sobre o tema disponíveis na Internet. Especial destaque para http://www.redes-sociales.net/ para artigos especializados bem como ponto inicial para novas buscas. 5 BARNES, John A."Class and comittees in a Norwegian Island parish". In: Human Relations.(7). 1954; BOISSEVAIN, Jeremy."Network Analysis: a reappraisal". In: Current Anthropology. v. 20 (2). Jun. 1979.1979.

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vão desde o parentesco, seja ele real ou fictício, ou como redes sociais com outros fundamentos, tais como as percebidas em documentos judiciais que implicam em relações que vão além do matrimônio ou compadrio (Santilli, 2003). Em suma, alerta o autor para o fato de que por vezes família pode apenas mostrar a existência de laços familiares e, portanto, a rede familiar de parentesco, e não redes sociais mais complexas como a que envolve sociedades, empréstimos, transações de terras, crimes, contrabando e outras tantas situações com que lidam pessoas que nelas podem estar contidas. Para o contexto dessa fronteira, uma geração adiante, Tiago Luís Gil recentemente a empregou para a visualização da importância de certos pontos nodais na rede de contrabandos de Rafael Pinto Bandeira (Gil, 2005). A partir do estabelecimento de matrizes quadradas que envolvem os partícipes das relações percebidas nos livros de batismos da vila do Rio Grande que encabeçam linhas e colunas, buscou-se, através de software próprio6, a elaboração de representações gráficas dessas mesmas relações, na tentativa de visualizar aspectos que não eram claros na mera exposição dos dados em quadros e tabelas. O recurso mostrou-se bastante útil e apresentou alguns resultados que instigam a continuidade das pesquisas nesse sentido. Para a utilização da metodologia empregada pela social network analysis e das ferramentas até então estranhas a essa pesquisa, utilizou-se a obra Introducción a los Métodos del Análises de Redes Sociales (Hanneman, 2001) como referência mais elementar. Este manual foi de grande auxílio para a compreensão da importância das escolhas a serem feitas pelo pesquisador ao analisar as múltiplas qualidades de relações

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Para esse estudo foram feitos testes com os softwares Pajek (disponível em http://vlado.fmf.unilj.si/pub/networks/pajek/), Ucinet+NetDraw (disponíveis em http://www.analytictech.com/), e Netminer (disponível em http://www.netminer.com/NetMiner/home_01.jsp). Optou-se pela execução dos gráficos através do Ucinet/NetDraw por oferecer interface simples e qualidade de objetos gráficos de bom nível, além do oferecimento de um uma versão para testes bastante completa, sem desmerecimento dos outros softwares testados, todos eles bastante competentes para a realização das funções às quais se propõem.

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que podem ser estabelecidas pelos agentes sociais participantes de uma mesma coletividade ou de grupos sociais distintos. No caso da sociedade que se formou em Rio Grande, cuja interação em vários aspectos do mundo social, econômico, político e religioso vividos em simultâneo se colocaram evidentes, houve a necessidade de abdicar da representação gráfica de algumas dessas interações para que outras se tornassem óbvias aos primeiros olhares. Definir o imprescindível e o prescindível não é atribuição da ferramenta, mas obrigação do pesquisador quando define seus objetos de estudo, os objetivos a serem alcançados com ele e o aporte teórico de sua investigação. As ferramentas oferecem a possibilidade de mostrar toda a sorte de relações percebidas entre esses agentes sociais e suas interlocuções à pia batismal, mas a seleção do que deve ser priorizado, o estabelecimento de hierarquias nessas interlocuções, é de inteira responsabilidade do executor. Como não há regras para tanto, no ímpeto e no alvoroço, de início pensou-se em incluir todas as relações possíveis que apareciam ou eram deduzidas a partir dos registros de batismo. Por exemplo, o fato de todas as mulheres livres envolvidas nos batizados dos netos de Furtado de Mendonça serem irmãs. Por conseqüência, eram cunhadas do núcleo masculino livre dessa família. Estes homens, por sua vez, eram todos co-cunhados entre si. Os filhos dos casais eram irmãos ou primos, sobrinhos, afilhados e filhos dos adultos deste núcleo central. Se essas frases acima parecem confusas e o leitor se perde no emaranhado dos parentescos, os resultados das primeiras tentativas de representação gráfica, não poderiam ser diferentes: gráficos saturados que mostravam “tudo” e ao mesmo tempo não diziam nada a quem tentasse a sua leitura. Um emaranhado de linhas e setas partindo de muitos pontos, em muitas direções. Por mais sofrido que seja o processo de escolha e decisão para a eliminação de certas relações subjacentes ao batismo, cortou-se um número

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significativo para que as representações gráficas ficassem mais limpas e, por conseqüência, mais úteis aos propósitos de análise dessa família e dessa sociedade. O segundo problema enfrentado foi como marcar as relações que podem ser simples ou bilaterais, simétricas ou assimétricas. Também esse problema de escolhas passa pela interpretação de coisas tão corriqueiras que normalmente ficam despercebidas até que se leve a cabo o intento. Tanto quanto as relações citadas no parágrafo anterior, há o complicador dos graus de relação existentes entre agentes sociais: irmãos entre si têm o mesmo grau de relação nas duas extremidades da linha que os liga, assim como marido e mulher e co-cunhados são ligados pelo mesmo tipo de vínculo. Isso não ocorre nas relações senhor-escravo, pai-filho, padrinho-afilhado, que apresentam diferentes obrigações morais, religiosas ou legais, com “pesos” diferentes em cada uma das pontas da linha que os liga. São ligações entre “pontos” – nodos da rede que representam os partícipes dela – diferentes desde as mais básicas informações que se têm sobre a organização da sociedade hierarquizada. São pessoas de estatutos jurídicos diferentes ou de posições com diferentes valores atribuídos na escala social em que estão inseridas. São relações que não encontram simetria entre as posições sociais dos dois nodos da rede que estão vinculados por relação no conjunto dos agentes sociais representados. Um caso aparte, dada uma complexidade que se desconhecia no início de toda a pesquisa e que é um dos fundamentos do trabalho desenvolvido até aqui, é a desigualdade constante e a possibilidade de equiparação entre os dois nodos ligados pela relação de compadrio. A relação entre compadres, aparentemente uma relação equilibrada, na medida em que compadres se irmanam em espírito, ao menos dentro do princípio religioso, mostrou ter três diferentes possibilidades que são condicionantes dos tipos de relações que podem ser estabelecidas entre esses irmãos espirituais. Essas respondem muito mais aos aspectos ditos funcionalistas por Stephen Gudeman (Gudeman, 1971) do que aos aspectos

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religiosos de inserção num mundo cristão em que todas as almas, antes do dia de juízo, se equivalem por serem almas. Entretanto, são distintas se há em mente que pode haver um dos nodos que não equiparou a dádiva inicial com um dom semelhante. Essa assimetria corriqueira nos compadrios e a possibilidade de tornar-se uma relação simétrica é um importante espaço nas barganhas sociais entre os componentes de uma relação desse tipo, pois significava ficar com uma dívida que jamais poderia ser paga ao compadre que ofertou o afilhado, reter o bem por um tempo prolongado ou equiparar a relação com bem ofertado de mesmo valor, qual seja, a oferta de um filho como afilhado ao compadre que primeiro fez a oferta. Desse pequeno e flexível espaço vinham, então, possibilidades de arranjos político, sociais e econômicos. Não havendo a oferta de contradom de igual valor, estava dada a possibilidade de benefícios, nem tanto materiais, mas sociais, que um compadre poderia esperar de outro. Por um lado, da relação assimétrica entre desiguais vinha a possibilidade de favorecimento e satisfação de necessidades sociais, por mínimas que fossem, das famílias e grupos sociais de menor posse e credoras dessa oferta primeira. Vinha também a possibilidade de formação de uma base social de apoio com compromisso moral de auxílio e respeito firmado ante Deus, favorecendo o compadre em situação social privilegiada. Isso o deixava resguardado para agir com certa desenvoltura entre seus pares, entre seus concorrentes no mesmo nicho social em que atuavam e por vezes competiam pelo acesso a recursos, negócios, cargos e ofícios. Vinha, o que parece bastante importante, o cerceio ou uma certa limitação de poder dos compadres pertencentes à elite, com muitos afilhados, já que estavam em dívida impagável com seus compadres de menor qualidade social. Um deslize ou não cumprimento do que era esperado poderia acarretar a não reiteração ou não reprodução dessas relações para o futuro, ficando o compadre de boa situação social à mercê de seus pares e concorrentes por faltar-lhe essa base social.

