Para ler O Capital de Piketty

July 4, 2017 | Autor: Felipe Maia | Categoria: Social Theory, Political Economy, Economia Política, Teoria Social
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BOLETIM CEDES – JULHO-AGOSTO 2015 – ISSN 1982-1522 Resenha de: PIKETTY, T. Le capital au XXIe siècle. Paris: Seuil, 2013. [Edição em português: O capital no século XXI. Editora Intrínseca, 2014]. Para ler o Capital de Piketty Felipe Maia G. da Silva * “Eu não concebo outro lugar para a economia senão como subdisciplina das ciências sociais, ao lado da história, da sociologia, da antropologia, das ciências políticas e de tantas outras” (p. 945)

O debate sobre o já famoso livro de Thomas Piketty tem sido dominado por economistas especializados e isso não é boa coisa. Não porque eles não devam fazê-lo, mas pela ausência de um campo intelectual mais amplo, o que confina um trabalho de grande valor ao escaninho das polêmicas entre economistas ortodoxos e heterodoxos (ou seja lá o que queiram dizer com isso!), o que decididamente não era o desejo do autor, nem o lugar apropriado para seu trabalho. Daí a estranheza que causam as tentativas de classificação de Piketty no tabuleiro das correntes de economistas contemporâneos: seria ele um marxista, um neoclássico, um keynesiano talvez? E, com isso, recusa-se as novidades trazidas pelo autor, de forma a transformar o debate sobre seu livro em uma repetição das controvérsias – já definidas pelos postulados apriorísticos de cada lado – dos iniciados na tal ciência econômica. Por esta razão, ampliar o campo faria bem ao debate e poderia fazer jus ao esforço monumental do autor de construir um texto capaz de situar a economia no âmbito das ciências sociais, bem como a sua imensa vocação como intelectual público. Piketty não gosta da expressão “ciências econômicas”, prefere a velha designação economia política, que ele compreende como um ramo das ciências humanas, capaz de tratar a economia como parte de um processo social mais amplo, que inclui as relações políticas, as instituições, a cultura e as representações sociais da realidade. Diferentemente dos positivistas de várias plumagens, não há uma separação dura entre “ser” e “dever ser” de forma que a *

Professor e Pesquisador do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federa de Juiz de Fora (UFJF).

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normatividade, quando bem explicitada, pode se apresentar como parte do trabalho científico, sem contudo obstruir um diagnóstico bem fundamentado e sujeito ao controle de validade pela comunidade científica. Esse viés anti-positivista tem relação com a concepção de trabalho intelectual que Piketty advoga, a de um intelectual público e, mais que isso, de um intelectual da democracia, cuja missão é produzir conhecimentos sobre o mundo social que contribuam para que o debate democrático seja mais bem informado, para desestabilizar falsas certezas e colocá-las em questão, como argumenta na introdução ao livro. Para ele, o intelectual é “um cidadão entre outros”, mas que teve a chance de gastar mais tempo estudando e de ser pago por isto, o que não deixa de ser um privilégio! Esta ciência como vocação e profissão, que confere identidade específica ao intelectual na sociedade moderna, volta-se, para Piketty, não para as instituições do estado ou da empresa capitalista, mas para a esfera pública, de forma que o conhecimento produzido é condição para um debate racional e para a tomada consciente de decisões pelo público democrático. Sendo parte do debate, este intelectual não substitui o público, não o totaliza em uma razão superior, seja ela a do estado ou de outro sujeito social, mas reforça seu compromisso com a construção democrática e com as responsabilidades daí advindas. E, de fato, é a democracia o valor que sustenta a perspectiva analítica de Piketty sobre o tema central das desigualdades sociais. Se a democracia é o valor que o orienta, mais justo seria dizer que o tipo de análise oferecida pelo autor, ao enfatizar processos e séries históricas, privilegia o tema da democratização, isto é, dos processos sociais que tem permitido ou dificultado a democratização da vida social, a aproximação das chances e condições de vida, o melhor ordenamento da solidariedade social. Assim, seu objeto de pesquisa não é o conceito, mas os processos existentes no mundo, com suas imperfeições e conflitos. Democratização que se aproxima da concebida por Tocqueville, autor recorrente nas páginas do livro, por se tratar de um largo processo de derruimento de formas aristocráticas de classificação social, mas desprovida em Piketty de qualquer conotação providencial, pois é vista como produto de escolhas, de processos políticos e sociais nem sempre transparentes, mas que condicionam estruturas sociais. Neste sentido a democratização depende da diminuição das desigualdades sociais, mas como se verá depende também da democracia política.

