Para um novo amanhã: visões sobre aprendizagem histórica

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PARA UM NOVO AMANHÃ

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Visões sobre Aprendizagem Histórica

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BUENO, André; ESTACHESKI, Dulceli; CREMA, Everton [orgs.] Para um novo amanhã: visões sobre aprendizagem histórica. Rio de Janeiro/União da Vitória: Edição LAPHIS/Sobre Ontens, 2016. Ebook. Disponível em: www.revistasobreontens.blogspot.com.br ISBN 978-85-65996-41-9

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ÍNDICE APRESENTAÇÃO p.7 O ENSINO SUPERIOR NA GUINÉ-BISSAU: REFLEXÃO E DESAFIOS Arnaldo Sucuma Universidade Lusófona da Guiné Bissau p.9 A ARTE DE ENSINAR DOS ORIENTAIS André Bueno UERJ p.26 NATIVOS DIGITAIS, IMIGRANTES DIGITAIS: QUINZE ANOS DEPOIS Bruno Leal UFF – Café História p.36 UMA CÂMERA NA MÃO E UMA HISTÓRIA PARA LEMBRAR: MEMÓRIAS DA EDUCAÇÃO NO VALE DO ITAJAÍ/SC Carla Fernanda da Silva IFSC - Jaraguá do Sul p.44 UMA HISTORICIZAÇÃO SOBRE O CONCEITO DE IMPÉRIO E IMPERIALISMO ROMANO PARA A PESQUISA E O ENSINO DE HISTÓRIA ANTIGA DE ROMA Carlos Eduardo da Costa Campos UERJ p.55 EM TEMPOS DE BNCC, ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O ENSINO DE ANTIGUIDADE CLÁSSICA NO BRASIL Claudia Beltrão UNIRIO p.69 HISTÓRIA DAS MULHERES: ENTRE HISTORIOGRAFIA E LIVROS DIDÁTICOS Dulceli Tonet UNESPAR p.79 ESTÁ MAIS DIFÍCIL APRENDER/ENSINAR HISTÓRIA HOJE!? Everton Crema UNESPAR p.87

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É POSSÍVEL APRENDER HISTÓRIA COM A METODOLOGIA WEBQUEST? Fábio Andre Hahn UNESPAR p.96 VALORES COMO OBJETO DE APRENDIZAGEM HISTÓRICA Itamar Freitas UNB p.107 ENSINO DE HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA HISTÓRICA Jorge Luiz Cunha UFSM p.117 ENSINO DA HISTÓRIA ANTIGA E ARTE SEQUENCIAL: ESBOÇOS INTRODUTÓRIOS José Maria Neto UPE p.130

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O ENSINO DA HISTÓRIA ANTIGA E OS LIVROS DIDÁTICOS: REFLEXÕES E QUESTIONAMENTOS José Roberto Gomes & Maria Regina Cândido UERJ p.142 USANDO BIOGRAFIAS PARA ENSINAR HISTÓRIA INDÍGENA Kalina Vanderlei Paiva da Silva UPE p.148 REPENSANDO A REPRESENTAÇÃO DE ESPARTA PARA A PESQUISA E O ENSINO DE HISTÓRIA Luis Felipe Bantim de Assumpção UFRJ p.168 HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA: UM TEMA DA BURNING HISTORY BRASILEIRA Maria Auxiliadora Schmidt UFPR p.178 AS POSSIBILIDADES INVESTIGATIVAS DA APRENDIZAGEM HISTÓRICA DE JOVENS ESTUDANTES A PARTIR DE HISTÓRIAS EM QUADRINHOS (AUTO)BIOGRÁFICAS Marcelo Fronza UFMT p.193

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ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A EXPERIÊNCIA DOCENTE NA GRADUAÇÃO E O ENSINO DAS CIVILIZAÇÕES CLÁSSICAS Maytê Regina Vieira UEPG p.202 ―COMO TREINAR O SEU DRAGÃO‖: A CULTURA HISTÓRICA EM TORNO DA IDADE MÉDIA E A POLÊMICA GERADA PELA BNCC Max Lanio Martins Pina UEG p.210 A EDUCAÇÃO PRECOCE PARA UM INEXORÁVEL FIM: A MORTE NA OBRA DOUTRINA PARA CRIANÇAS (1274-1276) DE RAMON LLULL (1232-1315) Renan Birro & Priscila Viegas UFAP p. 217 O HISTORIADOR, O PROFESSOR E O CINEMA Rodrigo Otávio dos Santos UNINTER p. 240 VAMOS FALAR DE GENÉTICA? UM BREVE OLHAR SOBRE A IMPORTÂNCIA DE CONSTRUIR UMA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA GENÉTICA Rogério Vial UNESPAR p.249 HISTÓRIA E ARQUEOLOGIA EM SALA DE AULA: RELATOS DE UMA EXPERIÊNCIA POSSÍVEL Vanessa Chucailo UNESPAR p.255 O ENSINO DE HISTÓRIA AFRICANA A PARTIR DE ―SUNDJATA OU A EPOPEIA MANDINGA‖: NOTAS PARA O USO DIDÁTICO Washington Santos Nascimento UERJ p.265 FESTAS CÍVICAS ESCOLARES EM PORTO UNIÃO NO ESTADO NOVO Zuleide Matulle UEPG

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APRESENTAÇÃO

A aprendizagem histórica representa, seguramente, o novo desafio da construção historiográfica brasileira. Em curso, seguem projetos buscando definir as metodologias e conteúdos de uma nova mentalidade brasileira. É claro o caráter formador e ideológico dessas propostas – e qual, na verdade, não é? No entanto, a aprendizagem histórica nos revela um campo multifacetado, no qual é possível, entre outras coisas, propor uma formação crítica consciente e autônoma. O jogo dos interesses relaciona-se justamente, pois, a essa consciência e essa autonomia. De que modo podemos enfrentar esse panorama, atuando no ponto fundamental da questão, que é a educação histórica do cidadão brasileiro? Nesse âmbito, a História abandona seu aspecto puramente acadêmico e distante, e torna-se um elemento fulcral na formação social dos indivíduos. A História extrapola a preocupação do curso, do professor, e atinge a todas as camadas sociais, ligadas pela grande comunidade escolar. Pensando nisso, o LAPHIS [Laboratório de Aprendizagem Histórica], promoveu a construção dessa coleção de ensaios, que tratam da questão dos projetos educacionais, dos modos de ensinar, das visões diversas que a aprendizagem histórica pode nos proporcionar. É com grande satisfação que vemos professores das mais diversas áreas da História participando dessa proposta, buscando soluções para os dilemas que encontraremos adiante. Acreditamos que somente a diversidade de ideias e propostas educacionais, relacionadas ao ensino de História, pode realmente nos permitir um quadro mais amplo de entedimento acerca da realidade e do mundo. Fazemos desse volume, pois, uma pequena oferenda pela mudança futura. Agradecemos aos autores por sua gentileza e disposição, Agradecemos aos Leitores por nos auxiliar a compartilhar esses saberes. André Bueno Prof. Dr. UERJ

Dulceli Estacheski Prof. Dt. UNESPAR

Everton Crema Prof. Dt. UNESPAR

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O ENSINO SUPERIOR NA GUINÉ-BISSAU: REFLEXÃO E DESAFIOS Arnaldo Sucuma*

A década de 70 marca o inicio de articulação de alguns esforços por parte do governo Bissau-guineense de discutir o novo projeto educacional após a independência, visando criar institutos de formação. Nos finais dos anos 90, as autoridades Bissau-guineenses começaram a reconhecer a necessidade de valorizar as capacidades nacionais no âmbito da formação, que passava necessariamente pela criação de uma capacidade nacional de formação e investigação, inserção de assistência técnica e valorização de recursos humanos na formação e viabilização de um programa de formação, organização e gestão do mercado de trabalho. Inclusive o Ministério da Educação incluiu no seu Plano-Quadro Nacional ―Educação para o Desenvolvimento Humano‖ no país onde o ensino superior, a pesquisa e o desenvolvimento devem ocupar um espaço privilegiado, deixando de priorizar a formação no exterior como alternativa, sem, no entanto oficializar a criação de uma universidade. Nesta perspectiva começou a germinar a primeira reflexão sobre um projeto que visava instituir uma Universidade na Guiné-Bissau desde os anos 80 até 90 proposto pelo Carlos Lopes, ex-Diretor do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP). A estrutura deste projeto se insere na criação de uma federação das instituições universitárias e para-universitárias existentes no país. Daí nasce a proposta da Universidade de Bissau (UNIBIS), quando em 1997 foi celebrado um protocolo de intenção entre o Ministério da Educação e a Cooperativa de Ensino Universidade Lusíada, prevendo instalação da Lusíada em Bissau. Com a queda do governo de Manuel Saturnino Costa, o projeto foi paralisado (ESTUDO DE VIABILIDADE DA UNIVERSIDADE AMILCAR CABRAL – VOLUME INTRODUÇÃO, 2000, ps. 2, 7). Estes esforços políticos para criar uma universidade na GuinéBissau são plausíveis, porém em nenhum momento apontou-se que foi realizado um estudo de viabilidade para justificar a criação da Universidade de Bissau. Apesar deste vazio era uma proposta que merecia uma atenção do governo e da classe intelectual bissau-

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guineense, fato que não aconteceu devidamente por causa de conflito que existia entre as diferentes tendências políticas no poder. Sobre este processo Odete Semedo, Ministra da Educação e uma das personalidades entrevistadas durante a pesquisa de campo afirma:

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O projeto da UNIBIS proposto pelo Carlos Lopes iria acolher estudantes dos Países da Língua Oficial Portuguesa (PALOP), com campos em Bissau. Tinha uma comissão instaladora composta por: Benjamim Pinto Bul, Dom Settimio A. Ferazeta, Fátima Silva, Maria Odete Semedo, Manecas dos Santos, Paulo Silva. O debate sobre a proposta da UNIBIS ficou parado por um bom tempo quando Carlos Lopes assumiu a diretoria do INEP em 1984, quando ainda o projeto não atingiu o seu amadurecimento, como líder deste processo acabou passando o dossiê para o Ministério da Educação. Em 1997 foi retomada a negociação do projeto que não deu certo devido o conflito político-militar de 07 de junho de 1998. Outro aspecto que contribuiu no fracasso deste projeto estava também nas preferências de vários membros que participavam no processo em que alguns queriam a criação da Universidade Lusíada para substituir a UNIBIS defendida por alguns e outros defendiam a Lusófona posteriormente em 1999 na época em que Galde Baldé era Ministro da Educação (entrevista realizada em 14 de junho de 2012, Bissau). Este cenário de conflito de tendências que é normal dentro de um processo de construção de um projeto político-acadêmico, mas que não foi bem gerido, assim demonstra o início de outros problemas que vieram a surgir depois no processo da institucionalização de uma universidade de domínio público. Em 1999 por intermédio do Governo da Unidade Nacional (GUN) foi criada a Universidade Lusófona Amilcar Cabral (ULAC) em parceria com a Universidade Lusófona, que é uma universidade privada com a sede principal em Lisboa, através de decretos-lei: 6/99 de 3/12/99 que institui ULAC e 16/99 de 3/12/99 instituindo a Comissão Instaladora da ULAC. Conforme consta no estudo de viabilidade da Universidade Amilcar Cabral (VOLUME INTRODUÇÃO, 2000, pp. 7, 8): O projeto da criação da Universidade Amilcar Cabral arranca com a aprovação pelo Conselho de Ministro do

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Governo da Unidade Nacional de 2 Decretos-Lei em 10 de Novembro de 1999. O Decreto-Lei N. 6/99 de 3/12/99 cria a Universidade Lusófona Amilcar Cabral (ULAC). O Decreto-Lei N. 16/99 de 3/12/99 instituindo a Comissão Instaladora da ULAC, empossada no dia 7 de janeiro de 2000. O Governo da Guiné-Bissau, representado pelo Ministério da Educação Nacional, assina protocolo de cooperação com a COFAC (Cooperativa de Fundação e Animação Cultural) entidade instituidora da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT) representada pelo seu Presidente no dia 31 de janeiro de 2000. O Protocolo celebrado tem como objeto a elaboração dos instrumentos normativos da Universidade, do plano de instalação, de ação e de gestão. Após várias discussões entre a Comissão Instaladora e a direção da ULHT e tendo em conta que a Universidade Amilcar Cabral é uma instituição de direito público guineense, decidiu-se, em comum acordo com o Ministério da Educação, de se suprimir a sigla Lusófona, passando a ser denominada doravante Universidade Amílcar Cabral. Esta segunda tentativa de instituir uma Universidade pública na Guiné-Bissau começou com os passos importantes, considerado ideais neste processo a começar pela publicação de decretos aprovado no conselho dos ministros do Governo da Unidade Nacional-GUN (um governo de transição); em seguida a instauração de uma comissão para realizar o estudo de viabilidade sobre a institucionalização de uma universidade pública no país, fato que não tinha acontecido na primeira tentativa da criação da UNIBIS (Universidade de Bissau). Não obstante, os passos começaram a fracassar em relação às outras ações necessárias para construção do ensino superior, tais como a lei de ensino superior, estatuto de carreira docência para as universidades etc. Ou seja, a UAC começou a funcional sem aprovação destes instrumentos fundamentais para construção do ensino superior. O governo instituiu o ensino superior criando uma universidade pública, cuja base se enquadra numa parceria publico-privada entre o Governo e Universidade Lusófona, com a finalidade de atender as demandas do país no que se refere à formação superior dos cidadãos bissau-guineenses e promover o desenvolvimento do país. A criação

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da UAC foi justificada pela necessidade de formar e reciclar quadros, apoio na racionalização do funcionalismo público permitindo assim a solução dos problemas do passado, presente e de futuro a serviço da sociedade. Nos seus objetivos, a UAC recebeu a função de estruturar e federar as instituições de ensino superiores universitárias e para-universitárias num campus universitário; reorientar a assistência técnica voltada para pesquisa científica; proporcionar aos jovens o acesso e continuidade de seus estudos superiores; incentivar a produção científica na Universidade; contribuir na formação de várias categorias profissionais tais como professores do ensino básico e secundário, conselheiros pedagógicos, inspetores; a retenção de quadros no país e desenvolver cooperações no âmbito da CPLP (Comunidade dos Países da Língua Portuguesa), da sub-região, da Europa e Américas a fim de potencializar a UAC.

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Em relação aos países da CPLP, dada a facilidade linguística entre os países membros, foi necessário ampliar os espaços de fortalecimento de relações técnicas e de transferência de tecnologia no âmbito da construção de conhecimento científico entre as instituições do ensino superior capaz de promover a inovação de buscar novas tecnologias que permitissem atender as demandas do desenvolvimento social, educacional, econômico e saúde em todos os países membros da comunidade. Segundo Vaz Lopes (p. 27, 2008): As Universidades e Institutos Superiores são e podem ser cada vez mais, no contexto do relacionamento entre os Estados de Língua Portuguesa, instrumentos de desenvolvimento, contribuindo para redução de pobreza e para criação de comunidades sustentáveis, melhorando a educação e as competências, promovendo a igualdade das oportunidades entre os jovens de diversas condições sociais e entre gêneros, promovendo um clima favorável à disseminação do conhecimento e à sua aplicação prática na sociedade e nas empresas, promovendo o crescimento da produtividade e, por via da inovação, estimulando o emprego, e também apoiando a melhoria dos sistemas de governação, na saúde, na educação, na vertente ambiental e de ordenamento do território, em suma, na criação de fatores de competitividade das nossas Nações no exigente contexto da globalização. Neste sentido, o empenho dos Estados membros da CPLP na promoção da cooperação que provam o desenvolvimento

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comunitário assessorado pelas instituições do ensino superior é extremamente útil, necessário e urgente. A criação da Universidade Amilcar Cabral pelo governo da GuinéBissau abriu as portas para o nascimento das universidades privadas que começaram a surgir a nível nacional. Esta proliferação das instituições de ensino superior apresenta uma nova fase no processo educativo no âmbito do ensino superior. Porém, foi necessário que o governo e assembleia criassem regras capazes de habilitar e orientar o funcionamento dessas instituições. Segundo dados DGEPASE (Direção Geral dos Estudos Planificação e Avaliação do Sistema Educativo) órgão pertencente ao Ministério da Educação, as instituições do ensino superior recenseadas no país no ano letivo 2007/2008, compreendem 11 estabelecimentos, dos quais 05 Universidades (entre as quais Universidade Colinas do Boé/UCB em 2003, Universidade Católica da África Ocidental/UCAO em 2007, Universidade Jean Piaget (UJP) em 2009, e 06 grandes escolas de formação (entre as quais Escola Nacional de Administração/ENA, Escola Superior da Educação/ESE em 2010/2011), todas elas públicas. A taxa de acesso ao ensino superior: 4,8% (fonte: DGEPASE-2009), número de estudantes/100.000 habitantes: 351 (fonte: DGEPASE-2009), taxa de inscrição de estudantes: 33,3% (fonte: DGEPASE-2009). Em termos de estratégia institucional, a UAC é uma instituição de direito público cuja gestão é confiada a título de concessão a uma entidade gestora FUNPEC (Fundação para a Promoção do Ensino e da Cultura) criada para o efeito. Esta entidade bissau-guineense compõe com a COFAC (Cooperativa de Formação e Animação Cultural, pertencente a Universidade Lusófona) uma sociedade Luso-Guineense de gestão da UAC. O modelo da gestão abrange várias instituições de nível universitário, politécnico, técnicoprofissional e formação contínua. A FUNPEC é uma instituição gestora da UAC sem fins lucrativos. Esta gestão inclui as infraestruturas, equipamentos e fundos públicos e são propriedades da UAC cedidas à FUNPEC para efeitos da gestão conforme previsto na 1ª clausula do contrato de concessão do serviço público que permite o governo facultar à FUNPEC a utilização e gestão para fins acadêmicos (ESTUDO DE VIABILIDADE DA UAC - VOLUME INTRODUÇÃO, 2000). A criação da FUNPEC demonstra a dimensão do poder e responsabilidade que o governo bissau-guineense possui na gestão

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da Universidade Amilcar Cabral. Por isso, o governo no âmbito de sua competência precisa zelar pela fiscalização rígida dos trabalhos da FUNPEC, que deve ser feito através do Ministério da Educação a fim de acompanhar de perto a situação da UAC. Mas para que a fiscalização governamental seja transparente é necessário que o governo cumpra com as obrigações que tem dentro da universidade. Questionado sobre a importância da FUNPEC, Tcherno Djaló, exReitor da UAC, afirma que: A FUNPEC e COFAC têm a missão de garantir uma gestão criteriosa e transparente dos recursos que são alocados; prevenir a interferência da classe política nos assuntos acadêmicos, ou seja, evitar que haja nomeações políticas nos cargos acadêmicos (entrevista realizada em 31 de Março de 2012, Bissau).

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Neste sentido, a comissão instaladora da UAC teve uma visão técnica coerente, a saber: de proteger ou salvaguardar parte de autonomia da universidade que visa valorizar as conquistas acadêmicas dos professores, funcionários administrativos, estudantes e promover a construção de um caminho sólido que a UAC deve percorrer em busca de excelência acadêmica que lhe permitirá um dia estar entre as melhores universidades africanas e mundiais. Segundo estudo de viabilidade da UAC ficou determinado que a população estudantil na universidade fosse composta pelos alunos de últimos anos do liceu relativamente ao 10º e 11º anos. Estes alunos são potenciais alunos para as turmas dos pré-universitários, que irão ingressar nos cursos de ensino médio especializado. Os alunos provenientes do pré-universitário foram distribuídos pelos respectivos cursos das faculdades e institutos, através de percentagens estimadas. Para ingressar no Ensino Médio Especializado o aluno precisa terminar 10º ano de escolaridade. Se esse aluno quer entrar no curso de Ensino Superior Politécnico que confere o título de bacharelado ou no curso de Ensino Superior Universitário que confere o título de licenciatura teria que terminar 11ª classe e fazer exame de admissão ou ingressar no Préuniversitário. No seu modelo estrutural, a UAC integra ensino Politécnico, Técnico-profissional e Universitário, assim formando um corpo universitário com Escolas Superiores, Institutos e Faculdades organizadas da seguinte forma: Faculdades – Medicina e Ciências da Saúde (medicina e enfermagem), Faculdade de Ciências Econômicas e Sociais (que inclui formação profissional e ténicoprofissional em gestão e administração no CENFA, Departamento de

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Economia e Departamento de Sociologia), Faculdade de Letras, de Ciência da Educação, da Comunicação e de Informação (que inclui departamentos de Escola Normal Superior ―Tchico Té‖ vocacionado para formação de professores do ensino básico e secundário geral até 9º ano), departamento de Letras que possui a função de formar professores para o Ensino Secundário Complementar (10ª, 11ª, e 12ª classe) e Licenciaturas em Línguas Modernas, Faculdade das Ciências da Comunicação e da Informação, Faculdade de Direito; as Escolas Superiores são 04: Escola Nacional de Educação Física e Desportos, Escola Nacional Superior de Artes e Ofícios, Escola Normal Superior ―Tchico Té‖ e CENFA/Escola Superior de Gestão e Administração – que faz parte de Ciências Econômicas e Sociais; Institutos Superiores são dois: Instituto Superior de Ciências e Tecnologia, Instituto Superior de Ciências Agrárias e Veterinárias (Estudo de viabilidade da UAC - volumes cálculos previsionais e introdução, 2000). O estudo de viabilidade permitiu que a UAC fosse estruturada de forma abrangente, permitindo albergar os cursos que seriam muito importantes para o país e que atendam as demandas da sociedade em geral e se enquadrem dentro da vocação ou potencialidades que o país possui. Não obstante, houve lacunas no campo operacional em relação ao funcionamento de alguns cursos propostos para funcionar que não chegaram de funcionar, tais como Instituto Superior de Ciências e Tecnologia; Instituto Superior de Ciências Agrárias e Veterinárias; Escola Nacional Superior de Artes e Ofícios. Estes cursos constituem áreas fundamentais para o desenvolvimento da Guiné-Bissau, sobretudo na área agrícola, visto que o país tem um vasto potencial no âmbito agrícola e na criação de animais. Segundo Tcherno Djaló primeiro e ex-Reitor da UAC: Nunca foi explicitamente assumida a vontade política para viabilizar o projeto de ensino superior por parte da classe política. A ideia de federação das instituições de formação que já existiam no país dentro da UAC e criação de algumas novas instituições de ensino superior proposta no estudo não chegou a funcionar por falta da vontade política (entrevista realizada em 31 de Março de 2012, Bissau). Neste sentido é possível perceber a causa que motivou o não funcionamento das instituições supracitadas e de um funcionamento

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pleno da proposta da federação das instituições do ensino que já existiam antes da criação da UAC. Ou seja, o impasse foi motivado pela falta de vontade política do governo e da classe política em geral que não se empenhou suficientemente na defesa de um ensino superior a serviço da sociedade guineense.

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A Universidade Amilcar Cabral (UAC) no seu primeiro ano começou a funcionar com 1244 alunos no curso Pré-universitário em 2003/2004. Vale salientar que o pré-universitário só existiu na universidade, porque nos liceus bissau-guineenses não existia 12º ano de escolaridade, fruto de carência de políticas educacionais consistente para o sistema educativo guineense. Os alunos da UAC têm a obrigação de pagar mensalidade, que garanta a sua permanência na instituição, que era no valor de 10.000 Fcfa quando a universidade iniciou seu funcionamento em 2003/2004. Vale salientar que Fcfa significa (Franco de Comunidade Financeira Africana. Na época da colonização esta moeda significava Franco de Colônia Francesa Africana). 10.000 Fcfa correspondem aproximadamente USD 24 dólares americano, equivalente a R$ 49, 36, podendo variar de acordo com o câmbio. Vale ressaltar que o piso máximo do câmbio de dólar para Fcfa estipulado pela União Econômica Monetária Oeste Áfricana/UEMOA (Uma organização sub-regional que regula a moeda e política monetária) é: USD 1 dólar americano = 475 Fcfa, segundo site perspectivas econômicas na África/PEA. Nas declarações do então Reitor da UAC, Tcherno Djaló: O orçamento da UAC era composto por propinas mais o complemento inscrito no Orçamento Geral do Estado (OGE). Com o dinheiro vindo das propinas pagas pelos alunos serve para cobrir uma parte do custo de funcionamento da universidade comprando consumíveis (resmas, combustível e outros), pagamento dos funcionários administrativos e professores. Esta ação dos alunos demonstra uma consciência participativa no destino da UAC (entrevista realizada em 31 de Março de 2012, Bissau). Uma das grandes dificuldades da maioria dos alunos da universidade está no pagamento da mensalidade, visto que os encarregados de educação dos alunos são funcionários do Estado que possuem um piso salarial muito baixo e insuficiente para cobrir as despesas alimentares, saúde e educação, onde ainda são

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descontados neste baixo salário são descontados os impostos. Sendo assim, o governo deveria assumir a despesa de propina cobrada pela universidade, que é um dever do Estado atender as demandas da sociedade em diferentes aspectos. Aliás, o Governo deveria criar uma universidade pública mantida plenamente pelos recursos públicos do estado, permitindo que todos os cidadãos tenham possibilidades de acesso ao ensino superior. Sendo assim, esta possibilidade evitaria a criação de uma universidade com base numa parceria publica-privada como aconteceu no caso da UAC. Mas uma vez sendo criada a UAC resta empreender esforços conjuntos por parte dos entes da cooperação a fim de implementar o projeto. Portanto, falta do engajamento total do governo na criação de uma universidade pública mantida pelo estado levou os alunos a pagarem propinas numa universidade de direito público sustentada por uma parceria público-privada, assim como impediu a entrada de muitos jovens que não têm condições financeiras para ingressar na universidade. É importante incentivar a consciência participativa dos estudantes no destino da universidade em diferentes aspectos da vida pública e acadêmica. Mas quando se trata da questão financeira voltada para pagamento da mensalidade é necessário analisar melhor as condições objetivas com que a sociedade guineense enfrenta. Por isso, este aspecto deveria merecer uma atenção especial quando o governo pretendia celebrar acordo com a Universidade Lusófona. Segundo Tcherno Djalo: Foi a Universidade Lusófona que financiou integralmente a reabilitação da infraestrutura da UAC, colocando cadeiras e todos mobiliários, assim como forneceu móveis para CENFA, ENEFD sem nenhuma participação substancial do governo da Guiné-Bissau (entrevista realizada em 31 de Março de 2012, Bissau). Este cenário demonstra mais uma vez o fraco engajamento e participação do governo no acordo. Isso dá margens para identificarmos as possibilidades de ver os projetos de interesse nacional serem personalizados por um grupo de indivíduos inseridos no processo. Portanto, em relação ao engajamento com mensalidade dos alunos e infraestruturas da UAC, o Estado desempenhou um papel muito mais deficiente do que estabilizador. O Estado bissauguineense precisa dinamizar mais a sua economia a fim de poder ampliar a sua capacidade de investimento no campo da educação, sobretudo no ensino superior. Nas formulações de Robert Dahl (1997, p. 86):

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Uma economia avançada não só pode como deve reduzir o analfabetismo, disseminar a educação em geral, ampliar as oportunidades de educação superior e fazer proliferar os meios de comunicação. Não só pode produzir uma força de trabalho instruída como precisa dela: trabalhadores que saibam ler e escrever, trabalhadores especializados capazes de ler projetos e executar instruções escritas, engenheiros, técnicos, cientistas, contadores, advogados, gerentes de todos os tipos. Após a sua criação, a UAC funcionou por um período de 05 anos. Posteriormente, o acordo celebrado entre o Ministério da Educação, representando o Governo, e a Universidade Lusófona foi suspenso em 2008. Neste sentido, ficou evidente que o foco de conflito entre o Governo e Lusófona cinge na questão Institucional, que envolve o cumprimento de acordo, e financeira. A partir desta suspensão do acordo, a Universidade Lusófona da Guiné (ULG) assumiu a continuidade de formação dos alunos que estudavam na UAC.

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Em relação aos professores que lecionaram na UAC e ULG podemos constatar os seguintes dados numéricos: a Universidade Amilcar Cabral, ao longo do seu funcionamento teve o total de 09 professores doutores que recebem por hora 4.750 Fcfa (Franco de Comunidade Financeira Africana. Na época da colonização esta moeda significava Franco de Colônia Francesa Africana), aproximadamente USD 11 dólares americano; 22 mestres que recebem por hora 3.500 Fcfa, que corresponde aproximadamente US$ 9 dólares americano e 63 licenciados ou graduados que também recebem 2.750 Fcfa, valor correspondente aproximadamente USD 07 dólares americano; os professores convidados – externos – ganhariam com base numa média ponderada em torno de 10.000 Fcfa conforme consta no mapa do pagamento de julho de 2008 da UAC. O valor pago aos professores convidados atinge aproximadamente USD 24 dólares americano. Enquanto que a Universidade Lusófona da Guiné-Bissau conta com 08 professores com título de doutor, 37 mestres e 64 licenciados ou graduados, que continuam a receber por hora de aula os mesmos valores que os doutores, mestres e licenciados ou graduados recebiam na UAC, conforme consta no mapa de pagamento de março de 2011 da ULG. Não existe o piso básico do salário de professores universitários na UAC. Portanto, os professores recebem por hora de aula dada. Vale salientar que até

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2011 não existia nenhuma lei que aprova o salário básico de professores universitários. A UAC começou a funcionar com poucos doutores e mestres. A grande maioria dos professores é graduado/licenciados, mas este cenário poderia evoluir paulatinamente. Neste sentido sugere-se que haja um período probatório de primeiros cinco a dez anos de funcionamento no qual a universidade permita que graduados ou licenciados lecionem nos cursos de graduação, na medida em que vão chegando quadros com especialização ou mestrado os graduados seriam substituídos. O piso de pagamento dos professores na UAC por uma hora de aula é muito baixo para atrair os quadros guineenses que vivem do exterior. Por isso, para que haja uma política salarial atrativa capaz de ser convidativa a professores e evitar a fuga dos intelectuais habilitados para ensinar na universidade é necessário rever a política salarial de professores. É verdade que o estudo de viabilidade da UAC levou em conta o salário praticado na administração pública e no país em geral mais a inflação. Conforme consta no estudo de viabilidade da UAC volume I introdução (2000, p. 20): ―A Universidade Amilcar Cabral apostará na aplicação de uma política salarial mais atraente do país, garantindo assim a atual disponibilidade para o ensino e a pesquisa do seu corpo decente (...)‖. Por outro lado é preciso levar em consideração outras variáveis, tais como o valor pago aos professores nas universidades em funcionamento na nossa sub-região. Tentar praticar uma política salarial que se enquadrasse dentro desta perspectiva, permitindo que a UAC pudesse iniciar o seu funcionamento num nível de competitividade institucional razoável a nível sub-regional, contando com maior apoio do governo da Guiné-Bissau que deve priorizar os investimentos financeiros na UAC cobrindo despesas com infraestruturas, pesquisa, extensão, salários dos professores e outros. A falta de medidas estruturantes que pudessem garantir o melhor funcionamento consistente da universidade e do engajamento do governo em avaliar rigorosamente o funcionamento de acordo com a Lusófona acabou por gerar uma crise institucional da UAC, que motivou a suspensão do acordo. Segundo Tcherno Djaló: A Lusófona retirou do acordo porque o governo da Guiné-Bissau não estava cumprindo com suas obrigações. Por isso, a Lusófona pediu a suspensão do acordo celebrado com a UAC até quando o governo estiver em condições. Depois deste impasse decidiu-se

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criar a Universidade Lusófona da Guiné (ULG) para dar continuidade aos trabalhos da UAC permitindo que os alunos terminassem seus estudos. Em maio de 2011 a ULG entregou 349 diplomas de licenciatura (entrevista realizada em 31 de Março de 2012, Bissau).

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O contexto acima nos permite perceber a fragilidade política e financeira do governo Bissau-Guineense no que tange ao cumprimento do acordo ora suspenso. Analisando o histórico do governo Bissau-Guineense referente aos acordos assinados no campo da institucionalização de uma universidade pública, verificase que sempre foram feitos acordos com as universidades privadas. O primeiro acordo foi assinado em 1997 com Universidade Lusíada que não chegou a funcionar e o segundo feito em 1999 com Universidade Lusófona que funcionou por pouco tempo. Estes fatos nos levam a perceber que o governo guineense tem dificuldades de se comprometer na criação de universidade pública mantida pelos recursos públicos do estado, preferindo compartilhar esta responsabilidade com as instituições do ensino privado. No entanto, mesmo numa parceria público-privada o governo tem tido dificuldades de honrar com suas responsabilidades, um exemplo concreto que podemos citar é o caso da suspensão de acordo entre a Lusófona e o governo. Portanto, o envolvimento do governo no sistema educacional é muito pouco. Se formos ver o Orçamento Geral do Estado de 2011, o governo disponibilizou 11. 808. 634 milhões de Fcfa para o Ministério da Educação que gera algo em torno de USD 55. 726 mil dólares americano, sendo que dos 100% deste orçamento 40% do orçamento total são reservados para execução de 13 programas/projetos, tais como: Programa Mundial de Alimentos ―Saúde e Nutrição‖, cantinas escolares e reabilitação de educação; Reabilitação, Instalação e Reforço de capacidade Institucional de ―Formação de Professores e Integração de um sistema de Exames Nacionais‖ Projeto de Apoio a Criação de Ambiente Favorável a Criação nas Regiões; Educação às meninas e Apoio a Política Educativa; Programa Educação base e Igualdade dos Gêneros. 100% do total de 40% do orçamento global do Ministério da Educação destinado para programas/projetos 22% vêm de empréstimos contraídos, 3% resultam da participação do governo através da receita interna, 75% vem de doações. No que tange ao Ministério da Defesa, o governo disponibilizou 9. 517. 535 milhões de Fcfa, que corresponde aproximadamente USD 45. 208. 291 dólares americanos, deste montante 3,81% vêm da participação do governo

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por meio da receita interna. Os dados acima apresentados demonstram a incapacidade financeira do governo em manter o funcionamento de suas instituições através da receita interna, visto porque depende muito de doações e empréstimos, que nem sempre chegam. Quando afirmamos que o governo tem um empenho fraco em relação ao sistema educativo, partimos do pressuposto de que quando o governo disponibiliza 3% de recurso interno para o investimento no setor educativo, que é muito pouco, demonstra explicitamente que não existe possibilidade efetiva do governo promover o desenvolvimento do setor educativo guineense. Inclusive, o recurso interno que o governo aplica no Ministério da Defesa é pouco superior ao recuro investido no setor educativo. Dada esta situação, o governo precisa melhorar o seu mecanismo de aplicação de recurso e ampliar a quantidade de recurso interno para investir nos setores chaves da produção como educação por meio de financiamento de projetos de pesquisas e de capacitação, tendo em conta que o setor educativo tem um potencial forte para trazer retorno financeiro para o governo e melhorar os indicadores sociais. Esta conjuntura demonstra certa dependência externa do país, sobretudo no âmbito financeiro para levar adiante o seu projeto público de ensino superior. Teresa Cruz e Silva na sua reflexão sobre as características comum dos países de PALOP sobre ensino superior afirma que (2005, p. 35) ―um perfil comum caracteriza as instituições de ensino superior destes países: dificuldades de acesso a recursos; elevada dependência de doações externas para o ensino e, particularmente, para pesquisa‖. Este aspecto demonstra o grande desafio que o Estado guineense tem para tentar diminuir essa dependência. Ao longo do funcionamento da UAC, o sistema de avaliação das Instituições de Ensino Superior (IES) do Ministério da Educação era muito precário. Esta avaliação se limita a apresentação de relatório apresentado ao Ministério pelos Reitores das IES que operam no país. De acordo Rui Jandi (Reitor da Universidade Lusófona da Guiné/ULG): O governo, através do Ministério da Educação Nacional, Ciência, Cultura, Juventude e Desporto exerce a fiscalização dessas instituições por meio da apresentação de relatórios sobre a sua atividade pedagógica. Neste momento, não existe incentivo financeiro para as instituições de ensino superior privada. Mas há diligencias por parte do governo no sentido de concessão

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de bolsas de estudo aos estudantes, o que poderá proporcionar incentivo financeiro do governo para as universidades (entrevista realizada em 28 de Maio de 2012, Bissau). Esta forma de avaliar as IES (Instituições de Ensino Superior) exclusivamente por meio relatório de atividade pedagógica é muito vulnerável e insuficiente, porque o relatório de atividade apesar de ser um instrumento importante nem sempre traduz toda realidade empírica nas universidades. Por isso, deve ser acompanhada com visitas de campo como forma de confrontar os fatos relatados no relatório com a realidade acadêmica vivida nas instituições de ensino superior. A falta de incentivo financeiro par parte do governo às instituições de ensino superior atribuindo bolsas de estudo e entre outros diminui a possibilidade promover um crescimento consistente e desejável das universidades e desestimula a produção de conhecimento nos alunos.

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Os conselhos instituídos dentro da UAC, tais como Conselho Universitário, Conselho Científico, Conselho Consultivo e outros constituem elementos fundamentais para o melhor funcionamento da universidade. No entanto, a não aprovação dos instrumentos legais voltados para ensino superior, como é o caso da lei de ensino superior dificultou o melhor funcionamento operacional dos referidos conselhos. Na busca de construir um caminho mais consistente nas instituições de ensino superior, o governo, no âmbito da reforma no setor educativo, por intermédio do Ministério da Educação Nacional, Cultura, Ciência, Juventude e dos Desportos publicou no boletim oficial despacho No 24/2010 (p. 1 – 2) assinado pelo Ministro Artur Silva no dia 24 de agosto de 2010, estabeleceu a revisão curricular do ensino secundário, que implica a introdução do 12º ano de escolaridade como o último do ensino secundário na Guiné-Bissau a partir do ano letivo 2010/2011 e os alunos que concluíram o 11º ano até o ano letivo 2009/2010 puderam optar entrar diretamente para o ensino superior cumprindo aí o primeiro ano preparatório quando haja ou completar o 12º ano. Em 30 de setembro de 2010 o mesmo Ministro publicou no boletim oficial o despacho No 38/2010 (p. 11) artigo 1º determinando que o 12º ano seria implementado já no ano letivo 2010/2011 com uma determinação de adoção do programa de ensino para 12º ano fornecido pelo Ministério. No dia 29 de agosto de 2011 o Ministério publicou no boletim oficial outro despacho No 11/2011 (p. 23), que no seu artigo 1º fixa extinto o ano preparatório

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para o ingresso no ensino universitário e afim para todos os alunos que tenham concluído o 12º ano ou equivalente, no artigo 2º determina o acesso ao ensino universitário ou a fim é admitido somente aos alunos que já terminaram o 12º ano ou equivalente. O artigo 5º determina que seja equivalente ao 12º ano alunos que tenham concluído três anos de escolaridade subsequente ao termino do 9º ano de escolaridade nas escolas de formação técnicoprofissional. Estes despachos motivaram o Ministério a criar um grupo de trabalho para construir o currículo escolar para 12º ano de escolaridade contratando especialistas internacionais que juntaram num grupo de trabalho com os técnicos do Ministério. Neste momento 12º ano é uma realidade no ensino secundário bissauguineense. Vale salientar que, apesar do governo assumir a necessidade de implementar o 12º ano no ensino secundário era necessário primeiro criar as condições objetivas que irão permitir o melhor funcionamento do 12º ano. A falta de tempo suficiente para elaborar o currículo escolar, a falta de professores licenciados suficientes para lecionar em todos os liceus do país bem como as precárias condições de trabalho dos professores contribui para ineficiência na efetivação qualitativa do 12º ano e do sistema educativo bissau-guineense. Existe a necessidade de criar mecanismos que ajudem fortalecer o ensino secundário guineense, visto que é porta de entrada para o ensino superior. Este fortalecimento passa também pela adequação do sistema de ensino que atenda a realidade sociocultural do país capaz de construir uma geração de intelectuais que tenha condições de racionalizar o desenvolvimento do da Guiné-Bissau, evitando assim o risco não ficar preso exclusivamente aos modelos educacionais ocidentais. Segundo Cardoso (1998, p. 95): (...) a nova abordagem que dominara os primeiros anos de década de 70 e que via a educação ao serviço de uma sociedade para um novo homem, uma nova nação, um novo modelo de sociedade não conseguiu vingar. (...) a educação que se institui foi uma educação baseada em modelos ocidentais que pouco têm a ver com a realidade sócio-cultural do país. A aposta é feita na língua do colonizador em detrimento das línguas locais.

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Os esforços de tornar competitivo o sistema de ensino secundário devem continuar em nível de ensino superior, visto que construir uma tradição capaz de formar quadros superiores de qualidade aumenta chance de o país ocupar seu devido espaço nas organizações sub-regionais e pelo mundo a fora. Considerações finais

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Em linhas gerais, a institucionalização do ensino superior na GuinéBissau constitui uma necessidade que permite fazer face o desafio de proporcionar os cidadãos guineenses a possibilidade de ter uma formação superior dentro do seu próprio país. Por isso, pode-se considerar que, este processo de institucionalizar ensino superior no país gerou efeito positivo no sentido oferecer a formação superior aos guineenses, que poderá ter um efeito direto no processo do desenvolvimento do país, diminuindo também assim a quantidade de guineenses que procuram realizar a formação superior no exterior e que muitas vezes não retornam ao país natal. Não obstante, a operacionalização da universidade pública Amilcar Cabral conheceu a sua primeira grande crise que obrigou a paralisação do seu funcionamento, fato que foi provocado por duas questões centrais: pela ausência do engajamento político e econômico do Governo no processo, em primeiro lugar. E pelo conflito na gestão do acordo celebrado entre o Governo da Guiné-Bissau e a Universidade Lusófona, que permitiu a criação da Universidade Amilcar Cabral. Apesar de fragilidades institucionais supracitadas e que são evidentes no sistema de ensino superior Bissau-Guineense, entendese que existe potencial técnico e político no seio dos intelectuais e da classe política Bissau-Guineense, e se forem bem aproveitados, poderão trazer bons resultados que contribuam para fortalecimento do ensino superior . Referências CARDOSO, Carlos. Estado e Nação: Para uma Releitura da Construção Nacional na Guiné-Bissau. In. Fundação Amílcar Cabral. Que estados, que nações em construção nos Cinco? Colóquio Internacional de Cidade de Praia, 21 a 23 de março de 1996. PRAIA, 1998. DAHL, Robert A. Sobre a Democracia. Tradução de Beatriz Sidou. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. LOPES, Helder Vaz. ―Das Redes de Conhecimento às Redes de Desenvolvimento‖: o Papel das Universidades na Formulação de

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Políticas Comuns na CPLP. In. ASSOCIAÇÃO DAS UNIVERSIDADES DE LÍNGUA PORTUGUESA (AULP). Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento. XVIII Encontro da Associação das Universidades de Língua Portuguesa. Brasília, Brasil: sersilito, 2008. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO DA GUINÉ-BISSAU. Arquivo da DGEPASE. Bissau, 2007-2011. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO DA GUINÉ-BISSAU. Despacho No 11, Extinto o ano preparatório para ingresso no ensino universitário. Bissau: INACEP - Boletim Oficial No 41, Quintafeira, 13 de Outubro de 2011. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO DA GUINÉ-BISSAU. Despacho Nº 24, Adotado a revisão curricular do ensino secundário, que implica a introdução do 12º ano de escolaridade. Bissau: INACEP - Boletim Oficial No 42, Quarta-feira, 20 de Outubro de 2010. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO DA GUINÉ-BISSAU. Despacho No 38, Adotados os programas de ensino para 12º ano de escolaridade. Bissau: INACEP - Boletim Oficial No 42, Quartafeira, 20 de Outubro de 2010. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO DA GUINÉ-BISSAU. Universidade Amilcar Cabral - Educar, Desenvolver e Promover – Introdução (Estudo de Viabilidade), 2000. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO DA GUINÉ-BISSAU. Universidade Amilcar Cabral - Educar, Desenvolver e Promover – Volume cálculos previsionais (Estudo de Viabilidade), 2000. MINISTÉRIO DAS FINANÇAS DA GUINÉ-BISSAU. Proposta – Orçamento Geral do Estado – OGE. Bissau, 2011. SILVA e Cruz Teresa. Instituições de Ensino Superior e Investigação em Ciências Sociais: A herança colonial, a construção de um sistema socialista e os desafios do século XXI, o caso de Moçambique. In SILVA e Cruz Teresa; ARAÚJO de Manuel G. Mendes. § *Arnaldo Sucuma – Doutorando em Serviço Social/ UFPE, Mestre em Ciência Política pelo Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco/PPGCP – UFPE, Graduado em Serviço Social pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Professor na Escola Nacional de Saúde/ENS e na Universidade Lusófona da Guiné/ULG, membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Regionais e Desenvolvimento/D & R/UFPE, Escritor, Coordenador da Associação Força Guiné (AFG).

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A ARTE DE ENSINAR DOS ORIENTAIS André Bueno

Antes de começar, já faço aquela velha ressalva: não gosto de usar o termo ‗Oriental‘ para definir a vasta Ásia como se fosse uma coisa só. Mas eu também não gosto de títulos enormes, que tentam explicar tudo e acabam ficando com mais de três linhas. Usei o termo ‗Orientais‘ para convocar o leitor. O que faremos aqui, nesse breve texto, é uma rápida visita a três formas de pensar o ato de educar nesse amplo e tão multifacetado ‗Oriente‘. Colhemos três experiências distintas: uma da Índia, uma da China e uma do Sufismo Turco medieval, que apresentaremos de forma comentada.

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E o que poderia nos interessar ler sobre três fragmentos tão antigos, distantes quase três mil anos no tempo, como no caso de Indianos e Chineses? Como exercício sobre a História do Ensino, isso já valeria uma olhadela. Mas devemos fazer uma consideração mais profunda: estamos falando de três modos de pensar a educação que são milenares, e que continuam a existir. Talvez nenhuma teoria ou sistema educacional ocidental tenha alcançado tanto sucesso e tanta durabilidade. O Confucionismo, por exemplo, inspira até os dias de hoje o funcionamento da educação chinesa, no que concerne aos seus principais valores e princípios. Alguém pode objetar: são teorias milenares, mas e daí? Ser tradicional não significa necessariamente ser bom. O fato de essas propostas educacionais continuarem a existir pode significar que essas civilizações são antiquadas, reacionárias e atrasadas. Afinal, Aristóteles não salvou a Grécia do caos econômico – e são poucos os que se atrevem a citar Aristóteles numa conversa contemporânea. Só que a questão se complica quando olhamos para a China, a Índia e a Turquia de hoje: civilizações poderosas, desenvolvidas, cujas culturas milenares alicerçam um desenvolvimento econômico e político renovado, que resistiu e superou as mais duras crises em suas histórias. Talvez, por isso, seria interessante tentar entender o que foi tão bem sucedido em suas histórias educacionais. Outra questão será considerada aqui: por se tratar de um texto aberto ao debate, não nos ateremos exaustivamente às origens históricas de cada fragmento. Isso seria um trabalho demasiadamente longo, e que não daria conta de cobrir todas as possibilidades de abordagem existentes. O que buscaremos, pois, é

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discutir o que de ‗atual‘ essas teorias poderiam nos apresentar, revelando-nos o quanto os antigos ‗orientais‘ já sabiam sobre o ato de ensinar e aprender. Conselhos a um estudante no Taittiriya Upanishad A um Estudante Leigo; Permiti que vossa conduta seja marcada pela ação correta, inclusive o vosso estudo e o ensinamento das escrituras; através da verdade na palavra, na ação e no pensamento; através da autoabnegação e da prática da austeridade; através do equilíbrio e do autocontrole; através da execução das tarefas diárias da vida com um coração alegre e uma mente desapegada. Falai a verdade. Cumpri vosso dever. Não negligencieis o estudo das escrituras. Não interrompais a linha da descendência. Não vos desvieis do caminho do bem. Reverenciai a grandeza. Permiti que vossa mãe seja um deus para vós; permiti que vosso pai seja um deus para vós; permiti que vosso mestre seja um deus para vós; permiti que vosso hóspede também seja um deus para vós. Executai somente ações irrepreensíveis. Mostrai sempre respeito pelos grandes. Qualquer coisa que deis aos outros, dai-a com amor e respeito. Presentes devem ser dados em abundância, com alegria, humildade e compaixão. Se em qualquer ocasião houver qualquer dúvida com relação à conduta correta, segui a prática das grandes almas, que são sinceras, possuem bom julgamento e são dedicadas a verdade. Conduzi-vos sempre assim. Este é o preceito, esse é o ensinamento, e essa é a ordem das escrituras. Em algum momento entre os séculos 8 a 6 AEC, os indianos estavam revisando toda a sua literatura religiosa, contestando-a, discutindo e aprofundando suas investigações metafísicas. Desse movimento emergiriam os Upanishads, vasto conjunto de textos que buscava apresentar as elaborações filosóficas dos pensadores hindus. Essa questão era fundamental para a continuidade de sua civilização: os indianos conseguiram habilmente, ao longo dos séculos, substituir a preocupação com o registro histórico dos eventos pela manutenção dos princípios religiosos e devocionais. A Índia é uma civilização construída pelos seus valores espirituais, que se mantêm os mesmos desde a sua mais remonta antiguidade. Disso resultou a dificuldade perene que temos em estudar a história da Índia pelo viés ‗ocidental‘: sem a arqueologia, seria praticamente impossível saber o

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que, quando ou onde aconteceu alguma coisa. Isso pouco importava, porém, no senso indiano tradicional. O fundamental era a fazer viver a tradição, os valores que agregavam a existência da sociedade. Isso fez com que os indianos conseguissem uma unidade surpreendente de redação em seus textos fundadores, largamente difundidos por meios orais antes de serem fixados pela escrita. E os Upanishads sintetizavam muito dessa busca de uma unidade no pensamento indiano.

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Bem, e o que lemos no Taittiriya Upanishad de relevante para nosso pequeno estudo? Nesse trecho, apresentam-se conselhos para um aprendizado ideal do saber. Se hoje eles nos parecem óbvios, devemos ter em mente que eles foram escritos há praticamente três mil anos atrás. Os redatores do texto já estavam preocupados em tornar a aprendizagem uma atividade sagrada, regida por valores éticos claros e definidos. O momento educativo não importava, somente, a aprendizagem dos textos, mas todo um conjunto de valores que abrangiam a família, os mestres e a vida em sociedade. A experiência indiana, pode-se dizer, transformou a educação numa atividade espiritualizada. Obviamente, ela estava imbuída da necessidade de manter os princípios sagrados do ‗Sanatana Dharma‘ [nome indiano para o que chamamos de ‗Hinduísmo‘], tornando-se igualmente um processo de intenso mergulho nas concepções religiosas presentes na cultura da Índia Antiga. No entanto, é a sua prática que aqui nos interessa: o estudante era levado a experiências diversas de aprendizagem, tanto no domínio dos textos, da escrita, como de atividades físicas e mentais, tais como a meditação, que faziam toda a diferença em seu desenvolvimento. A ênfase no autocontrole, na conduta correta, no desprendimento, e na ação calma e raciocinada constituía o alicerce de um bom aprendizado. Isso orientava os pais a cuidar do comportamento de seus filhos, bem como incutia o respeito nos alunos por seus professores. Os exercícios físico-espirituais davam um contributo significativo à questão da disciplina. Experiências levadas a cabo, no Brasil, mostram que a meditação pode contribuir significativamente para a melhoria da qualidade de vida dentro da escola, tanto para docentes quanto discentes [veja Revista da Educação, n.221; revista Mente e Cérebro Julho/2015 e a reportagem sobre as escolas públicas, no estado do Espírito Santo, que usam a meditação: [Veja em: http://g1.globo.com/espiritosanto/educacao/noticia/2015/09/meditacao-e-usada-como-aliadano-ensino-nas-escolas-estaduais-do-es.html].

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Os métodos apresentados nesse fragmento podem ser criticados por serem fortemente marcados pela questão religiosa, que permeia o cerne do pensamento indiano. Todavia, foi essa mesma postura que conseguiu transformar a Índia de Gandhi [1869 -1948] na primeira nação a obter sua independência pós-colonial por meio de um movimento pacífico. Essa ação espiritualizada inspirou o pastor Martin Luther King [1929-1968] a realizar um processo de resistência semelhante nos Estados Unidos, quando da luta pelos direitos civis. No Brasil atual, está em curso um processo de discussão sobre a presença da religiosidade dentro da escola. Assim sendo, a experiência indiana nos mostra que, se estamos a falar de um ensino espiritualizado, que ensine valores éticos e preza pela coexistência pacífica, pelo respeito ao próximo e pela difusão de um sentimento saudável de amor ao próximo, então, a religiosidade não seria um problema. Contudo, muitas das visões exclusivistas envolvidas nesse processo propõem justamente o contrário: a incitação ao ódio, ao preconceito e ao obscurantismo, que só exacerbam as tensões sociais, levando a exclusão e ao desrespeito humano. Quando isso acontece, os pilares básicos da aprendizagem são enfraquecidos na nascente, e fenece inexoravelmente o projeto de continuidade de uma civilização. O Bom Educador no Liji [Registros Culturais] Ao ensinar, o homem superior orienta seus discípulos sem arrastá-los; convida-os a avançar, mas não os coage; abre-lhes os caminhos, mas não os força a caminhar. Orientando sem arrastar, torna o aprendizado agradável; convidando sem coagir, torna o aprendizado fácil; abrindo o caminho sem forçar à caminhada, faz com que os alunos pensem por si mesmos. Ora, uma pessoa que torna agradável e fácil o aprendizado e faz com que os estudantes pensem por si mesmos será o que se pode chamar um bom mestre. Há na educação quatro inconvenientes muito comuns, contra os quais deve precaver-se o professor. Certos estudantes procuram aprender demais ou demasiados assuntos, outros aprendem pouco ou poucos assuntos, alguns aprendem com demasiada facilidade, outros facilmente perdem o ânimo. Essas coisas demonstram que os indivíduos diferem quanto aos dotes mentais, e só mediante o conhecimento desses dotes o professor poderá corrigir as respectivas falhas: o professor não é senão alguém que faz por incrementar o que há de bom e remediar o que há

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de mau em seus pupilos. Um bom cantor leva os circunstantes a seguirem- lhe o canto, um bom educador leva os circunstantes a seguirem-lhe o ideal: sua palavra é concisa, mas expressiva, ocasional, mas rica de sentido, e ele tem ainda a habilidade de esboçar engenhosos exemplos que o façam melhor compreendido pelos demais. Assim, pode-se dizer um bom educador aquele que faz com que outros lhe sigam o ideal. A educação chinesa é hoje reconhecida como uma das melhores do mundo. Ela consegue a façanha, no Brasil, de reunir positivamente as opiniões de grupos divergentes e tem alcançado os melhores resultados em testes internacionais promovidos para aferir a qualidade da educação ao redor do mundo: [Confira em: http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/o-sistema-educacionalque-fez-da-china-uma-potencia/ e http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=4486 ],

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Não é exagero dizer que o fundamento da educação chinesa é milenar. Ela está calcada na disciplina, na dedicação e no empenho árduo. Os chineses da antiguidade tinham dois desafios pela frente, com os quais teriam que lidar pelo resto de suas vidas: cuidar de uma terra difícil para se alimentarem, e [quando podiam] aprender uma escrita ideográfica que tinha que ser praticada para sempre, exigindo um enorme esforço de memorização. Não que a vida dos chineses fosse simplesmente mais complicada ou mais fácil do que em outras partes do mundo: mas desde cedo eles aprenderam a valorizar o trabalho e o estudo, concomitantemente. Por essa razão, o trabalho do professor – que conjuga ambas as necessidades – é valorizado e destacado nessa sociedade. Somente em épocas difíceis na História Chinesa [como foi a Revolução Cultural de 1966], os professores foram desrespeitados e perseguidos. Na época, o regime político Maoísta apostava que para criar uma nova cultura, era necessário eliminar os seus tradicionais transmissores [os professores]. O resultado foi o que se viu: fome, pestes e calamidades que pareciam não ter fim. A dignidade da docência foi recuperada, nos dias de hoje, a níveis que desconhecemos em nosso país. Para se ter uma ideia da valorização do estudo na China, é comum que os pais ofereceram dinheiro aos professores para que eles cobrem mais de seus filhos na escola. Sim, é isso mesmo: uma espécie de suborno passivo não para facilitar, mas para exigir empenho!

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[As implicações dessa prática podem ser vistas aqui: http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,professor-chinesganha-mais-que-uma-maca,1557888] Os chineses sabem que, sem esforço, não vamos a lugar nenhum. Era o que Confúcio já sabia ao resgatar esse fragmento que vimos há pouco. No século 6 AEC, o sábio mestre chinês estava preocupado em salvar a sua civilização de uma tremenda crise social e política pelo qual ela passava. Para ele, a solução seria recuperar o sistema educacional chinês, estimulando o pensamento e a consciência crítica. No livro Liji [Registros Culturais], Confúcio apresenta um capítulo inteiro dedicado à questão da Educação na China Antiga, propondo detalhes metodológicos e estruturais. Ali, já está presente a concepção do esforço e do aprendizado intensivo. Contudo, Confúcio sabia de outra coisa importante, que nos apresenta nesse trecho: apenas o estudo intenso e cansativo não torna ninguém melhor. É preciso reconhecer as aptidões e tendências dos alunos. É preciso fazer com que o caminho do estudo seja uma via de felicidade e auto-realização do ser humano. Sem isso, ela se torna apenas um preparador profissional. Confúcio defendia que a educação deveria proporcionar uma identificação libertadora: seus alunos eram estimulados a aprender artes diversas, de modo a se realizarem naquelas com as quais encontrassem maior afinidade. Por isso o mestre ideal dá o exemplo: ele conduz, não arrasta; ele chama, e não ordena; ele vivencia o que faz, e não faz apenas por dinheiro. A docência é a medicina preventiva da alma, cuidando da saúde plena do indivíduo por meio de sua preparação libertadora e consciente. Como dizia o próprio Confúcio: ‗encontre um trabalho que você gosta, e nunca precisará trabalhar‘. Por essa razão, trabalhos como o recente livro de Amy Chua sobre a ‗Mãe Tigre‘, que reprime os filhos a exaustão em busca de resultados, é uma excrescência, uma degradação do espírito tradicional de educação confucionista [ou mesmo, chinesa]. Os chineses sabiam – e sabem – que sem disciplina e dedicação, a educação não frutifica; mas estão a colher o resultado de realizarem suas aspirações pessoais, trazendo ao mundo artistas, músicos, intelectuais, cientistas; e todos eles prestam o seu tributo ao professor, esse pilar inexorável na sobrevivência da humanidade. Nasrudin Nasrudin estava sendo esperado em uma cidade. Praticamente toda a população estava reunida na praça para ver o Mullá falar.

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Nasrudin olhou para aquelas pessoas e perguntou: — Vocês sabem sobre o que vou falar hoje? Todos responderam ao mesmo tempo: — Não! — Se vocês não sabem o que vim falar, eu me retiro — e foi embora. Tempos depois a população conseguiu que Nasrudin voltasse à cidade para falar. Mas combinaram que se ele perguntasse novamente se sabiam o que ele ia falar, eles diriam que sim. Quando Nasrudin chegou, ele lhes perguntou novamente: — Vocês sabem sobre o que vou falar hoje? — Sim! Nasrudin disse então: — Se vocês já sabem, eu não preciso falar nada! — e se retirou. Conseguiram então que ele voltasse lá mais uma vez para falar. Dessa vez combinaram que metade diria que sim, e metade que não. Nasrudin então veio, e perguntou mais uma vez: — Você sabem sobre o que vou falar hoje? Metade gritou: Sim! E a outra metade: Não! Nasrudin respondeu: — Muito bem. Então a metade que sabe ensina para a metade que não sabe — e se retirou. Nasrudin foi um sábio sufi do século 13 EC, que passou sua vida no que hoje é a Turquia. Seus ensinamentos destacam-se por uma ‗sabedoria oculta‘: Nasrudin sempre se faz de idiota ou bobo em suas histórias, que contém um fundo moral e filosófico a ser desvendado. O objetivo era estimular a reflexão daquele que a lê, em busca de um sentido mais profundo. Obviamente, aqueles que só leem superficialmente as histórias de Nasrudin pensam tratar-se de piadas. O Sufismo, porém, é um exigente movimento filosóficoreligioso dentro do Islamismo, cujo acesso e entendimento exigem bastante estudo por parte dos seus praticantes. A atribuição de Nasrudin como um mestre sufi é, portanto, um título que implica seriedade e espiritualidade desenvolvidas. Demos um longo salto histórico até aqui, partindo dos indianos e chineses; do mesmo modo, não podemos afirmar que Nasrudin representa a todo o Islã. Contudo, o resgate do fragmento de Nasrudin, presente em nossa conferência, tem um objetivo claro: a

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valorização da autonomia no aprendizado. A postura aparentemente insana e preguiçosa do sábio sufi tinha um propósito: o que sabemos, de fato? O que não sabemos? E o que sabemos que podemos ensinar? E o que não sabemos, que podemos aprender com os outros que estão próximos de nós? Obviamente, não estamos a banalizar a questão do aprendizado. É muito comum hoje, principalmente no Brasil, a desvalorização do docente. As pessoas esquecem que passaram por uma escola e por diversos professores. Agem como se tivessem nascido com habilidade de ler, escrever, fazer contas. Quando erram em qualquer coisa, culpam seus mestres, e não buscam em si mesmo a razão de seus erros. Entendem que desrespeitar seus professores é quase um rito de passagem, da adolescência desgovernada para uma fase cuja denominação está longe de ser adequadamente classificada como ‗adulta‘. Assim, quando se atinge o ápice do conflito dentro da escola e na sociedade, as soluções são extremas: abandonar tudo, e fazer um ensino descompromissado e indiferente, ou, impor um ensino rígido, disciplinador e autoritário. Nasrudin nos chama a atenção para a responsabilidade individual na construção do conhecimento. Quando assumimos, para nós mesmos, a tarefa de educar-nos, encontramos naturalmente a disciplina e o esforço necessário para aprendermos. Artistas, músicos, atletas, cientistas, intelectuais – todos aqueles que foram ou são bem sucedidos sabem que, para alcançarem uma posição de destaque [ou simplesmente, encontrarem a satisfação pessoal], é indispensável o estudo curioso e prazeroso, para além do trivial e exigido na escola. Nesse momento é que encontramos a autonomia do aprendizado, libertadora e consciente, que nos torna seres responsáveis, éticos e plenos. Se achamos isso impossível, é que estamos tão viciados em transferir a culpa de nosso problemas para os outros, que não acreditamos ser possível educar as crianças sem violentá-las ou comprá-las [métodos que, também sabemos, não funcionam]. Algumas experiências, no entanto, nos mostram o contrário. No século 19, Joseph Jacotot, colocado diante da difícil situação de ter que lecionar fora de seu país, em um idioma que lhe era estranho, conduziu uma nova experiência pedagógica –a panecástica – em que os indivíduos atuavam de forma autônoma no aprendizado, obtendo um sucesso significativo. [veja o magnífico texto de Jacques Ranciére, O Mestre Ignorante. Autêntica, 2007]. Mais recentemente, a Escola da Ponte, em Portugal, organizou-se de forma revolucionária: não dispõem de turmas, propõe que os alunos se auto-organizem, se regulem, troquem experiências e

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conhecimentos, e seu regime de estudo é feito por orientação, quebrando a rigidez do sistema de disciplinas. [Veja aqui: http://revistaescola.abril.com.br/formacao/josepacheco-escola-ponte-479055.shtml e também: http://educacaointegral.org.br/experiencias-internacionais/escolada-ponte-radicaliza-ideia-de-autonomia-dos-estudantes/] Seus índices de aprovação são excelentes dentro do país, e a escola sofre muito menos problemas de disciplina do que outras. Por fim, a experiência da Finlândia – notável no quadro mundial da educação – se encaminha para uma integração dos saberes, estimulando o empreendedorismo e o conhecimento holístico por parte dos alunos. [Veja aqui: http://rescola.com.br/finlandia-sera-o-primeiro-pais-do-mundo-aabolir-a-divisao-do-conteudo-escolar-em-materias/ ]

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O que Nasrudin sabiamente nos revelara, pois, é que podemos realmente ensinar uns aos outros; não podemos dispensar a orientação dos educadores, cuja experiência e o conhecimento nos conduzem no caminho da auto-descoberta. Contudo, os alunos precisam ser saudavelmente estimulados a buscar conhecimento, sob o risco de tornarem-se eternamente dependentes, alienados e desprovidos de uma consciência autônoma. Conclusão Esse breve passeio por três opiniões tão antigas, quanto distintas, nos conduzem a uma unidade crucial na história do ensino: é necessário, de alguma forma, priorizar o sentido de educar-se. Nessas três experiências duráveis e bem sucedidas, o fator comum é a questão ética – quer seja dita espiritual, ou simplesmente realizante para o indivíduo. Os milênios de história da aprendizagem entre os ‗orientais‘ nos mostram que, sem a ênfase positiva no ser humano, nenhuma civilização pode durar e alcançar sucesso. A educação mercantilizada mostra que seus aparentes sucessos têm efeitos curtos e limitados, e os danos posteriores se manifestam claramente na escalada de violência, na dependência externa e no vazio existencial que se cristaliza no consumismo e no desregramento. Hannah Arendt percebera isso na educação norte americana, ícone das práticas mercadológicas de educação [no ensaio ‗Crise na Educação‘ in Entre o passado e o futuro.

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Perspectiva, 2005]. Reportagens mais atuais mostram que os Estados Unidos está sofrendo as terríveis consequências do ‗pragmatismo‘ na educação básica; e enquanto isso, tentamos adotar modelos similares [já testados, e fracassados] no Brasil... [Veja aqui: http://blogs.edweek.org/edweek/top_performers/2015/04/why_ha ve_american_education_standards_collapsed.html?intc=mvs e também: http://www.planetaeducacao.com.br/portal/artigo.asp?artigo=2553] Ora, se gostamos tanto de pensar a educação a partir de teorias estrangeiras...talvez valha a pena, então, dar uma olhada nas bem sucedidas experiências ‗orientais‘. Plenas de sabedoria, e aprovadas no mais exigente teste da história – o tempo – elas nos mostram que apostar na Humanidade ainda é, entre todas, a melhor escolha. Para ler Os Upanishads: http://estudantedavedanta.net/Os-UpanishadsTraduzido-por-Swami-Prabhavananda-Portugues.pdf O texto sobre Educação do Liji: http://chinesclassico.blogspot.com/2007/07/liji-extratos-do-livro-dos-rituais01.html Sobre Nasrudin: http://www.nasrudin.com.br/ E também: Annping Chin Autêntico Confúcio São Paulo: JSN, 2014. André Bueno. EducArte – a educação chinesa numa visão confucionista.2011 Disponível em: https://www.academia.edu/1439632/EducArte__a_Educa%C3%A7%C3%A3o_Chinesa_numa_vis%C3%A3o_confu cionista Contos de Ensinamento do Mestre Sufi Nasrudin. São Paulo: Dervish, 2001. Histórias da Tradição Sufi. São Paulo: Dervish, 1993. Emile Gathier O pensamento Hindu. Rio de Janeiro: Agir, 1996. Heinrich Zimmer Filosofias da Índia. São Paulo: Palas, 1997.

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NATIVOS DIGITAIS, IMIGRANTES DIGITAIS: QUINZE ANOS DEPOIS Bruno Leal Pastor de Carvalho

Um autor e seus conceitos

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Há quinze anos, em outubro 2001, o pesquisador norte-americano Marc Prensky publicava, no volume nove da revista On the Horizon, o artigo Digital Natives, Digital Immigrants. Embora curto – com apenas seis páginas – o artigo se tornou um sucesso imediato, alavancando internacionalmente o nome de Prensky, até ali conhecido apenas no ramo americano dos jogos educacionais. Entre os acadêmicos, o texto tem sido desde então uma referência quase obrigatória para aqueles que se debruçam sobre a relação entre as chamadas NTICs – novas tecnologias da comunicação e da informação (já não tão novas assim) – e o processo de ensinoaprendizagem. Para se ter uma ideia desta influência, atualmente, segundo dados do Google Acadêmico, Digital Natives, Digital Immigrants foi citado em 12.648 artigos acadêmicos. Isso, sem contar as inúmeras monografias, dissertações, teses ou papers que não foram ou não podem ser rastreados e contabilizados pela engenharia de software do Google. O sucesso foi tanto que Prensky passou a estar com frequência cada vez maior na imprensa, escrevendo artigos ou dando entrevistas. O autor escreveu vários livros sobre o tema e tem rodado o mundo com conferências e palestras, além de divulgar informações sobre o assunto em seu site. Mas, afinal de contas, do que falava esse artigo? 1 A perspectiva de Marc Prensky é tão simples quanto instigante. Para o autor, o mundo poderia ser didaticamente dividido em dois grupos: ―nativos digitais‖ e ―imigrantes digitais‖. O primeiro se refere àqueles que nasceram a partir dos anos 1980. As pessoas deste grupo, ele explica, ―passaram suas vidas inteiras usando computadores, videogames, tocadores de música digital, câmeras de vídeo, telefones celulares e vários outros brinquedos e ferramentas da era digital‖. Para Prensky, são indivíduos que nasceram Na verdade, o artigo é dividido em duas partes: Digital Natives, Digital Immigrants, com as seis páginas mencionadas por mim, anteriormente, e Do they really think differently?, publicado na mesma revista, com nove páginas. Ambas as partes podem ser acessadas em: www.marcprensky.com. 1

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mergulhados em uma cultura digital e, por isso, muito naturalmente, dominam essa linguagem. O segundo grupo, por sua vez, é formado pelas gerações predecessoras, isto é, ―aqueles de nós que não nasceram em um mundo digital, mas se tornaram, em algum momento de suas vidas, fascinados e adotaram alguns ou a maioria dos aspectos da nova tecnologia‖. Segundo Prensky, é fácil reconhecer um imigrante digital. Como qualquer imigrante que aprende a falar uma nova língua, os imigrares digitais deixam transparecer uma espécie de ―sotaque‖. Como os identificamos? São aqueles, por exemplo, que imprimem os e-mails para lê-los depois do expediente ou algum documento digital para editá-lo de modo analógico. É aquele indivíduo que chama um colega de trabalho a sua mesa para mostrar um site, ao invés de enviar o link. São exemplos espirituosos, mas que não devem ser vistos como uma piada, alerta Prensky. E é aí que o autor apresenta a sua grande problemática no campo da educação: ―os nossos instrutores imigrantes digitais, que falam uma linguagem datada (pertencente à era pré-digital), estão lutando para ensinar a uma população que fala uma linguagem inteiramente nova‖. De acordo com Prensky estamos diante de um típico choque geracional: os ―nativos digitais‖ podem não entender a linguagem de seus professores. De um lado, segue Prensky, temos um grupo jovem, que se tornou habituado desde cedo a lidar com uma grande carga de informações, que acostumou-se a multitarefas, que alfabetizou-se a partir de hipertextos, que é mais familiarizado com imagem do que com texto escrito, que tem sucesso com gratificações e recompensas imediatas, que trabalha melhor quando se sente parte uma rede social. De outro lado, temos um grupo mais velho e que não desenvolveu tais habilidades e competências: essa geração – uma geração pós-baby-boom – possui um ritmo mais lento, de passo a passo, com pensamento e ação acostumados a uma sequência linear, a um correto ideal para todos, a atuar mais individualmente e que vive lamentando o comportamento dos ―nativos‖. A fim de evitar atritos e frustrações de ambos os lados, o autor sugere que os professores deveriam aprender a se comunicar na língua e no estilo de seus estudantes. Esta é a sua principal proposta. Isso não significaria, ele pondera, abandonar antigas abordagens e convicções, que continuam sendo úteis, mas que estas devem ser combinadas com a linguagem daqueles jovens que estão nos bancos escolares. Prensky fala na coexistência de um ―conteúdo legado‖ – ler, escrever, aritmética, raciocínio lógico, ideias do passado – com um ―conteúdo futuro‖, isto é, tudo aquilo que remete ao digital e ao

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tecnológico, indo desde a robótica até a nanotecnologia, passando por softwares e hardwares, bem como as noções de ética, política ou sociologia que envolvem esses novos conteúdos. ―Os alunos de hoje‖, diz Prensky, ―não são os mesmos para os quais o nosso sistema educacional foi criado‖. Daí, a necessidade de se repensar esse sistema e currículo escolar. Repensar, revisitar, reavaliar Passados quinze anos desde a publicação de Digital Natives, Digital Immigrants, devemos nos perguntar: em que medida o cenário descrito por Marc Prensky se revelou correto e em que medida sua perspectiva continua valendo para pensarmos nossa realidade educacional? Essa pergunta é o mote deste artigo, mas direcionada também e, antes de tudo, a(o) leitor(a) deste artigo. Será incrível saber como os colegas professores enxergam a questão. Antes disso, não obstante, eu gostaria de acrescentar o que penso a respeito, esperando impulsionar o debate.