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Por outro lado, a equiparação da oferta inicial com oferta de mesmo valor só poderia ocorrer entre pessoas situadas em um mesmo estrato social e era, antes de mais nada, uma opção ou parte de estratégias sociais dessas famílias. O dilema dessa decisão seria ficar em dívida, cativo e obrigado a prestações menores, que não retribuíam todo o valor do bem ofertado, e ter como seu apoiador e parceiro solidário um compadre que atuava no mesmo nicho social, ou equiparar a dívida com a oferta de um filho ao compadre credor, não se deixando cativar nas contraprestações intermináveis, mas também equiparando novamente a situação e deixando que as disputas pelos bens, negócios e mercês passíveis de serem angariados por gente de seu meio entrasse novamente na vida desses compadres. Opção desse momento, trocando em miúdos, significava a paz duradoura entre famílias que podiam competir entre si ou o retorno à disputa pelos bens e recursos próprios de seu estrato social. Isso era parte do jogo social e político da vila e que, por serem tempos em que nem tudo o que se podia adquirir advinha do mercado, parte das estratégias que podiam levar uma família ao sucesso e engrandecimento ao longo do tempo ou a bancarrota em uma ou duas gerações. Impossível deixar de assinalar essa sorte de escolhas e de demonstrações da equivalência ou desigualdade de posições sociais entre os compadres. Percebeu-se então, três formas de arranjos nas relações entre compadres. Na primeira o compadre A oferece afilhado ao compadre B (A→B); na segunda B oferece afilhado a A (A←B) e na terceira, há “troca de afilhados”, na qual A oferece afilhado para B e vice-versa (B↔A). A primeira e a segunda possibilidades aparecem como relações assimétricas, na qual as posições sociais dos compadres podem ser equivalentes ou diferenciadas, ficando a retribuição do dom inicial pendente da vontade ou da possibilidade de ter um rebento a ofertar como contrapartida. Somente a terceira é uma relação simétrica ou equilibrada e ocorria apenas entre pessoas e famílias que, no momento em que foi

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firmado o segundo compadrio – a retribuição com bem de igual valor –, tinham posições sociais reconhecidamente semelhantes. Esses dados foram considerados importantes e não poderiam deixar de ser mostrados em representações gráficas das relações de compadrio. Principalmente pela pretensão de serem ressaltadas as relações que punham em contato gente de diferentes posições sociais e com diferentes ofertas de dons e contradons nesse “mercado de compadrios” e possivelmente por acusarem uma das fontes de poder nessa sociedade nascente. Na sucessão de eliminações de algumas relações de parentesco simétricos ou de fácil reconhecimento a partir dos quadros de compadrio sitos ao capítulo 4 deste, às páginas 233 e 238, pensou-se ter eliminado as relações “excessivas” e “poluentes”. Chegou-se a dez tipos de relações. Novamente feitos os testes, a saturação de linhas entre os nodos da família ainda poluíam visualmente a figura, de tal forma que não eram ressaltados alguns aspectos visíveis nos quadros acima citados e que serviram de base para essa construção. Feita nova depuração, ficaram reduzidas a cinco tipos, rotuladas numericamente sem que o valor do algarismo utilizado indique “força” ou importância da relação. São estas: 1- relação marido e mulher (aqui considerada simétrica); 2- pais e filhos (assimétrica, com seta partindo de pais para filhos); 3- senhor e escravo (assimétrica, com seta partindo do senhor para seus escravos); 4- compadrio (assimétrica, com seta partindo de quem oferece o afilhado ou simétrica para o caso de “troca de afilhados”, com seta em ambas as extremidades); 5- relação padrinho afilhado (assimétrica, com seta partindo do padrinho para o afilhado). Essas cinco deixavam perceber relações visíveis nos quadros montados e tornavam evidentes outras, cuja percepção não era dada nesse tipo de arranjo de dados em

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quadros e tabelas. Passou-se, então, à produção dos arranjos gráficos das mesmas, com o já citado par de softwares UCINET-NetDraw. Essa ferramenta permite que se mostrem as relações por categorias rotuladas, o que foi de grande valia nos testes que se produziram e que serão colocados logo adiante. Algumas dessas visualizações trouxeram à tona aspectos antes não observados, que serão comentados a seguir, mostrando primeiramente as relações dos núcleos livres destas famílias e seus compadrios sem as crianças. Também, ao longo do experimento, algumas relações foram deixadas “invisíveis” para que se percebesse que sorte de vínculos outros uniam essas pessoas. Serão a seguir apresentados passo a passo os elementos representados graficamente nessas relações, onde (e) significa escravo.

418 Ilustração 10 - Partícipes dos Compadrios nas famílias dos genros de Antônio Furtado de Mendonça

Fonte: Quadros em cap. 4, pp. 236 e 241, com base em 1LBat-RG, 2LBat-RG, 3LBat-RG, 4LBat-RG, 1738-1763

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Essa é a aparência inicial da representação gráfica que se pode produzir. Com a utilização das ferramentas próprias do UCINET-NetDraw, mostrou-se acima apenas os partícipes. Esses foram, também por opção, representados com a figura geométrica do círculo. Os partícipes dos atos batismais, excetuando-se padres e eventuais testemunhas para o caso de batismos procedidos de modo emergencial, são, a partir dessa sucessão de escolhas feitas, os nodos da rede formada pelos cinco tipos de relações selecionadas para serem representadas graficamente nesse estudo. Constam na ilustração acima os pais das crianças, as crianças, os padrinhos livres e escravos das famílias nucleares (ou “casais”, no sentido empregado na documentação da época) dos genros de Antônio Furtado de Mendonça que se puderam coletar nos registros batismais dos quatro primeiros Livros de Registros de Batismo de Rio Grande. Na seqüência abaixo, serão apresentados os mais componentes do que seria a figura completa para que, após, se tenha a representação gráfica da rede de compadrios dessas famílias nucleares (ou dessa família extensa) mostradas na mesma figura. Ilustração 11 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: nodos e direção de relação

Fonte: Quadros em cap. 4, pp. 236 e 241, com base em 1LBat-RG, 2LBat-RG, 3LBat-RG, 4LBat-RG, 1738-1763

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Ilustração 12 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça:nodos e linhas com sentido e direção de relação

Ilustração 13 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: nodos, linhas com sentido e direção de relação e rótulo das relações

Fonte: Quadros em cap. 4, pp. 236 e 241, com base em 1LBat-RG, 2LBat-RG, 3LBat-RG, 4LBat-RG, 1738-1763

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Ilustração 14 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: nodos nominados, linhas com sentido e direção de relação e rótulo das relações (representação gráfica completa)

Fonte: Quadros em cap. 4, pp. 236 e 241, com base em 1LBat-RG, 2LBat-RG, 3LBat-RG, 4LBat-RG, 1738-1763

Nodos, linhas e setas são, portanto, os principais elementos na representação, podendo ser acrescidos, a critério do pesquisador, a nominação dos nodos. Aqui, por se tratarem de pessoas, os nodos são os partícipes, as linhas as relações que foram eleitas para a análise e as setas indicam, também nesse caso, a critério do pesquisador, o sentido da relação. Podem ser acrescidos os rótulos eleitos para as relações, explicitados acima e a nomenclatura atribuída aos nodos. No caso em questão, por serem os nodos representações das pessoas envolvidas nos atos batismais, os rótulos serão seus nomes próprios, acrescidos de um número no caso de crianças homônimas e da letra “e” entre parêntesis no caso de escravos. Optou-se, para fins de ilustração geral o formato da Ilustração 8, por ser menos saturada e ao mesmo tempo bastante clara, contendo os elementos básicos necessários à sua compreensão. Elementos adicionais poderão ser usados para destaque de detalhes específicos:

422 Ilustração 15 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: representação gráfica simplificada

Fonte: Quadros em cap. 4, pp. 236 e 241, com base em 1LBat-RG, 2LBat-RG, 3LBat-RG, 4LBat-RG, 1738-1763

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Tendo sido apresentados nos capítulos 3 e 4 deste os atores das cenas sociais e religiosas que se desenvolviam no ato batismal, passa-se a analisar agora os gráficos e os aspectos salientados na representação gráfica que não eram visíveis, ou ao menos facilmente visualizados na organização dos dados em quadros e tabelas. Para tanto, será recorrente a utilização de representações que tornam invisíveis os “excessos” visuais para salientar aspectos considerados mais interessantes ou instigantes. Antes disso, para que a explanação possa seguir com certa fluência, parece necessário mostrar os partícipes e as relações específicas que os vinculam uns aos outros. A seguir, então, usando o recurso de deixar visível apenas as relações com o mesmo rótulo, mostram-se as representações gráficas dos cinco tipos de relações destacadas para este capítulo.