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A evolução histórica e o diagnóstico do capitalismo contemporâneo Piketty considera que no desenvolvimento do capitalismo há forças equalizadoras, que ele chama de “convergentes”, no sentido que aproximam as condições de vida entre os países e entre as classes sociais, bem como forças “divergentes”, que atuam na direção contrária. A grande força convergente tem sido a difusão do conhecimento, que permite a elevação da produtividade do trabalho no capitalismo e a melhoria de sua remuneração. As duas grandes forças divergentes, e que merecem a maior atenção do autor, são a acumulação/concentração de patrimônio, e a disparada dos salários no vértice da pirâmide social. Com base em uma vasta série de dados estatísticos, Piketty observa a evolução dessas forças variando o enfoque entre países e, quando possível, em nível mundial. Os dados que dispõe referem-se sobretudo aos países mais desenvolvidos, especialmente França, Estados Unidos e Reino Unido, o que não reduz o interesse do livro, pois se já não se pode imaginar que o capitalismo produz em todo lugar os mesmos resultados, há boas razões para concordar com Piketty que a dinâmica das economias centrais conforma um quadro representativo das possibilidades do capitalismo contemporâneo, especialmente pelas interdependências criadas ao longo dos processos de “mundialização”. E com mais razão ainda recear as consequências das tendências em curso. As séries de Piketty revelam o movimento dessas forças econômicas em diferentes períodos e permitem comparar os efeitos de escolhas e instituições políticas. Em geral, períodos que conseguiram combinar forte crescimento econômico com políticas sociais tiveram efeitos positivos na redução das desigualdades, sendo que períodos de baixo crescimento da economia e elevada rentabilidade dos capitais produziram o alargamento das distâncias sociais. Este é o raciocínio que se pode depreender da equação decisiva exposta por Piketty: quando a rentabilidade do capital, entendido como o patrimônio acumulado por pessoas físicas, empresas ou Estado, supera o crescimento da economia, a tendência é a ampliação das desigualdades e a má distribuição da renda. Todavia, quando o crescimento econômico supera a rentabilidade média do capital, há um efeito distributivo. Deve-se notar, entretanto, que o crescimento econômico tem duas dimensões, uma puramente econômica, que está relacionada à produtividade do trabalho, e outra demográfica, sendo esta uma dimensão importante e usualmente negligenciada no debate público. Altas taxas de crescimento demográfico impulsionaram o crescimento econômico ao 43