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De uma maneira geral, acredito na validade e na importância das ideias desenvolvidas por Prensky. Pelo menos, em essência. Nos últimos dez anos, ocupei (e ainda ocupo) diferentes lugares no âmbito educacional: editor de rede social, aluno, pesquisador, professor universitário, professor-tutor de curso EAD e agente de cursos de formação continuada de professores de Ensino Fundamental e Médio. Em todos encontrei situações que confirmam as diferenças geracionais mencionadas por Prensky. Não há dúvida de que os jovens, em qualquer sociedade e em qualquer tempo, sempre se portam e vivem a realidade de uma forma diferente dos adultos. Porém, as distâncias entre as gerações nos dias de hoje aparentemente são percebidos como muito maiores do que eram no passado recente. E os avanços tecnológicos certamente estão no cerne deste fenômeno. Hoje, isso se tornou ainda mais claro. Basta dizer que em 2001, quando foi publicado o artigo, nem Prensky, nem ninguém conhecia o iPhone e outros smartphones do gênero, os modernos tablets, o boom da conexão de internet banda larga ou as conexões móveis 3G e 4G. Portanto, a perspectiva lançada por Marc Prensky em 2001 precisa ser vista à luz do que aconteceu nestes quinze anos. Em primeiro lugar, é preciso relativizar o conceito da geração de ―nativos digitais‖. Prensky nunca se preocupou muito com a exclusão digital. Sua teoria levava em conta o desenvolvimento tecnológico nos Estados Unidos e, de uma forma mais ampla, a realidade dos países

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mais ricos. Na periferia do capitalismo, porém, o cenário era bem diferente. Nos primeiros anos do novo milênio, em um país como o Brasil, por exemplo, se o computador apenas começava a se consolidar como um bem de consumo razoavelmente acessível, a internet ainda era algo para um público bastante seleto. Esse desnivelamento nos faz perceber que aquilo que era para ser visto como uma unidade definida pela data de nascimento (―geração‖), também é fortemente delimitado pelo local e pelas condições de nascimento. Em outras palavras, nem todos que nascem a partir dos anos 1980 podem ser genericamente vistos como ―nativo digital‖. Na verdade, sendo ainda mais criterioso, é preciso questionar o conceito de ―nativos digitais‖ mesmo dentro dos Estados Unidos, onde esses desnivelamento também existe, sobretudo quando levamos em conta indicadores como classe social, cor da pele (os negros, como quase sempre, alijados do acesso aos bens culturais), origem étnica (latinos), etc. O acesso aos bens tecnológicos e à cultura digital ocorre, como em qualquer lugar do mundo, de maneira desigual. Um segundo ponto, não desvinculado deste que acabamos de ver, refere-se à unidimensionalidade da categoria ―nativos digitais‖. Mesmo considerando aqueles que nasceram já imersos no meio digital, todos compartilhariam inequivocamente as características elencadas por Prensky? A resposta, para mim, é não. Temos visto, na verdade, diversos grupos dentro daquilo que poderíamos chamar de ―nativos digitais‖. Esses indivíduos diferenciam-se cada vez mais entre si e novamente o avanço tecnológico – e as mudanças relacionais-organizacionais que provocam – desempenham um papel fundamental nesta variação. Aqueles que nasceram na década de 1980 têm se mostrado diferentes daqueles que nasceram na década de 1990 e estes, por sua vez, daqueles nascidos na década de 2000. É como se tivesse ocorrido um encolhimento no intervalo entre uma geração e outra. Meus colegas de geração, nascidos no início dos anos 1980, continuam usando amplamente o e-mail como uma das principais ferramentas de comunicação, sobretudo para trabalho. Acessam suas caixas de correio eletrônico praticamente todos os dias, inclusive em casa e fora do horário de expediente. Aqueles nascidos uma década depois, já olham para o e-mail como algo ultrapassado, demorado, chato, ―coisa de velho‖. Para estes, o Facebook Messenger, por exemplo, funciona muito melhor, inclusive para o trabalho. Entre os mais jovens ainda, nascidos no início dos anos 2000 e que agora estão na adolescência, o próprio Facebook se tornou uma ferramenta démodé – para os mais jovens, o prazo de validade do Facebook expirou quando seus pais também passaram a estar presentes nele. Muitos migraram com tudo para

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aplicativos de mensagens instantâneas, como o cada vez mais famoso SnapChat ou o Periscope. Os números sustentam esse tipo de percepção. De acordo com uma pesquisa realizada em 2013, nos Estados Unidos, pela consultoria iStrategy, a rede social criada por Mark Zuckerberg perdeu mais de 6,7 milhões de jovens com idades entre 13 e 24 anos nos últimos três anos, sendo que na faixa mais jovem, entre 13 e 17 anos, o índice de evasão corresponde a uma queda de 25,3% no número de usuários.2 Assim, usar indiscriminadamente o rótulo ―nativos digitais‖ para se referir a uma ―geração‖ pode escamotear diferenças sociológicas importantíssimas.

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Em Digital Natives, Digital Immigrants, Prensky dizia que era bem improvável que os ―nativos digitais‖ regredissem frente a incapacidade ou a resistência dos ―imigrantes digitais‖ caso esses tentassem impor ―velhas fórmulas‖. De acordo com o autor, ―isto insulta tudo o que conhecemos sobre migração cultural. As crianças nascidas em qualquer nova cultura aprendem a nova linguagem facilmente, e resistem com vigor em usar a velha‖. Este é o terceiro ponto que eu gostaria de comentar: não é exatamente isso percebemos no ambiente escolar e mesmo no universitário. Não estou dizendo que não há resistência ou choque de gerações, mas quero abordar especificamente os ―nativos digitais‖ que retornam a estes ambientes na condição de instrutores. Esperaria-se que estes trouxessem consigo renovação e mudanças, certo? Bom, o que tenho visto em minhas atividades profissionais como docente é que muitos ―nativos digitais‖, que cresceram e se beneficiaram amplamente da cultura digital, adotaram práticas bastante parecidas com alguns de seus professores mais conservadores – no sentido pedagógico e não político. Boa parte das aulas ainda são demasiadamente expositivas, com poucos recursos visuais, por exemplo. Apesar da inovação de parte dos livros didáticos, muitos professores – e aí me refiro sempre ao universo do ensino de história, do qual faço parte – ainda se sentem impelidos a um ritmo linear de ensino. Sentem-se mais seguros usando antigas fórmulas. As avaliações pouco ou nada tem de inovadoras. A maioria ainda lança mão apenas de trabalhos mais mecânicos, fichamentos, resumos e congêneres mnemônicos que pouco estimulam o senso de investigação dos alunos – que hoje dispõem de tantos recursos e alguma predisposição para o trabalho investigativo, criativo e colaborativo. É curioso notar que muitas COIMBRA, André. Os jovens estão abandonando o Facebook. Digai, 23/01/2014. Disponível em: http://www.digai.com.br/2014/01/os-jovensestao-abandonando-o-facebook/. 2

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universidades e escolas já possuem estrutura para que o professor escape deste modelo de ensino. Possuem internet sem fio, computadores, projetores e todo tipo de parafernália digital. Nada disso, no entanto, parece capaz de, sozinho, garantir a mudança antigas forças. Vale, no entanto, ressaltar que o professor é aquele que menos tem culpa. Precisamos olhar para o conjunto. Nossas universidades não renovaram seus currículos devidamente para formação de professores. Quando fizeram isso, as demandas já eram outras. Precisamos de um olhar novo especialmente para as licenciaturas. Tenho escutado de inúmeros alunos histórias de decepção, de frustração e, em alguns casos, não raros, de sofrimento envolvendo as ―aulas de didática. Não era para ser assim. Os cursos de formação continuada, importantíssimos para o desenvolvimento constante do professor, também tem problemas: são poucos e nem sempre eficientes. O docente anda cada vez mais assoberbado de trabalho, sem tempo para pensar em como diversificar suas aulas ou torná-las mais interativas e interessantes. Prensky imaginou que nascer em um mundo digital irremediavelmente levaria a romper com certos grilhões educacionais. Uma década e meia depois, precisamos considerar seriamente a possibilidade de que alguns dos antigos paradigmas, aqueles que mais queríamos transformar, continuam fortes e em franca autorreprodução. Prensky subestimou esse poder. Entre os acertos do autor, no entanto, sobressai, ao meu ver, sua convocatória para os professores se comunicarem na ―língua‖ e no ―estilo‖ de seus estudantes, que não se trata em absoluto de uso de gíria ou roupas da moda, mas sim de mergulhar nessas novas formas de compreender o mundo e se relacionar – para tirar melhor proveito delas. Prensky apontou ainda a necessidade de uma revisão curricular – independente da disciplina – capaz de introduzir aquilo que o autor chama de ―conteúdo futuro‖. O autor tem feito isso escrevendo e elaborando projetos de jogos educacionais. E ele acertou em cheio. Os jogos há muito tempo deixaram de ser uma tendência e se consolidaram no mundo digital contemporâneo. Se existe hoje uma indústria do meio digital que cresce mais do que qualquer outra, é a indústria dos games. Segundo dados do relatório Global Games Market Report, publicado em 2015 pelo site SuperData, especializado em games e mídia, o faturamento da indústria de jogos no ano de 2015 chegaria a US$ 74,2 bilhões,

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considerando as múltiplas plataformas, dos PCs ao mobile. 3 Desde 2007, o faturamento dos games tem superado, ano a ano, o faturamento da indústria de cinema.4 Quantos professores, no entanto, utilizam jogos para ensinar e se aproximar da realidade de seus alunos? Bem poucos. No Brasil, há experiências realmente interessantes neste terreno, como a NAVE – Núcleo Avançado em Educação. Trata-se de um programa de Ensino Médio Integrado Profissionalizante desenvolvido pelo Oi Futuro em pareceria com as Secretarias de Estado de Educação do Rio de Janeiro e de Pernambuco. As escolas contempladas com o projeto – uma em cada estado – oferecem cursos técnicos em tecnologias digitais. Os alunos podem fazer cursos de Multimídia e de Programação de Jogos, sendo que no Rio de Janeiro também têm a opção de estudar Roteiros para Mídias Sociais. Mas, tais projetos, ainda são exceções. A maioria das escolas, públicas ou privadas, continua fazendo do quadro-negro (ou branco) a sua única ou a sua principal tecnologia, da mesma forma estabelecida no século XIX.

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Pela primeira vez, temos um número substancial de professores que são familiares com a cultura digital e que poderiam, sob certas circunstâncias ideais, transformar os antigos paradigmas educacionais. Mas sob seus ombros, como vimos, não deve ser colocado tal descomunal responsabilidade. Essa mudança não deve só ocorrer de dentro para fora, mas também de fora para dentro. E é aqui que as políticas públicas em educação precisam investir cada vez mais nas áreas de ciência e tecnologia. Jogos, aplicativos, sites, bancos de dados, audiovisual, música, tudo isso precisa estar integrado ou disponível para as disciplinas escolares, da matemática à história, da geografia à educação física. Considerações finais Marc Prensky foi extremamente astuto para perceber a implosão de um modelo educacional desconectado de seu tempo. Em certo ponto, sua perspectiva criou alguns problemas. A categoria ―imigrante digital‖ acabou funcionando muitas vezes como um COSCELLI, João. ―Indústria de games deve faturar US$ 74,2 bilhões em 2015. 03/06/2015. Estadão Online. Disponível em: http://blogs.estadao.com.br/modo-arcade/industria-de-games-deve-faturarus-742-bilhoes-em-2015/ 4 FERREIRA, Matheus. ―Indústria de games supera o faturamento de Hollywood. Webnotícias UFG. Sem data. Disponível em: https://webnoticias.fic.ufg.br/n/68881-industria-de-games-supera-ofaturamento-de-hollywood. 3

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estigma, como se os professores da ―era pré-digital‖ fossem ultrapassados, desatualizados, individualistas e lentos. Nada mais falacioso e prejudicial. Assim como era equivocada também a postura de muitos que rejeitaram completamente suas ideias, que entendiam e reproduziam o entendimento de que a nova geração era preguiçosa, desatenta, arrogante, enfim, que os ―nativos digitais‖ eram ―anjos do apocalipse‖ prestes a ameaçar seu mundo e modo de vida. Geralmente, trabalhar com grupos binários gera esse tipo de problema. De qualquer forma, para além destas categorias, entendo que precisamos encontrar um equilíbrio entre tecnologia e humanismo, um currículo que saiba inserir o professor na linguagem digital sem que isso seja feito de forma excludente ou impositiva. Precisamos reformar o ensino – seja o escolar ou o universitário – para que este faça sentido no mundo atual, para que forme não apenas profissionais aptos para o mercado de trabalho, mas também cidadãos, aptos a respeitarem as diferenças e a construírem um mundo menos desigual. E nada disso pode ser feito com pressa. Ainda estamos no começo desta ―revolução digital‖. Há trinta anos, usávamos máquinas de escrever e penávamos para comprar – isso mesmo, comprar – uma linha telefônica fixa. Pela primeira vez, temos ―nativos digitais‖ em sala de aula, portanto estamos longe de conclusões definitivas sobre o impacto das novas mídias na educação. Veremos qual o alcance de nossas considerações preliminares. Mas, até lá, não nos esquivemos de pensar. E você, o que pensa a respeito? Referências Bibliográficas PRENSKY, Marc. Digital natives, digital immigrants. On the horizon, v. 9, n. 5, p. 1-6, 2001. PRENSKY, Marc; BERRY, Bruce D. Do they really think differently. On the horizon, v. 9, n. 6, p. 1-9, 2001.

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UMA CÂMERA NA MÃO E UMA HISTÓRIA PARA LEMBRAR: MEMÓRIAS DA EDUCAÇÃO NO VALE DO ITAJAÍ/SC Carla Fernanda da Silva

O objetivo deste trabalho é apresentar uma proposta didática, realizada ao longo de três anos no ensino da disciplina História da Educação para os cursos de Pedagogia, História e Ciências da Religião na FURB – Universidade Regional de Blumenau/SC. Esta disciplina compreende a história da educação da Antiguidade à Contemporaneidade, ou seja, numa perspectiva de longa duração, cuja importância, em um curso de licenciatura, vai além da absorção de fatos e datas, mas na narrativa das continuidades e descontinuidades dos atos de aprender e ensinar.

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No primeiro ano em que lecionei a disciplina, percebi que, no decorrer das aulas, o passado distante foi apreendido com curiosidade e admiração, porém o século XX tornou-se um tribunal, em que os acadêmicos acusaram as gerações de professores que os precederam de ministrarem aulas de forma tradicional no ensino escolar, tornando a discussão restrita ao ‗método‘ de ensino, sem analisar o seu contexto histórico. Atitude que dificultou a compreensão histórica da educação, em especial no Brasil, onde tivemos duas Ditaduras: do Estado Novo e a Militar, períodos em que a pedagogia defendida e proposta por estes governos eram a tradicional e a tecnicista, respectivamente. Porém, aula após aula, retomava-se a discussão do ensino tradicional e a culpa das gerações precedentes pelo fracasso escolar na atualidade, atitude que evidenciou um problema conceitual a resolver na disciplina: a concepção de História. Concepção compreendida a partir do positivismo/historicismo, fato respaldado pelo ensino de História que tiveram nos ensinos Fundamental e Médio, pautado em um método tradicional que privilegiou a memorização de fatos e datas, no qual o passado é pensado como ‗origem‘ numa história em constante progresso, em que alguns personagens, ‗vultos históricos‘, lideram e ‗fazem‘ a história e os demais, incluindo os acadêmicos, são meros espectadores. Ou seja, a história escrita a partir da lógica dos vencedores, cujos signos são as datas a comemorar e o próprio livro Didático, que impresso em suas

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páginas tem a trajetória desses poucos personagens e fatos marcantes. Portanto, para os acadêmicos repensarem sua compreensão de História, era necessário repensar as aulas e, por se tratar da disciplina de História de Educação, fazê-los se perceberem enquanto sujeitos da história, ato fundamental para a sua ação de ensino. Assim, a disciplina foi planejada para dois momentos: o ‗Ato de Aprender‘, e em seguida, o ‗Ato de Ensinar‘, ambos orientados primeiramente pela memória dos acadêmicos, e depois pela pesquisa da História da Educação. Uma primeira atividade proposta foi a realização de uma ‗Fotobiografia Escolar‘, que deveria ser apresentada em PowerPoint, descrevendo os seus anos escolares, relacionando objetos de memória, tais como: cadernos escolares, boletins/cadernetas de notas, diplomas, uniformes e fotografias. Além desses objetos, próprios de sala de aula, os acadêmicos deveriam lembrar-se dos mais diversos espaços da escola, a partir dos 5 (cinco) sentidos, ou seja, buscar os cheiros, sons, texturas, gostos e imagens da memória escolar. Trabalhar os cinco sentidos da memória tem intuito de deslocar o conhecimento do passado apenas do sentido da visão, comumente ativado por meio da leitura de livros ou fotografias. Ao narrar sua vida escolar pelos cinco sentidos, objetiva-se torná-los sensíveis à memória das mais diversas formas, e buscar recordações que muitas vezes são relegadas ao esquecimento, como o som das crianças brincando no recreio, o cheiro e sabor da merenda e da lancheira, os pés sobre as pedras ou gramado da escola, a bola chutada, as canções, o suor após a educação física ou recreio, a tinta em contato com a pele, o cheiro do guache, entre outras tantas memórias citadas. O intercâmbio de experiências entre os acadêmicos foi uma provocação em sua já sedimentada conceituação do conhecimento histórico, pretendendo, com essa vivência, uma ruptura no ato aprender, permitindo repensar e problematizar a forma como compreenderam história até o momento, e como podem vir a aprender, viver e ensinar história a partir da memória e do questionamento das fontes históricas. A ‗História de Vida Escolar‘ há muito é utilizada no Ensino Superior como atividade didática, em especial nas licenciaturas. Porém, abro um espaço de reflexão para o

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escopo teórico que motivou o planejamento e aplicação dessa atividade, pois além de compartilhar memórias e usá-las como fonte histórica, buscou-se a inspiração em Walter Benjamin, em seu texto „O Narrador‟. Benjamin afirmou que ―a arte de narrar está em vias de extinção‖ (BENJAMIN, 1994), referindo-se sobretudo ao ato de falar e ouvir, a troca de experiência, aprender com o vivido pelo outro. O autor não hierarquiza a narrativa oral ou escrita, mas destaca que ―as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos.‖ (BENJAMIN, 1994) Ao respaldar a narrativa no vivido, o narrador confere a sua história uma dimensão utilitária: a experiência compartilhada. Portanto, não temos uma apresentação de trabalho, uma formalidade acadêmica, mas sim um compartilhar de vidas, em que os acadêmicos se compreendem como um grupo, pessoas que trocaram experiências e sentimentos e se pensaram como sujeitos históricos.

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Se os livros nos chegam prontos e acompanhados de explicação, a narrativa nos oferece um espaço de reflexão, tanto pra pensar a experiência, quanto na possibilidade de refletir a ‗sabedoria‘ na forma de conselhos ou na ‗moral da história‘. Na narrativa, o leitor/ouvinte ―é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação.‖ (BENJAMIN, 1994) Transpor a informação, problematizar o dito e o vivido, de forma que a história seja interpretada e as fontes históricas, que em um longo processo de ensino-aprendizagem foram sacralizadas e detentoras da ‗verdade‘, sejam de fato questionadas e analisadas. Para tanto, é preciso uma nova vivência do ato de aprender história, de forma a constituir uma consciência histórica. Narrar sua vida e ouvir a história do outro, pensar a sala de aula como um espaço de memória. A importância da narrativa despertou para a segunda atividade da disciplina: a realização de entrevistas com professores das mais diversas décadas do século XX. Essa atividade objetivou, também, transpor os alunos de um exercício de memória pessoal, para a busca de narrativas além da sala da aula, apresentando depoimentos de professores de gerações passadas. A História da Educação passou a ser discutida a partir do ato de ensinar, cuja compreensão se fez partir da vivência de professores entrevistados, pela metodologia da ‗história oral‘.

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Deslocar o ensino da História da Educação dos livros para a ‗história oral‘ é uma forma de vivenciar o aprendizado e o ―desafio de contemplar a multiplicidade do mundo e sua indeterminação para auxiliar nossos alunos a construir sua memória e suas identidades a partir de uma História que considere as rupturas, conflitos, crises públicas e privadas, em suas infinitas diferenças.‖ (MONTEIRO, 2007) Ou seja, perceberem que os documentos e livros são construções, e que estes contém uma representação da História da Educação, não uma ‗verdade‘ sedimentada. Faz-se necessário dizer, ainda, que a maior parte dos escritos refletem a História a partir das instituições e estão inseridos num contexto nacional e global, com pouco espaço para a reflexão em nível local, e sem pensar em pesquisar a História da Educação a partir daqueles que são partícipes: professores, alunos, funcionários escolares, pais, entre outros. Os manuais didáticos, em sua oficialidade, discorrem sobre a História da Educação numa ótica do Estado, inserida em meio aos fatos históricos consagrados e as mudanças de regime político e legal do governo brasileiro. Nesta escrita generalizante da história, as pessoas que constituem a história da educação (professores, alunos, pais e funcionários escolares) não tiveram visibilidade alguma, e de certa forma foram silenciadas. Possibilitar o uso e conhecimento da ‗história oral‘ como método de trabalho da História da Educação é de fundamental importância, pois: pode certamente ser um meio de transformar tanto o conteúdo quanto a finalidade da história. Pode ser usada para alterar o enfoque da própria história e revelar novos campos de investigação; pode derrubar barreiras que existam entre professores e alunos, entre gerações, entre instituições educacionais e o mundo exterior; e na produção da história (...) pode devolver às pessoas que fizeram e vivenciaram a história um lugar fundamental, mediante suas palavras. (THOMPSON, 1992.) A história oral propicia ao entrevistado a oportunidade de relembrar a sua própria história, de narrá-la e perceber-se enquanto sujeito histórico. A teoria e método da história oral permitiu uma mudança de ênfase nas pesquisas historiográficas, em um caminho que pertencia ao indizível, ampliou e criou novas áreas de investigação, ao construir

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uma representação da história a partir da narrativa daqueles que a vivenciaram. Em 1936, Benjamin refletia sobre a possível extinção do narrador, quando o romance ‗toma‘ o lugar do ‗contador de causos e histórias‘. Thompson, anos mais tarde, possibilita o retorno deste narrador, não o contador de ‗causos‘, mas o sujeito da memória, desta vez pautado na tecnologia, com uso de gravadores, e fundamentado numa historiografia pós Annales, que problematizou as fontes documentais e, para o autor, a história deve ―tratar de vidas individuais – e todas as vidas são interessantes; e baseia-se na fala, e não na habilidade de escrita, muito mais exigente e restritiva.‖ (THOMPSOM, 1992)

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Com a concepção de que toda história de vida é importante e que é preciso possibilitar as pessoas um retorno à narrativa, foi planejada a segunda etapa da disciplina, pautada no ‗ato de ensinar‘. Foram entrevistados professores utilizando câmeras digitais, com a finalidade pedagógica dos acadêmicos se apropriarem do uso das novas mídias e, através dessa tecnologia, aplicar os conceitos teóricos problematizados em sala de aula. O audiovisual é uma ferramenta interessante para trabalhar novas propostas de ensino da História da Educação, pois permite estudar e analisar os conceitos que norteiam essa concepção, ou seja, a história oral e a narrativa, a partir de uma perspectiva benjaminiana. O acadêmico não pode ser um espectador passivo da história, e para se compreender sujeito histórico é preciso assumir uma postura de interação com a construção do saber. Por meio do audiovisual é possível trazer voz e imagem de diversos professores para a sala de aula, possibilitando a estes narrarem sua experiência escolar. Neste trabalho, o audiovisual não é apenas uma reprodução de imagens em um aparato tecnológico, mas sim ‗cinema‘ – luz em movimento – literalmente. A imagem são feixes de luz projetados, onde também se projetam emoções, dúvidas, alegrias, vida, história. Se é possível afirmar que o cinema ficção ―organiza a realidade de uma maneira artística‖, em que ―a vida aparece transfigurada pela visão cinematográfica, que a concentração da ação, no cinema, elimina as esperas, impaciências e tédios da vida‖ (COSTA, 2010); o que podemos dizer então do documentário e da história oral, a partir da filmagem? Sem dúvida o trabalho com memória é uma forma de organizar a história, mas é preciso destacar que a memória, enquanto fonte, é uma forma democrática de escrever a história,

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como também de realizar sua leitura. As novas possibilidades tecnológicas, a facilidade do uso de câmeras digitais e edição de vídeo, permite-nos a interação do cinema e da memória em sala de aula. Para além do depoimento destes professores, teremos sua imagem, a percepção de suas emoções, o seu ambiente de trabalho registrado. Os acadêmicos poderão, em diversas oportunidades, visualizar e debater a história/memória das gerações precedentes, e assim compreendê-los como sujeitos da história. Sandra Costa afirma que ―o cinema, à solta, é perigoso.‖ A pesquisa com memória também, pois a possibilidade das pessoas expressarem suas lembranças e opiniões sobre o passado pode revelar uma outra história, muitas vezes não contada nos livros. Mas acima de tudo, pode ajudar os alunos compreenderem o passado à luz de uma nova perspectiva. A interação entre cinema e memória pretende exaltar esse perigo, para que o passado seja questionado em sua linearidade historicista e para que os acadêmicos compreendam que ―...o presente é algo a ser problematizado, à luz da História. É pela problematização que se pode fazer vir à tona novos saberes, provocando rachaduras nos territórios aplainados pela lógica do até então presente.‖ (KRAEMER, 2010) No ano de 2010, deu-se destaque aos professores que lecionaram durante a Ditadura Militar, bem como foram assistidas e debatidas as entrevistas dos anos anteriores e o documentário Sem Palavras (KLOCH, 2009), para discussão da Era Vargas. Período bastante difícil para o Vale do Itajaí, pois a educação estava em meio às transições e embates políticos dos anos trinta, no qual o pangermanismo local, o integralismo e a política autoritária e nacionalizadora do governo Vargas disputaram os espaços de poder. Para os grupos políticos, o domínio dos diversos espaços de produção de saberes se fazia necessário, visto que ―o controle da significação e a imposição do sentido são sempre uma questão fundamental das lutas políticas ou sociais e um instrumento maior da dominação simbólica.‖ (CHARTIER, 2002.) Assim, a cooptação de intelectuais foi fundamental para a manutenção do discurso político na escola. A figura do intelectual era pensada a partir das restrições do período histórico, e compreendida como um ―produtor de bens simbólicos, especialista no processo de criação e transmissão cultural, e que desperta a atenção dos envolvidos nos ‗círculos de poder político‘.‖ (GOMES, 1996. p. 39. Grifo da Autora) Quando Vargas assumiu o poder, muitos desses intelectuais ocuparam cargos públicos nas escolas, seja como professores ou

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inspetores escolares, de modo a dar legitimidade intelectual a proposta educacional do governo. Destaca-se nesse período o projeto de nacionalização do ensino, fato que marcou as regiões de colonização alemã e italiana em Santa Catarina. Em Blumenau, a proibição do idioma alemão afetou muitas pessoas, em especial as crianças em idade escolar, pois aqueles que falavam o alemão eram castigados física e psicologicamente nas escolas. (KLOCH, 2009). Portanto, a educação na região do Vale do Itajaí, viveu dois períodos repressores numa sequência ininterrupta, conforme relata o professor Bruno Cipriani:

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Muitas pessoas pensam que no período dos militares tinha uma pressão para que houvesse uma disciplina militar. Mas essa disciplina militar ela já existia antes. Quando eu fui à escola, o aluno que cometesse algum ato de indisciplina, ele era castigado. Ele levava reguada, tapa, ficava de joelho, tinha que assinar o chamado Livro Negro, livro que marcava as faltas mais graves do aluno. Ele poderia ser suspenso ou expulso. Isso antes dos militares, no período dos militares isso continuou, não vou dizer com um agravo, mas um adendo, ali deveria existir aquela disciplina patriótica. O aluno deveria aprender os hinos, inclusive, ensinávamos aos alunos a maneira correta de dobrar a bandeira. (CIPRIANI, 2010) Essa continuidade disciplinar, por vezes não é percebida pelo acadêmico, pois esses fatos históricos são estudados separadamente. Enquanto em alguns estados brasileiros a Ditadura Militar representou uma ruptura na história da educação, marcada principalmente pela luta dos estudantes universitários, no Vale do Itajaí constatamos uma continuidade disciplinar. E, ao trabalharmos a partir da memória dos professores, percebe-se que a luta contra os militares praticamente não existiu em nossas escolas. De fato, a escola foi o espaço de legitimação do poder ditatorial dos militares por meio das práticas disciplinares. Os professores também estavam submetidos a estas práticas, principalmente em relação aos conteúdos trabalhados em sala de aula, conforme relato: ―O conteúdo que você ministrava vinha de Florianópolis. [...] Já vinha tudo pronto. Como você ministra essa aula não interessa, mas o conteúdo é esse aqui. Pode fugir? Não! É esse aqui.‖ (CIPRIANI, 2010) A educação não estava apenas regida pelo aparato legal, mas sim por todo um corpo técnico de funcionários, vigilantes à atuação dos professores, conforme o depoimento de D. Dorvalina:

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Uma ou duas vezes por ano, o inspetor visitava a nossa escola. Só que ele visitava de surpresa, não dizia o dia e a hora, nada. E lá tinha um Livro de Atas próprio, onde ele escrevia como encontrava a escola, como encontrava a professora. Ele olhava as tarefas das crianças, como nós fazíamos as tarefas para dar aula. Todos os cadernos que nós tínhamos, o nosso plano de aula. Ele sempre olhava, e graças a Deus eu sempre ganhei notas boas. (ZANCANARO, 2010.) Ao controlar o conteúdo percebe-se uma interligação entre o poder e a construção de uma ‗verdade‘. Ou seja, poder e verdade estão ligados numa relação circular, se a verdade existe numa relação de poder e o poder opera em conexão com a verdade, então todos os discursos podem ser vistos funcionando como regimes de verdade. (SILVA, 1995) As relações disciplinares de poder-saber são fundamentais aos processos pedagógicos, sejam elas auto-impostas, impostas pelos professores, ou impostas pelos governos, como expôs Foucault: ―Uma relação de fiscalização, definida e regulada, está inserida na essência da prática do ensino: não como uma peça trazida ou adjacente, mas como um mecanismo que lhe é inerente e que multiplica sua eficiência.‖ (FOUCAULT. In SILVA, 1995) Nas discussões em aula, após assistirmos as entrevistas, foi perceptível que a escola, enquanto espaço de construção de subjetividades, ao sujeitar alunos e professores ao processo de disciplinamento do Estado, contribuiu na manutenção do poder ditatorial, fato evidenciado na fala do professor: Então, não se falava mal do governo, só isso. Você podia falar do governo, mas não falar mal. Agora, nenhum aluno chegava e dizia: _ Professor, o meu pai disse que o Presidente é um assassino, é um ladrão, ele é isso... Não, não... o aluno não falava e o professor fazia questão de dizer que o Presidente era boa gente. (CIPRIANI, 2010) Destaca-se que os professores eram os sujeitos mais disciplinados em sala de aula, pois para disciplinar os corpos, mentes e conhecimentos dos alunos, professores precisavam ter corpos, mentes e conhecimentos disciplinados. Para o Estado, o controle do que era ensinado tornou-se essencial para sua manutenção, portanto as práticas pedagógicas estavam sujeitas ao disciplinamento do conhecimento. Regularmente eram ministrados cursos, cujo objetivo

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não era discutir e construir uma educação em conjunto e problematizada, mas sim oferecer um método de ensino, por manuais, conforme relato: ―Eles falavam sobre o comportamento das crianças, e como nós tínhamos que ensinar. E a maneira que tínhamos que ensinar. Eles davam muitos cartazes e muitos livros para nós e, com esses livros a gente ia preparando [a aula].‖ (ZANCANARO, 2010)

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O sujeitamento dos professores não permitia que estes construíssem seu próprio conhecimento ou refletissem sua prática pedagógica. Importante destacar também que não existem práticas pedagógicas inerentemente libertadoras ou inerentemente repressivas, pois qualquer prática é cooptável e qualquer prática é capaz de tornar-se uma fonte de resistência. Afinal, se as relações de poder são dispersas e fragmentadas ao longo do campo social, assim também o deve ser a resistência ao poder. (SILVA, 1995) Portanto, o controle da prática e do saber em sala de aula era visto como necessário pelo Estado ditatorial como meio de evitar opiniões e ações divergentes, assim o controle sobre os professores se fez ao longo do regime militar. Isso não quer dizer que eles eram alheios à violência, porém tinham medo de uma possível ação de repressão, conforme o professor Bruno nos conta: Entre nós professores, às vezes, comentávamos que a gente havia ouvido falar que houve excessos disciplinares. Pessoas que foram presas aqui em Blumenau, levadas embora... não sei para onde. Eu lembro de um advogado, ele era contra a ditadura, ele foi preso, desapareceu de Blumenau. Mas a gente não comentava. Sabia que não estava certo, sabia que liberdade de expressão não havia. (CIPRIANI, 2010) A repressão exercida pelo regime militar no Vale do Itajaí de fato existiu, porém não se destacou por passeatas de alunos e professores ou por exílio e luta. A repressão que aqui se fez foi de forma subreptícia, apoiada numa estrutura de poder consolidada na Era Vargas. Os militares, em sua ação de exercício do poder e controle das ações escolares, preferiram a ‗invisibilidade‘, uma ação quase sempre discreta, onde as ações de poder tornam-se mais eficazes, ao serem emaranhadas ao cotidiano, como elucida o professor Bruno: ―Com o povo pequeno os militares não mexeram. Eles simplesmente [disseram]: na escola agora vamos ensinar assim e assim... pronto.‖ (CIPRIANI, 2010) Porém, o ordenamento das ações passavam por

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toda uma estrutura hierárquica até chegar aos professores, ação que muitos compreendiam como inerentes à educação. Aos professores havia uma possibilidade de resistência ao controle exercido pelo Estado, pois não existem práticas pedagógicas inerentemente repressivas ou inerentemente libertadoras. Qualquer prática é cooptável e qualquer prática é capaz de tornar-se uma fonte de resistência. Afinal, se as relações de poder são dispersas e fragmentadas ao longo do campo social, assim também o deve ser a resistência ao poder. (SILVA, 1995) Muitas vezes esta percepção do cotidiano escolar escapa às leituras da história da educação generalizante. A ‗história oral‘ proporciona um olhar de alteridade, a percepção do outro como um outro diferente daquele que indaga, pois experiências são compartilhadas, por meio das entrevistas. Portanto, a realização das entrevistas permitiu ao acadêmico/professor uma nova consciência em relação à História da Educação, construindo um outro olhar a partir da vivência dos professores, e uma aproximação de gerações de alunos/professores. A escrita deste trabalho privilegiou a discussão da memória e da concepção de história problematizadas no ensino de História de Educação, com o intuito de questionar a história linear, e perceber as continuidades e descontinuidades históricas. Por meio das entrevistas foi possível ir além das discussões permeadas pelos livros e, através do vivido compreender a História da Educação local a partir de um novo olhar, e dessa forma problematizar, questionar e compreender outra concepção de História. Importante destacar que foram escolhidos poucos depoimentos em detrimento da discussão proposta, mas o conjunto de entrevistas nos permite diversas discussões, tais como: disciplinamento, cotidiano escolar, valorização dos professores, entre outras. Estas atividades pedagógicas representam novas possibilidades no ensino de História da Educação, em que uma ação pedagógica diferenciada contribuiu para novas concepções teóricas e compreensão dos professores e alunos enquanto sujeitos históricos. Referências BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. SP: Brasiliense, 1994.

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CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002. CIPRIANI, Bruno. Entrevista em História Oral concedida a: GASPERI, Veronice. RETKE, Solange. SGORLA, Ewerton. Blumenau, outubro de 2010. COSTA, Sandra. O que é Cinema? http://www.naotil.com.br/nao-57/cinema.htm. Acessado em 10/12/2010. GOMES, Ângela de Castro. História e Historiadores. RJ: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1996. p. 39. (Grifo da Autora) KLOCH, Kátia. Sem Palavras. 2009. (Documentário) KRAEMER, Celso. Paulo Freire e Michel Foucault: pontos de convergência. In. SILVA, Carla Fernanda da (org). Clio no Cio: escritos livres sobre o corpo. Blumenau/Itajaí: Ed. Casa Aberta, 2010. MONTEIRO, Ana Maria. Professores de História: entre saberes e práticas. RJ: Mauad, 2007. SILVA, Carla Fernanda da (org). Clio no Cio: escritos livres sobre o corpo. Blumenau/Itajaí: Ed. Casa Aberta, 2010. SILVA, Tomaz Tadeu da. O Sujeito da Educação: estudos foucaultianos. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1995. THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. ZANCANARO, Dorvalina. Entrevista em História Oral concedida a: SILVA, Evander Ruthieri da. Rodeio, outubro de 2010.

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UMA HISTORICIZAÇÃO SOBRE O CONCEITO DE IMPÉRIO E IMPERIALISMO ROMANO PARA A PESQUISA E O ENSINO DE HISTÓRIA ANTIGA DE ROMA Carlos Eduardo da Costa Campos

As práticas imperialistas romanas foram, ao longo do tempo, alvo de análises, de várias apropriações e reformulações pelas sociedades contemporâneas. Do século XIX ao XXI, tal eixo teórico sofreu uma variedade de modificações em suas formas de estudo, devido às transformações no campo histórico. Através do debate historiográfico de cunho cronológico, temos como objetivo refletir sobre os discursos formulados sobre o conceito de imperialismo romano e com isso apresentar duas de suas vertentes: a defensiva e a ofensiva. Observamos que tais elementos são propiciadores de debates tanto para o âmbito da Pesquisa e do Ensino de História Antiga. Dessa maneira, também almejamos expor a interação entre o objeto, os pesquisadores e o seu contexto social de produção. Moses I. Finley (1978, p.1) e Maria Auxiliadora Schmidt (2004, p.64) evidenciam que em diversos momentos, utilizamos os conceitos sem refletirmos sobre eles de forma prudente. Os resultados de tais descuidos são as ―famosas‖ generalizações históricas, as quais não levam em conta as particularidades do tempo e espaço dos objetos analisados pelo historiador e ensinados para os discentes. Nesse bojo, os termos império e imperialismo romano frequentemente são utilizados em pesquisas e materiais didáticos sem nítidas reflexões que auxiliem aos receptores desses discursos compreenderem a sua historicidade. Entretanto, devemos estar atentos para os significados dos dispositivos teóricos que apresentamos, assim garantindo uma eficaz transposição didática a qual respeite a singularidade de cada sociedade abordada. No que tange à prática do magistério devemos considerar o próprio conhecimento prévio do aluno, mesmo que generalista, para assim, através da reflexão, possibilitar a construção do saber e desconstrução do senso comum quanto a esses conceitos centrais para Roma (SCHMIDT, p. 61-64). O termo latino imperium, por exemplo, é indicado como a matriz das palavras "império" e "imperialismo‖. Craige Champion e Arthur Eckstein frisam que, em latim, havia o verbo imperare para designar a ação de comandar e que o imperium era o poder de comando concedido a um magistrado (CHAMPION;ECKSTEIN, 2008, p.01-

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02). Andrew Erskine corrobora com Champion e Eckstein ao pontuar que a palavra imperium representava – em seu primórdio republicano – a emissão de ordens ou comando que determinados magistrados, como os consules, detinham sobre Roma ou as províncias (ERSKINE, 2010, p.05). Logo, a vinculação entre império e imperador não é diretamente válida para a história de Roma. Afinal, a sociedade romana foi capaz de formular um império durante a fase da Res Publica (República), mesmo sendo dirigida por dois consules, por um longo tempo. Contudo, com o avanço das conquistas romanas, emergiu a necessidade da figura de um comandante, propriamente dito, para a organização dos conflitos sociais internos e os confrontos externos.

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O historiador Pierre Grimal (1990, p.29) argumenta que o imperium na Antiguidade romana fornecia a seu detentor um poder considerado como absoluto, o que inclui, nesta esfera, a decisão do direito de vida e morte sobre os demais cidadãos romanos. Também ressaltamos que, com o passar dos tempos, o sentido foi se ampliando e, no século I a.C., o termo passou a designar o próprio poder e a autoridade romana sobre os outros povos, como vemos na expressão latina Imperium Populi Romani. Esta sentença denota que o poder romano estava relacionado com a ordem que Roma exercia sobre outras sociedades, em vez de possuir uma conotação estritamente territorial. Para Andrew Erskine (2010, p.5-6), somente no século I d.C. o termo imperium agregou o sentido de extensão territorial. A partir dos pensamentos do autor, percebemos que o novo significado atribuído à terminologia imperium estava relacionado com a concepção de que havia uma área na qual os desígnios e autoridade romana eram influentes sobre os demais povos, possibilitando integrá-los à sua dinâmica de poder. Outra evidência do poder romano atrelado aos espaços geográficos pode ser apontada nos escritos de Tácito (ca. 55117 d.C.). Na obra Histórias, o autor clássico evidencia que o princeps, no sistema do principado formulado por Augusto, acabou por deter o poder de imperium sobre o immensum imperii corpus (imenso corpo imperial), em nome da sociedade romana (Histórias I, 16). Vale mencionar que o conceito de imperialismo está fortemente vinculado aos estudos sobre as práticas de expansão política e econômica que as potências europeias e os EUA desenvolveram no século XIX e no começo do século XX. Edward Said (1995, p.135) pontua que as ações norte-americanas do final do século XX foram

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cruciais para se manter vivo o debate sobre as práticas imperialistas no cenário acadêmico. Segundo Craige B. Champion e Arthur Eckstein (2008, p.02), desde 1870 se nota o emprego recorrente da palavra ―imperialismo‖ com a conotação de expansionista europeia. Entretanto, as aplicações conceituais ganharam projeção a partir de 1902, com o economista inglês John Atkinson Hobson (1981, p.92100), pois o mesmo elaborou a obra Imperialism: A Study, na qual notamos diversas críticas às práticas imperialistas, devido às suas implicações econômicas. Mediante a leitura dos estudos de Hobson, fica evidente que o imperialismo moderno foi o resultado da busca de mercados e ampliação das riquezas de um grupo industrial que, por sua influência, poderia levar um Estado a interferir em outras regiões. Vladimir I. Lênin (c. 1916) seguia a visão de que as práticas políticoeconômicas europeias do século XIX possuíam um caráter imperialista e que as mesmas eram um resultado da Revolução Industrial. Para o autor, o imperialismo era um estágio superior ao capitalismo por seu potencial de influência, intervenção e exploração, além da possibilidade de existirem vários impérios disputando pela formação de um monopólio comercial - o que os difere da fase considerada “pré-capitalista” (LÊNIN, 1987, p.86-90). Logo, verifica-se em Hobson e Lênin uma inclinação para se compreender o termo imperialismo de forma estritamente ligada às sociedades modernas. Entretanto, a terminologia não se limita à Era Contemporânea, podendo ser empregada à Antiguidade, desde que respeitadas suas especificidades. Para endossarmos nossa assertiva, recorremos aos estudos de Joseph Schumpeter (1919), que, apesar de tecer críticas às práticas imperialistas econômicas modernas, pontua que o militarismo e a política intervencionista poderiam ser percebidos como elementos constituintes do imperialismo desde a Antiguidade (2007, p. 23-54;107). Logo, torna-se perceptível, na escrita do autor, que a adoção das práticas imperialistas pautadas na agressão e na interferência em territórios estrangeiros foi um retrocesso para o capitalismo moderno. Por meio dos estudos sobre Schumpeter, verificamos que o imperialismo pode ser visto como a disposição de um Estado em expandir-se territorialmente de forma ilimitada - em muitos casos, com o uso da força para alcançar tal finalidade. Complementando Schumpeter, podemos frisar os argumentos do francês Henri Berr (1926) sobre o imperialismo antigo e moderno. Para o autor, o sentimento expansionista que está contido no

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imperialismo integra as características humanas pela busca da soberania. Segundo Berr (1926, p.X), as práticas imperialistas emergem de um esforço não somente dos dirigentes de uma CidadeEstado, pois a força e o poder da ação expansionista necessitariam de uma ação coletiva para sua concretização. Na visão do autor, nenhum império foi tão eficiente quanto Roma em organizar uma sociedade para a sua expansão e buscar a manutenção dos territórios submetidos. Através das leituras de Moses Finley no artigo Empire in the Greco-Roman World (1978), pontuamos que há convergências com os escritos de Schumpeter e Henri Berr, pois Finley (1978, p.01) argumenta que as práticas imperialistas são mencionadas como um processo pelo qual uma nação ou CidadeEstado submete outros povos através do uso da força ou de qualquer outro tipo de coação – além da cooptação – e, devido a isso, aproveita-se da parte submetida de acordo com os seus próprios interesses. Uma convergência entre os autores é a aplicabilidade do conceito de imperialismo para a Antiguidade. Todavia, Finley nos possibilita pensar que o imperialismo é um conjunto de medidas tomadas, por uma dita ―potência‖, que não se esgota no uso da violência.

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Convergindo com Schumpeter e Finley, ressaltamos os estudos do classicista Erich S. Gruen (1984, p.07). O autor evidencia que o conceito de imperialismo advém das práticas políticas das quais as sociedades, em diversas temporalidades, se utilizaram para ampliação dos seus territórios - com isso, tal conceito foi englobado nos debates acadêmicos. O historiador espanhol José Roldan (1987, p.266) possui uma análise histórica aproximada à de Finley e Gruen no que tange às práticas imperialistas. Para o autor, o imperialismo era/é uma disposição consciente e programada de uma CidadeEstado ou Estado para uma política expansionista. A ação era baseada em causas complexas, que envolviam metas de expansão e estabilização do império adquirido e, por conseguinte, a dominação de grupos, povos e territórios submetidos, ou seja, havia a tendência de uma dominação universal. Contudo, pontuamos a necessidade de resguardar-nos das modificações espaço-temporais inerentes ao imperialismo. Ao adaptarmos os estudos referentes ao conceito de imperialismo pelo viés teórico de Edward Said e Émile Perreau-Saussine, fica perceptível que toda unidade política, seja uma Cidade-Estado ou um Estado-Nação, almeja manter sua soberania territorial mediante práticas que podem ser consideradas imperialistas. Tanto Said quanto Perreau-Saussine complementam nosso debate

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historiográfico ao ressaltar que o imperialismo apresenta múltiplas faces, devido às singularidades de cada período e região (SAID, 1995, p.46; PERREAU-SAUSSINE, 2008, p.280-281). Logo, podemos frisar que, quando a procura pela soberania sai da esfera local e da preservação da segurança nas fronteiras, para o âmbito universal, desenvolvendo práticas de conquista e manutenção de domínios de outras regiões, ali se encontra um império constituído por meio de ações imperialistas. Nesse sentido, o imperialismo está relacionado à tendência expansionista das sociedades, seja ela de forma ativa ou potencial, na busca por englobar novos territórios aos seus domínios. No campo historiográfico, é possível verificar o uso da conceituação de imperialismo defensivo e ofensivo com certa frequência. Autores como Andrew Erskine (2010) e Claude Nicolet (1991, p.21-48) salientaram que o imperialismo defensivo foi uma ação romana pautada na conquista e manutenção da segurança nos primórdios da República, configurando-se como o ponto de partida para a expansão. Entretanto, é necessário frisar que tais ameaças destacadas pelos romanos poderiam ser tanto reais quanto imaginárias, devido ao crescimento ou ao papel de outras sociedades que se colocavam como ameaçadoras para Roma. Um dos pioneiros de tal abordagem defensiva romana foi o inglês Tenney Frank, em Roman Imperialism (1914). Para o historiador, o imperialismo romano teria ocorrido inconscientemente, devido às necessidades de preservação territorial dos romanos e de possíveis ataques externos (FRANK, 2003), configurando-se por uma questão de defesa da região. Maurice Holleaux, no livro Rome, La Grece et les monarchies hellenistiques (1921), apresenta uma visão aproximada à de Frank. O autor calca-se nas relações de poder estabelecidas por Roma no Mediterrâneo Antigo para validar a sua tese. Devido ao processo de não intervenção direta em algumas regiões, estabelecendo assim relações políticas com os governantes locais, o autor refuta a possibilidade de uma ação romana baseada essencialmente nos interesses econômicos. O inglês R. H. Barrow, em sua produção intitulada The Romans (1949), segue a linha defensiva romana já apontada por Frank e Holleaux. O interessante nos estudos de Barrow (1950, p.30-34) são os seus apontamentos de que Roma foi levada indiretamente à expansão devido à necessidade de lutar por sua sobrevivência. O autor menciona que tal hegemonia de poder ocorreu contra o seu próprio desejo. Entre os teóricos do imperialismo defensivo,

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indicamos os estudos do inglês Ernest Badian, no livro Roman Imperialism in the Late Republic (1967). Na obra, o autor procura explicitar os cuidados com as análises econômicas que possamos vir a desenvolver sobre o imperialismo romano. Os escritos de E. Badian (1968, p.16-60) nos possibilitam perceber que as medidas imperialistas romanas poderiam ocorrer das mais variadas formas, como por meio de alianças e do exercício de uma hegemonia de poder de maneira indireta nas regiões conquistadas, para assegurar os interesses romanos e os seus territórios.

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Paul Veyne, no livro L'Inventaire des Différences (1976), apresenta uma visão mais radical e considerada controversa referente ao caso da expansão romana defensiva. Na ótica do autor, no período arcaico de Roma, o que se nota é uma tendência ao isolacionismo. Veyne apresenta o pressuposto de que Roma negava a autonomia de outros grupos, atuando como a única Cidade-Estado organizada na região do Lácio (VEYNE, 1989, p.12-13). A partir de tais apontamentos, para o classicista, Roma iniciou um processo de expansão visando a alcançar a segurança definitiva para seu território. O desejo desmedido de segurança total teria levado Roma a iniciar um processo ininterrupto de conquistas que, no primeiro momento, ateve-se à Península Itálica, passando para o Mediterrâneo Ocidental e, posteriormente, o Oriental, além da África, Ásia, Gálias e Britânia. O historiador inglês William V. Harris, em War and Imperialism in Republican Rome (1979), retoma a discussão sobre o tema do imperialismo defensivo romano como sendo uma prática de Roma até o século III a.C. Contudo, Harris (1989, p. 160-250) chama a atenção para as ambições econômicas romanas. Harris se vale, documentalmente, dos escritos de Políbio para materializar a sua perspectiva como vemos a seguir: ―Nenhum homem que esteja dominado pela razão faz guerra aos seus vizinhos somente para derrotar a estes (...). Todos os atos são empreendidos pela busca de benefício‖. (Histórias, III, 4,10-11). A partir de Harris e dos indícios de Políbio notamos que além da vertente defensiva, também havia no meio acadêmico o viés ofensivo, que se relacionava com o âmbito do econômico, o qual Badian e Holleaux vieram a criticar, como pontuamos anteriormente. Tal concepção foi desenvolvida devido às ações imperialistas modernas com base mercantil. Historiadores da Antiguidade dos séculos XIX e XX muitas vezes empreenderam, no campo historiográfico, um olhar baseado neste sistema para Roma.

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A linha ofensiva destaca que a expansão foi o resultado do desejo aristocrático por glória, honra, riqueza e, até mesmo, segurança, e pela conquista/manutenção das áreas de influência. Logo, os fatores econômicos eram apenas um ponto no interior do amplo conjunto das práticas imperialistas. Andrew Erskine (2010, p.46-7) menciona que as ações romanas não devem ser enquadradas no perfil ―mercantilista‖ moderno, como vemos em muitos materiais de instrução. Todavia, percebemos que o desenvolvimento da expansão produziu uma parcela de oportunidades para elementos como os mercadores e o estabelecimento do comércio entre o centro de poder e as terras subjugadas. Possivelmente, o pensamento ofensivo romano e economicista se origina nos escritos de Caio Salústio Crispo, em especial na obra Conspiração Catilina (I a.C.). O autor indica que, após a vitória romana sobre Cartago, Roma teria ampliado o seu poder no Antigo Mediterrâneo. Todavia, para além do crescimento da área de influência, Roma passou a enfrentar os problemas sociais oriundos da constante entrada de riquezas, que levou à corrupção e à busca pelo enriquecimento ilícito, além das desmedidas dos magistrados (Conspiração Catilina, 10). Logo, o discurso salustiano se inclina para uma denúncia sobre as competições políticas devido à ambição pelo poder, assim como a falta de respeito ao mos maiorum por seus contemporâneos. No bojo do pensamento imperialista ofensivo, notamos os estudos de Joseph Schumpeter (1919). Ao longo de suas análises, Schumpeter destaca que o objetivo do militarismo antigo era promover a expansão e conquistar privilégios e riquezas e, por isso, denominou as sociedades da antiguidade como ―máquinas de guerra‖ (2007,p.23-54). A linha intervencionista romana sobre a qual o autor partilha a sua visão pode ser evidenciada através da assertiva de que: ―Não havia em nenhum canto do mundo conhecido, algum local que pudesse estar livre de perigo ou de um ataque real, a ser estabelecido por Roma. (...) e se Roma não tinha aliados em alguma parte, então o poder romano ali criaria os seus colaboradores‖ (SCHUMPETER, 2007, p.51). Craige B. Champion e Arthur Eckstein (2008, p.05) pontuam que os trabalhos de Schumpeter foram vitais para as análises da sociedade romana. Para os autores, a perspectiva shumpeteriana influenciou diversos historiadores sobre Roma, como o próprio William Harris, na obra War and Imperialism in Republican Rome, 327-70 B.C.. Ao prosseguirmos no viés ofensivo, frisamos os estudos de Michael Rostovtzeff. No livro The Social and Economic History of the Roman Empire - Tomo I (1926) e na obra Rome (1960). Rostovtzeff

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não descartou a guerra defensiva que foi empreendida por Roma na Península Itálica. Contudo, o autor apresenta o processo de expansão e conquista do território através dos interesses belicistas e econômicos dos grupos ―dominantes‖ para a legitimação do seu poder. Rostovtzeff (1983, p.11-42) nos fornece interpretações, por exemplo, sobre as cidades antigas como centros produtores de manufaturas, não se limitando apenas à obtenção dos produtos rurais. Em tal perspectiva, o núcleo urbano direciona-se para a obtenção do lucro.

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Nos trabalhos de Gaetano de Sanctis (1932) em Problemi di Storia Antica, através de sua perspectiva militar e econômica, o autor acabou por produzir um olhar ―mercantilista‖ sobre as etapas do imperialismo romano e seu militarismo. Tal vertente analisa Roma a partir das teorias imperialistas de cunho econômico do século XIX. Um crítico sobre a referida perspectiva imperialista foi o húngaro Karl Paul Polanyi. Polanyi ficou conhecido por suas produções sobre a economia na Antiguidade e na Contemporaneidade. Nas produções intituladas The Great Transformation (1944) e Trade and Market in the Early Empires (1957), o autor chamou a atenção para o emprego da visão sobre os mercados nos estudos sobre a economia antiga. Para Polanyi (2001, p.45-59), o sistema citado não deveria ser visto como a principal fonte da organização econômica romana. Imbuídos da perspectiva levantada, ressaltamos que o pensamento ―mercantilista‖ para o imperialismo de Roma – pela proposta do autor – não seria apropriado para o período, assim como a economia na sociedade romana estava submetida às relações sociais, não se constituindo como um campo autônomo. Nos escritos de Moses I. Finley (1973), A Economia Antiga, notamos um profundo diálogo com as ideias polanyianas acerca da economia, quando o mesmo destaca que ―[...] é óbvio que estou de acordo em que temos o direito de estudar tais economias, de colocar questões sobre essas sociedades que os próprios antigos nunca colocaram. [...]‖. Contudo, Finley alerta que ―[...]a linguagem e os conceitos econômicos a que todos nós, mesmo os leigos, estamos acostumados, [...] tendem a arrastar-nos para uma falsa perspectiva‖ (1980, p.27). Em tal apontamento de Finley, percebemos que o mesmo rebate a vertente modernizante que ganhou intensidade no campo historiográfico durante a primeira metade do século XX. Para Finley, os historiadores não deveriam enquadrar o modo de funcionamento da economia antiga nos parâmetros da economia moderna devido às singularidades de cada uma.

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Ademais, verificamos que o campo do imperialismo ofensivo, apesar das críticas, continuou em plena atividade, como na obra de Richard Duncan Jones, que, em 1974, publicou o seu livro intitulado Economy of the Roman Empire. Na obra, o autor traz problematizações em torno da expansão e dos benefícios financeiros obtidos por ela para os senadores e magistrados romanos. Jones fornece a visão das negociações e taxações de Roma com as suas províncias, como o caso da África. A sua abordagem é pautada nas questões financeiras como motriz da sociedade romana. Com uma abordagem aproximada à de Richard D. Jones, podemos citar a vertente imperialista de Arnold Hugh Martin Jones, em The Roman Economy: Studies in Ancient Economic and Administrative History (1974). Nesta obra, o autor analisa a relação da sede de poder romana com as cidades, na perspectiva de que Roma veio a enriquecer a partir da entrada dos recursos oriundos de sua expansão. Logo, Jones reitera a visão de relações desiguais entre centro de poder e áreas submetidas. Na vertente historiográfica de Erich S. Gruen (1973, p.273-275), os antigos romanos não deveriam ser concebidos enquanto totalmente imperialistas, nos termos de um expansionismo ofensivo. Para Gruen, os romanos perderam, ao longo de sua expansão, algumas oportunidades de explorar economicamente as sociedades conquistadas. Entretanto, Moses Finley nos possibilita pensar que nem sempre a política imperialista romana visava à intervenção direta, e que a formação de uma área de influência romana poderia ocorrer com a cooptação da elite nativa. Com novos postulados sobre a expansão romana, Moses Finley, em Empire in the GrecoRoman World (1978), foi considerado como o autor que inovou o campo teórico envolvendo a economia e o imperialismo. Para Finley, tal empreitada de Roma pode ser dividida em fases que se pautam na organização das conquistas e no tipo de vantagens advindas da ação imperialista (1978, p.02-10). O primeiro fluxo seria delimitado pela conquista da Península Itálica central e meridional, o que assegurou o território de Roma e produziu presas de guerra, além da aquisição de grandes extensões de terra confiscadas. O segundo ocorre desde a guerra com Cartago até o fim da República. Neste contexto, deu-se a formação do sistema provincial, gerando um grande aumento das presas de guerra e implantação de taxas regulares das províncias. Na terceira fase, durante o principado, a pax romana reduziu enormemente as presas de guerra, mas as taxas e requisições provinciais aumentaram constantemente e houve o processo de manutenção do controle dos

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territórios conquistados. Ao cotejarmos a perspectiva de Finley com os escritos de Diodoro da Sicília, em sua obra Biblioteca Histórica, indicamos as possíveis bases dos estudos sobre a diferenciação da ação romana ao longo do tempo com os povos submetidos: ―Os romanos, quando decidiram aspirar ao domínio do mundo, conquistaram o império com o valor de suas armas, mas, para seu próprio benefício, trataram com benignidade os povos vencidos (...) e a ninguém mostraram mais rancor do que era necessário‖ (Biblioteca histórica, XXXII, 4).

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O húngaro Géza Alföldy, em Römische Sozialgeschichte – História Social de Roma – (1984), problematizou a questão da expansão romana apresentando-a em duas etapas. Até meados do século V a.C., Roma teria estabelecido uma ação defensiva em suas guerras. A medida buscava manter a integridade da região contra possíveis ataques dos etruscos e como uma forma de assegurar seu poder nos territórios vizinhos. Entretanto, a partir da segunda metade do século V a.C., com a subjugação de Fidena e de Veios, Roma veio a desenvolver uma característica expansionista – que podemos considerar como ofensiva –, com objetivo de sanar conflitos sociais internos entre a aristocracia e a plebe, além de obter ganhos econômicos (ALFOLDY, 1989, p.36-42). Para os historiadores Mary Beard e Michael Crawford (1985, p.7476), o tema da expansão perpassa por um emaranhado de fatores de cunho econômico, político, militar e social. Segundo os autores, dois eram os elementos fundamentais para a construção do processo expansionista romano: o primeiro seria a disputa política entre a elite ávida pela obtenção de prestígio e riquezas, com as suas ações frente aos postos de comando; o segundo fator reside nas alianças realizadas na Península Itálica, onde, em troca de não impor uma tributação, Roma havia solicitado contingente humano para integrar as suas legiões. De acordo com Norberto L. Guarinello (1987), questões políticas e econômicas são indissociáveis para pensarmos o imperialismo na Antiguidade. Logo, o autor nos ressalta que nos estudos sobre o imperialismo, devemos nos centrar sobre as estruturas internas, a organização da economia e do sistema político, para que se possam compreender as causas da expansão e as formas de sua organização (1994, p.43-46). Prosseguindo, ressaltamos a abordagem da romanista Norma Musco Mendes (1988, p.42), publicada em seu livro Roma Republicana, que, apesar de não descartar as pressuposições defensivas do imperialismo romano em sua fase

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inicial, amplia os debates sobre a fase ofensiva, relacionando-a com o contexto político e econômico. A autora menciona que a CidadeEstado em questão foi impulsionada, em seus primórdios republicanos, a expandir-se para a obtenção de necessidades consideradas vitais. Entre elas, podemos destacar a defesa do próprio território, a aquisição de terras e a preservação de lugares estratégicos e comerciais. Além do que fora apontado pela busca de segurança e sobre as questões político-econômicas, podemos acrescentar ainda as ambições da aristocracia como dispositivo propulsionador para a expansão romana na República Média. Norma Musco Mendes prossegue advertindo-nos de que a expansão também estava relacionada com instrumentos ideológicos romanos, como o desenvolvimento de um patriotismo exacerbado e a procura pela glória militar. Tal aparato fazia parte da formação do jovem aristocrata romano, como pontuado por William Harris, até o século I a.C. Para o autor, a gloria e a laus eram dois preceitos essenciais para a aquisição da dignidade e da autoridade como meios para ascender-se socialmente no período da República. Logo, um dos elementos constituintes da expansão estava atrelado à competição aristocrática pela obtenção de cargos e prestígio públicos, sem deixar de lado seu enriquecimento próprio (HARRIS, 1989, p.09-34). Imersos nas respectivas vertentes sobre a expansão romana, corroboramos os pressupostos de Norberto Guarinello (2006, p.1416) sobre a complexidade que envolve o tema do imperialismo romano. A constituição do império pode ser vista como o resultado de um lento processo de conquista militar e centralização política, primeiramente da cidade de Roma sobre a Itália; depois, da própria península sobre o Mediterrâneo Antigo. A partir do que foi debatido, podemos compreender a expansão como um objeto complexo no qual as ações variavam de acordo com o contexto histórico. Assim, a economia, a política e determinadas práticas aristocráticas devem ser problematizadas em conjunto, ampliando a visão dos estudantes sobre o conceito de imperialismo romano. As visões sobre a referida conceituação, no que tange à defesa territorial e ao fluxo ofensivo para conquista de territórios e benefícios econômicos, não devem ser analisadas de forma antagônicas na prática de ensino e pesquisa, como em muitos casos pode parecer para os pesquisadores da cultura romana. Em nossa visão as ações defensivas e ofensivas eram complementares e seu emprego variava de acordo com o contexto político-cultural de Roma. Dessa forma, ao levarmos o tema da expansão romana para a

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sala de aula é importante tomarmos uma atitude reflexiva, a qual possibilite ao jovem compreender Roma através de suas múltiplas interações culturais, alianças e tensões referentes a manutenção do seu poder no Mediterrâneo Antigo. Referências Documentais DIODORUS SICULUS.Bibliotheca Historica. Vol. XI. Trad.: C.H. Oldfather [et al].Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1933. POLYBIUS. Histories. Trad.: Evelyn S. Shuckburgh. Londres; Nova Iorque; Bloomington: Indiana University Press, 1962. SALLUST. Conspiracy of Catiline. Trad.: John Selby Watson. New York and London: Harper & Brothers, 1899.

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EM TEMPOS DE BNCC, ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O ENSINO DE ANTIGUIDADE CLÁSSICA NO BRASIL Claudia Beltrão da Rosa

Et quae tanta fuit Romam tibi causa uidendi? Libertas, quae sera tamen respexit inertem, candidior postquam tondenti barba cadebat, respexit tamen et longo post tempore venit... [- E qual o motivo de visitares Roma? - A Liberdade, que, mesmo tardia, Lançou sobre mim, então inerte, Quando eu já tinha a barba branca, Seus olhos favoráveis, e chegou, muito tempo depois...] (Verg. Ecl. 1, 25-28)

Em artigo publicado na Revista Helade (2001), o classicista Pedro Paulo Funari, argumentando pela importância de uma abordagem crítica em História Antiga nos livros didáticos, relembra a defesa do estudo do latim e do grego feita por Antonio Gramsci, no Quaderno 12, pois as línguas estruturam a vida social dos povos, condicionam a cultura e os conceitos que orientam e enquadram as nossas vidas e, no caso das duas línguas mencionadas, o grego e o latim, há um aspecto ainda mais premente: boa parte, senão a maior parte, dos conceitos ocidentais modernos implicam apropriações e ressemantizações de conceitos, noções e palavras oriundas do grego e/ou do latim, em um processo cuja estruturação é demonstrada por Reinhart Koselleck, em seus estudos sobre a contemporaneidade do não-contemporâneo (2006). Funari relembra que os clássicos nos dão aquilo que nenhuma tecnologia moderna, nenhum manual moderno, nenhuma facilidade da era digital permite: o conhecimento de muitos dos nossos fundamentos. Quando pensamos em nosso mundo, o mundo contemporâneo, deparamo-nos com elementos e ideais que têm suas origens nos clássicos. As instituições estatais estão plenas de nomes derivados – mesmo que seu sentido tenha sido alterado – de instituições antigas, sem que o ―senado‖ seja nem a primeira nem a única. Não apenas na nomenclatura das instituições políticas, mas também nos jornais diários e em nossa vida quotidiana, vemos que mulheres e homens aspiram, promovem, celebram, defendem, matam e morrem por

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termos e conceitos de origem clássica, especialmente gregos e romanos. Um país, por exemplo, só é reconhecido como ―civilizado‖ pelos media e, consequentemente, pelo senso comum, se vive de acordo com aquilo que se chama ―democracia‖. Por isso, faço eco a Mary Beard e a John Henderson, e afirmo: O estudo dos clássicos nunca é uma autópsia, por mais que se considerem ―mortas‖ as línguas e as culturas que as utilizaram. A cultura ocidental apoia-se a tal ponto em séculos de investigação do legado clássico que esse legado está sempre arraigado em algum lugar em tudo o que dizemos, vemos e pensamos (BEARD, HENDERSON, 1997: 150).