Ilustração 16 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: representação gráfica relação de tipo 1 (marido↔mulher)

Fonte: Quadros em cap. 4, pp. 236 e 241, com base em 1LBat-RG, 2LBat-RG, 3LBat-RG, 4LBat-RG, 1738-1763

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Ilustração 17 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: representação gráfica relação de tipo 2 (pai→filhos)

Ilustração 18 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: representação gráfica relação de tipo 3 (senhor→escravo)

Fonte: Quadros em cap. 4, pp. 236 e 241, com base em 1LBat-RG, 2LBat-RG, 3LBat-RG, 4LBat-RG, 1738-1763

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Ilustração 19 – Compadrios nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: representação gráfica relação de tipo 4 (pais→padrinhos)

Ilustração 20 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: representação gráfica relação de tipo 5 (padrinhos→afilhado)

Fonte: Quadros em cap. 4, pp. 236 e 241, com base em 1LBat-RG, 2LBat-RG, 3LBat-RG, 4LBat-RG, 1738-1763

Algumas coisas já podem ser ditas a partir dessas ilustrações apresentadas.

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Em primeiro lugar, no canto superior direito da representação gráfica simplificada (Ilustração 15), vê-se um losango formado por Antônio de Aranda, seus dois escravos casados, Inácio e Luzia de Aranda, e a afilhada desses, a escrava Catarina, de nação mina e de propriedade de Francisco Pires Casado, genro de Antônio Furtado de Mendonça. Luzia era escrava nova e adulta. Ainda que o registro batismal não traga a nação, seu batizado vai ao encontro das afirmativas de Gudeman & Schwartz (1988) para as escravarias da região açucareira da Bahia: a tendência de escravos novos ou boçais serem batizados por casais de escravos já inseridos em contextos familiares com um mínimo de assimilação dos ensinamentos e hábitos católicos. Assim, vêem-se essas escravarias de famílias de boa posição social formando suas próprias redes de parentesco fictício, geralmente subjacentes à grande malha de compadrios das famílias às quais pertenciam, mas que os vinculavam a outras pessoas com condições semelhantes, como escravos com pertencimento a outras boas casas da localidade. Infelizmente, não foi dado a saber se os padrinhos Inácio e Luzia eram escravos crioulos ou de nação e muito menos de que nação seriam. O pertencimento dos padrinhos de Catarina à casa, à família (extensa), conforme o sentido dessas palavras nos dicionários coevos, é evidente: compartilhavam inclusive do uso do sobrenome dessa casa. Inácio e Luzia usavam um bem próprio da família de Antônio de Aranda e que era um dos elementos possíveis de reconhecimento e de inclusão em grupos familiares nessa sociedade. Segundo o verbete do dicionário Academia de Autoridades (1726-1739), “que tiene un mismo apellido, que viene de un mismo orígens”, podendo ser essa origem comum, então, a unidade doméstica à qual estavam vinculados. Essa área da representação gráfica será novamente mencionada quando do destaque de outros aspectos que encontram correlatos em áreas outras da representação. Isso levou à produção de uma nova ilustração, na qual estão aglutinados os partícipes que estão

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associados a um mesmo cabeça de casal. A opção foi atribuir cores diferentes a esses grupos, ficando eleita a cor verde-clara para os padrinhos não relacionados por parentesco consangüíneo ou político com os genros de Antônio Furtado de Mendonça, valendo o mesmo para Francisco Antônio da Silveira, parente cujo grau não se pôde saber.

Ilustração 21 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: partícipes aglutinados por relação de pertença aos casais

Fonte: Quadros em cap. 4, pp. 236 e 241, com base em 1LBat-RG, 2LBat-RG, 3LBat-RG, 4LBat-RG, 1738-1763

A seguir, como já havia sido explanado na apresentação dos partícipes dessa rede familiar e de compadrios, o genro Antônio Moreira da Cruz, que apresentava trajetória bastante diferenciada de seus co-cunhados, está situado em um ponto quase isolado, no canto inferior direito da representação. Retornando aos gráficos das relações isoladas, vêse que se vincula a uma única pessoa por um único tipo de relação. O que havia sido percebido para ele, através da comparação das trajetórias, revelou-se igualmente peculiar na representação gráfica. Moreira da Cruz é o único dos co-cunhados que não deu filhos a batizar ou não foi padrinho de crianças dentro da família no período sob análise. Estava

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vinculado a ela apenas por seu casamento com Joana Margarida da Silveira. Moreira da Cruz e sua esposa estão representados em laranja na ilustração imediatamente acima. Lembra-se aqui da recomendação de Santilli (2003), acerca da necessidade de matizar a aplicação da metodologia de análise de redes sociais e a interpretação dessas figuras produzidas à partir dos registros batismais. Por vezes o que elas mostram são apenas os resultados de interações familiares, ou seja, em alguns lugares desta malha desenhada vêem-se laços familiares e apenas isso, não dando a ver outra sorte de relações. No caso de Moreira da Cruz, os compadrios, ao menos até o momento da Invasão Espanhola, não aparecem porque não existem. Não se encontrou nem nos registros existentes na Provedoria da Fazenda – fossem eles petições, promoções, nomeações, ou qualquer outra sorte de registros – nada que o vinculasse aos seus co-cunhados, além do fato de ter tomado esposa na mesma família. Sua trajetória destoante ajuda a compreender essa falta de interação com seus demais membros masculinos. Não sendo sócio, não tendo negócios em comum, não exercendo a mesma sorte de ofícios, ainda assim era parte da família, havendo ingressado nela através do matrimônio com uma das moças. Também visível quando dessa última representação é a ausência de madrinhas das crianças das famílias, sejam essas crianças livres ou escravas, que fossem externas à família. Todas as madrinhas, à exceção de Luzia de Aranda, estavam vinculadas por casamento ou por escravidão a um dos cabeças de casal. A família de Antônio Furtado de Mendonça e seus genros optou por reiterar laços outros através do compadrio das mulheres, unindo todas as irmãs Silveira a seus sobrinhos, cunhados e irmãs através das relações de compadrio. Algumas escravas desses casais deram seus filhos a batizar a escravos de um dos outros casais. Assim foi com Aniceto, filho da escrava Maria, congo, e de Manuel Bento da Rocha. Seus padrinhos foram Catarina, mina, e Antônio, escravos de Francisco Pires

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Casado. Configuração muito semelhante à dos compadrios do núcleo livre da família, como por exemplo, o menino Manuel, filho de Francisco Pires Casado e Mariana Eufrásia da Silveira, que foi dado a batizar para o casal de tios Manuel Bento da Rocha e Isabel Francisca da Silveira. O menino Jacinto, filho de Rosa, angola, escrava de Mateus Inácio, foi batizado Maria congo, escrava de Francisco Pires Casado e por João Pinto, do qual não se encontrou nenhuma evidência de pertencimento à família. Assemelha-se ao batismo de outras crianças no núcleo livre dessas famílias, que tiveram a madrinha colhida entre os seus e o padrinho buscado fora dos laços de parentesco afim ou consangüíneo. Até certo ponto, os escravos dessas famílias tinham comportamento semelhante ao núcleo livre na eleição de seus compadres. Mais um teste, dessa vez subtraindo do gráfico a relação senhor↔escravo. Tem-se o que segue: Ilustração 22 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: excluídos os senhores de escravos pertencentes à família

Fonte: Quadros em cap. 4, pp. 236 e 241, com base em 1LBat-RG, 2LBat-RG, 3LBat-RG, 4LBat-RG, 1738-1763

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Eis que surgem duas malhas subjacentes à primeira grande rede formada por essas famílias. A primeira delas, à esquerda da ilustração, formada por uma mãe escrava, Maria angola, e sua filha Januária. A segunda e com maior número de componentes conectados por relações outras, à direita da ilustração. Ambas são compostas majoritariamente por escravos. A bem da verdade, com exceção de Antônio Pinto, homem livre do qual não se obteve maiores informações, todos os demais componentes dessas duas sub-malhas são escravos. Quanto à essa representação gráfica há duas observações importantes a serem feitas. A primeira é relativa ao motivo de estarem desvinculadas da malha principal. Os nodos que as conectam a essa malha são representados, justamente, pelos senhores. Ou seja, não estabeleceram relação outra com a parcela livre das famílias. Se nas observações anteriores tudo reforça a inserção desses escravos na família, essas duas malhas mostram que isso ocorria sem uma promiscuidade social em que escravos e senhores compartilhassem de todos os aspectos de sua vida social. A sub-malha representada à direita do desenho mostra que, para além das restrições a que estavam sujeitos por sua condição de escravos, estes tinham uma certa autonomia ou possibilidades de escolhas de padrinhos para além de uma reiteração da relação senhor/escravo através do compadrio interno à família. Teciam malha própria, ainda que à sombra da malha senhorial. Havia a possibilidade da invenção de arranjos parentais fictícios para esses escravos que não passava necessariamente por pedir a bênção a um padrinho de condição social superior dentro da família. Podiam eles (ou elas, já que nenhuma dessas crianças têm pai nominado) reinventar famílias em substituição às que perderam quando foram tirados de suas terras natais. Rosa angola, Maria congo, Catarina mina, Antônio, Luzia e Inácio de Aranda e Antônio Pinto, os adultos envolvidos nessas relações, formavam uma família espiritual bastante ampla. Através do compadrio, no ato do sagrado sacramento do batismo