longo dos dois últimos séculos, porém, na Ásia, Europa e nas Américas, a tendência é a estagnação da demografia ou mesmo a diminuição, reservando ao continente africano o lugar da elevação demográfica no planeta. Desta forma, é forçoso concluir que as altas taxas de crescimento experimentadas no séc. XX dificilmente se repetirão, por mais inovadora e eficiente que venha a ser a economia capitalista. Além disso, Piketty observa com razão que o exame de longas séries históricas demonstra que pequenas diferenças produzem por acumulação efeitos gigantescos no longo prazo. Assim, a superação do crescimento pela rentabilidade do capital, por menor que seja, deve produzir efeitos dramáticos na desigualdade social. A era do extraordinário crescimento econômico, que alterou em profundidade os hábitos de consumo, as relações de trabalho e os estilos de vida no século vinte, provavelmente chegou ao fim, senão pela consciência dos riscos ecológicos que carrega, pela própria dinâmica da acumulação capitalista, o que leva a desafios de regulação econômica e de organização social completamente novos. O que Piketty está propondo é que deixada a si própria, a dinâmica da acumulação patrimonial capitalista produzirá no século XXI uma desigualdade ainda maior que a das antigas sociedades aristocráticas dos séculos XVIII e XIX, revertendo por completo a marcha da igualdade antevista por Tocqueville e que sustenta o ideário normativo das sociedades burguesas. O que se anuncia é que no futuro, o peso do passado será cada vez maior, isto é, as chances e condições de vida dos indivíduos serão em grande medida determinadas pelas estruturas herdadas de suas famílias e não pelos resultados alcançados ao longo de suas vidas, solapando tanto a solidariedade social, quanto a ideologia meritocrática com a qual o capitalismo buscou justificar as diferenças de renda. A prevalecer a tendência de acumulação de capital em curso, teorias da justiça liberais, tais como a de John Rawls ou de Amartya Sen, estariam cada vez mais deslocadas do campo de experiências das sociedades burguesas. Não é à toa que Piketty recorre, sempre com elegância e precisão, aos romances de Balzac e de Jane Austen para contrastar as sociedades aristocráticas da França e da Inglaterra com as sociedades burguesas produzidas ao longo dos séculos XIX e XX. É interessante observar que a literatura não é adorno para embelezar o livro, mas um recurso metodológico para lidar com as representações sociais, sem as quais não se pode compreender adequadamente a dinâmica das desigualdades. Os personagens de Austen e Balzac dão corpo e alma às antigas sociedades de rentistas, onde o trabalho jamais poderia oferecer as mesmas condições de vida que a herança. Sociedades de grandes somas de patrimônio acumulado e concentrado, que atingiram seu ápice 44

na Belle Époque europeia. Era a velha Europa com forte peso das propriedades fundiárias, da baixa mobilidade social, do pauperismo operário e exportadora de imigrantes pobres, contrastada por tantos autores com o “Novo Mundo” americano, mais aberto às oportunidades, com terras livres, no qual floresceu uma sociedade burguesa mais livre das influências aristocráticas, do peso do passado. A velha Europa aristocrática, com sua imensa concentração patrimonial, foi varrida pelas duas grandes guerras, que tiveram como efeito a destruição física de capitais e um profundo reordenamento nas finanças públicas, devido ao fim do padrão ouro e à maior liberdade das políticas monetárias, o que possibilitou a redução do endividamento público (e portanto dos capitais financeiros acumulados por bancos privados). Foram as guerras que fizeram tábula rasa do passado e alteraram as condições de reprodução social do capitalismo europeu, mas sem dúvida, sem as instituições criadas para lidar com os problemas econômicos e sociais advindos, a trajetória seria distinta. Nesse sentido, o pós-guerra aparece como um período histórico singular, no qual a reprodução das novas gerações esteve menos condicionada pelo patrimônio herdado das gerações anteriores e mais vinculada aos resultados obtidos no curso das trajetórias de vida. Nessas sociedades a renda oriunda do trabalho cresceu proporcionalmente em relação à renda oriunda do capital, de forma que os patrimônios vindos do passado assumem menor importância, o que pode ter levado à ilusão de uma “ultrapassagem do capitalismo”, isto é, o advento de uma sociedade meritocrática na qual a distribuição da renda depende menos do capital, com tendência equalizadoras na estrutura social. Some-se a isso a evolução tecnológica, a impulsionar a produtividade e o crescimento econômico, e a melhoria na qualificação do “capital humano” e pode-se entender melhor os “trinta anos dourados” do pós-guerra europeu e norte-americano, com o arrefecimento dos conflitos distributivos capital – trabalho. As evidências empíricas desta metamorfose do capitalismo são observáveis pela relação capital – renda, a parte do capital no conjunto da renda, que foram menores no pós-guerra que no período da Belle Époque. Alguns economistas imaginaram que essa situação estaria relacionada com um ciclo virtuoso do desenvolvimento tecnológico, que favoreceria a participação do capital humano no conjunto da renda, porém, Piketty observa que essa metamorfose do capital não alterou suas estruturas mais profundas, o declínio das taxas de crescimento, não acompanhado por declínio dos rendimentos dos capitais, observável após os anos 1970 e 1980, revelaria que não se pode confiar nos 45