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Mesmo no nível mais quotidiano, é difícil escapar dos clássicos. Desde as colunas que adornam as fachadas dos bancos, dos edifícios públicos e dos condomínios residenciais que se pretendem luxuosos aos filmes hollywoodianos, o clássico faz parte do tecido da nossa modernidade diária. Palavras derivadas de termos gregos e latinos povoam nossa fala quotidiana. Nosso próprio idioma, o português, é uma língua derivada do latim, e nossas palavras têm uma ligação intrínseca não apenas com a língua latina propriamente dita, mas também com as diversas apropriações e ressignificações, ao longo dos séculos, de experiências coletivas antigas que se tornaram modelares para a tradição ocidental. Os clássicos, então, estão ao nosso redor e em nosso interior, tenhamos consciência disso ou não. O problema é que assistimos a um movimento decidido a esquecer tanto do passado clássico quanto do passado mais recente, e que sofre de amnésia voluntária. Assim, boa parte das bases da nossa cultura poderá ser, muito em breve, simplesmente extirpada do nosso sistema de educação com óbvios prejuízos para a compreensão das principais questões da vida moderna e de nós mesmos. Identidades se sobrepõem e interagem em cada um de nós e há diferentes maneiras de narrar a história. E como, em toda conferência, o conferencista pretende fazer algo com a sua plateia, pretendo hinc et nunc, algo mais preciso do que um simples lembrete genérico de que os clássicos são importantes para o nosso autoconhecimento e que sua eliminação do currículo tem um potencial nefasto para a educação escolar das novas gerações: pretendo fazer com que os meus leitores assumam uma posição em relação à história, em todos os seus amplos sentidos. Acima de tudo, para que saibamos de onde viemos. A história faz de nós o que nós

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somos. Se não a conhecemos, não temos consciência de nós mesmos, temos pouca capacidade reflexiva (tão em falta atualmente) e sucumbimos a toda a amnésia cultural da contemporaneidade. Conhecer nossos fundamentos constitui uma necessidade, portanto, se queremos entender a nossa vida. Sem isso, nada pode existir além de uma frágil e volátil compreensão das questões relevantes da nossa própria vida, e sucumbimos facilmente a todos os modismos, clichés, preconceitos, justamente pela impossibilidade de reflexão. O ―eu‖ atual não pode ser rigorosamente apreciado se não levamos em conta seus alicerces, sua formação por meio de ideias e imagens herdadas. A História Antiga, e a Antiguidade clássica em particular, então, não pertencem a um passado remoto sem ligações com o Brasil. Vejamos alguns exemplos nos quais o ideal e o modelo da Grécia e de Roma irrompem como significativos para a compreensão da modernidade. A arte do Romantismo não pode ser separada do helenismo de seus escritores e artistas. A prática educativa e a teoria que formaram as mentes dos dirigentes europeus, norte-americanos e brasileiros até pouco tempo atrás, assim como as figuras de destaque da vida pública, estavam totalmente comprometidas com os clássicos. O grego e o latim forneceram, durante milênios, o ―pano de fundo‖ das mentes ocidentais. A Revolução Francesa e os Estados Unidos da América fizeram de Roma o ideal republicano, e utilizaram a política clássica como uma maneira de conceber os princípios de governo e as práticas sociais. A Alemanha dos séculos XIX e XX encontrou uma identidade cultural na arte e na literatura – e seu fervor nacionalista – em uma Grécia imaginada, dentre outros exemplos possíveis. E a busca pelas origens clássicas e o poder dos mitos gregos e romanos continuam a conformar e/ou distorcer a vida política ocidental. Grécia e Roma irrompem recorrentemente como ideais significativos, como verdadeiras bandeiras para diversos movimentos e reformas, inspirando mudanças políticas e artísticas. Uma Grécia e uma Roma imaginárias têm sido miragens com grande potencial criativo em momentos cruciais da história política e cultural do Ocidente. As figuras mais radicais da política, da arte, da música, da poesia, do pensamento e do comportamento se apropriaram, ao longo dos séculos modernos, dos clássicos como força inspiradora ou entraves a combater, mas é difícil que isso seja mencionado abertamente, sem o lugar-comum de que representam um tema elitista e conservador, ou de que é destinado a uns poucos, ou de que têm pouca relevância para a atualidade brasileira. Esses

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clichês denotam uma visão bastante estreita da relevância dos clássicos, decorrente, no mais das vezes, de um desconhecimento dos mesmos e de uma grave deficiência educacional, hoje muito comum, inclusive, entre os professores de história. Ao contrário, o descuido em relação ao estudo da Antiguidade clássica – e o seu consequente conhecimento de segunda, terceira ou quarta mão através dos mass media –, aprofunda o fosso entre a formação cultural das ―elites‖ e dos mortais ―comuns‖, aprofundamento para o qual a proposta da BNCC-História contribuirá significativamente. O mundo clássico, tão próximo e tão distante de nós, como bem mostraram Mary Beard e John Henderson em Antiguidade Clássica, uma brevíssima introdução, dependendo do modo pelo qual é apresentado, pode servir tanto como inspirador da luta pela liberdade e pela igualdade, como pode surgir como justificativa do status quo patriarcal e opressivo. Uma apreciação adequada e consciente do passado requer uma reflexão sobre as narrativas, imagens e mitos, sobre as maneiras de contar histórias e sobre as análises que dão sentido ao passado – e, por conseguinte, ao presente.

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No Brasil, contudo, vivemos uma situação curiosa no que tange ao ensino de História. Os ―critérios de relevância‖ são ídolos contemporâneos das Diretrizes Curriculares Nacionais e dos idealizadores e defensores da BNCC-História. Decerto, todo ensino e toda pesquisa devem ser relevantes para as nossas vidas, mas a relevância não deve significar o que vem significando na prática atual, ou seja, o deleitar-se com os eventos do momento e reagir somente a narrativas e imagens exatamente semelhantes às nossas. Um dos maiores critérios de relevância deveria ser o de compreender e apreender a diferença do passado e sua contínua ação no presente. É relevante compreender como gerações anteriores conceberam o passado, como foram por ele inspiradas e estimuladas, como se rebelaram contra ele, como o rejeitaram. Os clássicos têm sido constantemente reinventados e ressemantizados como modelos e, em consequência, seu estudo é uma força positiva para compreender o presente. Se não soubermos como a Antiguidade clássica povoou a imaginação, estimulou e estruturou o pensamento e agiu como uma bandeira da opressão, mas também da revolução artística, social e política, a visão que temos da nossa tradição cultural será necessariamente limitada e distorcida. Há algum tempo, o significado político do ensino dos clássicos vem paulatinamente se tornando tema de debates, e destaco o Grupo de Trabalho de História Antiga (GTHA) da Associação Nacional de

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História (ANPUH), em seus diversos encontros nacionais e regionais. Por um lado, como sabemos, textos clássicos sempre foram um componente central da agenda educacional de correntes conservadoras; para estas correntes, estes textos constituem reservatórios permanentes e imutáveis de ―verdades eternas‖ sobre a ―natureza humana‖, uma condição humana fixa, com uma mensagem clara sobre limites severos à possibilidade de ação humana no mundo e sobre as convenções políticas e sociais. Por outro lado, movimentos contemporâneos de grupos (modernamente) subordinados como as mulheres, os negros, os homossexuais e outros, trouxeram questões sérias e legítimas sobre os elementos misóginos, racistas, homofóbicos e eurocêntricos veiculados pelo ensino tradicional dos clássicos na modernidade. De fato, os clássicos, dependendo de como são apresentados, podem ou não ser apoios sólidos para a perpetuação de uma tradição monolítica ocidental, numa abordagem não crítica. É especialmente difícil para os professores verem suas atitudes pedagógicas e científicas como dependentes de implicações políticas, mas não há ensino nem pesquisa sem vínculo com uma ideologia. A questão maior é a de se estamos conscientes do significado de suas abordagens e perspectivas. A maior utilidade dos clássicos, nesse caso, está em seu ecletismo, em suas múltiplas origens e características. A diversidade cultural dos antigos pode e deve ser apresentada em contraposição aos discursos reacionários e conservadores modernos, no mau sentido do termo, e servem como uma oposição à opressão da ―tradição‖ estiolante do status quo. O estudo dos clássicos surge também, então, como elo constante de ligação da realidade atual com as suas (modernas) origens ideológicas. A compreensão de nossas crenças, costumes e instituições exige um recuo ao mundo antigo, sem o qual a compreensão do presente será, no máximo, superficial. *** Em 1995, a helenista brasileira Neyde Theml prefaciou o primeiro número da Revista Phoînix e definiu o preconceito, até hoje presente no meio acadêmico, de que era impossível pesquisar história antiga no Brasil, com uma pérola de ironia: Nas escolas brasileiras, aprende-se que Adão foi o primeiro homem e o segundo, Cabral (frase retomada em THEML, BUSTAMANTE, 2005: 9). De fato, o ―pequeno‖ lapso temporal entre ―Adão e Cabral‖ era (e ainda o é, na BNCC-História) praticamente negligenciado pela ignorância e a consequente incompreensão do valor dos estudos nesta área do

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conhecimento. E podemos listar vários equívocos: o de acreditar que os estudos de Antiguidade dizem respeito a sociedades mortas, a partir de documentos fragmentários, daí sua não importância e seu caráter duvidoso; a crença de que idade antiga no Brasil é índio (frase que ouvi de uma notória docente, titular de História do Brasil da UFRJ, nos idos de 1987, dita, aliás, com desprezo tanto em relação à antiguidade como aos indígenas sul-americanos); e o maior dos equívocos: não perceber a atualidade, a modernidade e a pertinência dos estudos da Antiguidade, a partir do diálogo entre os antigos e os modernos. Mais de duas décadas depois, a Revista Phoînix, e.g., é uma das publicações científicas brasileiras consolidadas e consagradas na área de História Antiga, demonstrando a cada edição que o estudo das sociedades antigas nos leva a refletir com mais propriedade sobre as implicações e os embates da nossa cultura e a esclarecer o que somos, comparados e confrontados com os ―outros‖, os antigos.

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No âmbito universitário brasileiro, porém, mesmo com o grande crescimento da área, ainda são poucas as instituições que contam com pessoal qualificado para o ensino e a pesquisa da História Antiga. No ensino básico, a falta de especialistas é ainda mais grave. No mais das vezes, vemos as disciplinas e atividades ligadas à área conduzidas por pessoas que não têm formação adequada, o que leva a inúmeros desvios de formação dos egressos desses cursos e à consequente incompetência dos docentes de História do ensino básico em suas aulas de História Antiga. Professores mal formados têm uma grave diminuição de sua capacidade crítica, especialmente porque, como bem sabemos, a maioria dos docentes em atividade não prossegue a sua formação por meio de cursos de pós-graduação ou mesmo de atualização profissional em sua área de conhecimento. Apesar de nos últimos trinta anos o ensino e a pesquisa de História Antiga serem muito promissores, com investigações divulgadas em fóruns e publicações nacionais e internacionais, bem como houve a consolidação de linhas de pesquisa em cursos de pós-graduação voltadas para questões tais como: consciência histórica, currículo, tempo histórico e educação, novas linguagens do ensino de História, livro didático, material escolar, identidades culturais, memória e ensino de História, dentre outros, no Brasil, a sub-área da História mais prejudicada na educação básica é, inquestionavelmente, a famosa ―História Antiga e Medieval‖ (conjunção altamente discutível, uma exclusividade nacional derivada da falsa crença de que o ―mundo‖ começou com Cabral). A proposta da BNCC-História revela tal falácia com clareza.

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Como resultado direto dessa falta de formação adequada por parte dos egressos dos cursos, constata-se que os conteúdos referentes à História Antiga e à História Medieval são os que padecem da maior quantidade de problemas, alguns dos quais extremamente graves, o que pode ser verificado em qualquer análise preliminar dos livros didáticos de História. Na já citada Revista Hélade (2001), Gilvan Ventura da Silva fez uma série de considerações sobre o livro didático que, a despeito de mais de uma década ter passado, continuam atuais, mostrando que, para além de erros crassos e dos anacronismos (pecado mortal do historiador), os volumes que se referem aos conteúdos de ―História Antiga e Medieval‖ padecem da terrível mania das simplificações. Decerto, é preciso levar (ou traduzir) conteúdos complexos aos alunos, adequando-os ao seu nível cognitivo e à sua faixa etária e, de preferência, aprimorando paulatinamente tal nível. Ser capaz disto é a marca suprema do bom professor. Mas o que vemos nos livros didáticos e nos programas de ensino (mesmo no nível superior) é algo grosseiro e pernicioso. Suprimem-se detalhes e características particulares e, na pretensão de facilitar o processo de ensino-aprendizagem, tratam-se os conteúdos com tal negligência que estes são distorcidos, falsificados. Gilvan Ventura detectou e analisou, no artigo citado, cinco tipos de simplificações, as processuais (que, no afã de resumir os processos históricos, produzem caricaturas das diversas sociedades), as teórico-conceituais (talvez mais graves, pois a regra primeira da História é a reflexão prévia dos termos e conceitos que serão utilizados na narrativa; os conceitos nos livros didáticos de História Antiga, invariavelmente aparecem como se fossem autoexplicativos, ou a definição dada é tão genérica que os diluem e acabam por não dizerem nada), as comparativas (os livros didáticos são recheados de comparações estapafúrdias), as valorativas (levando os alunos e leitores a julgamentos de caráter ético ou moral sobre eventos e personagens históricos, produzindo estereótipos, criando ou reafirmando preconceitos) e as generalizações espaço-temporais (quando se dá a características particulares de uma sociedade, ou região, ou grupo social, uma abrangência e duração que não são verificadas na documentação). É certo que temos uma necessidade, talvez inata ao ser humano, de buscar uma unidade básica entre as sociedades humanas, mas, para mim, o potencial criativo, num encontro com a Antiguidade clássica é, primeiro e acima de tudo, a possibilidade de engajamento com o ―outro‖ cultural. Não que inexistam continuidades e semelhanças passíveis de estudo, pelo contrário, mas cremos que uma das nossas

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responsabilidades é pôr em discussão a crença, da maioria dos estudantes, de que nada há de diferente daquilo que conhecem que possa ser sustentado ou que seja desejável. A experiência cultural de nossos estudantes é profundamente a-histórica, e muitas vezes antihistórica, e isto é algo que determina suas crenças, ideias e suas percepções da vida individual e coletiva. Às vezes, me perguntando por que a maioria dos estudantes e, mais grave, estudantes de História, acreditam tão tranquilamente que aquilo que temos hoje, padrões, convenções, coisas justas e coisas injustas são imutáveis, e é tão anacrônica no trato com os temas e sociedades que estuda, penso que tal aquiescência revela, infelizmente, o fracasso da escola e o sucesso de nossas mídias culturais em convencê-los de que as mensagens transmitidas e seus parâmetros são ditados por uma natureza humana imutável. Lamentavelmente, as propostas da BNCC-História reiteram e reafirmam a aparência de imutabilidade da vida em sociedade. É claro que chamar esta postura de a-histórica ou anti-histórica implica uma concepção de História como o reino das possibilidades, na qual as escolhas sociais levam a determinadas condições de possibilidade em cada contexto social e histórico particular. Um encontro com um mundo diferente pode fazer com que vejamos – se apresentamos este mundo não como um repositório das ―melhores‖ ou das ―piores‖ escolhas, mas sim como um modelo de totalidade social nas quais as consequências de escolhas de vários tipos, econômicas, sociais, políticas, religiosas, culturais, educacionais, são determinantes –, que podemos nos contrapor à falsa crença da ―necessidade natural‖ das coisas serem como são. Reiteramos constantemente que nossas leituras do passado têm seu fundamento num diálogo entre passado e presente. Nossas tentativas de compreensão do passado dependem das questões que surgem a partir do nosso enquadramento cultural. Ao mesmo tempo, procuramos descobrir as questões que o próprio passado tentava responder, em seu tempo e lugar, em nosso diálogo com a história. Nossa perspectiva presente sempre envolve uma relação primordial com o passado, mas ao mesmo tempo, o passado só pode ser compreendido em termos da limitada perspectiva do presente. Desta forma, creio que a tarefa de alcançar uma compreensão do passado é possível, mas, em uma perspectiva hermenêutica, tal compreensão jamais pode separar o conhecedor do objeto do conhecimento. Não podemos fazer nossas ―incursões‖ pelo passado sem levar o presente conosco, além de todas as nossas expectativas de futuro. Nesse sentido, toda compreensão é uma construção criativa, pois uma obra ou um tema passam de um contexto cultural

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a outros, e novos sentidos vão sendo incorporados a eles, sentidos que jamais poderiam ser antecipados por seu autor, ou por outros leitores e audiências. Desta forma, os novos leitores/espectadores do passado fazem conexões, eliminam ou saltam barreiras, criam sentidos com base no seu conhecimento tácito do mundo em geral, e das convenções literárias, artísticas, sociais, políticas, etc., em particular. Uma leitura de um livro e a visão de uma obra do passado, seja de que tipo for, é sempre um convite à construção de novos sentidos para o presente. Os estudantes, porém, têm muita dificuldade de operar este diálogo quando o ensino é completamente divorciado dos mecanismos com o quais lidam em sua experiência quotidiana. Daí a importância, por exemplo, das discussões sobre a chamada ―cultura popular‖ no ensino dos clássicos. Não se trata aqui de buscar um nível de relevância que simplesmente confirme suas percepções correntes do que é importante. Em diferentes grupos de estudantes, e em diferentes contextos, esta percepção varia, dependendo de diversos fatores, como os fatores socioeconômicos, o tipo de música que ouvem, os divertimentos de todo tipo, jogos, gírias, televisão, redes sociais, cinema, tudo isso tendo um papel decisivo na formação da autopercepção, das suas opções de vida e de seus valores morais. A incorporação de tais elementos nos cursos de história permite levar os estudantes a uma interrogação simultânea de suas próprias práticas culturais e as de sociedades com práticas sociais distintas, pois trazidos à vida, por exemplo, nos jogos, palcos e telas, mitos, personagens e cenas da Antiguidade ressoam através da vida quotidiana de milhões de brasileiros, e fazem os clássicos se endereçarem ao nosso presente, criando novas imagens e mitos sobre a Antiguidade (e sobre nós mesmos), renovando os debates sobre a natureza da tradição clássica, as definições da História e o lugar do passado em nosso mundo. Sugestões de leituras e vídeo Além de recomendar, obviamente, a leitura da proposta da BNCCHistória, considero fundamental a leitura das diversas manifestações ocorridas pró e contra tal proposta. Uma consulta à página eletrônica da Associação Nacional de História-Seção Rio de Janeiro (ANPUH-RJ) facilita o acesso a boa parte delas: http://site.anpuh.org/index.php/bncc-historia E excelentes considerações sobre nossas relações com os ―antigos‖ e os usos do passado podem ser encontradas na entrevista dada pelo Prof. Fábio Faversani para o Programa Com Ciência (TV-UFOP):

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https://www.youtube.com/watch?v=IBxpy_yRDVM Referências bibliográficas BEARD, M.; HENDERSON, J. Antiguidade Clássica: uma brevíssima introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. FUNARI, P.P.A. A importância de uma abordagem crítica da História Antiga nos livros escolares. Hélade, Número Especial/Série Antiga, 2001:25-29: www.helade.uff.br KOSELLECK, R. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. RJ: Editora PUC-Rio, 2006. SILVA, G.V. Simplificações e Livro Didático: um estudo a partir dos conteúdos de História Antiga. Hélade, Número Especial/Série Antiga,, 2001:19-24: www.helade.uff.br TEHML, N; BUSTAMANTE, R. M. Editorial. Phoînix 10, Rio de Janeiro, 2005: 9.

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HISTÓRIA DAS MULHERES: ENTRE HISTORIOGRAFIA E LIVROS DIDÁTICOS Dulceli de Lourdes Tonet Estacheski

Os profissionais devem sempre tomar cuidado, prestar atenção e insistir em que, na medida do possível, o estado de investigação de sua matéria chegue sem grande demora aos livros didáticos. (RÜSEN, 2010, p. 110)

O debate sobre o livro didático de História tem se ampliado significativamente. Mesmo sendo ele alvo de críticas por ser utilizado, por vezes, de forma inadequada, ninguém questiona sua importância para as aulas de História, tanto como material de apoio docente, quanto como instrumento de leitura de estudantes. Em seu texto ‗O livro didático ideal‘, Rüsen (2010, p. 109) afirma que o livro didático ―era um dos canais mais importantes para levar os resultados da investigação histórica até a cultura histórica de sua sociedade‖. Embora as diferentes mídias, internet, cinema, jogos, TV, sejam veiculadoras de informações históricas, ainda são: a sala de aula, o professor ou professora e o material didático, os responsáveis pela socialização dos saberes históricos de forma mais efetiva para grande parcela da população e isso justifica o interesse e as diferentes pesquisas relacionadas ao livro didático de História. Miranda e Luca (2005), ao abordarem a questão do livro didático na contemporaneidade a partir de uma reflexão sobre o Programa Nacional do Livro Didático, destacam que o governo brasileiro, desde o Estado Novo, tem implantado políticas de avaliação desse material, estabelecendo regras para produção e distribuição do mesmo. A busca pela construção de um nacionalismo era o que motivava tal cuidado com o livro. A vigilância se intensificou no período militar que gerou a massificação do uso do livro didático, o entendendo como um importante instrumento político-ideológico que propagava regras de conduta e de civismo. Havia censura e o conteúdo histórico que o livro contemplava era o aprovado pelo governo. A reabertura política da década de 1980 alavancou as discussões sobre o ensino de história e seu material didático e abriu as portas para mudanças, que não ocorreram tão rapidamente o quanto gostaríamos.

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A relação entre o livro didático e a indústria editorial é clara e foi a partir da implementação do Programa Nacional do Livro Didático, e mais especificamente após 1996 quando ocorreu a efetiva avaliação dos livros, é que eles passaram por alterações mais significativas. O programa prevê que só podem ser adquiridos os livros avaliados e classificados que passam a constar no Guia do Livro Didático e considerando que os critérios de exclusão dos livros vão desde erros conceituais, de informação à desatualização ou veiculação de preconceitos, as editoras passaram a se preocupar mais com a qualidade dos livros. Mesmo que para as editoras isso tenha um caráter econômico, não podemos negar que ganhamos também com as diferentes publicações que surgiram.

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Outro fator que levou a mudanças nos materiais didáticos foi a implementação de diferentes leis, como a de nº 13.381/01 que torna obrigatório, na rede pública estadual do Paraná no ensino fundamental e médio, o ensino dos conteúdos de História do Paraná e a de nº 11.645/08 que estipula a obrigatoriedade do ensino da temática História e cultura afro-brasileira e indígena. A inserção desses conteúdos nos livros traz sempre à tona o debate sobre o currículo de História, como tem ocorrido com a elaboração da Base Nacional Comum. E é claro, para além dessas questões, existe a preocupação com a renovação historiográfica que tem problematizado de formas diversas temas já consagrados nos livros escolares. Sendo a desatualização historiográfica um critério de exclusão dos livros didáticos, cabe aqui nos questionarmos: o que tem acontecido em relação à história das mulheres, que há décadas tem ocupado, e cada vez com mais intensidade, os espaços acadêmicos, mas ainda não é tão perceptível nos livros didáticos? Analisar esse descompasso é o que nos propomos com esse texto. A escrita da história das mulheres A escrita da história tem as marcas das relações de gênero. Smith (2003) declara que no século XIX, no período de profissionalização da História, sua escrita era marcadamente masculina. A autora revela uma relação construída em torno da ciência histórica que nos faz perpetuar ideias como, ao pensar na figura de um grande historiador, automaticamente o pensarmos como homem, visto que a história ganha seu caráter científico e profissionalizante justamente em um período em que as mulheres, em sua maioria,

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ocupavam o espaço doméstico, e para os homens ficavam as atividades de pesquisa, escrita e discussão acadêmica. Desta forma, a história teria sido transformada em gênero masculino por tradição, considerando que por ser escrita por homens, abordava assuntos de seu interesse. Para Smith (2003), as mulheres foram vistas ao longo da trajetória historiográfica como presas a superficialidades e incapazes de produzir profundidade reflexiva, amadoras, sendo consideradas más profissionais até por elas mesmas. Essa situação só começa a mudar no século XX, quando ―os historiadores profissionais começaram a observar os detalhes da vida social, econômica e cultural como precisamente aquela subcorrente essencial, de certa forma até mais profunda do que a política.‖ (SMITH, 2003, p. 444). O gênero masculino da e na escrita da história é apontado também por Scott (1992), que ressalta o privilégio concedido à história política, às fontes administrativas e militares, o que resultou numa exclusão das mulheres tanto como sujeitos da escrita da história quanto como objeto de seus estudos. Em seu texto ‗El problema de la invisibilidad‘ a autora reflete sobre o desenvolvimento do campo de estudos sobre as mulheres nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, fruto das intervenções de grupos feministas, apresentando as fontes e os métodos utilizados na escrita da história que visavam romper com a invisibilidade das mulheres em suas narrativas. O rompimento com essa invisibilidade na história fez com que se buscassem marcar diferenças em um primeiro momento. A história das mulheres surgiu com uma demarcação de heroínas, com a apresentação de mulheres ilustres que podiam servir de exemplo de luta e sucesso. Era uma forma de demonstrar que tais histórias mereciam ser contadas. ―Tratava-se inicialmente de tornar visível o que estava escondido, de reencontrar traços e de se questionar sobre as razões do silêncio que envolvia as mulheres enquanto sujeitos da história‖ (PERROT, 1995, p. 20). A conquista do espaço antes negado fez com que tais estudos se ampliassem e se modificassem com o tempo, saindo de uma característica primeira que demarcava claramente o binarismo masculino versus feminino, passando a constituir uma área do saber histórico muito abrangente. O campo de estudos tornou-se reconhecido a nível institucional, a ponto de Scott (1992, p. 38) afirmar que ―Sería difícil imaginar una historia escrita en esta época que no incluyera una mención al

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surgimiento de las mujeres como agentes del cambio histórico y como objeto de consideraciones políticas‖. A escrita da história amplia cada vez mais seus horizontes e a história das mulheres se legitimou na academia, o que é comprovado com as diversas publicações, eventos, debates, disciplinas sobre o tema que são cada vez mais frequentes. As mulheres nos livros didáticos de história Optamos por analisar uma coleção de livros didáticos de ensino médio que são utilizados em escolas da cidade de União da Vitória/PR. Trata-se da coleção ‗História em Movimento‘, dos autores Gislaine Campos Azevedo e Reinaldo Seriacopi. É evidente que compreendemos que essa seleção é arbitrária, e que para resultados mais consistentes outras coleções deveriam também ser analisadas, porém o que pretendemos é lançar o debate sobre o tema e quem sabe instigar mais pesquisas. Focaremos nesse subtítulo em um levantamento geral sobre a presença das mulheres nos conteúdos desses livros didáticos.

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No primeiro volume da coleção, ‗Dos Primeiros Humanos ao Estado Moderno‖, verificamos que as mulheres muito pouco aparecem. Há menções sobre sacerdotisas e deusas no mundo antigo, mas sem reflexão sobre elas. Algumas poucas fontes históricas, trechos de literatura, que apresentam personagens femininas. Poucas imagens de mulheres são apresentadas na obra e as atividades do livro não sugerem interpretação das mesmas. Isso teria que ser estimulado pelo professor ou professora que utiliza o livro didático em sala. Podemos citar duas entre elas que poderiam suscitar debates, a da página 92, que traz mulheres afegãs com seus documentos na fila das eleições em 2009 e na página 171, a fotografia da queniana Wangari Maathari, líder do movimento Cinturão Verde. Tal debate precisaria ser levantando pela professora ou professor que teria que buscar mais informações fora do livro, já que o mesmo não as apresenta. É claro que o ideal é que o/a docente sempre busque informações para além do livro, mas a questão aqui, é que o livro em si não inspira a reflexão sobre as mulheres de forma efetiva. Algumas mulheres ilustres têm seus nomes citados, como a imperatriz Teodora, Joana D‘Arc, Isabel, a católica, Catarina de Médici, Catarina de Aragão, Ana Bolena e Rainha Elizabeth I. A lista pode parecer extensa, mas não se torna uma inserção significativa quando as questões que envolvem a história dessas mulheres e de outras de seu tempo não são problematizadas. Citar os nomes sem

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refletir sobre as histórias não é o suficiente. Apenas a imperatriz Teodora ganhou um destaque de duas páginas, com dois parágrafos de biografia e uma grande ilustração explicada. Os trechos do livro que são mais expressivos em relação à vida das mulheres são aqueles que tratam da questão do casamento: na Índia, na África e na Idade Média, revelando a situação de submissão delas. Dois parágrafos são dedicados às mulheres na polis, no capítulo sobre a Grécia, e há uma sugestão de pesquisa sobre a situação das mulheres nas nações islâmicas e uma atividade de análise de fonte, do conto clássico ‗As mil e uma noites‘, questionando sobre a situação das mulheres na sociedade árabe da época, com sugestão de pesquisa sobre as mulheres no Brasil atual. No volume II, ‗O mundo moderno e a sociedade contemporânea‘, vemos uma mudança. Ele traz possibilidades reflexivas ao tratar dos povos indígenas e a divisão sexual do trabalho e também ao abordar a escravidão africana no Brasil. Nos capítulos destinados a essas temáticas, os textos remetem, vez ou outra, à situação das mulheres no contexto. Na página 134 há um trecho interessante do texto de Madalena Marques Dias, ‗As bravas mulheres do bandeirantismo paulista‘, sobre a força das mulheres paulistas em suas lutas diárias. Nas atividades do capítulo, uma das questões se refere a essas mulheres. No entanto, no tema ‗a revolução industrial‘ há apenas uma imagem de operárias em fábrica têxtil e sobre ‗a revolução francesa‘, uma imagem da marcha das mulheres parisienses sobre Versalhes e nada nos textos que provoque o pensar sobre tais histórias. A obra perdeu uma grande oportunidade, ao não trabalhar a história das mulheres nesse e em outros contextos. Anita Garibaldi, por exemplo, só é citada como esposa de Giuseppe. No último volume, ‗Do século XIX aos dias de hoje‘, há uma imagem e dois parágrafos sobre a obra de Harriet Stowe, ‗A cabana do pai Tomás‘, explicando que a autora era abolicionista. Trata-se de um quadro em fim de capítulo, assim como há um quadro em outro capítulo explicando o que significa ‗era vitoriana‘, mencionando assim o período de governo da rainha Vitória na Grã-Bretanha e um quadro no capítulo 5 intitulado ‗Mulheres no Brasil‘, esse um pouco mais extenso, ocupando quase uma página e meia, acompanhado de uma sugestão de atividade de pesquisa sobre alguma mulher de destaque da região em que os/as estudantes estão inseridos. A luta pelo voto feminino é abordada, dessa vez como parte integrante de um subtítulo e não como quadro à parte. Uma imagem

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da sufragista Emmeline Pankhurst acompanha o texto. Um parágrafo do texto sobre os efeitos da I Guerra Mundial sobre a população civil é destinado às mulheres, e duas das questões da atividade final do capítulo são sobre isso. Ao tratar da Constituição brasileira de 1891, menciona que as mulheres não podiam votar, e coloca uma imagem de Nísia Floresta, que lutou pelos direitos das mulheres. Há um texto sobre as blusas-verdes, mulheres integralistas brasileiras e um sobre as mães da Praça de Maio, na Argentina. Ao tratar do governo militar no Brasil, cita mulheres vítimas da repressão. E no último capítulo do livro, com o título ‗Novos rumos para o Brasil‘, trata da licença maternidade como direito trabalhista e da Lei Maria da Penha, destacando a discriminação das mulheres e a violência por elas sofrida. Considerações Finais

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Analisando a coleção de livros didáticos selecionada, percebemos que há uma preocupação com a inserção de diferentes sujeitos na história ensinada. Negros, indígenas, povos orientais, ciganos, mulheres, pessoas antes invisibilizadas, agora aparecem, mesmo que às vezes de forma tímida. Na sequência dos livros, vemos que o volume 1 sugere pouca reflexão, limitando-se por vezes a menções de nomes de mulheres, o volume 2 se mostra interessante nas reflexões sobre mulheres indígenas e africanas escravizadas, mas falhou ao não explorar o papel das mulheres nas revoluções Industrial e Francesa, por exemplo, assim como em outros contextos históricos. Já o volume 3 dá mais espaço a elas, mesmo que ainda como quadros complementares, curiosidades históricas, anexos da História, como já foi considerada a própria história das mulheres na historiografia. Há um descompasso entre a historiografia e os livros didáticos? Há. E por mais que possamos entender isso como natural, porque há um caminho para o debate acadêmico chegar aos materiais escolares, ficar parado no meio desse caminho ou se arrastar por ele, não dá. É preciso caminhar. A inserção real dos sujeitos na escola não se dá apenas pelo direito de matrícula, pelo direito de ocupação do espaço físico, mas também pelo direito ao espaço no currículo, pelo direito à voz, à visibilidade. Com o crescimento intenso do número de publicações sobre a história das mulheres em todo o mundo, era de se esperar que a temática já fosse mais conhecida pela sociedade em geral, porém, se o livro didático que é ainda hoje o material que mais leva

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informações históricas à população não aborda convenientemente essa história, e se a formação docente ainda é deficiente em relação ao tema, como promover a mudança? É importante o entendimento de que não apenas é importante a inserção de mulheres consideradas ilustres no livro didático, mas que se valorize a ação de inúmeras mulheres em diferentes tempos históricos, em movimentos sociais ou em ações do cotidiano. Quando lemos subtítulos em livros didáticos como ‗A vida social‘ e nele não há nada sobre as mulheres, nos questionamos sobre que tipo de organização social é essa? Não basta citar nomes de mulheres ou colocar imagens delas, é preciso que o livro instigue a problematização histórica. Ficamos muito tempo na expectativa e comemoramos os quadros explicativos com trechos sobre as mulheres, ou as poucas sugestões de pesquisa sobre elas, e esperamos romper com o descompasso entre historiografia e livros didáticos fazendo com elas estejam presentes em todas as temáticas históricas, assim como estiveram de fato em toda a trajetória da história vivida. Referências AZEVEDO, Gislaine Campos; SERIACOPI, Reinaldo. Livro História em movimento: ensino médio. Volume 1. Dos Primeiros Humanos ao Estado Moderno. São Paulo: Ática, 2010. AZEVEDO, Gislaine Campos; SERIACOPI, Reinaldo. Livro História em movimento: ensino médio. Volume 2. O Mundo Moderno e a Sociedade Contemporânea. São Paulo: Ática, 2010. AZEVEDO, Gislaine Campos; SERIACOPI, Reinaldo. Livro História em movimento: ensino médio. Volume 3. Do Século XIX aos dias de hoje. São Paulo: Ática, 2010. MIRANDA, Sônia Regina; LUCA, Tânia Regina de. O livro didático de História hoje: um panorama a partir do PNLD. Revista Brasileira de História. São Paulo. V. 24, nº 48, 2004. PERROT, Michele. Escrever uma história das mulheres: relato de uma experiência. Dossiê História das Mulheres no Ocidente. Cadernos Pagu. N. 4. Campinas: Núcleo de Estudos de Gênero/UNICAMP, 1995. RÜSEN, Jörn. O livro didático ideal. In: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Rezende (orgs.). Jörn Rüsen e o ensino de História. Curitiba: UFPR, 2010.

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SCOTT, Joan. El problema de la invisibilidade. In: ESCANDÓN, Carmen Ramos (Org.). Género y Historia. Mexico: Universidad Antónoma Metropolitana, 1992. SMITH, Bonnie. Gênero e História. Homens, mulheres e prática histórica. Bauru: EDUSC, 2003.

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ESTÁ MAIS DIFÍCIL APRENDER/ENSINAR HISTÓRIA HOJE!? Everton Carlos Crema É tempo de nós, historiadores, nos responsabilizamos por explicar o que fazemos, como fazemos, e porque é importante fazer. Não é apenas o público que está confuso sobre o papel e o estatuto da história. A maioria dos formandos em história tem pouca noção da vocação do historiador ou sobre como seus professores aprenderam o que ensinam. Não é preciso dizer, a situação dos estudantes do ensino médio é ainda mais complicada, já que a história é muitas vezes soterrada por um currículo generalizante de estudos sociais. Ademais, cursos de história, em todos os níveis, são geralmente concebidos para organizar um objeto especifico e não para cultivar um modo de pensar o passado. (APPLEBY; HUNT; JACOB, 2011, p. 367).

Parte da reflexão que desejamos fazer passa pela História como conhecimento e atributo da humanidade, um modo específico do pensamento. Ao mesmo tempo como disciplina científico-didática, ensinada desde a educação básica às licenciaturas de história. O convite à reflexão sobre a formulação do conhecimento histórico e o ensino de história se apresenta extremamente urgente, não só pelas diversas transformações políticas, culturais e sociais que o Ocidente de uma forma geral passou e sofreu no final do século XIX. Mas pelo contexto contemporâneo brasileiro em disputas político-partidárias e ideológicas que ganharam a mídia, as redes sociais e por decorrência a escola e a universidade. A reflexão tem como base e proposta de discussão a obra introdução ‗A telling the truth about history‘ 5 por duas perspectivas: Primeiramente pela crítica comparada ao modelo universitário brasileiro e suas tradições acadêmicas, num contraponto às diversidades e transformações étnico-sociais e a ampliação do acesso à educação. Segundo, a relação do conhecimento histórico com o ensino em seus diversos níveis. Apesar do texto em questão ter sido escrito no final dos anos 80, refletindo a sociedade norte americana, acreditamos ser possível criarmos e sustentarmos algumas aproximações com o contexto educacional e político brasileiro, ou então a partir dele caminhar. 5.‗Dizendo

a verdade sobre a história‘ escrita por Joyce Appleby; Lynn Hunt e Margaret Jacob – in NOVAIS, Fernando Antônio; SILVA, Rogério Forastieri. Nova História em perspectiva. São Paulo: Cosac e Naify, 2013.

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Evidentemente que a proposta possui claros limites, mas podemos considerá-la um ponto de partida, discutindo o estatuto do conhecimento histórico, formação profissional e o conteúdo escolar de história, olhando a realidade brasileira contemporânea, a academia e a escola. Não diferentemente, a universidade e a escola brasileira nasceram a partir de modelos europeus e norteamericanos, reproduzindo um modelo científico autorizado na busca do conhecimento, processo conhecido e datado. Com as crescentes e profundas transformações que o final do século XX apresentou, vimos uma ampla diversidade social, cultural, étnica e sexual, cerrar fileiras e conquistar espaços em todos os campos e lugares.

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Na mesma direção a universidade brasileira sentiu a força da transformação e das demandas que se apresentavam, o perfil da universidade brasileira mudou consideravelmente nos últimos 10 anos. A ampliação do acesso ao ensino superior de uma quantidade e diversidade étnica, racial, sexual, e mesmo política ou apolítica impactou os modelos tradicionais de ensino / aprendizagem, avaliação, representação e os próprios espaços políticos institucionais. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostragem a Domicilio - PNAD (2011) ―a proporção de jovens estudantes (18 a 24 anos) que cursavam o nível superior cresceu de 27,0% para 51,3%, entre 2001 e 2011, sendo que, entre os estudantes pretos ou pardos nessa faixa etária, a proporção cresceu de 10,2% para 35,8%.‖ (IBGE, 2011) Em todos os níveis da educação brasileira as pressões sociais de novos empoderamentos e agenciamentos se apresentam, modificando modelos tradicionais e conservadores no ensino, na pesquisa e na extensão. Novos objetos, problemas e sujeitos se inserem dentro da sala de aula e irradiam-se para fora dela, e nesse lugar de transformação e mudança, quase como consequência ou ausência, vem surgindo um mal estar, desfazendo as certezas. Vivemos um mal estar, fruto de novos paradigmas, porque em geral nós professores somos ‗treinados‘ para fazer algo, para ensinar algo, para responder algo, sem uma reflexão mais aprofundada sobre o que, como e para que e quem, ensinamos história. Parece que nossas respostas e perguntas não fazem mais tanto sentido, não respondem a ‗tudo como outrora‘, repetimos lições, conteúdos e avaliações adequadas às exigências de nota e desempenho esperadas, ‗esquecemos ou nunca aprendemos‘ a diferença entre conhecimento e compreensão em direção a uma educação histórica e um conhecimento histórico significativo.

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Para Schmidt (2009) a importância da ‗aprendizagem histórica situada‘ infere diretamente na relação de aprendizagem histórica a partir dos pressupostos da ciência histórica, ou seja, se aprende história da mesma forma que historiadores fazem seu trabalho histórico. Segundo a autora, as teorias psicológicas do conhecimento buscam desenvolver dentro da sala de aula, mediações entre o ensino e aprendizagem descontextualizadas. Dentro da aprendizagem histórica situada não existem mediações externas, e a educação histórica se constrói de forma direta com o conhecimento histórico, se aprende história, historicamente. O resultado desse processo é a criação de uma racionalidade histórica. O descompasso e o distanciamento entre a universidade, sobretudo os cursos de licenciatura, em relação à educação básica ainda é grande e presente. Se olharmos para o caso paranaense em específico, as Diretrizes Curriculares de História determinam a utilização da ‗aula temática‘ na estruturação do conteúdo e transposição didática nas aulas. O modelo temático opta por apresentar um tema ou conteúdo histórico em toda a sua amplitude e constituição, se aproximando da complexidade e dinâmica histórica, evitando a fragmentação, seriação e singularização do conhecimento histórico a partir de modelos tradicionais quadripartidos. Em todas as Universidades Federais e Estaduais do Paraná o currículo e a grade curricular programática, desconsidera o próprio programa educacional de história das Diretrizes Curriculares Paranaenses. Seguem um modelo tradicional e eurocêntrico, dividindo a história em períodos equivalentes e lineares, numa especificidade do tempo e espaço, tendo o continente europeu como parâmetro e medida de tudo. Do outro lado, os governos federal e estadual, quando pensam e produzem seus modelos, programas e documentos de ensino, fazem isso a margem da universidade e professores da educação básica, exemplo vivo temos o recente episódio da Base Nacional Comum. Muito e de ótima qualidade, vem sendo produzido no ensino superior e nas salas de aula, em relação ao ensino de história, e precisamos saber. Cursos de licenciatura em história ensinam um currículo científico de história, com pouca reflexão didáticopedagógica, vícios de origem da própria formação e de certo silêncio para com o ensino. O licenciado em história vai à sala de aula e solitariamente busca adequar o conhecimento da ciência de referência a modelos didáticos compreensíveis aos alunos. Não diferentemente em formações continuadas e semanas pedagógicas,

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os professores desejam aprender ‗receitas metodológicas‘ para o ensino de História, que sem reflexão e pesquisa, mais uma vez se tornam treinamento e repetição. Professores e professoras se questionam sobre as dificuldades de se ensinar história nos dias de hoje, a falta de compromisso do aluno com a educação, desinteresse, desatenção, falta de leitura estão postos e são temas recorrentes. Possivelmente não haja dissenso em afirmarmos que isso seja um processo de transformação social e ao mesmo tempo de crítica a modelos de ensino. Dessa forma, buscar as origens dos problemas e dificuldades se fazem necessárias, se não há interesse na aula, falta de leitura e tudo mais, precisamos criar uma cultura de pesquisa aplicada com nossos alunos, e a partir de seus resultados estabelecermos práticas pró-ativas e uma reflexão substancial sobre os caminhos que a escola, pais e alunos vão seguir. Devemos pensar reflexivamente e ensinar história a nossos alunos da mesma forma que fazemos pesquisa, ou pelo menos deveríamos assim ensinar.

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Como tais correlações são abordadas do ponto de vista da racionalidade do pensamento histórico, a mediação operada pela teoria entre ciência e profissão não pode reduzir-se a uma mera instrumentalização da ciência em benefício da profissão, nem se volta para a ciência ―pura‖ em detrimento da aplicação dos conhecimentos por ela produzidos no contexto social do pensamento histórico. (RÜSEN, 2001, p. 42) Parte dos problemas enfrentados pelos professores e professoras nas salas de aula tem sua origem, na distância e incompatibilidade de modelos de ensino, currículo e formação entre a licenciatura e a sala de aula. Mas devemos olhar conjuntamente, e essa é nossa intenção, para a transformação da sociedade brasileira no início do século XXI. Buscar na adequação ou funcionalidade dos modelos educacionais brasileiros, sem olhar para a sociedade em transformação, que reivindica espaço e um poder ser/fazer restará em erro. Devemos romper preconceitos e distâncias entre as licenciaturas e o campo de atuação dos professores da educação básica, a aproximação do ensino superior com a sala de aula é imprescindível e urgente, se queremos o ensino de uma história crítica e significativa. Conjuntamente devemos considerar o contexto social de mudança, percebendo a sociedade em renovação/transformação, considerando e acolhendo seus pleitos, reinvindicações e demandas. ―Um sujeito é fruto do seu tempo

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histórico, das relações sociais em que está inserido, mas, é também, um ser singular, que atua no mundo a partir do modo que o compreende e como dele lhe é possível participar.‖ (PARANÁ, 2008, p. 14) Se ensinarmos uma história crítica e significativa, voltada para a vida de nossos alunos, baseada em suas consciências históricas em seus cotidianos e suas vidas, permitiremos que o conhecimento histórico se transforme em compreensão histórica significativa e nesse momento o ensino de história tradicional é superado qualitativamente, em direção a uma ‗educação e compreensão histórica,‘ restituindo a importância e funcionalidade do estatuto do conhecimento histórico, agora uma estrutura de compreensão da realidade. Acreditamos que um modelo de pesquisa colaborativa aplicada que aproxime a universidade e o professorado, tendo como objeto de pesquisa o ensino de história na educação básica, pode vir a se constituir num modelo eficaz de análise, aproximação e encaminhamento. Os resultados da pesquisa aplicada permitiriam a identificação dos problemas, demandas e ações necessárias à educação básica, ao mesmo tempo em que coloca modelos metodológicos da academia a disposição das universidades, suas licenciaturas e educação básica, estabelecendo novas práticas. Por outro lado, mas de forma integrada, a participação/partilha da problematização/aplicação da pesquisa aplicada com professores da educação básica, contribuirá substancialmente na percepção de problemas, limites e possibilidades prático/reflexivos sobre o ensino de história e uma aprendizagem histórica. O processo de construção da pesquisa aplicada prescinde de uma aproximação entre a formação e a docência dos professores de história, algo compartilhado em todos os níveis de planejamento e ação. Uma perspectiva de ensino que não considere a relação teoria x prática não sustenta uma reflexão seria e consistente sobre educação. Devemos abandonar posições extremadas em relação à formação e o ensino de história em direção a uma mediação, necessária e de resultado. Evidentemente que a complexidade do problema da educação contemporânea brasileira e de uma educação histórica não se resolverá de todo, a partir de uma proposta de pesquisa aplicada integrada ou colaborativa, mas com certeza teremos avanços consideráveis no ensino de história em direção a uma educação histórica significativa, onde a compreensão do processo histórico passa pela vida e consciência histórica do aluno. Segundo Rüsen (2001, p. 59) ―A consciência histórica é o trabalho intelectual realizado pelo homem para tornar suas intenções de agir

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conformes com a experiência do tempo. Esse trabalho é efetuado na forma de interpretações das experiências do tempo‖. Essa capacidade imprescindível de se situar no tempo, de experiência, ação e transformação é que sustenta a aprendizagem histórica e lança condições formidáveis para o professor de história pensar sua prática de ensino e os modelos teórico-metodológicos que sustentam sua reflexão/ação. Sem que o professor /aluno compreenda esse modelo/fim, sua aula e o processo de compreensão se limitaram a reprodução/fixação de conhecimentos históricos, sem que se alcance a validade da compreensão histórica. De outro lado, nos dias de hoje, as condições e encaminhamentos no preparo das aulas de história aumentaram tanto em possibilidades como em qualidades distintas. As tecnologias e mídias disponíveis e acessíveis aos professores e alunos permitem a construção de conteúdos diversos e dinâmicos. O uso de musica, gravuras, fotos, documentos, patrimônios material e imaterial diversos, história oral e muitos outros, preenchem um horizonte de possibilidades, que devem estar articuladas teórica e metodologicamente, para que os conteúdos e a didática envolvida sejam eficientes e eficazes.

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Apesar da facilidade que as tecnologias e ferramentas de ensino permitem a professora e ao professor, em prepararmos e produzirmos conteúdos complementares ou não, as nossas aulas, outras questões vem se apresentando a disciplina e ao conhecimento histórico. Consensualmente aceitamos a dinâmica da mudança e processo de transformação histórica, natural em toda sociedade humana, mas também se torna importante percebermos que a velocidade e mesmo, certa dinâmica ou amplitude nos processos sociais acontece diferentemente. As recentes e profundas mudanças sociais, políticas, e econômicas, e nas formas de percepções das relações sexuais, étnicas e de gênero que se apresentam na e pela sociedade brasileira, exigem do historiador uma explicação. A ampliação dos atores sociais, seus interesses e ações vinculadas, criam novas narrativas e compreensões para a história brasileira, inclusive numa perspectiva revisionista. É nesse novo contexto, na emergência de polissemias narrativas e numa clara critica a singularização da narrativa histórica nacional possível, que nós professoras e professores de história nos deparamos com novas exigências explicativas e necessidades de compreensão, as quais nos vemos ainda distantes e pouco familiarizados. As mudanças exigidas se chocam com os modelos tradicionais de aula e conteúdo e, sim, nós professores de história estamos sendo convocados a explicar o que está acontecendo. Estamos sendo convocados a responder as

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carências de orientação histórica, em condições suficientes para a conformidade de nosso agir no tempo. (RÜSEN, 2001) Acreditamos que o ensinar história a nossos alunos está cercado de uma complexidade crescente, e que uma solução possível e extremamente acessível, seria aproximarmos o modelo de formação ao modelo de ensino, nos utilizando da pesquisa e da reflexão no ensino de história relacionada à vida e a consciência histórica do aluno. Não há confusão sobre o estatuto e papel da história, ou o que ela deveria ensinar, confusão existe no como e para quem ensinamos história. ―Um sujeito é fruto de seu tempo histórico, das relações sociais em que está inserido, mas é, também, um ser singular, que atua no mundo a partir do modo como o compreende e como dele lhe é possível participar‖ (PARANÁ, 2008, p. 8). Dessa forma o ensino de história deve abandonar os limites do conhecimento histórico da disciplina de referência em si e buscar desenvolver um modo de pensar o passado perspectivando o presente. Ou então? Considerações Finais A proposta da reflexão ensejada esta contida em duas perguntas simples, que nós historiadores deveríamos responder com clara certeza e grande facilidade: Porque aprender história? E como ensinar história? Grande parte de nós professoras e professores de história tem dificuldade em responder a essas perguntas, que em si, carregam uma enorme complexidade e abrangência e são temas importantes e centrais do conhecimento e da disciplina de história, resta imaginar o que nossos alunos pensariam ao tentar respondêlas. Nesse sentido, repensar o ensino de história, nos cursos superiores de formação e na educação básica brasileira, a partir de uma reflexão teórico metodológica, fortemente apoiada em pesquisa aplicada compartilhada, sinaliza um caminho possível. O grande desafio é repensar metodologias de ensino que reproduzam no ensinar história os modelos de pesquisa e a riqueza teórica presentes no conhecimento histórico. É como se o amor, a admiração e o entusiasmo que nós professoras e professores temos pela história e seu ensino, pudesse ser dito e explicado como sentimento. Na tentativa de reorganizar o ensino de história devemos nos preocupar com o estatuto científico da história, mediado pelo ensino e subsidiado pela pesquisa, pois se fazemos pesquisa historiográfica na academia, podemos e necessitamos fazer pesquisa na escola, em

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técnicas de ensino, em didática e metodologia, sustentadas pelos conceitos de educação histórica, consciência histórica e narrativa histórica em direção a vida e ao cotidiano do nosso aluno. Pois se não conseguirmos explicar a história como sentimento, que façamos isso a partir da realidade, do cotidiano e da vida, ensinemos então uma história viva. Referências

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IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), Síntese de Indicadores Social (SIS) disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevid a/indicadoresminimos/sinteseindicsociais2013/, consultado em 02/02/2016. NOVAIS, Fernando Antonio; SILVA, Rogério Forastieri. Nova História em perspectiva. São Paulo: Cosac e Naify, 2013. (vol. 1 Propostas e desdobramentos) NOVAIS, Fernando Antonio; SILVA, Rogério Forastieri. Nova História em perspectiva. São Paulo: Cosac e Naify, 2013. (vol. 2 Debates) PARANÁ. Diretrizes Curriculares da Rede Pública de Educação Fundamental da Rede de Educação Básica do Estado do Paraná. Ensino Fundamental. Secretaria de Estado da Educação – SEED. Curitiba: MEMVAVMEM, 2006. PARANÁ. Diretrizes Curriculares da Rede Pública de Educação Básica do Estado do Paraná. Secretaria de Estado da Educação SEED. Curitiba: MEMVAVMEM, 2006. PARANÁ. História: Ensino Médio Secretaria de Estado da Educação SEED. Curitiba: MEMVAVMEM, 2006. PARANÁ. Diretrizes Curriculares da Educação Básica. História. Secretaria de Estado da Educação – SEED. Paraná, 2008. RÜSEN, JÖRN. Aprendizagem histórica. Curitiba: W. A. Editores, 2012. RÜSEN, JÖRN. História viva: Teoria da história formas e fundamentos do conhecimento histórico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007. RÜSEN, JÖRN. Razão Histórica: Teoria da história os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. SILVA, Marcos; FONSECA, Selva Guimarães. Ensinar História no século XXI: Em busca do tempo entendido. 4ª ed. Campinas, SP: Papirus, 2007.

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SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel. Aprender história: Perspectivas da educação histórica. Ijuí: Editora Unijuí, 2009. SCHMIDT, Maria Auxiliadora; GARCIA, Tânia Maria F. Braga; HORN, Geraldo Balduíno. Diálogos e perspectivas de investigação. Ijuí: Editora Unijuí, 2008.

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É POSSÍVEL APRENDER HISTÓRIA COM A METODOLOGIA WEBQUEST? Fábio André Hahn

A proposta, neste texto, é tratar sobre as possibilidade de aprendizagem com a metodologia WebQuest. * Após algumas experiências de estudo, de testes e de orientações de alunos e de professores da Educação Básica, é possível avaliar a aplicação dos casos e os resultados obtidos. Assim, portanto, em virtude dessas experiências, entende-se que seja necessário problematizar a questão junto ao leitor, de modo a estimular a reflexão sobre o tema.

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A questão posta: É possível aprender história com a metodologia WebQuest? Antes de tentar responder a essa questão, é importante tratar de alguns elementos que o leitor deve ter se perguntado ao iniciar o texto, como: O que é metodologia WebQuest? Qual é a relevância, para o ensino, da utilização de uma metodologia vinculada a internet? Para os que não conhecem a metodologia WebQuest, ela é recente no Brasil e foi criada em 1995 pelo professor Bernie Dodge, da Universidade de San Diego, e por seu aluno Tom March. A ideia central dos autores foi desenvolver uma atividade investigativa com o uso da internet, devendo ser elaborada e orientada pelo professor mediante a proposição de tarefas a serem investigadas por grupos de estudantes, possibilitando, com isso, um trabalho interativo, gerando uma aprendizagem colaborativa. O trabalho a ser desenvolvido pelo aluno é simples. Após receber a tarefa sobre o qual deverá investigar, terá à sua disposição uma série de pistas elaboradas pelo professor com fontes de pesquisa diversas em páginas na web, podendo também recorrer a outros recursos, como livros, vídeos e imagens. Realizada a pesquisa pelas pistas com o acompanhamento do professor, evitando com isso o que Dodge chamou de ―surfagem‖ pela rede, a equipe de alunos deve produzir o resultado de sua investigação e que poderá ser apresentado sob formatos diversos, ficando isso a critério do professor, como: cartas, textos dissertativos, vídeos, peças de teatro, entre outros. A WebQuest respeita as etapas do processo de investigação apontadas por Bernie Dodge, etapas essas que depois foram

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analisadas com precisão por João Batista Bottentuit Júnior ─ da Universidade Federal do Maranhão e Clara Pereira Coutinho ─ Universidade do Minho, Portugal, no artigo ―Recomendações de Qualidade para o Processo de Avaliação da WebQuest‖. As etapas que compõem a WebQuest são simples e vão agora apresentadas pontualmente: (i) introdução ao tema, com objetivo de preparar a proposta e fornecer informações gerais; (ii) a tarefa, formulada com linguagem simples, para estimular o aluno a desenvolvê-la; (iii) o processo no qual o aluno deverá se orientar para a realização da tarefa; (iv) os recursos, caracterizados como pistas disponíveis na web para a produção do conhecimento; (v) a avaliação, que fornece ao aluno os indicadores qualitativos e quantitativos referentes à atividade proposta; e (vi) a conclusão, que propõe um desfecho da proposta sobre o que aprenderam, mas que também aponta para a continuidade da investigação. A WebQuest é uma interface na internet que se propõe a apresentar caminhos para a investigação. Em uma pesquisa rápida pela internet é possível achar um número considerável de casos a serem solucionados. Isso não quer dizer que a metodologia esteja ao acesso de todos. Assim como em qualquer outro tema, encontramos materiais bastante diversos e, algumas vezes, adaptações equivocadas. Para Dodge, uma verdadeira WebQuest deveria incluir tarefas que solicitassem a transformação da informação pesquisada e recolhida num novo produto ou numa nova informação que refletisse a capacidade dos estudantes de criarem novos saberes. Não é exatamente isso que encontramos na maior parte dos casos disponíveis na rede. A metodologia tem os seus limites, sendo, frequentemente, confundida com a WebExercises, que tem por objetivo o cumprimento de uma atividade de exercitação e não de transformação em uma nova informação, em um novo saber. Este é um dos cuidados a ser tomado ao utilizar os casos disponíveis na rede. Apontados os elementos que compõem a metodologia WebQuest, é preciso apresentar a relevância da utilização da metodologia de ensino vinculada à internet. Para isso, três argumentos são a seguir apontados e que parecem bastante plausíveis para isso: a) A proporção de domicílios com acesso à internet. Os dados apresentados abaixo foram divulgados pelo Centro Regional para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação ─ Cetic.com e revelam significativo crescimento com uma taxa de 10% ao longo de três anos de pesquisa, conforme podemos verificar abaixo.

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Ano 2012 2013 2014

Base de domicílios Quantitativo 61,3 milhões de 40% domicílios 62,8 milhões de 43% domicílios 19211 domicílios 50%

Fonte: . b) Uso da internet nos celulares. Este é um segmento das comunicações que vem crescendo substantivamente, conforme dados do Centro Regional para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação ─ Cetic.com. Verifica-se um crescimento exponencial nesse setor ao considerarmos os dados divulgados entre os anos de 2012 e 2014. Abaixo, os dados foram apresentados em gráficos para melhor compreensão:

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É possível verificar que, em 2012, o número de alunos que acessavam a internet pelo celular já era bastante representativo, aproximando-se dos 50%. Ao compararmos os dados de 2012 com o ano de 2013, verificamos um crescimento de 16%, o que demonstra uma mudança bastante rápida e intensa. Os dados abaixo demonstram os resultados da pesquisa em 2013.

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O crescimento do uso da internet via celular, que superou os 50% em 2013, continuou sendo ampliado, como pode ser verificado no gráfico abaixo, que faz referência ao ano de 2014:

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Com os resultados dos três anos de pesquisa, verificou-se um crescimento de 34% durante este período quanto ao uso de internet via celular. A taxa de 80% que foi atingida no ano de 2014 supera qualquer projeção estabelecida, portanto não dá mais para imaginar que essa ferramenta fique de fora do ensino nas escolas. Assim, pensar nessa possibilidade e apresentar alternativas é urgente e irremediável. c) Geração de alunos tecnológicos e interativos. Ao considerar todos os dados anteriormente apresentados, verifica-se, claramente, que o contexto tecnológico produziu uma nova geração de alunos presentes nas escolas. Essa geração de jovens encontra, porém, na escola, um sistema de ensino apegado a velhos métodos e a recursos distantes da sua realidade social. Isso não quer dizer que a tecnologia nas escolas irá revolucionar o ensino. Quer dizer, no

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entanto, que poderá, sem dúvida, proporcionar elementos para a melhoria no processo de aprendizagem. Com isso, mais uma vez, a afirmativa de que os alunos precisam utilizar-se das ferramentas disponíveis para melhorar sua capacidade reflexiva e interpretativa deve ser ampliada e qualificada. Como resultado das vantagens na aplicação da metodologia WebQuest, são a seguir apresentadas experiências realizadas e acompanhadas nos últimos anos de pesquisa. Entre os casos estudados e aplicados, podem-se apontar alguns exemplos, como:  Janela para a história. Este é um site criado em 2013/2014 e que congrega quatro diferentes casos aplicados ao longo dos últimos anos nas escolas. Conferir: http://janelaparaahistoria.unespar.edu.br/  Três casos desenvolvidos junto aos professores da Educação Básica e divulgados por meio de blogues, tendo em vista a facilidade do acesso e o manuseio da ferramenta:

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 O café no Paraná como tema de estudo ─ http://aculturadocafe.blogspot.com.br/.  A migração e ocupação em um município no Paraná (Umuarama) ─ http://umatelaparaahistoria.blogspot.com.br/.  A exploração da erva-mate no Paraná na primeira metade do século XX ─ http://ervamatenoparana.blogspot.com.br/. Este último caso servirá para exemplificar a proposta. O tema é a exploração de erva-mate no Paraná na primeira metade do século XX e foi desenvolvido no Programa de Desenvolvimento Educacional ─ PDE, da Secretaria de Estado da Educação do Paraná no ano de 2014/2015 e aplicado pela professora Sílvia Aparecida de Paula Alegria. O caso foi desenvolvido para alunos do 9° ano do Ensino Fundamental II e aplicado no Colégio Estadual Cruzeiro do Oeste, pertencente ao Núcleo Regional de Educação de Umuarama/PR. A ação foi constituída de dois momentos: a aplicação de questionário no começo da pesquisa e a aplicação do caso sobre a erva-mate no Paraná. O questionário foi elaborado com 33 perguntas direcionadas em três blocos distintos e aplicadas por meio da plataforma Survey Monkey. As perguntas eram referentes a questões socioeconômicas e

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educacionais, a computadores e internet e a interesse pela História. Com a aplicação desse questionário, iniciou-se uma investigação sobre quem eram os alunos, os seus interesses e suas dificuldades. A turma, formada por 36 alunos com grande variação de idade, foi constituída com apenas 42% dos alunos em idade/série correta e quase 90% dos alunos eram do meio urbano. Além dessas características, outra era a de que um pouco mais de 70% sempre foram alunos de escola pública. Quando perguntados sobre a relação com a internet, 100% dos alunos responderam já terem acessado a internet em algum momento. Assim, portanto, esse meio de comunicação não é nada novo para eles, ainda mais que 93,75% desses mesmos alunos afirmaram possuir computador em casa e todos os computadores com acesso à internet. Esses são números superiores aos dados nacionais divulgados pelo Centro Regional para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação ─ Cetic.com, que vem realizando pesquisas sobre o acesso à internet. Quando perguntados se tinham interesse em utilizar a internet para aprender História, os alunos responderam:

Fonte: Dados da Pesquisa Os dados demonstram que o interesse em utilizar a internet para aprender História é reduzido, conforme pode ser verificado. Uma das explicações para esse baixo interesse talvez esteja associado ao fato de que poucas vezes o recurso informacional tenha sido utilizado para o ensino. Isso explicaria o baixo interesse declarado, voltado mais ao desconhecimento da possibilidade do que ao real desejo. Um pouco disso pode ser deflagrado pelas respostas ao questionário abaixo, quando foram perguntados se consideram a internet importante para aprender História.

Fonte: Dados da Pesquisa

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Os resultados, nesse caso, foram completamente diferentes. A maior parte dos alunos considera importante a internet para aprender História. Mesmo assim, no entanto, responderam que consideram importante, mas não têm interesse de aprender com o auxílio da internet. Já quando perguntados se gostam das aulas em que são utilizados os computadores, os alunos ficaram divididos em dois grupos de respostas, como pode ser verificado nos dados abaixo.

Fonte: Dados da Pesquisa Da mesma forma quanto aos dados acima, quando os alunos são perguntados se consideram possível aprender História recorrendo ao computador e às informações disponíveis na internet, as respostas também ficaram divididas.

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Fonte: Dados da Pesquisa Com esses dados, pode-se constatar que os alunos, em sua maioria, não estão habituados a trabalhar com o computador e a internet nas escolas, então apresentando respostas difusas em relação a esse tema. Após a aplicação do questionário, foram formadas as equipes de trabalho e foi apresentado o caso a ser investigado sobre o tema da exploração da erva-mate e a atuação de Julio Allica nas terras paranaenses. Este foi o momento do primeiro contato com o caso disponível no blogue . A partir da constituição das equipes e da apresentação do caso e funcionamento da WebQuest, os alunos iniciaram a investigação das pistas disponíveis. Para esse caso, foram disponibilizadas seis pistas, em que os alunos em cada uma delas se deparavam com textos, com imagens, com mapas e com vídeos que os levavam a refletir sobre o tema. As maiores dificuldades encontradas e relatadas pelos alunos foram com relação à leitura dos textos e com o problema da lentidão da conexão da internet. Os computadores do laboratório de informática estavam em bom estado de conservação, o ambiente agradável e

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climatizado, no entanto, quando os 31 alunos, mesmo divididos em equipes de três, usavam dez computadores ao mesmo tempo, então a conexão com a internet se tornava lenta e, por vezes, travava todo o sistema, sendo necessário desligar tudo e reiniciar todos os computadores, contingência essa que trouxe desestímulo aos alunos e morosidade ao processo. A solução encontrada foi dividir a turma, fazendo com que, enquanto cinco equipes utilizavam cinco computadores, as demais faziam as leituras dos textos das pistas que foram impressos de antemão, precavendo a possibilidade de dificuldades que poderiam ser enfrentadas. Algumas equipes, mais ansiosas e instigadas pelo desejo concluir a tarefa, se reuniram em suas casas para solucionar o caso. Esse diferencial proporcionou à turma discussões sobre o conteúdo estudado e o desejo de continuar investigando. Para demonstrar, de forma prática, o resultado produzido pelos alunos, a tarefa foi a de produzirem uma carta endereçada ao governador do Estado do Paraná relatando como era a vida dos trabalhadores e, assim, esperar por ações por parte do governo de modo a mudar esse contexto. Nos trechos da carta abaixo é enfatizada a exploração da mão de obra dos trabalhadores, como pode ser constatado nos trechos das produções a seguir. A equipe iniciou a carta da seguinte forma:

E continua mais a frente:

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Em outra carta, a equipe enfatiza as dificuldades da vida na obrage, demonstrando como os trabalhadores eram explorados e estavam sofrendo. Nesse caso, como nas demais cartas, a equipe toma a posição dos trabalhadores, imaginando-se parte do processo, como se pode verificar na carta abaixo:

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A partir dos casos expostos acima, podemos verificar o resultado da produção dos alunos. Se desconsiderarmos as dificuldades dos alunos na redação dos textos, especialmente na organização de algumas frases, na aplicação correta da gramática, na pontuação, então cabe dizer que todos esses são elementos recorrentes. Ocorre, no entanto, que a avaliação não se restringe a esses critérios, mas aos ganhos identificados nos textos, como: a compreensão do contexto estudado, a capacidade de se imaginarem como personagens, a criatividade ao exporem sob novo formato as informações investigadas nas pistas, entre outros elementos que demonstram como atividades dessa natureza estimulam o senso crítico e a criatividade dos alunos. Os ganhos na qualidade formativa são inegáveis, mesmo percebendo que reparos e adaptações sejam necessárias na metodologia e em sua aplicação, levando em consideração a realidade contextual de cada turma de alunos e das diferentes faixas etárias.

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Se a resposta à pergunta inicial é positiva, ou seja, é possível aprender História com a metodologia WebQuest, por que então ─ cabe perguntar ─ a metodologia não é utilizada com maior frequência nas escolas da Educação Básica? Quais são os desafios? A tentativa de responder a essas questões será realizada a partir das experiências nas escolas em que foi desenvolvida e aplicada a metodologia WebQuest. Apresentamos algumas possibilidades por partes: a) Formação dos professores. Esse, sem dúvida, é um dos maiores entraves no atual contexto, especialmente quando nos referimos ao uso das tecnologias. A tecnologia assusta os professores, assusta muito. A maior parte deles não está preparada para esse contexto e de nada adianta investimento em aparato tecnológico e materiais digitais se o professor não se sente preparado e à vontade para lidar com esses novos recursos. Enquanto o Estado tiver como referência uma escola aos moldes do século XIX, tendo no horizonte os velhos paradigmas e não aplicar de fato políticas de formação continuada aos professores que proporcione mudanças, daqui a trinta anos pouca coisa terá mudado. b) Computadores e acesso à internet. O segundo desafio é melhorar a infraestrutura dos laboratórios de informática. O que se verificou nos últimos anos, em contato com as escolas, não é nem o problema da quantidade de computadores disponíveis, mas três elementos mais graves: (i) a falta ou demora na manutenção dos computadores ─ a escola tem pouca autonomia para resolver problemas simples quanto à manutenção desses equipamentos, o processo é moroso e desgastante; (ii) o sinal de internet é lento e instável, ao que fica a questão de como desenvolver atividades com o recurso da internet, quando se perde muito tempo para acessar páginas para pesquisa e para obter os materiais disponíveis para a aula planejada; e (iii) o sistema operacional utilizado, que é um dos entraves práticos, pois os alunos estão habituados a lidar com um modelo de sistema operacional, enquanto o Estado utiliza uma alternativa mais barata, mas pouco proveitosa e viável ─ o resultado é que poucos alunos acabam utilizando a internet por meio dos computadores disponíveis nos laboratórios e, assim, o objetivo último, que é a aprendizagem prevista em cada unidade didática, fica relegado a segundo plano. c) Materiais adequados ao trabalho pedagógico. Considerando os itens apontados anteriormente, é fundamental a disponibilização de

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materiais produzidos e testados que sejam adequados à idade/série e às diferentes etapas das disciplinas. É impossível imaginar que os professores tenham condições para desenvolver todos os materiais, até porque eles teriam que ter muito mais tempo para preparação e formação. Com isso não se quer dizer que eles não tenham autonomia para produzir práticas novas, mas, pelo contrário, o que se quer dizer é que não se pode atribuir toda a carga de responsabilidade ao professor. Para tanto, o Estado precisa estimular pesquisas e produção de materiais adequados para os alunos nas escolas, com índices representativos da eficácia pedagógica.

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Por fim, não se pode deixar de constatar que estamos avançando, mesmo que seja a passos lentos e muito distantes da condição ideal da aplicação das tecnologias educacionais no ambiente escolar ─ neste caso com especial referência à metodologia WebQuest. Então, mesmo longe do ideal, não se pode parar ou permanecer nas lamentações. É preciso, efetivamente, movimentar-se e testar alternativas, adaptando os materiais para a condição e para a realidade de cada escola. A entrada do que chamamos de ―novas tecnologias‖ no ambiente escolar veio para ficar ─ isso não pode mais ser negado. * A proposta desta investigação conta atualmente com apoio do CNPq. As primeiras experiências com a metodologia WebQuest foram desenvolvidas e aplicadas nos projetos de extensão do Programa Universidade Sem Fronteiras (USF) em 2013/2014 e do Programa de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) em 2014.