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administrado a seus filhos, construíam uma família espiritual para si. Escolheram seus irmãos e irmãs. A morte social, a qual James H. Sweet (2003: pp. 31-32) se refere tomando por base o estudo de Patterson, encontrava também meios de ser revertida numa das instituições cristãs mais tradicionais e não somente através de ritos que remetessem exclusivamente à memória da vida que fora interrompida com a retirada dos africanos de suas vidas sociais anteriores. Apenas a esta segunda se refere Sweet. Ao que tudo indica, a incorporação desses rituais cristãos em suas vidas pode ter representado a possibilidade de gerar lastro social que desse alguma razão às suas existências e não apenas a recriação dos rituais e práticas africanas nas terras americanas. Isso ajuda a explicar um ponto muito pouco trabalhado na obra de Sweet, que usa o baixo índice de casamentos legitimados e o alto índice de filhos ditos naturais entre os escravos para concluir por uma rejeição aos ensinamentos cristãos. Havia muitas crianças escravas de Francisco Pinto Bandeira que eram legítimas, atestando outras estratégias. Não havia, como já visto, uma rejeição ao sacramento do batismo, talvez por formar parentela e por gerar laços parentais rituais em substituição aos drasticamente rompidos com o apresamento e conseqüente cativeiro dos africanos. Há que se considerar, então, que não havia uma rejeição a priori do catolicismo, mas de algumas de suas instituições. E há de se comparar ainda, os índices de uniões não formais entre a população livre de diferentes estatutos sociais para a afirmativa de que essa rejeição era majoritariamente africana. Antes, fica a impressão de tratar-se não de uma rejeição dos princípios religiosos associados ao matrimônio, mas uma rejeição estratégica, já que o matrimônio legal gerava impedimentos também matrimoniais para as gerações futuras. Aquilo que se percebia para o restante da sociedade, visto através da janela aberta pelas redes de compadrio das famílias de elite – uma inclusão quase que obrigatória em

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algumas de suas redes de relacionamento – mostra que havia, por mínima que fosse, uma possibilidade de escape e de constituir redes de relacionamentos, redes parentais e de compadrio à margem delas. A independência relativa e a desenvoltura evidente com que se deu a construção da malha de sociabilidades dos escravos dessa família, representada na sub-malha visível à direita da representação, demonstra que nem tudo passava “por dentro da casa dos senhores”. Também os setores subalternos e cativos dessas famílias podiam compor seus parentescos espirituais e suas relações sociais guardando vínculo mínimo com seus proprietários. As relações de compadrio uniam as escravarias que eram pertencentes às famílias de elite também em seus estratos mais baixos, mas prescindiam da presença senhorial para serem tecidas. Vinculavam-se a seus pares: outros escravos de famílias de situação semelhante. Entretanto, não contavam com a participação direta dos senhores na constituição dessas malhas. A tessitura das malhas do compadrio que se viu nessa representação gráfica, agindo na redução das tensões existentes entre setores com poder de mando e setores subalternos da sociedade, mostra que também poderia agir, pelos laços fortes e sagrados do compadrio e todas as obrigações dele recorrentes, na coesão dos setores postados na base da hierarquia social. O número de parentes fictícios que se podiam aglutinar em torno dessas pessoas dá uma noção de quão grande poderia ser o problema gerado por ataques e agressões diretas a ele. Dado que a malha se espalha por outras famílias, as animosidades internas a uma poderiam atingir a casa das outras. A tensão aliviada pelo vínculo espiritual entre os que pertenciam aos degraus mais baixos da escala social e os que estavam no topo tinha sua contrapartida na formação de malhas próprias de seu estatuto social, que poderiam se apresentar como uma força social a ser levada em consideração quando das decisões e dos atos que a atingissem.

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Os compadrios entre setores de mesmo estatuto social nessa sociedade queda por ser estudado, já que a imprecisão nos registros das parcelas menos aquinhoadas e a ausência de elementos que forneçam a identificação positiva de muitos desses agentes sociais, no momento, não permitiram sua investigação. Há a necessidade de refinamento no método empregado para cruzamento de registros nominais antes que isso possa ser feito. Entretanto, esse parece ser terreno fértil para quem se debruçar sobre as relações de poder e as tensões sociais que possam surgir em um povoado do período colonial. O segundo ponto a destacar, que também se refere à fragilidade do vínculo dessas duas malhas, encontrou explicação justamente na menor delas. Quando são vistas Maria angola e sua filha Januária em separado do restante dessa rede, perguntar o porquê é quase ato reflexo. Voltando ao quadro dos compadrios dessas famílias, percebemos que tanto Januária como o menino Leonardo, filho de Catarina mina, foram batizados em situação de emergência. Nesse caso, conforme as Constituições Primeiras (Da Vide, 1707, Livro I, Título XX,§ 71), não deveriam receber padrinhos, a menos que o batismo fosse exorcizado e nova cerimônia procedida. Considerando que a anulação do primeiro batismo necessitaria de autorização expressa do bispado, não há nenhum registro batismal na vila do Rio Grande que o tenha entre as anotações nas atas batismais. Todo o acréscimo de padrinhos em batismos emergenciais sefizeram em uma situação de informalidade. Isso não é de espantar. Como já visto para os casos em que os padrinhos eram muito novos, os costumes da localidade muitas vezes se sobrepunham à normatização expressa nas Constituições Primeiras. A falta de outros vínculos nessas duas malhas que se isolam com a ausência dos laços que envolvem senhores de escravos nessa representação, ajuda a dar resposta aos casos das crianças das famílias de elite como o menino Nicolau, filho de Mateus Inácio da Silveira e Maria Antônia da Silveira, nascido nessas famílias, ou mesmo de Manuel

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Marques de Souza, filho de Antônio Simões e Maria Quitéria, mostrado em capítulo anterior. Ambos foram batizados em situação de emergência e ambos receberam padrinhos a posteriori. A situação de isolamento social já em idade tão tenra, visualizados em Leonardo e Januária, não se repetiu para nenhum dos dois. Além de suas famílias biológicas, ambos receberam a família espiritual. De Manuel Marques de Souza, o governador foi padrinho “adicionado” após o batismo emergencial, com anuência do pároco, e de Nicolau foi padrinho um de seus tios. Para Nicolau, haja vista todas as madrinhas dessas crianças serem suas tias maternas e em mais de um caso não ser nominada madrinha nos registros batismais (vide quadros em capítulo 4 p. 233), observa-se a possibilidade da presença de ritos populares ou caseiros nessa família que lhes atribuíssem uma madrinha, uma de suas tias, ainda que isso não fosse registrado e oficializado pela autoridade eclesiástica local. Seriam essas, também, formas de elidir os impedimentos de atribuição de padrinhos aos escravos da família batizados em situação de emergência. Entretanto, não havendo nenhum registro disso, tal possibilidade não pode passar da sugestão e alerta para que sejam buscados indícios desse tipo em investigações futuras ou em outra sorte de documentação. De todo o modo, se o batismo, como foi dito, era o sacramento mais abrangente da Igreja Católica, da mesma maneira que observam-se através desses casos específicos e minoritários nos registros dos batismos que o ato completo, assim como o conjunto de partícipes também completo, registrado em atas, não era dado a todos em iguais condições. Às famílias de elite, numa troca de favores ou em negociações com o pároco, não registradas na documentação, poderia ser facilitada a adição de padrinhos às crianças batizadas em emergência – e por conseqüência, de compadres a seus pais –, não deixando de cumprir o papel funcional de geração de alianças e cadeias de reciprocidade. Essas, conforme visto, configuravam-se como uma das fontes de poder e uma forma de contenção