“caprichos da tecnologia” e recoloca o debate em seu campo apropriado, o das escolhas políticas e das instituições que regulam a economia. A explicação dessa retomada do alargamento das desigualdades é multicausal e comporta diferenças entre os países, porém, pode-se relacioná-la a alguns grandes movimentos comuns, tais como a privatização de ativos públicos e a ampliação das dívidas públicas (que ampliam os ativos detidos por agentes privados, desigualmente distribuídos), a diversificação e ampliação dos mercados financeiros, o descolamento dos salários dos “super - executivos” de grandes corporações em relação aos níveis hierárquicos inferiores (produzindo forte descontinuidade na distribuição salarial). Todas contribuem para que os rendimentos do capital sejam maiores que a taxa de crescimento da economia, o que, a rigor, é o padrão histórico da humanidade, porém, como argumenta Piketty, a distância entre rendimento e crescimento importa muito, devido a seus efeitos cumulativos na longa duração, e essa distância vem aumentando. As análises de estratificação social de Piketty revelam que, embora as diferenças de rendimento das famílias sejam “contínuas”, isto é, possam ser estatisticamente dispostas em uma régua, um “continuum”, sem grandes rupturas, não se deveria compreender a desigualdade apenas por seu aspecto quantitativo, pois a distribuição quantitativa produz diferenças qualitativas que remetem a interesses, estilos de vida, representações sociais, que podem provocar descontinuidades relevantes. Além disso, a própria régua da estratificação começa a revelar um descolamento dos rendimentos de um grupo social em relação ao conjunto da distribuição. Este grupo é o do centil superior, isto é, o 1% da população que detém os maiores rendimentos e que se opõe, por descontinuidade, ao restante, uma nova espécie de divisão social que ecoa a palavra de ordem dos ativistas do Occuppy Wall Street: “nós somos os 99%”! Entre os 99% predominam as desigualdades oriundas das rendas do trabalho, que são empiricamente mais fracas, embora não devam ser desprezadas. Ao adentrar no universo do 1%, falam mais alto as desigualdades produzidas pelo capital, muito mais fortes e qualitativamente diferentes, pois esse segmento concentra seus ativos em capitais financeiros, que obtém rendimentos muito mais elevados que os ativos imobiliários detidos por camadas médias, às vezes endividadas, e utilizados como moradia. As estatísticas revelam também que os patrimônios maiores conseguem no mercado financeiro obter taxas de rendimento superiores, pela maior disponibilidade à diversificação e à sofisticação das estratégias de investimento, por economias de escala que compensam custos mais elevados com a administração dos porfólios, de forma que mesmo os 46

grandes “empreendedores” vão aos poucos se tornando rentistas. O cenário projetado é de sociedades onde o peso do patrimônio cresce cada vez mais e determina as chances de vida. Embora o “1%” das sociedades contemporâneas não seja mais composto por rentistas fundiários ociosos, mas por super – executivos detentores de ativos financeiros, esse grupo tende a se reproduzir por herança, de forma que mesmo os mais talentosos e qualificados trabalhadores jamais poderiam atingir aquele nível de remuneração e acumulação. Estaríamos assim distantes das previsões otimistas de uma “sociedade de classe média” como nas teorias da modernização ou das afirmações das teorias do capital social sobre o predomínio do mérito e da qualificação profissional sobre a herança. Há boas razões também para rever teorias sociológicas contemporâneas que talvez tenham sido excessivamente otimistas ao prever a recensão dos conflitos materiais e distributivos no capitalismo tardio. Não apenas na periferia, mas também no centro do capitalismo, a desigualdade se coloca como problema político. Um novo repertório O repertório do século XX para enfrentar a desigualdade e promover a democratização foi largamente baseado na ampliação da capacidade fiscal dos estados nacionais como estratégia para a construção de redes de proteção e bem-estar social. Piketty calcula que desde os anos 1930 a arrecadação fiscal cresceu em 3 ou 4 vezes e que em alguns países as despesas públicas já consomem até metade da renda nacional, o que revela ser curto o espaço para a ampliação do esforço fiscal. As maiores despesas dos estados sociais tem sido com saúde e educação, e com “transferências às famílias” (aposentadorias, benefícios sociais, etc.). Piketty atribui particularmente à educação os efeitos positivos de equalização e mobilidade social obtidos no pós-guerra, a rigor, uma espécie de “efeito elevador” que beneficiou as camadas sociais em seu conjunto, com grande variedade entre os países. Em particular, os investimentos públicos em ensino superior, com ampliação do público atendido pelas universidades, teria efeitos positivos para a equalização dos rendimentos. O sistema fiscal do séc. XX só foi possível devido a introdução de impostos progressivos, que inicialmente financiaram os esforços de guerra e em seguida a construção do estado de bemestar social. Porém, as reformas liberalizantes dos anos 1970 e 1980, na Europa e nos Estados 47