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VALORES COMO OBJETO DE APRENDIZAGEM HISTÓRICA Itamar Freitas

Suponhamos que você fosse convidado a participar da elaboração de um currículo para escolas da educação básica e que o coordenador solicitasse a inclusão de ―valores‖ como objeto de aprendizagem histórica. Como iniciaria a tarefa? Pensando em uma possível dúvida da sua parte, elaborei algumas sugestões que podem ajudá-lo a se desincumbir dessa tarefa. Em primeiro lugar, eu definiria objeto de aprendizagem do modo mais simples e mais geral. Objeto é a ―coisa‖ que temos por meta. 6 É a coisa do nosso desejo (uma suculenta uva), a coisa da nossa percepção (uma frondosa parreira), a coisa do nosso pensamento (o espaço de plantio como relação entre quatro pontos fixos do parreiral), a coisa da nossa imaginação (uma renda de 1.000.000 de reais mensais com a vinicultura), e a coisa do nosso dever (respeitar o direito ao salário acordado com o trabalhador que vai viabilizar a minha renda). Objeto, pelos exemplos, são uma fruta, uma árvore, uma ideia, a imagem de uma soma em dinheiro e um direito. Se estamos elaborando um sistema de coisas que o aluno tem direito a aprender e que o Estado tem o dever de fazê-lo adquirir, isto é, se estamos produzindo um documento chamado currículo prescrito, destinado aos alunos e aos pais e responsáveis, obviamente, teremos que nomear esses objetos – as coisas que serão a finalidade da aprendizagem escolar. Como fazê-lo, então? Aqui surge a segunda tarefa: significar e elaborar o ―objetivo‖. Objetivo, nesse contexto e em nos dicionários de sinônimos, literários ou generalistas da língua portuguesa, é o fim pretendido. Assim, objeto e objetivo são a mesma ―coisa‖ em situações diferentes: o objeto é a coisa estática e também a expressão da nossa intenção de realizá-la. Tomemos como exemplo a seguinte frase: ―O aluno deve conhecer as causas e as consequências da acumulação de ―É o fim a que se tende, a coisa que se deseja, a qualidade ou a realidade percebida, a imagem da fantasia, o significado expresso ou o conceito pensado‖ Abbagnano (2014, p. 243). 6

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90% da riqueza nacional nas mãos de 9% da população brasileira na última década do século XX‖. Nessa proposição, objeto são ―as causas e consequências da acumulação‖ e o objetivo é a sintaxe que viabiliza a expressão do interesse de quem o produz – ―O aluno deve conhecer as causas e consequências da acumulação...‖. Nada muito distante do que afirmou o comportamentalista Robert Mager (1923/...) ao apresentar uma ordem para os elementos constitutivos de qualquer objetivo educacional: o que aprender, as condições e as qualidades da aprendizagem.7 Objetos de existência e objetos de valor

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Definida a sintaxe que medeia nossa intenção (o objetivo), é hora de partir para a seleção das coisas (objetos) a serem aprendidas. Aqui também o caminho mais pragmático é categorizá-los em dois tipos. Voltando aos exemplos do primeiro parágrafo – ―uva‖, ―parreira‖, ―renda de 1.000.000 de reais por mês‖, ―ideia de espaço‖ e ―direito a salário‖ –, podemos concluir que eles possuem qualidade bem diversa. Em relação à uva, por exemplo, dizemos que ela existe ou que não existe na propriedade. Podemos também dizer que ela é bonita e adocicada. Quanto ao ―direito ao salário‖, podemos até dizer que ele existe ou não existe na vinícola em questão. Mas não seremos tão precisos na fala, como ao formularmos as seguintes variantes: O ―direito ao salário‖ ―é respeitado‖ ou ―não é respeitado‖ pelo patrão; O ―direito ao salário‖ ―vale‖ ou ―não vale‖ para o patrão.8 O direito ao salário digno é, portanto, um objeto de valor e não um objeto de existência, assim como a beleza e o doce da uva – são objetos de valor e não de existência. Resumindo, dizemos que o Em 1962, Robert Mager elaborou um manual para auxiliar os professores a construírem objetivos educacionais. Ele afirmava que um bom objetivo educacional deveria responder a três perguntas: 1. O que quero que os alunos sejam capazes de fazer? 2. Quais as condições importantes, ou mesmo as limitações, dentro das quais o desempenho deve ocorrer? 3. Qual a qualidade (precisão, velocidade, padrão etc.) que espero do desempenho do aluno para considerá-lo competente? (Mager, 1962, p. 4, 87). Apresento abaixo um exemplo de objetivo educacional onde as três condições estabelecidas por Mager foram cumpridas. Tente produzir um ou mais objetivos educacionais dentro das orientações comportamentalistas e comente sobre a sua pertinência em nosso tempo. Modelo - O estagiário de prática de ensino deverá ser capaz de observar os momentos didáticos de uma aula de Química (1), numa classe do 9º ano do ensino fundamental e durante 50 minutos (2), produzindo um relatório claro e coerente que deverá conter entre 3000 e 4000 caracteres com espaços (3). Freitas (2015, p. 66). 8 Valência, objetividade, polaridade e passividade à hierarquia são algumas das principais características do valor. Mora, 1978. 7

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―direito ao salário‖ é um valor conservado pelo patrão e empregado na sua vida de gestor. O ―belo‖ e o ―adocicado‖, por sua vez, são também valores conservados pelo patrão e empregados na classificação de alguns frutos produzidos eu sua propriedade. Na produção dos objetivos de aprendizagem histórica essa classificação pode ser seguida, como nesses exemplos: O sujeito Chico Mendes existiu. O assassinato de Chico mendes ocorreu, as ideias de Chico Mendes foram materializadas em discursos e entrevistas. Isso implica dizer que a trajetória de Chico Mendes, o acontecimento da sua morte e as suas ideias de sustentabilidade são objetos de existência. São substantivos. São conteúdos históricos. Por outro lado, o respeito que ele dedicava aos povos da floresta não é um acontecimento, não teve existência. O respeito aos modos seringueiros de tratar a floresta é um valor. E esse valor é também conteúdo histórico, só que de outro tipo. Chegamos finalmente à principal tarefa prometida que é a discussão sobre os valores como objetos de aprendizagem histórica. Então devemos ensinar valores? A resposta mais geral é sim. Valores são aprendidos. Eles não nascem conosco. São adquiridos ao longo do tempo das nossas vidas e por isso dizemos que os valores são históricos e não transcendentes. Observem que essa resposta só foi elaborada porque partilhamos de dois valores: humanidade e historicidade. Ao afirmar que os valores são históricos e não transcendentes9 eu revelo filiação à uma crença de que não é possível verificar se o valor à vida foi mesmo anunciado por um deus criador, já que a regra para eliminar os sujeitos tem sido modificada nos últimos 500 anos ou, ainda, que matar uma pessoa é um direito concedido ao indivíduo ou ao Estado, a depender da cultura da qual você se refira ou na qual esteja imerso. O valor da vida, enfim, não é o mesmo (não vale) para todas as sociedades contemporâneas. Essas considerações nos levam a outra questão: para que servem tais valores? A resposta, dentro de uma visão antropocêntrica, evidentemente, é a seguinte: valores funcionam como parâmetros empregados pela nossa faculdade de julgar. Se solicito que o aluno aponte as causas e consequências da concentração da maior parte da renda nas mãos de menor parte da população brasileira, ele responderá de modo lógico, buscando informação, por exemplo, na Uma das primeiras formulações sobre a historicidade dos valores,ou seja, a classificação dos valores como radicada na história foi efetuada pelo historicista Gustav Droysen (1882). 9

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introdução, no infográfico ou no resumo do capítulo do livro didático: x / y = z. Contudo, se perguntamos ao aluno: ―O que você pensa sobre as causas apontadas no livro didático?‖ ―Você concorda ou discorda da explicação do autor?‖ ―O que acrescentaria ou descartaria da informação colhida no manual?‖ ―Em que medida aquelas respostas o auxiliam a compreender a sua situação/condição socioeconômica?‖, se forem essas as indagações, a atividade lógica sozinha de buscar a informação por palavra-chave e submetê-la ao esquema ―se..., então...‖ com as informações sobre Brasil, elites, riqueza e pobres, provavelmente, o aluno não dará conta do objetivo a ser alcançado.

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Para que isso ocorra, será necessário que ele já tenha introjetado o conceito ―igualdade‖ como um valor, isto é, que ele não somente retenha a definição de igualdade na memória (―igualdade é a condição na qual os sujeitos...‖), bem como o seu antônimo – a desigualdade. Será também fundamental que ele tenha desenvolvido a capacidade de empatia em relação aos sujeitos excluídos da riqueza do país para efetuar a crítica (o julgamento – atribuição de valor) e a posterior tomada de posição em relação às respostas oferecidas pelo livro didático e à provocação disparada por nós. Por esse raciocínio, será necessário que apresentemos ao aluno um objetivo anterior para promover as duas citadas capacidades: conhecer a definição sumária de igualdade e imaginar-se um outro no passado distante ou no presente recente, submetido a situações nas quais se possa identificar os atributos que constituem a definição de igualdade. A valência dos valores Até aqui, tentei convencê-los de que os valores são históricos e funcionam em nosso cotidiano como fundamentos da crítica. Mas os valores são também elementos passíveis de hierarquização. Em outros termos: valores também valem mais uns que os outros. O respeito a vida humana, por exemplo, na maioria dos grupos sociais brasileiros, é um objeto que vale mais que o respeito à vida de um felino em extinção – uma onça. Mas quem estabelece essa hierarquia – quem institui a valência? Qualquer resposta a essa pergunta também revela os valores em ação. O respeito à vida humana pode ser estabelecido, por exemplo, pela Igreja ou pelo Estado. O estabelecimento desse valor a ser cultivado por determinada sociedade é obra de eleição / acordo que emerge de várias situações. Exemplos: ele pode ser fundado no

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resultado de experimentos científicos (o código genético do animal selvagem indica a propensão ao ataque, mesmo que tenha sido criado em ambiente doméstico); no conforto psicológico provocado por um costume não contestado por gerações a fio (pais não devem ser desobedecidos pelos filhos); em certo dogma milenar (a crucificação de Jesus Cristo foi o maior ato de amor ao próximo). Em quaisquer dos casos, o valor (respeito ao instinto predador, respeito a autoridade paterna, respeito ao sacrifício divino) é sempre, apesar da aparente contradição, uma imposição assentida pela maioria. Relembrando o assassinato de uma pessoa ou o abate de uma onça, podemos concluir que um código penal (instrumento punitivo, fundado em alguns valores), discutido e votado, por exemplo, foi produzido, obviamente, por um conjunto de sujeitos e não por um bando de onças. Por outro lado, dois outros conjuntos de pessoas já reivindicam tanto o respeito à vida das onças como o respeito à vida de um seringueiro que abateu determinada onça como valores a serem considerados, principalmente quando um animal for abatido no interior de uma reserva e ou se a vida do seringueiro estiver em risco. Deixemos as onças e a crucificação e vamos direto ao ponto: Que valores deveremos selecionar como objeto de aprendizagem histórica? Aqui, pela terceira vez, percebemos a valência da hierarquização. Podemos elaborar os objetivos segundo os valores que recebemos da família, do credo religioso, da ideologia política etc.? Podemos, recorrentemente o fazemos, mas não devemos assim proceder. E não devemos por que somos professores e não apenas pais, irmãos, tios ou responsáveis. Somos a materialização do Estado democrático de direito. Assim, na educação pública (regrada pelo Estado), somos submetidos a algumas normas das quais podemos até discordar, mas não temos força moral e autoridade jurídica para desobedecer. Estados que regem interesses entre grupos sociais de forma democrática conservam o seu conjunto de valores, normatizando o seu emprego e indicando os responsáveis por seu cultivo. É para esse rol de valores que devemos dirigir nossa atenção. Os valores na Constituição de 1988 e na LDB de 1996 No caso brasileiro, esses objetos estão listados na Constituição de 1988. Já no preâmbulo da Carta, nos deparamos com a expressão ―valores supremos‖. Eles são: os direitos à ―liberdade‖, ―segurança‖, ―bem-estar‖, ―desenvolvimento‖, ―igualdade‖ e ―justiça‖. Valores

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também estão prescritos nos ―fundamentos do Estado de Direito‖, como os ―valores sociais do trabalho e da livre iniciativa‖. Estão no capítulo relativo aos direitos políticos a exemplo da ―igualdade de direito de voto‖. No que diz respeito ao papel da União, estados e municípios, a Constituição prescreve que eles devem ocupar-se da proteção de obras e bens de ―valor histórico, artístico e cultural‖, do impedimento da ―evasão, destruição descaracterização de obras e bens valor histórico, artístico e cultural‖, da responsabilização por ―dano a bens de valor histórico, artístico e cultural‖ e do incentivo à ―valorização e a difusão das manifestações culturais‖. O mesmo documento solicita a elaboração de um ―Plano Nacional de Cultura‖, orientado pelo respeito aos ―valores culturais‖ Ao Estado, em sua instância formadora obrigatória que é a escola, a Constituição prescreve como ―conteúdo‖ o respeito aos ―valores culturais, artísticos, nacionais e regionais‖, aos ―direitos culturais‖ e à ―diversidade étnica e regional‖.

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As emissoras de rádio e televisão também têm regrados os seus sistemas obrigatórios de valores, inscritos no capítulo referente à comunicação social. O documento afirma que, em suas programações, elas devem respeitar ―os valores éticos e sociais da pessoa e da família‖. Às instituições ligadas à preservação cultural, por fim, são legadas orientações para a seleção de seus objetos de trabalho. Assim, bens de ―valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico‖ são elementos passíveis de serem categorizados como ―patrimônio cultural‖. São muitos valores a cultivar, você dirá. Como diferenciar os indispensáveis dos secundários? Como saber com qual intensidade devemos inserir cada valor ―supremo‖ ao longo da vida escolar? Como traduzir ―valores culturais‖ se a palavra cultura possui mais de 300 sentidos entre os cientistas sociais? Não cabe, nesse momento, a crítica detalhada ao anúncio dos valores na Carta Magna. Partilho, porém, da sua angústia, mas afirmo ser necessário atentar para a ausência de clara hierarquia entre os valores, como também à falta das atribuições de cada sujeito nomeado na Carta. Se os valores supremos são os direitos à liberdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade, e justiça, porque os valores de responsabilidade do ―ensino‖ escolar são apenas o respeito aos

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valores culturais e artísticos nacionais e regionais? Porque a valorização da diversidade étnica e regional, incluída dezessete anos após a promulgação da Constituição, está inserida na seção relativa à cultura e não à educação? Porque o Estado tem necessidade de reservar valores ―éticos e sociais‖ da pessoa e da família se estes sujeitos podem ser dissolvidos no grande sujeito que é o Estado? Uma saída para produzir o currículo respeitando a Constituição de 1988 seria, em primeiro lugar, conhecer o processo e compreender os condicionantes do processo (empatia) de elaboração da Carta. É um documento fruto de debates e negociações. Não poderia mesmo estar isento de contradições e equívocos. Além disso, como Carta maior, o documento não poderia definir cada vocábulo indicador de valor. Esse trabalho coube, em teoria, à legislação complementar. No caso da matéria constitucional ―educação‖, a complementariedade configura-se na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Na LDB a referência explícita aos valores está na definição dos conteúdos curriculares da educação básica. Ela explicita: conteúdos devem difundir ―valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática‖. Os valores também são citados como elemento mediador da ―formação básica do cidadão‖. Eles são conteúdo, da mesma maneira que os ―conhecimentos‖, ―habilidades‖ e ―atitudes‖. A LDB também prescreve esse conteúdo específico: os ―valores em que se fundamenta a sociedade. ‖ A última referência a valores está nas disposições transitórias que tratam da educação dos povos indígenas. Prescreve a lei que a União deverá desenvolver programas de ensino e pesquisa que valorizem as ―línguas‖ e ―ciências‖ indígenas. Comparando os valores citados com os anunciados na Constituição, percebemos que a as ocorrências são menos numerosas e mais coesas. Valores são conteúdo obrigatório e tais conteúdos privilegiam, para toda a população, a formação para a cidadania e a democracia – isso porque não entendemos as expressões ―interesses sociais‖ e ―valores em que se fundamenta a sociedade‖ como direitos sociais. Para os povos indígenas, têm valência as línguas e ciências na formação bilíngue.

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Valências implícitas (Conclusão) Vimos que os documentos-macro reguladores dos objetos de aprendizagem para a educação escolar básica dos brasileiros são bastante gerais como prescritores de valores a serem aprendidos / introjetados. Para você que inicia a produção de um currículo, tal generalidade pode ser uma barreira ou uma livre avenida. Se ficar na dependência do uso explícito do vocábulo ―valor‖, no tópico ―educação‖ da Carta ou no assunto ―conteúdo‖ da LDB, certamente terá dificuldades para transformar o objeto-valor em objetivo de aprendizagem histórica.

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É necessário fugir à essa armadilha. Um exemplo ajuda a esclarecer a profundidade desse equívoco. Vimos que os gestores de emissoras de rádio e TV, dos órgãos de preservação do patrimônio cultural, dos legisladores, juízes e autoridades do executivo são agentes aplicadores de valores estabelecidos pela Constituição. A pergunta retórica, então, é a seguinte: em qual instituição empresários, radialistas, jornalista, apresentadores de TV, museólogos, arquivistas e historiadores vão conhecer esses valores, na Constituição lacunar? Não. Eles serão formados na mesma instituição-escola da qual você faz parte. Então, os valores prescritos para esses sujeitos são também os valores a serem aprendidos na escolarização básica. Como de costume, as Cartas estaduais e municipais, os projetos pedagógicos da escola são o seu Norte na constituição de currículos. Contudo, elas possuem o mesmo vício de origem: a generalidade e a falta de hierarquia. Sugerimos, então, que você migre da palavra ―valor‖ para as palavras ―direito‖ e ―princípios‖. Essa mudança lhe permitirá detalhar os substantivos que expressam os valores prescritos pelo Estado. Apesar dos possíveis equívocos, você encontrará um glossário comum, tanto aos documentos quanto às obras clássicas que tratam dos recorrentes valores requeridos sob a rubrica de ―cidadania‖ e de ―democracia‖. 10 Esses substantivos, É consenso entre os pesquisadores das ciências humanas e sociais que o termo ―cidadania‖, ou seja, ―a qualidade de ser cidadão‖ incorpora a necessidade de as pessoas praticarem e, obviamente, conhecerem os direitos e deveres para atuarem na cena pública. É também consenso que tais direitos sejam aquisições ocidentais datadas, configurando uma sequência lógico-cronológica que compreende os direitos civis (século XVIII), direitos políticos (século XIX) e direitos sociais (século XX) (Marshal, 1967; Heater, 1990) – isto é, a ―participação do cidadão no governo da sociedade‖ e na ―riqueza coletiva‖ (Carvalho, 2008, p. 9-10). Quem assim o faz, costumeiramente, chama a 10

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ainda que não se configurem numa abordagem habermansiana (direitos civis para a efetivação de direitos políticos e sociais) estão anunciados na Constituição como direitos de três tipos: 1. Direitos individuais e coletivos – direito à vida (não haverá pena de morte), liberdade (expressão, crença religiosa, convicção política, trabalho, de ir e vir, se reunir, associar-se), igualdade (entre homem e mulher, entre raças) e propriedade; 2. Direitos sociais (educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados); 3. Direitos políticos (votar, filiar-se a partidos e ser votado). Se você discorda da valência de alguns desses objetos, pode promover ações junto ao sistema representativo no sentido de atribuir maior coerência e ordem aos enunciados compreendidos como valor, nos documentos que regulam a educação básica no país. Se esse não for o seu caso, já pode iniciar a elaboração dos objetivos de aprendizagem sobre os conteúdos substantivos em história – acontecimentos, processos etc. – enfatizando determinadas ideias e sujeitos, buscando a importância, causas e consequências de determinados eventos, processos, ideias e sujeitos. Mas deve lembrar que a referência aos valores não, necessariamente, deve ser literal. A elaboração de um objetivo que combine a mobilização de uma habilidade (Tomar posição sobre...), um conhecimento substantivo (o significado do assassinato de Chico Mendes...), e uma descrição contextualizada (para a ampliação do interesse dos brasileiros sobre questões socioambientais) já traz implícitos, por exemplo, três objetos insertos na Carta e na LDB, que podem ser introjetados como valor: os direitos à vida, à livre expressão de ideias e à livre associação política. Mãos à obra!!

atenção para o significado de documentos-chave como o ―Bil of Rights” [Carta de direitos] da Revolução Inglesa – 1698 (Montaine, 2010), a “Declaration universelle des droits de l‟homme et du citoyen‖ [Declaração universal dos direitos do homem e do cidadão] da Revolução Francesa - 1789 (Odália, 2010; Rüsen, 2012), ―The Rights of Man‖ [Os direitos do homem] da Independência dos Estados Unidos (Karnal, 2010) e a ―Déclaration universelle des droits de l‟homme‖ [Declaração universal dos direitos do homem] das Nações Unidas – 1948 (Ramirez, [2004]), na cofiguração daquilo que entendemos home como cidadania plena.

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Referências

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BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCo mpilado.htm. Capturado em: 15 fev. 2016. BRASIL. Presidência da República. Lei n. 9.294, de 20 de dezembro de 1986. [Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm. Capturado em: 15 fev. 2016. CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 16 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2008. [Primeira edição – 2001]. DROYSEN, Johan Gustav. Grundriss Der Historik. Boston: 1897. FREITAS, Itamar. Didática para licenciaturas. Aracaju: Criação, 2014. HEATER, D. What is Citzenship? Cambridge: Polity Press, 1990. KARNAL, Leandro. Estados Unidos, liberdade e cidadania. In: PINSKY, Jaime; ABBAGNANNO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2014. MAGER, Robert F. A formulação de objetivos de ensino. 5ed. Porto Alegre: Globo, 1983. MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. [Primeira edição inglesa – 1963]. MONTAINI, Marco. O respeito aos direitos dos indivíduos. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2010. p. 114-136. MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. Lisboa: Dom Quixote, 1978. ODALIA, Nilo. A liberdade como meta coletiva. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2010. P. 158-189. RAMIREZ, Francisco O. From citzen to person? Rethinking education as incorporation. California: Center on Democracy, Development, and the Rule of Law – CDRL/Stanford Institute for International Studies – IIS, [2004]. RÜSEN, Jörn. Direitos humanos e civis como orientação histórica sugestões para a interpretação e para a análise didática. In: Aprendizagem histórica: fundamentos e paradigmas. Curitiba: W.A., 2012. p. 193-220.

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ENSINO DE HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA HISTÓRICA Jorge Luiz da Cunha

Introdução Em uma recente participação em um evento para docentes da Educação Básica, no Rio Grande do Sul, fui convidado para falar sobre qualidade de ensino. Orientei minha fala sobre a necessidade de centralizar, ou melhor, devolver a centralidade da educação – da qual o ensino é apenas uma das tesselas deste mousaikón (peças deste mosaico) – para o conhecimento. No final da produtiva manhã, num aprazível local e diante de uma incomparável paisagem, terminamos com as tradicionais trocas de impressões e perguntas. Uma das perguntas me marcou, e inspirou profundamente: - Professor, em que medida suas colocações sobre o conhecimento, sua importância para a educação e seus efeitos humanizadores não podem ser entendidas como uma ideologia? Ideologia, lugarcomum, que o senhor colocou como oposta ao conhecimento. Minha resposta: - A questão não está no que eu disse! Que está ancorado no que eu penso, no que eu acredito sobre educação, sobre conhecimento, sobre humanização, sobre ensino. Transformar o que eu disse e o que vocês ouviram, refletiram e discutiram comigo, em ideologia, não depende de mim. Depende e diz respeito a vocês! Isto é, ideologizar é utilizar minhas colocações como definitivas e reproduzi-las como se fossem um lugar-comum, uma doutrina a ser multiplicada sem acrescentar um ponto ou uma vírgula. Sem questionar, sem refletir, sem criticar. - Transformar ou não em ideologia minhas palavras, conceitos e teorias não me diz respeito, diz respeito ao modo como cada um de vocês vai usar o que ouviu, refletiu e concluiu. Mas, é importante ressaltar que fazer isso é renunciar ao fundamento da própria condição e existência humanas, é renunciar a qualquer traço pessoal. É recusar-se a ser pessoa, pensar, ter opiniões, tomar

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decisões, mover a própria vida criticamente e, no limite, é contribuir para a „banalização do mal‟, como afirma Hanna Arendt(1998). Prosseguindo na reflexão ancorei as afirmações de minha resposta na estreita relação entre a ideologia e o lugar-comum. Aceitar acriticamente qualquer teoria, qualquer conjunto de ideias, é tornálas doutrina, e:

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a partir daí, é de certo modo uma arma do poder; repetindo, despudoradamente, certos temas, contribui para imprimir ideias, valores, álibis, que acabam por funcionar, na cabeça do público, com uma verdadeira ‗natureza‘ mental; lugar-comum é, finalmente, aquilo que ‗vai de si‘, aquilo a que Brecht chamava (criticando-o) o ‗Grande Uso‘; a gregaridade não é inocente, porque é facilmente manipulada. Distanciar estas repetições, observá-las, desmistifica-las, é portanto uma forma de combate social. Há na crítica do lugar-comum um gesto de ‗dissidência‘ que justifica socialmente o intelectual, o escritor, o artista de hoje: os ‗dissidentes‘, ... ‗os que pensam de outra maneira‘; e ‗pensar de outra maneira‘ torna-se necessário sempre que o conformismo do pensamento e do discurso (é a mesma coisa) deriva do poder. (BARTHES e BOUTTES, 1987, 276-277). Para não transformar qualquer ideia ou teoria em ideologia, necessita-se permanente vigilância, para reconhecer, criticar, dialetizar: ou seja, não é destruir (tarefa impossível), é exorcizar: Assim, o que se lê no lugar-comum é uma certa tragicidade: uma necessidade (lógica, histórica) que só se pode vencer se for reconhecida. Por um lado, é fácil ver o que o lugar-comum dá aos homens: o poder de falar; mas, por outro lado, também se vê que o lugar-comum os vincula aos instrumentos de poder e consagra a divisão cultural, portanto social, das linguagens. É ainda no espaço desta ambivalência que se deve situar o trabalho das vanguardas (noção que também é histórica, como lugar-comum). A vanguarda, em qualquer arte, é a força que rejeita o lugar-comum e, pelo fato de toda a nova linguagem tender a solidificar-se, confina com o grito: para cobrir a voz do conformismo é preciso gritar: é a vanguarda. Enquanto a sociedade (seja qual for o seu

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regime político) estiver ameaçada pelo triunfo do lugarcomum (que inferno, se não se ouvisse outra coisa!), a vanguarda continuará a ser necessária.(BARTHES e BOUTTES, 1987, 277) Creio que a questão que este relato traz à tona é profundamente pertinente para a discussão que se trava sobre o Ensino de História na Brasil contemporâneo, para o qual a Educação História pode contribuir produtivamente. Portanto pretendo apresentar aqui algumas reflexões introdutórias sobre os conceitos historicamente desenvolvidos de ‗conhecimento‘ e de ‗ideologia‘ e sua relação com o ‗ensino de história‘ e seu papel humanizador ressaltado por diversos autores pesquisadores da ‗Educação Histórica‘. Conhecimento Para evitar cair em lugares comuns e reproduzir versões que já foram exaustivamente repetidas e que se encontram a disposição de qualquer internauta minimamente habilidoso, vou introduzir a questão sobre ‗conhecimento‘ a partir de um relato mais literário do que filosófico, mais histórico do que assertivo. O conceito fundamental sobre ‗conhecimento‘ encontra-se na origem da Civilização Ocidental (Civilização Grega Romana Judaica Cristã Ocidental). Fundamentalmente, na forma como os gregos antigos cultura seminal da civilização ocidental - trataram de responder a ‗pergunta ontológica‘: - quem somos, de onde viemos e para onde vamos? Dito de outra forma: - qual o sentido e o significado da existência humana? Ao contrário das culturas tão ou mais exuberantes e complexas que os antecederam ou que com eles conviveram, os gregos, desde aproximadamente 3.000 anos antes de nosso tempo, ultrapassaram a tradicional formulação mítica (atemporal e transcendente) como resposta para a ‗pergunta ontológica‘. Considerando que somos humanos porque somos racionais, nossas perguntas contem nossa qualidade essencial, isto é, são marcadas pela racionalidade humana. Sendo assim, uma resposta para uma pergunta racional somente pode aceitar uma formulação igualmente racional. Essa lógica simples colocou por terra a aceitação de qualquer mito como resposta.

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E qual foi, então, a resposta dos gregos para nossa questão ontológica? - Nós seres humanos existimos para que no transcorrer de nossas existências terrenas, no pleno uso de nossa liberdade e vontade próprias, possamos agir no mundo para nos tornarmos plenamente humanos. E esta é a única condição de possibilidade de nossa realização e felicidade. Esta resposta é humana! Pois, ninguém pode realizar esta tarefa a não ser cada um de nós. Ninguém a realizara, ou sequer pode realizá-la, por qualquer um de nós. Contudo, é preciso ressaltar que não é uma tarefa isolada e solitária, pois, na concepção grega, para o ser humano há apenas um mundo possível, o mundo sociopolítico, o mundo da Pólis (AUSTIN e NAQUET, 2002; CASTORIADIS, 1987).

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Além disso, esta resposta envolve um conceito de liberdade e de vontade próprias. Conceitos que fundamentam a autonomia não como algo dado ou presenteado por alguma autoridade ou pelos deuses, mas construído processualmente na medida em que é exercitado: A auto-transformação da sociedade diz respeito ao fazer social - e, portanto, também político no sentido profundo do termo - dos homens na sociedade e nada mais. O fazer pensante e o pensar político - o pensar da sociedade como se fazendo - é um componente essencial disso (CASTORIADIS, 2007, p. 418). Esta autonomia, assim entendida, leva a necessidade da ação, como ação política em detrimento de uma disposição humana meramente especulativa que, invariavelmente, conduz a destinação da condição humana a espaços ideais e transcendentes. Esta disposição política e crítica é condição para elevar-se do sensível ao inteligível, não apenas conhecendo as condições objetivas da existência de si (de seu corpo e de todas as relações possíveis com a materialidade dos contextos de sua existência), mas significando tudo através do conhecimento desta humana existência. O ‗tornar-se plenamente humano‘ estabelecido como meta não é, contudo, um ponto de chegada, mas um motto, um estimulador deste processo. Processo provocado pela disposição do espírito

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humano para questionar, que surgiu como resultado da dessacralização do mundo (VERNANT, 1972, p. 41). Há, sem dúvidas, uma inter-relação profunda entre a secularização do pensamento e o surgimento do conceito ocidental de conhecimento: Com a secularização, todos os mistérios do mundo, suas razões e significados mais profundos, bem como sua organização e funcionamento, se tornaram acessíveis à interrogação e ao questionamento dos homens. Deixa de haver, segundo este processo, uma razão ou uma entidade extra-social atuando por detrás do universo humano. O olhar do homem sobre o mundo se torna fundamental. A realidade deixa de ser aceita passivamente, mas é interrogada, examinada, protestada, aceita ou rejeitada. Este processo permitiu que a humanidade pudesse não somente criar as suas próprias instituições, mas em especial, passasse também a interrogá-las. (ROTOLO, 2012, pp.117-118). O fundamental nesta formulação do que é o conhecimento é entender que nenhum ser humano nasce com esta habilidade, que apesar de ser essencialmente humana não é inata, não é própria da condição material com a qual surgimos neste mundo. Nós somente nos tornamos humanos no transcorrer de nossas vidas, na relação e na proporção direta com a qualidade e a intensidade de nossas relações sociais. Sendo assim, como não nascemos humanos, mas podemos nos tornar humanos, é necessário que as comunidades sociais (família, aldeia, cidade e na modernidade o Estado) onde nascemos e crescemos organizem e disponibilizem as estruturas necessárias para nossa humanização. A estas estruturas os gregos chamaram Paidéia – traduzida tradicionalmente para o português como ‗formação do homem grego‘(JAEGER, 2001). Estas estruturas deveriam dar conta da formação do humano em seus aspectos físico, intelectual e moral. A formação física resulta da disponibilização de condições seguras de alimentação, abastecimento de água potável, proteção e segurança, saúde, e, inclusive uso do tempo ocioso através do esporte e do lazer. A formação intelectual foi atribuída aos ‗amigos do conhecimento‘, os filósofos, que deveriam utilizar-se de todo o conhecimento já produzido em todos os campos do conhecimento humano, como matéria-prima para a reflexão crítica, os questionamentos e o salutar

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e humanizador exercício de criação e formulação de novas e originais respostas. Finalmente, a formação moral se daria especialmente nos espaços públicos: - na Ágora onde a Eclésia se reunia e os cidadãos discutiam os problemas da Pólis, propunham e decidiam sobre suas soluções; nos tribunais onde a discussão das mais cruciais limitações humanas levava dialeticamente ao conhecimento de suas maiores qualidades. Nossos conceitos modernos de educação e de ensino desenvolveramse vinculados a tradição da Paidéia. A retomada de seus princípios é um ponto de partida importante para a reflexão sobre as causas de nossos problemas neste campo. O conhecimento histórico Não há reflexão humana, como o conhecimento concebido pelos gregos, se não houver neste conjunto universal de interesses também o interesse, a reflexão, e o contínuo perguntar-se sobre as ‗ações humanas realizadas no passado‘.

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Heródoto (485 – 420 a.C.), em oposição aos seus antecessores, anuncia em sua obra a intenção de oferecer aos seus contemporâneos a possibilidade de, através da narrativa de fatos reais e verdadeiros, refletirem sobre quem são e qual o sentido de suas existências, isto é, considerar os fatos gravados pela memória histórica como uma alternativa necessária para o conhecimento sobre o humano (HERÓDOTO, 1952): A palavra ‗história‘ (em todas as línguas românicas e em inglês) vem do grego antigo historie, em dialeto jônico. Esta forma deriva da raiz indo-europeia wid-, weid, ‗ver‘. Daí o sânscrito vettas ‗testemunha‘ e o grego histor ‗testemunha‘ no sentido de ‗aquele que vê‘. Esta concepção da visão como fonte essencial do conhecimento leva-nos à ideia que histor ‗aquele que vê‘ é também aquele que sabe; historein em grego antigo é ‗procurar saber‘, ‗informar-se‘. Historie significa pois ‗procurar‘. É este o sentido da palavra em Heródoto, no início de suas Histórias, que são ‗investigações‘, ‗procuras‘ (LE GOFF, 1984, 158). Colocando de lado a profusa discussão desenvolvida por historiadores e filósofos, especialmente a partir do século 19, sobre o que é ‗história‘, creio que é possível resumir a posição em que nos

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colocamos, e da qual nos nutrimos para pensar o ‗ensino de história‘ na educação básica, através da oposição entre história e filosofia da história. Importante ressaltar que filosofia da história não deve e não pode ser confundida com a necessária teoria da história (RÜSEN, 2010, 25-51; RÜSEN, 2013, 53-66; RÜSEN, 2015, 59-71). Na opinião de Le Goff (1984, 159) o conceito de historicidade representou um papel de primeiro plano na renovação epistemológica da segunda metade do século 20, ao obrigar a inserção da própria história numa perspectiva histórica, que implica no movimento que liga uma prática interpretativa a uma práxis social: A supressão da historicidade através da filosofia da história é o paradoxo do fundamento epistemológico da história. (...) O discurso filosófico faz desdobrar a história em dois modelos de inteligibilidade, um modelo de acontecimentos (événementiel) e um modelo estrutural, o que leva ao desaparecimento da historicidade: ‗O sistema é o fim da história porque ela se anula na lógica; a singularidade é também o fim da história, porque toda a história se nega nela. (LE GOFF, 1984, 159). Não há dúvida de que ao refletir sobre esta oposição entre história/historicidade e filosofia da história é possível reconhecer também a oposição entre conhecimento e ideologia/ideologização, como colocamos acima: Lutar contra as confusões grosseiras e mistificadoras entre os diferentes significados, não confundir ciência histórica e filosofia da história. Partilho da desconfiança da maior parte dos historiadores de oficio, perante essa filosofia da história ‗tenaz e insidiosa‘ que tem tendência, nas suas diversas formas, para levar a explicação histórica à descoberta ou à aplicação de uma causa única e original, para substituir o estudo pelas técnicas científicas de evolução das sociedades, sendo essa evolução concebida como abstração baseada no apriorismo ou num conhecimento muito sumário dos trabalhos científicos. (LE GOFF, 1984, 159). A ciência histórica fundamenta-se: (1) - em uma práxis metodicamente estruturada na experiência do historiador e dos destinatários de suas narrativas sobre os fatos humanos registrados

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na memória oral, documental ou monumental (RÜSEN, 2010, 100108), ―O pensamento histórico faz-se científico ao se submeter, por princípio, à regra de tornar o conteúdo empírico das histórias controlável, ampliável e garantível pela experiência‖(RÜSEN, 2010, 101); (2) - em uma relação com as normas ou referenciais plausíveis e aceitáveis quanto a vinculação dos fatos humanos acontecidos no tempo passado com o presente, isto é, o referencial que legitima as práticas de pesquisa e as formulações explicativas do historiador (RÜSEN, 2010, 108-118) ; (3) - na metodização da relação com as ideias a partir da prática narrativa histórica (que não se confunde ou coincide com a narrativa literária), pois ao historiador cabe organizar suas ideias - alicerçadas em suas práticas científicas – de forma a atribuir sentido a suas teses e oferecer ao destinatário de seu trabalho condições para também atribuir sentido a sua existência individual e coletiva, a partir dos princípios da recuperação do passado, como história, no presente (BAUMGARTNER, 1979, 259-289; RÜSEN, 2010, 118-126). Ensino de história e narrativas (auto)biográficas

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A vontade de construir espaços/tempos de possibilidades para que os educandos atribuam sentidos aos conteúdos, das disciplinas a que estão submetidos na educação básica, ao se compreenderem nos contextos sociais e culturais em que estão inseridos (RÖWER, 2014), relaciona-se, sem dúvida, a história de vida dos docentes que são revisitadas, ressignificadas na escrita dos relatórios de pesquisa e nos diário de campo, que acompanharam o desenvolvimento da prática e da pesquisa com relatos autobiográficos durante o ano de 2015. A experiência empírica de utilização de narrativas autobiográficas em aulas de história junto a alunos do ensino médio, que contou com a colaboração de professores de história, foi realizada em três escolas públicas, do município de Santa Maria, Rio Grande do Sul. A experiência de uso de narrativas autobiográficas foi realizada basicamente através da proposta de escrita de uma história de vida por parte dos alunos envolvidos nas aulas de história, nas duas primeiras semanas do semestre. Os estudantes foram estimulados a realizar esta tarefa a partir de reflexões realizadas em oficinas coordenadas pelos docentes envolvidos, sobre as possibilidades de que os conteúdos da disciplina de história poderiam indicar referências para a compreensão de si. Os relatos autobiográficos foram selados e guardados. A partir daí desenvolveram-se os conteúdos disciplinares das aulas de história segundo os padrões

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determinados pela gestão de cada escola, os parâmetros curriculares previstos pela legislação e a ‗prática pessoal‘ de cada professor envolvido. No final do semestre, após a rememoração da proposta anunciada no início do mesmo, solicitou-se aos estudantes que escrevessem novas autobiografias. Após esta tarefa, retomaram-se os relatos autobiográficos iniciais e solicitou-se que os alunos estabelecessem uma relação entre o primeiro e o segundo texto biográfico produzido e indicassem mudanças de percepção de si e dos contextos de inserção social vinculados. As concepções sobre a complexidade dos processos educativos e sobre os sujeitos envolvidos nesta experiência de ensino podem ser resumidas da seguinte forma: 1. A concepção de sujeito socializado, na estrita relação das influências socializadoras e na constituição das individualidades; 2. A educação como uma experiência, que em Dewey (1953; 2010), de forma geral envolve reflexão, dotada de significação, em que se percebem relações e continuidades antes não percebidas, em que a aquisição de novos conhecimentos é um resultado natural. 3. A relação do social com o individual na centralidade do ensino de ciências sociais e humanas, neste caso a história, por meio do desenvolvimento da ‗imaginação histórica‘, cujo principal argumento ancora-se na concepção de uma história como narrativa. Collingwood (1981, 252) considera que a imaginação histórica, diferente da imaginação livre de um artista, pode ter como tarefa imaginar o passado, que já não existe mais, de forma a nos ajudar a compreender o presente tornando-o evidência de seu passado, não para justificar nossas existências humanas e seus contextos, mas para potencializá-las para produzir sentidos e significados. 4. O estranhamento e a desnaturalização (CUNHA e RÖWER, 2014) compreendidos como princípios epistemológicos que caracterizam a histórica como ciência, com a finalidade prática de aprender, compreender e superar o etnocentrismo rumo a um humanismo histórico (RÜSEN, 2013, 253-281; RÜSEN, 2015, 247273): As reflexões sobre os princípios do pensamento histórico determinantes para a história como ciência podem, no campo da historiografia, fazer com que a formulação historiográfica de resultados de pesquisa capacite seus destinatários a abordar a interpretação do passado que lhes é oferecida usando seu entendimento próprio, e não meramente pela imposição do entendimento do autor.

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Assegurar-se-ia, dessa forma, que também os destinatários (potenciais) e o público-alvo da historiografia não sejam excluídos da razão que os historiadores pretendem para si, pretensão que jamais poderiam ter se não supusessem que seus leitores, por princípio a possam possuir (RÜSEN, 2010, 47).

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5. A relação entre conhecimento, sentido e construção de si, apontadas por Josso (2010); a reflexividade autobiográfica destacada por Passeggi (2011a; 2011b) que implica uma autonomia congnitiva e a conscientização de si em organizações dinâmicas de compreensão de si; e, a relação entre biografia e aprendizagem de Delory-Momberger (2006, 2012, 2014) pode ser identificada nos seguintes aspectos: (1) – que os saberes subjetivos e não formalizados influenciam no modo como as pessoas investem e transitam nos espaços de aprendizagens formais e que tornar-se consciente destes saberes, torna possível ressignificar sentidos e projetos de vida em formação (DELORY-MOMBERGER, 2006); (2) – que a compreensão dos significados das experiências de formação e aprendizagem de jovens e adultos em suas construções biográficas individuais, nas suas relações com os outros e com o mundo social torna-se constituidor (DELORY-MOMBERGER, 2012); e, (3) – que a aprendizagem de saberes escolares estabelece uma relação de complementaridade e reciprocidade com as aprendizagens e saberes biográficos, permitindo revisitações de si e outras projeções, ou ainda ―biografar-se de outro modo‖ (DELORY-MOMBERGER, 2014, 136). O estranhamento e a desnaturalização, como princípios epistemológicos do ensino de história, que incidem sobre si e o outro e que possibilitam compreender e compreender-se de outro modo referem-se à possibilidade de ―biografar-se de outro modo‖, para retomar Delory-Momberger (2014), e para substanciar a relação aqui defendida entre o campo da pesquisa (auto)biográfica em educação como dispositivo de formação e o ensino de história na educação na educação básica – ensino médio. Considerações finais O objetivo central desta experiência com o ensino de história foi construir possibilidades didático-metodológicas de reflexão e conscientização de si na relação entre estrutura e contextos socioculturais e trajetórias de vida individuais. Relatos de si, estranhamentos e desnaturalizações do senso comum,

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conscientizações e possibilidades de novas reorganizações de si, transpassadas por conteúdos da disciplina de história no ensino médio. A grande contribuição desta experiência foi a compreensão de que este exercício de escritas auto referenciais auxiliou para a aquisição de uma habilidade de aprendizagem de relacionar os conhecimentos escolares da história com a vida vivida em outros espaços e tempos. Além disso, também se problematizaram as diferentes atribuições de sentidos pelos educandos envolvidos nestas atividades; a relação educardor-educando que interfere no próprio processo de escrita; e a necessidade de aprimorar o trabalho de leitura/escrita dos relatos sobre si. A estrutura da abordagem e as análises dos relatos permitiram formular considerações que podem colaborar na compreensão dos sentidos do ensino de história , e a potencialidade das escritas de si como dispositivos de formação no âmbito escolar. Isto porque as compreensões rumaram para a corroboração da tese de que a utilização de dispositivos de auto e heterobiografia nas aulas de história fomentam estranhamentos de si e do outro e a desnaturalização, quebrando preconceitos e derrubando a alienação/desumanização provocada por processos de ideologização que não raro impregnam os discursos docentes e os conteúdos dos livros didáticos nas salas de aula. A história, ao desnaturalizar esses elementos constituidores do ser social, que é ao mesmo tempo individual, ao fazer compreender a historicidade, a igualdade e a diversidade humana através dos seus conceitos, temas e teorias, gera reflexões sobre si e sobre o outro, suspensões de saberes, novas compreensões e possibilidades do estabelecimento de outras relações. Em suma uma possibilidade de migração da imaginação histórica para um nível de consciência racional, ‗consciência histórica‘, sobre o sujeito, sua constituição e seus contextos. A Educação Histórica é um marco para o ensino de história, especialmente na educação básica, ao apresentar-se como uma alternativa as ideias e práticas educativas alicerçadas no desenvolvimento cognitivo da aprendizagem associadas à Psicologia da Educação. Partindo da premissa da existência de uma cognição própria da história fundamentada na racionalidade, a Educação Histórica toma como referência fundamental a epistemologia da história para alcançar, como resultado da prática educativa neste campo do

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conhecimento humano, um nível de consciência histórica que contribui significativamente para a conquista da autonomia dos sujeitos envolvidos nestes processos educativos. Referências

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ENSINO DA HISTÓRIA ANTIGA E ARTE SEQUENCIAL: ESBOÇOS INTRODUTÓRIOS José Maria Neto

―Decidi obrigá-los a aceitar esta civilização! A floresta será destruída para dar lugar a um parque natural! Enfim, prédios circundarão a aldeia, que não passará de uma simples anforaldeia condenada a se adaptar ou a sumir do mapa.‖ (UDERZO e GOSCINNY, 1985, p. 5)

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(UDERZO, GOSCINNY, 1985) Na revista O Domínio dos Deuses (Le Domaine des dieux, publicada originalmente na França em 1971), um enfurecido Júlio César desabafa com seus subordinados toda sua frustração: conquistara a Gália inteira, à exceção de uma pequena aldeia de irredutíveis, Asterix e seus colegas, todos ―encharcados de poção mágica‖ e que permaneciam ―debochando do poder de Roma‖. Suas legiões eram incapazes de derrotá-los, então optou por uma tática mais sutil, envolve-los com os marcos da cultura romana, encharcá-los nela, modificando de uma vez por todas seu modo de vida – passariam, pois, a aceitar o domínio imperial e, inclusive, tomariam parte nele. Obviamente, a sátira que os autores René Goscinny e Albert Uderzo elaboraram não retrata a realidade da Antiga Roma – o diálogo de

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César com seus conselheiros fala muito mais do momento no qual a revista foi criada, os anos 1970 do século XX d.C., do que propriamente das últimas décadas antes da Nossa Era; não obstante, a leitura feita do Imperialismo Romano condizia com o que a historiografia pensava naquele momento. Logo, bem se vê que havia uma dinâmica intrínseca àquela revista, na qual a ficção contemporânea e o conhecimento sobre a Antiguidade se fundiam – entrada possível para a construção de uma cultura histórica, ―a própria memória histórica, exercida na e pela consciência histórica, a qual dá ao sujeito (...) uma direção para a atuação e autocompreensão de si mesmo‖ (SCHMIDT, 2014, p. 40). Questões prementes do mundo que nos cerca – conflitos, crises, mudanças permanências, alteridades, identidades, contatos, resistências – eram pertinentes à Antiguidade como ainda o são em nossos dias, fazem parte do patrimônio de nossa memória e da nossa afetividade, e podem, portanto, lançar luzes ao nosso próprio tempo vivido. Desta forma, quando falamos de César, falamos de nós mesmos e, inversamente, ao buscar sua velha figura e colocá-la em situações modernas, reconhecemos que há elos entre nós e o mundo antigo; não uma Antiguidade ―dada, acabada, a ser decorada pelo aluno‖ (FUNARI, 2005, p. 98), mas antes trabalhada como possibilidade, construção das várias épocas que sobre ela se debruçaram e refletiram. Neste contexto, a literatura em geral, e os quadrinhos em especial, emergem como poderosos elementos para o aprendizado desta História, pois estão repletas de inquietações, servem às comemorações e rememorações da realidade, propiciam novas estratégias de ensino e a produção de conhecimento histórico sob a capa da espontaneidade, a ser explorada, já no ensino superior, pelos futuros professores do ensino médio, inserindo novas abordagens neste aprendizado sem, contudo, abdicar da contextualização fundamental, construindo pontes para diminuir as distâncias espaço-temporais e procurando soluções para realçar valores e conceitos que, amiúde, estão presentes à nossa volta. Optamos por lançar mão do conceito ―arte sequencial‖ por representar, para o professor de História Antiga, uma grande oportunidade de relação entre objeto de trabalho ao tempo vivido, pois como bem observou Scott McCloud, é a definição mais ampla em termos de limites, sem se constranger a um gênero ou traço específico, mas tão-somente à justaposição de imagens com um significado continuado entre si, instrumental metodológico que rompe a data convencional de invenção dos quadrinhos e abre novas perspectivas, levando-os ―bem longe no futuro e bem longe no

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passado, antes do ‗ponto de partida‘ artificial em 1896 e ‗The Yellow Kid‟... chegando mais de três mil anos atrás! Há uma riqueza incrível nos quadrinhos antigos, e alguns podem ter a chave pro futuro desse meio!‖ (McCLOUD, 2005, p. 199, 200).

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Se este recuo representa um ganho para a arte per se, não significa menos para o ensino de História, pois vários artefatos antigos podem (―devem‖ seria mais exato) ser interpretados à luz do conceito desta definição, o qual restaura um pouco da vitalidade que originalmente possuíam, amiúde negada nas abordagens convencionais de peças da Antiguidade. Um bom exemplo dessa análise é o Estandarte de Ur, um dos objetos sumerianos mais reverenciados pela cultura contemporânea. Preservado no British Museum, em Londres, consiste na caixa de ressonância de uma lira, executada no sul da Mesopotâmia por volta de 2600 a.C.; de forma trapezoidal, seus dois lados maiores apresentam cenas da vida quotidiana (a ―face da paz‖) e dos combates ―(a face da guerra). Vistas em separado, suas figuras humanas em madrepérola sobre um fundo azul de lápis-lázuli são interessantes; contudo, quando utilizado o conceito de arte sequencial, são percebidas em uma série de cenas de ação: primeiro, o palafreneiro segura quatro asnos atrelados a uma carruagem de guerra, enquanto uma figura em traje de combate segura cordas mais atrás; em seguida, este personagem, já embarcado, toma as rédeas, e tem atrás de si um lanceiro; por último, o conjunto está em plena ação, com o lanceiro exercitando sua arte mortífera enquanto o carro passa por sobre um inimigo caído. O Estandarte de Ur é um dos muitos exemplos de artefatos provenientes da Antiguidade que ganham novo ritmo quando vistas sob os óculos da arte sequencial: o afresco dos jovens cretenses

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saltando sobre um touro, rapazes atenienses montados em seus cavalos nos frisos do Pártenon, a procissão de nobres romanos do Ara Pacis construído pelo imperador Otávio Augusto em Roma... todos originalmente elaborados para serem vistos e compreendidos como dinâmica, condição perdida pelo tempo e passível de restauração quando aplicado o instrumental teórico apropriado. A recuperação do movimento e do ritmo – numa palavra, da vitalidade – da Antiguidade é um dos desafios da Historiografia contemporânea, e a transmissão social dos resultados das pesquisas, transformação em linguagem visual acessível dos mais recentes achados arqueológicos, confere compreensibilidade a elementos cuja interpretação, fora dos grupos especializados seria, de outra forma, muito restrita. Em seu texto Os quadrinhos na aula de História, Túlio Vilela situa precisamente a inserção dessa leitura na sala de aula, caracterizando-a como ―mais um recurso pedagógico que pode trazer bons resultados se bem empregados‖, mas alerta: como o cinema e a literatura ficcional, ―os quadrinhos são muitas vezes vistos pelo professor como apenas suporte de um conteúdo. Eles podem ser mais do que isso‖ (VILELA, 2005, p. 106). A nosso ver, tal equiparação entre as artes vem bastante a calhar, pois a utensilagem teórica disponível, por exemplo, para a análise do cinema no ensino de História, é igualmente pertinente para os quadrinhos, perspectiva apoiada no trabalho de Scott McCloud: O raciocínio tradicional há muito tempo tem sustentado que obras de arte e literatura só são realmente boas quando mantidas a uma certa distância uma da outra. Palavras e figuras juntas são consideradas, na melhor das hipóteses, uma diversão pras massas; na pior das hipóteses, um produto do comercialismo crasso. (...) Enquanto isso, as palavras e o cinema fascinam o mundo com seu charme, mas eles tem que se esforçar pro seu potencial ser compreendido. (McCLOUD, 2005, p. 140, 141). Como bem colocou a historiadora Maria Wyke, o cinema possui uma ―profunda função‖ na constituição de uma consciência histórica, uma perspectiva de estudos clássicos que objetiva não somente revelar a Antiguidade, e sim ―expor, ao invés de ocultar, os interesses ideológicos locais – as várias misoginias, etnocentrismos, elitismos e imperialismos – tanto da Antiguidade quanto das suas apropriações subsequentes‖ (WYKE, 1997, p. 7), de modo que longe de compor

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uma narrativa de feitos e realidades dadas e acabadas, num reflexo da nossa compreensão contemporânea do passado, busca o contrapelo, os conflitos, sem se eximir de ―definir e debater nossa relação com aquele mundo‖. A arte sequencial não está ausente desta perspectiva: quadrinhos, os mais fidedignos como os nem tanto, ao recriar o passado, são sempre agentes de construção de cultura histórica, fato claramente perceptível nas produções das editoras comerciais – e como poucas publicações podem ser mais mainstream do que as Disney, comecemos analisando um clássico do gênero, a História e Glória da Dinastia Pato (Storia e gloria della dinastia dei paperi originalmente publicada na Itália, entre abril e maio de 1970, na revista Topolino, seguindo o roteiro de Guido Martina com desenhos de Romano Scarpa e Giovan Battista Carpi).

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(EDITORA Abril, 2009) Para uma criança ou um adolescente no Brasil de 1974, quando a primeira parte da saga foi lançada, ou de 1987, publicação do seu inteiro teor na edição número 100 da coleção Disney Especial, esta narrativa da árvore genealógica do Pato Donald, cuja primeira etapa passa-se no Egito Antigo, pode muito bem ter sido um dos primeiros contatos com o conjunto de imagens que associamos, quase osmoticamente, ao país do Nilo: lá estão a pirâmide e os camelos, o deserto e a rainha Cleópatra (chamada Cleopata e ―vivida‖ pela Margarida). As imprecisões são abundantes, como reconhecido pela própria editora na versão mais recente do álbum, mas ao invés de provocar a rejeição da obra na sala de aula, elas devem, pelo contrário, servir ao aprendizado – não podem jamais ser utilizados

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sem a intervenção do professor, o qual deverá discuti-los com seus alunos e contextualizá-los, e nesse processo, ―os erros podem servir de ponto de partida para informações historicamente corretas‖ (VILELA, 2005, p. 121): na época na qual se passa a história (grosso modo, o Império Tardio), pirâmides ainda eram construídas? Existiam camelos ou dromedários domesticados? Havia ampla cunhagem de moedas? A resposta a tais perguntas é ‗não‘, mas este é o momento preciso da edificação do conhecimento, de questionamento do tempo vivido e de construção do conhecimento baseado na Historiografia: os erros são corrigidos, mas o diálogo estabelecido entre a imagem (lúdica) e o saber construído em sala não se perdeu. O historiador norte-americano Robert Rosenstone compara o filme à produção historiográfica, pois tanto um quanto outra não só elaboram e rearranjam os vestígios legados pelo passado, quanto, quando necessário, se permitem inventar fatos para compor suas narrativas: ―o objetivo não é fornecer verdades literais acerca do passado (como se a nossa história escrita pudesse fazê-lo), mas verdades metafóricas que funcionem, em grande medida, como uma espécie de comentário, e desafio, em relação ao discurso histórico tradicional‖ (ROSENSTONE, 2010, p. 94); esta perspectiva pode ser válida também para a arte sequencial, percebendo-a como leitura elaborada a posteriori que fala sobre o conhecimento então disponível sobre o tema – e nesse sentido, o fato de Pah-Tih-Nhas, tesoureiro da rainha Cleopata, transformar o tesouro real em moedas de ouro e estocá-las numa pirâmide (num período em que a cunhagem de moedas ainda engatinhava e a construção destas estruturas havia sido abandonada) fornece ao professor que lida com esta leitura amplas oportunidades de envolvimento com seus alunos, e de desenvolvimento do seu conhecimento histórico – como observou Raquel dos Santos Funari (2004, p. 152), ―indiscutivelmente, as revistas de HQ, por fazerem parte importante do universo de crianças e jovens, podem ser igualmente utilizadas como ferramenta pedagógica criativa e eficiente‖. Sobre estas construções metafóricas, há que se perguntar qual seu interesse no retorno ao passado: mera ―ambientação exótica‖ para a narrativa, ou efetiva interação ―com aquele discurso, fazendo e tentando responder perguntas que, há muito tempo, circundam um determinado tópico‖? (ROSENSTONE, 2010, p. 74). No caso específico da História e Glória da Dinastia Pato, conquanto seu autor tivesse formação em Letras e Filosofia, e a Itália possua uma longa tradição de usos da Antiguidade (Cf SILVA, 2007, p. 36), ela

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integra o primeiro grupo; há, porém, exemplos diversos de diálogo entre os quadrinhos, as fontes clássicas e a historiografia, como Os 300 de Esparta, de Frank Miller. Quando do seu lançamento, em 1998, esta Graphic Novel foi alvo do mais amplo criticismo, desencadeando, inclusive, batalhas verbais entre seu autor e outros artistas, como o respeitado Alan Moore, que o acusou de imprecisão histórica ao apresentar os espartanos criticando seus rivais atenienses por suas práticas pederásticas; e quando foi transposta às telas, em 2007, a exposição fílmica trouxe à tona a natureza supostamente racista do texto, que caracterizava os gregos como heróis e os persas como bárbaros horrendos – ambas posições excelentes para a discussão histórica, e amparado nela, o profissional de História tem à disposição um amplo leque de possibilidades para abordar o conteúdo.

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O retrato feito dos persas está longe de ser criação de Miller – de fato, ele traduziu, em palavras e imagens, representações em voga desde a Antiguidade, e que vem sendo amiúde retomadas desde o início da Idade Moderna para opor de modo irreconciliável duas esferas, a saber: o Oriente e o Ocidente. Como bem colocou François Hartog, (...) essa Europa polêmica dos gregos, que iria ser também uma Europa política. As guerras médicas serviram de catalisador para a oposição entre gregos e bárbaros. Ora, qual seria, em suma, a diferença essencial entre uns e outros? (...) uns são ‗livres‘, os outros submetidos a um senhor. (...) um significado preciso, dotando o antônimo de um rosto – o do persa – e conferiram-lhe um território, a Ásia, que ele reivindicava como seu. (HARTOG, 2003, p. 101, 102). Esta oposição não se extinguiu: o Ocidente se constituiu como espaço em oposição polêmica ao Oriente, à Ásia, e tem buscado naquelas que considera suas raízes primeiras, a Grécia, a expressão mais recuada deste choque, onde encontrou a descrição da liberdade, da participação política, da individualidade e da autonomia, em contraposição aos asiáticos dominados e subservientes (Cf HARTOG, 2003, p. 146).

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(MILLER, 2006) Neste universo recuperado por Frank Miller, o persa é o antípoda do heleno: frequentemente tem a pele escura, seus traços faciais são meramente esboçados, e mesmo a elite do exército invasor, o Batalhão dos Imortais, tem aparência assustadora, pois usa capacetes com máscaras semelhantes às da tragédia grega. Sua feiura destaca a beleza grega.

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(MILLER, 2006) Os espartanos são agrestes, com barbas cerradas, cabelos em longos cachos chegando até os ombros, faces duras e longilíneas; diversamente dos seus inimigos, indistintos e obscuros, a personalidade lhes transparece no semblante. Seus corpos são bem torneados, nádegas duras – formas que, diga-se de passagem, também deitam suas raízes em ideais estéticos helênicos, para quem a liberdade política era expressa pelo tônus corporal dos cidadãos:

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O corpo do cidadão é propriedade pública (...) estava lá para ser observado e comentado (...) vendo que Epigenes, um de seus companheiros, apresentava uma condição física precária para um homem jovem, (Sócrates) disse: ‗você tem o corpo de alguém que simplesmente não está envolvido em questões públicas! (GOLDHILL, 2007, p. 27). Assim sendo, considerar homofóbico Os 300 de Esparta parece-nos demasiada simplificação, mas há, de fato, uma fala na qual se pode compreender o discurso anti-homossexual: quando o mensageiro de Xerxes chega a Esparta, pede ao rei uma oferenda de terra e água, símbolo da submissão da cidade-estado ao império, a resposta de Leônidas, com o perdão do trocadilho proposital, é lacônica: ―Hmm. Temos um pequeno problema. Boatos dizem que os atenienses já rejeitaram a sua proposta. E se aqueles efeminados (boy-lovers, no original inglês) tiveram essa coragem... afinal, nós, espartanos, temos uma reputação a zelar‖ (MILLER, 2006, p. 12).

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Da maneira como foi colocada, fica parecendo que a prática dos relacionamentos homossexuais em Esparta era criminalizada, ao contrário do que ocorria em Atenas - ideia que não condiz com o que diz a historiografia: entre os espartanos, estas relações, mais que incentivadas, eram um tanto institucionalizadas e forçadas, e os homens, apartados de suas famílias durante boa parte da vida, viviam em acampamentos militares, exerciam sua sexualidade entre si e frequentemente em direção aos meninos recém-chegados ao treinamento, ou aos moços que já participavam dele há mais tempo – o que torna a expressão original, ―Boy-lovers‖, ainda mais incorreta do ponto de vista histórico, e merecedora da desaprovação. Todavia, conforme o próprio Miller observou, os espartanos tendiam a criticar seus rivais atenienses; fontes nativas de Esparta são raras, e conhecemos seus cidadãos, majoritariamente, através do olhar de seus algozes áticos, os quais os apresentam como hipócritas moralistas, fanáticos religiosos e devotos de uma existência excessivamente voltada para o dever e sem liberdade. Logo, a opinião de Leônidas sobre a prática homoerótica ateniense seria muito mais indício de mero despeito que, efetivamente, afirmação da inexistência das tais práticas entre os espartanos, para quem a suposta efeminação ateniense (e nesse sentido, a tradução brasileira foi extremamente feliz) era, aí sim, motivo para censura.

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(MILLER, 2006) Há, entretanto, uma exceção à beleza masculina espartana: o traidor Efialtes. Heródoto o introduz de modo breve: ―málio de nascimento e filho de Euridemo, veio procurá-lo [Xerxes] na esperança de receber uma recompensa‖ (Livro VII, CCX, p. 870), mostrando aos invasores uma rota secreta para cercar os defensores no Estreito das Termópilas. Frank Miller optou por uma abordagem diversa: fez dele espartano de nascimento, mas deformado – e todos os recémnascidos com deformidades naquela cidade eram destruídos: ―O amor de minha mãe fez meus pais fugirem de Esparta para eu não ser eliminado. Meu pai se tornou um pastor... mas me ensinou o caminho do guerreiro. Eu lhe imploro, bravo rei, que me deixe redimir o nome de meu pai lutando por você‖ (MILLER, 2006, n/p). Esta criatura é a versão bizarra dos espartanos, um grotesco, ―a figura do rebaixamento (bathos na retórica clássica), operado por uma combinação insólita e exasperada de elementos heterogêneos, com referência frequente a deslocamentos escandalosos de sentido, situações absurdas, animalidade, partes baixas do corpo fezes e dejetos‖ (SODRÉ, PAIVA, 2002, p. 17), e a opção de Miller por representá-lo assim ecoa antigos padrões helênicos: a feiura de suas carnes transparece a de seu caráter, forma de representação que encontra paradigma na mais reverenciada literatura helênica, n‘A Ilíada, de Homero: no Canto II, Tersites, um grego ousou questionar as lideranças heroicas de sua própria gente, em clara demonstração de indiscutível desonestidade, algo que o poeta tornou bastante perceptível através de sua descrição:

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Era o mais feio de quantos no cerco de Troia se achavam. Pernas em arco, arrastava um dos pés; as espáduas, recurvas, se lhe caíam no peito, e, por cima dos ombros, em ponta, o crânio informe se erguia, onde raros cabelos flutuavam. (Canto II, 216-219, 1989, p. 83). Assim, Efialtes não por acaso tem essa aparência: ainda que influenciado pelo cinema (um filme sobre os 300 de Esparta foi feito em 1962, e impressionou muito o futuro autor), ecoa antiquíssima perspectiva, traz ao mundo moderno (tanto na cronologia como na colonização de uma mídia até então intocada pelo tema) visões éticas e estéticas cultivadas pelos gregos ao longo de sua história. Conclusão

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As metáforas visuais conjuradas na arte sequencial proporcionam um rico local de discussão para o Ensino de História. Em suas formas mais palatáveis (ou comerciais) ou em seus exemplos mais autorais, ilustram conceitos pertinentes à formação do conhecimento histórico, e cabe ao profissional preparar-se metodológica e teoricamente para compreendê-las, ou como bem colocou Paulo Ramos, ―ler quadrinhos é ler sua linguagem. Dominála, mesmo que em seus conceitos mais básicos, é condição para a plena compreensão da história e para a aplicação dos quadrinhos em sala de aula e em pesquisas‖ (RAMOS, 2014, p. 30). Bibliografia Fontes Primárias: EDITORA Abril. História e Glória da Dinastia Pato. São Paulo: Abril, 2009. HERÓDOTO. História. São Paulo: Ediouro, 2001. HOMERO. A Ilíada. São Paulo: Ediouro, 1989. MILLER, Frank. Os 300 de Esparta. São Paulo: Devir, 2006. UDERZO, Albert; GOSCINNY, René. O Domínio dos Deuses. Rio de Janeiro: Record, 1985. Fontes Secundárias: FUNARI, Pedro Paulo. A renovação da História Antiga. In: KARNAL, Leandro (Org.) História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2005. FUNARI, Raquel dos Santos. O Egito na Sala de Aula. In BAKOS, Margaret (org.). Egiptomania: o Egito no Brasil. São Paulo: Paris Editorial, 2004.

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GOLDHILL, Simon. Amor, Sexo e Tragédia: como gregos e romanos influenciam nossas vidas até hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. HARTOG, François. Os antigos, o passado e o presente. Brasília: Editora da UnB, 2003. McCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: M.Books, 2005. RAMOS, Paulo. A leitura dos quadrinhos. São Paulo: contexto, 2014. ROSENSTONE, Robert A. A história nos filmes, os filmes na história. São Paulo: Paz e Terra, 2010. SCHMIDT, Maria Auxiliadora Moreira dos Santos. Cultura Histórica, Ensino e Aprendizagem de História: questões e possibilidades. In OLIVEIRA, Carla Mary S.; MARIANO, Serioja Rodrigues Cordeiro (org.). Cultura Histórica e Ensino de História. João Pessoa, Ed. UFPB, 2014. SILVA, Glaydson José da. História Antiga e usos do passado. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2007. SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. O Império do Grotesco. Rio de Janeiro: Mauad, 2002. VILELA, Túlio. Os quadrinhos na aula de História. In RAMA, Angela et alli. Como usar os quadrinhos na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2005. WYKE, Maria. Projecting the past: Ancient Rome, Cinema and History (New Ancient World). New York: Psychology Press, 1997.

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O ENSINO DA HISTÓRIA ANTIGA E OS LIVROS DIDÁTICOS: REFLEXÕES E QUESTIONAMENTOS José Roberto de Paiva Gomes Maria Regina Cândido

As discussões

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Apesar das concepções teóricas, como memória e identidade, fazerem parte das discussões em âmbito do ensino de História ou das Ciências Sociais no ensino básico, o exotismo ainda se demonstra uma opção para se estabelecer como ponto de comparação nos livros didáticos. Algumas edições privilegiam, para dar conta da relação tempo e espaço, a tematização da História Antiga se pautando na relação passado e presente e esta, por sua vez, acaba por estabelecer alguns anacronismos. Algumas destas construções desvalorizam o legado e a matriz cultural das civilizações antigas e supervalorizam a concepção moderna, sem levantar questionamentos e debates sobre as conceituações. Seguindo esta linha de abordagem concordamos com Ana Tereza M. Gonçalves (2011, 168) em caracterizar esta conduta como um ―erro metodológico‖. Para a autora esta situação pode ser encarada de outra maneira ao se fazer desenvolver o ―senso crítico‖, a partir dos das reflexões sobre as ―escolhas‖ e as ―atitudes‖ tomadas para o exercício do poder. Como, por exemplo, sobre a democracia grega, os livros didáticos de forma generalizada, chegam descrevendo a forma política como um ―modelo ideal tipo‖ de instituição, como descreveu Marx Weber, sem questionar como um membro da assembléia grega chegava aos cargos políticos. Não se interrogam sobre a prática do ostracismo antigo e acabam, disforizando os modelos democráticos modernos, por causa da corrupção, tornando-os imperfeitos, sem estabelecer as similitudes e as diferenças, euforizando o modelo antigo sem questiona-lo. A diversidade dos modelos democráticos, no tempo e no espaço, será esquecida em detrimento de conceituais temáticos que somente buscam traços igualitários, abandonando a ―alteridade‖, o desenvolvimento do outro como um problema passível de questionamento. Muitas abordagens, por outro lado, caracterizam

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essa definição do ―outro‖, como algo tão ―exótico‖ ou ―estranho‖ que se torna desnecessário estuda-lo. Esquecendo que a analise do fenômeno pode ser o caminho para o despertar do senso crítico e da formação de opinião. O exercício da cidadania, muitas vezes, será tratado por intermédio das manifestações ou pelos atos de violência ou revolta. O ato de votar e de exercer os direitos e deveres fica em segundo plano. Podemos inferir que haveria a necessidade de se destacar os dois lados da questão, a matriz no passado e o conceito resignificado ou reinterpretado no tempo presente. Algumas críticas se tecem em relação aos conteúdos estão relacionadas aos autores e aos conceitos do passado. De acordo com Gilvan V. Silva (2001), observamos distorções nas narrativas históricas construídas, como informações erradas e desatualizadas que comprometem o livro didático como um instrumento pedagógico. Alguns autores ou organizadores das coletâneas não estão familiarizados com termos e conceitos. Na maioria os livros de conteúdos básicos, usados ou adotados não abordam as pesquisas atualizadas sobre as novas abordagens sobre a História Antiga. A quantidade de simplificações compromete o ensino-aprendizagem que necessitam de uma complementação. Esta situação seria explicada, talvez, pela precariedade das bibliotecas brasileiras no que corresponderia a um acervo documental ou historiográfico atualizado (somente a USP e a Unicamp tem este acervo que conta com a presença de periódicos nacionais e estrangeiros em seu sistema de dados). Também encontramos a reedição constante de clássicos, que dificultam os especialistas de trazerem a tona, e fazer a ligação ―universidadeescola‖, de novas perspectivas e abordagens para os livros didáticos. Está ligação se desenvolveu, com mais afinco, somente no Sudeste do país, os PNLD´s de 2015 a 2017, trazem os estudos de especialistas renomados, tais como Ciro Flamarion Cardoso (UFF) e Pedro Paulo Funari (UNICAMP). Os autores dos ―novos livros‖ são advindos das Universidades que contam com os acervos atualizados. Entretanto, os livros didáticos que apontam para este novo tipo de abordagem são descartados pelas escolhas. Esta atitude, talvez seja explicada por não haver uma política de reciclagem dos profissionais de educação que os capacite em novas perspectivas de abordagem, como a História Cultural, fazendo-os optar ou permanecer nos ―clássicos‖. Atualmente, a reciclagem se foca na aplicabilidade nas

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leis sobre a cultura afrodescendente e indígena. Todavia, as propostas de aperfeiçoamento profissional omitem a antiguidade como matriz cultural, esquecendo de descriminar conceitos como ―reino‖, ―cidade‖ ou ―comunidade‖ das civilizações africanas, que são conceitos que estruturam as comunidades quilombolas brasileiras, por exemplo. Outros tipos de problemas encontrados se referem a falta de documentos textuais ou quando estes existem aparecem como um caráter meramente ilustrativo. A historiografia, como salienta Gilvan Ventura (2011) será abordada para dar credibilidade ao documento. O caráter ilustrativo da cultura material também se caracteriza como um problema. Por exemplo, observamos imagens de ―mulheres gregas em fontes de água‖ em Atenas com a legenda em contradição em um livro didático, o ilustrador ao formular a legenda descreve um traço vermelho na imagem dizendo que jorrava vinho em vez de água, um equívoco provocado pelo desconhecimento da História da arte grega. Reflexões sobre a cultura material no livro didático

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Tomaremos, como exemplo, uma atividade complementar de um livro didático que contém uma quantidade de simplificações que comprometem o estudo sobre a Mesopotâmia.