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do mesmo. A despeito da importância do papel religioso e cultural cristão, quais sejam, purgar o pecado dos herdeiros de Adão, atribuir nome cristão para o chamamento no Dia de Juízo, marcar as ovelhas do Rebanho do Senhor, garantir a possibilidade da salvação da alma e afastar as crianças do limbo destinado ao paganismo, o utilitarismo e instrumentalização das relações subjacentes ao ato do batismo falavam mais forte nesse momento. O ato batismal emergencial e incompleto cumpria todas as funções religiosas, mas não cumpria todas as funções sociais e políticas. A complementação dessas, na análise que aqui se faz, dá a perceber que eram possíveis apenas à uma minoria da população riograndina. E não por acaso, a minoria era a elite social, política e econômica que vinha se formando na localidade, com utilização de recursos sociais e instituições diversas. Utilizando outras ferramentas pertencentes aos softwares que produzem representações gráficas das redes relacionais, procedeu-se a novo teste. Primeiramente com os adultos pertencentes ao “núcleo livre” dessas famílias e seus compadres, e depois, para todos os adultos, incluindo os escravos. Essa ferramenta, após cálculos feitos pelo próprio software, atribui “força” ou “peso” aos nodos, considerando o número de relações estabelecidas em uma rede de relacionamentos. Quanto maior o número de relações estabelecidas, maior a importância do nodo – que representa os agentes sociais – na manutenção da rede. Essa ferramenta trouxe algumas surpresas e instiga a novas pesquisas para essa e outras realidades coloniais. Aqui se lastima a inexistência de estudos semelhantes para que a discussão sobre certos aspectos, tais como a já alertada importância das mulheres na composição de trama e urdidura do tecido social percebida nos batismos em que foram madrinhas as mulheres de famílias privilegiadas da vila do Rio Grande. Passa-se aos gráficos antes de tornar o texto mais explícito. Abaixo, a configuração da rede de compadrios composta apenas pelas relações existentes entre adultos livres e a representação gráfica dessa mesma rede após atribuição de importância aos nodos.

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Ilustração 23 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: adultos livres

Ilustração 24 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: adultos livres com atribuição de importância aos nodos

Fonte: Quadros em cap. 4, pp. 236 e 241, com base em 1LBat-RG, 2LBat-RG, 3LBat-RG, 4LBat-RG, 1738-1763

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A importância dos nodos, de acordo com o número de relações estabelecidas, é representada no tamanho das circunferências e aglutinadas por cores. Assim, no grau máximo dessa rede, têm-se seis círculos pretos; no segundo, dois círculos vermelhos; no terceiro, dois círculos azuis; em quarto, seis círculos verdes e em quinto e último, um círculo cinza. Antônio Moreira da Cruz, homem pertencente à família, é o único representado no último grau de importância. Isso não é nenhuma surpresa. A primeira surpresa foi que, de dezessete participantes dessas relações, apenas cinco são mulheres. Três delas situadas no primeiro grau de importância, uma no segundo e uma no terceiro. Os padrinhos, todos externos à família, estão no quarto nível de importância, à exceção de Domingos de Lima Veiga, situado uma posição acima. Essa visualização deixa mais evidente o que já havia sido observado para outras famílias da elite riograndina: nas relações de compadrio há um destacado papel das mulheres, muitas vezes sobrepujando o de seus maridos. Esse é o caso de Joana Margarida, que tinha de relações suficientes para colocá-la dois graus de importância acima de seu marido Moreira da Cruz. Junto ao que foi apresentado no capítulo anterior, a forte presença das mulheres como madrinhas em relações sociais com estratos sociais inferiores ao seu, indica que estas eram peça fundamental para tecer alianças das quais, dado o caráter assimétrico da relação, decorriam relações de poder. O fato de serem os casais e famílias aqui apresentadas chefiadas por homens, não significa que as mulheres estivessem relegadas a um plano tão inferior ao de seus maridos. Talvez o fossem nos aspectos relativos a negócios, mas não nos compadrios estabelecidos. Seu papel aparece claramente: competia às mulheres desta porção da colônia fiar, tecer e costurar. Não apenas as roupas de seus maridos e filhos, mas as malhas e os fios do tecido social. Contrabalançando uma possível fraca presença nesses outros âmbitos, encontram-

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se mulheres angariando aliados às suas famílias através da participação nos ritos batismais. Acredita-se que, a partir de tudo o que foi visto até aqui sobre a importância dessas alianças e relações na vida dessa vila, possa ser dito que as mulheres eram bem mais que um vulto diáfano, quase que uma sombra de seus maridos. Considerando o número de afilhados que as mulheres de boas famílias tinham nessa localidade, a construção das relações de parentesco fictício passava muito mais pelo setor feminino das famílias do que pelo setor masculino. Nem por isso, nesse aspecto da vida social e familiar – e que são ao mesmo tempo aspectos político e econômico – diz-se que os homens eram menos importantes que as mulheres. O que se divisa para essa situação é que seus papéis, como não poderia deixar de ser, eram diferentes nessa sociedade, mas complementavam o conjunto de relações das quais é composta uma família. A família começa a parecer mais como uma teia interna de relações que não são estáticas e nem sempre são equilibradas. A família assim composta, incluindo malhas subjacentes de compadrios de escravos e a importância ampliada das mulheres no tecer dessas redes, ganha, desse modo, não apenas um maior número de participantes, mas uma dimensão política entre os diversos setores que a compõe, tornando-se muito mais complexa que a família patriarcal, onde o senhor tudo pode e aos outros cabe apenas obedecê-lo. As mulheres e os setores subalternos concorrem com seu poderio em alguns âmbitos da vida, cujo bom funcionamento é necessário para o bom funcionamento do corpo familiar. Para encerrar sem mais delongas esses testes com a representação gráfica das relações de compadrio das famílias de Antônio Furtado de Mendonça, um último esboço, retornando à rede completa e excluindo apenas os batizandos. Nela, apenas a escrava Catarina mina foi batizada no período em questão, mas comparece na representação gráfica por ser adulta quando de seu batismo, além de ser também madrinha de uma criança e ter dado um filho a batizar. Assim, tem-se:

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Ilustração 25 – Compadrio nas famílias de Antônio Furtado de Mendonça: adultos com atribuição de importância aos nodos

Fonte: Quadros em cap. 4, pp. 236 e 241, com base em 1LBat-RG, 2LBat-RG, 3LBat-RG, 4LBat-RG, 1738-1763

Pode-se afirmar, em primeiro lugar, que Antônio Moreira da Cruz não está mais sozinho na posição de menor número de relações tecidas. Junto com ele aparecem o misterioso João Pinto, do qual além de seu estatuto de livre nada se sabe, e Maria angola, a escrava que ficava junto com sua filha Januária na pequena malha isolada à esquerda. Era essa a escrava que não tinha compadres por ter sido sua filha batizada em situação de emergência. João Pinto, por ter batizado apenas o menino Jacinto, filho de Rosa angola, que por sua vez não havia nomeado o pai da criança na ata de batismo. João Pinto possuía um afilhado e uma comadre. Antônio Moreira da Cruz está nessa posição diminuída em comparação aos demais familiares por não ter tido filhos e por não ter sido dada nenhuma criança para que batizasse. Sua relação, diferente ainda desses outros dois últimos

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colocados, é que Maria tinha a filha e um senhor, o que fazem duas relações, e João Pinto tinha um afilhado e uma comadre. Antônio Moreira da Cruz, para colocá-lo em contato com os outros partícipes, tinha apenas sua esposa Joana Margarida. Três das cinco irmãs, apesar da inclusão dos outros partícipes na representação gráfica dos relacionamentos — o que poderia elevar em muito o peso dos homens nessa malha, já que os homens eram os proprietários dos escravos dessas famílias —, permanecem em grau de importância máximo, avaliado pelo número de relações tecidas. Joana Margarida ocupa lugar entre aqueles com o segundo grau de importância e Antônia Maria em terceiro. Nenhuma delas está situada nos dois graus inferiores. À exceção de Maria angola, todos os escravos partícipes da rede de compadrios estão em posição superior a de dois homens livres, sendo um deles Moreira da Cruz, membro da família por casamento. A maior surpresa reservada por essa última representação gráfica é a posição de Joana angola, escrava de Manuel Fernandes Vieira, no terceiro grau de importância, dado o número de relações tecidas nessa rede de compadrios. Essa escrava está colocada em mesmo grau de importância de uma das mulheres livres da família, Ana Inácia da Silveira, e compartilha também essa posição com Domingos de Lima Veiga, o mais “popular” dos padrinhos externos à família e um dos homens mais procurados para padrinho na vila do Rio Grande. Isso induz à sugestão de estudos que aprofundem a questão das relações sociais, matrimoniais e de compadrio dos escravos como um todo, com especial atenção ao aspecto da possível geração de hierarquias internas ou pertinentes apenas a esse setor da sociedade. Como já dito, escravos eram todos, mas nem por isso eram iguais. Alguns, talvez pela idade, talvez por bagagem cultural que não se dissipou na travessia forçada do Atlântico, podiam desempenhar papéis de liderança entre os cativos das localidades coloniais.