Unidos, têm enfraquecido os princípios de progressividade fiscal, especialmente no que se refere à tributação dos rendimentos de capital e do “1%” superior. A progressividade assumiria a forma de uma curva em forma de sino, na qual o percentual da renda tributada (em relação ao total da renda das famílias) cresce dos setores mais pobres para as camadas médias, mas decai nos níveis mais altos de renda. De acordo com Piketty, se essa regressividade se mantiver, terá por efeito o aumento da desigualdade e da concentração de capital. A razão dessa regressividade no topo da pirâmide é que os rendimentos de capital têm escapado ao barema fiscal progressivo e os impostos sobre altos salários foram atenuados, o que favoreceu ainda a própria decolagem dos salários dos altos executivos. O problema da regulação do capitalismo no séc. XXI apresenta-se todavia de forma distinta em relação ao século passado. Já não parece suficiente confiar na ampliação da arrecadação fiscal dos estados nacionais e na progressividade fiscal como estratégias para sustentar estados de bem-estar social, ou como diz o autor, para regular o “capitalismo patrimonial mundializado” não é suficiente reorganizar o programa social-democrata do séc. XX, é preciso inventar novos instrumentos. A razão disto é a imensa mobilidade de capitais produzida pela globalização, que reduz a efetividade de instrumentos de controle puramente nacionais, exigindo a construção de redes complexas de cooperação internacional. Barreiras protecionistas ou políticas unilaterais de controle de capitais tendem a ser cada vez menos eficientes na nova economia mundo e provocar acirramento de tensões entre países, sem atingir os objetivos intencionados. Neste sentido, a análise de Piketty está em sintonia com outras que percebem a ultrapassagem do modelo estatal westfaliano predominante no séc. XX, fundado na plena soberania estatal no espaço delimitado pelas fronteiras nacionais. As transformações no capitalismo e na sociedade globais apontam para um conjunto de processos que, se não prescindem dos estados nacionais, alteram significativamente suas funções, suas possibilidades e por certo a dinâmica dos conflitos. O repertório do séc. XX, excessivamente centrado na soberania ilimitada do estado nacional, revela-se inadequado para enfrentar os desafios da globalização, tanto para lidar com o aumento das desigualdades, quanto para os desafios de organização da democracia política. Os efeitos da globalização transcendem a capacidade de controle dos estados nacionais, de modo que políticas nacionais tornam-se simplesmente ineficientes para contrarrestar a dinâmica de acumulação do capitalismo financeirizado. Esta 48