(Exercicio elaborado para o projeto Arariba no livro do 6 ano de escolaridade)

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No texto informativo, omite-se o caráter religioso do artefato. A inscrição da estátua era uma oferenda à uma divindade suméria denominada Ningizzida. Os detalhamentos sobre as divindades mesopotâmicas são omitidos no texto. A estátua representa Gudea, o governante da cidade-estado de Lagash. Este patesi governou, durante quinze anos, construiu templos e palácios, desfrutou da paz e de uma extraordinária prosperidade. A escultura foi um presente para Ningizzida, uma divindade na antiga Mesopotâmia, que sempre acompanhava Tammuz, o deus que guarda as portas do céu. Às vezes descrito como uma serpente com cabeça humana, esta divindade mais tarde se tornou o deus da cura e magia. A sexualidade de Ningizzida é desconhecida, mas em algumas representações é visto com uma barba e duas cobras que saem de seus ombros No mito de Enki e Ninhursag, relacionado com "a árvore da vida", Ningizzida coabita com outra divindade, de nome Dazima, uma das oito divindades cuja função seria a cura de males. É o primeiro símbolo de serpentes gêmeas que você tem conhecimento, e alguns acreditam que a divindade poderia ter sido a serpente no Éden (Barenton, 1921).

Imagens do artigo de Price (1900, 47-53) sobre as divindades sumérias

Observamos que pelo exposto, a atividade propaga conceitos, enraíza noções, algumas disparidades, falta de rigor crítico, juízo de valor, anacronismo (ótica modernizante) que gera contradições e equívocos. A atividade não privilegia que o conhecimento histórico

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deve se beneficiar de novas definições criadas pelo conhecimento acadêmico que permite refletir e mobilizar saberes da prática (Silva e Ramos, 2007). Os questionamentos Como parte do ensino-aprendizagem dos estudos sobre a Mesopotâmia e o ensino de História, solicitamos que os alunos do Curso de Especialização (CEHAM/UERJ) realizaram uma análise crítica sobre a relação texto-imagem contida no livro didático. Ao final, os alunos destacaram algumas conclusões. A maioria destacou que atividade apresentou um caráter didático e explicativo. A abordagem contém um caráter generalista e com traços de história social. O texto apresenta juízo de valor no momento em que apresenta que os escribas eram valorizados pela sociedade. Apresentando uma abordagem global descrevendo enquanto classe. A figura do escriba será vista como um legado pelo desenvolvimento da escrita cuneiforme.

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O texto valoriza o aspecto social frente ao político e ao cultural. Apresentando um caráter de generalização ao descrever a formação de um escriba. No que se refere a imagem não existe uma descrição da ação que ela representa ficando aluno e professor sem entender a função social do objeto arqueológico. O documento tenderia ater uma simples função de ilustração, isto é, como seriam as vestes ou o porte do escriba. A relação texto-imagem desconsidera as particularidades iconográfica e religiosa da estatueta, que deveria destacar a ritualidade (oferenda votiva) e o oficio do escriba. Conclusões Desta forma, devemos concluir que o livro didático como um instrumento pedagógico será viável desde que a relação saber universitário e escola, seja realizado. Para que os alunos possam adquirir as habilidades básicas. Ao final do processo, os educandos devem ser capazes de compreender a realidade (sem distorções), alcançar níveis de abstrações, posicionar-se sobre os processos históricos. A função do comparativismo (passado/presente) deveria ter como função dissimular continuidades e permanências com o propósito de evitar o processo de ―ciclos‖ e, por fim, valorizar as matrizes culturais.

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Bibliografia BARENTON, Hilaire de. Le temple de Sib Zid Goudea. Patesi de Lagash. Paris, Editions Ernest Leroux, 1921. GONÇALVES, Ana Teresa M. Desafios em História Antiga no Brasil. Dimensões. Revista de História da UFES. 11 jul/dez.. Vitória, CCHN pubicações, 2000, 167-174. PRICE, Ira Maurice, Notes on the Pantheon of the Gudean Cylinders, The American Journal of Semitic Languages and Literatures, Vol. 17, No. 1 (Oct., 1900), pp. 47-53 SILVA, M. & RAMOS, A. Ensinar História no séc. XXI. Campinas: Editora 34. SILVA, Gilvan V. História e Livro didático: uma parceria nem sempre harmoniosa. Dimensões. Revista de História da UFES. 11 jul/dez.. Vitória, CCHN publicações, 2000, 167-174. SILVA, Gilvan V. da & GONÇALVES, Ana Teresa M. Algumas reflexões sobre os conteúdos de história antiga nos livros didáticos brasileiros. História & Ensino. Vol. 7 (2001) http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/histensino/article/view /12313 STONE, Adam, 'Ningišzida (god)', Ancient Mesopotamian Gods and Goddesses, Oracc and the UK Higher Education Academy, 2013 [http://oracc.museum.upenn.edu/amgg/listofdeities/ningizida/]

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USANDO BIOGRAFIAS PARA ENSINAR HISTÓRIA INDÍGENA Kalina Vanderlei Silva

Atualmente, o Brasil vê um crescente interesse em história e cultura indígenas com a obrigatoriedade do ensino dessas temáticas nas aulas de história do fundamental e médio. Mas, assim como ocorreu com a História da África, essa obrigatoriedade trouxe imediatamente à tona o despreparo dos professores para lidar com tal temática. Não se trata apenas do desconhecimento do conteúdo, pois isso é facilmente remediável, mas sim de um desinteresse e uma errônea percepção de que os ‗índios‘ são todos iguais e todos igualmente ‗primitivos‘. Assim, a primeira coisa a fazer é acabar com essa visão generalista e primitivista: as populações nativo-americanas são, e foram, tão diversas quanto múltiplas, e qualquer tentativa de ensinar sobre elas deve começar desse tópico.

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E muitas são as ferramentas que podem ser usadas para esse fim: o já clássico recurso aos filmes têm a seu dispor interessantes títulos como Apocalypto (EUA, 2006), e A Nova Onda do Imperador (EUA, 2000); títulos, claro, que requerem toda uma crítica e o apoio de fontes bibliográficas antes de serem apresentados aos alunos. Toda uma discussão poderia ser feita sobre esse recurso. No entanto, aqui pretendemos apresentar um outro, o trabalho com biografias. A biografia histórica é um gênero que ultrapassa a própria história enquanto disciplina, entrando na literatura. Na verdade, a biografia é um gênero – literário poderíamos dizer – de difícil definição: escrito por jornalistas, historiadores, ficcionistas. Na historiografia, especificamente, a biografia teve seus altos e baixos: Com o surgimento da história analítica e estrutural no início do século XX, ela foi relegada a um gênero de segunda classe. E mesmo com as incursões biográficas de grandes nomes da História Cultural, como Georges Duby com Guilherme Marechal (Rio de Janeiro, Edições do Graal, 1988), e Jacques Le Goff com São Francisco (Rio de Janeiro, Editora Record, 2001) e São Luís (Rio de Janeiro, Editora Record, 1999), a retomada do interesse foi tímida e desigual. No Brasil, por exemplo, a narrativa biográfica permaneceu como gênero jornalístico por muito tempo. Só com a ascensão da História Oral no último quartel do século XX, a biografia foi retomada como método

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de pesquisa, importada da Antropologia, influenciando depois também a História Política. Por outro lado, e quase sem relação com a atual importância da biografia tanto como gênero narrativo quanto como método de pesquisa historiográfico, o interesse do grande público nas vidas de personagens, em geral famosos, de outros períodos, sempre foi e continua a ser grande. Um fenômeno visível no grande número de títulos lançados por diferentes editoras brasileiras, trazendo séries de biografias de ‗personagens célebres‘. Como exercício poderíamos entrar hoje em uma livraria e buscar obras sobre biografias. Depararíamos logo com alguma seção dedica ao tema ‗biografias e memórias‘: prateleiras com obras as mais diversas, desde autobiografias e livros de memória, até relatos jornalísticos das vidas de ‗personagens célebres‘. Mas se buscarmos na seção de História também encontraremos tais obras. Essa quase onipresença de livros de biografia se deve, em primeiro lugar, ao ‗culto ao herói‘ tão clássico na história. De fato, a historiografia positivista e conservadora valorizava o personagem célebre, transformado em herói, e defendia que alguns indivíduos, considerados pilares do brilhantismo humano teriam marcado indelevelmente a história da humanidade (Um exemplo dessa visão é a obra de Will Durant, bastante difundida no Brasil). A essa historiografia se opôs uma história das estruturas, materialista histórica ou seguidora dos Annales, que acreditava que o indivíduo não tinha importância na definição dos rumos da história. Essas duas visões opostas ainda influenciam o ensino de História no Brasil: a perspectiva da história sem indivíduos está presente na elaboração de livros didáticos, enquanto a cultura popular e a mídia associam à História determinadas datas comemorativas e personagens célebres. Esta visão é repassada por muitos professores de História, em comemorações do 7 de setembro, do 15 de novembro, da abolição da escravatura associada à Princesa Isabel, entre outras efemérides. Enquanto isso, entre os historiadores profissionais, desde o crescimento da influência da Nova História francesa que revalorizou a História Política e a História Narrativa, houve uma releitura da biografia histórica. Georges Duby, um dos principais expoentes dessa historiografia, afirmou que o estudo do ‗grande homem‘ poderia ser tão revelador do contexto histórico como o estudo dos acontecimentos e das estruturas. Uma de suas obras mais famosas, Guilherme o Marechal, é uma obra historiográfica, escrita em tom de narrativa de ficção, onde a vida do personagem central – um

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personagem histórico – é usada como ilustração dos valores da cavalaria medieval e de suas estruturas sociais. A partir dessa releitura, o gênero biográfico passou a ser empregado como mecanismo para explicar toda uma sociedade. Segundo Giovanni Levi, esse tipo de biografia torna o indivíduo representativo do meio em que viveu. E é justamente essa visão que possibilita que o personagem seja utilizado como ilustração do contexto histórico. Por outro lado, historiadores à parte, por trás do interesse do grande público e da mídia pelas biografias ainda existe uma boa dose de veneração ao herói, comum a todas as sociedades. A escrita de biografias, nessa perspectiva, dá continuidade ao culto aos heróis históricos, tirando alguns do anonimato, transformando-os em protagonista da história, e excluindo alguns outros, que são jogados no esquecimento.

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Aqueles indivíduos que têm seus nomes registrados pela história normalmente são representativos de determinado discurso, pertencente a um grupo social específico. Muitas vezes, vemos a luta de representações de diferentes grupos representada pela inclusão de determinados personagens históricos. Por exemplo, durante muito tempo a história oficial do Brasil, escrita pelos grupos dominantes, excluiu personagens como Zumbi ou Chica da Silva. Mas com o crescimento da consciência étnica das minorias negras no século XX, que reivindicaram seus próprios heróis, tais personagens passaram a ter mais espaço na História. Dentro dessa perspectiva, que Roger Chartier chama de luta de representações, é que entendemos o processo de construção de heróis e mitos históricos, e o processo de exclusão de personagens símbolos de grupos que perderam a guerra das representações. Esses ‗derrotados‘ são postos no anonimato. No entanto, a luta de representações é algo frequente e contínuo, e grupos antes derrotados, podem começar a ter mais visibilidade em determinados momentos. Lembremos que a história no mundo todo é escrita dessa forma, tendo assim cada região, cada país, cada minoria, seus heróis particulares. E é por isso que, agora que o ensino da História Indígena se torna uma obrigatoriedade no Brasil, é o momento de trazermos as biografias de heróis indígenas para sala de aula. Além da produção de mitos e heróis, a discussão sobre biografias levanta ainda uma outra questão: a importância do indivíduo na

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História. Questão que se torna mais importante ao abordarmos os líderes famosos. Os líderes realmente dirigem os rumos da história, como querem os positivistas? Ou o indivíduo não tem nenhum controle sobre o processo histórico, como defendem as correntes mais estruturalistas? Sobre essa questão, acreditamos, como Isaiah Berlin, que aqueles que são chamados de grandes líderes, chegam a essa posição apenas por saberem prever os anseios do povo. Ou seja, o líder de talento não é um indivíduo acima do povo, mas um personagem tão inserido em seu contexto histórico que consegue prever, entender e canalizar os desejos e medos de sua sociedade. Dessa forma, ele não direciona, mas representa os rumos tomados pelo processo histórico. Quase na mesma perspectiva estão os artistas e cientistas de gênio. Hoje se acredita, por exemplo, que Einstein apenas unificou uma série de ideais já elaboradas em seu tempo. Mas talvez aí mesmo residisse seu talento. Além disso, através da análise de discurso percebemos que nenhum autor é criador único das ideais que expõe, mas apenas põem em palavras ou imagens elementos que já existem no imaginário coletivo de sua sociedade. Essa é a razão de seu sucesso: eles unificam e reproduzem imagens que andavam soltas em sua época. Algumas correntes da historiografia se dedicam a tentar resgatar o que chamam de ‗pessoas comuns‘, trazendo suas trajetórias de vida para os anais da história. Assim, acontece com a História Oral, a Micro História, e a História Social que se diz ‗Vista de Baixo‘. Correntes que buscam pelo homem e a mulher comuns, acreditando que eles são mais representativos de seus contextos históricos que os personagens célebres. Alguns historiadores dessas correntes conseguiram mesmo transformar seus homens e mulheres em personagens famosos. É o caso de Menochio, personagem que Carlo Ginzburg retrata em O Queijo e os Vermes (São Paulo, Companhia das Letras, 2006), e Martin Guerre, personagem resgatado por Natalie Zemon Davis em O Retorno de Martin Guerre (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987). Em todos os casos, esses personagens se tornaram célebres a partir da escrita biográfica de suas vidas por historiadores que adotaram uma forma mais literária de escrever, e não são construções do tipo heroico, elaboradas ao longo de um processo histórico.

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Por outro lado, o herói histórico, o personagem tornado célebre, pode ser entendido como uma construção que responde aos anseios mitológicos das sociedades modernas, representando por exemplo uma jornada que é icônica para toda sua sociedade: caso dos processos de independência. E todas as culturas possuem esses anseios mitológicos. Na verdade, algumas correntes da Psicanálise acreditam que a perda de significados dos mitos nas sociedades modernas é responsável pelo aumento das neuroses. Mas podemos observar essa questão por outro lado: a história dos ‗grandes homens‘, dos ‗personagens célebres‘, e mesmo a proliferação das biografias históricas tenta responder a essa ausência de heróis mitológicos, criando heróis históricos que terminam por se tornar, eles mesmos, mitos modernos. Assim, personagens como Che Guevara, Alexandre Magno, e mesmo Hitler, são mitos historiográficos com diferentes funções nas sociedades ocidentais contemporâneas.

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Entretanto, não podemos esquecer que a construção desses mitos historiográficos não é aleatória, mas tem um forte sentido político, visto que são os grupos sociais no poder que escolhem quais indivíduos do passado se tornarão heróis oficiais. Assim nascem, por exemplo, os heróis nacionais, escolhidos por uma escrita oficial entre personagens que estejam em conexão com as aspirações daqueles no poder, no momento que aquela versão da história é escrita. Nisso, o interesse pelos personagens célebres se mantém forte. A história escrita desde a Antiguidade Clássica na Europa escolhia os líderes como personagens biográficos, fato que no Renascimento foi confirmado, acrescentando-se outras figuras de vulto como artistas e condottieres. Na historiografia positivista, apenas os líderes e grandes conquistadores que representavam os discursos nacionais dominantes recebiam essa honra. Atualmente novas considerações são acrescentadas, por exemplo, aquela apontada pelo crítico literário Harold Bloom, acerca dos gênios da humanidade. Para Bloom, a humanidade produziu uma série de gênios que se expressaram através da literatura e que com suas obras representam tudo de melhor já produzido na história. Que sua lista de gênios inclua poucas mulheres e gire em torno basicamente de pensadores europeus não parece ter diminuído a aceitação de sua obra. Em tudo isso percebemos as razões do contínuo interesse em biografias históricas, e de sua importância não apenas para a História, mas para a Antropologia e mesmo a Psicanálise. E são

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esses fatores, a atração que o culto ao herói oferece, o fascínio pelas vidas de celebridades, que podem ser usados como ferramentas de ensino. Uma biografia bem escrita pode ser lida como um romance histórico, e a própria contextualização do cenário no qual o personagem se insere, quando bem-feita, apela para nosso gosto por viagens por lugares e cotidianos distintos do nosso. Esses elementos estão por todo lugar, em seriados de televisão, em filmes, em romances históricos, e acreditamos que podem ser levados com sucesso para sala de aula. Mas aí nos deparamos com outro problema: onde estão as biografias sobre personagens indígenas? Onde estão os heróis indígenas? Se hoje não é difícil encontrar obras sobre heróis negros, apesar de todo o racismo ainda remanescente em nossa sociedade, a situação muda quando se trata de personagens históricos indígenas. Personagens de ficção como Iracema e Peri vêm à mente mais rapidamente do que líderes como Canindé, que empreendeu guerra contra os colonizadores no século XVII. O fato de que a maioria das fontes coloniais e imperiais não se dão ao trabalho de nomear os personagens indígenas não ajuda. A situação melhora consideravelmente quando expandimos nosso horizonte para fora do Brasil. Em diferentes países americanos como o México e o Peru e mesmo nos Estados Unidos, a história indígena, mesmo que muitas vezes marginal à história oficial, tem preservado a memória de personagens como Sacagawea, a mulher Shoshone que guiou os primeiros exploradores europeus a ‗descobrirem‘ a costa oeste dos Estados Unidos no século XIX, Touro Sentado, líder Sioux que comandou a resistência contra o exército norte americano no final do século XIX, e mesmo a Malinche, a guia de Cortez nas primeiras expedições espanholas contra o Império Asteca. E muitos, muitos outros, entre homens e mulheres de diferentes culturas. Cientes das dificuldades, todavia, dos professores e alunos brasileiros em acessarem fontes confiáveis e de qualidade escritas em outras línguas, e acreditando que as biografias heroicas podem ser uma poderosa ferramenta no despertar para a diversidade cultural na história, trazemos aqui as biografias de três personagens indígenas que podem ser trabalhadas em temas como a conquista da América e a expansão dos Estados Unidos. As três integram o livro Pequeno Dicionário de Grandes Personagens, de nossa autoria, em parceria com José Maria Neto e Karl Schurster, lançado pela Editora Altabooks em 2016.

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O Senhor dos Quatro Cantos do Mundo: Pachacutec Inca, Imperador Inca (século XV) Em meados do século XV, Cuzco, um reino de proporções medianas no coração da Cordilheira dos Andes, se viu ameaçado por um inimigo poderoso, o numeroso e militarista povo cancha. Diante da invasão iminente, o governante cuzquenho, Inca Viracocha, hesitou perante o inimigo e se retirou da cidade, deixando-a nas mãos de seu filho, Inca Urco, que, no entanto, não possuía qualidades nem para administrá-la, nem para defendê-la. Desesperados, os nobres e administradores locais se voltaram para outro dos filhos do rei, Cusi Yupanqui, pouco mais que um adolescente. Esse príncipe não apenas aceitou o desafio, mas montou uma estratégia que terminou por derrotar os canchas. Sua vitória tornou-se uma das mais importantes da história inca, pois foi a partir dela que a expansão de Cuzco começou. Uma vitória que o elevou também ao posto de governante absoluto de Cuzco, o de Inca, e lhe permitiu, ao ser coroado, assumir um novo nome, mais afim a suas pretensões: Pachacutec, o transformador do mundo.

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O Inca Pachacutec Yupanqui foi um fundador de impérios e um reformador cultural. Reinou sobre uma terra no teto das Américas, um vale rico a três mil metros de altitude encravado nos Andes, atualmente no centro do Peru. Essa região viria a ser, a partir de seu reinado, o coração de um dos maiores impérios que o mundo já conheceu e o maior das Américas, o Império Inca ou, como seus habitantes o chamavam, Tahuantinsuyo, o reino dos quatro cantos do mundo. Até o reinado de Pachacutec, seu povo, os quéchua, ou incas como ficariam mais conhecidos, não possuía um império. Viviam na cidade-estado de Cuzco, situada no fértil vale do rio Urubamba, que viria a ser depois o centro e capital do império. Nas vizinhanças de seu vale, diversos outros povos disputavam poder e tentavam se expandir. Pachacutec conseguiu unificar esses povos sob o comando de Cuzco e ampliar seu governo para limites muito além de seu vale. O Tahuantinsuyo foi, em seu auge, um estado centralizado, militarista e altamente burocratizado, apesar da ausência da escrita. Os incas unificaram tradições andinas e litorâneas, adaptando as mais variadas contribuições culturais como a metalurgia, a cerâmica e o comércio de caravanas, aprendidas de estados e povos mais antigos dos Andes e do litoral peruano, conseguindo dominar ambientes tão distintos como o seco e frio altiplano andino, a

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floresta tropical amazônica e o deserto mais seco do mundo, o Atacama. Segundo a história oficial de seu império, lembrada por guardiões de memória chamados quipucamayos, a cidade de Cuzco fora fundada por um rei lendário, Manco Capaq, a quem haviam sucedido doze ou treze incas, sendo Pachacutec o nono dessa lista. No entanto, Manco Capaq é um personagem mitológico, símbolo da migração do povo quéchua para o Vale de Cuzco, provavelmente oriundo das margens do Lago Titicaca. Na verdade, Pachacutec, se não foi o primeiro Inca governante, foi certamente o primeiro a reinar sobre um Império, sendo seus antecessores meramente senhores de um reino de pequena extensão. Assim, a despeito dessa história oficial, que ele próprio mandou compor, foi o próprio Pachacutec o fundador do Tahuantinsuyo. Segundo, ou sétimo, dos filhos do Inca Viracocha, o futuro unificador, então ainda chamado de Cusi Yupanqui, havia sido um jovem hábil, porém nunca a primeira opção de seu pai para a sucessão do trono, preterido em favor de seu irmão, Inca Urco. Mas devido à inabilidade deste, conseguiu ascender ao trono aproveitando a invasão dos canchas. Depois disso reinou por cerca de 30 anos, nos quais, além das conquistas militares, investiu em modificações culturais, como a elaboração da história oficial inca e a reforma da educação em Cuzco. Esta última medida feita em benefício da casta inca, única a ter acesso às instituições de ensino; um grupo descendente dos antigos governantes e que começava a se transformar em nobreza de sangue. Pachacutec também ordenou a reorganização da língua quéchua, distinguindo-a em língua da nobreza e língua popular, em uma atitude que fortalecia a separação entre os grupos sociais e a hegemonia da casta inca sobre os povos conquistados e a maioria da população quéchua. Além disso, ele interveio na religião, instituindo o culto ao deus Viracocha, criador milenar nos Andes, em conjunto com a divindade máxima dos incas, Inti, o Sol, de quem acreditava que sua linhagem descendia. Transformou o culto solar no mais importante do nascente império, passando a realizar todas as principais cerimônias, inclusive a de coroação, no Coricancha, o templo do Sol em Cuzco. Por outro lado, como Viracocha era uma deidade préincaica, cultuado por diversos povos andinos, sua oficialização junto a Inti facilitou a aceitação da religião oficial entre os povos conquistados.

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Mas Pachacutec queria que Cuzco fosse o centro do Tahuantinsuyo, o centro do mundo conhecido, ao mesmo tempo em que tentava torná-la o centro de uma cultura universal, a quéchua-inca. Para tanto, após reformar o Coricancha, obrigou que o mesmo oferecesse espaço também para o culto aos deuses dos povos conquistados, convertendo a capital em uma cidade sagrada para todo o império. Por outro lado, era necessário fazer com que a estrutura urbana de Cuzco dignificasse sua situação de capital dos quatro cantos do mundo. Quando Pachacutec assumiu o poder, ela era uma cidade mediana, mas à medida que o império crescia com as conquistas militares, crescia também sua população. O Inca empreendeu então um plano de reconstrução, começando pelo Coricancha, que foi restaurado em sólidas muralhas de pedra com interior coberto de ornamentos de ouro. A reconstrução incluiu ainda obras de saneamento e fornecimento de água na cidade e em vilarejos da região. E até hoje algumas cidades no vale ainda são abastecidas com água canalizada pelo sistema incaico. A reestruturação de Cuzco durou cerca de 20 anos, e terminou por lhe conferir o traçado urbano de um puma, animal sagrado para os incas.

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Pachacutec investiu também na agricultura, construindo depósitos e armazéns para guardar excedentes das colheitas e alimentar a crescente população do império. Estas obras não foram feitas apenas em Cuzco, mas estendidas a todo o Tahuantinsuyu. Além disso, dedicou-se a organizar a administração, a burocracia e o calendário, garantindo que sob seu governo o Império Inca se tornasse um dos mais bem administrados de todos os tempos, baseando sua economia na agricultura das vilas isoladas, os ayllus, e nos tributos pagos em trabalho, principalmente a mita com a qual foram construídas as grandes obras monumentais sobre os Andes. Esse sistema de tributos era a espinha dorsal do Tahuantinsuyu. Nele, o estado não apenas coletava o imposto de todos os ayllus como reenviava uma percentagem dos gêneros produzidos em terras estatais para cada vila, sustentando também as famílias dos trabalhadores enquanto estes estavam trabalhando nas obras públicas. Como a agricultura era, muitas vezes, cultivada em terraços recortados nas paredes de pedra das encostas das montanhas, ela requeria um considerável esforço de engenharia. E os incas deram muita atenção ao desenvolvimento da tecnologia que lhes permitia adaptação à vida nos Andes: construíram não apenas os sistemas

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hidráulicos de grande precisão que distribuíam água por todo o vale, como desenvolveram uma engenharia em pedra apropriada para sua região, vítima de terremotos constantes. Também investiram no paisagismo e na arquitetura, provavelmente menos por questões estéticas que religiosas. E em seu governo Pachacutec não deixou de incentivar essas áreas de saber: foi o responsável pela construção dos sistemas hidráulicos e silos de armazenamentos, e pelo embelezamento estético-religioso da Cuzco transformada em puma, além de cidades como Machu Pichu e Ollantaytambo, sua cidadepalácio de jardins suspensos, cujas edificações encimavam um morro recortado em terraços cultivados com dálias e orquídeas. Atualmente Pachacutec é cultuado como herói civilizador de Cuzco e do império inca. Na cidade que elevou à glória é o herói máximo, com direito a estátua em praça pública. Fora do Peru, todavia, é pouco conhecido, a despeito da fama universal de algumas de suas obras, como Machu Pichu. Seu governo foi o auge da prosperidade de um dos maiores impérios da história da humanidade; um império ainda imerso em uma aura de mistério que nem sempre facilita a compreensão da complexidade e diversidade da América indígena. Conhecer a vida e governo de Pachacutec é transformar o mistério inca em História. A Águia da Rocha de Cacto: Montezuma II, Imperador Asteca (c.1466– 1520) Em 1519, uma expedição de aventureiros espanhóis chegou à grande capital dos astecas, a cidade de Tenochtitlán-México, comandada pelo capitão que depois seria conhecido como um dos maiores conquistadores da história, Hernán Cortez. Mas nesse dia, a cidade de Tenochtitlán abriu suas portas para ele e seus soldados, levando o próprio imperador a sair em pessoa às ruas para recebê-lo. Ele era Montezuma II, sem dúvida o mais famoso governante asteca. Uma fama que não se deveu, no entanto, a seus talentos como administrador ou a suas proezas militares e sim ao fato de ter ele perdido, para sempre, o Império Asteca. Originalmente os astecas, ou mexicas, povo de língua nahuátl, viviam em sociedades não estatais nos desertos do que hoje é o norte do México e o sul dos Estados Unidos. Mas a partir do século XII, os nahuátl começaram a migrar para o planalto do México, invadindo um território de cidades-estados já seculares em levas que foram gradualmente se sedentarizando ao longo de duzentos anos e

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criando suas próprias cidades-estados. Em uma das últimas levas de invasores, já no século XIV, estavam os mexicas. Uma de suas lendas mais caras conta que eles, ainda nômades, haviam recebido ordens dos deuses para se fixarem no local em que encontrassem uma águia pousada em um cacto. E tal águia teria sido avistada em uma ilha no meio do grande e insalubre lago Texcoco, no Planalto Mexicano, em cujas margens seriam construídas as maiores cidades-estados nahuátl. Entre elas, Tenochtitlán-Mexico, a capital dos astecas. Em duzentos anos, os astecas erigiram um império. Militaristas, expandiram seu território conquistando estados e grupos não estatais em uma vasta extensão espacial, atingindo quase todo o atual México. Espalharam-se a partir de sua capital, que inicialmente fazia parte de uma confederação de cidades-estados, mas que acabou rapidamente por se sobrepor às demais.

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A base de sua economia eram os tributos cobrados aos conquistados e em sua sociedade os guerreiros formavam a casta mais elevada, seguida por um segmento de comerciantes que começava a ganhar cada vez mais espaço no final do século XV. A maioria da população era composta por agricultores que cultivavam as chinampas, terrenos artificiais construídos sobre as águas do lago. Toda a cidade, na verdade, foi construída sobre o lago, sendo suas ruas caminhos fluviais. Ela abrigava escolas de bairros, onde homens e mulheres estudavam, assim como instituições religiosas de ensino superior, os calmecacs, para formar sacerdotes e sacerdotisas. Sua cultura, onde a música e a poesia eram bastante valorizadas, girava quase sempre em torno da morte e da guerra. Esta era tão apreciada que era promovida sazonalmente: chamada de ‗guerra florida‘, era realizada contra outras cidades-estados com único objetivo de conseguir prisioneiros para os sacrifícios humanos, parte importante da religiosidade nahuátl. Para eles, a morte mais honrosa era em batalha ou no altar sacrificial. Em começos do século XVI, Tenochtitlan estava em seu apogeu, mas ainda convivia com seus inimigos mais clássicos, os habitantes de Tlaxcala, uma cidade-estado, também nahuátl, cujo território se encravava no coração do império e que fornecia os principais adversários dos astecas nas costumeiras „guerras floridas‟. A rivalidade entre as duas cidades era, inclusive, cultivada. Situação que progredia em 1519, quando pela primeira vez os astecas tiveram

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notícias dos espanhóis. Era então imperador Montezuma II que, seguindo o costume, havia sido eleito dentre os herdeiros da família real para assumir o posto de tlatoani, ou imperador. Filho do tlatoani anterior, Auitzotl, Montezuma, que já havia exercido o cargo de conselheiro no reinado de seu pai, era filósofo e religioso, talvez mesmo um membro de uma casta sacerdotal. Devoto e crente de Huitizilpochtli, o deus-sol, acreditava nos adivinhos e em suas predições que, naquele ano, haviam sido todas, segundo versões posteriores à conquista, de mau agouro. Segundo uma lenda, ao saber da chegada dos estrangeiros no sul do império, o soberano os teria identificado com os presságios e acreditado que Cortez era o semi-deus civilizador, Quetzalcoatl, a Serpente Emplumada. Uma das principais divindades do panteão meso-americano no tempo de Montezuma, a origem de Quetzalcoatl remonta a antes da Era Cristã, então uma divindade das águas fluviais da cidade-estado de Teotihuacán. Sua importância era tamanha que os nahuátl quando adentraram o Planalto do México, adaptaram-no à sua própria religião. A Serpente Emplumada passou a ser então uma divindade dos ventos, do planeta Vênus, e da criação da cultura. Segundo a mitologia asteca, Quetzalcoatl foi o rei de uma cidade mítica chamada Tula, e governara magnificamente, criando uma idade de ouro para a região. No entanto, havia sido deposto pelos sacerdotes do deus Tezcatlipoca, o Espelho-Fumegante, seu arquiinimigo e obrigado a abandonar o México, tomando uma embarcação rumo oeste, mas prometendo retornar para reivindicar seu trono, algum dia. Depois da conquista, cresceu o mito de que Montezuma acreditara que Cortez seria Quetzalcoatl que voltava. Muitas lendas, no entanto, foram criadas depois da grande destruição causada pela conquista espanhola, e grande parte da história asteca foi totalmente reescrita e reinterpretada. Acreditando ser o conquistador uma nova encarnação da Serpente Emplumada ou não, a verdade é que Montezuma recepcionou Cortez com a civilidade própria dos imperadores mexicas, no que se tornaria um dos mais importantes encontros da história da humanidade. Foi em setembro de 1519 que os espanhóis e seus aliados tlaxcaltecas chegaram a Tenochtitlan-México, sendo recebidos com pompa pelo povo, por dignitários e pelo imperador em pessoa. Mas apesar da recepção amistosa, o choque cultural ficou evidente. Os espanhóis interpretaram a suave recepção imperial como um atestado de rendição, enquanto para os astecas a amabilidade era apenas parte

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da cortesia própria das classes altas. O imperador já recebera muitas notícias dos estrangeiros desde que eles haviam aportado meses antes no sul do México. No entanto, curioso ou hesitante, não havia enviado tropas contra eles, esperando que chegassem a suas portas. Depois do encontro, ordenou que os espanhóis fossem acomodados em um palácio especial, mas a entrada de Cortez e seus homens na cidade rapidamente degenerou em conflito, quando eles atacaram os templos, começando uma guerra que culminou, dois anos depois, na destruição do império.

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Assim como a maioria dos líderes indígenas, Montezuma subestimara os espanhóis, sendo morto no momento mesmo em que a guerra foi declarada. Talvez assassinado pelos homens de Cortez que o haviam feito de refém, talvez morto na revolta pelos próprios astecas. Deixou, dessa forma, a cargo de seu sucessor a tarefa de combater os invasores. Uma tarefa que o último dos imperadores astecas, Cuatlemoch, tentou cumprir com diligência. No entanto, se os espanhóis eram em pequeno número, tinham se aliado ao poderoso exército tlaxcalteca, velho inimigo de Tenochtitlán, que terminou por arrasar as tropas do novo imperador. Nos anos que se seguiram, os europeus conseguiram se impor também sobre seus aliados, graças inclusive à devastação humana causada pelas epidemias que, sem querer, haviam ajudado a propagar nas Américas. A colonização deu força a imagem de um Montezuma inábil e medroso. Com a derrota dos astecas, sua reputação foi irremediavelmente comprometida, propagada por escritos dos espanhóis e de cronistas que nem mesmo o haviam conhecido. Versões muito parciais. De seus contemporâneos, pouco restou, assim como dele próprio. Mais filósofo que militar, Montezuma demorou para confrontar seus inimigos, erro que foi fatal a seu império. Religioso, talvez esperasse sinceramente que aqueles estrangeiros tivessem ligações com a venerada Serpente Emplumada, divindade criadora e inspiradora. O México atual mantém muitos dos mitos da conquista: Cuatlemoch, o último imperador, é retratado como um bravo e jovem guerreiro que combateu os espanhóis até o último momento e que morreu sob tortura; Malinche, a jovem escrava asteca, tradutora de Cortez, é considerada uma traidora, a despeito da dificuldade de agir de forma diferente. E Montezuma ainda é lembrado como o frágil, débil, inepto e hesitante imperador que perdeu o México.

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Voz dos Espíritos e „Terror‟ dos Mexicanos: Gerônimo, Líder Apache (1829-1909) Em 1840, alguns cartazes de recompensa, então um método usual de apreensão de bandidos procurados, foram afixados pelo norte do México. Mas esses diferiam dos muitos outros de seu gênero pela oferta que traziam: U$ 100,00 por escalpo de um homem apache, e U$ 50,00 pelo de uma mulher apache. O governo mexicano, por esse meio, oficializava o extermínio de todo um povo, pagando para que fossem não apenas presos como bandidos, mas caçados e escalpelados. Tal política não era novidade, pois continuava a perseguição iniciada pelas autoridades coloniais espanholas. A oferta do estado foi bem recebida, seguida à risca e produziu muitas chacinas. Em 1858, como resultado de uma dessas, um homem viu serem massacradas sua mãe, sua esposa e seus filhos. Nesse dia, ele jurou que mataria tantos homens brancos quanto possíveis. Seu nome era Goyathlay, e logo se tornaria um dos guerreiros índios mais famosos de todos os tempos, amplamente conhecido como Gerônimo. Goyathlay era um xamã dos apaches chiricahua, nascido em 1829 no território mexicano que hoje corresponde ao estado norte-americano do Novo México. Sua posição de religioso lhe possibilitou aprender as artes de cura, além dos rituais shamanísticos que o punham em contato com os espíritos da natureza e dos antepassados. Esses saberes produziriam muitas lendas perante seus inimigos que afirmavam que ele não apenas adquiria poder das conversas com os espíritos, mas que, por causa disso, podia escapar de balas. O apelido Gerônimo pode ser uma forma ocidentalizada de seu verdadeiro nome, uma tradução para o espanhol, ou ter se originado da reação de suas vítimas que, aterrorizadas com os ataques de seu bando, clamavam pelo santo protetor, São Jerônimo. E depois de um tempo, o próprio Goyathlay passou a usar a oração dos inimigos como seu grito de guerra particular: Jerônimo! Ele viveu em uma época das mais turbulentas para os indígenas da América do Norte. Até o século XIX, os povos das vastas planícies e desertos setentrionais estiveram relativamente distantes da colonização europeia no continente. No entanto, este século vivenciaria tanto a criação dos Estados nacionais, no México e nos Estados Unidos, quanto a avassaladora expansão deste último sobre os povos nativos do oeste. Além disso, ambas as nações recém-

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instituídas não demoraram a se chocar, provocando uma guerra bem na fronteira dos grupos indígenas do norte. Os apaches, povo de Goyathlay, eram nômades caçadores, originários do Canadá e que desde o século XVII ocupavam os territórios desérticos dos atuais estados do norte do México e sul dos Estados Unidos. Guerreiros aguerridos, desde cedo travaram conflito com os conquistadores espanhóis, destacando-se pela resistência que ofereceram à colonização. Chamavam a si próprios cihené, o povo da tinta vermelha. Sua cultura belicosa, onde o status era adquirido pela guerra, levava-os a saquear constantemente outros povos e tal era sua hostilidade que um dos principais heróis chiricahua se chamava ‗matador de inimigos‘. Estes, os chiricahua, eram uma das quatro tribos apaches, juntamente com os mescalero, os lipan e os jicarilla. Cada uma delas, por sua vez, se subdividia em bandos e grupos menores. Goyathlay era um chiricahua.

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Senhores das emboscadas, temidos por seus vizinhos, assim que a colonização espanhola foi se aproximando de seus territórios, mais ou menos em 1600, os apaches rapidamente se transformaram em inimigos ferozes das autoridades coloniais. E assim permaneceram até a independência do México, no primeiro quartel do século XIX. Mas o governo mexicano intensificou ainda mais as animosidades, dispensando uma abordagem mais ‗moderna‘ à questão indígena e à expansão territorial, sem os escrúpulos religiosos antes cultivados pela Coroa espanhola. A modernização significava genocídio. que foi realizado através da prática de recompensas por escalpos: o extermínio foi indiscriminado, atingindo homens, mulheres, idosos e crianças. Tal política empurrou os remanescentes apaches para o norte, para o território que estava em disputa com os EUA, e que era há séculos ocupado pelos comanche, grupo tradicionalmente rival. Perseguidos, encurralados entre o genocídio sistemático e os inimigos seculares, os belicosos apaches responderam com a intensificação de sua guerra contra os mexicanos: atacaram cidades, fazendas e propriedades. Dentre eles, os mais temidos e audaciosos eram os chiricahua. Em 1836 o México perdeu o Texas para os ianques. A partir de então uma extensa área, que constituía quase metade de seu território, foi sendo ocupada por colonos norte-americanos. Devido a isto, e na esteira dos acontecimentos que culminariam pouco depois na

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Guerra de Secessão, os Estados Unidos declararam guerra à antiga colônia espanhola, provocando um conflito que durou de 1846 e 1848 e lhes deu possessão de vastidões desérticas – mas mineralmente opulentas – que logo se tornariam os estados do Texas, Califórnia, Novo México, Nevada e Utah. Os indígenas, dentre eles os apaches, foram pegos no fogo cruzado. Antes de sua independência, em 1776, os Estados Unidos se constituíam por treze colônias inglesas, com relativo grau de autonomia umas das outras, estendidas ao longo da costa leste do país. O interior, além do rio Mississipi, era área não colonizada, pertencente a diferentes grupos indígenas. Mas com a independência e o crescimento industrial dos estados do norte, teve início uma expansão relâmpago que se tornou conhecida como a conquista do oeste. Nela, imigrantes europeus eram trazidos e incentivados a colonizar as terras a ocidente, o que gerava conflitos com os povos da região. Mas contra a resistência indígena, levantase agora o governo norte-americano. Em 1830, o então presidente dos Estados Unidos, Andrew Jackson, assinou a Lei de Remoção dos Índios que obrigava todos os nativos da costa leste a migrarem para o oeste do Mississipi. Milhares de pessoas foram expulsas de suas terras natais, jogadas para regiões distantes já ocupadas por outros grupos. Os indígenas não se conformaram e diversas rebeliões explodiram, sendo as maiores a dos sauk, comandados pelo chefe Black Hawk em 1860, e a dos sioux em 1862. Essa última teve tal repercussão que, como resposta, o general William Sherman, militar encarregado de reprimi-la, passou a pregar a extinção total desse povo. Enquanto isso, a expansão norte-americana para oeste havia se defrontado com as pradarias: imensas planícies habitadas por manadas de milhões de bisões que eram o principal sustento de povos caçadores, como os sioux. Não demorou a que a estratégia de generais como Sherman e Sheridan – este último autor do lema, índio bom é índio morto – fosse o aniquilamento dos bisões, presas fáceis, para acabar indiretamente com os adversários. E logo as caçadas predatórias a esses grandes mamíferos encheram as pradarias de ossos e carcaças e levaram as manadas à extinção. Os animais eram metralhados e abandonados aos milhões para apodrecer. A repercussão sobre os indígenas que se sustentavam deles foi igualmente avassaladora, obrigando-os a se render ao governo norte-americano.

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Em 1860, os apaches, já então em solo pertencente aos Estados Unidos, iniciaram sua guerra. Fazia dois anos que os chiricahua eram liderados por Gerônimo em sua cruzada contra os ‗homens brancos‘. Primeiro levaram a guerra aos mexicanos, logo passando a atacar os norte-americanos, fosse por terem sido empurrados para territórios mais ao norte, fosse porque suas áreas originais haviam sido incorporadas a este país. Entre 1861 e 1865, sulistas e ianques desencadearam a Guerra de Secessão dos Estados Unidos, motivada pela recusa do sul monocultor em acabar com a escravidão e se submeter à política industrialista do norte. Este conflito foi um marco na história daquele país por definir a supremacia do norte industrial sobre o sul agroexportador. Ao findar, o governo da União se encontrava livre de outros inimigos que não os índios e passou a direcionar toda sua energia bélica sobre esses.

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A política norte-americana para com os apaches e outros grupos indígenas não diferiu muito da dos mexicanos: depois da capitulação das tribos, criaram-se reservas, áreas escolhidas pelo governo onde os índios deveriam viver. Áreas pobres, limitadas e afastadas das regiões ocupadas pelos colonos. Mas esses iam cada vez mais para o oeste, aproximando-se dia-a-dia das já muito limitadas reservas e o resultado dessa aproximação era sempre o mesmo: os indigenas eram mais uma vez deslocados. Foi exatamente isso que aconteceu em 1875: o governo norteamericano retirou os chiricahua de seu território no Novo México, levando-os para uma reserva no Arizona onde já estavam instaladas sete outras tribos apaches: a reserva de San Carlos, em White Montain. A chegada dos chiricahua, nômades e belicosos, não animou ninguém, descontentando principalmente eles próprios que tinham em sua ligação com a terra de nascimento um preceito religioso. Por isso, em 1876, Gerônimo organizou um bando de guerreiros e fugiu para a Sierra Madre, no México, passando a saquear e aterrorizar os mexicanos, e indiretamente, os norteamericanos, iniciando dessa forma uma série de emboscadas bemsucedidas. Nesse período, a fama de Gerônimo como assassino se propagou assim como sua fama de invencível. E enquanto para os brancos norte-americanos ele não passava de um assassino de sangue frio – imagem que vigorou até a segunda metade do século XX –, para os apaches ele personificava as principais qualidades da tribo: coragem

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e destemor. Atacar e saquear os inimigos era prática comum e bem vista entre esses nômades caçadores. Mas Gerônimo foi preso em 1877 e realocado na odiada reserva, onde deveria se dedicar à agricultura juntamente com seu grupo. Passado algum tempo, porém, voltou a fugir e armar seu bando. Essas idas e vindas continuaram até 1885, quando empreendeu uma fuga mais ousada, acompanhado de um grupo maior de chiricahuas para a Sierra Madre. Dessa vez se defrontou com um duplo obstáculo: enquanto lá as tropas mexicanas esperavam com ordens de não deixar sobreviventes, do seu lado da fronteira as tropas norte-americanas davam apenas a opção da rendição incondicional. Encurralado, o líder chiricahua se rendeu pela última vez em 1886, sendo transferido com seus guerreiros para a Flórida, bem distante de sua terra natal. Uma vez nesse estado, os chiricahua rapidamente perderam um quarto de sua população para as dificuldades de adaptação climática e as péssimas condições de vida. Presos em um forte, foram colocados em trabalhos forçados, o que contrariava o acordo de rendição, e transformados em atração turística na cidade. Anos depois, os guerreiros foram transferidos para o Alabama, mas Gerônimo, que passou o resto de sua vida preso, continuou a ser uma atração turística. Em 1904, já idoso, ganhava dinheiro assinando autógrafos em uma feira em Sant Louis, quando foi forçado a desfilar em uma parada do presidente Theodore Roosevelt. Foi nesse ano ainda que começou a narrar sua vida para um biógrafo, tarefa só concluída no ano seguinte. Morreu em 1909, com 80 anos, convertido ao calvinismo e apelando para que Roosevelt permitisse a volta dos chiricahua ao Arizona, o que não aconteceu. Seu povo só seria libertado em 1913. Gerônimo passou para a história como o comandante da última força indígena a se render oficialmente ao governo dos Estados Unidos e durante muito tempo sua situação de inimigo do estado lhe rendeu a imagem de vilão: tornou-se a representação, na cultura pop norte-americana, do vilão arquetípico de faroestes e histórias em quadrinhos a partir da década de 1920. E somente nas últimas décadas do século XX, sua figura de líder da resistência indígena começou a ser resgatada.

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Referências

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REPENSANDO A REPRESENTAÇÃO DE ESPARTA PARA A PESQUISA E O ENSINO DE HISTÓRIA Luis Filipe Bantim de Assumpção

A História é o produto dos questionamentos e demandas do nosso tempo. Esta afirmação pode soar bastante equivocada para aqueles indivíduos formados em um modelo tradicional de conhecimento historiográfico, no qual o passado era compreendido como um dos sinônimos da História, que por ser transmitido em uma instituição de ensino ou em livros ―especializados‖ tornava-se algo inquestionável.

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Atualmente, em pleno século XXI, a ideia de uma ―Historia Magistra Vitae‖ nos moldes de Tucídides e Marco Túlio Cícero já foi superada e nós, historiadores, temos a consciência de nossas limitações na produção do conhecimento histórico. Martha Howell e Walter Prevenier destacaram que os profissionais da História idealizam o passado em uma proporção muito maior do que o descobrem. Este apontamento não é sem motivo, caso levemos em consideração que os historiadores selecionam os eventos e as pessoas que deveriam constituir a sua ―narrativa histórica‖, bem como aquilo que merece ser estudado pela importância central que exerce nos interesses contemporâneos (HOWELL; PREVENIER, 2001: 01). Michel de Certeau (2008: 16) clarifica esta premissa ao declarar que o pesquisador realiza uma ―triagem‖ para selecionar o que pode ser ―compreendido‖ do passado e o que deve ser esquecido. Ou seja, cabe ao historiador eleger aquilo que deverá se constituir como História e o que deve ser preterido, tornando o seu ofício algo de importância incomparável no interior de uma sociedade e na consolidação dos mais variados interesses político-culturais. De modo mais otimista, talvez, Marc Bloch escreveu algo semelhante aos referidos autores, pois, para o referido membro dos Annales, o historiador deveria recortar na miríade de informações do passado aquilo que gostaria de abordar e aplicar o seu método investigativo, haja vista a multiplicidade de informações históricas que detemos (BLOCH, 2002: 52). A perspectiva de Bloch, De Certeau, Howell e Prevenier nos leva a constatar que a História é um processo que lida, não somente, com os eventos do passado, mas, principalmente, com as escolhas e os interesses dos profissionais que pretendem investigá-lo. Também é correto afirmarmos que a pesquisa histórica

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lida com a afinidade que desenvolvemos com uma dada temática, entretanto, inúmeras outras variáveis se fazem presentes na produção do conhecimento historiográfico e na escolha de nosso tema de pesquisa. Dentre elas podemos destacar o contexto histórico, o lugar social, a nossa formação enquanto sujeitos, bem como as possibilidades documentais. Elementos esses que devem ser levados em consideração pelos professores ao dissertarem sobre um tema em sua prática de Ensino de História. Imersos nessa ótica de pesquisa histórica, demarcamos que foram tais variantes que nos levaram a Esparta, enquanto objeto de estudo. De imediato, a sociedade espartana nos chamou a atenção pela maneira simplificada com a qual era apresentada por alguns especialistas. Por conseguinte, Esparta era representada como um contraponto a Atenas, esta última tida como o bastião da cultura, da política e da filosofia do Ocidente Moderno. Ora, com tantas sociedades integrando a nossa concepção de Antiguidade, somente a ateniense serviu para edificar os interesses, os valores e as tradições ditas ocidentais? De fato que não. Munidos do breve debate estabelecido nos parágrafos anteriores, também nos questionamos se isso não foi uma construção, e caso a resposta seja positiva, quando isso teria sido iniciado? Estas indagações foram algumas das que nos motivaram a investigar sobre a pólis de Esparta, afinal, como esta sociedade teria sido tão ―inferior‖ a Atenas, se a mesma derrotou esta última na Guerra do Peloponeso? A tendência com a qual nos deparamos no início de nossas pesquisas foram desenvolvidas em uma tendência historiográfica de cunho atenocêntrico, isto é, um viés investigativo assimétrico que considerou outras póleis da Antiguidade a partir das práticas político-culturais de Atenas. Podemos identificar esta inclinação entre os indícios literários do Período Clássico, sobretudo, entre os autores que escreveram imersos no contexto do conflito entre peloponésios e atenienses. Como via de exemplo, Tucídides e Eurípides poderiam ser tomados como referenciais para essa perspectiva, onde o lugar social que ocupavam no interior da sociedade ateniense influenciou diretamente na maneira como representaram Esparta. Contudo, ainda que possamos verificar a tendência adotada por estes pensadores antigos – ao relacionarmos os seus respectivos discursos ao período histórico em que viveram – a historiografia contemporânea, em inúmeras ocasiões, se utilizou deste comportamento polarizado para tecer as suas análises acadêmicas.

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Podemos citar Moses Finley (Grécia Primitiva, 1990), Geoffrey De Ste Croix (The Helot Threat, 2002) e Jean-Pierre Vernant (O Homem Grego, 1994), cujos trabalhos consideraram a pólis espartana como rústica, atrasada e culturalmente estagnada. Todavia, quando situamos estes historiadores em seus respectivos contextos sociais, podemos notar parte da motivação dos mesmos em tomarem Esparta como um algoz do ideal de liberdade promovido pela democracia ateniense e, por vezes, apropriado pelo Ocidente moderno. Desse modo para compreendermos tal assertiva, iniciaremos as nossas considerações para que, por fim, sejamos capazes de perceber os fatores que levaram Atenas a se constituir como modelo para as sociedades ocidentais, enquanto Esparta foi relegada ao segundo plano dos estudos acadêmicos, até a década de 1980. Sendo assim, lançaremos o nosso olhar ao século XIX e o início do XX para percebermos as motivações dos pensadores em disforizarem1 a pólis de Esparta em suas representações2.

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Como havíamos demonstrado em outra ocasião (ASSUMPÇÃO, 2014: 66-72), na Europa do século XVIII, a representação de Esparta idealizada por Plutarco ocupou um lugar proeminente entre os eruditos franceses. Na obra intitulada ―Vida de Licurgo‖, o autor beócio construiu uma imagem da sociedade espartana que beirava a utopia, onde o mítico legislador Licurgo agia em benefício de todos os cidadãos, promovia a igualdade política entre os homens, a divisão de bens materiais e o ideal da ―bela morte‖ em prol da pólis. Mediante estes indícios da documentação de Plutarco, a grande maioria destes intelectuais da França moderna defendia que as práticas culturais dessa pólis poderiam servir de exemplo para a Europa do XVIII. Podemos citar os casos de Montesquieu (no Espírito das Leis, de 1748), Gabriel Bonnot de Mably (Observações sobre os Gregos, de 1749; Dos Direitos e dos Deveres do Cidadão, escrito em 1758) e Jean-Jacques Rousseau (Do Contrato Social, de 1762), cujas análises se utilizavam das sociedades da Antiguidade Clássica – sobretudo, Esparta e Roma – como um instrumento de crítica ao Antigo Regime francês e o seu despotismo. No final do século XVIII, por sua vez, com o desencadear da Revolução Francesa, a representação euforizada3 da Esparta Clássica sofreu algumas modificações. Nos dizeres de Paul Christesen, Maximilien de Robespierre – um dos maiores expoentes da Revolução de 1789 – chegou a elogiar a pólis espartana como um modelo de ―comunidade de bens‖. Entretanto, após o período histórico conhecido como o Terror, os opositores de Robespierre passaram a criticar as práticas político-culturais dos cidadãos de

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Esparta (esparciatas), como um instrumento para contestar a realidade da França, posteriormente a 1789 (CHRISTESEN, 2012: 181, 184). Ademais, Elizabeth Rawson amplia tais considerações ao destacar que passada a Revolução de Independência NorteAmericana e concomitantemente a Revolução Francesa, grande parte das sociedades europeias concluíram que um governo republicano poderia ser empregado em larga escala na modernidade. Desse modo, a liberdade política dos atenienses do século V a.C., somada ao seu desenvolvimento artístico e à ―disciplina igualitária‖ de seus exércitos foram elementos identificados como adequados à nova realidade da sociedade francesa entre o final do XVIII e início do XIX (RAWSON, 1969: 270). Mediante o apresentado, observamos que parte dos valores políticos, sociais, econômicos e militares da pólis de Esparta, manifestados pelo discurso de Plutarco, seria adequado ao pensamento dos opositores do Antigo Regime e à sua típica opulência. No entanto, com o advento dos excessos revolucionários, os seus opositores tomaram a liberdade promovida pela democracia de Atenas como um referencial para a edificação de um governo republicano, tornando Esparta e seu modelo monárquico um exemplo inadequado aos intelectuais franceses do XIX. Já nos ―oitocentos‖, figuras emblemáticas na França e Inglaterra teceram críticas ainda mordazes ao comportamento espartano na Antiguidade, promovendo elogios às práticas político-econômicas de Atenas. No caso francês temos Numa Denis Fustel de Coulanges, o qual era diretamente contrário aos ideais revolucionários da França, sobretudo à figura de Jean-Jacques Rousseau. Logo, toda a repulsa que Fustel de Coulanges manifestou ao representar Esparta esteve diretamente associada ao pensamento de Rousseau (CHISTESEN, 2012: 192; HARTOG, 2003: 44-46)4. Como nos esclareceu Oswyn Murray, no Reino Unido temos o caso do célebre político Edward Bulwer Lytton que, em seu ―Athens – its Rise and Fall‖ (1837), reprovou a conduta dos esparciatas. Para Lytton os cidadãos de Esparta agiriam por conta própria, sem respeitarem as determinações do governo, e estavam submetidos a atividades ―obscuras‖, cuja intenção seria manter a sua tradição e bases econômicas fundamentadas na escravidão (MURRAY, 2002: 383384). Ampliando as considerações de Murray, Ian Macgregor Morris (2004: 347) pontuou que os intelectuais franceses e ingleses do XIX, defendiam que a ―inércia‖ política e comercial de Esparta, aliada à forma como os esparciatas tratavam os seus escravos (hilotas) seriam indícios suficientes para ressaltar que esta pólis era rústica e

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não correspondia ao modelo de sociedade que se almejava construir na Europa Moderna. Em contrapartida, grande parte destes pensadores europeus passou a defender que os atenienses da Antiguidade puderam alcançar um amplo poder e autoridade junto às demais regiões do Mar Egeu por meio do aprimoramento marítimo e comercial, bem como através da liberdade que detinham para pensar e deliberar sobre as suas questões políticas. Sendo assim, podemos declarar que o contexto político-social da Europa no século XIX, o qual se mantinha imerso no desenvolvimento industrial, na prática do imperialismo e no combate ao Antigo Regime, levou os intelectuais franceses e ingleses a considerarem Atenas como um exemplo do passado, cujas práticas político-econômicas poderiam justificar as ações que a Europa promovia em outras áreas do globo.

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Devemos relembrar que o exemplo apresentado concerne ao caso britânico e francês, isto significa que não podemos generalizá-lo a toda a Europa. Nas sociedades de matriz germânica, por exemplo, a representação de Esparta seguiu um ideal de euforização, voltado ao enaltecimento dos valores e práticas nacionais. Nos dizeres de Volker Losemann, no início do XIX, Karl Otfried Müller produziu a obra ―Os Dórios‖ (1820), cuja escrita romântica influenciou o pensamento germânico da época e o modo como estes representavam a sociedade de Esparta (LOSEMANN, 2012: 254255). Em suas análises, Müller demonstrou que os esparciatas descendiam dos dórios, sendo estes representados como o coração e a alma do mundo helênico. Losemann complementa e enfatiza que a imagem difundida por Müller sobre a pólis de Esparta estava carregada de elementos antidemocráticos, e refletia a preocupação do autor com as guerras de libertação que a Prússia travava com Napoleão I. Desta maneira, Esparta passou a ser vista como o arquétipo da estrutura hierárquica e da organização militar do reino prussiano. Losemann continua e destaca que foram nos escritos de Müller que a ideia de uma relação ―primordial‖ entre os gregos antigos e o povo germânico foi estabelecida, levando a comparações entre a antiga pólis de Esparta e a Prússia Moderna. Por fim, Losemann expôs que a concepção de uma minoria de esparciatas que controlavam um amplo contingente de populacional hilota, acabou fascinando os germânicos modernos fazendo com que os valores da Antiguidade espartana se tornassem atuais para a realidade político-social da Prússia no século XIX (LOSEMANN, 2012: 253-255).

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Conjeturando a partir de Losemann (2012), notamos que o amor por seu território, sua sociedade e o sacrifício em prol de seu governante foram elementos que permearam o ideário dos guerreiros da Prússia, com base nas representações da pólis de Esparta. Nesse contexto, as práticas culturais dos esparciatas também foram elementos dos quais os intelectuais germânicos se utilizaram para fomentar os seus valores e consolidar a sua ―tradição espartoprussiana‖. Com a consolidação da Alemanha, como Estado (1871), e a implementação do Império Alemão (ou Germânico) chefiado pelo Reino da Prússia, as representações dos valores esparciatas acabaram se difundindo por toda a área de influência imperial, o que não pressupunha a adesão de todos os seus membros. Após a Primeira Guerra Mundial e a instituição da República de Weimar, Esparta permaneceu no pensamento de parte dos intelectuais alemães, os quais continuaram apropriando-se das representações das práticas político-culturais espartanas. Quando o partido nazista chegou ao poder na Alemanha, notamos a presença de parte das ideias defendidas pelos intelectuais de matriz germânica do século XIX e por aqueles que vivenciaram a emergência do Império Alemão e sua subsequente derrocada, fazendo com que os discursos sobre a superioridade germânica motivassem a tomada de novas decisões políticas após a Primeira Guerra Mundial. Dialogando com Volker Losemann, ao relacionarem a matriz cultural dos antigos helênicos com a dos germânicos, os nazistas passaram a construir uma base identitária – política, social e étnica – entre os seus membros, o que possibilitava a ratificação de todo um conjunto de práticas sociais (LOSEMANN, 2012: 273). Volker Losemann expôs que o modelo de conduta esparciata foi um exemplo de estrutura antiga que os nazistas se apropriaram e ressignificaram para sua implantação na Europa Oriental. Desse modo, Hitler teria se remetido a Roma e Esparta por essas sociedades fornecerem a ―condição arcaica para a unidade racial, com base em uma sociedade agrária‖ (LOSEMANN, 2012: 273). Interagindo com Jacqueline Christien e Yohann Le Tallec, Hitler teria grande fascinação pelos escritos e pela tradição da Antiguidade Greco-Romana, onde a instrumentalização de valores e práticas espartanas esteve atrelada ao seu interesse particular, mas também a toda carga cultural advinda dos ideais filo-helênicos da Prússia de Frederico II (CHRISTIEN; LE TALLEC, 2013: 246-247). Retomando

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Losemann, percebemos que os ideais de Adolf Hitler tiveram o suporte de Richard Darré, cuja perspectiva política defendia que assim como os esparciatas, os alemães deveriam preservar a sua raça, os seus corpos e a sua terra (ancestral). Entretanto, o ministro da Educação de Hitler, Bernhard Rust, teria desenvolvido um programa educacional baseado nas práticas culturais dos esparciatas, por volta de 1933, no qual aqueles que não quisessem integrá-lo não deveriam ser reconhecidos como cidadãos alemães (LOSEMANN, 2012: 285). Helen Roche complementa e explicita o argumento de Volker Losemann, pois, segundo a autora esse programa educacional – denominado Nationalpolitische Erziehungsanstalten (Institutos Nacionais de Educação Política) – foi fundado por Bernhard Rust, como um presente de aniversário para o Führer, tendo como objetivo formar a futura geração de líderes do Terceiro Reich. Nas palavras de Roche a seleção para este instituto de educação era extremamente rigorosa, haja vista que somente aqueles de descendência ariana, dotados de um caráter inquestionável, com uma saúde racial pura, plena habilidade física e uma alta capacidade intelectual poderiam ser eleitos para estas escolas (ROCHE, 2013: 180-181). Roche ainda definiu que a pedagogia nazista interpretava a história de acordo com os seus princípios políticos, incutindo nos jovens o pensamento de que a vida era feita de conflitos, nos quais a raça, o sangue e a terra eram essenciais para que os objetivos do Estado fossem realizados (ROCHE, 2012: 321). Desta maneira, em 1941, a política de dominação nazista ampliou-se após o ataque à União Soviética, quando os adeptos do nazismo passaram a defender a ideia de que – assim como os esparciatas – os alemães deveriam formar um pequeno grupo aristocrático governando muitos escravos, devido à sua natureza conquistadora. Finalmente, em 06 de fevereiro de 1945, quando a derrota alemã era eminente, Hitler discursou ressaltando o exemplo dos guerreiros esparciatas nas Termópilas. Tais combatentes, mesmo sabendo do destino que lhes aguardava, morreram pelo bem-estar e pelos ideais da pólis. Losemann nos chamou a atenção para o fato de que, após a Segunda Guerra Mundial, somente em 1983 apareceram novos estudos sobre Esparta, entre os intelectuais alemães (LOSEMANN, 2012: 291-298). Estendendo as considerações de Volker Losemann, Stephen Hodkinson (2006: 112-113) afirmou que devido ao contexto da Segunda Guerra Mundial e à apropriação das representações de Esparta pelo partido nazista, a imagem dos esparciatas como

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membros de uma sociedade estritamente belicosa acabou sendo difundida na historiografia do século XX. Imersos nesse viés, tornou-se comum entre os pensadores socialistas e liberais do Reino Unido representar a Grã-Bretanha como o equivalente à Atenas democrática, enquanto a Alemanha se aproximaria dos ideais de Esparta, pensamento este que influenciou os escritos historiográficos na Europa pós-guerra. Tomando como referencial o exposto, podemos concluir que a sociedade de Esparta da qual temos conhecimento foi o resultado de inúmeros processos de apropriações e ressignificações discursivas, os quais tomaram por base os escritos da Antiguidade. Com isso, a sociedade espartana que se encontra presente nos livros didáticos, destinados ao ensino fundamental e médio brasileiros 5 manteve-se alinhada aos rumos do Ocidente após a Segunda Guerra Mundial. Logo, a representação de uma pólis brutal, rústica e estagnada visava corresponder aos interesses das potências europeias que se saíram vitoriosas contra o nazismo alemão. Ao retomarmos as figuras de Moses Finley, Geoffrey De Ste Croix e Jean-Pierre Vernant, todos estiveram inseridos no contexto da Segunda Guerra e atuaram em posições opostas à Alemanha, tornando plausível a adoção que estes fizeram de um ideal ―atenocêntrico‖ em seus escritos historiográficos. Sendo assim, a lógica de uma História Tradicional e dos vencedores – típica do século XIX – ainda se faz presente no nosso modelo de ensino, cuja matriz remonta os interesses político-econômicos da França e da Inglaterra dos ―oitocentos‖ e a representação germânica que se cunhou de Esparta. Seguindo essa ótica, a historicização dos temas de abordagem historiográfica clarificam os rumos tomados pela disciplina de História, enfatizando as influências dos eventos contemporâneos no ordenamento do passado. Notas 1.A disforização seria a atitude de desqualificar práticas políticas, culturais e sociais de um dado grupo de sujeitos (GREIMAS; COURTÉS, 1987: 130). 2. Ao tomarmos os pressupostos teóricos de Pierre Bourdieu podemos definir a representação como uma imagem construída de grupos e práticas sociais, bem como de objetos, no intuito de interpretar/explicar as ações desempenhadas em uma dada sociedade. Logo, as representações desenvolvidas em um meio social objetivam corresponder aos interesses dos segmentos que as elaboraram (BOURDIEU, 2009:46). Desta maneira, nos convém destacar que este conceito será aplicado em nossa abordagem no decorrer deste artigo.

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Visões sobre Aprendizagem Histórica 3. Nos dizeres de Algirdas Greimas e Joseph Courtés, o ato de euforizar visa à valorização positiva de um sujeito ou objeto de interesse, com ênfase à exaltação discursiva (GREIMAS; COURTÉS, 1987: 170). 4. O discurso de Numa Denis Fustel de Coulanges é emblemático à medida que tenta desconstruir a representação euforizada de Esparta. Dentre os seus argumentos temos uma oposição à ideia de divisão igualitária de terras, bem como a tentativa de demonstrar que Licurgo não detinha nada de único frente a outros legisladores antigos, e o fato da maneira rústica com a qual os cidadãos espartanos tratavam os segmentos sociais à margem da Lacedemônia (COULANGES, 2013, passim). Com isso, verificamos que a perspectiva de Coulanges poderia ser identificada como o oposto daquilo que Rousseau tentou propagar no século XVIII, na França. 5. Podemos citar o exemplo do livro ―História: sociedade & cidadania‖, elaborado por Alfredo Boulos Júnior e publicado pela editora FTD, no ano de 2012. Nesta ocasião, o livro do 6º Ano apresenta apenas duas páginas sobre a pólis de Esparta e adota uma perspectiva comparada com a intenção de diferenciá-la de Atenas. O viés empregado é eminentemente ―atenocêntrico‖ e caracterizou Esparta como uma sociedade belicosa e oligárquica (BOULOS JÚNIOR, 2012: 212-213). Já o livro organizado por Ronaldo Vainfas (et. al.) segue uma premissa distinta, embora o resultado seja aparentemente idêntico à obra anterior. No trabalho intitulado ―História: das sociedades sem Estado às monarquias absolutistas‖, os responsáveis chegaram a priorizar uma interpretação relativamente renovada sobre Esparta, porém, ao analisarem os hilotas (escravos) os autores primaram por uma via tradicional e ―atenocêntrica‖, típica dos escritos de Tucídides, além de comentarem que a educação dos jovens em Esparta valorizava apenas as questões guerreiras (VAINFAS (et. al.), 2010: 62-64).