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Os resultados dos testes do uso da representação gráfica das relações sociais entre os partícipes dos atos batismais das famílias dos genros de Antônio Furtado de Mendonça despertaram a necessidade de ampliá-lo para outras famílias da localidade e de também testá-lo em outras comunidades. Entretanto, como já foi dito, para que isso seja feito, é necessário que se aprimore o método e as bases de dados usadas para a identificação dos sujeitos da história que não deixaram tantas marcas em registros quanto os membros das famílias de elite. No caso dos genros de Antônio Furtado de Mendonça, o número e a qualidade dos partícipes permitiu de pronto sua utilização, muito em função das madrinhas serem todas elas pertencentes ao núcleo familiar e, mesmo as mulheres escravas, terem a referência à casa a qual pertenciam. O mesmo não ocorre para as famílias já comentadas de Antônio Simões, Francisco Pinto Bandeira, Antônio Gonçalves dos Anjos, Domingos Gomes Ribeiro e Domingos de Lima Veiga. Justamente onde essa técnica se revelaria mais útil, no esboço das malhas que envolvem os setores não pertencentes às elites que deram seus filhos a batizar por essas famílias, as ferramentas que se construíram para a identificação dos sujeitos apresentam resultados menos satisfatórios, necessitando passar por reelaborações. Findo este trabalho, há que empreender novas pesquisas e testes para as bases de dados e para as técnicas empregadas, no sentido de reduzir a margem de incertezas na identificação dos sujeitos históricos que deixaram suas marcas nos acervos documentais sob forma de registros nominais. Deverá ser feito com intuito de aprimoramento e refinamento do método empregado, de tal forma que o cruzamento das fontes nominativas em conjunto com as técnicas de representação gráficas possa ser mais frutífero.

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IV. De volta ao começo Retornando ao tema com o qual foi aberto este capítulo, crê-se aqui que tomar como ponto de partida para seu estudo a concepção própria da época, a idéia de que era um corpo social, o menor corpo social que incluía as relações básicas existentes na sociedade, é bastante profícua para a análise. Assim, o que se manifesta como o corpo familiar funcionando como um organismo vivo ao tecer suas relações econômicas, políticas, religiosas, enfim, exercendo a economia do lar de Aristóteles não é secionado onde a continuidade existe. Se raras foram as vezes em que um proprietário de escravos apadrinhou o filho de um de seus cativos, não foram poucas as vezes que seus filhos, cunhados, a esposa ou outros parentes e amigos próximos o fizeram. Se existiram índios e índias de quaisquer etnias afilhados e compadres dessas famílias, como tais devem ser tratados: como família espiritual ou fictícia dos partícipes dessa relação. Como já dito, o pertencimento a uma família não reduz a distância dos seus membros na escala hierárquica. Um escravo pertencente a ela, inserido nela e mesmo aparentado na família fictícia, segue sendo um escravo. O mesmo deveria acontecer com as moças ditas minuano, os pardos e forros que viviam sob as cumeeiras de uma mesma propriedade. Para estarem inseridos nelas, compartilhavam um mínimo de experiências e valores que eram percebidos desde fora. Às vezes ocorre de forma mais sutil, ao elegerem compadres à sombra da malha de compadrios dos senhores dessas casas ou ainda serem escolhidos para padrinhos dos subalternos de outras famílias de estatuto social semelhante àquela em que estavam inseridos. Contudo, na medida do possível, há que se tentar divisar os limites para essa inclusão. Quais os critérios que cada família estabelecia para que pessoas pudessem se dizer e serem ditas como membros delas? Por vezes é visível por portarem o sobrenome do seu senhor ou receberem o prenome da mulher ou do marido, de um dos filhos. Ainda assim, viu-se uma relativa autonomia dos setores subalternos das

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famílias, que puderam tecer malha própria de parentesco espiritual, ainda que subjacente à malha do setor livre. Elemento que servia para amenizar certas tensões, os compadrios poderiam gerar outras forças solidárias comuns a apenas certos setores sociais. Ainda que não se tenha conseguido perceber claramente os critérios de inclusão de pessoas nas casas ou famílias, percebeu-se que o parentesco consangüíneo e afim ou político não eram os únicos a aglutinar essas pessoas. Tem-se a convicção de que nela estavam incluídas pessoas de diferentes estatutos sociais, com diferentes funções, todas necessárias, algumas substituíveis, outras imprescindíveis, mas todas com um papel nesse organismo vivo que era a família, na qual existiam várias das tantas relações existentes na própria sociedade. Coexistia e interagia com outros organismos semelhantes ou com funções distintas, mas que faziam parte de um mesmo grande corpo social. Sustenta-se, assim, a idéia da existência de uma família de tipo corporativo, na falta de termo melhor para defini-la. Essa família corporativa necessitava, assim como o corpo necessita, de uma cabeça a guiá-la. Em geral, era o homem mais velho e pai dos demais quem cumpria esse papel. Entretanto, esta chefia podia também ser exercida pela mulher, na ausência prolongada do marido ou quando de seu falecimento. Mas se a liderança, a “cabeça”, deste corpo cabe aos senhores, como “braços” e “pernas” deste corpo estão aqueles que executam justamente as tarefas braçais: os escravos e demais serviçais destes senhores. Posto isso, parece resultar claro que um dos componentes deste corpo, seja ele qual for, distanciado do mesmo, não existe como tal. A existência individual, isolada, não é favorecida nessa sociedade, ao passo que sua organização em grupos – sejam eles familiares, de ofício, de armas, de origem, de famílias espirituais – lhes dá a sua existência como membros de uma coletividade. Mesmo o pater famílias, na acepção completa do termo e posição de chefia do corpo social familiar, só existe na relação com seus filhos,

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esposa e escravos e mais gente que compunham a sua família “completa”. Afinal, se “a mão separada do corpo não é mão senão pelo nome”, com a cabeça, o pater familias, não poderia passar diferente.

Abreviações usadas nesse capítulo: ADPRG – Arquivo da Diocese Pastoral de Rio Grande LBat – Livro de Batismo RAE – Real Academia Española RG – Rio Grande

Fontes e referências bibliográficas usadas nesse capítulo: Fontes primárias manuscritas: ARQUIVO DA DIOCESE PASTORAL DO RIO GRANDE. Livros 1o, 2o, 3o e 4o de Batismos da vila do Rio Grande. 1738-1763. Fontes primárias publicadas: ARISTÓTELES. Política. s/l: El Aleph, 2000. www.elaleph.com ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2005. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez e Latino - 1712. . Rio de Janeiro: UERJ, 2000 DA VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Coimbra: Colégio das Artes da Compahia de Jesus, 1707. OROZCO, Sebastián de Covarrubias. Tesoro de la Lengua Castellana, o Española, compuesto por el Licenciado Don Sebastian de Covarruvias Orozco, capellan de Su Magestad, Maestrescuela, y Canonigo de la Santa Iglesia de Cuenca, y Consultor del Santo Oficio de la Inquisicion. y añadido por el Padre Benito Remigio Noydens, Religioso de la Sagrada Religion los PP Clerigos Regulares Menores. Madri: Melchor Sanchez, 1674. http://www.cervantesvirtual.com/FichaObra.html?Ref=18011 REAL ACADEMIA ESPAÑOLA. Diccionario de Autoridades. Madrid: Real Academia Espanola, 17261739. www.rae.es

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Considerações Finais

O que aqui se apresentou, é resultado de muitas experimentações. As primeiras considerações são feitas, portanto, acerca dos métodos e das ferramentas empregadas. Começa-se, então, pela construção de uma base de dados para uso com o cruzamento de fontes nominais. Esta base, de utilidade inconteste, foi sendo modificada ao longo do trabalho de pesquisa, re-adequada com acréscimo de campos que se mostraram necessários e eliminação dos obsoletos. Houve a necessidade da geração de uma segunda e uma terceira bases associadas a ela, para comportar sortes de dados extraídos de um único tipo de documentação e, portanto, contendo dados específicos dos conjuntos documentos de modo mais completo, mas que poderiam ser acrescentados de modo sucinto na ficha de entrada. Com toda a certeza, a configuração atual ainda não é inteiramente adequada para responder novas questões que surgiram. Mais modificações já estão previstas, talvez mesmo com alteração na metodologia de composição das fichas nominais e nas tabelas de dados. Ao longo da pesquisa também verificou-se, como alertaram autores que trabalham com essa metodologia, que é muito mais fácil coletar e registrar os dados de pessoas pertencentes às elites do que para as pessoas comuns. As pessoas e as famílias com posição de destaque nessa sociedade têm registradas as suas atividades e seus eventos vitais de