dinâmica exige a construção de instituições de cooperação e governança internacionais com poderes para criar ambientes apropriados de regulação econômica. Esta é também uma exigência do desenvolvimento da democracia, pois a ineficiência dos estados nacionais, organizados com base em instituições democráticas, é percebida pelos cidadãos como ineficiência da democracia. De forma que a saída deve ser a projeção de instituições democráticas no plano internacional, isto é, o movimento para alguma forma de democracia cosmopolita. A insistência no velho repertório, se levada a cabo, seria ineficiente, solapando a democracia, ou arriscaria fazer retroceder as redes de integração globais, recriando estados e economias mais ou menos autárquicos, o que não parece desejável, seja do ponto de vista do desenvolvimento, seja do ponto de vista da democracia. Assim, os problemas da desigualdade e da democracia estariam a exigir, conforme Piketty, um movimento mais decidido em direção à cooperação internacional, ou mesmo a uma democracia cosmopolita. A regulação dos fluxos econômicos dependeria da criação de alguma forma de imposto mundial sobre o capital, que além de auxiliar a diminuição da elevada rentabilidade, provesse uma base ampla de informações sobre a economia global, gerando transparência sobre patrimônios e ativos, de forma a auxiliar a contenção de crises financeiras e frear a espiral da desigualdade. A criação do imposto mundial, embora tenha certo sabor utópico, seria uma “utopia útil”, que além de apontar a direção correta, poderia ser feita por etapas, aproveitando iniciativas de coordenação econômica em curso, tais como as redes de informação usadas para dar transparência a informações bancárias ou lidar com paraísos fiscais. A União Europeia é certamente um espaço privilegiado de desenvolvimento de políticas de coordenação e governança do capitalismo global, e Piketty coerentemente perfila entre os que querem seu aperfeiçoamento. A via para tanto não é, todavia, a da austeridade fiscal que tem marcado o discurso econômico dominante, por premiar os detentores de títulos da dívida pública em detrimento de interesses gerais do desenvolvimento econômico. O ponto central parece ser a democratização das instituições europeias, pois se a moeda única exige instrumentos de política fiscal soberana sobre assuntos que escapam ao controle estrito dos estados nacionais, apenas um poder público continental e democrático teria legitimidade para regular o capitalismo patrimonial e reerguer o estado de bem-estar social, argumento que se aproxima do defendido por autores como Habermas. Em tempos de globalização, a democracia deve necessariamente transcender as fronteiras dos estados nacionais, sob pena de sua desmoralização, por ineficiência, ou do 49

retrocesso nos processos de integração. Assim, o que Piketty propõe é um deslocamento decidido do repertório político das esquerdas para o espaço das instituições globais e de cooperação internacional, enfrentando o problema de sua democratização como chave para a regulação do capitalismo. Seu horizonte é o de uma democracia cosmopolita capaz de dar eficiência às decisões de uma cidadania transnacional e de submeter os movimentos do capital às regras do direito e às decisões majoritárias. A seu argumento, poderíamos acrescentar que o movimento atual tem sido o de uma aliança entre estados nacionais e forças do capitalismo global, muitas vezes em prejuízo das decisões democráticas. Os estados nacionais, como já apontou por exemplo Bob Jessop, constituem-se no cenário global enquanto “estados competitivos” que procuram assegurar vantagens comparativas às redes de capital instaladas em seu território. Competição que tem sido deletéria para a proteção social, para o avanço de direitos e especialmente para as populações mais vulneráveis, mas que tem favorecido a acumulação de capitais. No conflito entre estados, mercados globais e cidadania democrática, é a última que vem sendo derrotada, e é por meio dela que Piketty imagina recriar o repertório político da esquerda. Assim, a grande lição de Piketty é que, deixadas a si mesmas, as forças do capitalismo global produzirão uma desigualdade social jamais vista e isto não por imperfeições do livre mercado, mas justamente por mercados perfeitamente livres, pois desregulados. Não há virtuosidade natural neste desenvolvimento, mas fortes conflitos. De certa forma é uma reversão das expectativas de Tocqueville, que via no movimento de uma providência inescrutável a marcha inevitável da igualdade – e temia que, mal governada, pusesse em risco a liberdade. Agora, já não é a igualdade que aparece no horizonte da história, e não é ela quem põe em risco a democracia, a liberdade e as chances de emancipação dos homens, mas a crescente desigualdade criada pelo capitalismo global autonomizado de instituições de controle democrático.

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