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Visões sobre Aprendizagem Histórica

HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA: UM TEMA DA BURNING HISTORY BRASILEIRA Maria Auxiliadora Schmidt

Introdução

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Na perspectiva do pensamento de Jörn Rüsen, a aprendizagem histórica e sua relação com a formação da consciência histórica é o núcleo central da didática da História, pois esta é a ciência da aprendizagem histórica e seu fundamento é a teoria da História (RÜSEN, 2014). Ainda na perspectiva desse autor, o papel da teoria da história na aprendizagem histórica precisa levar em conta alguns aspectos além da função de fundamentação da teoria da História, tais como os fatores da aprendizagem histórica, o lugar da experiência e da orientação na aprendizagem, a análise do lugar da narrativa na aprendizagem histórica, considerando que essa é a principal competência do aprendizado histórico. Da mesma forma, ele enfatiza a necessidade de se conhecer o significado prático do pensamento histórico para a constituição de sentidos e significados na constituição da identidade humana. Essas preocupações de Rüsen sugerem problemáticas que dizem respeito às relações entre a cultura histórica e a cultura escolar, produzindo desafios de investigações como, por exemplo, como a difusão de determinadas fontes iconográficas, representativas do passado de uma sociedade, são veiculadas por artefatos da cultura escolar, como os manuais didáticos e, ao serem apropriados pelos jovens alunos, produzem significados que acabam por serem normatizados como orientações temporais pelos jovens, a partir de determinados conceitos substantivos da História. Esse foi o recorte adotado nesse trabalho que constitui parte de pesquisa mais ampla sobre a aprendizagem histórica, financiado pelo Cnpq e que, em investigações realizadas de 2011 a 2013, tomou o conceito substantivo América Latina, sua abordagem por manuais didáticos, bem como o significado a ele atribuído por jovens alunos de escolas públicas, como uma das principais finalidades de pesquisa. Em sua investigação ―Narrativas históricas sobre a América Latina: o que se ensina e o que se aprende numa escola brasileira‖, Schmidt e Tauscheck (2011) buscaram compreender como se organizou o ensino da América no Brasil, partindo da analise de diferentes

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manuais, buscando entender as formas que foram ―inventadas‖ para se ensinar História da América Latina, em consonância com reformas curriculares, em diferentes momentos e políticas educacionais brasileiras. A perspectiva de investigação desse trabalho foi a pesquisa qualitativa. Na primeira fase da investigação, adotou-se a pesquisa documental, consubstanciada na análise de conteúdo de tipo temática, dos principais manuais didáticos de História da América publicados no Brasil, no período de 1932 a 1991, no contexto das respectivas reformas curriculares. O quadro apresenta os resultados da primeira fase da pesquisa: Quadro 1 – Relação entre propostas curriculares e a presença da História da América em Manuais Didáticos Contexto:

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Período da Ditadura (1964-1984) História da América excluída dos currículos. Lei 5692/71 (Estudos Sociais de 1ª. A 8ª. Série do 1º. Grau – História somente no 2º. Grau, com

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carga horária reduzida.

AMERICANAS (1981) AQUINO, Rubim Santos Leão de / LEMOS, Nivaldo Jesus Freitas de / LOPES, Oscar Guilherme Pahl Campos. Rio de Janeiro: Livraria Eu e Você Editora. Professores da escola fundamental e media. Autores indicam abordagem a partir dos ―modos de produção‖, vertente marxista. -x-x-x-xHISTORIA DA AMERICA (1983) NADAI, Elza / NEVES, Joana. São Paulo: Saraiva. Professoras universitárias, USP e UFPA.

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Parâmetros Curriculares Nacionais (1998) Temas da História da América Latina inseridos como conteúdos articulado e/ou integrados à História do Brasil e Geral.

Manual aprovado pelo PNLD – (programa nacional do livro didático) . História Sociedade e Cidadania – Alfredo Boulos Junior – 7º. Ano.

Fonte: Schmidt e Tauscheck (2011) A partir da constatação de que os conteúdos relativos à História da América haviam sido integrados ou intercalados a outros conteúdos, sendo distribuídos de forma cronológica do 6º. ao 9º.ano do Ensino Fundamental, houve a preocupação em buscar conhecer como um conceito, como América Latina, estava presente no pensamento histórico dos alunos que já tinham cursado esses anos. Nesse momento, selecionou-se, aleatoriamente, uma escola pública de ensino fundamental, entre as que haviam escolhido o manual História Sociedade e Cidadania, de Alfredo Boulos Junior, para realização de um estudo exploratório. Assim, foi aplicado um questionário em 17 jovens alunos, constituído das seguintes questões: “Quais são as primeiras palavras que lhe vem a cabeça quando você pensa na História da América?” e “Escreva uma pequena narrativa sobre o que você espera ver nas aulas sobre a história da América Latina, que terá na escola”. Na primeira coluna é apresentada a categorização das ideias dos alunos e, na segunda

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coluna, o número de vezes que determinada ideia foi utilizada pelos alunos. Quadro 2 – Categorização das ideias dos alunos sobre História da América Idéias sobre relação com o conceito de America Latina:

(2) Língua ou língua diferente; (2) língua latina; (2) musica ou musica latina; (4) latinos e (5) culturas diferentes.

Idéias sobre a relação temporal

(2) Colonização; (2) novo mundo; (2) pré-colombiano.

Idéias provavelmente ligados a colonização:

(2) conquista; (2) fonte de riquezas; (1) perdas e (4) guerra

Idéias geográficas e de localização:

(1) mapas; (1) continente; (1) sul e (6) sul da América ou América do sul.

Idéias que tem relação com os estados nacionais: Diversos:

(3) países; (5) Brasil; (1) gente do Brasil; (2) México; (1) argentino (4) Latim; (2) futebol; (1) desenvolvimento; (1) política.

Fonte: Schmidt e Tauscheck (2011) Ao serem perguntados sobre o que esperavam aprender os alunos responderam: Temporalidade nas narrativas ou com ideias históricas: Exemplos: Aluno 2 “... desenvolvimento dos países no decorres dos anos e etc”; Aluno 5 ― ...evolução dos tempos, colonização diferentes...”; Aluno 9 ―… países latinos sendo colonizados e depois independência guerras entre eles, países pobres”. Apenas gostam do tema e têm curiosidades: Exemplos: Aluno12 ―…espero aprender o que eu não sei da América latina, eu me interesso pelo assunto.”; Aluno 14 ―…me interesso pelo assunto aprender coisas novas e o mais legal é aprender novas línguas como inglês, então imagina o latim”.

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Demonstram algum conhecimento de termos de análise social e de diversidade cultural: Exemplos: Aluno 2 ―…Eu acho que vamos aprender sobre diferentes povos e culturas, modos de viver, guerras, classes sociais, diferentes economias...”; Aluno 3 “… eu espero ver um pouco da cultura do povo que vive na América Latina, sua língua e seus hábitos como vivem a sua diferença social, sobre a fauna e flora desse lugares e as grandes cidades desses lugares e seus pontos turísticos mais famosos.”; Aluno 4 ―…seus costumes, modos e estilos. Sobre o desenvolvimento e crescimento, culturas, comercio e classes sociais sobre toda a história, guerras e etc.”; Aluno 5 ―… pessoas diferentes, culturas diferentes evolução dos tempos, colonização diferentes,lugares diferentes e muito mais”; Aluno 11 ―…sobre a cultura latina. As línguas faladas”.

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Entre as conclusões apreendidas a partir dos resultados dessa investigação percebeu-se que, tanto as narrativas dos alunos, quanto a dos manuais didáticos, apresentam uma narrativa fragmentada da história da América, não favorecendo os debates específicos do ensino da História da América e nem o desenvolvimento de uma consciência histórica mais elaborada ou uma relação mais complexa entre o presente e o passado. Dando continuidade a pesquisas sobre a relação entre os conteúdos de História da América e manuais escolares, Schmidt e Tauscheck (2011) focaram sua investigação no que o historiador espanhol Rafael Valls chama de ―componentes paratextuais‖ dos manuais escolares, entre os quais estão as imagens constitutivas do texto didático. Segundo o autor, particularmente os manuais escolares têm apresentado uma forte presença da documentação iconográfica, o que coloca o desafio de investigações que tomem como objeto determinadas questões, tais como a identificação, catalogação e categorização das imagens, sua contextualização, seu tratamento para leitura e análise por parte dos alunos e, como afirma o autor Distintos estudios han mostrado la escasa atención, incluso nula consideración, que los alumnos otorgan a las imágenes presentes en los manuales. A los alumnos no se les ha enseñado a aprender de las imágenes y no las consideran fuentes serias de información. En algunas de estas investigaciones empíricas se ha llegado a establecer que un grupo importante de los alumnos no habían mirado ni siquiera las imágenes y que un 25% lo había

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hecho exclusivamente como distracción respecto de la lectura. También se comprobó que la gran mayoría de los alumnos no contemplaba tales imágenes con un mínimo de atención si no se les impulsaba explícitamente a hacerlo, especialmente a través de indicaciones escritas. (VALLS, 2010, p.6). Após a categorização das imagens pode-se perceber que, em sua maioria, as iconografias foram utilizadas como ilustração, reforçando imagens canônicas e muitas vezes estereotipadas de determinados conteúdos da História da América, como a história dos povos pré-colombianos, ou seja, essas imagens não são problematizadas como evidencias históricas, na tentativa de construção de uma relação mais complexa com o passado. À guisa de exemplo, cita-se o libro História da América (Elza Nadai e Joana Neves,1991) em que as autoras se utilizam de imagens de utensílios incas e objetos religiosos, mas sem problematizá-los ficando mais como ilustração da narrativa didática. Nesse mesmo sentido, pode-se citar a obra Curso de História da América (Heródoto Barbeiro, 1984), pois o livro trabalha com boas imagens sobre o contexto ―pré-colonial‖, entre essas imagens estão ruínas de templos, documentos de época sobre cultura e arte. Porém, elas não são problematizadas e ficam como exemplos de ilustrações iconográficas do texto escrito. Sobre as legendas das imagens, elas não explicitam de onde foram retiradas, ou seja, não são colocadas na categoria de fonte ou documento histórico. Imagens e aprendizagem histórica Durante a investigação observou-se a presença sistemática de uma imagem do espanhol Theodory de Bry – A chegada de Cristovão Colombo a América (sec. XVI) – em 4 dos manuais analisados, História da América (1932), História da América (1979), História das Sociedades Americanas (1981) e História da América (1983). Essa recorrência indicou possibilidades para uma indagação qualitativa (EISNER, 1998) acerca das relações que jovens alunos atribuem a certo tipo de imagem que, na perspectiva de Saliba (1999), torna-se canônica. Para esse autor, as imagens canônicas …são impostas coercitivamente, daí serem chamadas imagens coercitivas. Ícones canónicos seriam aquelas imagens-padrão ligadas a conceitos-chaves de nossa vida social e intelectual. Tais imagens constituem pontos de

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referencia inconscientes, sendo, portanto, decisivas em seus efeitos subliminares de identificação coletiva. São imagens de tal forma incorporadas em nosso imaginário coletivo, que as identificamos rapidamente. (SALIBA, 1999:437) Com esse indicativo, buscou-se ampliar a investigação, no sentido de se verificar em que medida e, de que forma, determinadas imagens canônicas sobre um tema da História da América podem ser viabilizadoras de sentidos e significados para jovens alunos do último ano da escola fundamental, considerando que eles já passaram por toda a primeira fase da escolarização obrigatória e, de alguma maneira, já tiveram contato com este conceito substantivo da História.

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Em suas investigações Carretero&Jacott e López-Manjón (2004), assim como Carretero e González (2004) buscaram compreender que tipo de relações jovens de países da América espanhola e também da própria Espanha, estabeleciam com essas relações. Na primeira pesquisa, ―La enseñanza de la historia mediante los libros texto: ¿se les enseña la misma historia a los alumnos mexicanos que a los españoles?, os três autores analisam de que forma 4 manuais espanhóis e cinco mexicanos, publicados em 1994, tratam o tema ―Descobrimento da América‖, tendo como aporte metodológico a análise de conteúdo. Nesse estudo, eles identificaram a presença da gravura de Theodore de Bry como parte da narrativa histórica didática de um libro mexicano e um livro espanhol, com epígrafes que revelam enfoques históricos distintos, mas com o mesmo objetivo de descrever a chegada de Colombo à América. Na segunda pesquisa, ―Imagens históricas y construcción de la identidad nacional: una comparación entre la Argentina, Chile y España‖, Carretero e González, a partir de uma investigação empírica, utilizando entrevistas semi-estruturadas, procuraram entender essa mesma relação em 80 sujeitos, entre jovens e adultos, chilenos, argentinos e espanhóis, respectivamente, procurando responder três ordens de questões: Como os sujeitos interpretam as imagens, segundo sua idade e procedência cultural? Como tematizam e valorizam a imagem? Que descrições afetivas e identitárias a imagem produz? A partir dos referenciais e das questões propostas, eles, num primeiro momento, categorizaram os resultados a partir de níveis de atribuições realizadas pelos sujeitos, quais sejam: 1. Leitura realista e ingênua.2. Leitura realista. 3. Leitura contextualizada, concluindo que houve diferenças significativas entre os sujeitos das diferentes procedências e que, conforme aumenta a idade, as leituras realistas e

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contextualizadas são mais presentes. No segundo momento, o da categorização segundo as descrições e atribuições de valores, eles não encontraram relações entre idade e as respostas dos sujeitos, mas essas variavam conforme o país de origem, sendo categorizadas em três tipos: violenta, pacífica ou mista, sendo que a última foi predominante. No terceiro momento, referente a relação afetiva e de identificação, nos três países a opção foi pelos indígenas e não pelo colonizador espanhol. Essas investigações foram tomadas como referencia dado à presença da mesma imagem encontrada nos manuais brasileiros, levando-se em conta, entretanto, o fato de que as finalidades não seriam as mesmas. Assim, a ênfase foi na problemática de se buscar entender que significados jovens alunos poderiam atribuir a uma determinada imagem canônica, presente em manuais escolares utilizados no Brasil, com a preocupação de compreender como esses jovens se relacionam com o passado da América e, portanto, qual o significado para a formação da sua consciência histórica. A relação com as imagens e significância histórica Os estudos sobre significância histórica vêm constituindo um importante objeto de análise para investigadores interessados em compreender a formação da consciência histórica dos alunos. Muitos desses estudos partem da preocupação em se entender a formação da consciência histórica de crianças, jovens e adultos e se constituíram na esteira dos trabalhos realizados, principalmente, pelo historiador canadense Peter Seixas. Entre as investigações desse autor, destacamse duas pesquisas que podem ser consideradas fundadoras desses estudos. Em uma delas, tomada como principal referência para esse trabalho ―Students Understanding of Historical Significance‖, publicado em 1994, Peter Seixas aponta alguns critérios para se definir o conceito de ―significância histórica‖, a partir das definições atribuídas pelos historiadores. Assim, ―significância histórica‖ seria definida por três critérios: - se o fenômeno afetou um grande número de pessoas por um longo período de tempo; - pela relação de um fenômeno com outros fenômenos históricos; - pela relação do fenômeno com a vida prática do presente. A partir desses pressupostos, o autor levantou algumas questões de investigação sobre o pensamento histórico dos alunos, entre elas: - o que torna um fenômeno significativo para um sujeito? – como eles atribuem significados aos fenômenos do passado? – eles estabelecem relações com a sua própria vida? Em outra pesquisa, ―Mapping the Terrain of Historical Significance‖, (1997), Peter Seixas buscou relacionar a

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atribuição de significados que os sujeitos fazem em relação aos fenômenos do passado, com as suas interpretações, valores e ideais, baseando-se no pressuposto de que isso pode variar conforme diferentes determinações, não somente as da cultura escolar. É importante ressaltar que, em suas pesquisas, Peter Seixas não se preocupou em apresentar níveis de desenvolvimento do pensamento dos alunos, mas categorizar os resultados de suas investigações a partir de tipologias na forma como os sujeitos constroem significância na História.

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Dando continuidade às pesquisas desenvolvidas sobre a presença do conteúdo História da América nos manuais, optou-se pela análise da relação dos jovens alunos com determinada imagem canônicas presente nos manuais, a mesma gravura encontrada pelos pesquisadores espanhóis, e a apreensão dos significados por eles atribuídos a essa imagem. Assim, foi realizada uma investigação de cunho qualitativo em 26 jovens de um grupo do último ano da escolarização obrigatória, em uma escola pública de um bairro afastado do centro, na cidade de Curitiba, estado do Paraná, Brasil. A amostra é caracterizada pela predominância de 18 jovens com a idade de 17 anos; 3 jovens com 16 anos; 3 com 18 anos, um jovem com 19 e um com 21 anos, sendo 15 do sexo masculino e 11 do sexo feminino. O instrumento de investigação constou de uma atividade para ser realizada em aula, com a presença do professor de história da turma. Essa atividade apresentava a gravura de Theodore de Bry, com a seguinte legenda: ―Encontro de Cristovão Colombo com populações que viviam na América.‖ Gravura feita por Theodory de Bry, séc.XVI. Como orientação para os alunos foram apresentadas três questões. A primeira delas – Descreva a imagem – tinha o objetivo de verificar que relações os jovens alunos estabeleciam com o passado registrado na imagem, seja descrevendo os personagens e as ações nela representadas, seja levantando hipóteses sobres as intenções presentes nessas ações. Na segunda questão – Escreva o que a imagem representa para você – a finalidade foi verificar se os jovens alunos articulavam o passado com o seu presente e sua vida prática, e de que forma o faziam. Finalmente, a terceira questão – Relacione o que você escreveu sobre a imagem, com a história dos povos da América, tinha o objetivo de verificar se os jovens alunos relacionavam os acontecimentos representados na imagem com outros acontecimentos da história dos povos americanos, numa perspectiva temporal.

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A análise e categorização das respostas permitiu a constituição de três tipos de significância histórica, a partir dos estudos realizados por Canetti (1995) - Significância simbólica; Lee (2003) Significância empática e Fronza (2013) - Significância intersubjetiva. Levou-se em conta também aspectos teóricos pertinentes ao campo da análise das imagens e de estudos já realizados sobre o pensamento histórico de jovens e crianças. Significância simbólica: Estudos realizados por Canetti (1995) apontam possibilidades de se interpretar símbolos que, representados em discursos e imagens, agregam significados a determinados conceitos. Ao analisar a relação entre ―massa e poder‖, esse autor apresenta a ideia dos ―símbolos de massa‖ – não constituídos de seres humanos, mas de unidades como o trigo e a floresta, a chuva, o vento, a areia, o mar e o fogo. Ademais, existem o que ele chama de ―cristais de massa‖, ou seja, ―os cristais de massa apresentam-se sob a forma de um grupo de pessoas que chama a atenção por sua coesão e unidade. Eles são concebidos e vivenciados como unidade, mas compõem-se sempre de pessoas efetivamente atuantes – soldados, monges (…) (CANETTI, 1995, p.74). Ao lerem a imagem apresentada, a maioria dos jovens incluiu em suas respostas determinadas unidades simbólicas, sejam pessoas ou não, tais como: cruz, armas e tropa. Em todas as respostas, a cruz foi interpretada como a presença e imposição da religião católica, diretamente ou não (…) a imagem mostra Cristovão Colombo chegando na América, implantando sua cultura, aparentemente, pela cruz que eles colocam no litoral. (Nicolas, 17) (…) seria a colonização dos europeus na América representado numa imagen. Europeus impondo a religião e a sua cultura sobre os índios. (Isabela, 17) (…) a cruz, na imagen, demonstra religiosidade, como se estivessem trazendo “cultura” ao povo. (Rafael, 19) (…) há também o início da catequização dos “povos inferiores”. A cruz = catequização.(Rafaela, 16) As armas e os soldados, designados pelos alunos como ―a tropa‖, foram interpretados como a imposição da força, a dominação: (…) o povo está em conflito e em defesa, tendo que servir aos soldados (Marjorie,17) (…) parece que eles estão em guerra, representa a imagen que eles estão em conflito.(Ana Claudia, 21)

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(…) queriam transformar os índios em sua tropa, junto com os outros. (Thalita, 17) (…) A imagem remete à colonização da América. Cristovão Colombo e “sua tropa”, impondo seu modo de pensar aos nativos de forma simples e eficiente. (Kaway, 17).

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2. Significância empática – Investigações acerca das ideias históricas dos sujeitos têm abrangido a análise do que Lee (2003) chama de conceitos de segunda ordem, entre os quais está a empatia histórica. Segundo esse autor, a empatia histórica pode ser entendida como ―algo que acontece quando sabemos o que o agente histórico pensou, quais os seus objetivos, como entenderam aquela situação e se conectamos tudo isso com o que aqueles agentes fizeram‖ (Lee, 2003: p.20). Ademais, afirma Lee, ―nossa compreensão histórica vem da forma como sabemos como é que as pessoas viram as coisas, sabendo o que tentaram fazer, sabendo que sentiram os sentimentos apropriados àquela situação, sem nós próprios as sentirmos‖ (p.21). Várias respostas dos jovens alunos remeteram a uma aprendizagem a partir de uma empatia como realização do pensamento e também como uma disposição para olhar e compreender as pessoas do passado, representadas na imagem: (…) Cristovão chega na América e os Índios estão com receio ao realizar a troca…(Pablo,17) (…) Na terra de Cristovão Colombo a nudez era extremamente imprópria. Chegando na América e encontrando um povo todo nú, ele fica abismado mas ao mesmo tempo admirado (Vitor, 16) (…) Os habitantes da América parecem um pouco assustados ao verem Colombo e sua tropa (Cesar, 17) (…) A imagem mostra a chegada de Cristovão Colombo na América, uma chegada um tanto asustadora por parte das pessoas que já estavam lá….(Juliano, 18) (…) os nativos ficaram impressionados com as coisas dos descobridores e os receberam, foram explorados …(Claitson, 17) 3. Significância intersubjetiva – O conceito de intersubjetividade foi utilizado por Fronza (2012) para analisar de que forma ocorre o autoconhecimento histórico de jovens alunos, quando em contato com evidências históricas em histórias em quadrinhos. No quadro de referência da teoria da consciencia histórica, Fronza assume que a intersubjetividade é um processo instituidor da consciência histórica a partir das operações mentais da narrativa histórica e acontece quando ―ao internalizar, por meio da empatia, a alteridade das experiências do passado antes desconhecidas, os jovens situam a si

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mesmos na salutar multiplicidade dos modos de ser, sentir e viver dos homens em muitos tempos e lugares‖ (Fronza, 2012: p.63). A partir dos dados coletados e, na direção apontada, a categoria intersubjetividade foi utilizada para explicitar maneiras que os jovens utilizaram para significar o passado, a partir da relação com seus próprios valores, ideias, vida prática, em confronto com o fenômeno histórico apresentado na imagem: (…) a imagen é uma importante história do descobrimento do país e do continente onde vivo (Vitor, 16) (…) representa o início do povo da América, a chegada dos colonizadores, foi um marco pois houve uma troca de informações, ambos sairam ganhando ( Juliano, 18) (…) os da direita estão defendendo suas terras, e os da esquerda estão invandindo e dominando, mostra a guerra (Luiz Felipe, 17) (…) representa a má colonização da América, a destruição da cultura dos povos americanos, além do início da degradação das florestas e riquezas naturais do continente americano (Roberto, 16) (…) Para mim, a imagen representa o começo da colonização, os costumes, a cultura de outros povos, interferindo na cultura da América, acabando com nossas riquezas, para uso deles (europeus).(Amanda, 17) (…) Representa a mudança na população local, influencias que até hoje podem ser percebidas. Esse capitulo da monopolização dos povos mudou o rumo da história. (Kaway,17). Torna-se importante destacar que, ao serem expostos a uma ―imagem canônica‖, isto é, que vem sendo utilizada sistematicamente nos manuais escolares para ilustrar as narrativas produzidas pelos autores desses manuais, os jovens alunos criaram suas próprias maneiras de dar significado ao passado ali representado, como pode ser observado em suas respostas. Demonstrando formas de autoconhecimento originais, os jovens deram pistas sobre como se formula e se desenvolve a sua aprendizagem histórica. Considerações finais Observou-se que as potencialidades das imagens, consideradas como paratextos, podem ser muito grandes, no sentido aquí exposto, qual seja o de trabalhar a significância histórica para aprendizagem dos jovens alunos. A concretização dessas potencialidades requer, entretanto, formas mais inovadoras para o trabalho com as imagens nos manuais escolares, particularmente tratando-as como fontes e evidências do passado, mobilizadoras de estratégias cognitivas do

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pensamento propriamente histórico e, portanto, possibilitadoras do desenvolvimento da consciência histórica dos sujeitos aprendizes. As pesquisas realizadas com uma fonte iconográfica relacionada ao conceito substantivo História da América Latina, bem como a investigação exploratória especificamente pautada na forma como os jovens alunos se apropriam dessa fonte, sugerem também possibilidades de expansão desse tipo de investigação para outros conteúdos, no sentido de apreensões mais detalhadas da significância histórica que jovens alunos atribuem a determinados fenômenos do passado, seja por meio da investigação em paratextos ou no próprio texto de manuais escolares. Tais investigações podem trazer contribuições para se adentrar e sistematizar principios da aprendizagem histórica e, portanto, do seu ensino, a partir da própria teoria da História. Referências

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PARA UM NOVO AMANHÃ

AS POSSIBILIDADES INVESTIGATIVAS DA APRENDIZAGEM HISTÓRICA DE JOVENS ESTUDANTES A PARTIR DE HISTÓRIAS EM QUADRINHOS (AUTO)BIOGRÁFICAS Marcelo Fronza

Introdução Procuro compreender como as ideias históricas de segunda ordem — tais como a intersubjetividade e a verdade histórica —, produzidas pelos jovens estudantes de ensino médio, mobilizam conceitos históricos por meio da aprendizagem histórica com histórias em quadrinhos. Este trabalho tem como objetivo investigar como a verdade histórica e a intersubjetividade estão relacionadas com a forma como os jovens tomam o conhecimento para si a partir de histórias em quadrinhos (auto)biográficas. Este trabalho é produzido a partir do grupo de professores historiadores ligado ao LAPEDUH/UFPR e faz parte do projeto de pesquisa Os jovens e as ideias de verdade histórica e intersubjetividade na relação com as narrativas históricas visuais vinculado ao ―GPEDUH/UFMT - ―Grupo de Pesquisa em Educação Histórica: Didática da História, consciência histórica e narrativas visuais/UFMT/CNPq‖. Insere-se no conjunto de pesquisas relativas à linha de investigação ligada à cognição histórica situada (SCHMIDT, 2009, p. 22), que tem como princípios e finalidades a própria ciência da História e servem de embasamento à área de pesquisa da Educação Histórica, um campo de investigação que estuda as ideias históricas dos sujeitos em contextos de escolarização, de tal forma que é estruturada por pesquisas empíricas que dialogam com a teoria da consciência histórica (RÜSEN, 2001, 2012). Pretendo, com isso, investigar as diferentes possibilidades investigativas que existem na relação entre as histórias em quadrinhos e a aprendizagem histórica de jovens estudantes de ensino médio. Em minhas pesquisas encontrei um tipo de investigação peculiar relativa a como as narrativas históricas gráficas entraram na cultura escolar no ocidente: a introdução, nas escolas, de quadrinhos biográficos, autobiográficos ou investigativos sobre

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pessoas que viveram alguns dos grandes eventos históricos da modernidade, tais como a Guerra Civil Americana, a Primeira Guerra Mundial, o holocausto nazista, as bombas de Hiroshima, as revoltas populares nos países do terceiro Mundo, a guerra de libertação da Palestina, a formação do movimento estudantil de um país, a constituição do modo de viver ocidental, etc. (WITEK, 1989).

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É nesse sentido que estes artefatos da cultura histórica podem se estruturar em narrativas (auto)biográficas que permitam aos jovens formar um sentido de orientação temporal que se fundamente no autoconhecimento a partir da práxis social do outro. Segundo Ludmila Jordanova (2006, p. 45-46, 95) a biografia deve ser entendida para além de um gênero literário. Isto porque ela considera o sujeito como uma unidade de análise dentro de uma abordagem histórica particular na qual a ação da individualidade é a convergência de diversas forças históricas que englobam um momento da vida humana numa temporalidade histórica da humanidade. Além disso, o gênero biográfico é fundamental para a compreensão da imagem pública dos sujeitos. Philip Lejeune (1996, p. 237) compreende que nas autobiografias existe um pacto entre o escritor (no caso das narrativas gráficas autobiográficas, os quadrinistas) e o leitor. Com isso, existe uma ampliação dos espaços narrativos do eu como uma mediação entre o público e o privado (ARFUCH, 2010, p. 28). As histórias em quadrinhos como artefatos mobilizadores das experiências dos jovens com a cultura histórica As histórias em quadrinhos são compreendidas como artefatos narrativos da cultura juvenil que permitem aos jovens desenvolver uma relação de intersubjetividade com o conhecimento histórico. Por isso, é vital investigar o que, para os jovens, é plausível nas narrativas históricas gráficas e qual é a especificidade que a relação de intersubjetividade com a História fornece no processo de formação de sua identidade. Entendo que a cultura juvenil, no âmbito da cultura escolar, manifesta, nos estudantes, uma determinada forma de operar historicamente com os quadrinhos. As (auto)biografias são gêneros que expressam a memória histórica de sujeitos que ajudam a compreender as relações humanas estruturadas em determinadas comunidades. Segundo Elias Thomé Saliba (2009, p. 51, 58) são histórias de produção maciça e dizem respeito a uma dimensão pedagógica da história. Estão estritamente vinculadas ao aumento da capacidade de armazenamento de

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informações do passado e à velocidade temporal das mudanças que modificam radicalmente a experiência histórica contemporânea. As biografias vinculam-se a uma história de circulação massiva que podem estiolar as concepções de tempo e de passado. Mas podem também, a partir de sua função didática, sustentar versões na esfera pública que permitam responder algumas perguntas sobre o passado humano. Isto porque podem fornecer um sentido de orientação temporal que sustente ações que valorizem a subjetividade humana. Isso apresentando narrativas: sobre como é o mundo, como as coisas têm de ser e o que nos reserva o futuro, ou seja, aquilo que o mundo de hoje não tem. Podemos chamar isso de teoria, mito, ideologias, ilusões [...], mas o fato é que, apesar de estarmos em crise, não cessamos de ansiar ou criar histórias e futuros para nós mesmos por meio de alguma narrativa. Sem uma narrativa avida não tem sentido. Sem um sentido a aprendizagem da história não tem um significado. Sem um significado não superamos a necessidade de gerar sentido para a vida (SALIBA, 2009, p. 62-63). Nesse sentido, ao professor historiador cabe fazer aumentar em seus estudantes o quadro histórico de referências significativas sobre o passado, tornando-se um provocador das inquietudes ao mobilizar (auto)biografias que estimulem o imprevisível que provoque a imaginação dos jovens estudantes (SALIBA, 2009, p. 60). Com isso, pode contribuir para a compreensão da alteridade própria da constituição da memória histórica da humanidade. É por causa da função narrativa, estruturada por um fio condutor de sentido, que as histórias em quadrinhos e outras narrativas históricas visuais podem contribuir para esse processo de libertação dos sujeitos. A função narrativa das histórias em quadrinhos diz respeito às formas de expressão da cultura jovem. A ―unidade global da memória histórica‖ expressa no narrar dos sujeitos sintetiza e integra as funções da legitimação, da crítica, do ensino, do entretenimento, das imagens e dos mais variados modos de rememorar o passado. A rememoração histórica se dá por meio de uma operação mental do ―ato de contar histórias‖. A plausibilidade narrativa ligada à consciência histórica transforma o procedimento mental da rememoração histórica em formas de narrar a História (RÜSEN, 1994, p. 8-9).

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A narrativa se estrutura na concepção básica de que alguém conta a alguém uma história sobre uma experiência do passado interpretada no presente e que cria expectativas de futuro, tal como expressa a história em quadrinhos sul-africana Vusi goes back. A comic book about the history of South Africa (RÜSEN, 2001, p. 158).

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Vusi goes back. A comic book about the history of South Africa. (Prezanian Comix, E.D.A.); de um manual para ―trabalhadores comunitários‖, 1981, fig. p. 2. RÜSEN, Jörn, A razão histórica: teoria da história: os fundamentos da pesquisa histórica. Brasília: UnB, 2001, p. 158.

A partir desta narrativa gráfica compreendo que as imagens não falam por si mesmas, pois são naturezas mortas mobilizadas pelas ideias históricas dos sujeitos. Essa história em quadrinhos narra uma versão da história sul-africana, desde sua origem até os movimentos de resistência antiapartheid, e busca construir um ordenamento temporal do conteúdo a partir da estrutura básica da narrativa: alguém conta a outra pessoa como eles se tornaram o que são no presente, com vistas a novas perspectivas de futuro. Creio que é importante ler qualquer história em quadrinhos (auto)biográficas a partir dos diálogos dos seus personagens, pois ali são expressas as ideias que problematizam as carências da vida prática. Portanto, é a

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estrutura narrativa que define as histórias em quadrinhos. Então, como se constituem as investigações sobre esses artefatos da cultura histórica com caráter (auto)biográfico em sua relação com a cultura escolar? Para uma investigação sobre as histórias em quadrinhos (auto)biográficas no interior da cultura escolar A estrutura narrativa é o que define as histórias em quadrinhos e, por isso, é relevante para este estudo tecer considerações sobre como as investigações sobre esses artefatos da cultura histórica nos gêneros biográfico e autobiográfico se apresentam na cultura escolar. Tendo como objetivo verificar como as histórias em quadrinhos, enquanto artefatos da cultura histórica, entraram na cultura escolar, constatei (FRONZA, 2007, 2012) que não foi por meio dos currículos oficiais. Talvez isso tenha ocorrido devido à percepção pública negativa que muitos agentes sociais, tais como educadores, padres, políticos e parte da imprensa, tinham desses artefatos da cultura histórica durante grande parte do século XX (GONÇALO JUNIOR, 2004, p. 273-284). Mas constatou-se que os quadrinhos foram incorporados à cultura escolar de outras formas que já estão sendo pesquisadas. Essa possibilidade investigativa das histórias em quadrinhos voltadas para a aprendizagem histórica se caracteriza por investigar narrativas históricas gráficas de caráter biográfico, autobiográfico e ou até mesmo investigativos sobre sujeitos e eventos grandes eventos históricos significativos para a história da humanidade. Além disso, discutem as implicações que este tipo de quadrinhos pode trazer para as discussões relativas à Didática da História. Uma obra seminal nesta perspectiva é a de Joseph Witek (1989), que se propôs a investigar histórias em quadrinhos biográficas e autobiográficas como narrativas históricas que buscam superar o escapismo deste tipo de mídia por meio de temas como os conflitos culturais, na história ocidental, as fronteiras entre a culpa e o sofrimento no interior das famílias, e os desafios e triunfos dos sujeitos na práxis contemporânea. São quadrinhos que combatem o consenso didático da história tradicional pautada no nacionalismo e no etnocentrismo; e são narrativas históricas gráficas que propõe perspectivas interculturais que recuperam os narrares dos

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despossuídos e marginalizados pela tradição e pela história curricularizada (WITEK, 1989, p. 3-4). No caso de Jack Jackson sua produção de quadrinhos biográficos está ligada a fortes implicações ideológicas pautadas nas relações históricas da cultura estadunidense voltadas para minorias e para sujeitos do Terceiro Mundo (WITEK, 1989, p. 58, 60). O tema de suas biografias diz respeito às consequências da opressão governamental que se expressa numa vida duradoura sensibilidade sobre a injustiça social sofrida pelas populações marginalizadas dos Estados Unidos da América, tais como as suportadas pelas comunidades indígenas in Comanche Moon (1979). A finalidade dos quadrinhos biográficos de Jackson é educar os jovens estadunidenses sobre sua própria história enquanto um gesto político. Suas histórias em quadrinhos representam a luta entre as forças do poder estabelecido com as que procuram se desgarrar dele socialmente.

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Um exemplo disso é a narrativa histórica gráfica Comanche Moon (1979) que é uma biografia do líder mestiço comanche Quanah Parker. Essa narrativa biográfica foi escrita na contramão dos quadrinhos históricos popularizados cultura escolar estadunidense, pautadas nos grandes líderes e acontecimentos desta nação, pois conta a história dos indígenas que foram derrotados no consenso oficial da vitória dos brancos de ascendência anglo-saxã na América do Norte. Ao escavar esta história da América, Jackson traz à tona o ―Outro‖ cultural.

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JACKSON, Jack. Comanche Moon. New York: Reed Press, 2003, p. 116.

A história de Quanah Parker é um microcosmo da história da sociedade indígena. Este sujeito, além de ser líder indígena, lutou contra os brancos nas guerras das Planícies Indígenas, tornou-se deputado federal pelo Partido democrata, e ajudou na promoção das boas relações entre as comunidades indígenas e seus vizinhos brancos e mexicanos. Isso mesmo enfrentando as políticas culturais de embranquecimento contra as tradições indígenas (WITEK, 1989, p. 75). Uma das características desta biografia quadrinizada é que se utiliza de uma estética dos Comix underground estadunidenses ao valorizar traços crus e animistas, ou seja, voltados para valorização da narrativa do que para o formato padrão dos gibis utilizando imagens de nudez, violência e resistência social com o objetivo de provocar o status quo. A linguagem dessa obra é próxima da do

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documentário. Além disso, reconstruído a partir de imagens fotográficas, apresenta uma narrativa histórica que interpreta o personagem de Quanah Parker como uma síntese da história do Texas Comanche, e apresenta cada experiência do passado que sofreu como uma parte de uma história singular. Representa a transição entre as comunidades indígenas tradicionais para uma forma racional de convívio digno com a assimilação branca do expansionismo estadunidense para o Oeste (WITEK, 1989, p. 82, 84). Considerações finais

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A partir deste estudo, compreendo que as histórias em quadrinhos (auto)biográficas podem ser fios condutores para a construção da narrativa que os estudantes constroem para si na relação que têm com a escola e a orientação para práxis da vida humana. Para Rüsen (2015, p. 58, 120), a subjetividade humana é configurada pela tensão entre a individualidade e a sociabilidade. A particularidade ou a individualidade dizem respeito à mudança temporal das formas de vida. Então, esses artefatos da cultura histórica podem sintetizar o processo de formação da identidade histórica do sujeito a partir do outro. É perceptível que a cultura juvenil forneça critérios estéticos e cognitivos para que sejam avaliados os modos como estes sujeitos apropriam-se das experiências do passado e quais os valores que os mesmos utilizam para selecioná-las e significá-las, principalmente no sentido de que o processo de individualização da humanidade fundamenta a formação do homem (RÜSEN, 2015, p. 144). Ainda está por se construir uma investigação sobre o tipo de orientação temporal que os jovens constroem quando são confrontados com narrativas históricas gráficas biográficas e autobiográficas que forneçam valores e significado históricos que façam sentido para suas vidas práticas e orientem a formação de suas identidades históricas como um processo criativo de autoconhecimento. Referências bibliográficas ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: Dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2010. FRONZA, Marcelo. O significado das histórias em quadrinhos na Educação Histórica dos jovens que estudam no Ensino

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Médio. 2007, 170p. (Dissertação de Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007. ______. A intersubjetividade e a verdade na aprendizagem histórica de jovens estudantes a partir das histórias em quadrinhos. 2012, 465p. (Tese de Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2012. GONÇALO JUNIOR. A guerra dos gibis: a formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos quadrinhos, 1933-64. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. JACKSON, Jack. Comanche Moon. New York: Reed Press, 2003. JORDANOVA, Ludmila. History in practice. New York: Oxford university Press, 2006. LEJEUNE, Philippe. Le Pacte Autobiographique. Paris: Editions de Seuil, 1996: Editora Mulheres, 2000. RÜSEN, Jörn. A razão histórica: Teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: UnB, 2001. ______. História viva: Teoria da História III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: UnB, 2007. ______. ¿Qué es la cultura histórica?: Reflexiones sobre una nueva manera de abordar la historia. [Unpublished Spanish version of the German original text in K. Füssmann, H.T. Grütter and J. Rüsen, eds. (1994). Historische Faszination. Geschichtskultur heute. Keulen, Weimar and Wenen: Böhlau, pp. 3-26]. Acesso em 27 mai. 2011, disponível em: http://www. culturahistorica.es/ruesen/cultura_historica.pdf ______. Aprendizagem histórica: esboço de uma teoria. RÜSEN, Jörn. Aprendizagem histórica: fundamentos e paradigmas. Curitiba: W.A Editores, 2012, p. 69-112. ______. Teoria da História: uma teoria da história como ciência. Curitiba: UFPR, 2015. SALIBA, Elias Thomé. Na guinada subjetiva, a memória tem futuro? In: ROCHA, Helenice; MAGALHÃES, Marcelo; GONTIJO, Rebeca (orgs.). A escrita da história escolar: memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 51-63. SCHMIDT, Maria Auxiliadora. Cognição histórica situada: que aprendizagem histórica é essa? In: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel. Aprender História: perspectivas da Educação Histórica. Ijuí: Unijuí, 2009, p. 21-51. WITEK, Joseph. Comic books as History: the narrative art of Jack Jackson, Art Spiegelman and Harvey Pekar. Jackson: University Press of Mississipi, 1989.

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ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A EXPERIÊNCIA DOCENTE NA GRADUAÇÃO E O ENSINO DAS CIVILIZAÇÕES CLÁSSICAS Maytê Regina Vieira

Ensinar História na atualidade em um mundo dominado pelo imediatismo, pelas redes sociais e pela mídia em que se constata uma avalanche de opiniões e discussões articuladas pelo senso comum e, na maior parte dos casos, sem nenhum embasamento cientifico, ficando tudo ao bel prazer de quem escreve é cada vez mais complexo. Para constatar isto basta dar uma passada de olhos no Facebook.

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De acordo com Pinsky (2005) os alunos buscam conhecimento na rede sem contextualizar ou investigar veracidade ou procedência vivendo num presentismo constante ao se deixar levar pela rápida sucessão de informações que tornam tudo velho e ultrapassado muito rapidamente. Portanto, para os autores, o desafio é preparar alunos críticos – futuros professores nos casos dos cursos de Licenciatura – que possam entender a importância da História como referência para o mundo e sua responsabilidade na preparação de cidadãos conscientes de seu papel político sendo capazes de articular o patrimônio cultural humano e o universo particular do aluno conjugando seu lugar como sujeito histórico, o que só é possível quando há o entendimento dos processos históricos e esforços de nossos antepassados que nos trouxeram até aqui. (PINSKY; PINSKY, 2005). Sendo assim, se já é difícil despertar o interesse pelo estudo da História mais atual, o desafio torna-se ainda maior quando se tratam das sociedades da Antiguidade, sejam elas, a Antiguidade Clássica ou Oriental. Quase impossível é despertar o interesse e fazer compreender a necessidade de estudo e entendimento das sociedades do Extremo Oriente. Aproveitando o fato de estar este evento aberto a temáticas ligadas à prática em sala de aula, o objetivo deste pequeno artigo é discutir e expor minha experiência, ainda que curta, com o ensino de História Antiga para a graduação do curso de História. Em geral, tem-se a organização da ementa em privilegiando as questões política e socioeconômicas. A classificação e escolha de materiais fica à critério

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dos professores que montam seu programa de aula. Neste caso específico optei por privilegiar aspectos mais ligados à cultura destes povos, tendo em vista sua influência nas demais estruturas sociais. A importância do estudo destes povos e períodos é fundamental e uma boa justificativa é a que nos dá a professora Ana Teresa Marques Gonçalves (2000): Como entender nosso mundo contemporâneo sem vermos como ele começou a ser construído? Não se consegue entender o chamado Renascimento sem se perceber o que do passado teria renascido. Da mesma forma, não se pode compreender o conceito moderno de democracia sem compará-lo com o antigo, que é em muitos aspectos diverso do atual. A própria noção de Estado foi-se alterando ao longo do tempo, e é imprescindível perceber essa alteração para entender de forma mais aprofundada o mundo em que vivemos. [...] Como entender o Fascismo sem a compreensão do que foi o fascio na Antiguidade latina? Como entender as concepções socialistas sem estudar o surgimento da propriedade privada? [...] Fala-se também muito em cidadania, em direitos e deveres dos cidadãos. Mais uma vez, trata-se de uma concepção muito antiga, que se estruturou com a formação das primeiras sociedades, dos agrupamentos humanos inicias. (GONÇALVES, 2000) Não é nenhuma novidade o uso das mais variadas fontes no ensino de História, muito se discute sobre o uso das fontes imagéticas e literárias, com especial relevância o cinema, fonte pela qual tenho predileção e que faz parte de minhas pesquisas. Geralmente a discussão versa sobre seu uso em salas de aula para os ensinos Fundamental e Médio, porém como utiliza-lo corretamente nas escolas se não houver o conhecimento dos futuros professores sobre suas possibilidades de uso? Visando isto, procurei utilizar em minhas aulas as mais variadas fontes cinematográficas e também literárias buscando, com isto, despertar o entendimento dos alunos para a Antiguidade através do uso de fontes e temáticas que foram além e, muitas vezes, passaram ao largo dos velhos esquemas de forma a dinamizar os conteúdos aliando os textos e as produções historiográficas à outras fontes, tornando possível seu diálogo e, por consequência, mais prazeroso o cansativo processo de entendimento da historiografia necessário à formação de professores. ―A História, em especial, a Antiga não se

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faz somente com documentos escritos, mas também com a cultura material, com estudo arqueológico de edifícios, estátuas, cerâmica, pintura entre outras categorias de artefatos.‖ (FUNARI, 2005. p. 96). Além das categorias apontadas por Funari, incluo também a cultura imaterial, pela qual os povos da Grécia Antiga, por exemplo, são amplamente conhecidos. Livros de literatura e filmes exploram frequentemente o imaginário acerca da mitologia grega. O conceito de imaginário é bastante abrangente, podendo ser considerado como imaginário conceitos como fantasia, lembrança, devaneio, sonho, crença não verificável, mito, romance, ficção e outros que fazem parte da mente de um homem ou de uma cultura.

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Fazem parte do imaginário as concepções pré-científicas, a ficção científica, as crenças religiosas, as produções artísticas que inventam outras realidades (pintura nãorealista, romance, etc.), as ficções políticas, os estereótipos e preconceitos sociais, etc. [...] Conviremos, portanto, em denominar de imaginário um conjunto de produções, mentais ou materializadas em obras, com base em imagens visuais (quadro, desenho, fotografia) e linguísticas (metáfora, símbolo, relato), formando conjuntos coerentes e dinâmicos, referentes a uma função simbólica no ajuste de sentidos próprios e figurados.‖ (WUNENBURGER, 2007. p. 11). Para este autor o imaginário é representação e emoção, um conjunto de imagens e/ou narrativas que produzem sentido, sendo descrito e interpretado em seu sentido secundário. Interpretações que podem levar ao entendimento do sujeitos que as usam para exprimir emoções e valores individuais e da sociedade em que estão inseridos. Com base neste entendimento do imaginário como construções e produtor de sentidos de uma dada realidade foi proposto aos alunos do 1º ano da Licenciatura uma atividade de análise da mitologia grega, com a expectativa de entendimento do sentido dos mitos para aquela sociedade, não apenas das leituras e narrativas mitológicas, mas o seu significado social embasado na percepção que, O mito, especialmente quando codificado na religião, sempre foi a base para a moralidade de uma sociedade. Com sua base mítica - uma revelação de Deus ou deuses -

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, a legitimidade de um sistema de ética era absoluta e inquestionável. Não havia nuanças de cinza, pois questionar a validade do código moral era questionar a validade do mito, e a legitimidade da própria sociedade. (BIERLEIN, 2003. p. 37) O desenvolvimento da atividade se deu da seguinte forma: cada aluno (34 no total) escolheu um mito do panteão grego, pesquisou sua narrativa e fez a tentativa de entendimento de seu sentido. Os resultados foram os mais diversos, como o entendimento de que para os gregos os deuses não eram seres perfeitos e onipresentes, ao contrário, eles eram mais próximos do homem cometiam erros, se deixavam levar pela ira, pela inveja e pelo ciúme, pelas paixões e desejos, interferindo frequentemente na vida humana para realizar seus próprios desígnios. Ao mesmo tempo em que permitiu também a constatação de que eles (os gregos) não eram absolutamente diferentes das outras sociedades de seu tempo, facultando aos deuses os fenômenos naturais que não compreendiam, isto permitiu auxiliar na desconstrução da ideia da Grécia Clássica como uma civilização milagrosa, produtora de todas as grandes ideias humanas e auxiliou no entendimento das trocas e ligações culturais entre os mais diversos povos do Mediterrâneo e Oriente Próximo. Os alunos puderam compreender e fazer conexões entre as diferentes formas de religião e estabelecer as diferenças culturais pelas quais as religiões e as crenças em deuses passaram ao longo dos séculos, mais do que considerar os exotismos pagãos do senso comum. Utilizando a mitologia consegui estabelecer visões políticas, culturais, sociais na região de influência helenística, visto que, mais que uma religião, o culto aos deuses e aos heróis regia os calendários dos festivais que determinavam o ritmo de vida. Não há como entender esta sociedade sem entender a pluralidade de crenças e o total entrelaçamento entre religião e Estado, para eles pensa-los em separado não fazia o menor sentido pois, a guerra, a lei, a medicina, a moral, o comportamento, as estações, o clima, os desastres naturais, toda explicação e justificativa partia dos pressupostos religiosos. (CARTLEDGE, 2002). Esta atividade envolvendo a análise da mitologia grega foi extremamente gratificante visto o envolvimento dos alunos na busca de referências historiográficas sobre a mitologia e inúmeras fontes com a discussão e narrativa dos mitos. Com a turma de Bacharelado – por uma questão da quantidade de horas/aula serem maiores permitindo trabalhos mais extensos – ao finalizar o cronograma sobre Roma solicitei como atividade final a

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análise de filmes utilizando a seguinte metodologia: divididos em grupos de até quatro pessoas, visto ser uma turma menor, com 20 alunos, eles escolheram um filme ambientado na Roma Antiga para debater e comparar com a historiografia atual sobre a temática. O uso de filmes, por sua vez, é bastante enriquecedor sendo utilizado como complemento analítico, não somente como ilustração ou para apontar os erros históricos, a intenção era que fosse percebido as construções e a forma como são representados os romanos nos filmes de ficção que constroem o imaginário sobre o período, como é o caso da antiga discussão sobre a atriz Elisabeth Taylor representar Cleópatra no filme homônimo do ano de 1963 sendo branca e com olhos azuis, enquanto a verdadeira Cleópatra não seria negra mas, tinha raízes gregas, persas e macedônias, portanto estaria longe do estereotipo europeu, mas não é esta a discussão.

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Obviamente eu não esperava de alunos do 1º ano da graduação, muitos acabados de sair do ensino médio, uma análise ao nível de doutorado, entretanto os resultados foram bastante satisfatórios. Suas escolhas tenderam para os filmes hollywoodianos por questões de maior facilidade de disponibilização e também conhecimento dos alunos. Os filmes escolhidos foram Gladiador (2000), Spartacus (1960), Ágora (2009) e Pompéia (2014) e Quo Vadis (1951). Vão-se quase 50 anos desde que Marc Ferro iniciou suas análises e passou a teorizar sobre o uso do cinema na História, a partir de então inúmeras discussões foram feitas, abordagens múltiplas tanto contra como a favor do seu uso fazendo crescer, e muito, os teóricos e historiadores que trabalham com imagens e cinema. O cinema é um produto cultural, industrial e produzido para gerar lucro. Podendo ser utilizado como forma de analisar como são representados os grupos, as sociedades, os fatos históricos, sendo útil para demonstrar as manifestações de mentalidades, de medos, de inconscientes sociais, de desejos e fantasias, de identidades culturais que são representados nas imagens dos filmes, de acordo com Langny (2009). [...] o cinema é fonte de história, não somente ao construir representações da realidade, específicas e datadas, mais fazendo emergir maneiras de ver, de pensar, de fazer e de sentir. Ele é fonte para a história, ainda que como documento histórico, o filme não produza, nem proponha nunca um "reflexo" direto da

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sociedade, mais uma versão mediada por razões que dizer respeito à sua função. Entretanto ele é fonte sobre a história, tal qual ela se constitui, na medida em que existem processos de escrita cinematográfica comparáveis àqueles da história mesma. (LANGNY, 2009. p. 108) Segundo Rosenstone (2010), os filmes levantam polemicas, debates que geram curiosidade pelos fatos apresentados na tela retratando personagens, ambientes, locais históricos de forma mais atraente que os livros. O longa-metragem dramático de ficção – caso dos filmes selecionados pelos grupos – giram em torno de pessoas ou momentos históricos importantes que são acompanhados pelo espectador em meio aos acontecimentos e mudanças. Mas não vemos simplesmente: através dos diálogos, músicas e trilha sonora que envolve e faz sentir. ―O filme personaliza, dramatiza e imprime emoção ao passado. Ele nos oferece a história como triunfo, angústia, felicidade, desespero, aventura, sofrimento e heroísmo.‖ (ROSENSTONE, 2010. p. 76). O que deve ser levado em consideração é que o filme é tão construído quanto a narrativa histórica, ambos dependem do ponto de vista, são recortados, editados e tem seu conteúdo escolhido pelo autor. A ideia aqui não é de valoração e sim de colocar que a narrativa cinematográfica é tão válida para trabalhar o conteúdo histórico quanto qualquer outra fonte, guardadas as devidas proporções, claro. Neste caso especifico os alunos análises satisfatórias dos filmes. Vou apresentar somente alguns exemplos dos debates e apresentações. No caso de Pompéia (2014) o grupo selecionou trechos do filme que mostram a explosão do Vesúvio e a angústia dos cidadãos tentando fugir e entender o fenômeno. Eles, os alunos, perceberam, porém a construção romantizada do protagonista que, em meio aos terremotos e explosões ao redor, busca salvar a amada. Além disto, utilizaram estes trechos para complementar a discussão sobre o fato que a erupção do vulcão causou uma tragédia que permitiu à arqueologia encontrar a cidade praticamente intacta, mantida pelas várias camadas de cinza vulcânica. Discutiram a importância da arqueologia e as descobertas que possibilitaram ter ideia da vida cotidiana de um povo que viveu há séculos. Em Ágora (2009), os debates elencaram as questões de gênero perceptíveis no esquecimento por centenas de anos da filósofa Hipatia, uma mulher grega que vivia em Alexandria e era filósofa, matemática e astrônoma e foi morta por uma turba de cristãos que

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não aceitavam suas teorias sobre o movimento dos astros e sua recusa a aceitar seu papel social como esposa e mãe, ou seja, uma mulher submissa. Foi discutido o cristianismo dos primeiros tempos, o fanatismo religioso, as questões de gênero que ainda permeiam nossa sociedade e a destruição da biblioteca de Alexandria, uma perda irreparável para a memória e para a história da humanidade.

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E, por fim, em Gladiador (2000), certamente o mais conhecido por ser uma superprodução hollywoodiana com elenco consagrado. Em sua análise o grupo usou textos da historiadora Renata Garrafoni para comparar a forma como são retratados os gladiadores romanos, seu cotidiano e a representação imagética, também apontada por eles como romantizada pela construção do protagonista, um general romano que é vendido como escravo e se torna gladiador. Foram apontadas as questões políticas, os erros históricos – a saber o fato de que o general Maximus nunca se tornou gladiador; Comodo não matou o pai, etc. – e questões como a religião particular, os gênios de cada família e a importância desta religião para os romanos. Também foi debatido pelo grupo a diferença entre os estereótipos dos gladiadores e as construções de alteridade daqueles que eram estrangeiros e, portanto, bárbaros. Os estudos de caso foram bem construídos e, no geral, me surpreenderam. A guisa de considerações finais a experiência foi gratificante e enriquecedora, acredito que tanto para mim, quanto para os alunos que perceberam inúmeras possibilidades de ensinar História Antiga e se sentiram ainda mais atraídos por ela. Mesmo com todos os empecilhos e dificuldades para demonstrar a necessidade de permanecermos ensinando e estudando sobre civilizações tão distantes, há muito sendo desenvolvidos nas pós-graduações brasileiras. Entretanto, e isto é claramente uma opinião pessoal já que este espaço me permite, o desenvolvimento das temáticas e o interesse dos alunos é uma responsabilidade do professor. Em minha graduação tive um excelente professor de História Antiga que também fugia padrões de somente elencar datas, conflitos e monarcas, certamente meu gosto pela temática provém disto. Aos formarmos professores, precisamos mostrar-lhes que existem várias possibilidades de ensino, várias formas de utilizar fontes, tecnologias e – por que não? – o bom e velho quadro negro. Utilizando as palavras do prof. Leandro Karnal, você pode dar uma aula dinâmica e interessante usando apenas quadro negro e uma aula enfadonha com todos os recursos tecnológicos, temos que saber

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como usá-los. Da mesma forma, utilizar fotografias, cinema, textos literários não terá nenhuma validade se for somente como apêndice ou ilustração para a aula é necessária a contextualização, confrontação e comparação com outros documentos. Referências BIERLEIN, J. F. Mitos paralelos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. BULFINCH, T. O livro de ouro da mitologia. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. CARTLEDGE, P. História ilustrada da Grécia Antiga. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. FUNARI, P. P. A renovação da História Antiga. In: KARNAL, L. (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2005. p. 94-107. GONÇALVES, A. T. M. Desafios da pesquisa em História Antiga no Brasil. In: Revista Dimensões, UFES, Vitória, vol. 11, jul/dez. 2000, p. 167-174. Acesso em: 10 fev. 2016. Link: http://www.periodicos.ufes.br/dimensoes/article/view/2335/1831 KARNAL, L. (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2005. p. 7-14. LAGNY, Michele. O cinema como fonte da História. In: NÓVOA, Jorge; FRESSATO, Soleni Biscouto; FEIGELSON, Kristian. (orgs.). Cinematógrafo: um olhar sobre a História. São Paulo: UNESP, 2009. p. 99-131. PINSKY, J.; PINSKY, C. B. Por uma história prazerosa e consequente. In: KARNAL, L. (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2005. p. 17-48. ROSENSTONE, Robert A. A história nos filmes, os filmes na história. São Paulo: Paz e Terra: 2010. WUNENBURGER, J.J. O imaginário. São Paulo: Loyola, 2007.

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“COMO TREINAR O SEU DRAGÃO”: A CULTURA HISTÓRICA EM TORNO DA IDADE MÉDIA E A POLÊMICA GERADA PELA BNCC Max Lanio Martins Pina

Não poderíamos deixar de perceber que nos últimos anos a Idade Média se tornou um modismo. Entendemos que nas últimas décadas houve uma grande quantidade de livros, filmes, séries de televisão e jogos eletrônicos que foram inspirados nas temáticas medievais. Assim, existe na atualidade uma cultura histórica em torno desse período que é alimentada pelo mercado cultural e pela indústria do entretenimento.

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Podemos então afirmar, que o mercado literário testemunhou o surgimento de livros ou séries deles que possuem suas ambientações épicas e fictícias inspiradas nas medievalidades. Como exemplo, a série ―As Crônicas de Gelo e Fogo‖ escrita pelo romancista e roteirista norte-americano George R. R. Martin. Os cinco volumes publicados desde 1996 até 2012 no Brasil, narram de forma fantasiosa as batalhas de uma guerra dinástica entre várias famílias concorrentes pelo controle de uma terra conhecida como ―Sete Reinos‖. Essa obra apesar de não mencionar o medievo, cria em sua narrativa panoramas imaginados e ambientados a partir dele. Outra série de livros que fez muito sucesso entre o público consumidor desse tipo de literatura é a quadrilogia ―Ciclo da Herança‖, do autor americano Christopher Paolini publicados entre 2002 e 2011. Pertencente ao gênero fantasia épica, ela narra as aventuras de Eragon, um jovem cavaleiro que ao lado do seu parceiro Shapira, um dragão com que ele divide a mesma consciência, vivem várias peripécias no mundo mítico da terra de Alagaësia. Seguindo os exemplos literários, apontamos o romance ―Os Pilares da Terra‖ do escritor inglês Ken Follett, publicado no Brasil em 2012, ele narra uma história que se passa na Inglaterra do século XII, onde dois possíveis sucessores ao trono lutarão até as últimas consequências para chegarem ao poder. Assim, como esses três exemplos, milhares de outros livros surgem a cada dia nesse mercado que segue a onda inspirativa e comercial da medievalidade.

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A televisão e o cinema não se esquivaram dessa influência. Percebemos uma variada quantidade de séries televisivas e filmes que utilizam cenários e temas orientados nesse período. Uma série com alusões a temas medievais é ―Game of Thrones‖, que exibiu sua primeira temporada pelo canal de televisão HBO em 2011, conquistando um grande sucesso com o público e com a crítica especializada no gênero, atualmente aguarda a apresentação de sua sexta e última temporada. É bom ressaltar que ela foi baseada nos livros ―As Crônicas de Gelo e Fogo‖, por isso, observamos que as histórias narradas nos livros e na televisão seguem desfechos diferentes. Outro seriado televisivo que segue essa perspectiva é ―Once Upon a Time‖, que estreou no ano de 2011 e desde então, é transmitida pelo canal a cabo ABC. É uma série dramática de fantasia que aborda o gênero contos de fadas na atualidade, porém, as histórias são mescladas sempre com cenários medievais apresentados através de seus flashbacks que reportam ao mundo das histórias infantis. Na sequencia das séries para televisão apresentamos ―Vikings‖, que estreou em 2013 no canal History e este ano aguarda a transmissão de sua quarta temporada. Sua narrativa está centrada no herói nórdico Ragnar Lothbrok, que liderou várias incursões saqueatórias ao território anglo-saxão durante o período da Alta Idade Média. Nesse sentido, ―Shrek‖ é mais um padrão a configurar essa lista, esse filme em animação é o mais famoso do gênero fantasia e comedia que se passa num mundo medieval de contos de fadas, que foi lançado em 2001 e suas sequências em 2004, 2007 e 2010. Eles narram e apresentam as peripécias do ogro Sherek, com a sua esposa a Princesa Fiona e o seu fiel amigo falante Burro. Todavia, não poderíamos deixar de fora dessa classificação o filme ―Como Treinar seu Dragão‖ de 2010 e sua sequência de 2014, nem tão pouco, nos esquecermos da serie de televisão que surgiu a partir dele e foi ao ar em 2012, 2013 e 2015 no canal infantil Cartoon Network. Ambos foram baseados em livro homônimo lançado em 2003 pela autora inglesa Cressida Cowell. Essa animação segue uma narrativa centrada no personagem vinkig chamado Soluço, que na transição da infância para a adolescência precisa demonstrar destreza matando um dragão, porém, ele faz o contrário, pois, doma o dragão Fúria da Noite, e a partir daí toda sua vila estabelecerá amizade com os dragões. Existem outros seriados e filmes, mas,

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optamos por apresentar estes porque consideramos que eles fazem sucesso com o público infantojuvenil. Uma das áreas que mais recebeu essa influência foram os jogos eletrônicos para videogame, computadores, tablets e smartphones, os quais a cada dia são tomados por histórias e aventuras épicas que se passam em um mundo fictício inspirado na Idade Média. Com a popularização desses dois últimos, o acesso aos aplicativos de jogos vem crescendo. A cada ano assistimos a produção de uma infinidade deles, como por exemplo: ―Clash of Clans‖, ―Clash of Kings‖, ―Dragon Mania: a Lenda‖, ―Medieval Craft 2: Castle Buid‖, ―Medieval Castle Defense‖, ―Medieval Apocalypse‖, ―Great Battles Medieval‖ e ―Medieval War: Strategy & Tactics‖. Todos apresentam entre 500 mil e 100 milhões de downloads no play Store do Google, mostrando assim, que a cada dia esse universo cultural tem se tornado comum na vida das nossas crianças, adolescentes e jovens.

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Os exemplos que foram citados servem de argumentos para se afirmar que a Idade Média faz parte da nossa vida cotidiana. Não há como negarmos a sua presença na contemporaneidade. Por essa razão, como professores de História devemos ajudar nossos alunos a construírem a cada dia uma imagem correta ou assertiva desse período. É relevante que todos possam encontrar o caminha da intepretação do passado de maneira segura, para que ele auxilie o presente e a vida prática de forma positiva. Por isso, a nossa provocação com o tema desta conferência sobre como treinar um dragão. Suscitamos o título dessa obra cinematográfica, porque, descobrimos a partir de conversas com alunos em sala de aula, que alguns deles acreditaram durante anos que na Idade Média existiram dragões iguais aos da televisão e dos livros. Em vista disso, esta conferência se insere dentro da polêmica que foi estabelecida em torno do atual texto da proposta do Ministério da Educação – MEC, para criação da Base Nacional Comum Curricular – BNCC, que deverá ser encaminhada ao Conselho Nacional de Educação – CNE, ainda este ano. Tal polêmica foi apresentada no famoso artigo dos professores Demétrio Magnoli e Elaine Senise Barbosa, publicado no jornal Gazeta do Povo em 08 de outubro de 2015, com o título ―História sem tempo‖. A finalidade do artigo era esclarecer à sociedade civil brasileira o perigo de se abolir do ensino de História o modelo quadripartite francês baseado em Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna, Idade Contemporânea. No lugar da tradicional forma temporal de se ensinar o passado histórico seria estabelecido um currículo fundamentado na multiculturalidade ou

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como alguns preferem chamar de temas como, por exemplo, mundos ameríndios, mundos africanos, mundos afro-brasileiros, mundos americanos, mundos europeus e por fim mundos asiáticos. A ideia predominante na proposta é que se ensine História a partir do século XVI. Para Magnoli e Barbosa um ensino centrado nessa nova proposta não leva em consideração a trajetória coletiva da história ocidental e por isso a BNCC ―rasga todas essas páginas para inaugurar o ensino de histórias paralelas de povos separados pela muralha da ‗cultura‘‖ (MAGNOLI e BARBOSA, 2015). Com isso, esses autores definem essa proposta como ideológica, o que significaria que os professores estariam abandonando a tradicional forma de ensino para se tornarem ―doutrinadores‖. O artigo citado, que foi escrito em tom denunciatório, inaugurou a crítica em relação à exclusão do ensino da Antiguidade e da Idade Média do currículo básico da educação no Brasil presentes na BNCC. De acordo com os autores ao se extinguir a história da Grécia e de Roma ―os alunos nunca ouvirão falar das raízes do conceito de cidadania‖, bem como, a eliminação das catedrais medievais, do comércio medieval, da organização da vida urbana nesse período e até mesmo da onipresença da Igreja Católica, privará aos estudantes compreenderem as rupturas que ―originaram a modernidade‖ (MAGNOLI e BARBOSA, 2015). O respeitado professor e historiador da UNICAMP Pedro Paulo Funari, teceu sua opinião sobre esse assunto no qual ele afirmou que essa exclusão afetará de forma específica as pessoas mais humildes, tendo em vista, que será tirado delas a oportunidade de se conhecer a trajetória da história do mundo ocidental, já que a BNCC atingirá toda educação básica brasileira a qual está voltada para o atendimento daqueles que não podem pagar pelo ensino privado. Tal prejuízo ao se ―amputar aspectos essenciais da vida cultural brasileira, ligadas ao mundo antigo e medieval‖ (FUNARI, 2015), estaria no fato de que essas pessoas não poderiam exercer de forma plena sua cidadania. O Fórum dos Profissionais de História Antiga e Medieval publicou uma carta no dia 26 de novembro de 2015, repudiando o texto provisório da BNCC. Para os autores da carta o texto da proposta do MEC traria como ―consequência a limitação da autonomia pedagógica de educadores e educadoras da área de História em todo o território nacional e em todos os segmentos do ensino‖ (Fórum dos profissionais de história antiga e medieval, 2015).

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Além disso, eles afirmaram que a exclusão de História Antiga e Medieval baseada na ―falsa assunção de que só é possível pensar a Antiguidade e o Medievo sob o ponto de vista eurocêntrico‖ (Fórum dos profissionais de história antiga e medieval, 2015), torna a proposta extremamente empobrecedora, pois não se leva em conta uma perspectiva mais ampla. Seja a América ou a África, todas tiveram uma relação histórica que precede o século XVI. Daí a afirmativa enfática de que o mundo não começou no século XVI. Destacamos ainda a carta que a diretoria da Associação Brasileira de Estudos Medievais – ABREM, publicou em novembro de 2015. Nela os pesquisadores de História Medieval se posicionam contra a proposta curricular da BNCC, citando o argumento que é um fragmento da carta aberta dos Professores universitários da Região Norte e Nordeste do Brasil, que foi publicado em 25 de novembro de 2015, no Recife que diz:

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Entendemos que os conteúdos de história Antiga e Medieval na educação básica são indispensáveis ao desenvolvimento da capacidade reflexiva dos estudantes para lidar com aspectos político-culturais que compõem as nossas experiências cotidianas, tanto no campo das práticas religiosas, como o cristianismo, quanto no campo das práticas políticas, como concepção de democracia e res publica, para citar alguns exemplos; além disso, contribui para desnaturalizar a forma como nossa sociedade está organizada, porquanto permite entendê-la como uma invenção humana. (ABREM, 2015). Com a argumentação acima a ABREM repudiou a ideia de se ensinar História somente a partir do século XVI e questionou como as crianças e adolescentes que se reúnem para jogos ambientados na Idade Média, que leem livros inspirados em temas medievais, que lotam salas de cinema quando os filmes propõem histórias de cavaleiros ou abadias, irão distinguir os limites entre a realidade e a ficção. Portanto, defendemos que saber distinguir os limites entre o que é real e o que é ficção torna-se fundamental para as ações da/na vida prática de qualquer indivíduo. Nesse sentido, buscamos a máxima do pensamento de Jörn Rüsen que afirma ser a consciência histórica a capacidade que os sujeitos possuem para agir intencionalmente no

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tempo, a partir da sua interpretação do passado, sempre perspectivando um futuro (RÜSEN, 2001). Para se ter um futuro diferente do passado é necessário conhecer esse passado. Compreendemos que conceituar cognitivamente a Idade Média é de suma importância para os estudantes, pois lhes permitem entender que a atual realidade social, politica, econômica, cultural e religiosa do mundo é uma criação humana e não uma entidade abstrata da qual se deve seguir cegamente. Entendemos ainda que ao compreender outras realidades históricas os indivíduos serão capazes de sonhar e de lutar por um futuro que lhes seja realmente diferente do passado. É direito de todos acreditarem no que quiserem, em dragões, feiticeiros, bruxas, duendes, gnomos, fadas, unicórnios, etc. Porém, como professores de História, desejamos que nossos alunos alcancem ou desenvolvam em suas vidas no mínimo um pouco de erudição cultural, mesmo que isso seja utopia. Partimos do princípio que todos devem assistir diversos filmes, muitos seriados de televisão, que leiam vários livros e que se divirtam com jogos eletrônicos. Mas que acima de tudo isso, saibam distinguir entre a História e a ficção, entre a realidade e a fantasia e ainda assim, tenham condições intelectuais e históricas, para se posicionarem da melhor maneira possível diante de toda as informações que a pósmodernidade nos sujeita. Por isso, nos posicionamos contra a retirada da Antiguidade e da Idade Média do currículo da educação básica por acreditar que essa não é a melhor maneira para auxiliar os estudantes na conquista de sua autonomia ou de sua libertação das amarras do passado. Referências ABREM. Carta da ABREM sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Novembro de 2015. Disponível em: . Acesso em: 05 fev. 2015. BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Editora Globo, 2006 FÓRUM DOS PROFISSIONAIS DE HISTÓRIA ANTIGA E MEDIEVAL. Carta de repúdio à Base Nacional Comum Curricular de História. Rio de Janeiro, 26 de novembro de 2015. Disponível em:

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. Acesso em: 05 fev. 2015. FUNARI, Pedro Paulo. Mudanças no ensino de história são prejudiciais, diz professor da Unicamp. Folha de São Paulo. Painel do Leitor. 23/11/15. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/paineldoleitor/2015/11/1709642mudancas-no-ensino-de-historia-sao-prejudiciais-diz-professor-daunicamp.Shtml?cmpid=compfb>. Acesso em: 05 fev. 2015. RÜSEN, Jörn. Razão histórica - Teoria da História: fundamentos da ciência histórica. Trad. Estevão de Rezende Martins. Brasília: Ed. UnB, 2001. MAGNOLI, Demétrio; BARBOSA, Elaine Senise. História sem tempo. Gazeta do Povo. Sessão Opinião. 08/10/2015. Disponível em: . Acesso em: 05 fev. 2015.