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maneira muito mais completa do que o resto da população. Por mais que seus nomes variem ao longo do tempo, por mais que mudem o local de moradia ou que tenham ingresso em outros corpos sociais, sociedades, atividades várias, sempre são registrados dados complementares que auxiliam na identificação positiva dessas pessoas. A gente comum, os soldados de baixa patente, os camponeses, os peões, os índios, os escravos, os pardos, os forros, esses possuem registros sumários além de variações grandes na escrita do nome, na designação do local de origem, na filiação, no nome dos cônjuges. Isso, quando aparecem esses dados complementares. Muitas vezes ficam restritos a um “João, pardo” ou uma “Maria”, simplesmente. Não havendo nenhum tipo de informação complementar que dessem uma “âncora” a essas pessoas, um grupo de atividades, de origem, de inclusão em alguma família, fica impossível a associação a outro “João, pardo” e a outra “Maria” que, por ventura, surjam na documentação. De um lado, mostra a limitação do emprego do método para a conexão desses registros batismais a outros. Por mais que haja empenho e esforço do pesquisador, uma parcela considerável da população jamais terá suas histórias de vida e suas trajetórias investigadas de maneira minuciosa. Entretanto, também deixou claro que uma parte desses setores sem muita expressividade, que por alegada falta de fontes jamais foi explorada de modo intensivo ficando suas existências expressas em alguns parcos números frios, podem ganhar vida e substância em suas relações sociais. Não sendo a análise quantitativa e a análise qualitativa excludentes, a associação de ambas deverá, na maior parte das vezes, resultar benéfica. Parte do acesso a essas parcelas da sociedade foi possível a partir de sua conexão com pessoas situadas em patamares mais elevados, de onde o registro dos primeiros foi alcançado através de documentação relativa aos segundos. Também vêm daí a noção de que por mais que as sociedades apresentem suas clivagens e antagonismos, não há mundos diferentes e os diferentes âmbitos da vida social se tangenciam, que atores

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sociais em diferentes situações são interlocutores uns dos outros. Podem ser apercebidos também no momento dessa interlocução, como nos casos de compadrios entre pessoas de estatutos sociais diferenciados – por vezes fortemente diferenciados. Quando no desenvolvimento da pesquisa viu-se que a presença de homônimos e a inconstância na designação dos agentes sociais eram freqüentes, houve a necessidade de considerar o nome próprio das pessoas como um objeto de estudo, problematizá-lo e tentar entendê-lo. Como conclusão, chegou-se a certeza de serem os nomes – prenomes e sobrenomes – construções dos sujeitos históricos. Os nomes e as práticas de atribuição de nomes podem ser vistas como estratégicas dentro dessa sociedade. Possuem, para além da função de designação de seus membros, um componente que lhes confere qualidades em sua vida social. Compunham parte do patrimônio que pertencia às famílias e que poderia ser negado ou legado a quem merecesse ou não o seu uso. Pouco se avançou no sentido de encontrar uma lógica quase que cartesiana na transmissão desses nomes. Mas avançou-se na medida em que se percebeu que a lógica que existe não é semelhante à que hoje vigora. Essa lógica pertencia aos que viveram o século XVIII e que usavam esse bem construído para reiterar posições sociais, rememorar ancestrais de destaque. Também viu-se que a mobilidade espacial e social por vezes ficava registrada nas alterações do nome: a incorporação de um sobrenome ou o abandono de um nome marcado por infortúnios em detrimento de um novo, sem mácula, sem “currículo”. Espera-se, com isso, despertar maior interesse por estudos onomásticos que venham a dar elementos de comparação dessas práticas para distintos locais da Colônia e do Império Português, para que a discussão sobre essa estratégia construída para a geração de pertencimentos a grupos sociais e familiares possa ser aprofundado. A adoção de prenomes e sobrenomes era um dos indicadores visíveis de inclusão em grupos sociais e principalmente familiares, de onde os que compartilhavam esse

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mesmo bem familiar eram partes integrantes das famílias. Com isso, pensa-se ter chegado a um tipo de família bem mais abrangente do que excludente, haja vista agregados, índios e escravos muitas vezes compartilharem os sobrenomes da família senhorial, apontando diretamente para a sua inclusão naquela família hierarquizada ou casa no sentido que alguns dicionários da época a definiam. Ao mesmo tempo, as definições dos dicionários e mesmo as definições filosóficas do que seria a família, cotejadas com o direito vigente à época, indicam seu funcionamento como um corpo social, no qual era necessário partes com funções distintas para que o todo pudesse operar de modo harmônico. Disso, novamente, decorre a necessidade de inclusão de pessoas situadas nos estratos subalternos da sociedade e com vínculos nessas famílias. Com essa noção, também, a sociedade justifica a necessidade da desigualdade entre seus membros. Recuperou-se a noção de que família não é uma “coisa” em si, mas é um conjunto de relações. Segundo Aristóteles, três eram as básicas e necessárias para a sua existência: marido e mulher, pais e filhos e senhor e escravo. A igualdade entre os sujeitos seria nociva à sociedade e, não poderia deixar de ser diferente, também nociva à família. A manutenção de distintos estatutos sociais internos à família vem a mostrar que mesmo as famílias consideradas de elite tinham entre seus membros pessoas que não partilhavam do topo da hierarquia social da localidade. Ao mesmo tempo, isso vem a mostrar também que as famílias de elite eram como que uma “fatia dessa sociedade”, possuindo representação em muitos estratos sociais e, por conseqüência, estavam relacionados com eles de múltiplas maneiras. Um capitão ou um juiz de órfãos poderia ter como membro de sua família ritual ou pela abrangência que assumia esse conceito, um camponês seu agregado, compadre ou afilhado. Os critérios de inclusão nessas famílias parecem muito oriundos mais de acordos de aceitação da hierarquia e do mando com deveres e direitos recíprocos do que regras

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formais tais como haver nascido de um de seus membros. Isso faz com que sejam mais compreensíveis as variações que se percebem na configuração das famílias. Cada uma tinha a abrangência que a situação social dos seus membros postos em relação permitia. A continuidade das relações das famílias de Antônio Gonçalves dos Anjos, Antônia de Morais Garcês e Domingos Gomes Ribeiro mostram quão incorporadora pode ser essa instituição, a ponto de alguns dos escravos do defunto Antônio Gonçalves dos Anjos e de propriedade da viúva Antônia de Morais Garcês serem ditos escravos de Domingos Gomes Ribeiro, seu novo cônjuge. Mais do que a propriedade legal dessa escravaria, foi evidenciado estarem sob o mando de um outro chefe de família e a ela pertencerem. Ou seja, a família amplia-se sem que se tenha a priori a sua extensão. Mostrou-se com exemplos que dependiam das regras de aceitação inerentes a cada uma delas, sempre situadas dentro do universo limitado de possibilidades, ditado pelas regras sociais próprias do tempo e do local. Ou seja, família e a pertença a ela são historicamente construídos. Com o auxílio da metodologia da análise de redes sociais mostrou-se também quão peculiares podem ser os vínculos entre os partícipes de uma mesma família. A representação gráfica dos casais de genros de Antônio Furtado de Mendonça uma certeza ficou: por vezes um subalterno poderia estar muito mais inserido, através da quantidade e qualidade de relações que teceu nesse ambiente social do que um membro “legalmente” participante dele. O genro preterido às relações de compadrio e nas sociedades é um dos familiares dessa casa apenas por seu casamento, ao passo que algumas das escravas eram simultaneamente mães, madrinhas, afilhadas e comadres de outros partícipes. Com as representações gráficas experimentadas para as relações dessas famílias, evidenciou-se de forma visual aquilo que fora percebido nos números coletados que compõe os quadros dos compadrios das famílias: as mulheres tinham relações sociais, familiares e religiosas muito expressivas e por conseqüência, seu papel dentro das famílias

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e nessa sociedade era muito mais notável do que as tarefas domésticas e de criação dos filhos que lhes podiam ser designadas e que sua subordinação aos maridos podia ter contraponto. De algum modo, a criação do tecido social passava pela participação das mulheres muito mais do que por seus maridos. Sem possuir cargos públicos, sem exercerem ofícios régios, contratos de cobranças de taxas, sem terem função militar, a essas mulheres acolhiam um grande número de pessoas a oferecerem-lhes filhos para batizar e por conseqüência ingressavam em suas redes de parentesco fictício. A elas era devido o respeito e a deferência sem que houvesse muitos motivos outros que não a busca voluntária por integrar seus grupos de afinidades familiares ou religiosas. A captação de apoiadores às famílias de elite passava, portanto, pela atuação dessas mulheres nos batismos e no bom cumprimento do que delas pudesse se esperar como boas madrinhas. A reiteração ao longo do tempo desses convites ao compadrio denotam que elas sabiam como responder a essas expectativas. Se nos modelos pensados para a família colonial cabe à mulher casada a subordinação ao poder de seu marido, a quantidade de relações captadas por ela e que eram patrimônio familiar faz com que essa subordinação também tenha uma possibilidade de barganha, já que nenhum marido em sã consciência desejar perder, em nome da própria família, tão hábeis angariadoras de simpatizantes e apoiadores. Ainda que não se tenha avançado no sentido de um estudo de gênero, aponta-se aqui novo caminho para repensar o papel da mulher nessa sociedade colonial. Ao que tudo indica há que se relativizar em muito a inferioridade social feminina. Novamente, a partir desse experimento, há o chamamento a mais interessados para que se aventurem por esses caminhos, criando massa crítica suficiente para que os saudáveis diálogo e debate entre investigadores possa ocorrer. Através das relações de compadrio também foi possível concluir que uma das fontes de poder nessa localidade de instabilidade social e política, muito por estar sujeita a

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guerras e invasões, passava pelas as relações tecidas na pia batismal. A autoridade delegada sobre amplos setores sociais, percebeu-se através dos compadrios buscados pelos imigrantes dos Açores. A existência de padrinhos favoritos não era feita por processos “legais” de delegação de poder, tais como eleger um notável para cargo na Câmara. Antes, era mais visível nessa sociedade a entrega de um bem maior que o direito de estabelecer preços e taxas ou permitir e proibir certas práticas. A conquista de apoiadores e de protetores era feita mediante a entrega de um dos filhos como filho espiritual ao padrinho em questão. Convidava-se uma pessoa a ingressar na família de modo ritual e com apoio nas crenças do catolicismo. Entregava-se um filho – ou seja o futuro de uma família – à proteção de um padrinho. Com isso tornavam-se também protegidos e credores de bem de igual importância. A impossibilidade de igualar o bem ofertado pelas famílias de posição social mais baixa cativava homens e mulheres situados em posições sociais mais elevadas. Percebeu-se que o simples fato de ter nascido em uma família com estatuto superior nessa sociedade não era suficiente para que tivesse continuidade até o fim da vida. Havia a necessidade de reiterar essa posição. Uma das formas de fazê-lo era deixando-se cativar e caindo em dívida moral, ética e religiosa com os subalternos dessa sociedade. São relações tensas e da atuação dos setores representados nelas podia depender a paz social. Essa relações tensas também revelam que para além das “revoltas populares” ou qualquer outro tipo de beligerância clara e explicita, os setores subalternos tinham um poder de barganha muito forte nas relações com a elite. Eram seus credores e se não fossem de tempos em temos satisfeitos com dádivas menores, poderiam não repetir os convites, deixando o padrinho bem situado sem uma base de apoio que desse sustento às suas ações em seu próprio meio, no qual disputava recursos sociais, políticos e econômicos com seus pares. Manter a popularidade em meio ao setores subalternos era chave para o equilíbrio

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entre os membros da elite. Ao mesmo tempo, requeria reiteradas ações para que essa popularidade se mantivesse. Com isso, esses laços, internos ou externos às famílias, ganham dimensão para além do parentesco espiritual e para os deveres correlatos ao batismo. Assumem portanto, dimensões políticas e denotam estratégias, também políticas, pensadas e postas em execução para lá de um par de anos. Os “todo-poderosos” chefes de famílias pertencentes à elite não podiam tanto assim. Suas ações tinham limitações que a própria sociedade se encarregara de engendrar. Tinham de regular suas ações para não perder suas bases sociais que davam sustento à sua própria posição social. Isso transfere tira a vida política que estava exclusivamente dentro das salas da Câmara para o trato diário. O estudo das relações internas e externas à família ganham com isso uma nova possibilidade de investigação. A partir daí, detectar a existência dessas relações não apenas através do compadrio, mas com a utilização de outros vínculos entre as pessoas, tais como o pertencimento a irmandades, a grupos de ofício, aos corpos militares, às associações com fins beneficentes, etc. podem levar à descoberta de outras fontes de poder político e de espaços de negociação entre membros de um mesmo grupo social ou de grupos sociais distintos. De todo o mais que poderia ser dito aqui, abrevia-se para destacar apenas mais um ponto que parece por demais importante para o estudo dessas situações de fronteira, muito mais as que não estavam ainda formalmente definidas. Ante as incertezas do amanhã, no qual podiam ser perdidos bens e posses, patrimônio mais duradouro e que maior “liquidez” existia nessa sociedade eram as relações construídas entre os membros dela. Estas relações não demandavam recipientes próprios ou meios de transportes. Elas estavam presentes nos tempos de paz, nas fugas, nas migrações, nos tempos de sofrimento, na prosperidade. Podiam ser a riqueza de quem se via na miséria e o infortúnio dos ricos que não as

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possuíam. Contar com um familiar, com um compadre, com um padrinho podia ser o único recurso e única fortuna perene para as famílias que tiveram que deixar tudo para trás. Algumas por mais de uma vez. Parece claro, ao se acompanhar por uma geração a criação de laços de parentesco ritual ou fictício à pia batismal de certas famílias que o investimento nessas relações, com tudo que pudesse acarretar, dispêndios em auxílios com alimentação, pequenos presentes, vestimentas e outros a que pudessem estar obrigados. Possivelmente eram investimentos na ampliação futura das redes de compadrio e, portanto, no aumento de uma sorte de bens que, sem passar pelo mercado, forneciam aos seus detentores prestígio, poder, acesso a cargos e terras. Com os compadrios tecidos entre setores sociais de estatutos sociais diferentes – por vezes muito distantes na escala social – acredita-se ter percebido, com auxílio da antropologia social e de estudos específicos acerca da dádiva, um locus da gênese – ou epifania, como quer Godelier – de poder nessa sociedade, bem distinta das sociedades por ele estudada por apresentar alto grau de complexidade em suas instituições, tais como o Estado e a Igreja. Tendo claro que, como foi dito no parágrafo anterior, nem todos os bens passavam pelo mercado, havendo por um lado, um baixo grau de monetarização nessa porção das terras coloniais ao período analisado e, por outro, certos aspectos da vida nas quais se realizavam trocas com bens cujo valor é impossível de atribuir em moeda ou outros bens, viu-se que os convites ao compadrio, a aceitação do mesmo e a possibilidade de recíproca na oferta de afilhados são exemplos de bens que podem ser retidos para o engrandecimento de quem os recebeu. O poder delegado quando dessa troca, não o poder reificado, que uns têm e outros não, mas a relação que entre uns e outros com posições sociais e econômicas diferenciadas mantêm, vem a reviver algo que tinha perdido muito de sua dimensão dinâmica. Ao menos uma parte do poder das elites coloniais emanava dessa

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sorte de relações que, como visto, necessitava de constante reiteração e de satisfação de ao menos parte das demandas dos setores situados nos patamares mais baixos da sociedade para continuar existindo. Com isso politizam-se relações que podiam ser vistas apenas como relações de opressão e coerção nas quais aos escravos, aos forros, aos pobres, enfim, aos despossuídos, só cabia aceitar ou reagir com fugas ou revoltas. Tornam mais complexas e mais delicadas as percepções do viver nessa sociedade. Ao mesmo tempo demonstram serem mais tensos e sutis os mecanismos de reiteração das posições sociais. Tornam-se maiores as possibilidades de arranjos dessas relações e de arquitetar estratégias para além do prato de comida do dia seguinte. Recobram-se a agência dos agentes sociais que quedavam quase que imóveis. Assim, encerra-se esse: apontando algumas áreas de pesquisa para a história de situações de fronteira do período colonial que demandam investigação. Algo foi feito aqui nesse sentido e, como pode ser percebido ao final de cada um dos capítulos apresentados, muito ainda há por fazer, muito ainda há por investigar acerca das sociedades das fronteiras da Colônia.

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