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A EDUCAÇÃO PRECOCE PARA UM INEXORÁVEL FIM: A MORTE NA OBRA DOUTRINA PARA CRIANÇAS (12741276) DE RAMON LLULL (1232-1315) Renan Marques Birro Priscila Viegas dos Santos

Na tradição filosófica da Idade Média, o tema da morte é bastante comum, assim como na filosofia clássica. Cícero (106-43 a. C.), por exemplo, declarou que ―toda a vida filosofia é um comentário sobre a morte‖ (CÍCERO, Disputas Tusculanas, I, XXX, 74,). A filosofia cristã, por sua vez, deu grande importância à morte, sobretudo após a carta Paulina aos Coríntios, quando o apóstolo chamou a atenção para a importância de se refletir sobre a corrupção do homem exterior, aquilo que está relacionado ao corpo corruptível em relação ao homem interior, a alma. Dessa forma, a morte não era novidade entre os intelectuais. Porém, os medievais buscaram desenvolver e aprofundar seus conhecimentos a respeito dessa temática (COSTA, 2005: 238). Neste ínterim, o filósofo catalão Ramon Llull não apenas refletiu sobre o tema da morte em suas obras, como também preservou, desenvolveu e se aprofundou nesta discussão comum aos filósofos, preservando a tradição filosófica que se estendia desde a Antiguidade Clássica até o período medieval e mais além (COSTA, 2005: 238). Não apenas esta tradição foi desenvolvida por Ramon. O autor também desenvolveu um estilo de pedagogia cristã, de maneira que alguns estudiosos o consideram um dos primeiros pedagogos cristãos (PALOU, s/d: 1). Suas obras, verdadeiros manuais pautados na ética e na moral religiosa, descrevem como deveria ser a conduta de todo cristão, uma vez que a conduta dos homens durante aquele período era definida pela religião (MARTINS, 2014: 156). A obra utilizada para este estudo, Doutrina para crianças (12741276), encontra paralelos com as demais produções desse filósofo catalão. Como se trata de uma narrativa, modelo de texto que, segundo Dayse Martins (2014), ―são importantes como estilo de transmissão das experiências mais simples da vida cotidiana e dos grandes eventos. Em sua essência, a narrativa constitui elemento participante do ato educativo‖ (MARTINS, 2014: 158). Desta forma,

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podemos compreender melhor a escolha desse estilo literário para suas obras, pois por meio da narrativa ele poderia alcançar um de seus objetivos: produzir reflexões que combatessem os erros dos infiéis. É necessário conhecermos primeiro as influências do autor e seu contexto para melhor compreender a finalidade da obra. É através do contexto social do autor que podemos obter informações que nos possibilitam compreender melhor o contexto de produção do documento. Sobre a Doutrina

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Muito devoto, Ramon Llull passou sua vida produzindo textos que continham a essência de suas reflexões sobre Deus e sobre a fé, como forma de indicar o caminho divino às pessoas, fossem elas cristãs ou não. Também podemos observar na obra a preocupação do pai com a educação do filho, não apenas no aspecto religioso, como também com sua vida social. Assim, podemos entender a abordagem do autor ao escrever a obra sobre suas perspectivas: A primeira é de caráter religioso, catequético, o que reforça a ideia já mencionada anteriormente sobre as obras do filósofo serem consideradas um manual pedagógico religioso; a segunda trata do caráter social e moral, trata das coisas materiais, assim como das ciências. Na obra Doutrina para crianças (1274-1276), Llull afirmou que antes da criança aprender sobre as ciências com seu progenitor, ―no princípio o homem deve mostrar a seu filho as coisas que são gerais no mundo para que ele saiba descer até as especiais‖ (LLULL, 1274: 1)11, ou seja, ela precisa aprender a ler e entender o que leu. Deste modo, ela pode receber indicações de livros que mostrem o caminho divino, para assim elevar seus pensamentos a Deus, desejar servir e amá-lo acima de tudo. Ademais, ela não perderia tempo com coisas profanas, pois a vida é curta e ―a morte se aproxima de nós todos os dias‖ (LLULL, 1274: 1) 12.

―al comensament deu hom mostrar a son fill les coses qui son generals em lo mon, per que sapia devallar a les specials.‖ Ramon Llull, Libre de Doctrina Pueril, Del Prolech, 1. 12 ―la mort sacosta a nos tots jorns‖ Ramon Llull, Libre de Doctrina Pueril, Del Prolech, 1. 11

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Educar a criança no caminho divino significa ensinar as virtudes de Deus, isto é, o conhecimento das coisas boas, uma vez que as crianças desde muito pequenas são acostumadas ―à boa educação ou à má‖ (LLULL, 1274: XCI). Para o Filósofo, há dois tipos de educação: a que pertence ao corpo e a que diz respeito à alma. A do corpo está relacionada aos cinco sentidos: visão, audição, olfato, paladar e tato. E a educação da Alma ―é feita nas três propriedades da alma, isto é, na memória, no entendimento e na vontade‖ (LLULL, 1274: XCI). Conhecer a Deus é o ponto central na Doutrina. Conhecer a perfeição e a eternidade é a maior honra que o homem pode ter, pois segundo o autor, não há nada melhor e mais perfeito que conhecer a Trindade e agradar o Senhor. Satisfazer a alma é cumprir os mandamentos divinos ao se afastar do mal. Menosprezar a glória terrena é o caminho para contemplar a glória sem fim, a eternidade ao lado de Deus, em que ―o Paraíso é ver Deus e estar com Ele em glória‖ (LLULL, 1274: C) 13. A morte no século xiii Das temáticas pregadas nos sermões 14, a pobreza espiritual era muito recorrente: um bom exemplo é o sermão sobre a morte do usurário. Nessa época, o pensamento sobre a morte tornou-se mais frequente, ou ao menos mais perceptível. Sendo assim, a Igreja passou a adotar medidas que pudessem atrair os seus fiéis. Uma dessas medidas foi incorporar a temática da morte, que ganhou especial popularidade por meio dos frades medicantes que agregaram a temática aos seus sermões. Assim, ―sob pressão da Igreja e por medo do Além, o homem que sentia a morte chegar queria prevenir-se com as garantias espirituais‖ (ARIÈS, 2012: 113). No século XIV, em meio à crise que o Ocidente europeu passava com o avanço ataque da peste, da fome e constantes guerras, a morte ganhou forma por meio da Dança Macabra, que representava ―Paradís es ver Deu e esses ab Deu em gloria.‖ Ramon Llull, Libre de Doctrina Pueril, Cap. 100. 14 Na Idade Média os sermões eram usados como meio de cristianização e de instrução, uma vez que a sociedade era a maioria iletrada. Sendo assim, se fazia necessário usar outros meios que pudessem atingir toda a sociedade, nobres, intelectuais ou iletrados, desta forma os sermões são apresentados como meio mais prático e eficiente para alcançar o objetivo de ―produzir na prática comportamentos ou condutas tidas como legítimas e úteis.‖ (PARMEGIANI, 2008: 22). 13

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aqueles que se encontravam entre o mundo dos mortos, a ação biológica que igualava a todos. A mensagem da morte graças aos sermões ficou ainda mais acentuada ainda com a nova forma de expressão que se deu por volta do final do período medieval (final do séc.XV), a saber, por meio da gravura. A mensagem exposta por esses dois meios, a pregação e a gravura, ―poderiam reproduzir a ideia da morte com um conceito muito simples, direto e real, de forma nítida e violenta‖ (HUIZINGA, 2013: 221). Neste ínterim, a Igreja Católica era a maior responsável pelo crescente pensamento sobre a morte e o Além. Logo, a preocupação dos cristãos em relação à morte e o Além são perceptíveis nos indícios históricos desta época, pois a existência de uma vida após a morte causava inquietação e ―se revestia de caráter apavorante, pois nem todos, apesar de esperarem a salvação, tinham a certeza de que ela efetivamente ocorreria‖ (OLIVEIRA, 2012: 1).

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As incertezas da vida levavam os medievais a estarem preparados a todo tempo: ―o homem medieval utilizava sua fraqueza, tendo como base o medo da morte, da fome, do purgatório e do inferno, para produzir sua força, desejo e motivação de praticar o ‗bem‘ afirmando a cada dia a fé em Deus.‖ (CAETANO, 2012:39). Deste modo, ele estaria preparado e aguardaria a morte em seu leito com mais alivio, diminuindo a pressão relacionada com a passagem do mundo terreno para o além (CAETANO, 2012: 40). Nesse contexto, o pensamento sobre a morte saiu da perspectiva do contato com o passado e os ancestrais para ser pensado como algo do futuro. ―A morte como fato, o trespasse, só representa uma etapa, um momento em um sistema de relações complexas entre este mundo e o Além, entre os vivos e os defuntos‖ (LAUWERS, 2002: 245). Assim, a preocupação quanto ao por vir após a morte causava medo, a saber, um profundo receio de ser destinado ao inferno, ganhou mais importância no século XIII do que a causa de morrer. O momento do trespasse, portanto, era representado como um momento de espera, um ritual coletivo, uma cerimônia publica compartilhada pela família e pela sociedade. A angústia dos cristãos era maior se determinada pessoa não estava pronta para morrer: a maior preocupação era a salvação da alma.

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A morte é um dos fatores primordiais que leva a humanidade a busca constante do mistério da alma, uma perspectiva religiosa que se formula ao longo da existência; pois a alma não pode entrar no ―reino dos céus‖ por outro caminho se não aquele determinado pela religiosidade de cada individuo que se conduz pela fé. (CAETANO, 2012: 29). O ritual de passagem, o momento do trespasse, passou a ser significativo para a sociedade medieval, pois acreditavam que aqueles que não tinham uma boa passagem voltavam do mundo dos mortos e ficavam a vagar, eram considerados fantasmas maléficos, em que ―apresentam para a comunidade dos vivos o perigo de uma mácula.‖ (SCHMITT, 1994: 17). Desta forma, analisar a morte de maneira mais global nos leva a observar algumas noções comuns, compartilhadas pelo autor da obra Doutrina para Crianças. Ramon Llull, para descrever os mistérios da morte, usou algumas noções simbólicas, tal como: alma, corpo, inferno, paraíso, salvação e danação. Sendo assim, por meio da analise semântica como meio de traduzir as ideias expostas pelo autor com base em seu contexto, traçaremos esse caminho para compreendermos a forma como a morte é representada pelo autor. A alma e o corpo A fé era um dos fundamentos do medievo. O medo, por sua vez, foi um dos fatores mais relacionados com a crença no divino. O medo da morte não era um medo sem controle, mas que pesava quando se tratava da morte da alma, a maior preocupação. Pois, ―para la teología cristiana, el hombre está compuesto de cuerpo y alma, los cuales permanecen unidos hasta la llegada de la muerte biológica, en cuyo momento se separará alma y cuerpo‖ (MIRALLES, 2009: 292). A morte física não era tão temida, mas a morte espiritual, a morte da alma que passou a incomodar aqueles que se encontravam distantes da fé católica. Desta forma, para muitos, o morrer não significava apenas a morte do corpo físico, mas implicava no que estaria por vir. A ―morte domesticada‖, como ficou conhecida até a Alta Idade Média e caracterizada como o sono prolongado, ganhou a partir do século XII e XIII uma visão diferenciada. A leitura antiga da morte tornou-se grosseira e foi considerada como o rompimento entre o corpo e a alma.

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A morte biológica não era a maior preocupação, mas a danação após o fim desta vida. A mensagem cristã acentuava que ―o homem, para ter uma boa morte, deveria controlar e disciplinar os desejos do corpo‖ (CAETANO, 2012: 11). O medo de não estar pronto para a derradeira hora guiava o homem medieval no cotidiano. O ato de voltar-se para Deus, assim, levava o homem medieval às ―manifestações de piedade, praticando todas as normas consideradas sagradas, inibindo as fantasias, a luxuria e ‗todos os desejos da carne‘.‖ (CAETANO, 2012: 32). Para Ramon Llull, temer a morte corporal era algo natural. Mas o temor da morte por medo de servir a Deus era o pior temor que se podia ter, pois a morte a serviço de Deus é uma honra e louvor, um produto do Espírito Santo; esta noção ganhou muita força com as Cruzadas, quando a morte em nome de Deus garantia a salvação e honras terrenas e celestiais. Ser um soldado de Cristo e padecer na terra era, em última instância, sinais de desprendimento do material, de entrega total ao Salvador e de esperança na vida em gozo eterno. Ao tomar o Filósofo, assim ele advertiu seu filho: Filho, sabes por que a morte é temível? Porque não podes fugir dela e não sabes quando ela te levará. Assim, se temes a morte, que não pode te matar, mas somente teu corpo, temerás a Deus, filho, que pode colocar teu corpo e tua alma no fogo perdurável (LLULL, 1274: XXXVI)15.

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A seleção de palavras interligadas entre si sobre determinado tema é comum no campo semântico, que se busca compreender o significado da palavra e sua relação com o tema central proposto dentro de um discurso. Portanto, a alma e o corpo foram associados à morte em diferentes aspectos. A alma é o princípio imaterial que sobrevive à dissolução corpórea. A alma é simultaneamente parte integrada ao corpo e objeto de juízo divino, razão pela qual ele pode castigá-la ou recompensá-la. Ainda que o corpo tenha sido também destinado à salvação, ele se tornou corruptível e impulsionador do homem ao pecado, não mais sendo digno do ato remissor crístico. Em Tomás de Aquino, por fim, a alma ―¿Sabs, fill, la mort per que es temable? Per so ocar no li pots fugir e no sabs quant te pendrá: on si la morte, qui not pot auciure mas lo cors, tems, tembrás ja, fill, Deu, qui lo cors e la anima te pot metre en foch perdurable.‖ Ramon Llull, Libre de Doctrina Pueril, Cap. 36: 9. 15

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foi considerada a forma corporis, i.e., aquilo que confere vitalidade ao homem (SCHÜLER, 2002: 36; SALVATI, 2003: 14). A alma, desta feita, é uma parcela da essência humana que não morre; mas o corpo, enquanto matéria, voltará ao pó (Gn 3,19) para que a alma consiga se libertar e viver a eternidade para a qual ela foi criada. Porém, esse destino eterno que ela seguirá dependerá do caminho que o homem escolher seguir durante a vida, manifesto através do corpo. O homem pode, então, seguir o caminho da obediência aos mandamentos divinos ou o caminho do pecado. Desta forma, essa relação entre corpo e alma, podemos considerar, dentro deste discurso, como uma relação de associação em que um está ligado ao outro. A morte é, nesses termos, a separação do corpo e da alma, do corporal do espiritual. O autor apresentou duas mortes: ―a morte corporal aproxima a alma virtuosa de Deus, que vai para o Paraíso quando o corpo morre. E a espiritual que existe na alma pecadora aprisiona o corpo para suportar o eterno fogo infernal, e o submete a infinitos trabalhos.‖ (LLULL, 1274: LXXXVIII. 1)16. La muerte corporal no es más que la disolución de la carne que vuelve a la tierra de donde fue tomada. Sin embargo, el alma esperará al juicio final- momento en el que volverá a unirse a su cuerpo mortal- y recibirá el premio o castigo que le corresponda por sus buenas o males acciones durante su vida terrenal. (MIRALLES, 2009: 293). A questão do corpo era presente, principalmente porque estava vinculado ao pecado sexual durante Idade Média. Ele foi considerado a prisão da alma e, quando a morte chegasse, a alma se libertaria desse cárcere pecaminoso; desta forma, o homem deveria cuidar da alma, e o cuidado com a alma garantiria a salvação dela. Santo Agostinho também compartilhava a ideia da existência de duas mortes. Segundo Isabel Mira Miralles, Santo Agostinho considerava que a morte espiritual era ocasionada pelo pecado e por ―Mort corporal es departiment de cors e danima, e mort espiritual es en lanima quis lunya de Deus; e per assò, fill, son dos morts: la mort corporal, qui acosta lanima vertuosa a Deus, la qual va en paradis con lo cors mor, e la mort espiritual, qui es en lanima pecadora e estoge lo cors a sostenir eternalment foch infernal, e fa esses sotsmesa a infinits trebays. Ramon Llull, Libre de Doctrina Pueril, Cap. 88: 1. 16

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isso era mais temida. Porém, para o justo, a morte da carne significava o ganho de uma vida melhor na verdadeira pátria celestial, pois a vida é passageira (MIRALLES, 2009: 295). É possível ainda relembrar os conselhos sobre a morte herdados pelos medievais do apóstolo Paulo. Na Carta aos Filipenses, ao comentar das provações que enfrentou e certamente ao temer o abandono da fé cristã por receio da perseguição, afirmou que Segundo minha intensa expectação e esperança, de modo que em nada serei confundido; antes, com toda confiança, Cristo será, tanto agora como sempre, engrandecido no meu corpo, seja pela vida, seja pela morte. Porque para mim o viver é Cristo, e o morrer é ganho (Fl 1,20-21. O grifo é nosso).

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Na realidade, a situação também foi expressa em outras cartas paulinas, como em Coríntios. O esforço do Apóstolo não é um mero reviver externo da vida mortal e a morte de Cristo, mas a participação e, de maneira metafórica, a experimentação do sofrimento crístico - ou seja, tomar a Cruz. A renúncia total, inclusive da própria vida, que garante a verdadeira vida, a saber, a vida eterna. ―É a lógica paradoxal da cruz de Cristo que marca indelevelmente o apóstolo: da morte nasce a vida‖ (BARBAGLIO, 1989: 433). Ao retomar o Filósofo e seu contexto, Ramon Llull aconselhou seu filho a pensar na morte para assim desdenhar os desejos mundanos: não se sabe quando a hora irá chegar, pois, pior que morrer uma vez, é morrer todos os dias no fogo infernal. Da morte corporal o homem não pode se livrar, mas a ―morte da alma‖ é evitável. O homem foi criado para honrar a Deus, e pensar na morte o inclinava a viver para servir a Ele. Filho, a ti convém morrer, queiras ou não. Logo, como tens que morrer, queiras morrer para honrar aquele Senhor que te criou, que te deu tudo quanto existe, que pode te dar o fogo perdurável, que quis te dar a glória que não tem fim e que por teu amor quis morrer. (LLULL, 1274: VIII. 16)17.

―amorir te cové, fill, vulles o no: e donchs, pus que has a murir, vulles murir per honrar aquell senyor quit há creat e quet dona tot quant has, e quit pot dar 17

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Nesses termos, o autor escreveu que a morte dependeria da postura de cada indivíduo, pois não exige exatamente uma morte cruel, já que a mais temível se tratava da morte da alma, a segunda morte que destinará a condenação para a eternidade. Essa reflexão, que o autor direcionou ao seu filho, pode ser analisada, segundo o conceito de representação, como uma manifestação discursiva de noções ideológicas de um grupo – ou campo – imposto ao outro, que aparenta um grau de universalidade fundado na razão. No entanto, tal relação é elaborada segundo um ponto de vista social, ou seja, da Igreja e dos seus pensadores. Esta é a razão pela qual o filho deveria morrer para honrar a Deus e em condições para tanto; caso contrário, a recompensa seria o fogo perdurável que representa o segundo lugar no Além, o Inferno. Essa razão é descrita segundo o interesse do autor que seria de convencer seu filho a desejar o caminho da honra a Deus. O além: inferno e paraíso Até a Alta Idade Média a ―Geografia do Além‖, como foi chamada, estava dividida em duas dimensões: o Paraíso e o Inferno. Mas, a partir do século XII, um novo lugar foi criado: o Purgatório. Os homens bons iriam para o Paraíso, e o segundo lugar, o Inferno, era destinado aos perversos. O Purgatório, por sua vez, surgiu como um lugar de penitência, ―uma vez que este local era visto como um espaço temporário no pagamento dos pecados veniais‖ (ZIERER, 2008: 23). Jean-Claude Schmitt, em seu livro Os vivos e os mortos na sociedade medieval, descreveu a forte influência da Igreja sobre a sociedade leiga e sobre os religiosos, que despertou uma moral religiosa que alertava sobre o mal do pecado, os castigos e as penitências, assim como sobre a salvação. Foi nesse contexto, segundo o autor, que o imaginário sobre o Purgatório nasceu, no século XII, uma vez que ―todo cristão podia esperar ser salvo, mas com a condição de sofrer depois da morte castigos reparadores cuja duração e intensidade dependiam‖ (SCHMITT, 1994: 18), sobretudo, das práticas religiosas e das boas ações daqueles que estavam vivos. Nesse caso, o morto dependia das preces, missas e esmolas dos vivos, principalmente seus familiares e foch perdurable e quit vol dar gloria qui no ha fi, e qui per la tua amor es vulgut murir. Ramon Llull, Libre de Doctrina Pueril, Cap. 8.

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amigos, que deveriam agir dessa maneira pela salvação da alma do defunto. Mas quem se dedicou especialmente sobre o nascimento do Purgatório foi o medievalista Jacques Le Goff. Com o nascimento e a criação desse novo espaço espiritual destinado aos pecadores veniais que ainda poderiam ser redimidos, foi preciso uma categorização de cristãos em quatro grupos, segundo as leituras de Agostinho. Assim, o primeiro grupo daqueles que tem apenas o pecado original seria composto pelas crianças, que não estavam relacionadas a nenhum dos três lugares do além: Paraíso, Inferno ou Purgatório. Para o Paraíso iriam os bons; o limbo seria o espaço destinado à morada dos justos da Antiga Aliança e das crianças mortas sem batismo; o Inferno era dedicado aos maus; já ―os não inteiramente maus e os não inteiramente bons terão de passar pelo Purgatório antes de seguir para o Paraíso‖ (LE GOFF, 1995: 263). No século XII, essas quatro dimensões se reduz apenas ao Inferno, Paraíso e Purgatório.

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O Purgatório era o espaço sine qua non para o pagamento das penitências; mas Llull demostrou que sua vontade era que seu filho alcançasse a salvação da alma sem passar pelo jugo do Purgatório. Desta forma, ele escreveu que seu filho cumprisse as penitências apontadas pelos padres todos os dias, para que seus pecados fossem perdoados e assim ele pudesse receber a bem-aventurança do Paraíso, lugar para onde vão os santos. E ―por isso, enquanto estás neste mundo, filho, faz penitência, pois no outro século será dada a sentença da glória eterna ou o fogo infernal.‖ (LLULL, 1274: XXVI, 4)18. No discurso do Filósofo catalão, o Inferno foi representado como um lugar no centro da terra, uma espécie de caldeirão com óleo fervendo, com cheiro forte (provavelmente de enxofre), fechado e preenchido pelos gritos dos sofredores, de onde ninguém pode fugir. Assim, Llull aconselhou que seu filho meditasse sobre esse lugar para que ele pudesse temer a Deus e se afastar das práticas pecaminosas que poderiam levá-lo para lá.

―dementre que est viu, fill, em aquest mon fé penitencia; car em l altre segle donada es la sentencia de gloria eternal o de foch infernal‖. Ramon Llull, Libre de Doctrina Pueril, Cap. 26, 4. 18

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O Inferno era o lugar para onde iriam os maus, ou seja, aqueles que não deram atenção à palavra do Senhor e dedicaram seus dias a uma vida de prazeres terrenos. O discurso sobre a existência desse segundo lugar no Além, o Inferno, tornou-se constante durante os séculos XII e XIII, pois a sociedade vivia um apogeu econômico e muitos cristãos se desviavam da fé para viver os prazeres que o dinheiro podia proporcionar, o pecado da ambição chegou a ser considerada a raiz de todo caos que a sociedade enfrentava, como esta escrito em I Timóteo 6,10: ―Porque o amor ao dinheiro é a raiz de toda a espécie de males; e nessa cobiça alguns se desviaram da fé, e se traspassaram a si mesmos com muitas dores.‖. Diferentemente dos demais pregadores da época, Ramon dedicou-se a tratar na obra também sobre o paraíso, o lugar dos salvos. Oposto ao inferno, o Paraíso era simbolizado pela possibilidade de contemplar a face de Deus. Llull escreveu para seu filho, para que ele nunca parasse de pensar nessa bem-aventurança. Mesmo que quisesse, ele não conseguia encontrar palavras para contar a maravilha da Glória do Paraíso, um local indescritível. Analogamente, ele sugeriu que seu filho meditasse sobre o Inferno, para assim temer a Deus, e aconselhou que ele refletisse sobre o Paraíso para comparar a riqueza que estaria por vir. Amável filho, considera freqüentemente esta Glória da qual te falo, para que ali estejas, e relembra o breve tempo desta vaidade mundana, pela qual muitos homens perdem a Glória celestial; faz esta consideração, comparando o bem-estar deste mundo com a Glória do outro século, para que entendas como o sábio mercador é aquele que, por um dinheiro, sabe ter maior tesouro que toda a bem-aventurança deste mundo.( LLULL, 1274: C. 8)19. Os discursos não são textos transparentes, pois eles carregam diferentes intenções e estratégias que variam de acordo com cada autor. Desta forma, podemos observar nas palavras do beato a intenção de tentar convencer não apenas seu filho sobre a escolha do caminho que leva o homem a salvação, mas todos aqueles que leriam ―Amable fill, considera sovin en esta gloria de quet parle, per so que he sies; e remembra lo breu temps d esta vanitat mundana per la qual molt hom pert la celestial gloria; e fé en ta consideracio comparacio de la benanansa daquest mon e de gloria del altre segle, e entén com savi mercader es qui per un diner sab aver major tresor que total a benenansa dquaest mon.‖ Ramon Llull, Libre de Doctrina Pueril, Cap. 100, 8. 19

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a obra, como já exposto anteriormente, pois se tratava de uma obra com clara intenção de atuar como um manual pedagógico religioso. O medo do Inferno era mais comum do que a vontade de descansar no Paraíso e receber as bem-aventuranças. Porém, Llull apresentou ao filho mais informações sobre a recompensa celestial do que do fogo perdurável, para que assim ele amasse a Deus a cima de todas as coisas e desejasse de todo coração o Paraíso em vez de temer o Inferno. Llull externou seu desejo maior, a saber, que seu filho fosse tão reto aos olhos de Deus a ponto de ir diretamente para o Paraíso. Essa leitura é notada pela pontual menção ao espaço intermediário: ―[...] outro é o Inferno que é chamado Purgatório, no qual o homem faz penitência porque não a cumpriu neste mundo‖ (LLULL, 1274: XCIX. 1)20. Essa é uma das poucas vezes que o Filósofo fez referência à existência do terceiro lugar do Além e praticamente igualado em desprestígio ao comum espaço dos pecadores. Amável filho, assim como é boa coisa considerar a Glória do Paraíso para que o homem ame a Deus, é boa coisa considerar as penas infernais para que o homem tema a Deus, que pode dá-las a quem quiser. Logo, como tu temes a Deus, desejo mostrar que deves cogitar as penas infernais de diversas maneiras. (LLULL, 1274: XCIX. 2)21.

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Para os que viveram dignamente, obedecendo os mandamentos, está o Paraíso, de onde vem a verdadeira recompensa. Tal recompensa viria com salvação da alma que incentivava as pessoas a se tornarem cada vez mais devotas, isto é, a se prepararem para morte: ―Saibas filho, que a morte natural não rende frutos nem recompensa, aquele que ama não sabe morrer e quem tem medo de morrer não está em estado de salvação‖ (LLULL, 1274: VIII. 20)22.

―[...] lautre es lo infern qui es apellat purgatori, en lo qual hom fa penitencia per s ocar no la cumplida em aquest mon‖ Ramon Llull, Libre de Doctrina Pueril, Cap. 99, 1. 21 ―Amable fill, en axi com es bona cosa considerar en la gloria de paradis per so que hom am Deu, en axi es bona cosa considerar en les penes infernal, per so que hom tema Deu qui les pot donar a quis vol. On, per assò que tu temes Deu, vull mostrar que tu degues cogitar en les infernals penes, en diverses maneres.‖ Ramon Llull, Libre de Doctrina Pueril, Cap. 99, 2. 22 ―Sapies, fill, que mort natural no ret fruyt ne gazardó, ne aquell qui no ama no sab murir, ne qui no gosa murir no es en estament de salvacio‖. Ramon Llull, Libre de Doctrina Pueril, Cap. 8, 20. 20

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De acordo com o Filósofo, o que lhes garantia tal recompensa pela vida devota a Deus era o que Cristo fez pelos homens. Em suma, Deus tornara-se homem, passara pelas tentações mundanas, e vencera cada uma delas, como nos quarentas dias no deserto, ao sofrer a tentação satânica. Por fim, Jesus foi levado à morte, ressuscitou e teve seu corpo glorificado. Para ser exato, ele estava na glória com o Pai, pois este mundo de pessoas impuras e corruptíveis não seria digno de tê-lo. Na ascensão do Filho de Deus está significada a ascensão e a elevação que o teu corpo terá no céu, filho, no dia do juízo, se fores neste mundo um servidor, amante e louvador do Filho de Deus. Pois assim como o Filho de Deus veio a este mundo tomar a nossa natureza e se elevar aos céus com ela, subirão aos céus todos os corpos daqueles e daquelas que neste mundo foram Seus servidores, que acreditaram na Sua encarnação e choraram para honrar Seus honramentos. (LLULL, 1274: XI. 2)23. O desejo de estar com Ele no Paraíso e a ciência de que o tempo na terra era curto levou os homens da Idade Média a praticar a piedade, aspirando pelo descanso eterno ao lado do Salvador. Llull alertou seu filho neste sentido ao escrever: ―Filho, se desejas te elevar lá onde está Jesus Cristo, eleva teu pensamento e teu desejo a Ele, desce tua lembrança à vileza de onde vieste e à falta na qual estás neste mundo para que sejas estimado no outro.‖ (LLULL, 1274: XI. 6)24. A vida, portanto, é dominada pelo pensamento da morte, e uma morte que não é o horror físico ou moral da agonia, mas a ausência de vida, o vazio da vida, cuja incitação envolve a razão a não se

―En lascensio del Fill de Deu es significada lasumcio el pujament quel teu cors ferá, fill, al dia del judici, en lo cel, si em aquest mon est servidor e amador e loador del Fill de Deu; car en axi com lo Fill de Deu vench en aquest mon pendre nostra natura e sen pujá al cel ab ella, en axi pujará en los cels tots los cossos daquells qui son e daquelles, qui en est mon serán estats sos servidors e qui creurán la sua encarnacio e qui plorerán per honrar sos honraments.‖ Ramon Llull, Libre de Doctrina Pueril, Cap. 11, 2. 24 ―Fill, si vols pujar là on es Jhesu Christ, puja ta pensa e ton design a ell, e devalla ton remembrament a la viltat d on est vengut e al defalliment en lo qual estás en aquest mon; e menys preá aquest mon, per so que sies preat em laltre.‖ Ramon Llull, Libre de Doctrina Pueril, Cap. 11, 6. 23

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apegar a ela, existindo uma relação estreita entre o bem viver e o bem morrer. (CAETANO, 2012: 37) O medo de não estar pronto para deixar este mundo era compartilhado entre os homens e servia para ajustar as atitudes sociais. Na Doutrina para Crianças de Ramon Llull percebemos a preocupação de um pai com a educação de seu filho, tanto na dedicação quanto pelos temas evocados: a devoção a Deus e a salvação da alma são os focos principais do autor. A morte seria a prática mais honrosa para o homem que dedicou seus dias à obediência divina e sacrificou os desejos da carne. O Além é o lugar preparado para as pessoas que temeram ao Senhor, uma recompensa eterna para aqueles que obtiveram a salvação da alma. Mas para aqueles que temem a morte corporal e se orgulham das práticas profanas está reservado o fogo infernal:

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A peça essencial do sistema não foi o Paraíso, mas o Inferno. A Igreja Católica para incitar os fiéis a trabalhar por sua salvação, apresenta-lhes mais o medo do Inferno que o desejo do Paraíso. Diante da morte, eles temiam menos a própria morte do que o Inferno (LE GOFF, 2002: 33). A existência do inferno pregada nos sermões tornou-se um pensamento vivo que permeou o imaginário dos cristãos. Por temer o castigo infernal era preciso se esquivar do mal num constante embate traçado entre suas vontades de seguir a vida de devoção a Deus e a vida de prazeres terreno. Tal imbróglio motivava a preocupação da vida após a morte, o Além, lugar para onde iam as pessoas pouco após morrer, numa consequência da vida terrena: os bons seguiam o caminho do bem, o Paraíso, e os maus iam para o Inferno. Assim, ―a vida aqui em baixo é um combate, um combate pela salvação, por uma vida eterna; o mundo é um campo de batalha onde o homem se bate contra o Diabo, quer dizer, em realidade, contra si mesmo‖ (LE GOFF, 2002: 22). Curiosamente, a morte corporal não causava tanto estranhamento aos medievais, uma vez que a taxa de mortalidade foi alta durante todo este período. Talvez este fator tenha propiciado uma interação maior entre os vivos e os mortos, como bem alertou Jean-Claude Schmitt. Para este autor, a aproximação entre as sepulturas e as

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casas intensificou a relação entre os vivos e seus defuntos. Porém, a existência do Inferno e a incerteza da salvação sacudiam o indivíduo no momento final da vida. O caminho que a alma do defunto iria seguir era um elemento basilar nas preocupações humanas. A aflição por conta dos dias de terror e a possibilidade de um futuro de tormento assombravam os homens e mulheres da Idade Média. Esse temor representava o sentimento diante da morte. Essa insegurança caracterizava a sociedade medieval, e por isso o beato alertou seu filho sobre a necessidade de seguir o caminho de retidão na terra abandonando o pecado. O amor pelas coisas mundanas proporcionava prazer e tentava os homens para além do recomendado pelos clérigos e pela Igreja, mas não eliminava do pensamento a preocupação com a salvação, pois, Assim como todos os anjos e todos os santos as glória, com cantos de muita doçura e numa grande procissão, saíram para honrar Nosso Senhor Jesus Cristo quando ascendeu em glória, os demônios saem do inferno com um olhar muito horrível quando os homens pecadores passam deste mundo para outro, de tal maneira que os colocam e os atormentam no fogo perdurável. (LLULL, 1274: XI. 4)25. A recompensa após a morte: salvação e danação Diferente dos demais pregadores que buscavam lembrar seus ouvintes a cerca do inferno para assim eles aprenderem a se afastar do mal, Llull se preocupou em abordar junto ao filho sobre a grandeza da salvação e as bem-aventuranças aos homens que temeram a Deus e viveram seus mandamentos aqui na terra, pois acreditava que o homem que aprendesse a amar e temer a Deus ainda quando criança saberia se esquivar do mal, do pecado que levaria o homem à danação sem fim. Essa afirmação do autor está com base na passagem bíblica do livro de Provérbios que diz: ―Educa a criança no caminho em que deve andar; e até quando envelhecer não se desviará dele.‖ (Pv 22 : 6). ―En axi com tots los ángels e tots los sants de gloria ab cant de molt gran dolçor e ab gran professó exiren a nostro Senyor Jhesu Christ per fer honrament con pujá en gloria, en axi als homens peccadors con passen daquest mon en laltre ixen los demois de inferna b molt horrible esguardament, per tal que en foch perdurable los meten els turmenten.‖ Ramon Llull, Libre de Doctrina Pueril, Cap. 11, 4. 25

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A salvação é a virtude de Deus para aqueles que escolheram ter as sete virtudes26 humanas, inspiradas pelo Espírito. E o homem que pensa ter a salvação por seus próprios meios está tão errado quanto aquele que pensa na danação por suas escolhas danosas. Mas o dom da salvação, segundo Llull, foi dado por Deus para aqueles que são humildes ao reconhecer seus erros e mesmo assim escolheram o caminho da misericórdia. Desta forma, podemos entender que a preocupação do autor era que seu filho escolhesse o caminho da salvação, como podemos observar no excerto a seguir: Deus te deu a vontade livre para que sejas amante da salvação e desames a danação. Logo, assim como Deus deu ateu corpo todos os membros que pertencem ao corpo do homem, e deu à alma todas as potências que lhe convém, deu à tua vontade livre tudo o que pertence para desejares a salvação e odiares a danação, para que desejes receber a salvação tão somente pelos dons de Deus (LLULL, 1274: LIX. 8)27.

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Para explicar sobre a nobreza de ser salvo, Ramon escreveu para seu filho sobre a escolha do filho de Deus, que aceitou vir ao mundo como homem para padecer a morte mais angustiante e assim salvar a humanidade. Porém, Llull deixou claro que nenhum homem é digno de salvação por suas obras, pois Deus dá a salvação segundo sua vontade. O homem que se aproxima de Deus pelo interesse da salvação é hipócrita, ou seja, age de maneira oposta à salvação, assim é necessário que Deus deseje salvá-lo por meio de sua misericórdia. Em suma, o caminho da salvação é uma escolha que o homem deve fazer, pois, segundo a citação acima, o homem é livre para escolher o caminho que deve seguir. Por isso, Llull, ao escrever sobre as ―Nestes termos, o Filósofo elencou as bem-aventuranças centrais, que seriam, nesse ponto de vista, oito: Do Ato de Reinar, Da Possessão, Da Consolação, Do Cumprimento, Da Misericórdia, Do ato de ver Deus, Da Paciência e Da Recompensa‖. SANTOS, 2014. 27 ―Deus ta donada franca volentat per so que sies amador de salvacio e que desams dampnacio: e en axi com Deus ha donat a ton cors tots los membres quis pertanyen a cors dome e ha dada a la anima totes les potencies que a anima se covénen, en axi ha Deus donat a ton franch voler tot so qui pertany a desirar salvacio e airar dampnacio, per so que desires a reebre salvacio tant solament per los dons de Deu.‖ Ramon Llull, Libre de Doctrina Pueril, Cap. 59, 8. 26

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virtudes, lembra as recompensas daqueles que escolhem ou o caminho da salvação ou o caminho da danação. No entanto, seu maior interesse era que seu filho não desperdiçasse seu tempo com coisas passageiras e preparasse a si próprio para a salvação em Cristo. *** Com a popularização dos discursos sobre a morte, assuntos como o Paraíso, o Inferno e o Purgatório tornaram-se as ideias-chave, sobretudo a segunda. O destino da alma após a morte começou a inquietar a sociedade e, assim, a danação eterna que esta no inferno foi descrita por Llull como a perda da glória do Paraíso. O beato desejava que esse não fosse o motivo primordial que levasse seu filho a seguir o caminho da fé cristã, pois acreditava que o mais importante era amar a Deus. O homem, por mais justo e virtuoso que fosse, ainda seria indigno de receber a salvação. Porém, o pior destino estava destinado àquele que deixou a fé e, por isso, digno da penitência eterna e infernal. A vontade de Llull não era dissuadir seu filho a viver o caminho que ele escolheu pelo temor, mas oferecer explicações racionais, filosóficas e religiosas que guiassem a opção de Domingos, seu filho. A essência era a liberdade do espírito: Filho, podes sentir em tua alma o livre-arbítrio, o qual Deus deu ao teu coração para que possas fazer o bem ou o mal, e que, por fazeres o bem, Deus tenha razão para te dar salvação, e que pelo mal, sejas impulsionado à tua danação. Mas como a salvação é coisa mais nobre que tua vontade e que o bem que tu podes querer ou fazer por ti mesmo, sem a graça de Deus não podes ter salvação. E como a tua vontade tem poder de querer fazer o mal, tu, todo homem e cada homem por si mesmo, podem eleger a danação sem a ajuda de Deus. (LLULL, 1274: LXVII, 5)28. ―En ta anima pots sentir franca volentat, la qual Deus ha donada a ton coratge per so que pusques fer be o mal, e que per fer be Deus aja rahó quet do salvacio, e per lo mal sies occasionat a dampnacio. Mas car salvacio es pus noble cosa que ta volentat ne que ls bens que tu pots voler ne pots fer per tu metex, sens la gracia de Deu no pots aver salvacio. E car la tua volentat ha poder de voler e de fer mal, per assò tu per tu metex e tot altre hom per si metex pot 28

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Independentemente do caminho escolhido, as consequências eram certas, e assim o beato mostrou para seu filho o que estaria reservado a ele de acordo com o caminho que optasse; Ainda que utilizasse uma ênfase pouco comum, i.e., o enfoque nas recompensas celestiais, ao cogitar as penas infernais, o Filósofo ajudaria seu filho a se manter longe do pecado e, desta forma, temer ao Senhor criador. O medo de perder a salvação da alma se refletia nas práticas diárias, pois ―o homem, para ter uma boa morte, deveria controlar e disciplinar os desejos do corpo‖ (CAETANO, 2012: 11). Neste intuito, Llull aconselhou seu filho que a fugir dos pecados que levaria a danação através dos pensamentos sobre a grandeza de Deus, além das qualidades intrínsecas do bom cristão, como ter humildade e praticar a caridade, para que em seu coração o pecado não criasse raízes.

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Em suma, a morte não era representada pelo momento do trespasse, ou seja, apenas pela transição da situação de vivente para moriens, mas pelo temor cotidiano e constante que esse momento futuro e incerto causava na sociedade. Era preciso se preparar desde a infância para a morte, pedir perdão a Deus todos os dias, ser bom, justo, humilde, fiel, caridoso e prestativo, uma réplica do Cristo encarnado. Referências

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O HISTORIADOR, O PROFESSOR E O CINEMA Rodrigo Otávio dos Santos [Rodrigo Scama]

Estudar a sétima arte, o cinema, pode ser uma das formas mais instigantes para o pesquisador de história e também para o professor de História. Afinal, quem não gosta de um bom filme?

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O cinema é uma forma de expressão. Talvez a mais global e mais difundida na atualidade, graças ao cinema norte-americano e sua capilarização por todo o ocidente. E como toda forma de expressão, ele carrega consigo ecos da sociedade em que foi moldado. Napolitano (2011) diz que o cinema já utilizava conhecimentos históricos antes mesmo da História perceber a projeção cinematográfica como fonte de pesquisa, tanto que no início do século XX os chamados ―filmes históricos‖, como Nascimento de uma nação, dirigido por D. W. Griffith de 1915 ou Napoleão, dirigido por Abel Gance em 1927 eram uma constante nos ainda incipientes cinemas europeus e norte-americanos. É importante que o pesquisador e também o professor não limite sua pesquisa apenas em filmes documentais, como se o documentário fosse uma representação mais fidedigna da realidade. Ele, definitivamente, não é. Apesar de não pretender ter grande público e não pretender entreter, o documentário normalmente tem uma carga ideológica muito superior a um filme comercial. Basta assistir os relativamente recentes Fahrenhit 9/11, de Michael Moore ou Uma verdade inconveniente, de Davis Guggenhein para percebermos o quão ideológico pode ser um documentário. Ambas as películas são acusadas por muitas pessoas e entidades de fraldarem documentos e depoimentos para transmitirem suas ideias. Assim, é necessário ter cautela e, melhor ainda, tratar o filme documental como se trata um filme comercial, ou seja, com todas as ressalvas e com o mesmo olhar crítico que se detém sobre outras fontes menos vívidas. O cinema, praticamente desde sua criação pelos irmãos Lumière e posterior apropriação por Charles Meliès (o primeiro homem que usou o cinema como entretenimento) tem um caráter propagandístico. A manipulação sempre foi caráter intrínseco do cinema, portanto é de se esperar que as palavras, atuações, trilha sonora, fotografia e roteiros (entre outras tantas peças do quebracabeça que é um filme) dirijam o espectador na direção em que o

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cineasta deseja. Mas a manipulação vai além da mera condição de contar uma história. Como o cinema é o maior entretenimento mundial (levando-se em conta suas transmissões nas mais diversas formas, entre elas a TV, a TV a cabo, a Internet etc), naturalmente existe uma percepção das pessoas a partir daquilo que elas veem nos filmes. Benjamin (1994) já dizia isso quando informava que as gerações nascidas pós popularização do cinema conheceriam as personagens históricas por meio de atores, e a imagem do mundo seria moldada de acordo com a visão de cineastas específicos e suas empresas, ou seja, uma visão da indústria cultural acerca da história. Para o pesquisador que deseja se enveredar pelo caminho do audiovisual, é necessário que primeiramente recolha o(s) filme(s) com que vai trabalhar. É importante salientar não podemos perceber o filme apenas nele próprio. É imprescindível fazer contrapontos e encontrar paralelos em outras documentações, já que compreender o período apenas por meio do cinema é uma atitude pouco científica e, em geral, leva a conclusões precipitadas e errôneas. Documentos escritos, relatos orais, fotografias... tudo ajuda para a compreensão do filme em seu tempo histórico. Depois de recolher diversos materiais alheios ao filme, mas que darão sustentação à tese que se procura defender, é necessário decupar o filme, ou seja, separar em partes o filme, para conseguir sistematizar melhor o estudo. Em seguida, o pesquisador deve tentar compreender os códigos e linguagens que compõem a linguagem fílmica. Neste momento, é obrigatório que o historiador conheça um pouco sobre cinema, do ponto de vista da produção. Noções como enquadramento, corte, plano, sequência, sonorização, montagem, entre outros devem estar presentes no repertório do historiador, ou o resultado final da pesquisa será insatisfatório pela simples ignorância do pesquisador em relação ao produto com que está trabalhando. De acordo com Martin (2003), enquadramento é o modo como posiciona-se a câmera no momento da gravação de uma cena. A partir do posicionamento da câmera, tem-se o ponto de vista que será passado para o espectador, construindo assim uma forma de olhar a história que, supostamente, é aquela que o diretor decide contar. Por exemplo, no maravilhoso filme de Orson Welles Cidadão Kane, cada vez que o personagem principal (Kane) é retratado, a câmera está posicionada abaixo da linha imaginária do seu rosto, fazendo com que ele sempre pareça maior e mais ameaçador. Quando filmam sua segunda esposa, frágil e ingênua, a câmera está

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posicionada acima de sua cabeça, fazendo com que ela sempre pareça menor e ainda mais fragilizada, além de reforçar a ideia de de que Kane é muito superior a ela o que é dito no roteiro, mas fica mais explícito ainda a partir do posicionamento das câmeras. O corte do filme também é muito importante. Saber quando cortar e o que cortar é de suma importância, já que os diretores podem filmar várias vezes a mesma cena até escolher a que melhor encaixa no filme, ou mesmo desistir de ideias que não funcionam na montagem final. Benjamin (1994) diz que quando Chaplin rodou seu Opinião Pública, 125.000 metros de filme foram utilizados para fazer apenas os 3.000 que compõem o filme finalizado. O restante ficou no chão da sala de corte. Barthes (2012) nos lembra, porém, que o que não está na história (ou no frame, no enquadramento) faz tão parte da história quanto aquilo que está sendo mostrado, bem como o segundo e o terceiro planos também ajudam a contar a história. A trilha sonora, as cores, os figurantes e a ambientação são mais formas de perceber e transmitir a história de uma forma que nem sempre o espectador comum percebe. Mas o pesquisador tem que perceber.

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Para percebermos as cores e a influência delas na narrativa cinematográfica, é interessante o professor assistir novamente ao clássico O Mágico de Oz, dirigido por Victor Fleming em 1939. Ali percebemos a influência da cor porque no início do filme a película é sépia, mas quando Dorothy cai na terra encantada de Oz, o filme fica colorido. A contraposição entre a cor e a falta dela faz com que o espectador do filme compreenda o caráter mágico da terra encantada para onde a pequena menina e seu cão foram transportados. Quanto à trilha sonora e sua importância, é interessante assistir as cenas do astronauta Bowman tentando voltar à nave do também clássico 2001 Uma odisseia no espaço, de Stanley Kubrick e notar a ausência de recursos sonoros. Kubrick decidiu usar apenas o silêncio como catalizador da tensão do filme. Ou então perceber a quantidade de sons incidentais que podemos perceber em um filme como Transformers do diretor Michael Bay. Outra característica importante do cinema é a montagem, ou seja, a ordem dos acontecimentos no filme pronto. Como se sabe, um filme não é gravado na ordem em que ele aparece em cena. Por uma série de motivos (conflito de agendas dos atores e diretor, disponibilidade de recursos, locações etc) as cenas são gravadas em uma ordem diferente daquela que é exibida. No final das filmagens cabe ao montador do filme – normalmente o diretor – decidir a ordem em que as cenas vão aparecer para o espectador. E a forma como o filme

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é montado consegue atribuir (ou não) suspense, tensão, alegria etc. Esta talvez seja a principal função do cinema: montar o filme de uma maneira que ele fique atraente. Como exemplo, podemos citar o filme Amnésia, do diretor Christofer Nolan, que é exibido com uma montagem muito diferente da cronológica. No DVD da obra, porém, há, nos extras, o filme exibido em ordem cronológica. E podemos afirmar que perde toda a graça da história. Afinal, neste e na maioria dos casos, é a montagem que torna o filme bom ou ruim. Outra questão importantíssima que Napolitano (2010) sempre nos recorda é que a sociedade nunca é mostrada. Ela é encenada, ou seja, o que se vê na tela é uma representação de uma possível realidade, jamais a realidade em si. A ―verdade‖ passada pelo cinema é tão verdadeira ou tão falsa quanto aquela encenada no teatro, ou seja, é apenas uma simulação, uma farsa, uma visão distorcida do cotidiano que nos cerca (ou cercou). O mesmo Napolitano (2010 p. 276) diz que O que importa é não analisar o filme como ―espelho‖ da realidade, ou como ―veículo‖ neutro das ideias do diretor, mas como o conjunto de elementos, convergentes ou não, que buscam encenar uma sociedade, seu presente ou seu passado, nem sempre com intenções políticas ou ideológicas explícitas. Essa encenação fílmica da sociedade pode ser realista ou alegórica, pode ser fidedigna ou fantasiosa, pode ser linear ou fragmentada, pode ser ficcional ou documental. Mas é sempre encenação, com escolhas predeterminadas e ligadas a tradições de expressão e linguagem cinematográfica que limitam a subjetividade do diretor, do roteirista, do ator. Assim, o professor deve saber e explicar aos seus alunos que nunca uma obra fílmica representa a realidade. Nunca! Ela sempre representa a tensão entre o que deveria ser e o que é; sempre mostra a dificuldade entre se ater aos supostos fatos e à estética cinematográfica. Além disso, não podemos nunca nos esquecer que o filme faz parte da Indústria Cultural, e precisa de lucro para sobreviver. Essa também é uma condição imposta. O capital manda nas películas de tal forma que um diretor, por mais bem-intencionado que seja, por mais determinado que esteja em passar a sua visão histórica de determinada época ou acontecimento, nunca pode prescindir do dinheiro das bilheterias do planeta ou da vendagem em DVDs ou

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cópias digitais. E esta concessão acaba por mudar consideravelmente as ideias originais do autor do roteiro, que poderia ser historicamente mais plausível, mas não o é mais por conta da inviabilidade financeira que um filme muito histórico pode promover. Infelizmente, temos que admitir, um filme historicamente completamente fiel seria muito provavelmente um filme sem graça para a maioria das pessoas que não fossem historiadores. Assim, as pessoas não iriam no cinema (tampouco comprariam ou alugariam DVDs nas locadoras), fazendo com que o filme fosse um fracasso, inviabilizando qualquer outro tipo de produção da mesma equipe. Infelizmente, nós, historiadores, não somos em número suficiente para que um cineasta desenvolva um filme apenas para nós.

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Outra coisa importante para o professor é sempre olhar o filme no contexto de sua produção e passar isso para seus alunos. Um filme como Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, filmado em 1971 muito possivelmente não poderia ser rodado nos dias atuais, dadas as características de seu protagonista, que era um devasso e, ao terminar a película, mesmo com todo o tratamento que recebe, continua um devasso em sua mente. A atual sociedade – principalmente a norte-americana – possivelmente não aceitaria as cenas de violência, estupro e morte exibidas pelo diretor. E, se aceitasse, faria com que o filme fosse exibido em um circuito menor de exibição, com menos salas de cinema, o que naturalmente impactaria na questão comercial do filme. O pesquisador histórico deve ter estes detalhes em mente, para que consiga observar os impactos do filme estudado na sociedade em que foi produzido. A tensão entre o que o cineasta quer mostrar e o que o público está disposto a aceitar é um dos mais interessantes focos de pesquisa fílmica. E não apenas no que tange violência ou uma suposta censura. O mesmo Stanley Kubrick produziu em 1968 o filme mais enigmático de toda a história do cinema, 2001: Uma odisseia no espaço. Este filme provavelmente não chegaria às telas de cinema atualmente. Na verdade, como informa Clarke (1972), o filme quase não chegou mesmo às salas escuras. E não porque ele tinha algo de pornográfico ou extremamente violento. Muito pelo contrário, era um filme calmo e contido. Porém, seu conteúdo metafísico era tão grande que o tornava praticamente ininteligível para as pessoas que o assistiam. Mesmo assim, conseguiu ao longo do tempo o status invejável de obra-prima do cinema, e provavelmente seja o melhor filme de todos os tempos. Porém o entendimento de 2001 é complexo, e suas divagações são de tal

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ordem que atualmente sequer seu roteiro passaria pelos executivos de Hollywood. Um roteiro como aquele jamais chegaria a ser produzido na década de 2010, uma vez o cinema está cada vez mais atrelado ao capitalismo e às cifras mercadológicas, e a receita do filme sempre está atrelada ao seu custo, ou seja, sempre tem que gerar muito lucro para os estúdios e investidores. Por outro lado, o historiador deve ficar atento às produções cinematográficas que conseguem chegar ao público. E mais ainda, aquelas cuja base é histórica. O cinema sempre está a favor de alguma ideologia. E não existe ideologia neutra. Como o cinema é uma arte coletiva, como diz Benjamin (1994), o interesse de muitas pessoas é imbricado na produção de uma peça fílmica. Um filme histórico como A Lista de Schindler, de Steven Spielberg tem a clara missão de lembrar os espectadores do holocausto, mas sempre com um viés humano, quase palpável, que faz com que ator (Liam Neeson) e plateia entrem quase que em uma catarse para salvar alguns judeus durante a Segunda Guerra Mundial. É intenção direta e premeditada do diretor fazer emocionar as pessoas. Mas não podemos nos esquecer que o próprio diretor é judeu, e, portanto, está contando a história do seu povo, com sua ideologia. Filmes como este acabam gerando produtos que as pessoas ―compram‖ sem crítica. A catarse, a emoção, é mais importante do que a História ou mesmo a ideologia por trás do filme. Não é de se estranhar que desde o final da segunda grande guerra sejam produzidos por ano pelo menos 14 filmes sobre o tema em Hollywood, sede das produtoras cinematográficas que são chefiadas em sua maioria por famílias judias. Os judeus têm todo o direito de contar sua história e de fazer lembrar sempre que possível o quanto sofreram nas mãos dos nazistas, e esta postura é extremamente salutar. Porém devemos nos atentar pela ausência. Há apenas um filme sobre o holocausto em Ruanda, alguns poucos sobre o Apartheid e nenhum sobre a guerra civil no Timor Leste ou em Moçambique. Assim, fica patente que os filmes possuem ideologias muito definidas, principalmente no que tange ao financiamento de tais obras. O pesquisador/professor deve também sempre ficar atento é em relação à caracterização das personagens. Normalmente o cinema norte-americano (principalmente, mas não exclusivamente) padrão tem uma predileção por criar personagens maniqueístas, ou seja, o bom é realmente bom e o mau é realmente mau. Assim, motivações, tridimensionalidade e justificativas elaboradas passam longe das

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estruturas construídas. As personagens cumprem seu papel sem maiores problematizações. Não há o questionamento das motivações que levam os personagens a esta ou aquela decisão. Muito menos o auto-questionamento dos personagens em tela. Kellner (2001) nos lembra do personagem John Rambo (Sylvester Stallone) em Rambo II – A Missão, dirigido por George P. Cosmatos. Na história do filme, o ex-combatente do Vietnã praticamente vira um super-herói norte-americano em uma missão de resgate de prisioneiros de guerra no país asiático (e àquela altura, comunista). Neste filme o herói é bom, a personificação do bem, da lealdade à pátria e do ideal americano. Já os vilões são maus, são péssimas pessoas chefiadas pelos inimigos mortais dos Estados Unidos (e, na forma como é mostrado no filme, inimigos de toda a humanidade) os comunistas soviéticos. Esta unidimensionalidade dos personagens acaba por conferir um grau de ideologia altíssimo ao filme, chegando muito perto da propaganda puramente dita, tal como Goebbels fez em relação ao povo alemão a partir de 1930.

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Rambo é o soldado ideal, é o patriota ideal, é a idealização pura dos Estados Unidos e, mais ainda, de Ronald Reagan, o presidente norte-americano no período. Recordemos que o próprio presidente era também ator de cinema, e protagonizava filmes estilo faroeste, onde o branco norte-americano dizimava sem dó os inimigos, ou seja, os índios que habitavam aquelas terras antes dele. Além disso, novamente apoiados em Kellner (2001), podemos dizer que Rambo é a superação do indivíduo sobre o sistema. Isto porque um homem sozinho conseguiu dominar e subjugar todo o exército vietnamita existente no filme. Este ―man versus world‖ muito comum nos filmes hollywoodianos mostra uma faceta clara do individualismo norte-americano já descrito por Fichou (1990) que imperava naquele país durante o governo do republicano Reagan. E John Rambo não estava sozinho. No período onde o ex-caubói foi presidente da nação mais poderosa do mundo, inúmeros filmes foram produzidos tendo como marca o individualismo, a força, o patriotismo, a belicosidade e a guerra contra os inimigos soviéticos. Apenas para lembrar alguns dos mais emblemáticos, Rock IV, com o mesmo Stallone, onde o inimigo é um russo praticamente invencível, Top Gun, com Tom Cruise, onde o futuro inimigo eram os caças MIG soviéticos, Comando para Matar, com Arnold Schwarzenegger, onde um grupo de mercenários sul-americanos financiados pela União Soviética planeja dar um golpe de estado e, para retornar ao Vietnã, temos Braddock – O super comando, estrelado por Chuck

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Norris, cuja função cinematográfica não difere em nada da de Stallone em Rambo. No Brasil a ideologia também perpassa os filmes. Basta, para isso, assistirmos os filmes do chamado cinema novo, como Deus e o diabo na terra do sol ou Terra em transe, ambos de Glauber Rocha, cuja ideologia de esquerda era nítida naqueles primeiros anos do regime militar. Ao mesmo tempo, filmes como Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho e Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade foram censurados pelo governo ditatorial e só puderam chegar às telas anos depois de sua produção. A censura – seja de maneira institucional, seja de maneira interna – pode ser sempre um problema no cinema. Atualmente não há censura prévia das películas, mas há uma censura no que tange ao público e aos múltiplos financiamentos que forçam diretores e roteiristas a alterar o conteúdo que estes desejavam mostram ao público. O historiador sempre deve levar isto em consideração, tomando o máximo de cuidado para não ser anacrônico. O filme que hoje parece ―bobo‖ ou ―ingênuo‖, talvez tenha sido um arrombo de criatividade em tempos idos. De qualquer forma, o historiador que decidir trabalhar com o cinema enquanto fonte, ou o professor que decide trabalhar com seus alunos o conhecimento histórico por meio do cinema, não pode se furtar de conhecer mais sobre a linguagem do cinema. Para tanto, ler alguns livros de teoria do cinema, como o Manual de roteiro de Syd Field, Pré-cinemas e pós-cinemas de Arlindo Machado ou O cinema, de André Bazin. Até mesmo algumas consultas em sites especializados na internet podem ajudar. O que não pode ser feito jamais é ignorar este conhecimento específico. É interessante também tentar fazer um fichamento sobre o filme (ou os filmes) que será usado em sua aula ou discussão posterior. O historiador precisa definir muito claramente o que o filme em questão está dizendo e talvez até mais importante - como está dizendo o que diz. Outra dica valiosa é assistir várias vezes o mesmo filme, anotando suas principais observações sobre ele em cada uma das sessões. Além disso, comparar o filme que lhe é base com outros filmes da mesma época pode ser uma boa estratégia para perceber semelhanças e idiossincrasias na obra analisada. Por último, tentar encontrar na internet o roteiro do filme também pode ajudar imensamente a compreender todo o contexto da obra, já que o texto impresso pode ajudar a dirimir algumas dúvidas que ficaram na exibição midiática ao mesmo tempo que podemos perceber as diferenças entre o que

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estava no roteiro e o que efetivamente acabou parando nas telas de cinema. Bibliografia BARTHES, Roland. A Câmara Clara. São Paulo: Saraiva, 2012. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. CLARKE, Arthur C. Mundos Perdidos de 2001. Rio de Janeiro: Expressão e cultura, 1972 FICHOU. Jean-Pierre. A civilização americana. Campinas: Papirus, 1990 KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Bauru: Edusc, 2001. MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2003. NAPOLITANO, Marcos. A História depois do papel. In: PINSKY, Carla Bassanezi. Fontes Históricas. São Paulo: contexto, 2011. NAPOLITANO, Marcos. Como usar o cinema na sala de aula. São Paulo: contexto, 2010.

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VAMOS FALAR DE GENÉTICA? UM BREVE OLHAR SOBRE A IMPORTÂNCIA DE CONSTRUIR UMA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA GENÉTICA Rogério Vial

Quando me propus a escrever para o 2° Simpósio Eletrônico Internacional de Ensino de História, me coloquei a pensar qual tema deveria abordar. A primeira vista me interessou o tema do Ensino de História do Paraná em sala de aula, em especial nas escolas de formação básica e média. A importância de este tema ser bem trabalhado na sala de aula para com os alunos de ensino fundamental e médio. Assim comecei a relembrar minha trajetória como professor no Ensino Superior neste ano de 2015, como o ano foi marcante tanto para professores como para alunos. A Greve que colheu três, quatro meses de aulas ―normais‖, a queda no número de acadêmicos em sala de aula depois deste evento. As dificuldades encontradas por este ―novo‖ professor em sala de aula, agora no ensino superior. Com esses apontamentos lembrei-me de três textos publicados no 1° Simpósio, textos do Professor André Bueno, da professora Dulceli Tonet Estacheski, e do professor Everton Crema. Os três textos trazem a tona diferentes problemas no que diz respeito ao Ensino de História. O texto do professor Everton dialoga sobre os problemas curriculares e a necessidade de um balanço educacional. O texto da professora Dulceli aponta questões relativas a distância que muitas vezes encontramos entre a teoria e a prática dentro da sala de aula. E o terceiro texto e talvez o que mais me deixou aguçado, do professor André, o qual lança vários questionamentos sobre nossa práxis no papel de professor/aluno. Tendo como base as questões levantadas nos textos que acima elenquei, me debrucei sobre os problemas encontrados em sala de aula quando ministrava aulas nas turmas de terceiro e quarto ano do curso de História da Unespar de União da Vitória/PR. Principalmente no terceiro ano, encontrei quase que um total desconhecimento sobre a história do Paraná. Parece-me um pouco errado nomear como História do Paraná o estudo de atos, datas e fatos ligados ao Estado do Paraná, no entanto, por conformidade acabamos até fazendo isso. Entendo que

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a História do Paraná ultrapassa esse tipo de noção, de estudo, de análise e de pesquisa historiográfica. Sinto que ter em mente a história da terra que pisamos é de maior abrangência do que apenas essa coisas, pois nos leva a entender as diferentes gentes desta terra e as suas relações de poder durante as diferentes épocas. Pessoas simples, escravos, imigrantes, tropeiros, operários, posseiros e uma infinidade de tipos humanos que traçaram suas práticas socioculturais num determinado espaço que hoje chamamos de Paraná. Entender essas práticas nos possibilita rever nosso presente e quem sabe redefinirmos nosso futuro através da consciência história que Rüssen apresenta como parte de um ato de transformação social. Se hoje realizarmos uma simples busca na web sobre assuntos ―já muito batidos‖ de nossa história, encontraremos um bando de idiotices escritas por pessoas que passaram pelos bancos escolares e deveriam ter estudado um pouco de história. O pior ainda é encontrarmos sujeitos que acreditam em tais idiotices e que passaram por bancos universitários.

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Aí surgem algumas questões importantes, mas que em geral querem dizer ―onde (nós professores de história) erramos?‖. Esse erro pode ter sido feito quando estávamos sentados dias e noites nos bancos escolares no ―ensino superior‖ e até antes talvez, e que por vagabundagem deixamos de refletir sobre a história durante o processo de aprendizado. Desligamos-nos da prática e buscamos ―arredondar‖ um bom texto para receber uma nota suficiente para ―passar‖. Podemos jogar a culpa no nosso professor que ensinava história no ensino médio, mas deixava de lado a história do Paraná porque era ―chata‖ ou porque era melhor seguir o livro didático que pouco ou nada trazia deste conteúdo. Sim, ele (nós) pode levar um pouco de culpa. Mas e agora me pergunto: que tipo de professor estou (me) formando? No texto do professor André ele aponta várias situações que podem ―justificar‖ a ignorância de muitas pessoas sobre a história do Egito e das pirâmides, mesmo aquelas que passam pela academia. Pois não é diferente com a história do Paraná. Se existe a necessidade de realizar um balanço educacional, parte dessa necessidade é pela falta de conhecimento de nossa própria história. Repetimos erros do passado de maneira sistemática. Conhecemos os erros e os remédios, mas em vez de buscarmos uma medicina preventiva para esses males, esperamos a doença voltar (até fazemos algumas coisas

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para que ela volte) e depois necessitamos de remédios (muitas vezes dolorosos) que quase sempre trazem efeitos colaterais. Repetimos erros e mesmo assim não recuperamos o estrago quando existe a necessidade de melhorar nossa concepção de mundo através da história. Pois se a história é o elemento necessário para entendermos melhor o mundo e a sociedade em que vivemos. Ela é também o gatilho que utilizamos para darmos sentido e significado as experiências históricas que estabelecemos nas mais diferentes relações sociais. É através da história também que conseguimos olhar o passado e fazer uma perspectiva para o futuro e assim não incorrer em erros que o passado nos apontou. Se é com a história que obtemos as referências do passado e orientamos nossas ações futuras, fica a pergunta que cada professor de História do Paraná tem que fazer; Onde erramos na formação e o que deixamos de fazer para que nossos alunos consigam entender e reagir frente a esse desafio? Se utilizarmos Jörn Rüsen (2010) ele vai dizer que essa (re)orientação é a tal consciência histórica. A consciência histórica serve como um elemento de orientação chave, dando à vida prática um marco e uma matriz temporais, uma concepção do ‗curso do tempo‘ que flui através dos assuntos mundanos da vida diária. Essa concepção funciona como um elemento nas intenções que guiam a atividade humana, ‗nosso curso de ação‘. A consciência histórica evoca o passado como um espelho da experiência na qual se reflete a vida presente, e suas características temporais são, do mesmo modo, revelados. (RÜSEN, 2010, p. 56) Se a consciência histórica tem a capacidade de influenciar na vida prática, na determinação de valores morais no presente, a questão ainda é mais pertinente. Pois ainda há poucos dias, uma acadêmica me inquiriu sobre o que trabalharíamos em História do Paraná no ano de 2016. Se ―por acaso‖ iríamos discutir sobre a tradição paranaense em votar nas mesmas famílias. Respondi que me parece mais seguro estudarmos as diversas populações do Paraná, as relações sociais e de poder que esses povos estabeleceram como meio de sobreviver dentro da sociedade paranaense. Parece-me mais apropriado olhar se essa ―tradição‖ no voto nas famílias ao longo do tempo não é um tipo de estabelecimento de tais relações sociais e de

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poder. Enfim, este assunto daria certamente um grande estudo sobre a história paranaense. No entanto, essa indagação me sugeriu que uma das conceituações de Jörn Rüsen é extremamente válida, em especial quando ele diz que existem quatro tipos de consciência histórica: a tradicional, que é a ação orientada por valores culturalmente estabelecidos; a exemplar, a qual é orientada por regras de valores relacionados a regularidade das decisões tomadas no passado por diversos outros agentes históricos; a crítica, a qual o individuo possui seu próprio ponto de vista, mas ele se limita a negar a validade dos demais valores e possibilidades existentes; e a última que é a consciência histórica genética, a qual o individuo considera os diversos pontos de vista e constrói os seus valores e assim consequentemente a sua conduta que irá orientá-lo no presente em situações que necessitam dessas ações.

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Sendo assim, me parece que o desenvolvimento pleno da consciência histórica se daria pela consciência histórica genética, que possibilita ao individuo se reorganizar mentalmente através do uso de seus conhecimentos históricos e assim repensar sua ação na sociedade de maneira que essa ação contribua para o desenvolvimento social sem incorrer nos erros do passado novamente. Dessa forma, o cabe refletir se não despertamos algumas das outras três consciências históricas, que a meu ver são incompletas para o pleno desenvolvimento humano. O desenvolvimento da consciência histórica genética deve partir do professor e ser possibilitado na sala de aula, onde os professores tem a responsabilidade de oportunizar aos estudantes o acesso às diferentes experiências temporais. Deve ajudá-los na construção de saberes históricos que tragam uma carga de significados que sejam reconhecidos pelos estudantes, fazendo com que reconheçam dentro da realidade de cada indivíduo, e assim se descobrirem como sujeitos históricos que são transformadores da sociedade em que vivem. Claro que isso é uma construção entre professores e alunos, não podendo ser atribuída apenas a um desses grupos a culpa pela empatia encontrada quando trabalhamos com história do Paraná em sala de aula. Ao professor cabe o domínio do conteúdo, seu pleno conhecimento. Cabe também o domínio da teoria além de possuir uma metodologia de ensino eficiente. Aos alunos, cabe trazer para a sala de aula as suas próprias experiências de vida para a sala de aula.

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Com isso os professores devem tomar essas experiências, sejam elas quais forem, negativas ou positivas, e fazer delas o ponto de partida da construção da consciência histórica, dando a elas um sentido histórico que possibilite aos estudantes se tornarem agente de construção do próprio conhecimento. Esse processo criará investigadores críticos da história e assim a construção do conhecimento histórico fará com que o estudante passe por um processo cognitivo que lhe possibilita seu crescimento como pessoa. Estudar um processo como a Revolta dos Posseiros no Sudoeste paranaense na década de 1950, forçará aos estudantes a investigarem processos mais complexos da posse da terra no sul do Brasil e assim até relacionar esse conflito com outros fatos como a Guerra do Contestado ou a luta do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra - MST. Encontrar os elos dessas lutas seguramente fará com que os mesmos (re)organizem seu conhecimento sobre os conflitos de terras no sul do Brasil e as alianças socioculturais e de poder estabelecida por esses diferentes grupos sociais. Assim, conhecer a história do Paraná vai além de ler um texto e debater isoladamente cada evento. Vai além também de apenas ler um texto e debater processos isolados que ocorreram nos século XIX ou XX, pois esses eventos históricos, em geral, possuem imbricações relacionadas à distribuição de terras no estado ou na época da província. Cabe a nós professores estudantes à utilizar de maneira correta as diferentes possibilidades e auxiliarmo-nos a criar uma consciência histórica que auxilie na reorganização de nossas ações no presente, evitando assim os erros do passado. Referências: BUENO, André. Contatos imediatos no ‗3º grau‘: história antiga e os problemas em seu ensino universitário e escolar em BUENO, André; CREMA, Everton e ESTACHESKI, Dulceli. Tecendo Amanhãs: O ensino de história na Atualidade. Rio de Janeiro/União da Vitória: Edição Especial Sobre Ontens, 2015. Disponível em: http://simpohis.blogspot.com.br/p/andre-bueno.html Acessado em 05/02/2016. CREMA, Everton Carlos, As diretrizes curriculares paranaenses da educação básica em história a partir da experiência do núcleo regional de educação de União da Vitória: um balanço educacional necessário (2004-2014) em BUENO, André; CREMA, Everton e ESTACHESKI, Dulceli . Tecendo Amanhãs: O ensino de

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história na Atualidade. Rio de Janeiro/União da Vitória: Edição Especial Sobre Ontens, 2015. Disponível em: http://simpohis.blogspot.com.br/p/everton-crema.html Acessado em 05/02/2016. ESTACHESKI, Dulceli de Lourdes Tonet, O estágio supervisionado na formação docente em história: entre teoria e prática em BUENO, André; CREMA, Everton e ESTACHESKI, Dulceli . Tecendo Amanhãs: O ensino de história na Atualidade. Rio de Janeiro/União da Vitória: Edição Especial Sobre Ontens, 2015. Disponível em: http://simpohis.blogspot.com.br/p/dulceli-tonet-estacheski.html Acessado em 05/02/2016. RÜSEN, Jörn. O desenvolvimento da competência narrativa na aprendizagem histórica: uma hipótese ontogenética relativa à consciência moral. In. SCHIMDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel e MARTINS, Estevão de Rezende (orgs.) Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Ed. UFPR, 2010.

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HISTÓRIA E ARQUEOLOGIA EM SALA DE AULA: RELATOS DE UMA EXPERIÊNCIA POSSÍVEL Vanessa Cristina Chucailo

A presente comunicação tem por finalidade relatar uma experiência de ensino de História realizada em meados de 2011, durante um período de Estágio Supervisionado, com turmas do 6ª ano no Colégio Estadual São Cristóvão (União da Vitória/Paraná), tendo como tema o estudo da arqueologia e alguns vestígios arqueológicos. Olhar para a História como um produto constante e inacabado, nos permite a construção de diversos enfoques de ensino e pesquisa, proporcionando discussões, reflexões históricas, possibilitando a construção do conhecimento crítico, e principalmente, mantendo a sala de aula como um ambiente de diálogo e reflexões, com diferentes fontes e linhas de pesquisa, objetivando sempre um ensino que englobe diversas formas de aprendizagem. Acredito que ensinar História a partir de uma ciência tão rica e autônoma como é a Arqueologia, torna-se fundamental no que diz respeito à procura e aplicação de diferentes abordagens e métodos de ensino. A experiência que pretendo relatar é, principalmente, os resultados obtidos ao aliar o estudo da Arqueologia durante as aulas de História, entendendo cada uma como ciências autônomas, mas que permitem um trabalho de ensino interdisciplinar e diferenciado. A Arqueologia é um conteúdo pouco trabalhado por professores(as), devido talvez as suas inúmeras especificidades ou ao curto prazo que se tem para lecionar sobre todos os conteúdos programados para o ano letivo. A proposta de levar esse tema para a sala de aula foi afirmar a relevância desses conteúdos para o ensino de História. Afinal, muitas das compreensões que possuímos hoje nos livros de História, não seriam possíveis sem os estudos e os trabalhos arqueológicos. A proposta geral do estágio foi apresentar aos(as) alunos(as) aspectos do processo histórico na formação das primeiras sociedades, migração e encontros culturais aliados a arqueologia brasileira, articulando e adaptando as teorias, e as possíveis histórias sobre o surgimento da humanidade, sempre valorizando a formação de uma identidade nacional, pois segundo Bittencourt (2004), uma

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das importantes contribuições do estudo da História atualmente é a possibilidade de construção de identidades, especialmente a identidade nacional, uma vez que esta, dentro História, disputa espaço com a formação de uma identidade local e mundial. O interessante sobre essa identidade nacional e que de alguma forma se relaciona com os estudos arqueológicos, é que estamos falando de uma história anterior aquele velho bordão de que a História do Brasil se iniciou em 22 de abril de 1500, com a chegada dos colonizadores portugueses liderados por Pedro Álvares Cabral.

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A História, e a própria ciência arqueológica, já nos mostraram que não é mais possível se deixar levar por esse clichê, afinal muito antes de 1500, o Brasil já era habitado e, portanto possuía uma história, culturas e sociedades vivendo em diferentes partes do seu território. Segundo Funari e Noelli (2002, p. 27), no que se refere ao passado da civilização brasileira, os últimos 500 anos ocupam quase todas as páginas dos livros didáticos, reduzindo significativamente os milhares de anos da Pré-História a uma pequena introdução, nossas origens remotas ainda são pouco consideradas. Mesmo que mais de 40 milhões de brasileiros tenham antepassados indígenas, essa herança é mal reconhecida, e até mesmo rejeitada, por ser considerada parte de uma cultura inferior. Muito embora a Lei 11.645/08, atualmente, tenha contribuído para alterar esse panorama educacional, determinando o ensino da cultura afrobrasileira e indígena nas escolas. Sobre o estudo da Pré-história, devemos dizer que é tão necessário quanto qualquer outro. Sabemos que nos períodos chamados ―préhistóricos‖ existiam pessoas vivendo em comunidades ou agrupamentos tribais, e que elas deixaram conscientemente ou inconscientemente vestígios de sua cultura. É através do trabalho arqueológico que tais evidências materiais podem ser encontradas, conservadas, compreendidas e estudadas de maneira adequada por várias áreas do conhecimento. A Arqueologia é, portanto, uma ciência que estuda vestígios das antigas sociedades, por meio de escavações, técnicas e métodos. Para Funari: Segundo um ponto de vista tradicional, o objeto de estudo da arqueologia seria apenas as ―coisas‖, particularmente os objetos criados pelo trabalho humano (os ―artefatos‖), que constituíram os ―fatos‖ arqueológicos reconstituíveis pelo trabalho de escavação e restauração por parte do arqueólogo. Essa concepção

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encontra-se ainda muito difundida entre aqueles que consideram ser a tarefa do arqueólogo simplesmente fazer buracos no solo e recuperar objetos antigos. (FUNARI, 2003, p. 13) Isso nos remete ao fato de que em algumas situações, a Arqueologia é vista como uma ciência secundária para historiadores, antropólogos, sociólogos. No entanto, para um(a) historiador(a) que estuda sociedades em passados remotos nos seus mais diversos aspectos: alimentação, migrações, padrões de ocupação do território, rituais, etc., a Arqueologia é praticamente o único meio para que esse(a) historiador(a) consiga sua documentação, através dos vestígios materiais, deixados por esses longínquos predecessores, e que são encontrados nos sítio arqueológicos (PROUS, 1992). A ciência arqueológica é muito mais complexa do que se imagina, se valida de critérios particulares de trabalho e exige para seu trato, sólidos conhecimentos (PEREIRA JUNIOR, 1967). Mas nada impede que esse conteúdo possa ser trabalhado, ainda no ensino fundamental. Cabe a nós, enquanto professores(as), a tarefa de promover a transposição didática de um saber científico. Para Schmidt (2004) é necessário que na sala de aula, os(as) educadores(as) reflitam e realizem constantemente a transposição didática dos conteúdos e do procedimento histórico, bem como a relação entre as inovações tecnológicas e o ensino de História. É preciso continuadamente renovar métodos de ensino, bem como pensar na utilidade daquilo que ensina. O fato de ser professor(a) de História, não significa que devemos ser ―professauros‖ da educação. Como aponta Werneck (1998, p. 61), ―Quem não se atualiza, fossiliza-se. O professor precisa, sim, perceber que os(as) alunos(as) aceitam facilmente o processo de atualização‖. As inovações, as tecnologias e a velocidade das informações estão cada vez mais acessíveis, entretanto ainda existe uma distância entre os que sabem e os que não sabem articular, pensar e refletir sobre esses processos, e as possibilidades que isso acarreta para a prática em sala de aula. Arqueologia e vestígios arqueológicos nas aulas de história A elaboração e a proposta geral do meu plano de trabalho docente foram pautadas sob os conteúdos estruturantes referentes às relações de cultura e trabalho, uma vez que os tópicos básicos e específicos abordados durante o período de estágio foram:

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arqueologia e vestígios arqueológicos (arte rupestre, artefatos líticos, fósseis, artefatos cerâmicos e sambaquis). Como o tempo proposto para realização do estágio era bastante limitado (6 aulas de aproximadamente 50 minutos cada), os conteúdos selecionados para as aulas foram transmitidos utilizando a exposição verbal, o que possibilitou a exemplificação e demonstração de conhecimentos e habilidades durante o decorrer das aulas, de forma que a aula expositiva se mostrou o método mais adequado para o desenvolvimento dos planos de aula. Para tanto, o domínio do conteúdo foi fundamental para que os(as) alunos(as) fossem cativados durante as aulas, mesmo utilizando de métodos tradicionais, como aula expositiva. Mas bem sabemos que nada impede que uma aula seja aplicada utilizando técnicas já empregadas, mas de forma inovadora e dinâmica (LOPES, 1991).

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Uma primeira aula buscou fazer uma introdução dos conteúdos, definindo alguns principais conceitos no que se referem à arqueologia, tais como sítio arqueológico, vestígios materiais, fósseis, diferença entre o arqueólogo e o paleontólogo, afinal muitos desses termos foram utilizados nas aulas seguintes, e era importante que a turma compreendesse do que se tratava. O objetivo das aulas não se pautava em decorar cada conceito, mas fazer com que a turma participasse e assimilasse o conteúdo. Um exemplo disso foi o uso de duas fotos em especial, para fazer com que a turma pudesse lembrar a diferença entre o trabalho do arqueólogo e o trabalho do paleontólogo. Numa primeira foto, estou segundo fósseis de animais, com a seguinte descrição: ―O paleontólogo estuda animais e vegetais fósseis‖. Na segunda foto, no entanto, estou posando abraçada a um esqueleto. A explicação que seguia nessa foto era: ―O arqueólogo estuda vestígios humanos‖. Assim, de uma forma simples, objetiva e bem humorada, sem fugir da proposta e da temática da aula tentei fazer com que os(as) alunos(as) lembrassem desse conteúdo, sem que tivessem que ficar decorando textos, apostilas, livros. Para trabalhar arte rupestre, selecionei várias imagens desde os abrigos mundiais mais famosos (como as pinturas de Altamira e Lascaux), até as pinturas encontradas em abrigos brasileiros. A medida que as imagens eram exibidas, cada aluno(a) tentava imaginar e deveria dizer o que ela possivelmente estaria representando. A ideia dessa dinâmica era, primeiro fazer com que

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todos(as) participassem da aula, mas também que percebessem que para cada colega a imagem representava uma coisa, e que jamais saberemos o que de fato a pessoa que a fez estava ou não querendo representar. Com os artefatos líticos além do apoio das imagens, utilizei uma réplica de um artefato para que a turma pudesse manusear o material, e compará-lo com as imagens exibidas. Além da aula expositiva sobre esses tópicos, também propus duas oficinas práticas. Na primeira, o grupo de estudantes deveria tentar reproduzir um artefato lítico com materiais fornecidos para a oficina, tais como cordas, madeira e rochas. Porém para montar o instrumento lítico, o grupo não poderia fazer uso da linguagem verbal, apenas gesticulações. O objetivo da oficina era o fortalecimento do sentido de coletividade e o trabalho conjunto, pensando o cotidiano das comunidades primitivas. Ao final da dinâmica, o grupo relatou a dificuldade da tarefa, passando a valorizar mais os artefatos líticos ao perceberem o quanto era difícil produzir um material desses. Para o segundo grupo propus uma releitura das imagens de arte rupestre vistas em sala. Cada estudante trabalhou individualmente o seu desenho, em uma cartolina, com materiais como carvão, argila, folhas e flores coloridas. Essa aula prática teve um caráter avaliativo proposto por Werneck (1995, p. 87), refletido da seguinte forma: o(a) professor(a) cria uma situação-problema e deixa as soluções por conta dos alunos: Interessante notar que certas propostas novas permitem uma economia de tempo disponível, resultando num modo inteligente de agir. Portanto, mudar é ser inteligente. Muitas avaliações serão mais efetivas quando feitas durante o ato de aprender por que facilitarão a imediata correção de rumos [...] Não se trata de usar a musculatura, trata-se de usar a inteligência aumentando significativamente o potencial do professor [...] Como se pode perceber não há perda de tempo, ganha-se na verdade, muito mais tempo. O professor faz uma troca, passa a gastar menos saliva e mais atenção. Os alunos gastam menos ouvindo e usam mais o raciocínio (WERNECK, 1995, p. 89).

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Para os conteúdos de artefatos cerâmicos e sambaquis, busquei problematizar a formação de uma identidade nacional, apresentando a vida de povos primitivos no litoral brasileiro, a construção dos sambaquis e a produção de artefatos cerâmicos pelas sociedades primitivas e caboclos brasileiros. Para esse último tópico, além das imagens, levei argila (matéria prima da cerâmica) e diferentes potes cerâmicos para que os alunos manuseassem esses materiais. Sabemos que as aulas expositivas, em alguns casos, limitam a participação dos(as) alunos(as), afinal o(a) professor(a) tente a falar durante a maior parte do tempo, e as aulas acabam sendo cansativas:

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[...] no entanto, essa falha poderá ser eliminada se forem observados certos indicadores considerados como elementos-chave para uma aula expositiva bem sucedida: planejamento criterioso da aula, determinando seu objetivo, traçando o esquema essencial do assunto, calculando bem o tempo previsto; uso de linguagem clara e precisa; utilização de recurso didáticos que mantenham o interesse do aluno; ao final da aula, fazer uma síntese do assunto estudado. (LOPES, 1991, p. 41) Em cada aula, os alunos recebiam um texto didático com os conteúdos trabalhos durante a aula. Esse material foi fundamental para o bom desenvolvimento do estágio, uma vez que priorizei durante as aulas o método expositivo visando um estudo panorâmico dos conteúdos, aliado a uma metodologia diferenciada e com recursos didáticos variados. Com um material de apoio escrito, o tempo em sala de aula foi utilizado para expor e discutir os conteúdos através de muito diálogo, enquanto a turma apenas anotava no caderno algum comentário, pergunta ou curiosidade levantada durante as aulas. Prova: avaliando o conhecimento adquirido através da escrita Ao elaborar tal plano de trabalho de docente optei por incluir uma prova escrita sem consulta, buscando refletir a avaliação como uma análise do conhecimento adquirido pela turma, trabalhando muito mais no sentido de definir e sanar possíveis dificuldades de ensino e aprendizagem, do que classificar os(as) alunos(as). Pois como aponta Moretto (2008, p. 86-87) ―A avaliação é parte do ensino e da aprendizagem [...] se tivermos que elaborar provas, que sejam bem-

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feitas, atingindo o seu real objetivo, que é verificar se houve aprendizagem significativa dos conteúdos relevantes‖, além de também refletir sobre a prática docente. Desde as primeiras aulas, avisei os(as) alunos(as) que seria realizada uma prova escrita e sem consulta ao final do estágio. Busquei tratar dessa questão de uma forma bastante natural, sem jamais pressionálos a decorar qualquer conteúdo, apenas que eles compreendessem a importância do que estava sendo apresentado, e dessa forma assimilassem esse conhecimento. Busquei explicar a importância dessa atividade, não somente para avaliar a assimilação de conteúdos que a turma obteve, mas também para avaliar a minha prática docente. Os resultados dessas conversas sobre avaliação foram bastante positivas, refletindo, por exemplo, no comentário de um aluno ao final do estágio, quando solicitei que eles(as) avaliassem minha prática docente, e este aluno escreveu que o que mais ele gostou foram as atividades (se referindo as oficinas) e a prova, ou seja, os dois instrumentos que utilizei como avaliação. Penso que é importante desenvolver ―um sistema que consiga ensinar e verificar o aprendizado, sem distorções, do maior número possível de estudantes‖ (WERNECK, 1998, P. 17). Mas infelizmente o curto prazo que o estágio proporciona durante a graduação, muitas vezes não é suficiente para conclusões sobre o grau de conhecimento adquirido pelo(a) aluno(a), bem como impossibilita que o(a) estagiário(a) desenvolva um método eficaz de recuperação do aprendizado e uma análise mais concreta das dificuldades de assimilação dos conteúdos observadas a partir da avaliação. Mesmo que todas as aulas sejam planejadas de forma criteriosa, a fim de vencer todos os conteúdos programados dentro do tempo determinado pelo estágio, nem sempre esse tempo se revela suficiente para sanar dúvidas em relação a certos conteúdos de uma forma igual para todos(as) os(as) alunos(as). A escola peca pelos paradigmas de tempo e quantidade de conteúdos. Nós sabemos que algumas séries avançam mais depressa, outras não. Quem deve administrar isso? O professor, a orientação pedagógica da escola. O que enterra a pedagogia é essa mania desenfreada de normatização e uniformização, todos tendo que aprender dentro de um determinado tempo. (WERNECK, 1998, p. 17).

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Pensando os pontos positivos da prova, e analisando algumas respostas escritas pelos(as) alunos(as), observei uma grande assimilação de certos conteúdos. Algumas das respostas apresentadas foram bem interessantes e fundamentais para a análise do conhecimento construídos durante o estágio. Sobre a Arqueologia, um aluno escreveu em sua prova: ―A arqueologia é estudada por arqueólogos eles estudam as antigas sociedades que habitavam nesse país‖. Nessa resposta, pude encontrar diversas formas de assimilação do conteúdo. Primeiro que este aluno compreendeu que o estudioso da Arqueologia é o arqueólogo, especialmente, quando define que se trata de um estudo de ―antigas sociedades‖, como ele coloca. Ou seja, ele compreendeu que o arqueólogo estuda vestígios humanos, e não fósseis de animais ou vegetais, sendo esta a área da paleontologia.

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Busquei sempre apresentar vestígios arqueológicos brasileiros como forma de valorizar o que temos, e mostrar aos(as) alunos(as) que o Brasil também possuiu uma pré-história, com pessoas habitando o território nacional mesmo antes da chegada dos colonizadores portugueses. Quando esse aluno escreve ―antigas sociedades que habitavam nesse país‖, entendo eu ele absorveu essa ideia de que existiam sociedades primitivas no Brasil. Sobre as cerâmicas uma aluna escreveu: ―Tudo começou quando as pessoas precisavam guardar seu alimento para não estragar e também guardar a água e cozinhar por que se não os alimentos estragavam‖. O que chamou a atenção na interpretação dessa aluna foi que o conteúdo assimilado por ela, sobre a funcionalidade das cerâmicas, foi algo que eu expliquei durante a aula, e que não estava no texto didático que focava mais os quesitos técnicos como a preparação da argila, a técnica de elaboração das cerâmicas sem roda de oleiro, identificação de formatos de algumas peças. Mesmo utilizando a prova como principal recurso avaliativo foi possível identificar que tal método foi válido e positivo no que se refere à assimilação, compreensão e construção de conhecimentos sobre os tópicos abordados durante as aulas. Considerações finais sobre os resultados obtidos Aprender e ensinar História partindo da Arqueologia despertou grande interesse por parte dos(as) alunos(as), tanto pela temática quanto pelas possibilidades de abordagens que a disciplina de

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História proporciona. Isso ficou mais claro com as cartas de avaliação feitas pelos(as) alunos(as) sobre as aulas aplicadas, meu método de ensino, os conteúdos, etc. Numa das cartas, um aluno percebeu uma ideia que busquei sempre valorizar durante as aulas, de que o conhecimento se constrói e se entende, não apenas se decora: “[...] você nos mostrou que aprender não é só perguntar e responder mas é entender e participar [...] o que eu gostei mais mesmo foi o seu carinho de dar aula. Eu achei interessante você ter calma com tanta criança‖. A educação deve ser entendida como construção de conhecimento, a sala de aula é o ambiente propício para essa construção de saber. ―É também preciso que iniciemos o aluno no fato de que o conhecimento histórico é algo construído a partir de um procedimento metodológico; em outras palavras, que a história é uma construção‖, como aponta Cabrini (2000, p. 28), e tal posição é fundamental para a desconstrução do mito do saber acabado, e da História enquanto verdade absoluta. Educar é partilhar e sentir a troca de experiências, como destaca Werneck (1995, p. 37): ―Aluno e professor são aliados e não adversários ou inimigos‖. Em sala o(a) professor(a) não deve se limitar a ―passar‖ informação. É preciso provocar, incentivar, e possibilitar ao aluno a própria construção do conhecimento, a própria aprendizagem, e esse processo é que deve constituir as bases teóricas da ação consciente do professor, transformando-o no real mediador entre objeto a ser estudado e o protagonista da aprendizagem, o educando (SCHMIDT, 2004). Propor um plano de trabalho docente para o ensino de História para um 6ª ano, tendo como tema a Arqueologia e alguns vestígios arqueológicos, foi desafiador, primeiro pelas questões temporais, afinal estamos falando de um passado relativamente longínquo para os(as) alunos(as), e segundo para fazer com que os alunos percebessem que a História é movimento, bem como a construção de uma ponte entre o passado e o presente, trazendo esse passado para a sala de aula, e ao mesmo tempo transportando esses(as) alunos(as) do presente para aquele passado distante. Quando um dos alunos escreveu ―Eu adorei a aula dela é como se nós tivesse naquela época‖, pude concluir que de fato, minha prática de ensino conseguiu estabelecer essa relação entre o presente comunicando-se com o passado, e vice-versa.

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Referências

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BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004. CABRINI, Conceição et. al. Ensino de História: revisão urgente. São Paulo: EDUC, 2000. FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. São Paulo: Contexto, 2003. FUNARI, Pedro Paulo; NOELLI, Francisco Silva. Pré-História do Brasil. São Paulo: Contexto, 2002. LOPES, Antonia Osima. Aula expositiva: superando o tradicional. In: VEIGA, Ilma Passos Alencastro (org.) Técnicas de Ensino: Por que não? Campinas: Cortez, 1999. MORETTO, Pedro Vasco. Prova: um momento privilegiado de estudo, não um acerto de contas. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008. PEREIRA JUNIOR, José Anthero. Introdução ao Estudo da Arqueologia Brasileira. São Paulo: Ind. Gráfica Bentivegna, 1967. PROUS, André. Arqueologia Brasileira. Distrito Federal: Editora Universidade de Brasília 1992. SCHMIDT, Maria Auxiliadora. A formação do professor de história e o cotidiano da sala de aula. In: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; CAINELLI, Marlene. Ensinar História. São Paulo: Scipione, 2004. WERNECK, Hamilton. Prova, provão, camisa de forma da educação: uma crítica mordaz aos sistemas de avaliação crivada de humor e propostas. Petrópolis: Vozes, 1995. WERNECK, Hamilton. Se a boa escola é a que reprova, o bom hospital é o que mata. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.

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O ENSINO DA HISTÓRIA AFRICANA A PARTIR DE “SUNDJATA OU A EPOPEIA MANDINGA”: NOTAS PARA O USO DIDÁTICO Washington Santos Nascimento

Se no Brasil temos muitas dificuldades de se pensar (e efetivar) um ensino de história da África, esta realidade não é muito diferente no continente africano, onde a construção de uma perspectiva intravertida ainda se reveste de uma carência de materiais produzido pelos africanos. O livro Sundjata ou a epopeia Mandinga no ano de 1960, organizado por Djibril Tamsir Niane, a partir de vários relatos orais, é uma obra fundadora. Trata-se de um dos primeiros livros organizados para atingir um público de não especialistas e que se preocupa em contar a história do Mali a partir do própio Mali e que por esta razão talvez seja aquela, que ao se referir ao mundo antigo africano, seja a mais divulgada no mundo, sobretudo no Brasil. A obra construída a partir dos relatos de um Griot da aldeia de Djeliba Koro, no distrito de Siguiri, na Guiné, rompeu com o modelo totalitário da ciência moderna, saída da revolução científica do século XVI, que se por um lado foi o fermento de uma série de transformações na história da humanidade, por outro se tornou um modelo totalitário quando negou o caráter racional de todas as formas de conhecimento que não se pautassem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas ocidentais (MIGNOLO, 2006). Sundjata ou a epopeia mandiga (1960) ao reabilitar a tradição oral passada pelos griôts formulou uma problemática original, falando sobre e para os africanos, com a preocupação de reconstruir a história local (no caso a fundação do Mali muçulmano) e de ensinála através de uma obra leve e de fácil leitura para qualquer tipo de leitor, mesmo aquele não familiarizado com o tema. Trata-se de uma epopeia, ou seja, ―[...] um poema extenso que narra as ações, os feitos memoráveis de um herói histórico ou lendário que representa uma coletividade; poema épico, poema heroico‖ (HOUAISS, 2010). Dentro do contexto no qual Niane estava inserido, a Negritude, um movimento político e cultural, surgido na França a partir, baseado na ideia de solidariedade racial e na valorização da sabedoria ancestral, a poesia surgia como um das formas de escrita que mais

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se aproximaria da oralidade e das tradições orais que são elementos fundamentais do saber africano. (Aliás, o termo Negritude apareceu pela primeira vez em 1939 em um poema, ―Diário de um retorno ao país natal‖, do antilhano da Martinica Aimé Césaire). Segundo Ki Zerbo (2010), na África a poesia (e a epopeia) não só reflete, mas também cria a história. Assim o objetivo deste texto é fornecer alguns subsídios para o uso desta epopeia nas aulas de história, da educação infantil ao ensino médio, visto que a mesma foi adaptada como obra infantil por Rogério Andrade Barbosa, "Sundjata, o Príncipe Leão" publicada pela editora Agir em 1995 ou ainda para o universo juvenil sob a forma de graphic novel por Will Eisner, "Sundiata, O Leão do Mali: uma Lenda Africana", publicada no Brasil pela Companhia das Letras no ano de 2004. Estas obras foram analisadas por Raquel Gomes (2011) as quais em alguns momentos elas rompem e em outros elas perpetuam determinados paradigmas e estereótipos.

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Nosso foco maior no artigo será ―Sundjata ou a epopeia mandiga‖ do Djibril Tamsir Niane publicada no Brasil em 1982, não foi mais reeditada, mas sua versão em pdf é encontrada facilmente na internet o que mostra um esforço de tornar este material público ainda nos dias de hoje e que pode ser usada no Ensino Fundamental II e Ensino Médio. Além disso ao final do texto colocamos uma série de mapas, com uma pequena discussão sobre os mesmos, que poderão ser usados em sala de aula para melhor aprofundamento sobre o tema. Djibril Tamsir Niane e a construção de Sundjata ou a Epopeia Mandinga Djibril Tamsir Niane nasceu em Conacri, Guiné em 1932. Estudou em Dakar (Senegal) e formou-se em história em 1959 na Universidade de Bordeaux, França. Além disso foi professor de história na Universidade de Dakar (atual Universidade Cheikh Anta Diop de Dakar no Senegal). Esta universidade, junto as de Ibadan (Nigéria), Dar Es Salaam (Tanzânia) e Makerere (Uganda) tiveram (e tem) um papel de liderança no processo de descolonização da história da África (BARRY, 2000). De sua primeira geração fizeram parte Cheikh Anta Diop, Abdoulaye Ly e Leopold Senghor. Boubacar Barry (2000) salienta que a publicação de Nations nègres et cultures de Cheikh Anta Diop em 1955 e Compagnie du Sénégal de Abdoulaye Ly em 1958 marca um

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corte epistemológico decisivo com a historiografia colonial, uma vez que eles colocaram a história a serviço da libertação africana. Djibril Tamsir Niane pertenceu a segunda geração, onde a história précolonial da África e as tradições orais receberam atenção especial, na sequência da ideia de que construir uma história descolonizada era essencial para a libertação nacional, assim nasceu Sundjata ou a epopeia mandiga nos anos sessenta. Esta obra é resultado das pesquisas de sua tese sobre o Império do Mali. Neste momento ele tomou contato uma série de griots, incluindo Mamadou Kouyaté, que o permitiu reconstruir a partir das tradições orais a história do fundação do império muçulmano do Mali Além disso, Niane, foi um dos organizadores da História Geral da África, coletânea de 8 livros organizada e publicada pela Unesco a partir dos anos setenta. Ele é responsável pela edição do volume IV (séculos XII-XVI) e pela escrita do capítulo 6, ―O Mali e a segunda expansão manden‖ no qual faz uso do que pesquisara no doutorado. E este é um dado importante pois alguns elementos que farão parte da História Geral da África tais como a perspectiva de que ela deve ser vista desde o seu interior (intravertida), considerando os africanos como sujeitos e não meros objetos da história, ou seja, o destaque para o sujeito africano, enquanto um indivíduo político (BARBOSA, 2012), dando para tanto uma ênfase na História Política já estavam presentes em Sundjata... Desta forma a construção do livro Sundjata ou a epopeia mandinga se insere dentro de um projeto maior, a publicação da História Geral da África. A história a ser contada e ensinada: A formação do Mali Muçulmano Sundjata... em linhas gerais fala da história de um governante (Sundjata), pertencente ao povo Mandigo, situado majoritariamente no atual Mali que passa por uma infância de grandes privações por não poder andar. Mesmo superando esta dificuldade ele perdeu o seu posto para um de seus irmãos e temendo por sua vida exila-se de sua cidade natal (Niani), no exterior relacionando-se com outros povos, tornando-se um caçador e guerreiro ainda mais valoroso. Em uma grande batalha, derrota o rei dos Sosso e liberta seu povo, até então subjugado àquele tirano. Tudo isso se passa entre os séculos XII e século XIII d.C. quando Sundjata Keita derrota Sumaoro, rei dos Sossos e lança as bases para a construção do Império do Mali, sob a proteção do Islã.

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O livro gira em torno dos povos mandinga (ou mandem), que compreende vários grupos e subgrupos, dispersos por toda a zona sudano‑saheliana, do Atlântico ate o maciço do Air. (NIANE, 2010, p.133). As tradições orais da região fazem alusão à existência no mundo antigo de dois reinos na região, o reino de Do e o reino Manden. Ainda no século XI viajantes árabes relatam a venda de ouro em pó, já entre os Séculos XI e XII com a unificação dos pequenos reinos da região pelo clã dos Keitas e nos séculos XI e XII ocorre a Islamização da área. Os Keita, fundadores do Império do Mali, do qual Sundjata é um dos seus antecessores, acreditam ser descendentes de Dion Bilali (ou Bilali Bunama ou Bilāl ben Rabāh), companheiro do Profeta Maome e primeiro almuadem ou muezim (mu‟addhin) da comunidade muçulmana. O livro assim relata de que maneira o Islã tornou-se hegemônico na região. Como contar e ensinar a história: o papel dos Griots

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Toda a epopeia mandinga foi contada por um Griot. Que é um termo em francês e que significa aquele que guarda e conta as histórias dos povos tradicionais da África. Assim começa a epopeia: Sou griot. Meu nome é Djeli Mamadu Kuyatê, filho de Bintu Kuyatê e de Djeli Kedian Kuyatê, Mestre na arte de falar. Desde tempos imemoriais estão os Kuyatês a serviço dos príncipes Keita do Mandinga (o mesmo que Império do Mali); somos os sacos de palavras, somos o repositório que conserva segredos multisseculares. A Arte da palavra não apresenta qualquer segredo para nós; sem nós, os nomes dos reis cairiam no esquecimento; nós somos a memória dos homens; através da palavra, damos vida aos fatos e as façanhas dos reis perante as novas gerações. Recebi minha ciência de meu pai Djeli Kedian, que a recebeu igualmente de seu pai; a História não tem mistério algum para nós; ensinamos ao vulgo tudo que aceitamos transmitir-lhes; somos nós que detemos as chaves das doze portas do Mandinga. (NIANE, 1982, p.11) Amadou Hampate Ba (2010) distingue três categorias de Griots, os griots músicos, que tocam qualquer instrumento (monocórdio, guitarra, cora, tantã, etc.). Em geral são bons cantores e

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compositores, além de preservarem e transmitirem a música antiga. Ainda os griots ―embaixadores‖ e cortesãos, os responsáveis pela mediação entre as principais famílias em caso de desavenças. Eram ligados a uma família nobre ou real, ou mesmo a única pessoa (um rei, um príncipe por exemplo) e os griots genealogistas, historiadores ou poetas (ou os três ao mesmo tempo), que em geral são igualmente contadores de história e grandes viajantes, não necessariamente ligados a uma família. Em Sundjata... temos ―embaixadores‖ e ―genealogistas‖ apesar de referencias a forma como o mundo é organizado pela musica também aparecem no livro. Importante salientar, segundo Hampate Ba (2010), os Griots não são os únicos guardiães da tradição oral, ―A tradição oral africana, com efeito, não se limita a histórias e lendas, ou mesmo a relatos mitológicos ou históricos, e os griots estão longe de ser seus únicos guardiães e transmissores qualificados‖ (HAMPATE BA, 2010, p. 169). Há os tradicionalistas, que normalmente estão associados a ofícios tradicionais, como o ferreiro, o artesão, caçador etc. Na obra analisada temos o ferreiro e sobretudo o caçador como um mestre tradicionalista, fundamental na transmissão de conhecimentos e na própria formação pessoal de Sundjata. Outra questão importante de se destacar é que nas sociedades em que o principal canal de informações é pela transmissão oral, aqueles que controlarem uma sólida rede de griots praticamente monopoliza a difusão da ―verdade‖ oficial (KI-ZERBO, 2010). E é assim que o Griot assume esta face também no inicio da epopeia: Os griots conhecem a história dos reis e dos reinos, motivo por que são os melhores conselheiros dos reis. Todo grande rei quer ter um chantre para perpetuar sua memória, visto que é o griot quem salva a glória dos reis, pois os homens têm a memória muito curta. Os reinos têm seu destino traçado, tal como os homens; só o conhecem os adivinhos, que investigam o futuro, cuja ciência dominam. Nós outros, griots reais, somos os depositários da ciência do passado; mas quem conhece a história de um país poderá ler seu futuro. [...] Ensinei a reis a História de seus ancestrais, a fim de que a vida dos Antigos lhes servisse de exemplo, pois o mundo é velho, mas o futuro deriva do passado (NIANE, 1982, p.34).

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Como destaca Mauricio Waldman (2000), o griot é sumamente o ―construtor semântico‖ reconhecido da Epopéia. No texto, sintonizado com os procedimentos tradicionais africanos, o griot é a fala do Rei, é somente através dele que esta autoridade manifesta ao público seus pensamentos e vontades, suas palavras e ordenações. Quando Sundjata perde o seu Griot, ele foi seriamente ofendido, pois seria como tirar-lhe a palavra. Assim derrotar Sosso, seu irmão e inimigo, era recuperar seu griot e assim recuperar sua palavra. Uma nova geografia e espacialização: o rios, o sol e o centro do mundo A história se passa entre dois grandes rios, o Senegal e o Níger (ou ―Djoliba‖ no idioma mandenka) são eles que vão demarcando fronteiras possíveis naquele espaço composto por um mosaico de etnias e culturas diferentes porém complementares, que tem nos rios uma relação paradoxal, pois ao mesmo tempo que ele separa, ele une diferentes povos.

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Outro elemento fundamental nesta geografia simbólica construída na epopeia é entender o sol como um demarcador dos trânsitos. Waldman (2000) salienta que Sundjata, num autêntico ―trajeto iniciático‖, progride na narrativa, da periferia do Espaço Manden, ou seja as cidades de Mema e de Wagadu, na direção do que seria considerado naquele espaço o umbigo do mundo, a capital do Império do Mali, Niani. Este percurso obedece a um sincronismo com a trajetória do Sol (oriente para ocidente, do nascente na direção do poente) astro que em parte da África é o referencial cosmológico do tempo. Diferente do mundo semítico – ao qual se filia o Islã, a Lua e as Estrelas são bem menos representativas para a cosmogonia ―negro-africana‖ do que o sol. Quando Sundjata resolve sair de seu exílio, diz o Griot ―[...] chegamos agora aos grandes momentos da vida de Sundjata. O exílio vai terminar, e um novo sol vai levantar-se, é o sol de Sundjata‖ (NIANI, 1982). Considerações Finais A análise da obra em sala de aula nos permite discutir com os alunos novos eixos da história. Assim a leitura de Sundjata junto com história dos povos indígenas do Brasil, por exemplo, contribuirá para construirmos em nosso aluno uma perspectiva não eurocêntrica para entendermos a história da humanidade. Evidenciando desta forma duas regiões múltiplas e plurais, ou seja, não existe uma única África (aquela ligada ao tráfico de escravos e

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com um único ―personagem‖, o escravo), nem um único Brasil. E no caso da África, por se tratar de um continente, esta realidade é ainda mais ampla e diversa. Além disso coloca na tradição oral, a predominância em torno da forma como se deve contar a história, tirando da escrita uma autoridade até então inquestionável. Trazendo desta forma novas possibilidades de continuar o debate, desta vez discutindo, a partir da oralidade, dimensões da vida da comunidade que cerca a escola. O fato do Mali ter se tornado o primeiro grande estado muçulmano da África do norte e que isso representou um processo de pacificação da região (ao menos a partir da perspectiva de Sunjata) traz para o centro do debate de que não há uma única forma de analisar a expansão islâmica e oferece nuances para se pensar o mundo contemporâneo. Por fim, e igualmente importante, é perceber a construção dos limites geográficos, enquanto um produto histórico, que responde a interesses internos específicos e que diferentemente da forma imperial na qual ela foi construída, não precisa ser necessariamente fixa e imutável, ela pode ser fluida e diluída. Referências bibliográficas BARBOSA, Muryatan S. A construção da perspectiva africana: uma história do projeto História Geral da África (UNESCO). Revista Brasileira de História (Online), v. 32, p. 211-230, 2012. BARBOSA, Rogério Andrade. Sundjata, o Príncipe Leão. Rio de Janeiro: Agir, 1995. BARRY, Boubacar. ―Reflexão sobre os discursos históricos das tradições orais em Senegâmbia‖. In BARRY, Boubacar. Senegâmbia: o desafio de uma história regional. RJ: SEPHIS/CEAA, 2000, p.534. GOMES, Raquel G. A. Muito além do Império do Mali - Sundjata Keita e a imagem dos heróis africanos em literaturas didáticas. Anais do XI Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. Diversidades e (Des)Igualdades. 07 a 10 de agosto de 2011 na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Salvador/BA. Disponível em http://www.xiconlab.eventos.dype.com.br/resources/anais/3/1308 325529_ARQUIVO_RaquelG.A.Gomes-Conlab.pdf EISNER, Will. Sundiata. O Leão do Mali – Uma Lenda Africana. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de. Janeiro, Ed. Objetiva, 2001 HAMPATÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO (coord.). História Geral da África I. Metodologia e pré-história da África. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2010. KI-ZERBO, Joseph. Introdução In: KI-ZERBO (coord.). História Geral da África I. Metodologia e pré-história da África. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2010. MIGNOLO, Walter. Os esplendores e as misérias da ―ciência‖: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade epistêmica. In: SANTOS, B. de S. Conhecimento prudente para uma vida decente. São Paulo: Cortês, 2006. NIANE, Djibril Tamsir. O Mali e a segunda expansao manden. In: NIANE, História Geral da África Vol. IV Djibril Tamsir Niane (org.) – 2.ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010. _____. Sundjata, ou a epopéia mandinga. São Paulo: Ática, 1982. WALDMAN, Maurício. Africanidade, Espaço e Tradição: a topologia do imaginário africano tradicional na fala griot de Sundjata Keita do Mali. África - Revista do Centro de Estudos Africanos da USP, São Paulo (SP), Brasil, v. 20/21, p. 219-268, 2000.

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ANEXOS MAPAS – MANDINGAS (MANDEN) Mapa 1: África do norte atlântica

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Fonte: Google Earth Fizemos uso do Google Earth este é um recurso que pode ser melhor explorado em sala de aula, usando sobretudo o computador e não só apresentando o mapa tal qual estamos fazendo aqui. É importante discutir com os alunos de que maneira as fronteiras do Mali moderno junto a Argélia e Mauritânia constituem-se linhas retas, pois são fronteiras construídas a partir de acordos que desconsideravam a diversidade da região, usando portanto os marcos de longitude e latitude. Entretanto as fronteiras entre o Mali, Guiné e Burkina Faso, regiões onde os povos mandem se espalham as fronteiras são naturais, portanto irregulares, fluidas e diluídas.

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Mapa 2: África do Norte Colonial

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Fonte: http://revistaescola.abril.com.br/historia/fundamentos/historiacolonizadores-africa-450594.shtml Apesar do mapa ser construído pela Revista Nova Escola e ter a consultoria de um professor de história da África, Luiz Arnaut, o uso de cores quentes (vermelho, laranja, amarelo) sub-repticiamente ainda reproduz a imagem de uma África ligada ao calor e consequentemente ao inferno, imagem esta reproduzida desde o mundo antigo.

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Mapa 3: Paisagem natural da região do Império do Mali

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Neste mapa é possível então perceber uma profunda diversidade do continente africano, com áreas muito diferentes entre si. Importante analisa com os alunos os núcleo originário e a máxima extensão do Império do Mali e mostrar que estavam dentro de zonas naturais diferentes o que nos leva a discutir (sem ser determinista geográfico) uma diversidade dentro dos povos mandem.

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Mapa 4: Avanço islâmico na região do Mali

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Fonte: HRBEK, Ivan. A difusão do Islã na África, ao Sul do Saara. In: FASI, M. El. (Ed.). África do século VII ao século XI. 2ª. ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010, p. 95. No mapa é possível perceber as diferentes linhas de ocupação feita pelos muçulmanos a partir da África do Norte rumo a África Central. O islamismo, na África, significou a ampliação de conexões com amplas áreas do mundo e o estímulo para o surgimento de uma série de práticas culturais. Além disso foram historiadores, geógrafos e viajantes do mundo islâmico que produziram as primeiras fontes escritas sobre diferentes reinos africanos. Esses estudiosos muçulmanos também constituíram a maioria daqueles que se

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predispunham a levar notícias, para além do continente africano, sobre o movimento das rotas de longa distância e a vida nas cidades e aldeias africanas ao sul do Saara. Na obra "Educação das relações étnico-raciais no Brasil: trabalhando com histórias e culturas africanas e afro-brasileiras nas salas de aula (2014)", organizado por Amilcar Araujo Pereira é possível ter acesso a mais mapas da região e outras sugestões para o trabalho em sala de aula sobre a presença islâmica. Mapa 5: Rota das Caravanas na África do norte.

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Fonte: OLIVIER, Roland e FAGE, Jhon. D. Breve História da África, Lisboa, Sá da Costa, 1980, p.53 Ao destacar estas rotas comerciais é importante analisar a diversidade deste comércio, neste sentido vale a pena ver o livro do Alberto da Costa e Silva (A Enxada e a Lança). Além disso fazer uma discussão de que maneira o estabelecimento de sociabilidades pautadas em uma religião única, ante a diversidade religiosa da região, facilitou este comércio. Assim é importante compará-lo com o mapa anterior e discutir com os alunos de que maneira a expansão do comércio é também (de certa forma) a expansão do Islã.

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Mapa 6: Impérios do Mali e Songhai (Século VII e IX)

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Fonte: COSTA E SILVA, Alberto. Igbo-Ukwu. In: SILVA, Alberto da Costa e A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. 3° Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. p.319 A partir deste mapa é possível discutir com os alunos de que maneira antes da chegada dos europeus, existiam impérios fortes e centralizados no continente africano, distanciando dele a ideia de que os africanos eram povos ―bárbaros‖ sem nenhum tipo de organização social e política. Além disso, discutir com ele um novo conceito de fronteira, baseado na ideia de zona de influência e não de limite geográfico estático.

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Mapa 7: Império do Mali no século XIV

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FONTE: KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra. Portugal, Publicações Europa-América, 1999, p.165 (Volume I). Neste mapa é importante destacar a localização da atual capital do Mali a cidade de Tombuctu que é um patrimônio mundial e que atingiu seu auge logo após a unificação feita por Sundjata. A Universidade corânica de Sankoré é um dos mais antigos centros de ensino do continente, além atualmente de abrigar o Instituto Ahmed Baba com cerca de 20 000 manuscritos árabes antigos. Vale a pena também sugerir aos alunos o video ―Tombuctu, a cidade dos livros‖, disponível no Youtube, para mostrar que mesmo antes do processo de unificação de Sundjata, quando Tombuctu ainda era pertencente ao do Sudão Ocidental, durante os séculos XIII e XIV, ela já era um importante centro regional.

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FESTAS CÍVICAS ESCOLARES EM PORTO UNIÃO NO ESTADO NOVO Zuleide Maria Matulle

Introdução O presente texto tem como objetivo instigar uma reflexão sobre as determinações traçadas pelo Estado, através de um olhar micro histórico, isto é, a cidade de Porto União, no norte de Santa Catarina por meio da questão das festividades cívicas. Este trabalho busca, ainda que brevemente, perceber que tipos de escola, de ensino e de sujeitos estavam em discussão nas décadas de 1930 e 1940, durante o período do Estado Novo. Para isso, escolhemos como pano de fundo as festas cívicas escolares, uma vez que elas estiveram diretamente ligadas às ―práticas educacionais vigentes na época, pois à instituição escolar cabia a responsabilidade de promover, nos jovens, os ideais do novo regime‖ (SILVA, 2011, p. 97).

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As festas cívicas não são novidade no Estado Novo. Elas foram utilizadas por diferentes regimes, como pela Primeira República, Governo Provisório e pela Ditadura Militar, como estratégia de propaganda para o exercício do poder. No entanto, sua força foi maior em governos que exerceram ―maior censura no conjunto de informações e utilizou manipulações que procuravam bloquear toda a atividade espontânea‖ (BENCOSTTA, 2006), como foi o caso do Estado Novo. As festas cívicas ultrapassaram os muros da escola, fizeram circular conceitos e conhecimentos na sociedade. Pelas ruas e praças das grandes e pequenas cidades reuniam-se estudantes, professores, autoridades, imprensa e familiares, em suntuosas homenagens, por exemplo, a Semana da Pátria, ao Dia da Bandeira, e ainda, ao aniversário de Getúlio Vargas. Essas comemorações fizeram parte do processo de construção e consolidação de uma única identidade nacional. Elas deixaram heranças duradouras em todos nós, muito revelam o que somos e o que pensamos hoje. Como fonte, selecionamos o jornal O Comércio, fundado em 11 de junho de 1931, e produzido em Porto União e com circulação no sul do Paraná e planalto norte catarinense. Essa fonte fornece ao pesquisador a pluralidade de informações, a vida cotidiana da

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sociedade, seus usos e costumes, informes sobre questões econômicas e políticas, etc. O jornal é um documento importante para análise histórica, pois ele ―registra, comenta e participa da história, possibilitando ao historiador acompanhar o percurso dos homens (pessoas) no tempo‖ (CAPELATO, 1998, p. 13). As reformas na educação... As décadas de 1930 e 40 são marcadas por duas grandes reformas no ensino do país. Trata-se da Reforma Francisco Campos e a Lei Orgânica do Ensino Secundário, conhecida como Reforma Capanema. Essas reformas provocaram modificações no ensino secundário do país, nível de escolarização entre o curso primário e o ensino superior, bem como na estrutura da disciplina de História. Segundo considerações de Dallabrida (2009, p. 185), regulamentada em 1931, a Reforma Francisco Campos instituiu em nível nacional a modernização do ensino secundário brasileiro. É característico dessa reforma, por exemplo, medidas como o acréscimo no número de anos do curso e divisão em dois ciclos, um fundamental, de cinco anos e outro complementar, de dois anos. É notável também a seriação do currículo que promovia a progressão dos saberes, bem como ―a frequência obrigatória dos alunos, a imposição de um detalhado e regular sistema de avaliação discente e a reestruturação do sistema de inspeção federal‖ (DALLABRIDA, 2009). Essas medidas romperam com o regime de cursos preparatórios e de exames parcelados que vinham ocorrendo no Brasil, no Império e Primeira República, em que aluno realizava apenas uma avaliação final. Essas modificações procuravam estimular o trabalho progressivo do aluno, uniformizar e controlar a educação no país. Buscava-se produzir ―estudantes secundaristas regulados e produtivos, em sintonia com a sociedade disciplinar e capitalista que se consolidava, no Brasil, nos anos de 1930‖ (DALLABRIDA, 2009, p. 185). Com a Reforma verificamos, grosso modo: a expansão do sistema educacional, a regulamentação e centralização no Ministério da Educação e Saúde Pública, passando a exercer maior intervenção nos assuntos relacionados à educação. Em 1942, entra em vigor a Reforma Capanema implantada pelo Ministro Gustavo Capanema. Essa reforma é fruto do Estado Novo, a fase da centralização política e do autoritarismo. O interesse pela educação, bem como pela disciplina escolar de História,

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intensificou-se. Capanema organizou o ensino industrial, instituiu o SENAI, reformou o ensino comercial. Entretanto, a educação secundária foi aquela em que o Ministério deixaria sua marca mais profunda e duradoura. O Decreto de 9 de abril de 1942, organizou o ensino secundário em dois ciclos: o ginasial, com quatro anos, e o colegial, com três anos. Este último ciclo oferecia aos estudantes duas opções: o Clássico, voltado mais para as letras e humanidades e o Científico voltado mais para a Matemática e as Ciências. Nessa reforma verificamos que a formação escolar dos estudantes teve como aspecto central o patriotismo. Para Capanema o ensino secundário deveria ser ―um ensino patriótico por excelência‖. Um ensino capaz de dar ao adolescente ―a compreensão dos problemas e das necessidades, da missão, dos ideais da nação e bem assim dos perigos que a acompanham, cerquem ou ameacem‖. Um ensino que seja capaz ―de criar, no espírito das gerações novas a consciência da responsabilidade diante dos valores maiores da pátria, a sua independência, a sua ordem, e seu destino‖ (HORTA, 2010, p. 59). Trata-se de uma educação voltada aos interesses do governo vigente em um contexto de transformação.

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Nas novas instruções a disciplina de História e os conteúdos de História do Brasil foram entendidos como instrumentos que poderiam contribuir para o desenvolvimento do projeto nacionalista, ou seja, importantes à formação do povo, bem como sua unidade cultural. Para Capanema, por exemplo, havia ―ensino de matérias que formam o espírito do cidadão, do patriota. Essas matérias serão ensinadas na Geografia e História do Brasil‖ (HORTA, 2010, p. 159). O discurso de Capanema nos faz perceber o papel desta disciplina: despertar o tão importante sentimento de pátria, espírito cívico e patriótico, forjando a Nação. Exaltar a pátria e formar o cidadão: as festas cívicas que agitaram as escolas, ruas e praças de Porto União O Estado Novo investiu na educação, entendida como uma das principais dimensões estratégicas para viabilizar o projeto nacionalizador. A educação, bem planejada segundo os ideais do regime e disseminada em todo o país é capaz de garantir a ordem e a disciplina. Para Bomeny, por exemplo, a educação: ―talvez seja uma das traduções mais fiéis daquilo que o Estado Novo pretendeu no Brasil. Formar um ―homem novo‖ para um Estado Novo, conformar mentalidades e

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criar o sentimento de brasilidade, fortalecer a identidade do trabalhador, ou por outra, forjar uma identidade positiva no trabalhador brasileiro‖. (BOMENY, 2011, p. 139). Mais que isso, o Estado Novo é particularmente interessante no que diz respeito a ações do Estado no sentido de ―orientar o ensino de História para a formação moral e política‖ (FONSECA, 2011, p. 72). Podemos destacar, como parte dessa estratégia, a posição de relevo que episódios e personagens da história do Brasil alcançaram: como Tiradentes, por exemplo, e a produção de livros didáticos e cartilhas com versões orientadas da história da nação. Financiado pelo Departamento de Propaganda do governo, o mercado editorial brasileiro publicou inúmeros livros com conteúdos cívicos e biografias de Getúlio Vargas, que revelam o patriotismo exacerbado do regime e a escola como uma instituição ideal para a formação cívica. Importante destacar que, aqui, entendemos a escola e o ensino não apenas como a relação educativa que envolve professor-aluno e métodos de ensinar na sala de aula da escola formal. Entendemos que refletir sobre educação escolar é refletir sobre um organismo vivo. Todos se envolvem com ela seja para aprender ou ensinar. Ela não ocorre separada dos interesses presentes em determinado período histórico. Está ligada a uma totalidade social, econômica, política e cultural. Para Chervel (1990, p. 187), por exemplo, grandes objetivos da sociedade, em diferentes períodos, ―não deixam de determinar os conteúdos do ensino tanto quanto às grandes orientações estruturais‖. Entendemos que o ensino ocorre nos mais diversos espaços e práticas educacionais. É o que as festas cívicas sugerem. Essas festividades podem ser destacadas como instrumentos transmissores dos valores do regime vigente, cumprindo um papel educativo, pois constituem tempo de atividade educativa, tempo de aprender. Concordamos com Fonseca (2011, p. 73) quando explica que a festa cívica ―constitui exteriorização dos valores inscritos no ensino de uma história nacionalista e, ao envolver a escola, cumpre seu papel educador, de acordo com os interesses de seus organizadores‖. Por meio dos desfiles e festividades, que se iniciavam na escola, o espírito cívico e patriótico atingia as crianças, os jovens e adultos, cumprindo o objetivo de despertar na população a imagem de um

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país harmônico, coeso, administrado por um chefe competente. Claro que nem tudo o que foi proposto na legislação educacional ocorreu na prática. Não podemos desconsiderar o fato de que os sujeitos fizeram usos diferenciados dessas festividades, poderiam ―existir queixas antes dos desfiles, diferentes paixões e sentidos que não atendiam a um único objetivo, aquele que atendia aos interesses políticos (BENCOSTTA, 2006). Entretanto, a análise desses eventos pode revelar um pouco sobre as representações de escola, de ensino e de sujeitos que estavam em pauta nas décadas de 1930 e 1940. No calendário de festas cívicas há várias datas comemoradas com ênfase em todo país como, por exemplo, o dia 10 de novembro em comemoração ao aniversário do Estado Novo, o Dia do Trabalho, o Dia da Árvore, o Dia da Juventude e o Dia da Raça. Também faz parte desse calendário cívico o Dia da Bandeira (19 de novembro), a Semana da Pátria (7 de setembro) e o aniversário de Getulio Vargas (19 de abril). Como não possuímos espaço para analisar pormenorizadamente todas essas datas, escolhemos discorrer, neste texto, sobre as três últimas, pois elas aparecem com ênfase nas páginas do jornal.

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Então, vamos a elas. O Dia da Bandeira era especial para o Governo e deveria ser celebrada em público, com hasteamento do Pavilhão Nacional e desfiles pelas ruas das cidades. Esse culto, que teve início em 1908, era significativo para o Estado Novo, pois era visto como um instrumento capaz de fomentar a coesão nacional. Tanto é, que Getúlio Vargas proibiu a ostentação de símbolos estaduais. Na Constituição de 1937, no que se refere à Organização Nacional, observamos no Art. 2° que ―A bandeira, o hino, o escudo e as armas nacionais são de uso obrigatório em todo o país. Não haverá outras bandeiras, hinos, escudos e armas. A lei regulará o uso dos símbolos nacionais‖ (BRASIL. Constituição, 1937). A preocupação era fortalecer a Nação, direcionar a população para a Pátria, unindo-o debaixo de um único pendão. Essa ideia pode ser observada no discurso proferido por Bernardete Muniz, aluna do Colégio São José, de Porto União, na solenidade do Dia da Bandeira, em 1941. O Jornal reproduziu o seguinte trecho desse discurso: Brasileiros! Duas palavras a Nossa Bandeira. Olavo Bilac, um dos maiores poetas brasileiros, ao encerrar a sua brilhante oração a Bandeira, diz: Bendita, sejas, exclama ainda a mocidade brasileira, no dia de hoje. Bandeira do meu Brasil! Com a pobreza de minhas palavras, quero

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cantar-te: Como és linda, quando te agitas ao sopro da brisa! És bela como o límpido firmamento, e pura como a açucena dos vales. Simbolizas a riqueza do Brasil, e seu brilhante porvir. O teu verde representa as nossas florestas, as nossas campinas, e os nossos arvoredos, esperanças dos filhos não (ilegível). O teu azul celeste é o nosso céu e os nossos mares, e, no dizer do poeta, o teu Cruzeiro do sul é a nossa história. És o símbolo de uma nação, a insígnia de um povo. Em resumo: representas o passado, o presente e o futuro deste país rico e majestoso. Bandeira! Surgiste naquela manhã dourada do 15 de novembro de 1889, em que, como Deodoro e nos próceres da campanha republicana ás demais nações americanas, completou no Continente o quadro democrático [grifo nosso] (O COMÉRCIO, 1941, p. 01). O discurso da aluna representa bem a ideia expressada na Constituição de 1937. A aluna destaca, por exemplo, que a Bandeira Nacional ―És o símbolo de uma Nação, a insígnia de um povo‖, que transmite uma ideia de unidade. Sobre a importância do Dia da Bandeira para o Estado Novo, é importante destacar que Vargas decretou a queima pública dos pavilhões regionais. Essa ação buscava, ―evitar a valorização de regionalismos e dar maior ênfase ao nacional, era importante aguçar o sentimento de brasilidade, de amor e respeito pela Pátria‖ (SILVA, 2011, p. 88). Esse primeiro evento ocorreu na capital Federal, em novembro de 1937, no mesmo mês da implantação do Estado Novo, no Dia da Bandeira. As festividades eram compostas de desfiles pelas ruas principais das cidades, hasteamento solene da Bandeira, vocalização do Hino Nacional, cações e poesias, bem como atividades esportivas. A programação era extensa e nesses dias de festa as ruas centrais das duas cidades ganhavam vida logo pela manhã. O jornal O Comércio descrevia todo o ritual em longos textos, ricos em detalhes e adjetivos. Em 30 de novembro de 1941, por exemplo, com o título: Ecos da solenidade do Dia da Bandeira, na primeira página, o Jornal destacou que ao amanhecer do dia 19, a cidade apresentou-se em festa, ―vendo-se, então, não só nas repartições públicas, mas também, à frente de inúmeras casas comerciais, e em outras de moradia familiar, o Pavilhão Nacional, que, ao sopro da forte brisa, tremulava, meigo e soberano‖ (O COMÉRCIO, 1941, p. 01).

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Com a ajuda da natureza, que proporcionou um dia magnífico, as solenidades comemorativas do Dia da Bandeira tiveram excepcional brilhantismo. Segundo nossa fonte: Às nove horas, procedeu-se, na Praça Hercílio Luz, ao hasteamento solene da Bandeira, estando aí presentes todas as autoridades locais, professores e alunos do Colégio São José, Grupo Escolar Balduino Cardoso, os associados do Clube de Ginástica, representantes de várias associações classistas, do clero, da imprensa, além de extraordinário número de exmas. famílias. A seguir levou-se a efeito imponente desfile escolar, cujos componentes percorreram as principais ruas desta e da visinha cidade de União da Vitória, causando a organização, ordem e disciplina justos louvores do público (O COMÉRCIO, 1941, p. 01).

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O Dia da Bandeira, nas décadas de 30 e 40, era dia de estudantes, familiares, a população em geral, nas ruas das cidades em confraternização. As festas escolares tornaram-se ―momentos especiais na vida das escolas e das cidades, momentos de integração e de consagração de valores – o culto à pátria, à escola, à ordem social vigente, à moral e aos bons costumes‖ (SOUZA, 1998, p. 259). Era hora de exercitar o patriotismo esperado pelas autoridades. Outra festa cívica levada a efeito em todo país pelo Governo é o Dia da Pátria, ou Semana da Pátria. No período republicano foi a data cívica mais importante e ainda hoje é a mais comemorada nas escolas. Trata-se de uma data que diz respeito a um evento histórico específico, um rito histórico de passagem ―entre o mundo colonial e o mundo da liberdade e da autodeterminação, como explica Da Matta (1997, p. 54). Comemorações Cívicas - foi o título que o Jornal utilizou para publicar, na primeira página, os resultados das festividades referentes ao Dia Independência Política em Porto União, iniciadas no dia cinco. O jornal destaca que a solenidade teve início no Ginásio São José e: [...] tiveram estas, excelente êxito, o que demonstrou, mais uma vez, a grandeza e a utilidade desse novel estabelecimento de ensino secundário, que tem à sua frente, como verdadeiros guardas, as vontades

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inquebrantáveis do Frei Bertino e do Inspetor Elpidio Silva. A essa solenidade, que constou do hasteamento da Bandeira Nacional, na fachada principal do edifício do Ginásio, vocalização de hinos, e canções patrióticas, e de ambos os discursos, estiveram também, presentes as alunas do Colégio Santos Anjos [...] À noite, e promovida pelas autoridades escolares de Porto União, realizou-se importante marcha, em que tomaram parte, empunhando vistosas lanternas luminosas, todos os alunos do Ginásio São José, do Colégio Santos Anjos e do Grupo Escolar Professor Balduino Cardoso, que, debaixo duma ordem que bem alto fala da disciplina que se mantém nos nossos estabelecimentos escolares, ofereceram a cidade momentos de intensa vibração cívica (O COMÉRCIO, 1941, p. 01). O referido texto mostra uma singularidade nessa festividade. O desfile foi realizado no período noturno, com lanternas, o que deve ter fornecido a festa ainda mais brilhantismo e tempo para a organização. Essas festas cívicas eram planejadas pelas autoridades e os educadores recebiam, com antecedência, as normas a serem seguidas. Esses professores ficavam encarregados da tarefa de preparar os estudantes de acordo com os ideais que lhes eram passados. De acordo com Silva (2011, p. 06) dias antes das festividades o Departamento de Educação já enviava as circulares com os detalhes que os mestres deveriam seguir. Certamente, destaca a autora, os alunos passavam a ―maior parte do tempo escolar se dedicando aos ensaios, uma vez que eram muitas as comemorações no decorrer do ano letivo e os programas a serem executados eram amplos. No dia 7, as festividades seguiram com a celebração de Missa Campal, realizada pelo Rev. Frei Graciano, Vigário da Paróquia, e à qual assistiram todas as autoridades civis e militares, representantes da imprensa, do comércio, das indústrias, das associações religiosas, recreativas e esportivas, escolares e grande número de fiéis. Percebemos, através das páginas do Jornal, que as escolas forneciam ao evento o material humano necessário para o sucesso das festividades. Os professores e demais funcionários das escolas eram responsáveis pela preparação dos alunos, estes e seus familiares engrossavam a solenidade. A sociedade, em geral, se faz presente, pois trata-se de eventos que estão fora do cotidiano rotineiro, são momentos de encontro, conversas, como explica DaMatta (1997). Na

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mesma cena, que reunia variado conjunto de pessoas, ―se dava o grande espetáculo, tudo se transformava num grande teatro de euforia coletiva‖ (SILVA, 2011, p. 96). Além dessas datas, já consagradas, no Estado Novo percebemos a inclusão de novas datas no calendário, como o aniversário de Getúlio Vargas e do próprio Estado Novo. Podemos dialogar com Hobsbawm (1997, p.17-19) quando discorre sobre a invenção de tradições. Para o autor, geralmente elas ocorrem em momentos de transformações amplas e rápidas. Ele alerta para o fato de que o propósito principal destas novas tradições ―[...] é a socialização, a inculcação de idéias, sistemas de valores e padrões de comportamento‖. As tradições inventadas têm como objetivo ―[...] inculcar nos membros de um determinado grupo: ‗patriotismo‘, ‗lealdade‘, ‗dever‘, ‗as regras do jogo‘, ‗o espírito escolar‘, e assim por diante‖.

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Sobre o aniversário de Getúlio Vargas, a partir de 1940, o dia 19 de abril, passou a ser comemorado como data cívica nacional. No auge do governo essa data mobilizava todo o país. Os alunos trocavam novamente ―os bancos das escolas pelos desfiles nas ruas das cidades do país em homenagem ao senhor Vargas‖ (BENCOSTTA, 2006, p. 303). Em 27 de abril de 1941, por exemplo, o jornal O Comércio publicou, na primeira página, um extenso texto com o título: De como Porto União se associou às festas com que o Brasil solenizou a data natalícia do Presidente Getulio Vargas. Verificamos que a comemoração se estendeu até o dia 21, dia consagrado a Tiradentes. O evento teve como programa: Missa solene – oferecida em ação de graças pelo Rev. Frei Graciano, digno Vigário da Paróquia, iniciou a Comissão Central o programa, por ela previamente concertado. Seguiu-se a esse ato religioso, a que assistiram todas as autoridades locais, escolares, e mais a totalidade da família católica desta cidade, entusiástica Marcha popular - cujos componentes, após terem percorrido, com vistosas lanternas luminosas, as nossas principais ruas, estacionaram na Praça Hercílio Luz, donde através do aparelhamento eletro-acustíco da prefeitura Municipal, lhes foi oferecida esplendida Hora cívica – falando ai em nome do Governo do Município, o inteligente e culto Professor Estevão Juk, que leu ao micrôfonio, substanciado trabalho de sua autoria, no qual disse, sempre sob vibrantes aplausos da grande

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multidão, da vida e da obra do preclaro aniversariante. Dessa importante parte do programa, participaram, ainda, o pianista Felício Domit, o violinista João Nito Gaspari, além doutros apreciados elementos do nosso meio artístico e cultural. A seguir, efetivou-se, nos amplos salões do Clube almirante Boiteux, bem organizada Hora de arte – finda a qual, teve início animado baile. No dia 20, na sede do Clube Náutico Iguaçu, realizou-se magnífica Festa esportiva – durante a qual foi servida a farta churrascada (O COMÉRCIO, 1941, p. 01). De acordo com o programa, no dia 19, houve uma missa solene, marcha popular, hora cívica, hora da arte e animado baile. No dia seguinte, 20 abril, ocorreu a festa esportiva, no Clube Náutico Iguaçu. As competições esportivas foram comuns nas festividades cívicas em todo o país. Mas, devem consideradas para além do espetáculo, pois a educação dos corpos entrava na pauta política desse período. Com a ajuda de Lenharo (1986, p. 75) é possível compreender que o ―corpo está na ordem do dia, e sobre ele se voltam as atenções de médicos, educadores, professores, instituições como o exército, a escola, os hospitais‖. Toma-se consciência de que ―repensar a sociedade para transformá-la passava necessariamente pelo trato do corpo, como recurso para se alcançar toda a integridade do ser humano‖. Estamos falando de mecanismos pelos quais visava-se a preparação do futuro corpo trabalhador do país. Havia o interesse de inculcar, na criança, no adolescente o futuro executor de tarefas disciplinado e satisfeito, que asseguraria o processo de industrialização iniciado no Brasil. No Estado Novo a educação física era tão necessária quanto a educação intelectual. Tomando novamente a Constituição de 1937, como fonte, especificamente o Art. 131, é possível perceber que o ensino cívico e a Educação Física eram obrigatórios em todas as escolas primárias, normais e secundárias. Segundo o documento ―não podendo nenhuma escola de qualquer desses graus ser autorizada ou reconhecida sem que satisfaça aquela exigência‖ (BRASIL.Constituição, 1937). Percebemos que a juventude, e ainda a classe trabalhadora, foram vistos pelo governo Vargas como a ―menina dos olhos‖ da Nação. Investir pesadamente nesses sujeitos,

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fazê-los amar a pátria e trabalhar por ela, era construir a unidade da nação, um Estado forte. Com a documentação e historiografia aqui utilizada percebemos que procurou-se centralizar e coordenar a educação no país através das reformas. Desenvolveram-se ações no sentido de disciplinar e canalizar as massas para a direção imposta pelo regime. A escola foi entendida como locus formador das novas gerações e as festividades cívicas escolares constituíram-se ativo arsenal pedagógico, transmissores de uma linguagem coletiva e patriótica. Elas romperam os muros da escola em suntuosos desfiles que aproximaram a população. Percebemos a educação sendo colocada a serviço do governo de Getulio Vargas, num contexto de centralização política, censura e violência física e simbólica.

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Para finalizar, é importante destacar que estas páginas nada mais são do que o ―resultado‖ das primeiras incursões na problemática em torno das festas cívicas e os interesses do Estado. A análise do jornal O Comércio ainda precisa ser concluída, bem como um exame mais aprofundado sobre o intelectual ligado ao jornal, a partir de uma bibliografia específica. Portanto, muito há para acrescentar e também corrigir neste texto. Deste modo, o diálogo está aberto, pois entendemos que é assim que o conhecimento histórico pode ser construído, em diálogo com outras perspectivas, com outros interlocutores. O texto termina, mas sem ponto final... Fontes Jornal O COMÉRCIO, Porto União, 27 de abril de 1941. Jornal O COMÉRCIO, Porto União, 10 de setembro de 1941. Jornal O COMÉRCIO, Porto União, 30 de novembro de 1941. Legislação BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 10 de novembro de 1937. _____. Decreto-Lei n. 4.244, de 9 de abril de 1942. Lei Orgânica do Ensino Secundário. Referências BENCOSTTA, Marcus Levy Albino. Desfiles Patrióticos: memória e cultura cívica dos grupos escolares de Curitiba (1903-1971). VIDAL, Diana Gonçalves, (org.). In: Grupos Escolares: cultura escolar

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